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MEDIEVALISMO - MITTELALTER-REZEPTION -

MEDIEVISMO/MEDIEVALIDADE 1
Richard Utz

Uma introdução

Nos últimos anos, o estudo do “Medievalismo” (uma aproximação grosseira


daquilo que é chamado na Língua Alemã como “Mittelalter-Rezeption”; ela é
problemática, pois uma ambígua aproximação na Língua Francesa seria
“medievismo”/”medievalidade”) tem sido uma das áreas mais produtivas no estudo
acadêmico da Idade Média. O termo em inglês (grafado como “Mediaevalism”),
conforme o Oxford English Dictionary, foi usado pela primeira vez por John Ruskin em
1853, e transmutou-se em um termo de investigação acadêmica na monografia de Alice
Chandler, intitulada Um Sonho de Ordem (A Dream of Order, 1970), além das seções
de Leslie J. Workman nas Conferências de Kalamazoo (desde 1971) e por conta de sua
revista, Estudos sobre o Medievalismo (Studies in Medievalism, desde 1976). Ele se
encontra no centro de uma gama de discussões sobre uma mudança de paradigma maior
na investigação da cultura medieval em tempos pós-medievais. Enquanto os filólogos
“hardcore” ainda tendem a favor do estudo da Idade Média “real” em uma perspectiva
mais tradicional (cientificista, positivista e filológica, talvez), outros grupos, entre eles
os assim chamados “Novos Filólogos” ou “Novos Medievalistas”, têm proposto um
“retorno ao lar” em direção à “mobilidade prazerosa” da cultura manuscrita medieval,
uma mudança (virada, lit. turn) ao inquérito que eles pretendem empreender com a
ajuda da “escrita eletrônica”.
Outros acadêmicos pós-modernos, independentes dos “Novos filólogos”,
acreditam que os estudos medievais são pouco mais do que uma forma do
medievalismo, em primeiro lugar. Em um vasto território deixado aberto entre essas
posições ideológicas extremas e intensamente disputadas, uma matriz heterogênea de
acadêmicos investigam nichos que os permite trabalhar sobre uma vasta quantidade de
estudos de caso críticos sobre como a idade média tem sido vista, (ab)usada, escrita,

1
Tradução livre do texto: UTZ, Richard. Medievalism. Mittelalter-Rezeption. Médiévisme. Perspicuitas
– Internet-Periodicum für mediävistische Spach-, Literatur- und Kulturwissenschaft 1, 2004. Online, aos
cuidados do Prof. Dr. Renan M. Birro (UPE/Mata Norte). A tradução aqui disponível foi pensada como
material básico da disciplina “Tópicos Especiais em Teoria da História II”, intitulada como
“Medievalismo(s), neomedievalismo e recepção da Idade Média na contemporaneidade”. Email:
rbirro@gmail.com.
descrita, inventada, desejada e interpretada por críticos, artistas, políticos e pela cultura
popular, do início da modernidade até os dias atuais.
A função dessa subseção da Perspicuitas é acompanhar os desenvolvimentos
nesta rápida expansão desse excitante campo de estudos. Os ensaios, resenhas e links
disponíveis aqui foram pensados de modo a ofertar uma introdução das visões e
métodos ao praticar o “medievalismo”. Assim, os editores solicitarão referências
bibliográficas sobre tópicos relacionados, resenhas de publicações pertinentes e irão
oferecer acesso eletrônico aos textos dos anais das conferências sobre o Medievalismo,
intitulado The Year’s Work in Medievalism. Nós encorajamos os acadêmicos a
contribuir com ensaios, resenhas, referências ou pequenas peças de opinião sobre o
medievalismo. Todas as submissões serão revisadas e, se aceitas, publicadas na
Perspicuitas e linkadas nesta subseção. Ademais, nós incluiremos links para as
conferências anuais sobre o Medievalismo, a revista da Boydell & Brewer, Studies in
Medievalism, além de outros eventos relevantes – todos eles envolvidos na recepção
crítica do período medieval em eras pós-medievais.

Que é Medievalismo?

Em vez de trabalhar sobre uma definição totalmente inclusiva do medievalismo,


que poderia, ao fim, ainda parecer limitada para esclarecer os limites do campo, eu
escolhi fornecer as citações a seguir, derivadas da erudição sobre o “Medievalismo”.
Elas exemplificam melhor o escopo interdisciplinar e a natureza de contestação do
campo.

Richard Utz

“[O Medievalismo] é o estudo da Idade Média, a aplicação dos modelos medievais para
as necessidades contemporâneas e a inspiração da Idade Média em todas as formas de
arte e pensamento (WORKMAN, Leslie J. Editorial. Studies in Medievalism 3 (1), p.1,
1987).

“[O M]edievalismo, em sua origem e pelos primeiros cem anos, foi um movimento
inglês [...] No século XX, o medievalismo foi virtualmente retirado do campo por duas
coisas: primeiro, pela Primeira Guerra Mundial, que superou enormemente o ethos de
“cavalaria” ao qual as classes governantes da Europa tinham se comprometido
pessoalmente; e, segundamente, pelo Romantismo, um processo que eu descrevo em
meu artigo “Medievalismo e Romantismo” (SHIPPEY, Tom; UTZ, Richard. Speaking
of Medievalism: an interview with Leslie J. Workman. In: ______ (Eds.). Medievalism
in the Modern World. Essays in Honour of Leslie J. Workman. Tunrhout: Brepols,
1998, p.439-440).

“Há duas formas para que os estudos medievais possam ser didaticamente justificados
com uma importância central e consistentes na educação e cultura. Primeiro, nós
podemos dizer que a herança medieval é muito rica hoje, em um conjunto proeminente
de ideias e instituições, tais como a Igreja Católica, a universidade, a lei anglo-
americana, o governo parlamentar, o amor romântico, o heroísmo, a guerra justa, a
capacidade espiritual do „povo miúdo‟ e das elites, e o louvor das literaturas e línguas
clássicas. Que essa herança deve ser conscientemente identificada, cultivada e refinada
é um lugar comum. Em segundo lugar, nós podemos dizer menos convencionalmente
que a civilização medieval permanece, para a nossa cultura pós-moderna, como „um
outro‟ conjuntivo, a sombra intrigante, o duplo marginalmente distintivo, o
compartilhador secreto de nossos sonhos e ansiedades. Essa visão implica que as Idades
Médias são muito próximas da nossa cultura de hoje, mas exibem variações pontuais
que nos perturbam e nos forçam a questionar alguns dos nossos valores e padrões
comportamentais, assim como propor certas alternativas ou, ao menos, algumas
modificações. A diferença é relativamente pequena, mas ainda mais provocativa por
conta disso” (CANTOR, Norman. Inventing the Middle Ages. New York: Morrow,
1991, p.47).

“Quatro modelos distintos da recepção medieval podem ser determinados:


1) O produtivo, isto é, a recepção criativa das Idades Médias: assuntos, trabalhos, temas
e até mesmo autores medievais são criativamente reformados em um novo trabalho;
2) A recepção reprodutiva das Idades Médias: a forma original dos trabalhos medievais
é reconstruída de uma maneira vista como „autêntica‟, como em produções musicais ou
renovações (por exemplo, de pinturas e monumentos);
3) A recepção acadêmica das Idades Médias: autores medievais, trabalhos, eventos etc.
são investigados e interpretados conforme os métodos críticos que são únicos a cada
respectiva disciplina acadêmica;
4) A recepção política-ideológica das Idade Médias: trabalhos medievais, temas e
„ideias‟ ou pessoas são usados e „retrabalhados‟ para propósitos políticos em um sentido
amplo; por exemplo, para a legitimação ou para o desmerecimento (quanto a isso,
alguém poderia apenas recobrar o conceito de „cruzada‟ e a ideologia associada a ele)”
(GENTRY, Francis G.; MÜLLER, Ulrich. The reception of the Middle Ages in
Germany: an overview. Studies in Medievalism 3 (4), p.401, 1991).

“A filologia medieval é a manhã para um texto, o labor paciente dessa manhã. É a busca
por uma perfeição anterior que está sempre perdida, aquele momento único no qual a
voz presumida do autor está ligada à mão do primeiro escriba, ditando a autêntica,
primeira e original versão, que irá desintegrar nas mãos de numerosos e descuidados
indivíduos que copiam a literatura para o vernacular [...] A Filologia é um sistema de
pensamento burguês, paternalista e higienista sobre a família; ele acalenta a filiação,
rastreia os adúlteros e tem medo da contaminação. Este pensamento baseia-se no que
está errado (a variante sendo uma forma de comportamento desviante) e é a base para a
metodologia positiva” (CERQUIGLINI, Bernard. In Praise of the Variant. Baltimore:
Johns Hopkins University Press, 1999, p.34 e 49).

“Quais os caminhos pelos quais o estudo da Idade Média nos ensina a historicizar o
campo da teoria crítica? O que é outra forma de perguntar: em que extensão nossas
estratégias e desejos podem determinar as questões que nós colocamos e as respostas
que nós damos? Nós não podemos escapar da obrigação de clarificar nossas próprias
agendas. Nós podemos fazê-lo apenas ao reconhecer o nível pelo qual os assuntos
inquiridos permanecem em uma posição comprometedora: por outro lado, envolvidos
em uma empresa que, desde o Renascimento, tem assumido o desinteresse do
conhecimento, a objetividade da ciência filológica; por outro, participando como um ser
socialmente contextualizado em uma rede de subjetividades predeterminadas como
sexo, posição social e origem étnica” (BLOCH, Howard; NICHOLS, Stephen G.
Introduction. In: ______ (Ed.). Medievalism and the Modernist Temper. Baltimore:
Johns Hopkins University Press, 1996, p.5).

“A crença que as habilidades da disciplina são métodos neutros em vez de um complexo


sistema de representações encoraja a ilusão que as disciplinas, que são centradas nas
habilidades, são diferentes per se; tal crença também desvaloriza as habilidades. Tem
sido meu objetivo demonstrar que as habilidades da erudição medieval tradicional – a
essência da tradição agora confrontada pela inovação – não são atemporais, trans-
históricas e imutáveis. Em vez disso, elas são o produto das eras em que são planejadas
e, acima de tudo, formas pessoais e profissionais de discurso; igualmente, o criticismo
contemporâneo não é apenas uma nova coleção de linguagens críticas, mas também um
novo grupo de pessoas falando linguagens próprias. As habilidades tradicionais das
nossas disciplinas, que são os meios de mantê-las, não podem ser dispensadas; também
não pode ser ignorada a história das disciplinas acadêmicas. As habilidades devem ser
renovadas e a história deve ser desconstruída ou „desmantelada‟ para permitir „um tipo
mais íntimo de conhecimento‟, no qual nós encontramos outra forma de conhecer nós
mesmos e nossos predecessores, falando sobre suas línguas, assim como a nossa, na
conversação pela qual nós conhecemos a Idade Média (FRANTZEN, Allen J. Prologue:
documents and monuments: difference and interdisciplinarity in the Study of Medieval
Culture. In: ______ (Ed.). Speaking two languages: tradicional disciplines and
contemporary theory in Medieval Studies. Albany: State University of New York Press,
1991, p.32-33).

“Assim, o que significa o Novo Medievalismo? Eu vou oferecer duas versões. Primeiro,
ele significa o estudo da Idade Média à luz daquilo que os acadêmicos da literatura
chama elipticamente de „teoria‟ – isto é, as teorias literárias e culturais associadas com
pensadores como Derrida e Michel Foucault [...] Mais especificamente, o Novo
Medievalismo significa o Medievalismo pós-Moderno, o estudo da Idade Média a partir
de uma perspectiva pós-moderna conscientemente assumida, um ponto de vista que a
distingue da modernidade, ou aquilo que eu proponho chamar de Longa Renascença
(PADEN, William D. New Medievalism and Medievalism. The Year’s Work in
Medievalism 10, p.232-233, 1995).

“As Idades Médias são virtualmente únicas entre os maiores períodos ou áreas dos
estudos históricos, posto que é uma criação de estudiosos. Desde que o termo „Idade
Média‟ foi cunhado pela primeira vez por humanistas italianos, em uma de suas muitas
formas, revoluções culturais sucessivas tomaram como desejável adotar e ampliar o
termo para os seus próprios propósitos – incluo aqui o advento do Romantismo no final
do século XIX. É axiomático que cada geração tem que escrever sua própria história do
passado, e isso é especialmente verdadeiro no caso da Idade Média. Ato contínuo, temos
que o medievalismo, o estudo desse processo, é uma parte necessária do estudo da Idade
Média [...] [O M]edievalismo, preocupado com o processo em vez do produto, é uma
frutífera área ao considerar as diversas formas da crítica pós-moderna. Desde o
estabelecimento da [Revista] Estudies in Medievalism, outras formas de medievalismo,
particularmente abordagens críticas, têm surgido – na Alemanha, a Mittelalter-
Rezeption, que toma seu nome e inspiração da teoria da recepção de Hans Robert Jauss;
e, nos Estados Unidos, uma nova aproximação da Idade Média inspirada por Paul
Zumthor, derivada da obra Parler du Moyen Age [Falando da Idade Média] (1980), que
foi publicada neste país em 1986 sob o título Speaking of the Middle Ages, com uma
introdução de Eugene Vance” (WORKMAN, Leslie J. Medievalism. The Year’s Work
in Medievalism 10, p.227, 1995).

“A Idade Média tem grande apelo, na Alemanha como em outros países, cuja
civilização está ligada à tradição ocidental [...] Quem observar criticamente o trabalho
das diversas disciplinas pode ficar com a impressão que as heranças da Idade Média
desde os princípios da medievística, na primeira metade do século XIX, não foram mais
esmiuçadas e questionadas com tanta intensidade como hoje. Dois princípios reflexivos
norteiam a estrutura da problemática: a alteridade e a continuidade” (HEINZLE,
Joachim Heinzle. Einleitung: Modernes Mittelalter. In: ______ (Ed.). Modernes
Mittelalter. Frankfurt: Insel, 1994, p.9-10).

“Os métodos usados para estabelecer os estudos medievais como uma disciplina
acadêmica no século XIX são bem conhecidos e podem ser sumarizados a seguir.
Buscando uma separação e elevação dos estudos populares da cultura medieval, os
novos acadêmicos medievalistas do século XIX designaram suas práticas como
científica, influenciados pelo positivismo, e evitavam o que eles chamaram como
práticas menos-positivistas e „não-científicas‟, apelidando-as de medievalismo. Eles
isolaram e estudaram artefatos medievais dos complexos sedimentos históricos como se
eles fossem fósseis (BIDDICK, Kathleen. The shock of Medievalism. Durham: Duke
University Press, 1998, p.1-2).

“Para começar, qual é a natureza do significante campo no qual a historiografia


medieval, enquanto um modo de sublimação, toma lugar? Eu uso o termo „sublimação‟
para fazer referência ao problema endereçado por Freud de como a criação da arte e
outras formas de „empreendimento‟ cultural podem ser entendidos em relação ao desejo.
O filme Babe irá nos ajudar em um rascunho inicial sobre o que está em jogo na relação
do significante para o desejo e memória. Em primeiro lugar, Babe é um filme com uma
agenda reconhecidamente medieval. Ele celebra o amor entre o mestre e o servo
(atualmente, animais tem que atuar como camponeses), e a vida rural como o cenário no
qual o amor pode ser redescoberto. Ele expressa o desgosto pela tecnologia, focado
especialmente nas comunicações na forma de uma máquina de Faz, mas também
recupera o Fax como uma disciplina, um treinamento, uma técnica. Estas figuras
recobram os tropos principais de um medievalismo anti-utilitarista no século XIX. O
filme faz o mesmo quanto à insistente associação de discurso sem sentido com
comercialismo e descrença diante do extraordinário, e sua associação do discurso
significante de Babe com um taciturno, porém amoroso fazendeiro – um homem fora de
seu tempo que, no entanto, é capaz de alcançar o sucesso ao reconhecer os dons
distintivos de seus animais, mesmo quando eles desejam fazer o trabalho „do outro‟ (até
mesmo quando o porco Babe quer fazer o trabalho de um cão pastor)” (FRAENBURG,
Louise. So that we may speak of them: enjoying the Middle Ages. New Literary History
28 (2), p.205-230, 1997).

“Os estudos que nós podemos definir sob a alcunha do medievalismo, onde nós
examinamos as representações do medieval ou definições do medieval, sofrem de um
curto-circuito, uma doença da causalidade, poderíamos dizer, conforme nós buscamos
considerar os efeitos de uma imagem particular do medieval e de suas causas, sejam
elas históricas, estéticas ou até mesmo cosmológicas. Mas o medievalismo oferece
potencialmente uma posição teórica mais poderosa do que aquela do Novo
Historicismo; aquele medievalismo não é sobre a definição de uma verdade sobe a
Idade Média, mas, em vez disso, sobre definir a verdade de uma Idade Média, um ponto
de impasse que é sujeito a representações através dos períodos, mídias, gêneros e
teorias. O medievalismo reconhece a estrutura ficcional da história, indo além da
simples compreensão histórica, para focar, por sua vez, em uma estrutura mítica que nos
liga à história” (GLEJZER, Richard. Medievalism and New Historicism. The Year’s
Work in Medievalism 10, p.220-221, 1995).

O conflito entre o anacronismo – a disrupção de uma sequência temporal – e o


antiquarismo – sua preservação – pode ser vista na diferença entre o antiquarismo de
Horace Walpole, que levou à criação do gótico, e o antiquarismo de Walter Scott, que
nos conduziu à criação do romance histórico. O gótico é uma revisão iluminista da
superstição medieval e fantasia; o romance histórico é uma revisão romântica da
coleção antiquarista que faz uso da história para criar um identificador temporal em vez
de fabricá-lo por um mero escapismo (FAY, Elizabeth. Romantic Medievalism. History
and the Romantic Literary Ideal. Basingstoke: Palgrave, 2002, p.13).

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