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DIRECÇÃO DE JOSÉ MATTOSO

HISTÓRIA DE PORTUGAL

A MONARQUIA FEUDAL

COORDENAÇÃO DE JOSÉ MATTOSO

DIRECÇÃO DE JOSÉ MATTOSO


HISTÓRIA DE PORTUGAL

SEGUNDO VOLUME

A MONARQUIA FEUDAL
(1096-1480)

Coordenador:
Prof. Doutor José Mattoso

Autores:
Prof. Doutor José Mattoso
Prof. Doutor Armindo de Sousa

EDITORIAL ESTAMPA

Capa: José Antunes


Ilustração da capa: Casamento de D. João I com D. Filipa de
Lencastre. Iluminura da Chronique de France et
d’Angleterre, de Jean Wavrin, séc. XV. Museu Britânico,
Londres.
Cartografia: Fernando Pardal
Composição: Interouro, Lda.
Impressão e acabamento: Printer Portuguesa, Ind. Gráfica,
Lda.
Maio de 1997
Depósito legal n.º 111 264/97
ISBN 972-33-1261-1 (obra completa)
ISBN 972-33-1263-8 (volume 2)
© Editorial Estampa, Lda. e Autores para a língua
portuguesa

Índice

1096-1325

A FORMAÇÃO DA NACIONALIDADE NO ESPAÇO IBÉRICO 13


O contexto ibérico no princípio do século XII 13
Portugal 16
Os outros reinos ibéricos 19
Dois SÉCULOS DE VICISSITUDES POLÍTICAS 25
A emergência de uma unidade política e a conquista da
autonomia (1096-1139) 26
Os condes e os duques de Borgonha 26
Romae Cluny 26
O conde D. Raimundo 28
A Galiza no fim do século XI 28
Raimundo e a política religiosa no Ocidente 29
Raimundo e a aristocracia portucalense 30
Raimundo perante a ofensiva almorávida 31
O conde D. Henrique 32
A concessão do Condado Portucalense 33
Portugal e a Galiza 33
Henrique e a luta contra os Almorávidas 34
Administração interna do Condado Portucalense 35
A política eclesiástica de Henrique 36
Henrique e o Norte de Portugal 40
Henrique e a região de Entre Douro e Mondego 41
Henrique e a política leonesa 42
Evolução das contradições 44
A rainha D. Teresa perante a nova situação 45
D. Teresa, de 1112 a 1116 46
D. Teresa e os Travas 47
O Condado Portucalense de 1116 a 1121 47
Os Travas na corte portuguesa 49
D. Teresa, de 1121 a 1128 50
A revolta dos barões portucalenses 51
São Mamede 53
São Mamede e a independência para com a Galiza 54
O tratado de Tui e o recontro de Valdevez 55
O título de rei 57
A monarquia guerreira (1139-1190) 59
O espaço nacional 59
A defesa de Coimbra 62
A Batalha de Ourique 63
A vassalagem à Santa Sé 64

6
As novas taifas 66
Santarém e Lisboa 67
Os combates a sul do Tejo 68
Geraldo, Sem Pavor, e o desastre de Badajoz 69
Consequências da Reconquista 71
A reorganização municipal 72
A administração central e local 73
A política eclesiástica de Afonso Henriques 74
A política externa portuguesa até 1169 77
A sucessão de Afonso Henriques 79
A consolidação política do reino 80
A ofensiva almóada (1174-1184) 81
Sessenta anos de crise (1190-1250) 85
As invasões almóadas de 1190 e 1191 85
A guerra antileonesa 87
A administração interna (1169-1210) 88
A crise dos anos 1190-1210 90
O primeiro conflito do rei com os bispos 92
A sucessão de Sancho I 93
Aspectos contraditórios de um reinado 95
Ensaios de centralização 97
Afonso II e as infantas 99
Estêvão Soares da Silva 100
O poder régio 101
A guerra santa 102
A guerra com o reino de Leão 103
A sucessão de Afonso II 104
Contradições políticas 104
A conquista do Alentejo 107
A política externa do reinado de Sancho II 109
As lutas contra os bispos 109
A anarquia 111
Tentativas de solução 112
A intervenção papal 113
O triunfo da monarquia 115
A implantação do poder 115
A implantação da ordem 116
As relações com o reino de Castela 118
A superação da crise e a remodelação da administração régia
120
Mudanças de protagonistas 122
A política centralizadora 123
As questões com os bispos 124
O difícil apaziguamento da política eclesiástica 126
O papel de D. Dinis na política peninsular 128
A política de nacionalização 131
Aperfeiçoamentos administrativos e controlo económico 133
A política anti-senhorial 136
A guerra civil de 1319-1324 139

A SOCIEDADE FEUDAL E SENHORIAL 141


O espaço 141
O Entre Douro e Minho 141
A circulação 143
Os castelos, as povoações e a organização social do espaço
145
Povoamento 146
A terra e o regime senhorial 146
O regime senhorial fora de Entre Douro e Minho 147

7
Os senhores 148
O sangue 148
As armas 149
O Poder 150
As categorias 152
Os nomes 153
Monges e sacerdotes 155
Solidariedade: o parentesco 160
Solidariedade: a vassalagem 162
Ideologia 163
Os dependentes 164
As categorias 165
Solidariedades campesinas 168

CONCELHOS 169
O espaço 169
Montanha e planície 169
Campo e cidade 171
A Cristandade e o Islão 174
Judeus 179
Origens e definição 179
O processo de formação dos concelhos 179
Os diversos tipos de concelhos 180
Os concelhos e o regime senhorial 181
As categorias sociais 182
Os vizinhos 182
Os cavaleiros vilãos 183
Os peões 185
Dependentes 186
As funções 187
Solidariedade e colectividade 187
Religião 190
Guerra e paz 195
Propriedade e produção 197

MUTAÇÕES 199
Oemografia 199
Variantes regionais e ritmos de crescimento 199
Migrações 205
Expansão e crises 206
Tenologia e economia 207
O alargamento do espaço económico (1095-1210) 207
A implantação da economia de mercado (1210-1325) 210
Meentalidade e cultura 212
Concepções religiosas 213
Moral e costumes 213
O sentido da medida 215
Cultura 216

A CONSOLIDAÇAO DA MONARQUIA E A UNIDADE POLÍTICA 221


A monarquia 221
O «senhor rei» 222
Regalias 224
Governo central 226
Governo regional e local 229

8
A centralização 232
O rei e os senhores 232
O trono e o altar 234
O rei e os concelhos 238
Regnum 240
Coesão 240
Identidade 244
Bibliografia 247

1325-1480

Condicionamentos básicos 263


O território 263
Regiões e sub-regiões do País 263
Portugal, terra pobre 266
Recursos florestais espontâneos 268
Nos séculos xiv e xv 270
Degradação do coberto vegetal 271
Conclusão 274
A população 275
Números e conjecturas 276
A evolução e os ritmos 278
A curva demográfica 279
Limites da estrutura produtiva 280
A peste negra 283
Fomes e guerras 285
A distribuição da população 287
Distribuição geográfica 287
Distribuição étnica 294
Distribuição estatutária 297
Outras distribuições 299
As gerações 299
Conclusão 301
A ordem 301
A certeza do sentido 301
Os instrumentos do controlo social 304
Os vectores da unidade 307
A língua 307
A terra 307
Orei 311
Conclusão 313
A técnica 314
Técnicas agrícolas, pesqueiras e venatórias 314
Técnicas pesqueiras e venatórias 316
Técnicas industriais, mineiras e energéticas 317
Técnicas comerciais, de transportes e de serviços 318
Conclusão 322
Conclusão geral 322
Notas 323

A SOCIALIDADE (ESTRUTURAS, GRUPOS E MOTIVAÇÕES) 327


A distribuição dos actores 327
Ordens 328
Testemunhos 329
Hierarquias 331

9
Estados 332
Pressupostos 332
Testemunhos e sua interpretação 334
Estados-estatutos. 335
Estados-ofícios ou profissões 336
Estados-riqueza 337
Estados-ordens, Estados-situações e Estados-graus 338
Em conclusão 339
Classes 339
O horizonte teórico 339
Testemunhos 343
Burgueses 343
A identidade burguesa 344
Capital social da burguesia 345
Os mesteirais 346
Antagonismos 349
A visão burguesa dos mesteirais 349
Classificações 351
Interpretação histórica 352
Conclusão 354
As direcções e os sentidos da acção 355
Eclesiásticos 356
Configuração social 356
Configurações sociais 361
A norma moral e a prática 361
Convivialidade social 365
Privilégios 365
Conclusão 368
Nobres 368
Configuração social 369
Categorias 370
Ricos-homens 371
«Grandes» 373
Cavaleiros 374
Vassalos 375
Moradias e casamentos 378
A auto-imagem dos nobres 380
Antagonismos internos 383
Credibilidade social 384
A honra e o proveito 386
Em conclusão: o patriotismo 389
Povos 389
Configuração social 389
O trabalho 391
Contradições 395
Conclusão 396
Conclusão geral 397
Notas 400

REALIZAÇÕES 405
Protagonismos. 405
D. Afonso IV (1325 a 1357) 405
D. Pedro I (1357 a 1367) 409
D. Fernando I (1367 a 1383) 411
Regência de D. Leonor Teles (Outubro a Dezembro de 1383)
414
Interregno (Dezembro de 1383 a Abril de 1385) 415
D. João I (1385 a 1433) 415

10
D. Duarte (1433 a 1438) 419
Regência de D. Leonor de Aragão (1438 a 1439) 420
Regência do infante D. Pedro (1439 a 1448) 421
D. Afonso V (1448 a 1481) 423
Memoráveis realizações 424
O Estado 425
História e território 425
Mecanismos de autoridade e poder 426
As cortes 426
Os conselhos. O conselho do rei 431
Os mecanismos do poder: direito e justiça 432
Os mecanismos do poder: a fiscalidade 436
Os mecanismos do poder: a diplomacia e a guerra 439
Centralização política e «com-sentimento» nacional 441
Orei 441
Os senhorios laicos 442
Os senhorios eclesiásticos 443
Os concelhos 445
A cultura 446
Escolas 447
A universidade 447
As escolas catedrais 449
Escolas capitulares 450
Escolas monásticas 450
Escolas conventuais 451
«Escolas palacianas» 451
Escolas municipais 451
Escolas paroquiais 452
Ensino doméstico 452
Conclusão 452
Literatura 452
A prosa novelística 453
Prosa histórica 454
Prosa moralística e técnica 454
Conclusão 455
Arte 455
Enfim 457
Conclusão 457
Conclusão geral 458
Notas 458
Bibliografia 458

1096-1325
José Mattoso

A Formação da Nacionalidade no Espaço Ibérico

O contexto ibérico no princípio do século XII

O princípio do século XII é um momento fulcral para a


eclosão do fenómeno das formações nacionais no espaço
ibérico cristão. De facto, às mutações do século XI, que
tanta importância tiveram no plano económico e social e no
plano cultural, como vimos no volume anterior, seguiam-se
imediatamente mutações de grandes consequências no plano
político. O processo de apropriação dos poderes de natureza
pública, extra-económica, e a sua utilização na gestão e
organização dos domínios e senhorios por parte da
aristocracia nobre, foi mais precoce nas áreas próximas dos
centros políticos ligados ao rei de Leão, directamente ou
por intermédio dos seus delegados regionais, e mais tardio
nas restantes. Tendo esses poderes sido primeiro exercidos
apenas pelos condes e outros delegados régios,
transmitiram-se depois às categorias inferiores da
aristocracia. Derivavam, tanto para uns como para outros,
do carácter essencialmente militar do seu modo de vida;
mas, enquanto os primeiros o exerciam ém virtude de uma
certa emanação da autoridade régia, os segundos passam a
agir em seu próprio nome. Por outro lado, a ligação dos
segundos não apenas aos seus próprios séquitos mas
sobretudo à terra e aos seus cultivadores, base do seu
poder efectivo, conferia-lhes um papel da maior importância

A Península Ibérica no princípio do século XII.

14

na regionalização do poder político.


Este fenómeno pode-se considerar sob o aspecto do
processo de fragmentação do poder político, que caracteriza
essencialmente a chamada «revolução feudal». Na Península
Ibérica, no entanto, ao contrário do que acontece
além-Pirenéus, a fragmentação é precocemente compensada com
novas formas de articulação entre os senhores e o rei.
Assim, enquanto a cobertura política dos reinos
peninsulares ocidentais era, até ao fim do século X,
superficial e com uma influência muito reduzida ou
puramente exterior sobre a vida das comunidades locais,
para além das controladas directamente pelos delegados
régios, a partir da generalização dos poderes senhoriais,
durante a primeira metade do século XI, o rei procurava
cada vez mais o exercício do poder que o ligasse de mais
perto com as estruturas produtivas de base fundiária e,
portanto, com as realidades regionais. Por isso, deixou de
ser possível o exercício de uma autoridade régia
relativamente uniforme sobre várias regiões,
independentemente das suas características produtivas e
culturais.
A partir daqui, o poder político deixou de depender
principalmente da fidelidade dos condes para se tornar
intimamente relacionado com a capacidade de coligação dos
senhores, cujo poder dependia, por sua vez, da abundância
de recursos materiais e da quantidade de homens dos seus
domínios que podiam armar. A autoridade régia deixou de se
basear na capacidade de transmitir ordens a uma constelação
de centros que imitavam a corte; teve de assegurar o
controlo sobre as próprias estruturas que sustentavam a
organização social do espaço.
Ora, o modelo senhorial não cobria uniformemente toda a
superfície dos reinos cristãos no início do século XII. Nas
regiões de fronteira, situavam-se os concelhos, de
fisionomia fortemente militar, onde os cavaleiros vilãos
exerciam colectivamente um poder comparável ao das casas
senhoriais nos seus domínios, sem, todavia, se apropriarem
deles individualmente. A relação da coroa com estes
senhorios colectivos aproximava-se da que tinha com os
senhorios da nobreza. Por este meio, a realeza articulou-se
também mais intimamente com as realidades económicas e
humanas de cada região. Nos concelhos, de maneira mais
directa ainda do que nos senhorios, porque o rei se
considerava, então, como o seu senhor «directo» e,
portanto, como fonte do direito público e vigilante do seu
exercício, enquanto nos senhorios não podia intervir,
porque os seus detentores exerciam os poderes estatais como
se emanassem da sua própria autoridade.
Ora as soluções, por assim dizer improvisadas pela
dinastia de Navarra, para assegurar as ligações da
monarquia com os mais importantes dos poderes senhoriais
emergentes entraram em crise com a morte de Afonso VI. Esta
crise coincide com a plena consolidação da aristocracia
senhorial. A mutação que então se verificou revestiu três
aspectos principais: a melhor estruturação interna da
nobreza, por uma certa institucionalização dos vínculos
feudo-vassálicos; a consolidação de poderes senhoriais
sobre algumas das mais prósperas cidades do reino; o

15
aparecimento de coligações regionais para negociar com a
autoridade régia a distribuição de poderes superiores. O
primeiro aspecto resulta de um processo próprio do sistema,
mas é reforçado por meio de modelos francos introduzidos
depois dos contactos com monges e cavaleiros de
além-Pirenéus que se fixaram no reino de Leão. Deu maior
força à reacção contra o excessivo favor régio concedido
aos estrangeiros em detrimento de muitos nobres autóctones
e permitiu responder à contestação dos poderes senhoriais
nas cidades, como aconteceu, por exemplo, em Compostela e
em Sahagún na década de 1110. Por outro lado, o reforço das
instituições feudo-vassálicas durante o período de fraqueza
da monarquia, no reinado de D. Urraca, permitiu o
aparecimento de coligações regionais protagonizadas por
figuras cimeiras, como Pedro Froilaz e Diego Gelmírez, na
Galiza, Pedro Ansares, em Leão, ou Pedro Gonçalves de Lara,
em Castela. A Historia compostelana fala claramente destes
agrupamentos de nobres. É fundamental a sua importância na
estruturação das formações nacionais que então apareceram,
se consolidaram ou se ensaiaram sem sucesso e que
condicionaram o quadro político da Península Ibérica
durante os séculos seguintes.

[Legenda de figura:]
Sinais de validação dos documentos condais e régios
portugueses de 1096 a 1189. 1. Sinais do imperador
Afonso VI, do conde D. Raimundo e da rainha D. Urraca em
documento de 1106. — 2. Do conde D. Henrique (1096). — 3.
Do conde D. Henrique (1110). — 4. De D. Teresa (1117). — 5.
De D. Teresa (1126). — 6. De D. Teresa (1128). — 7. De
Afonso I (1129). — 8. De Afonso I (1132). — 9. De Afonso 1.
1134). — 10. De Afonso I (1142). — 11. De Afonso I (1144).
— 12. De Afonso I (1153). — 13. De Afonso I (1169). — 14.
De Afonso I (1184). — 15. De Sancho I (1189).
Note-se que os sinais de Afonso VI, D. Raimundo, D.
Urraca, D. Henrique e D. Teresa ostentam apenas o nome dos
soberanos e conde. Os de Afonso I, pelo contrário, até
1144, só têm o nome de «Portugal». Depois passam a ostentar
os nomes dos membros da família real. Os de Sancho I
desenham as armas reais estilizadas (escudetes semeados de
besantes) com os nomes do rei e da rainha e a menção de
«Silves» e «Algarve».

Neste sentido, pode-se apontar como uma das mais


importantes consequências da protecção concedida por Afonso
VI aos clérigos e cavaleiros francos, com a sua colocação
em postos fundamentais da administração civil e
eclesiástica, uma reacção difusa, pouco visível nas fontes,
mas decerto muito real por parte da aristocracia autóctone.
A resistência que provocou no seio da nobreza deve ter sido
tanto mais grave quanto é certo que se dava também no plano
religioso, com o apoio de camadas sociais não nobres, em

16
virtude da mudança de rito litúrgico e da aplicação dos
princípios da reforma gregoriana, que contestava poderes
até ali exercidos pelos nobres na atribuição de postos
eclesiásticos e no regime matrimonial.
A crise provocada pela reacção contra os francos estava
já, talvez, em vias de resolução quando surgiu a ocasião de
as coligações regionais intervirem na nova distribuição do
Poder a que a fragilidade da realeza deu lugar com D.
Urraca, e quando se organizaram para vencer as tentativas
urbanas de rejeição da autoridade senhorial. A monarquia
passou, por isso mesmo, a depender mais da capacidade de
colaboração da nobreza regional. Esta, por sua vez,
aumentou a sua capacidade de colaboração na organização da
administração régia.
Assegurados os acordos necessários e estabilizada a
situação, durante o reinado de Afonso VII, a nobreza
senhorial pôde então estender os seus tentáculos sobre as
áreas de fronteira e de organização concelhia, que antes
caíam fora da sua alçada. Quer como representantes do rei
quer como concessionários de novas terras, os senhores
ocuparam novos espaços. A ligação com as suas zonas de
origem assegurava uma certa unidade de grandes áreas, agora
formadas por elementos que antes tinham poucos vínculos
entre si. O elo ténue e exterior da autoridade régia passou
então a apoiar-se numa solidariedade de natureza social,
mercê da expansão da classe dominante. Esta, por sua vez,
servia de veículo para a difusão do tipo de relações
sociais de produção implantadas há muito nas terras do
Norte. Nas áreas de repovoamento, porém, as comunidades de
cavaleiros vilãos já estavam suficientemente solidificadas
para oferecerem a sua resistência à maré senhorial e para
imporem uma certa distribuição dos espaços ainda
disponíveis ou negociarem soluções pactuais de distribuição
de poderes, em que a corte régia assumia um papel
fundamental.
Assim, só creio ser possível falar de «nacionalidades»
no Ocidente ibérico a partir do século XII. Antes disso,
tínhamos, esquematicamente falando, uma superstrutura, que
prolongava a autoridade régia sobre toda a monarquia
leonesa e que se apoiava em centros de poder com uma
influência superficial sobre os níveis inferiores. A partir
do momento em que se forma a aristocracia senhorial,
criam-se as condições para articular a mesma autoridade com
a organização social do espaço, que tem forçosamente áreas
regionais diferenciadas. Estas surgem ora como uma nova
expressão de unidades regionais com raízes que vêm desde o
fundo dos séculos, ora resultam da recomposição de outras
unidades regionais menores, que se associam de várias
maneiras, como peças de um puzzle em mutação.

Portugal

É também nesta conjuntura, isto é, no princípio do


século XII, que surgem manifestações de efectiva
solidariedade política no seio da nobreza senhorial
portuguesa. Depois de os seus poderes terem sido expressa
ou tacitamente confirmados por Fernando, o Magno, Garcia da
Galiza e Afonso VI, exerceram com Raimundo e com Henrique
de Borgonha uma atitude «colectiva» perante a política de
Teresa, até acabarem por rejeitar a sua ligação com os
Travas. No segundo capítulo deste volume descreveremos as
vicissitudes políticas que explicam como, por meio de uma
série de acontecimentos muito precisos, se foi cavando cada
vez mais profundamente a separação entre a aristocracia
portucalense e a galega, sobretudo no plano religioso, em
que a rivalidade entre Braga e Compostela, e a tentativa
feita por esta de se apropriar dos seus direitos
metropolíticos sobre a Galécia, provocou fortes reacções de
rejeição, que tornaram infrutíferas as tentativas de
restauração da unidade política entre a Galiza e Portugal,
outrora criada em favor do rei Garcia.
Sucedia isto no mesmo momento em que se formavam ou
fortaleciam na Galiza, em Leão, em Castela e em Aragão
outras coligações análogas, o que torna o processo
português de formação da nacionalidade semelhante ao de
outras regiões do espaço cristão peninsular, embora em
algumas destas não tenha conduzido à formação de unidades
políticas definitivamente autónomas, como aconteceu
precisamente com a Galiza. O que, de toda a maneira, se
deve rejeitar, por falta de fundamento histórico, é a
imagem de um reino de Leão homogéneo, do qual Portugal se
teria separado por inesperada cisão. Também parece difícil
de sustentar a imagem contrária, de um Portugal de há muito

17
dotado de identidade própria e que forçosamente tendia para
a autonomia, como se ela estivesse inscrita na natureza das
coisas. O espaço que se tornou país independente icluía
unidades regionais menores, com poucos vínculos entre si.
Só no século XII surgiram condições para que esses vínculos
adquirissem uma expressão social e política que abrangesse
o conjunto. A situação periférica em relação ao centro do
poder monárquico e a proximidade da fronteira (que
intensificava as actividades militares) contribuíram para
que a coligação da nobreza senhorial surgisse
espontaneamente, quando se sentiu ameaçada pela intromissão
de poderes externos, durante o governo de Teresa.
Mas o processo de afirmação da nobreza portucalense é
análogo ao da nobreza de outras regiões, embora de maneira
particularmente linear, quando comparado com a delas,
porque a área em que domina é mais reduzida, porque a
maioria das famílias está unida por laços de parentesco e
porque a proximidade da fronteira lhe impõe uma certa
unidade. Por comparação com ela, as outras nobrezas
peninsulares apresentam uma composição mais variada, porque
resultam da cristalização de poderes de níveis diferentes,
contam com maior número de grandes senhores, estão mais
próximas da corte e, portanto, mais sujeitas às intrigas,
para aí sustentarem as influências. Por isso, existem nelas
maiores contradições internas e comportam uma estruturação
feudo-vassálica mais acabada, de forma a, de alguma
maneira, compensarem essas mesmas contradições.
A diversidade regional, mais acentuada para Leão e
Castela, verifica-se também em Portugal. Num primeiro
momento, isto é, em textos anteriores a 1165, encontram-se
numerosas referências à dualidade constituída pelos dois
antigos condados de Portucale e de Coimbra. No entanto, a
intitulação dos condes Henrique e Teresa e de Afonso
Henriques é constantemente e apenas a de senhores, condes,
príncipes ou rei «portucalense» ou «dos Portucalenses».
Esta prática contrasta, portanto, com os costumes da
chancelaria real de Leão e de Castela, que ora usam um
título evocativo do direito do seu rei a dominar em toda a
Península (rex hispanorum, Hispaniarum ou Hispaniae), ora
mencionam as várias províncias que compõem os seus Estados
(Leão e Galiza, Castela e Estremadura, Castela e Toledo,
etc). Assim, em Portugal, apesar de até meados do século
XII haver uma consciência clara da dualidade, prevalece
desde cedo a ideia da supremacia de Portucale sobre todo o
território.
Na escolha do título está também presente a ideia de
que o Poder se exerce a partir de um centro, de uma sede —
o que faz ressaltar a ideia da sua unidade fundamental —,
mesmo que o lugar de residência habitual do príncipe não
seja o Porto, mas Guimarães ou Coimbra, onde se situaram
sucessivamente as comunidades monásticas que constituíam os
seus pontos de apoio espirituais.
De facto, resulta à primeira vista surpreendente que o
título de rex portugalensis ou, mais frequentemente,
rexportugalensium continue a usar-se depois de Afonso
Henriques passar a viver normalmente em Coimbra, a partir
de 1131, e de Santa Cruz ser o novo centro espiritual da
monarquia e o seu panteão régio, pois Coimbra está situada
fora do espaço do antigo condado de Portucale. Pode
deduzir-se daqui que a base da titularidade era ou a
dignidade que outrora havia sido concedida pelo rei de
Leão, e que Afonso Henriques herdara, ou então a sua
qualidade de chefe dos «Portucalenses», isto é, dos
senhores de além-Douro. A ampliação do espaço e a mudança
da sede do trono não alteravam nenhum destes factos. Também
não se alterou o título nem o facto com a conquista de
Lisboa e de Santarém e de outras cidades a sul do Tejo. Por
mais importância económica e estratégica que tivessem,
nunca se denominou rei de Lisboa.
Pode-se perguntar se o empenhamento de Afonso Henriques
em conquistar Badajoz correspondia ao propósito de dominar
a antiga capital da Lusitânia, uma vez que Badajoz havia
praticamente substituído Mérida como centro de poder.
Provavelmente não chegaremos nunca a sabê-lo. Podia estar
em causa apenas a eliminação da mais importante fortaleza
muçulmana do Ocidente, de onde partiam todas as grandes
operações militares em direcção a Portugal, e não tanto a
conquista de um prestígio político baseado na memória de
uma sede administrativa da época romana. Mas o facto de a
parte da Lusitânia conquistada pelos Portugueses ter ficado
separada da sua antiga capital deve ter contribuído para
destruir a noção do seu antigo espaço e não o considerar
como uma unidade acrescentada ao Condado Portucalense,
apesar de a sua memória estar ainda viva nos escritos de
Santa Cruz de Coimbra e da Sé de Lisboa até ao fim do
século XII.

18
Pode-se comparar o caso da Lusitânia com o do Algarve,
igualmente cindido em dois pela reconquista portuguesa e
pela castelhana, e que justificou um título acrescentado ao
do rei de Portugal desde Afonso III. Este facto resulta
provavelmente de o nosso rei reivindicar um território
disputado pelo rei de Castela. Além disso, as comunicações
com o Algarve eram, de facto, difíceis, sobretudo por
terra, o que contribuiu para o considerar até muito tarde
um espaço separado de Portugal.
Quer isto dizer que, em termos de consciência política
dos primeiros detentores da coroa portuguesa, o espaço
nacional surge para eles como o prolongamento do que era
propriamente Portucale. Os membros da chancelaria que
escolheram as intitulações do seu rei, exprimindo o
sentimento dos componentes da cúria e do próprio rei,
parecem indiferentes às disparidades culturais que opõem as
comunidades do Norte às do Centro e do Sul. Para eles,
parece contar apenas a origem da maioria dos chefes
guerreiros que militam sob as ordens do caudilho e que eram
propriamente os «Portucalenses».
Deduz-se daqui que, durante todo o século XII, a
relação que une o poder político com as comunidades locais
passa, no Norte, pela mediação de uma nobreza senhorial,
que é a verdadeira detentora do poder local, e, no Centro e
no Sul, por uma ocupação militar apoiada em centros
estratégicos e de certo modo superficial. Ou seja, se, à
partida, os barões portucalenses exercem um papel
fundamental na obtenção da independência, nos momentos
seguintes, o vínculo entre a monarquia e os concelhos, que
formam a maioria das comunidades do Centro e do Sul, é
relativamente ténue e pouco influenciado pela base. Esta
diferença está também presente, por um lado, na diferença
de estruturas da organização social do espaço, mais feudal
no Norte, mais comunitária no Centro e no Sul, e, por
outro, na tendência que a primeira tem para se sobrepor à
segunda, apesar das suas resistências. A partida, o rei
surge para esta como um poder externo, o garante ideal da
paz e da justiça, com o qual é necessário pactuar, em boa
parte para garantir a subsistência.
Na fase seguinte, o panorama altera-se
substancialmente, na medida em que o rei e os senhores —
leigos, eclesiásticos ou das ordens militares — disputam
entre si o controlo das comunidades do Centro e do Sul.
Haverá então a partilha dos espaços disponíveis pelos
principais poderes senhoriais (incluindo o próprio monarca,
que adopta formas senhoriais de exercício do Poder), mas os
concelhos surgem normalmente integrados no senhorio directo
do rei, o que os torna seus aliados na defesa contra as
incessantes tentativas de apropriação do seu espaço por
senhores leigos e eclesiásticos.
Assim, em última análise, é por intermédio da dupla
organização do espaço nacional, ou seja, por meio do
sistema senhorial e por meio da administração régia, que as
terras recém-conquistadas se vão agregando de maneira
orgânica ao núcleo primitivo e reproduzindo uma mesma
hierarquização social, apesar das diferenças que separam
aquele do sistema concelhio. A classe dominante é
propriamente, em toda a parte, a aristocracia nobre (à qual
está associada a eclesiástica): no Norte, apoiada em
poderes senhoriais sobre a terra; no Centro e Sul,
dependente da monarquia ou integrada em estruturas
clericais, mas, apesar disso, fundamentalmente única pela
natureza da sua supremacia social, dos seus privilégios e
da sua hierarquia interna, assim como pela solidariedade da
estrutura do parentesco. A unicidade da classe dominante e
do poder político são, portanto, os dois vínculos iniciais
de que nasce a unidade de um país fortemente diversificado,
geográfica e culturalmente. Podemos dizer, para exprimir
sinteticamente esta ideia, que os «portugueses» desta fase
são propriamente os membros da aristocracia centrada no rei
e só por extensão os seus dependentes.
É claro que a sobreposição desta camada social a todo o
país só é produtora de unidade por se apropriar dos seus
recursos através do controlo directo ou indirecto da rede
de circuitos que ligam as suas diversas partes, ou seja,
por meio da influência directa ou indirecta sobre a fieira
de cidades que se estende de norte a sul, paralelamente à
costa atlântica, de Valença (frente a Tui) até Aiamonte e
Silves, passando por Guimarães, Porto, Aveiro, Coimbra,
Leiria, Santarém, Lisboa, Alcácer, Évora, Beja e Mértola.
Nelas se implanta o que se pode chamar o «sistema nervoso»
do corpo nacional; é delas que parte o controlo judicial,
administrativo, fiscal e militar, que o rei detém
cuidadosamente; é nelas que se apoia o sistema de trocas
comerciais, que canaliza os produtos regionais para os
centros urbanos e que difunde nos campos os produtos
artesanais. Numas cidades, a aristocracia controla

19
directamente a administração e a economia, sobretudo no
Norte, por intermédio dos poderes eclesiásticos; noutras,
controla-as indirectamente, por intermédio da sua
participação no poder régio. Assim, a unidade da
aristocracia articula-se com a unidade da administração
régia, de tendência centralizadora desde o reinado de
Afonso III, e esta com a progressiva activação do comércio
pelo patriciado urbano.
A influência unificadora destes três níveis de
vinculação — a unidade da aristocracia dominante, da
administração régia e dos circuitos comerciais — é
reforçada na base por movimentos demográficos, que rompem
as fronteiras das antigas unidades regionais. A rarefacção
populacional do Centro e do Sul e a inesgotável capacidade
de absorção dosprincipais centros urbanos (situados
principalmente na mesma zona) permitem assimilar os
excedentes demográficos do Noroeste, onde a densidade é
excessiva. Maiores teriam sido as transferências de
habitantes se fosse grande a fertilidade do solo no
interior montanhoso a norte do Tejo e na planície
alentejana. A Natureza avara não permitiu uma modificação
profunda das disparidades demográficas. Só o litoral
estremenho se altera estruturalmente com a ocupação do
hinterland. Aí se mistura, na zona delimitada pelas três
cidades mais importantes — Lisboa, Santarém e Coimbra —,
gente de todas as procedências. Aí se dá a verdadeira
síntese de culturas que plasma a maneira de ser
«portuguesa», agora no sentido moderno da palavra, isto é,
aquela que se sobrepõe lentamente aos regionalismos. Não é
de admirar que este espaço de osmose humana e cultural
coincida com o centro da fieira de cidades que há pouco
mencionei. É aí que se estabelecem também as trocas mais
intensas entre os conceitos próprios dos diversos grupos
sociais, aí que se faz a síntese da cultura nortenha e da
moçárabe, aí que se mantém activa a tecnologia citadina e
se guardam os conhecimentos «científicos» de origem árabe
ao serviço de uma economia dominada por gente do Norte, aí
que se desenvolve mais rapidamente a escrita e se difunde a
moeda, aí que se apoia o movimento da centralização régia,
aí que se manifesta mais precocemente a consciência
nacional.
Para esta eclodir e atingir as camadas inferiores da
população será, porém, necessário esperar os momentos
traumáticos em que a gente do litoral atlântico se
confronta com as repetidas vagas das invasões castelhanas,
que no fim do século XIV vão duas vezes até Lisboa e uma
até Aljubarrota, durante as quais as populações indefesas
sofrem as depredações e as violências não só dos exércitos
castelhanos, mas também das «companhias» francesas e
inglesas, cuja língua e costumes evidenciam a diferença que
separa os «outros» dos «mesmos».

Os outros reinos ibéricos

Enunciado em termos muito gerais o problema da relação


entre as unidades regionais de Portugal, a organização
social do espaço, a evolução das estruturas políticas, as
trocas culturais e económicas, as transferências
demográficas e, finalmente, a influência que tudo isto tem
na formação da consciência nacional e na edificação de uma
entidade política, resta ver como se processam as relações
desta mesma unidade com o exterior, isto é, com os
restantes reinos da Península Ibérica. Neste ponto, tantas
vezes tratado em termos factológicos pela historiografia
tradicional, convém evitar dois dos seus pressupostos mais
ou menos inconscientes, ou seja, de que as relações
internacionais se processavam na Idade Média em termos
análogos aos das épocas moderna e contemporânea e, por
outro lado, de que uma nova nação só poderia nascer pela
via da revolução, tal como as da Europa e América da
primeira metade do século XIX, que tiveram de infringir o
princípio da inalienabilidade do espaço nacional. Seria
necessário, pelo contrário, ter em conta os arquétipos
políticos medievais, nos quais se baseiam comportamentos
aparentemente análogos aos modernos, mas com objectivos,
procedimentos e princípios de acção completamente
diferentes. A este respeito, convém ter em conta o que M.
Garcîa-Pelayo diz sobre este tema, e particularmente acerca
da guerra entre cristãos:

«Não se considerava tanto um acto essencialmente


político, como execução do direito; não, sem dúvida, de um
direito racionalizado e com regras precisas, mas de uma
ordem jurídica composta pela integração de uma pluralidade
de direitos subjectivos e na qual, embora nem sempre
houvesse uma instância superior, se respeitavam normas ou
princípios acima das partes. Deste modo, a guerra adquire

20
[...] figura de execução do direito, de duelo ou de
processo, e, em todo o caso, tende a tomar um aspecto
agonal, isto é, a submeter-se a regras de jogo
independentes da eficácia militar ou política da sua
aplicação.»

Ao referir a importância destes conceitos convém,


todavia, não projectar sobre o século XII, que aqui nos
interessa, a prática efectiva de um certo código
cavalheiresco de honra e respeito pelo adversário, a que
normalmente aludem os romances de cavalaria do fim da Idade
Média, e que talvez seja o ponto de referência de
García-Pelayo; interessa sobretudo acentuar a diferença que
separa as relações internacionais da Idade Média,
particularmente antes do século XIV, das que vigoraram mais
tarde. O quadro interpretativo apresentado por este autor é
particularmente útil para compreender a maneira como se
desenvolvem as relações internacionais em que Portugal se
insere nos dois primeiros séculos da sua existência.
Surge assim a uma luz diferente, em primeiro lugar, o
processo que conduz Afonso Henriques ao Poder e o impõe
como fundador de um reino e, em segundo lugar, a evolução
das relações de Portugal com os outros reinos ibéricos.
Neste campo, os testemunhos da época revestem, de facto,
uma incoerência e uma falta de continuidade que só se podem
explicar a esta luz. Torna-se, então, compreensível a
passividade de Afonso VII perante as acções de
independência de seu primo ou a facilidade com que aceita
compromissos pouco claros. Do mesmo modo, não se podem
interpretar, à luz dos tratados actuais, convenções tais
como o pacto sucessório entre Raimundo e Henrique, o acordo
entre Teresa e Urraca ou o tratado de Tui de 1137, cujos
textos se conservaram. Este último, de facto, é de tal modo
ambíguo que os especialistas não se entendem entre si
quando procuram classificá-lo juridicamente. Não há,
afinal, da parte de Afonso VII, como se verá a seu tempo,
uma busca de verdadeira eficácia militar ou política nem
nos campos de batalha nem no campo diplomático, quer a
respeito da vassalagem de Afonso Henriques, quer da sua
relação com a Santa Sé. Tomando apenas este caso, note-se
que Afonso VII não contesta a decisão de Afonso Henriques
senão cinco anos depois de ele se tornar miles de S. Pedro,
e nessa altura para o acusar de cometer abusos no plano
eclesiástico, não para contestar a legitimidade da sua
segunda vassalagem.
Se o que estivesse em causa fosse a eficácia militar ou
política, não se compreende que Fernando II de Leão combine
em 1158 com o rei de Castela dividir com ele o que vier a
conquistar em Portugal e depois, passados seis meses, tenha
um pacífico encontro com o rei de Portugal e o renove no
ano seguinte sem qualquer problema. Se a referida cláusula
exprimia um direito inalienável sobre o território
português, não poderia ter desistido dele dentro de pouco
tempo e sem qualquer compensação no plano dos princípios.
Numa perspectiva moderna, também seria incompreensível que
a Santa Sé manifestasse maior repugnância em aceitar o
título de rei, durante mais de 30 anos, de 1143 a 1179,
quando o de Leão, principal interessado, o fez sem qualquer
dificuldade. Não se compreenderia que Fernando II, tendo
Afonso Henriques à sua mercê em Badajoz em 1169, apenas lhe
exigisse a restituição dos castelos que considerava seus e
alguns anos depois viesse com os seus exércitos ajudar
Sancho I a defender Santarém contra o emir de Marrocos.
Também não se compreenderia que as frequentes guerras de
Portugal com Leão se reduzam, afinal, a pouco mais do que
algumas escaramuças de fronteira, em que se disputaram
terras e castelos, se exigiram juramentos, se trocaram
filhas ou irmãs para garantir o respeito por compromissos
mútuos, mas não houve nunca invasões profundas em
território inimigo, nem nada que se parecesse com o
propósito de aniquilar o adversário.
As chamadas «guerras nacionais» anteriores ao século
XIV parecem-se mais, portanto, com lutas entre senhores
feudais do que com guerras modernas. Por isso, os combates
se podem também parecer mais com duelos que exprimem o
juízo de Deus, como acontece no «bafordo» de Valdevez, do
que com verdadeiras batalhas.
A guerra contra os Muçulmanos, essa sim, tinha um
verdadeiro carácter militar e político, quando era
conduzida pelos reis, ao contrário do que acontecia com a
empreendida pelas milícias concelhias, que era uma forma
económica de depredação do adversário, sem nunca o esgotar
por completo. Naquela, pelo contrário, a partir de meados
do século XI, há o propósito de apropriação de pontos
estratégicos, de defesa eficaz do território, de alcançar
objectivos definitivos. É precisamente o sucesso de Afonso
Henriques nesta guerra que o impõe como o detentor de um
carisma que o faz, apesar da ilegitimidade de sua mãe, um

21
digno sucessor de Afonso VI. Ou seja, não se comporta como
um simples caudilho, mas como quem revela a força peculiar
do sangue que lhe corre nas velas (nobilitas) e a coragem,
persistência e fidelidade a uma missão sagrada
(strenuitas), o que o torna digno de usar a coroa de rei.
Assim, Afonso Henriques não deve a coroa apenas ao facto de
ter conquistado uma autonomia à força da espada e da
diplomacia, mas também ao reconhecimento que Afonso VII e
os outros soberanos da Península manifestaram do seu
direito.
Esta interpretação permite compreender o carácter
eminentemente guerreiro dos dois primeiros monarcas
portugueses. Devendo a sua dignidade à descendência régia,
só pelo vigor militar se tornam dela verdadeiramente
dignos. Por isso, as primeiras crónicas portuguesas e
castelhanas não falam nunca numa revolta de Afonso
Henriques contra Afonso VII. A sua luta pela autonomia não
é uma infracção à ordem e ao direito, mas o cumprimento de
um destino heróico e, portanto, excepcional, que os outros
reis cristãos não podem deixar de respeitar, mesmo quando
se lhe opõem pelas armas, como aconteceu nas questões
fronteiriças e nas lutas resultantes de desacordo acerca do
cumprimento de compromissos mútuos, como veremos ao tratar
da história política no capítulo seguinte.
Sendo assim, talvez as intervenções de Afonso IX de
Leão em Portugal durante o reinado de Afonso II, que não
governou como um guerreiro, mas como um verdadeiro chefe de
Estado, numa forma para muitos considerada mesquinha de
administrar a coroa, pudessem ser consideradas como o
exercício de um poder supletivo; ou seja, além de aervirem
para reivindicar direitos sobre terras fronteiriças ou
sobre os castelos das arras de D. Teresa, podiam ter também
a intenção de proteger os senhores a quem o rei de Portugal
não reconhecia os devidos direitos. A este respeito, porém,
a mais evidente demonstração do respeito de um soberano
estrangeiro pela autoridade do rei de Portugal é a
intervenção do príncipe Afonso de Castela, futuro Afonso X,
em defesa de Sancho II, em 1246, com o expresso propósito
de combater o que considerava uma intervenção abusiva do
poder papal na política interna de um reino hispânico.
As lutas, tréguas e tratados até ao fim do século XIII
estão, portanto, cheios de disputas sobre castelos e terras
de fronteira, área em que a pluralidade de direitos se
tornava, de facto, particularmente conflitual. Este
fenómeno deve-se relacionar também com concepções políticas
depois abandonadas, ou seja, de que o poder político se
exerce, como mostra também García-Pelayo, a partir de um
centro, sem que se delimite sempre rigorosamente o
perímetro alcançado, como acontece, de resto, em muitas
formas de exercício da soberania e de concepção do espaço
nas sociedades primitivas. A fronteira podia, portanto,
ser, em muitos casos, um espaço bastante largo e não uma
linha. Dependia este facto de a zona fronteiriça ser mais
ou menos habitada. No segundo caso, os limites eram vagos e
as ocasiões de conflito frequentes; no primeiro caso, a
linha de demarcação podia ser mais precisa, como acontecia,
de facto, por exemplo, no rio Minho desde uma época
bastante recuada. Mas havia também territórios de fronteira
cujos senhores negociavam com os príncipes de um lado ou de
outro a prestação de fidelidade, o que suscitava igualmente
numerosos conflitos, como aconteceu com os, territórios de
Toronho e de Límia até ao fim do século XII. A delimitação
cada vez mais rigorosa da fronteira só se tornará
sistemática a partir da época em que se difundem as noções
de medida e " de quantidade, ou seja, durante a segunda
metade do século XIII e a primeira do seguinte. As
numerosas construções de castelos de fronteira por D. Dinis
resultam de uma mutação de mentalidade que corresponde a
esta problemática. As guerras e os tratados da segunda
metade do século XIV, sustentados por Estados que
entretanto tinham desenvolvido as concepções e as formas
práticas de supremacia política que se aproximam das dos
Estados modernos, começam também a revelar noções
objectivas de hegemonia política e de supremacia económica,
que tornam possíveis as ambições imperialistas.
Tudo isto torna a independência de Portugal um fenómeno
que nada tem de anómalo ou de extraordinário face às
concepções do século XII. Não representa uma bizarra
singularidade («um acaso histórico»), ao contrário do que
pensava Sánchez Albornoz, cujas interpretações pressupõem o
conceito de uma unidade ibérica «natural»,' em que Castela
desempenharia um papel quase providencial, como nação
destinada a dar-lhe expressão política concreta,
justificando, assim, a sua actuação imperialista a partir
do século XIV.

22
Quanto ao problema da hipotética vassalidade do rei de
Portugal para com o de Castela, que tanto preocupou os
historiadores nacionalistas dos anos 40 e 50 deste século,
é também necessário rever as interpretações da
historiografia tradicional. Estas tendiam a acentuar a
radicalidade inicial da independência e, portanto, a negar
a vassalagem; alguns acentuavam a incompatibilidade de uma
vassalagem ao rei de Leão e outra à Santa Sé a partir de
1143. Tendo em conta, porém, o que vimos anteriormente
acerca das concepções políticas vigentes nos séculos XII e
XIII, não se pode atribuir ao problema uma importância
excessiva nem tentar dar-lhe uma solução categórica.
Com efeito, não existiu nunca na Hispânia a tradição de
um nível hierárquico de poder acima do dos reis. A ideia de
império foi frágil e contraditória, tanto sob a forma
irrealista de restauração de um imaginário império
visigótico, como nas manifestações ambíguas do fim do
século XI, como até da parte do único soberano que a
reivindicou claramente, Afonso VII. Assim, a fragilidade da
ideia imperial reflecte-se sobre a própria ambiguidade ou
instabilidade das relações vassálicas entre soberanos e
particularmente das que poderiam ter sujeitado o rei de
Portugal ao de Leão.
De facto, encontra-se uma tradição da vassalidade
portuguesa, embora expressa apenas, é verdade, em fontes
narrativas — o que mostra o seu sentido ideológico —, mas
suficientemente persistente para se manter até ao fim do
século XIII. Na realidade, parece exercer pouca influência
efectiva sobre as relações políticas entre os dois reinos.
Se a sua base está no chamado «tratado» de Tui de 1137,
pode-se registar a sua ambiguidade desde o primeiro
momento. Esta encontra-se na própria formulação dos
compromissos mútuos. Dir-se-ia que ambas as partes a
aceitaram, talvez, para o imperador não ter de urgir
demasiado o seu cumprimento e para Afonso Henriques não se
considerar demasiado vinculado por ela. A ausência de
tradições acerca da vassalidade de reis na Península
contribuía também para a falta de clareza dos compromissos.
Parece acontecer qualquer coisa de semelhante com a
vassalidade de Afonso III a Afonso X pelo Algarve, em 1253
ou 1254. Interpretada, segundo parece, como um feudo «de
reprise» pelo segundo, mas como uma espécie de enfiteuse
pelo primeiro, levaria a desentendimentos quanto à sua
interpretação, mas não conduziu nenhum dos contendores a
reivindicações demasiado intransigentes. Dir-se-ia que
havia da parte do soberano de Castela o propósito de
exprimir uma certa soberania sobre o de Portugal, mas a
pretensão não se adequava à realidade efectiva da
independência do segundo.
A tradição, porém, manteve-se. A Crónica de Afonso X é
uma das suas manifestações mais evidentes, ao desenvolver
largamente uma narrativa acerca da maneira como a
vassalagem se teria desfeito, depois de restaurada por
Sancho II de Portugal em favor do príncipe Afonso, para lhe
agradecer o auxílio prestado contra o conde de Bolonha.
Reconhecida por Afonso III, teria sido como vassalo que seu
filho, o infante D. Dinis, teria ido auxiliar Afonso X, seu
avô materno, na luta contra os mouros revoltados. Teria,
finalmente, cessado por concessão gratuita do mesmo rei em
favor do neto, mas a sua decisão acarretaria tal escândalo
e oposição entre os fidalgos castelhanos que provocaria a
sua revolta armada contra o rei.
Da obrigação de vassalagem havia também uma tradição em
Portugal, pois suscitou a lenda de Egas Moniz, que contava
como ele teria livrado Afonso Henriques, com risco da
própria vida e à custa de uma promessa não cumprida, de
prestar homenagem a Afonso VIL É quase certo que esta lenda
foi criada pelo cortesão e descendente de Egas Moniz, o
trovador João Soares Coelho, que assim pretenderia, com a
sua estória, reivindicar para o seu antepassado o mérito de
ter livrado Afonso Henriques e, portanto, todos os seus
descendentes dos seus compromissos vassálicos. Para o que
aqui nos importa, no entanto, não pode deixar de se
reconhecer que ela exprime, numa ocasião próxima daquela a
que a Crónica de Afonso X atribui a narrativa acima
mencionada, a persistência de uma memória incómoda acerca
de uma obrigação de vassalagem esquivada por processos
astutos ou mesmo fraudulentos, embora justificados pelo
ideal de fidelidade do bom vassalo para com o seu rei.
Seja como for, os equívocos decorrentes deste problema
não parecem ter afectado demasiado as relações entre
Portugal e os reinos vizinhos. Quando era necessário,
nenhum dos reis peninsulares hesitava em recorrer a
alianças bilaterais com o rei de Portugal, em plano de
igualdade. Nenhum deixou de lhe pedir auxílio para obter

23
melhores posições nos seus conflitos com terceiros, nos
seus tratados de paz ou nos acordos contra os Mouros. Por
outro lado, desde 1143 que os reis portugueses também não
deixaram de procurar afirmar-se, mesmo perante reis e
poderes extrapeninsulares, como soberanos de categoria
semelhante à de outros reis da Cristandade. Daí o casamento
de Afonso Henriques com a filha do conde da Sabóia e os
casamentos de reis e princesas portugueses com consortes
das casas de Aragão, de Leão ou de Castela, ou mesmo de
casas reais e condais da Flandres ou da Dinamarca. É
interessante verificar que os contactos da corte portuguesa
com casas reais ou condais de fora da Península se
verificaram sobretudo durante os séculos XII e XIII, como
se fizessem parte de um propósito de o rei de Portugal se
equiparar o mais possível aos seus iguais da Península
Ibérica. A projecção europeia da corte portuguesa só
voltará a renovar-se no fim do século XIV, com outro
soberano que pretende também afirmar uma legitimidade
contestada, João I.
Tudo isto mostra também a inadequação dos conceitos
modernos acerca das relações internacionais que envolvem
Portugal nas suas origens e a necessidade de as interpretar
à luz das próprias ideias políticas da época. Foi este o
quadro histórico no qual se iniciou a trajectória de
Portugal como país independente e em que se conjugaram os
factores que concorreram para se ir formando como nação.

DOIS SÉCULOS DE VICISSITUDES POLÍTICAS

Nenhuma obra histórica pode dar conta da complexidade


do passado num tempo único. Tem sempre de proceder por
aproximações sucessivas, mesmo quando privilegia um
determinado nível ou tipo de factos — o económico, o
social, o cultural ou o político —, a partir do qual propõe
a sua interpretação do conjunto. Com efeito, há vários
encadeamentos possíveis, todos eles com a sua lógica e a
sua justificação. Por isso os historiadores se habituaram
desde há muito a distinguir entre «estrutura» e
«conjuntura», entre «factos», «dados» e «acontecimentos»,
entre «tempo curto» e «tempo longo», entre os movimentos de
grande amplitude e os factos superficiais e com um alcance
limitado, entre a simples informação do que aconteceu e a
sua interpretação.
Já se sabe que uma forma moderna de encarar a história
não pode prescindir dá reconstituição das estruturas (que
utilizam dados colhidos prevalentemente nos níveis
económico, social ou mental), nem de propor uma
interpretação que permita atribuir um sentido e uma
coerência aos factos enumerados por meio de uma simples
descrição. A história não se pode reduzir à factologia nem
a uma apresentação neutra dos dados. Também não se pode
confinar à narrativa dos acontecimentos considerados
importantes. A associação destas duas grandes formas de
encarar o passado obriga, porém, a adoptar uma ordem na
apresentação dos elementos disponíveis. Ordem essa que não
se pode basear apenas na sequência cronológica, porque a
análise das estruturas tem quase sempre de utilizar dados
de diversos momentos históricos (até para demonstrar a sua
permanência) e porque os ritmos dos acontecimentos
políticos são diferentes dos das mutações estruturais.
Sendo, portanto, inevitável decidir se deveria começar
por apresentar as estruturas ou a factologia, escolhi a
segunda alternativa, para que o leitor disponha, à partida,
das referências cronológicas indispensáveis. Assim, quando
se apresentarem as estruturas, terá já presente a evolução
política, que é como que a manifestação visível das
tensões, contradições ou acordos que associam ou opõem as
forças nelas existentes; possuirá como que uma teia de
factos ordenada cronologicamente, a que a apresentação
estrutural dos fenómenos poderá referir-se, para que estes
não apareçam desligados da realidade, mas sirvam de base
para a sua explicação profunda. Por outro lado, parece-me
preferível começar por um nível, por assim dizer, mais
superficial e mais facilmente perceptível, antes de
penetrar em regiões mais profundas do tecido histórico.
Passar-se-á, assim, de um plano mais simples da realidade
para outro mais complexo.
Começar por apresentar os acontecimentos políticos não
representa, portanto, uma opção em termos de hierarquia
interpretativa da história, mas apenas uma preferência, por
assim dizer, pedagógica. De resto, não se podem compreender
os acontecimentos mais importantes sem ter em conta o seu
significado económico, social ou mental. Por isso, a
narrativa das vicissitudes políticas que se dão entre 1096
e 1325 não pretende ser uma explicação, mas apenas uma
primeira abordagem da matéria histórica. Nesse nível surgem
muitos fenómenos e dão-se muitos factos cujo alcance pleno
só se pode compreender mais tarde, ao ler os capítulos
seguintes. Só depois de se relacionarem os acontecimentos
com o funcionamento das estruturas económicas, das relações
sociais e dos sistemas mentais é que se podem realmente
avaliar as forças e energias que estão em causa. Será
sempre necessário, é claro, fazer alusões de um plano pára
o outro. A realidade histórica, porém, é sempre única. Só.a
sua extrema complexidade impõe os cortes lógicos,
cronológicos e espaciais que a sua análise necessariamente
impõe.

26
A emergência de uma unidade política e a conquista da
autonomia (1096-1139)

Os condes e os duques de Borgonha

Durante os anos que se seguiram à Batalha de Zalaca,


chegaram a Leão e Castela repetidas vagas de cavaleiros
francos e de monges ou clérigos. Entre os primeiros, veio,
como vimos no volume anterior, Raimundo de Borgonha, senhor
de Amous, filho de Guilherme I, o Grande, também chamado
Tête Hardie, conde de Borgonha e irmão do seu sucessor no
condado. Renato II. Henrique, que chegou mais tarde à
Hispânia, pertencia a outra família de categoria superior,
a dos duques de Borgonha. Tanto uns como outros eram
descendentes directos de Hugo, o Grande, duque de Paris e
pai de Hugo Capeto, o fundador da dinastia francesa que
sucedeu aos reis carolíngios no final do século X. O irmão
de Hugo Capeto, o conde Eudes, foi o fundador da casa
condal de Borgonha, por ter casado em segundas núpcias com
Gerberta de Mâcon e de Borgonha, viúva de Alberto de Aosta,
conde de Ivrea. Transmitiu o condado ao seu enteado e filho
adoptivo, Otão Guilherme, e este a Renato I, pai do já
referido Guilherme Tête Hardie.
A dinastia ducal capetíngia de Borgonha foi iniciada
por Roberto, irmão de Henrique I de França e neto de Hugo
Capeto. O condado tinha a sua principal cidade em Besançon
e ocupava a zona leste do rio Soma, até aos Alpes, que o
separavam da Lombardia. O ducado situava-se a ocidente
daquele rio, englobava as importantes cidades de Châlon,
Auxerre, Autun, Nevers, Dijon, Mâcon e Sémur, tinha como
vassalos os condes de Auxerre e de Nevers e abrangia os
domínios das abadias de Vézelay, de Cluny e de
La-Charité-sur-Loire. A família dos duques era, como se vê,
mais poderosa e importante do que a dos condes.
Pertencia-lhe a rainha Constança, mulher de Afonso VI,
filha do duque Roberto I. Por parte de sua mãe, Hélia de
Sémur, era sobrinha do abade Santo Hugo de Cluny, que se
pode considerar o mais influente personagem da Cristandade
ocidental daquela época, a seguir ao papa Gregório VII A
rainha Constança, por sua vez, foi tia do duque Eudes I e
do irmão mais novo de ambos, o conde Henrique de Portugal,
que aparece pela primeira vez em documentos peninsulares em
1096, já depois da sua morte, que ocorreu em 1093.
Apesar de hierarquicamente inferior à família dos
duques, a de Raimundo estava bem relacionada, porque sua
irmã Sibila casou com o duque Eudes I (1079-1102), irmão de
Henrique de Portugal, e porque outros membros alcançaram
influentes lugares na carreira eclesiástica e na cena
política: assim, por exemplo, um irmão de Raimundo foi
arcebispo de Viena e depois chegou ao sólio pontifício,
vindo a tomar o nome de Calisto II.
Não deixa de surpreender que Raimundo, da família
condal, tivesse casado com Urraca, a filha legítima de
Afonso VI, e Henrique, da família ducal e sobrinho da
rainha Constança, desposasse Teresa, a filha que toda a
historiografia tradicional considera bastarda. Este facto
só se pode compreender se a vinda de Raimundo para a
Hispânia e o seu casamento com a princesa Urraca se
tivessem dado antes de se prever a vinda de Henrique e
muito menos o seu casamento com Teresa. Henrique podia ter
sido atraído à corte de Afonso VI justamente por causa do
sucesso ali alcançado por Raimundo. Como vimos, o irmão
mais velho de Henrique, o duque Eudes I, era casado com
Sibila, irmã de Raimundo. Alguns autores confundiram Sibila
com a mãe de Eudes I, mas as investigações de genealogistas
franceses, divulgadas entre nós pelo marquês de São Payo em
1962, são peremptórias neste ponto. Henrique e Raimundo não
eram, portanto, primos, como diz a historiografia
tradicional, mas apenas membros de duas famílias diferentes
unidas pelo casamento.

Roma e cluny

As boas relações dos duques e dos condes de Borgonha


com o Mosteiro de Cluny não podiam, pois, deixar de exercer
uma influência decisiva sobre o destino que ambos seguiram
na Península Ibérica, como veremos mais adiante. As
relações de parentesco explicam suficientemente o papel da
abadia borgonhesa nos acontecimentos políticos relacionados
com os dois juvenes, pois os monges tinham todo o interesse
em promover a «colocação» dos seus protegidos em lugares de
destaque na corte leonesa, para assim garantirem a
manutenção da influência que haviam alcançado.
Não se pode, no entanto, partir deste facto,
suficientemente provado e seguro, para especular acerca de
eventuais projectos políticos de Hugo de Cluny na Península
Ibérica, como fizeram em tempos Luís Vieira de Castro e
Gonzaga de Azevedo. Tais interpretações não têm em conta o

27
pragmatismo das estratégias, o papel efectivo das
instituições nem as concepções religiosas dominantes nessa
época.
De facto, tanto os abades de Cluny como os papas e os
seus auxiliares deram sempre mostras de uma grande
maleabilidade e de uma enorme capacidade para defenderem os
seus interesses imediatos e a longo prazo, por meio de
vários caminhos e processos, cuja nacionalidade e coerência
hoje percebemos mal. A única coisa que se pode afirmar a
este respeito é que a cúria romana procurou constantemente
sustentar na Península Ibérica, pelo menos desde a nomeação
do arcebispo de Toledo como legado permanente para a
Hispânia, uma autoridade capaz de intervir nos negócios
eclesiásticos dos diversos reinos cristãos, sem deixar de,
ao mesmo tempo, intervir também por meio de legados
temporários, especialmente nomeados para desempenharem
missões determinadas.
Além disso, é evidente o propósito genérico de a cúria
papal promover a reforma eclesiástica iniciada com Gregório
VII justamente na década de 1080 e de incitar à luta
anti-islâmica; daí resultava normalmente a estratégia de
favorecer os reis e os senhores que apoiavam com mais
empenho os fautores da reforma e que demonstravam maior
vigor na guerra santa.
Quanto à intervenção de Cluny, a interpretação deve ser
análoga, mas com as variantes resultantes do interesse que
os seus monges tinham de assegurar a continuidade das
contribuições em metais preciosos, que lhe eram oferecidos
pelo rei de Leão, o que podia levá-los a apoiar
preferencialmente a política oficial de Afonso VI, como
meio de garantirem a sua benevolência. A protecção
concedida pelos monges negros aos filhos segundos das
famílias ducal e condal de Borgonha explica-se
suficientemente pelo papel que eles podiam desempenhar
neste ponto: por um lado, sustentavam pelas armas a causa
da Cristandade, cuja ameaça punha em risco a manutenção das
vantagens adquiridas; por outro, funcionavam na corte como
coadjuvantes dos interesses materiais dos monges. A sua
acção era secundada por uma verdadeira rede de mosteiros
juridicamente dependentes de Cluny, cujos superiores eram,
portanto, designados pelo abade borgonhês, que, por si
próprio ou por meio de visitadores, vigiava também a
observância monástica aí praticada. Vários deles
implantaram-se não muito longe dos caminhos de acesso a
Santiago de Compostela; por isso mesmo, podiam abrigar os
peregrinos das comunidades cluniacenses ou da sua numerosa
clientela de clérigos e leigos, e receber esmolas, que eram
parcialmente canalizadas para a casa-mãe ou para as suas
dependências monásticas.

28
O Conde D. Raimundo

Retomemos o fio da narrativa política, procurando


seguir a trajectória pessoal do conde Raimundo de Borgonha
e os principais acontecimentos da fronteira meridional,
desde a vitória dos Almorávidas até ao aparecimento do
conde Henrique na mesma cena, ou seja, durante a década de
1086 a 1096.
Nada se conhece das suas acções desde que chegou a Leão
até ao seu casamento com Urraca, filha legítima de Afonso
VI e de Constança. Este casamento, que se pode datar, com
grande probabilidade, de 1090 ou 1091, deu-se pouco depois
da morte do rei Garcia, irmão de Afonso VI. Como Raimundo
foi logo de seguida nomeado senhor dos mesmos Estados em
que Garcia tinha reinado, a Galiza e Portugal, pode
considerar-se verosímil que os dois factos tenham entre si
alguma relação. Este problema tem a maior importância para
se compreenderem os seus antecedentes e para, por isso
mesmo, averiguar até que ponto tem alguma relação com a
nomeação que poucos anos depois o mesmo rei Afonso VI fazia
de Henrique como senhor do Condado Portucalense.

A Galiza no fim do Século XI

Lembremos, como se disse no volume anterior, que Garcia


tinha recebido em herança por morte de seu pai, Fernando I,
o Magno, o reino de Galiza e de Portugal (1065), ao passo
que Castela ficara para Sancho II e Leão para Afonso VI.
Como vimos também, estes dois reis associaram-se para
prender Garcia e se apoderarem do seu reino, o que
aconteceu em 1071. Não é certo que a prisão de Garcia se
destinasse a enterrar a ideia da Galiza como entidade
política patrimonial. Esta nação podia subsistir, até como
solução administrativa, apesar de o seu titular estar
impedido de exercer o cargo e de as suas funções serem
desempenhadas cumulativamente pelo rei Afonso VI.
Fosse, porém, qual fosse a ideia subjacente à concessão
do condado da Galiza e de Portugal a Raimundo de Borgonha,
a verdade é que esta solução tinha também, para Afonso VI,
a vantagem de criar uma autoridade política dotada de uma
certa capacidade de iniciativa no extremo ocidental dos
seus reinos. A presença física do seu detentor nesta zona
podia ser necessária para resolver problemas específicos
que o soberano considerava como demasiado candentes e
difíceis para deles se poder ocupar com a necessária
eficácia e prontidão.
Tratava-se, em primeiro lugar, da questão do ritual
romano e da reforma eclesiástica. Sabemos que Coimbra
constituiu um centro de firme resistência à introdução da
liturgia romana, pelo menos até à morte do alvazil
Sesnando, que ocorreu em 1091, ou seja, pela mesma ocasião
em que Raimundo foi nomeado senhor daquele território. É
possível que a adesão do bispo de Braga, D. Pedro, embora
tivesse muito provavelmente aceitado o rito romano, não
fosse, apesar disso, suficientemente firme e radical. De
facto, sabemos que o arcebispo Bernardo de Toledo esteve em
Braga em 1089 para sagrar a catedral começada a construir
alguns anos antes, que nela se adoptou um plano inspirado
numa basílica de peregrinação do tipo da de
Sainte-Foy-de-Conques, o que supõe contactos com a França
do Sul, onde se seguia o rito romano, e ainda que se pode
provar o uso do rito romano em alguns lugares da diocese,
com o conhecimento, se não por ordem expressa, do bispo.
Não se prova, porém, que fosse um propagandista zeloso dos
novos ideais religiosos. Nesse mesmo ano de 1091, cometeu o
erro de solicitar o reconhecimento da dignidade
metropolítica e a concessão do pálio ao antipapa Clemente
III, o que constituiu um bom pretexto para Afonso VI (ou
Raimundo, por ele) o mandar destituir e encerrar num
mosteiro, onde veio a morrer, não se sabe em que data. Mas
a Sé de Braga ficou vaga até 1096. O eleito pelo clero
local, Rodrigo Bermudes, parece ter sido aceite por
Bernardo de Toledo e pelo rei Afonso VI, mas não chegou a
ser sagrado bispo. Pode talvez admitir-se que tenha
entretanto recrudescido o apego local às tradições
hispânicas e que as suas garantias de fidelidade à reforma
não fossem suficientes.
Na Galiza, propriamente dita, a situação devia ser
ainda mais complicada. Em 1088, o conde Rodrigo Oveques,
com a cumplicidade do bispo de Compostela, Diogo Pais,
revoltou-se contra a autoridade do rei Afonso VI. A questão
foi então resolvida com a submissão do primeiro e a
destituição do segundo. Desde essa altura, porém,
assistimos a uma manobra tão complicada em torno da
sucessão episcopal que se pôde admitir a hipótese de estes
factos estarem relacionados com as dificuldades de
introdução do ritual romano e de aceitação da reforma
eclesiástica. A crise só foi resolvida em 1093, com a
eleição de Dalmácio, que era justamente um monge francês de
29
Cluny. Tendo ele morrido em 1096, sucedeu-se nova vacância
até ao ano de 1101, quando foi finalmente eleito Diego
Gelmírez, o célebre arcebispo que levaria a Sé de Santiago
de Compostela ao auge do seu esplendor. Tratava-se nada
menos do que do escriba de Raimundo de Borgonha. Todas
estas questões podiam estar relacionadas com o facto de
Compostela reivindicar, como diocese fundada por um
apóstolo, uma dignidade equivalente à da própria Roma e de,
por isso mesmo, muitos membros do seu clero considerarem o
culto ali seguido como uma expressão dessa diferença e,
consequentemente, se recusarem a mudar de ritual litúrgico.
De facto, ainda durante o pontificado de Gelmírez, como
sabemos pela Historia compostelana, se encontram vestígios
da ideia de que Compostela gozava de uma dignidade
equivalente à de Roma. Além disso, dada a importância que a
peregrinação de Compostela desempenhava em toda a
Cristandade e o valor simbólico desse santuário para toda a
Hispânia, é evidente que os promotores da reforma
eclesiástica tinham o maior interesse em fazê-la adoptar
ali. Apesar de nada sabermos dos pormenores da luta que
certamente se travou em torno desta questão, é muito
provável que a nomeação de Raimundo como senhor do antigo
reino de Garcia estivesse intimamente relacionada com o
problema da integração de Compostela no rito romano e na
reforma eclesiástica.
Se as questões eram muito acesas em Galiza e Portugal,
devido a violentas oposições do clero e dos leigos contra
as formas de culto e de organização eclesiástica promovidas
pelos clérigos e monges estrangeiros, não admira que o
partido reformista da corte, sob proposta e pressão dos
monges de Cluny, estivesse interessado na nomeação de um
cavaleiro francês para herdar os Estados do recém-falecido
Garcia, embora sem o título de rei, o que dava a garantia
de se submeter à autoridade de Afonso VI.
A situação militar na fronteira meridional destes
Estados era também de molde a inspirar uma solução especial
para a sua orientação política. Confinavam com o reino de
Badajoz, governado então pelo velho Al Mutawakkil Abu-Hafs
Umar, que pagava «parias» a Afonso VI e que devia viver
aterrorizado pela perspectiva de ver os Almorávidas
apoderarem-se do seu trono. Pelos anos de 1090-1091, Al
Mutawakkil tentava ainda praticar uma política ambígua para
evitar agressões tanto do lado leonês como do lado
marroquino. Com efeito, Yusuf ben Tasufin, o emir de
Marrocos, inflectindo a política anterior, começava a
apoderar-se sucessivamente dos principais reinos taifas de
al Andaluz. Em 1090 atravessou o estreito, a pedido de
vários chefes religiosos muçulmanos de al Andaluz, atraídos
pelo ideal de rigor que os Almorávidas tinham imposto no
Norte de África e que eles queriam ver implantado também na
Hispânia. Pretendiam destituir os soberanos das taifas, que
consideravam ímpios e corruptos. Yusuf apoderou-se
sucessivamente de Granada e de Málaga, destronando os seus
respectivos soberanos, mas teve de conquistar pelas armas o
reino de Sevilha, que lhe resistiu durante alguns meses com
o auxílio de Afonso VI. Estes acontecimentos passavam-se
justamente pelos anos em que Raimundo tomava posse da
Galiza e de Portugal.
Perante o crescente poder de Yusuf ben Tasufin, o rei
de Badajoz procurou aliar-se à política almorávida.
Forneceu-lhe tropas, que o ajudaram a conquistar Sevilha,
conseguindo, assim, conservar a independência. Mas esta
solução acabou por tornar o reino de Badajoz um dos poucos
que escapavam à reunificação política de ai Andaluz, o que
criava uma situação particular na fronteira ocidental. Era
conveniente, portanto, colocar naquela zona uma autoridade
capaz de intervir tão depressa quanto possível no caso de
os Almorávidas resolverem atacar Badajoz e de ser
necessário negociar as condições do auxílio militar a
prestar ao velho Al Mutawakkil.

Raimundo e a política religiosa no Ocidente

Admitindo, portanto, que Raimundo tivesse sido nomeado


como senhor da Galiza e de Portugal para sustentar os
projectos religiosos propugnados por Roma e por Cluny,
quanto à política interna, e vigiar directamente as
fronteiras com o reino de Badajoz, quanto à política
externa, pode perguntar-se como é que a sua nomeação teria
sido recebida pelos súbditos que lhe foram confiados. Do
que acabámos de dizer, deve depreender-se que se lhe teria
deparado uma importante oposição. Temos agora de tentar
defini-la melhor e verificar com que apoios contava antes
de vermos como desempenhou as suas funções até ser
substituído em Portugal pelo conde D. Henrique.
Ao borgonhês deparou-se, como vimos, uma oposição
vigorosa em Coimbra e provavelmente algumas resistências
dispersas a norte do Douro. Sabemos, porém, que tanto a sul
como a norte deste rio havia, desde antes de 1090, núcleos

30
de propaganda franco-romana. Os indícios concretos deste
facto encontram-se na adopção da regra beneditina por parte
de alguns mosteiros, o que significava que tinham já
abandonado os antigos usos monásticos da Hispânia para
adoptarem os propostos pelos monges cluniacenses. Vão no
mesmo sentido certos vestígios da adopção da liturgia
romana.
Um dos seus promotores foi o bispo Crescónio de
Coimbra, nomeado por Afonso VI e pelo arcebispo de Toledo,
com a presença do legado papal cardeal Ricardo, no Concílio
de Husillos, perto de Palença, em Abril ou Maio de 1088,
mas, por oposição do alvazil Sisnando, não tomou posse da
diocese, tendo de esperar pela morte deste. Depois desta,
em 13 de Abril de 1092, segundo o breve relato que foi
conservado até aos nossos dias no Livro preto, realizou-se
em Coimbra uma reunião do clero — que aceitou, finalmente,
a sua nomeação —, para poder declarar que fora eleito
canonicamente. Este breve texto não diz que a razão da
demora na aceitação de Crescónio se deveu à oposição de
Sisnando e do clero de Coimbra ao rito romano, que o bispo
estava encarregado de introduzir na diocese. Este facto,
porém, é indubitável.
Crescónio desenvolveu uma intensa actividade junto de
várias comunidades no sentido de propagar a reforma
eclesiástica e litúrgica. Interveio numa complicada questão
entre os mosteiros de Arouca e de Pendorada, um a sul,
outro a norte do Douro, acerca da herança de um rico nobre,
chamado Gavino Frollaz; visitou os mosteiros de Santo
Tirso, Pendorada, Leça, Arouca e Vacariça, dos mais
importantes de todo o Condado Portucalense; recebeu em
Coimbra a visita de vários monges destes e de outros
mosteiros; procedeu à consagração da igreja abacial de
Pendorada no ano de 1092; conseguiu do conde D. Raimundo o
oferecimento do patronato de um dos mais ricos mosteiros da
diocese de Coimbra, o da Vacariça, no ano de 1094.
Estes actos são bem significativos do acordo existente
entre o antigo abade de São Bartolomeu de Tui, o conde D.
Raimundo e os principais protagonistas da política
pró-romana. Permitem também conhecer os principais pontos
de apoio em que o bispo se firmava, averiguar a maneira
como venceu eventuais resistências de outros mosteiros mais
tradicionalistas, como deve ter sido o da Vacariça, e o
apoio que recebeu de Bernardo de Toledo e de Dalmácio de
Compostela.
Note-se ainda que a acção de Crescónio não se limitou à
sua própria diocese: Santo Tirso, Pendorada e Leça estavam
situados no bispado do Porto. Mas a Sé do Porto não tinha
prelado desde o falecimento de Sesnando, por volta de 1075,
e fora governada entre essa data e 1091 por Pedro, bispo de
Braga. Braga continuava sem sucessor legítimo, como vimos
anteriormente. Crescónio era, portanto, o único prelado
reconhecido oficialmente a sul do rio Minho. Ora nesta
época, e segundo os costumes tradicionais em vigor, os
bispos eram eleitos pelo clero da diocese, ou pelo menos
pelos cónegos da catedral, e só depois confirmados pelo
metropolita. Assim se fez em Braga para Rodrigo Bermudes,
como vimos já. O mesmo deve ter acontecido no Porto. A
demora em sagrar o eleito de Braga deveu-se, decerto, ao
propósito de facilitar a intervenção do primaz de Toledo,
que assim substituía o metropolita da Galécia, tanto mais
que não estava resolvido o problema do exercício deste
direito por parte de Braga, em vez de Lugo ou de
Compostela. A vacância do Porto sugere também,
provavelmente, que o candidato aí proposto pelo clero local
não agradava aos bispos reformadores. Temos, portanto, de
admitir que as autoridades religiosas e civis não queriam
reconhecer bispos para estas dioceses enquanto não tivessem
a certeza de serem escolhidos executantes fiéis e
empreendedores da reforma franco-romana.
Estes factos têm uma relação directa com a possível
atitude da aristocracia leiga. Quanto à sua atitude perante
Raimundo, só podemos fazer algumas deduções.

Raimundo e a aristocracia portucalense

A questão tem de se enquadrar na evolução global da


aristocracia portucalense desde o reinado de Fernando, o
Magno. Como vimos no volume anterior, tinham-se formado em
Entre Douro e Minho várias famílias de infanções que se
apropriaram de poderes senhoriais e que, por isso mesmo, se
opuseram aos antigos condes de Portucale e de Coimbra.
A sua rivalidade com os condes de Portucale tinha-os
levado, durante o reinado de Fernando, o Magno, e de seu
filho Garcia, a apoiarem a dinastia navarra, ao contrário
dos condes, que, sem dúvida, a hostilizaram. Os poderes
locais dos antigos infanções, apesar de provavelmente
usurpados, como poderes públicos, foram explícita ou
implicitamente reconhecidos pelo primeiro daqueles reis.

31
Quanto ao rei Garcia, uma vez obtido o título de rei de
Portugal e Galiza, contou com a especial fidelidade pelo
menos da família de Ribadouro, mas também, decerto, de
outras do mesmo círculo.
Não há, porém, qualquer indício de uma resistência
portuguesa contra Sancho II e Afonso VI, que, como vimos,
mantiveram Garcia preso até 1090. É provável que, havendo
ele desaparecido da cena política, os seus apoiantes
tivessem transferido para Afonso VI a atitude anterior.
Assim o permitem supor as expressões com que os notários
dos mosteiros protegidos pelas mesmas famílias designam o
rei de Leão. Assim fazem vários documentos dos mosteiros de
Arouca e de Pendorada, cujas fórmulas contrastam com as que
se verificam noutras chancelarias eclesiásticas, que
raramente mencionam o nome de Afonso VI.
Aproxima-se destes indícios a expressão com que os
Annales portucalenses veteres, provavelmente redigidos em
Santo Tirso antes de 1085, mencionam a ascensão do mesmo
rei. O seu redactor diz, com efeito, numa fórmula que supõe
sentimentos de admiração e respeito:
«Depois de sua morte [de Sancho II de Castela], teve a
soberania da Hispânia seu irmão, o rei dom Afonso, que
durante muitos anos chefiou numerosas expedições contra os
sarracenos, inimigos da invocação cristã: a uns
combatia-os, de outros exigia tributos.»

Sabemos também que Afonso VI fez pelo menos uma doação


a Ermígio Moniz, da família de Ribadouro, e que tinha um
representante especial na região de Braga, Paio Guterres, o
principal membro da família patronal do Mosteiro de Tibães.
Quer isto dizer que o rei de Leão contava com alguns
fiéis partidários no condado de Portucale. Pode, portanto,
admitir-se que estas mesmas famílias tenham acatado também
com o devido respeito a autoridade de Raimundo de Borgonha.
Como, por outro lado, sabemos que os mosteiros de Santo
Tirso, de Pendorada, de Arouca e de São Romão de Neiva
receberam empenhadamente, como vimos, os novos costumes
monásticos e litúrgicos, podemos deduzir daí que os
respectivos patronos, entre os quais se distinguiam os
senhores da Maia e de Ribadouro, tivessem também apoiado a
política eclesiástica do conde.

Raimundo perante a ofensiva almorávida

Quanto à política externa, o governo de Raimundo


reduziu-se praticamente à tomada de posse das cidades de
Lisboa e Santarém, que lhe foram entregues pelo rei de
Badajoz em 1093, e depois a um débil esforço por manter a
posse de Santarém, já que Lisboa foi logo de seguida
conquistada pelos Almorávidas. Vejamos estes acontecimentos
mais de perto.
Como referimos anteriormente, Al Mutawakkil, rei de
Badajoz, hesitava, em 1090-1091, entre a submissão aos
Almorávidas e a colaboração com Afonso VI. Em 1093, acabou
por se decidir pela protecção leonesa e para melhor a
conseguir entregou a Afonso VI as cidades de Santarém e
Lisboa e o Castelo de Sintra. O rei tomou deles posse entre
os dias 30 de Abril e 8 de Maio do mesmo ano. Para exaltar
a sua memória, o autor dos Annales portucalenses veteres
transforma estes acontecimentos numa conquista militar.
Esta decisão deu aos Almorávidas um pretexto para se
apoderarem de mais uma taifa até aí independente. Sir ben
Abu Bakr, importante auxiliar de Yusuf, marchou sobre
Badajoz, prendeu o rei e seu filho e mandou-os matar. Foi
talvez nesta mesma ocasião, ou pouco depois, que as tropas
almorávidas se dirigiram a Lisboa e se apoderaram da
cidade, sem que o conde Raimundo ou Afonso VI tenham
conseguido resistir-lhes.
Raimundo acorreu a Lisboa, para defender a cidade ou
tentar recuperá-la, talvez a seguir à sua passagem por
Coimbra, em Novembro de 1094, na ocasião em que ofereceu o
Mosteiro da Vacariça ao bispo Crescónio, como já tivemos
ocasião de referir. Nessa altura, era seu chanceler Diego
Gelmírez, que redigiu o diploma. Ora sabemos, por uma
passagem da Historia compostelana, que, quando era
chanceler do conde, Gelmírez o acompanhou pessoalmente numa
expedição militar até perto de Lisboa e correu perigo de
morte, devido à derrota que os cristãos aí sofreram.
Foi provavelmente a derrota sofrida por Raimundo que um
ano depois trouxe o próprio rei Afonso VI à fronteira
meridional do condado. Em Novembro de 1095 estava em
Santarém e aí concedeu foral aos cavaleiros da cidade, sem
dúvida para os encorajar a defenderam-na vigorosamente,

32
visto que estava tão exposta aos ataques dos Almorávidas,
lançados agora a partir de Lisboa. Além disso, nomeou
governador militar da fronteira Soeiro Mendes da Maia, o
mais poderoso dos senhores portucalenses. O perigo da perda
de Santarém foi afastado por certo tempo, mas a derrota de
Raimundo mostrou que não era um chefe militar à altura de
tão grave ameaça.

O conde D. Hernrique

A historiografia tradicional portuguesa considera a


incapacidade militar de Raimundo como o motivo que
aconselhou a sua substituição ou reforço na zona portuguesa
por seu parente Henrique. Os investigadores ainda há poucos
anos discutiam vivamente se durante algum tempo Henrique
governou o condado sob a autoridade de Raimundo, apenas na
zona de Coimbra, ou se recebeu desde o princípio o senhorio
dos antigos condados de Coimbra e de Portucale. Este
assunto prende-se com a crítica aos primeiros documentos
peninsulares que o mencionam, e se verificou estarem,
provavelmente, mal datados. Admitindo as minuciosas
argumentações de Rui de Azevedo, de Paulo Merêa, de Avelino
de J. da Costa e de Torquato de Sousa Soares, parece
concluir-se que D. Raimundo deve ter mantido sozinho até
1096 a sua responsabilidade sobre os territórios que tinha
recebido de Afonso VI e que só depois desta data foi
entregue a Henrique o governo independente dos territórios
entre o Minho e o Tejo. Embora, pela minha parte, me
incline a preferir esta opinião, devo também mencionar a
tese de A. de Almeida Fernandes, que continua a sustentar a
opinião de que se deve admitir uma vinda mais precoce de
Henrique para a zona de Coimbra e a sua autoridade como
subordinado de Raimundo, até lhe ser entregue o governo do
Condado Portucalense.
Seja como for, é muito provável que a razão da entrega
de funções públicas a Henrique sobre a fronteira do Tejo
resulte da iminência de uma invasão almorávida nesta zona.
Raimundo permaneceria no Norte, como senhor da Galiza, onde
os problemas da política interna continuavam a ser
complicados, como se pode deduzir do facto de o bispo
Dalmácio ter morrido no princípio do ano de 1096 e de a Sé
de Compostela ter ficado vaga, como já vimos, até 1101.
O relacionamento da nomeação de Henrique com a
gravidade da situação militar não resulta apenas de uma
suposição lógica em face dos acontecimentos. É confirmado
pela Crónica de Sahagún, um texto tardio que utilizou
seguramente escritos anteriores, hoje perdidos, mas bem
informados sobre os acontecimentos. Diz ela que o conde
borgonhês «nobremente domou os mouros, guerreando-os, pelo
que o referido rei [Afonso VI] lhe deu, com sua filha em
casamento, Coimbra e a província de Portugal, que são
fronteiras de mouros, nas quais, com o exercício das armas,
engrandeceu nobremente a sua categoria de cavaleiro».
Com base neste testemunho, admitem os autores modernos
que Henrique vivesse já na Península e se tivesse já
distinguido em combate, dando prova do seu valor militar,
quando foi nomeado conde de Portucale e de Coimbra. Só
assim se compreende, com efeito, que lhe fosse confiada tão
grave responsabilidade, face ao perigo da ofensiva
almorávida. Na verdade, dadas as circunstâncias, não basta
explicar a concessão do Condado Portucalense pelo facto de
Henrique ser sobrinho da rainha D. Constança, que nessa
altura já tinha morrido, por pertencer à família dos duques
de Borgonha, mais poderosa e hierarquicamente superior a de
Raimundo, e em virtude da protecção cluniacense de que
beneficiava. De facto, o futuro havia de mostrar que
Henrique era um excelente guerreiro. A sua actuação militar
foi quase sempre decisiva nos conflitos em que se viu
envolvido, até à data da sua morte.
A ausência de referências documentais seguras antes de
1096 impede, porém, de conhecer ao certo os antecedentes da
concessão e do casamento de Henrique. Seria bastante mais
novo do que Raimundo e viria no seu séquito com outros
cavaleiros franceses para se exercitar na carreira das
armas? Ter-se-ia distinguido na corte de Afonso VI? Onde
teria combatido com tanto valor para chamar a atenção do
rei e merecer a sua confiança? Quem tomou a iniciativa de o
promover: Afonso VI ou Raimundo? Eis algumas perguntas a
que provavelmente ninguém poderá jamais dar resposta
segura.
Antes de narrarmos os principais acontecimentos que se
deram durante o seu governo, tentemos reflectir sobre o
significado de dois factos de interpretação controversa: a
natureza jurídica da concessão do Condado Portucalense e o
seu desmembramento da Galiza, com a qual tinha constituído
um todo pelo menos desde 1065:

33
A concessão do Condado Portucalense

O primeiro deste factos tem sido longamente debatido


pelos historiadores do direito. Um dos aspectos da questão
é o de saber se conferia a Henrique um direito hereditário
em virtude de se tratar de um dote pelo seu casamento com a
infanta D. Teresa. Esta interpretação, outrora contestada
por Herculano, baseia-se em afirmações expressas de várias
fontes suficientemente próximas dos acontecimentos e
suficientemente fidedignas para terem levado ao consenso
dos autores que deles têm tratado recentemente.
Outro aspecto, porém, suscita ainda várias dúvidas e
controvérsias: o carácter feudal da concessão. Implicaria
ela a vassalagem do conde a Afonso VI, nos termos habituais
de acordos semelhantes? Por outras palavras, o condado era
um feudo, um senhorio, um apanágio? Esta questão reveste um
carácter técnico, mas implica soluções diferentes quanto à
autoridade do conde sobre os territórios recebidos: podia
ser uma autoridade pessoal e transmissível ou delegada e
precária.
Deve observar-se, antes de mais, que o problema parece
estar indissoluvelmente ligado, ao menos na mente dos
especialistas que o têm tratado em Portugal, à questão de
saber se no Ocidente da Península teria ou não havido
feudalismo. Assim, enquanto um autor belga, Charles
Verlinden, não hesita em considerar a concessão como
tipicamente feudal, Herculano, Paulo Merêa e Torquato de
Sousa Soares assimilam-no à concessão de um senhorio,
precário e amovível para o primeiro e hereditário para os
outros dois. Como vimos, o carácter amovível não pode mais
sustentar-se, em face dos diversos documentos que depois
vieram a encontrar-se e que mostram com suficiente
segurança a hereditariedade.
Nenhum dos autores portugueses, no entanto, parece ter
assimilado suficientemente, a meu ver, as obras dos
historiadores espanhóis que recentemente têm estudado as
instituições feudo-vassálicas em Leão e Castela, ou seja,
Cláudio Sánchez Albornoz, Luís Garcia de Valdeavellano e
sobretudo Hilda Grassotti. Esta última, discípula e
fervorosa defensora das teorias de Sánchez Albornoz,
concluiu há poucos anos que se tratava, na verdade, de uma
concessão beneficiai, portanto feudal, pela qual o conde
prestou, de facto, homenagem a Afonso VI. Na sua opinião,
trata-se de um caso relativamente raro em Leão e Castela,
dado o seu carácter hereditário, o que o aproxima, tal como
pensava Verlinden, das concessões feudais de além-Pirenéus.
De resto, segundo têm demonstrado estes autores, o facto de
se tratar de um senhorio e de a concessão ser precária não
lhe retiraria o carácter feudal e, portanto, a obrigação de
vassalagem, como acontecia, afinal, com qualquer tenência.
Seja como for, quer se veja este facto à luz dos
hábitos correntes na Península Ibérica quer se assimile ao
que era costume na França, tem de se insistir no seu
carácter feudal e excepcional. Não se pode esquecer que o
conde era borgonhês e que deveria tender a agir segundo os
usos e concepções próprios da sua terra. Procederá,
portanto, como um verdadeiro vassalo, exercendo um direito
que sabe seria transmitido aos seus descendentes e,
portanto, com grande independência, apesar da vassalagem.
Mesmo assim, como diria no século xni D. Rodrigo Ximénez de
Toledo, o rei de Leão nunca deixou de exigir o cumprimento
das obrigações decorrentes da homenagem, ou seja, a relação
jurídica da fidelidade devida pelo conde ao rei de Leão.
Por outro lado, deve acentuar-se que Henrique prestava
contas a Afonso VI e não a Raimundo, ou seja, que o
território recebido foi verdadeiramente desmembrado daquele
com que anteriormente formava um todo e que a sua
autoridade tinha um grau hierárquico paralelo à dele. Não
se esqueça, por fim, que nesta época, isto é, antes da
introdução do direito romano, o problema da autoridade
pública de nível inferior ao poder régio é mais uma questão
de facto do que de direito. As situações são extremamente
variadas e, por isso, em termos históricos, a classificação
legal do acontecimento é sempre discutível.

Portugal e a Galiza

Vejamos agora o segundo problema que considerámos, a


saber, qual o significado de os dois antigos condados de
Portucale e de Coimbra terem passado a constituir um todo
independente da Galiza, à qual estavam antes associados.
Sem tentarmos esgotar esta questão, que se liga com a das
raízes profundas da delimitação de um território, ou seja,
com o que nele poderia já postular ou anunciar a sua futura
independência, podemos, no entanto, fazer notar que a razão
imediata da concessão deve estar relacionada com as funções
principalmente militares que o rei Afonso VI, decerto,
esperava ver desempenhadas pelo conde Henrique. Este

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exercia, portanto, uma autoridade de carácter singular e,
por isso mesmo, com poderes excepcionais.
Ora, a evolução dos acontecimentos tinha conferido aos
senhores de Entre Douro e Minho, como era de esperar, uma
importância fundamental na defesa da fronteira. Se a cidade
de Coimbra era tradicionalmente considerada centro de um
território independente de Portucale, se o Douro era uma
fronteira que outrora dividia duas províncias diferentes e
cuja função separadora não se esquecia facilmente, a
verdade é que Sesnando tinha casado com a filha do último
conde de Portucale, que os infanções portucalenses
promovidos a «tenentes» de «terras» haviam empreendido
acções militares por conta própria e conquistado terras a
sul do Douro, que o governador de Santarém e da fronteira
desde 1093 era Soeiro Mendes, senhor da Maia, que muitos
documentos anteriores ao fim do século XI incluíam já no
território «portucalense» uma grande quantidade de lugares
situados a sul do Douro, etc. A interdependência dos dois
condados era, portanto, grande em vários domínios.
Mais ainda: a eficaz defesa de Coimbra não podia
prescindir da colaboração dos senhores portucalenses. Sem
eles, contando apenas com os cavaleiros de Coimbra e com as
forças existentes a sul do Douro, o conde não teria
recursos humanos suficientes para defender a fronteira.
Pelo contrário, a Galiza, para lá do rio Minho, vivia os
seus problemas específicos, de velho território cristão,
que dificilmente seria invadido e que não se podia empenhar
na guerra externa num grau comparável ao de Portucale. Não
bastava, portanto, nomear Henrique conde de Coimbra. Assim,
a associação de Portucale e Coimbra sob um mesmo e único
governo e a sua separação da Galiza resultavam de uma
situação conjuntural ligada a determinada fase da
Reconquista. Contribuiu, no entanto, para reforçar as
afinidades e a interdependência de um e de outro e para
diluir a tradicional função separadora do rio Douro, velha
fronteira da Lusitânia com a Galécia.

Henrique e a luta contra os Almorávidas

Tendo procurado medir, em termos gerais, o significado


político da criação do Condado Portucalense, quando para
ele foi nomeado o conde D. Henrique de Borgonha, vejamos
agora os principais acontecimentos que se deram durante o
seu governo. Para se compreender o encadeamento dos factos,
convém dividir a narrativa em três partes. As duas
primeiras serão consagradas à política externa, ou seja, à
guerra com os Mouros, e à política interna, sobretudo à
administração do território. Trataremos, por fim, das
relações com as autoridades de quem o conde dependia, o
soberano de Leão e os seus sucessores; a vassalagem a que
estava obrigado não permite considerar esta matéria
propriamente como política externa.
O papel de Henrique na defesa da fronteira foi um dos
mais importantes do seu governo. Tinha sido esse o
principal ponto da missão que Afonso VI lhe confiara. De
facto, tenha ou não ido pessoalmente a Santarém, a cidade
resistiu a prováveis investidas almorávidas, apesar de
estar situada tão perto de Lisboa, onde, sem dúvida, se
concentraram forças muito poderosas e agressivas. Além
disso, Henrique interveio também, fora do condado, em
recontros especialmente perigosos, decerto por ter sido
chamado a prestar os seus deveres militares de vassalo. Por
isso esteve na Batalha de Malagón, em Setembro de 1100,
juntamente com o conde D. Raimundo. Segundo os Annales
portucalenses vetares, teria também tomado o Castelo de
Sintra no mês de Julho de 1109, pouco depois da morte do
rei Afonso VI. Esta notícia, no entanto, suscita as maiores
dúvidas: deve estar mal datada ou ter sido mal transcrita.
O contexto dela, que fala da «rebeldia» dos Sarracenos,
encorajados pela morte de Afonso VI, levaria a pensar que
deveriam ser eles a tomá-la ao conde e não o contrário.
De facto, o mesmo texto data também mal a notícia da
Batalha de Vatalandi, perto de Santarém, na qual morreu
Soeiro Fromarigues, senhor de Grijó, como mostrou há anos
Henrique Barrilaro Ruas. Este acontecimento deu-se em 1103.
Resulta, sem dúvida, das frequentes incursões dos mouros de
Lisboa em território cristão. Dada a sua força militar, não
é muito verosímil que tivessem deixado de conquistar
Sintra, depois de se terem apoderado de Lisboa. Também é
pouco provável que o conde D. Henrique conseguisse tomar
este inexpugnável castelo, tão perto de Lisboa, no momento
em que a investida almorávida se tornou mais intensa. Por
essa época, com efeito, o emir Ali ben Yusuf, que reinava
apenas havia dois anos, atravessou o estreito e pôs cerco a

35
Toledo durante vários meses, tendo a cidade resistido com
grande dificuldade. No ano anterior, em Maio de 1108, os
Almorávidas tinham matado o próprio infante D. Sancho,
ainda criança, na Batalha de Uclés, que constituiu outra
grande derrota de Afonso VI. Enfim, em 25 ou 26 de Maio de
1111, os exércitos comandados por Sir ben Abu Bakr tomavam
a cidade de Santarém, sem que o conde lhe pudesse valer.
Apesar destes reveses, não se pode pôr em dúvida o
valor militar de Henrique, como veremos em seguida, ao
comentarmos a sua actuação durante a crise que se seguiu à
morte de Afonso VI. O pacto que firmou com Raimundo, em
data desconhecida, e que também comentaremos, atribui-lhe
justamente a enorme responsabilidade pela defesa de Toledo
e dos seus tesouros, ou seja, pela cidade que os
Almorávidas mais desejavam recuperar. Fontes mais tardias,
como a já citada Crónica de Sahagún, também referem o vigor
da sua acção guerreira.
Henrique, porém, não podia fazer milagres: ocupado até
ao Verão de 1110 nas lutas entre D. Urraca e o rei de
Aragão, e ausente desde esta data até à Primavera de 1111,
forçoso lhe foi descurar a defesa da fronteira meridional e
deixar, portanto, que os Sarracenos recuperassem as mais
importantes praças, que a partir daí lhes asseguraram o
domínio desde o vale do Tejo até às montanhas a sul do
Mondego. A morte do conde, em Abril de 1112, surpreendeu-o
ainda na retaguarda e precedeu de poucos anos uma das mais
graves investidas dos Almorávidas sobre Coimbra, como
veremos a propósito do governo da condessa D. Teresa.
Administração interna do Condado Portucalense

A maneira como o conde D. Henrique assumiu as suas


responsabilidades no Condado Portucalense foi extremamente
vigorosa. Ainda no mesmo ano de 1096, um ou dois meses
depois de ter sido nomeado, deu um importante foral à
cidade de Guimarães. Era a residência habitual dos antigos
condes portucalenses, que ele provavelmente escolheu para
sua morada principal, pois deve ter recebido como
património pessoal pelo menos uma parte dos antigos
domínios do conde Nuno Mendes, confiscados pelos reis de
Leão. No mesmo ano, deu também foral ao burgo de Constantim
de Panoias, que devia, por essa época, constituir um centro
comercial de importância nas ligações de Entre Douro e
Minho com a zona transmontana. Ora, estes dois diplomas
manifestam desde logo uma política «moderna», orientada
para a valorização de centros não senhoriais, dos quais
dependia a prosperidade económica de regiões mais vastas.
D. Henrique pretendia também, eventualmente, controlar por
esse meio dois centros de transacções mercantis de certa
envergadura.
Nem por isso deixou de favorecer igualmente os
principais membros da aristocracia portucalense,
procurando, assim, assegurar a sua fidelidade e
colaboração. É o que significa o terceiro diploma que dele
se conhece, a importante carta de couto de um vasto
território em torno do Mosteiro de Santo Tirso em favor de
Soeiro Mendes, chefe da linhagem da Maia. O próprio Soeiro
Mendes havia sido, como vimos, o responsável pessoal pela
defesa de Santarém. Foi também o mais categorizado auxiliar
do conde e durante as suas prolongadas ausências deve ter
sido, até morrer, provavelmente pouco antes de 1108, a
autoridade máxima do condado e o protector da rainha D.
Teresa. Torquato de Sousa Soares pensa, decerto com razão,
que D. Teresa era ainda menor quando casou com o conde e
que foi criada pela mulher de Soeiro Mendes da Maia. Este
facto seria compreensível não só em virtude da categoria e
funções desempenhadas por ele, mas também porque, segundo
uma tradição conservada pelos livros de linhagens dos
séculos XIII e XIV, Gontrode Moniz, mulher de Soeiro
Mendes, era irmã de Ximena Moniz, mãe de D. Teresa. Se
assim era, não admira que a tia materna tivesse criado a
sobrinha e Soeiro Mendes fosse o seu aio, mesmo depois de
casada, até ela atingir a maioridade.
A carta de couto do Mosteiro de Santo Tirso em favor de
Soeiro Mendes tem igualmente a maior relevância, porque
constitui o primeiro diploma que consagra oficialmente a
imunidade de um território em favor de uma instituição
eclesiástica, depois dos coutos concedidos em benefício do
Mosteiro de Guimarães no princípio do século XI (aliás de
autenticidade duvidosa) e dos domínios portugueses da
Catedral de Santiago de Compostela. Trata-se, portanto, de
um sancionamento ao próprio sistema do regime senhorial, ou
seja, do exercício da autoridade pública sobre um
território subtraído à administração do representante do
rei.

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A Polílitica eclesástica de Henrique

A magnífica concessão em benefício de Soeiro Mendes tem


ainda um significado menos aparentica rente. Se, por um
lado, favorece o protector de um mosteiro que, tendo
adoptado precocemente os usos cluniacenses, devia ser
considerado um pólo de difusão da liturgia romana,
dirige-se também a um magnate que pouco tempo depois
haveria de se opor a algumas medidas eclesiásticas tomadas
por S. Geraldo, de quem falaremos em breve. De facto, este
veio a pretender escolher candidatos a ofícios clericais
sem contar para nada com os patronos leigos das respectivas
igrejas, demonstrando assim, de uma maneira prática, a
superioridade e independência do poder espiritual, em
conformidade com um dos princípios fundamentais da chamada
«reforma gregoriana». Esta forma de proceder suscitou um
grave conflito com Soeiro Mendes, a propósito de uma
nomeação deste género. Bernardo, biógrafo e discípulo do
santo, afirmaria, alguns anos depois, que o senhor da Maia
não acatou as suas disposições a este respeito e por isso
foi severamente castigado por Deus, morrendo fora da
pátria, ainda antes do arcebispo. Na mesma biografia
conta-se outro conflito entre Geraldo e o patrono do
Mosteiro de Rendufe, Egas Pais, que não queria acatar as
suas instruções sobre os casamentos incestuosos, ou seja,
entre parentes próximos. O episódio em que a oposição
atinge o ponto máximo passa-se perante o conde, que assume,
segundo parece, uma atitude contemporizadora.
O conde D. Henrique, cuja protecção à política
religiosa franco-romana não se pode pôr em dúvida, teve,
portanto, algumas vezes, de servir de elemento moderador em
face de atitudes demasiado rigoristas por parte dos
prelados mais zelosos, decerto para evitar o agravamento
dos conflitos. De facto, manteve a confiança que tinha
concedido a Soeiro Mendes. Sabemos, por exemplo, que o
acompanhou ao Mosteiro de Sahagún, em Castela, em Julho de
1100, e que ficou a tutelar D. Teresa e a substituir o
conde durante uma longa ausência deste, em 1101-1103.
Ao contrário, portanto, de Raimundo, que durante o seu
governo de Portugal e Coimbra não parece ter procurado
favorecer os barões portucalenses, Henrique praticou actos
muito claros de captação da sua fidelidade, mesmo com o
risco de desagradar aos prelados promotores da reforma
eclesiástica.
Em 1099 (e não em 1096, como até há pouco se pensava),
não sabemos se por iniciativa do conde D. Henrique ou de
Bernardo de Sédirac, então legado permanente da Santa Sé em
toda a Hispânia, tomou-se outra importante medida para a
política eclesiástica. Consistiu em designar um prelado da
inteira confiança de Bernardo para ocupar a sé vacante de
Braga. O escolhido foi o seu colaborador em Toledo, o monge
Geraldo, que tinha trazido da abadia cluniacense de Molssac
para o auxiliar no governo da sua diocese. Geraldo foi
sagrado pelo primaz de Toledo em Janeiro de 1099 na abadia
de Sahagún, um local que não deixava dúvidas acerca do
significado do acto como representativo da sua importância
no contexto da reforma eclesiástica e litúrgica.
Este facto, que se deu sendo Bernardo legado permanente
de Roma, depois da inesperada morte de Dalmácio de
Compostela, e poucos anos depois de ter obtido para a sua
diocese a transferência definitiva dos direitos episcopais
da Sé de Iria e a isenção para com qualquer outra metrópole
eclesiástica, parece reflectir uma importante alteração na
política de imposição da reforma. Anteriormente, a escolha
de Dalmácio para Compostela, ao mesmo tempo que se mantinha
Braga sem sucessor, podia talvez justificar-se pela
intenção de fazer de Compostela a metrópole da Galécia, em
substituição de Lugo (cujo bispo usava o título de
metropolita, por suceder ao que tinha abandonado Braga no
século vm, sem que Pedro tivesse conseguido recuperá-lo).
Em 1098-1099, porém, a designação de Geraldo para Braga, ao
mesmo tempo que se deixava Compostela sem bispo — pois só o
teve em 1101 —, e a solenidade que revestiu este acto,
parece significar que Bernardo de Sédirac preferiu deslocar
para Braga o centro promotor da reforma eclesiástica.
Advertido do perigo que uma excessiva promoção de
Compostela pudesse vir a trazer ao seu papel de primaz de
toda a Hispânia, decidiu, talvez, não pôr mais obstáculos à
restauração da metrópole bracarense, prejudicando, assim,
eventuais propósitos de virem a conferir-se direitos
metropolíticos a Santiago.
Fossem, porém, quais fossem as intenções de alta
política que presidiram à designação de Geraldo, o certo é
que ele desenvolveu uma intensa actividade de reforma
eclesiástica, moral e administrativa, conseguindo assim,
por meio de intervenções directas durante as suas
frequentes visitas pastorais, eliminar a maioria dos focos
de resistência anti-romana da sua enorme diocese.

37
Além disso, empenhou-se activamente na defesa dos seus
direitos eclesiásticos, eventualmente com a ajuda de
Bernardo de Toledo. Para isso, foi duas vezes a Roma. Na
Primavera de 1100, conseguiu do papa Pascoal II o
reconhecimento da dignidade metropolítica para a sua sé,
embora nessa altura lhe não fossem designadas as dioceses
sufragâneas ou dependentes. Três anos depois, no entanto,
estava novamente em Roma, para conseguir do mesmo papa a
enumeração das dioceses sufragâneas, que foram Astorga,
Mondonedo, Orense e Tui, na Galiza, e Porto, Coimbra,
Lamego e Viseu (estas duas ainda sem prelados), em
Portugal. É que, entretanto, conseguiram-se superar em
Compostela as dificuldades que se opunham à designação de
um bispo. Em 21 de Abril de 1101, foi sagrado Diego
Gelmírez, o chanceler do conde Raimundo. Deve ter começado
imediatamente a tentar obter também um estatuto de
arquidiocese; a enumeração das sufragâneas galegas de Braga
colocava um importante obstáculo a qualquer pretensão de
Compostela.
A atribuição dessas dioceses à autoridade eclesiástica
do arcebispo de Braga constituía, portanto, uma importante
vitória perante o crescente «imperialismo» da catedral de
Compostela, que se tornou, de facto, verdadeiramente
ameaçadora, não só para Braga, mas também para Toledo,
desde a nomeação do empreendedor e pouco escrupuloso
arcebispo Diego Gelmírez. O seu caminho fora já preparado,
como vimos, pela obtenção de um privilégio de isenção, em
1095. Assim se explica que, em 1103, a diocese de
Compostela não figurasse entre as sufragâneas de Braga,
apesar de estar situada na antiga província da Galécia.
Diego Gelmírez iniciou então uma luta na qual utilizou os
processos mais surpreendentes para as nossas concepções
actuais de justiça e de moral. Por exemplo, em 1102, o
roubo das relíquias dos santos mais venerados em Braga, com
o fim de eliminar o centro de peregrinação que o bispo
Pedro aí pretendera criar; e, em 1110, uma diabólica
intriga que levou à destruição, pelos maiorinos da condessa
D. Teresa, da parte já construída da catedral de Braga,
concebida pelo mesmo bispo como uma grandiosa igreja de
peregrinação. Agindo simultaneamente em Roma, o arcebispo
compostelano acabaria por conseguir obter, em 1120, os
direitos metropolíticos de Mérida, ainda situada em
território muçulmano. Roma confiava-lhe, assim, autoridade
sobre as dioceses da antiga Lusitânia, incluindo, portanto,
as de Coimbra, Viseu e Lamego, que em 1103 tinham sido
atribuídas a Braga. Este facto levou a intermináveis
questões entre Braga e Compostela, que haviam de se
prolongar durante quase toda a Idade Média, e que levariam
os prelados das duas metrópoles a fazerem frequentes
viagens à corte papal, para aí apresentarem as suas razões.
As pretensões de Compostela tinham raízes profundas. O
seu arcebispo, ambicioso como era, invocava o facto de ter
na sua catedral o túmulo do apóstolo S. Tiago, para
pretender desempenhar um papel de primeiro plano na
hierarquia espiritual de toda a Península. Continuava
assim, de resto, uma tradição que se iniciara já no século
IX e que não tinha deixado de se desenvolver desde que
Ramiro II, segundo um recente estudo de F. López Alcina,
lhe concedeu o rendimento de uma contribuição a cobrar em
todo o território cristão até ao rio Pisuerga, nos confins
de Castela, privilégio esse que está na origem dos célebres
«votos de Santiago». Ora, o direito a cobrar este tributo
pressupunha uma certa supremacia sobre toda a Galécia. Como
o bispo de Lugo, sucessor do de Braga desde o século VIII,
usava o título de metropolita, mas provavelmente não
exercia os direitos correspondentes, é natural que no fim
do século XI, quando se pretendeu restaurar a rede
eclesiástica da Península, Compostela, cuja importância não
cessara de aumentar, ambicionasse exercer o papel de
metrópole da Galécia, ou mesmo de sé primacial da Hispânia.
Sendo assim, Braga era a metrópole mais prejudicada com
tais pretensões, mas elas também envolveram rivalidades
entre Compostela e Toledo, que, por razões históricas,
pretendia a supremacia espiritual de toda a Hispânia. É
evidente que Braga procurava resolver-a questão em sentido
oposto ao de Compostela, embora estivesse situada dentro do
mesmo reino de Leão, como aconteceu até 1139. A
independência política deu-lhe mais força a partir dessa
data.
A coordenação entre as acções de S. Geraldo como
arcebispo de Braga e as do conde D. Henrique para a defesa
dos direitos metropolíticos pode, portanto, ter existido —
não há disso provas evidentes —, mas talvez não se lhe deva
atribuir tanta importância histórica como certos autores
pretendem. A meu ver, o que importa é que as circunstâncias
levaram a uma espécie de «nacionalização» da política
eclesiástica, para utilizar uma expressão indubitavelmente
anacrónica. Com efeito, se a introdução do ritual romano
tinha servido, entre 1080 e 1096, como veículo da política
leonesa conduzida por Afonso VI, o facto de, a nível do
condado, ela ter passado a depender da orientação do conde

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D. Henrique acabaria por lhe mudar o significado. Agindo
mais perto dos seus súbditos e em relação directa com os
poderes locais, constituindo a sua corte com membros da
aristocracia portucalense, apoiando neles o exercício das
suas funções públicas, o conde retirava todos os motivos de
resistência não só no seio das camadas superiores da
nobreza, mas também nos escalões intermédios. Assegurava
assim uma maior penetração da reforma franco-romana e, ao
mesmo tempo, permitia os acordos, as adaptações, os
compromissos, enfim, a assimilação efectiva das mutações
culturais trazidas pelos seus partidários e compatriotas.
As metrópoles eclesiásticas de Compostela e de Braga e
as suas dioceses sufragâneas. Este mapa mostra bem as
anomalias a que deu lugar a disputa entre Santiago de
Compostela e Braga pela supremacia eclesiástica sobre a
província da Galécia. Não tendo podido substituir-se a
Braga como metrópole, Santiago conseguiu primeiro tornar-se
independente (1095), e depois obter para si os direitos
metropolíticos de Mérida (1120). As dioceses disputadas
entre Braga e Santiago entre 1120 e 1199 foram as de
Lamego, Zamora, Viseu e Coimbra. Em 1199 as duas primeiras
foram definitivamente atribuídas a Santiago e as duas
últimas a Braga. De facto, a acção extremamente dinâmica

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de S. Geraldo, que conhecemos bem através da sua biografia,
conseguiu vencer muitas resistências e inverteu, de certa
maneira, os apoios sociais da reforma. Enquanto estes se
deviam situar sobretudo, até aí, no campo monástico e na
alta aristocracia, os aspectos «gregorianos» da sua acção,
que o levavam a defender vigorosamente a independência das
nomeações eclesiásticas, punham contra ele os patronos mais
poderosos e suscitavam o apoio do clero secular. Assim,
comunidades monásticas como a de Santo Tirso vieram a
distanciar-se dele, ao passo que muitos clérigos passaram a
apoiá-lo com entusiasmo. D. Henrique, que inegavelmente
defendia a propagação do ritual romano e da regra
beneditina, tinha, portanto, de exercer um papel moderador
em face dos conflitos suscitados pela questão das
investiduras. Aparece, assim, com uma autoridade política
que actua pessoalmente nos problemas do condado, por
contraste com a longínqua figura do rei de Leão, que é
facilmente mitificado, mas só superficialmente intervém na
vida portucalense.
O franco interesse de Henrique pela reforma
eclesiástica não se limitou, porém, à protecção de Geraldo.
Deve-se-lhe também o preenchimento dos quadros diocesanos,
com a nomeação, em 1099, de outro francês para a diocese de
Coimbra, como sucessor de Crescónio, e o apoio dado ao
estabelecimento de mosteiros juridicamente dependentes de
Cluny.
Aquele foi um monge beneditino vindo de Limoges, a
região que teve mais íntimos contactos culturais com
Portugal, como sabemos pelo exame que os especialistas da
história litúrgica têm feito recentemente dos mais antigos
testemunhos do ritual bracarense. Foi Maurício Burdino, que
governou a diocese de Coimbra de 1099 a 1108 e passou no
fim deste ano para Braga, onde S. Geraldo acabava de
morrer, depois de um pontificado curto, mas muito intenso.
Maurício parece ter sido um personagem mais maleável do que
Geraldo, porque não se conhecem conflitos graves entre ele
e os seus diocesanos, nem em Coimbra, nem em Braga. Não era
menos adepto do monaquismo cluniacense do que o conde,
porque ofereceu a Cluny a Igreja de Santa Justa de Coimbra,
em 1102, e confirmou uma outra doação da rainha D. Urraca a
Cluny neste mesmo ano.
As suas relações com os condes portucalenses, no
entanto, não foram sempre pacíficas, talvez porque,
pretendendo obter o apoio de Urraca para a sua actuação de
defesa contra a investida compostelana, cada vez mais
militante, suscitou a ira do conde D. Henrique, quando este
se tornou seu inimigo e se aliou com Afonso I de Aragão, em
Janeiro de 1110, como veremos em breve. De facto, houve uma
carta de couto atribuída por Henrique à Sé de Braga em
Dezembro de 1109 que foi anulada e pouco depois, estando o
conde ausente, os maiorinos de D. Teresa assaltaram a Sé de
Braga, ainda em construção, segundo o grandioso projecto do
bispo D. Pedro, e destruíram uma grande parte dela. São
desconhecidos os motivos desta violência tão surpreendente,
cujo significado foi posto em relevo recentemente por Luís
Manuel Real. O acto era, no entanto, de tal modo favorável
a Gelmírez de Compostela, empenhado em eliminar a
concorrência de Braga como centro de peregrinação, que se
deve perguntar se não seria ele o «iníquo inimigo da Santa
Madre Igreja que, por inveja, induziu os maiorinos» da
condessa a praticarem a destruição, como diz textualmente o
documento em que ela tenta reparar os prejuízos. De facto,
Maurício conseguiu fazer ver a D. Teresa o seu erro', pois
foi ela própria quem o confessou e quis remediar, em
Outubro de 1110, estando seu marido ausente. O mal, porém,
estava feito. Os arcebispos de Braga não poderiam mais
retomar o plano primitivo da catedral e a construção
recomeçada alguns anos depois teve de ser menos ambiciosa.
O sucessor de Maurício em Coimbra foi um português,
Gonçalo Pais de Paiva, membro de uma das antigas famílias
de infanções, a que já nos referimos, o que demonstra
claramente a assimilação da reforma eclesiástica por alguns
sectores nacionais. De facto, Gonçalo Pais defendeu a
liturgia romana com não menos vigor do que o seu
predecessor francês, durante um período de verdadeira
revolta moçárabe e antifrancesa, que teve o seu ponto
quente pelos anos de 1111-1116, como veremos mais tarde.
A política pró-cluniacense de Henrique não é menos
ciara. Tinha uma relação estreita com o mosteiro então
governado pelo seu tio-avô Santo Hugo (irmão de sua avó, a
duquesa Hélia) e era familiarisda comunidade, isto é,
estava ligado a ela por um pacto expresso, que o obrigava
moralmente a ser benfeitor da abadia e lhe dava direito a
ser especialmente mencionado nas orações dos monges. O
historiador americano Charles Julian Bishko, com uma
impressionante erudição, edificou mesmo toda uma teoria
acerca do apoio político dado por Santo Hugo ao conde
Henrique, como veremos a propósito da sua actuação na crise
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dinástica leonesa. Para já, basta-nos sublinhar a
importância da doação que fez do Mosteiro de Rates, perto
de Vila do Conde, a La-Charité-sur-Loire, dependente de
Cluny, em Março de 1100, quem sabe se para obter ou
agradecer o apoio dos Cluniacensés no reconhecimento papal
da dignidade metropolítica de Braga, a que já nos
referimos, e que se deu nesse mesmo ano. Não se tratava só
da entrega de urria nova comunidade à congregação
borgonhesa. Ela foi desde logo beneficiada também com a
doação do dízimo do pão, do vinho e do linho das terras
reguengas situadas entre o Douro e o Mondego, o que devia
constituir uma renda enorme.

Henrique e o Norte de Portugal

Apesar das suas frequentes ausências do condado, que


enumeraremos em breve, o conde D. Henrique tomou algumas
decisões importantes, que dizem respeito particularmente às
regiões de Coimbra e de Braga, e que se devem, decerto, ao
conselho dos senhores locais que associou ao seu governo.
Esta íntima colaboração com a nobreza regional permitiu-lhe
dirigir uma política certeira do ponto de vista da
administração interna.
Foi, efectivamente, entre as mais categorizadas
famílias de Entre Douro e Minho que escolheu os membros da
sua cúria, sem que, por outro lado, se descortine qualquer
acto que visasse promoção de cavaleiros franceses, para
além dos postos subalternos que, de facto, lhes confiou,
sobretudo na região de Coimbra. Já vimos a confiança que
lhe mereceu a personalidade de Soeiro Mendes da Maia e as
responsabilidades que lhe atribuiu ou manteve. Além disso,
nomeou Paio Soares, seu filho, como mordomo; Nuno Pais
«Vida», da família de Azevedo, como alferes-mor; Gomes
Nunes, da futura família de Barbosa, como mordomo-mor; Pêro
Pais, de família não identificada, como sucessor do
anterior no mesmo cargo.
Vejamos agora os seus principais actos de administração
interna. Na região de Braga, exceptuando o momento de
conflito com Maurício Burdinol em 1110, a que nos referimos
anteriormente, deu mostras de grande generosidade para com
a sé. Reforçou os seus rendimentos materiais,
concedendo-lhe o patronato do Mosteiro de Santo Antonino de
Barbudo, que tinha sido um precoce centro de influência
leonesa desde o tempo de Fernando, o Magno, e que havia
acumulado propriedades bastante consideráveis. Além disso,
deu-lhe carta de couto sobre o território da cidade e seu
termo. Depois de anulado o diploma de 1109, a que já nos
referimos, reformulou a mesma doação em 1112, íniciando-se,
assim, a jurisdição civil do prelado sobre o couto de
Braga, que havia de durar vários séculos.
Este diploma manifesta o princípio de uma orientação
política que persistiu até meados do século XII e que
consistiu na concessão da imunidade civil às principais
instituições eclesiásticas. Trata-se de uma medida de que
já mencionámos um elemento, a concessão do couto de Santo
Tirso a Soeiro Mendes da Maia. Por esta, o conde sancionava
o regime senhorial dos nobres; por aquela, o das
instituições eclesiásticas. Subtraía importantes porções do
território que lhe estava sujeito para os entregar a
detentores de poderes privados, que assim eram investidos
de funções «estatais». O regime senhorial, cujo processo
formativo descrevemos no volume anterior, recebia agora um
impulso por parte do representante do rei. Os reis leoneses
tinham procurado captar a colaboração dos infanções,
nomeando-os governadores de terras, para os ligar ao poder
público. Tinham também, em Leão e Galiza, concedido,
excepcionalmente, imunidades a bispos e mosteiros. D.
Henrique, que conhecia bem o regime da fragmentação do
poder público do seu país de origem, concedeu, segundo
parece com relativa facilidade, as cartas de couto de que
falámos, não resistindo, assim, a partilhar com outrem o
poder que exercia. A verdade é que podia fazê-lo sem grande
prejuízo imediato do seu poder, pois o carácter, decerto
muito rudimentar, do aparelho administrativo e a escassez
de funcionários condais não lhe permitiam controlar
eficazmente o território que governava.
Não foi só o arcebispo de Braga que o conde beneficiou
com a referida carta de couto. Outorgou também um diploma
semelhante em favor do mosteiro beneditino de Tibães, junto
a Braga, provavelmente um dos mais importantes, do condado,
depois do de Santo Tirso, e que tinha, como ele,
desempenhado, segundo parece, um papel de relevo na difusão
dos costumes monásticos cluniacenses. Pertencia ao
patronato de Paio Guterres da Silva, que havia sido
maiorino de Afonso VI. O seu abade Nuno deve ter mantido as
melhores relações com S. Geraldo.

41
Henrique e a região de Entre Douro e Mondego

Nas regiões de Coimbra e de Viseu, as medidas tomadas


por D. Henrique são mais numerosas e revelam uma
intervenção directa, não já para aumentar a rede dos
senhorios, mas para confirmar a autonomia de comunidades
rurais e urbanas dirigidas por cavaleiros vilãos, para
reforçar os poderes locais de alguns cavaleiros que
colaboravam na luta contra os Mouros, para promover o
repovoamento de regiões menos habitadas e para apoiar a
acção dos bispos adeptos da reforma eclesiástica. É o
sentido que devemos atribuir às doações a cavaleiros em
Seia ou Sátão, aos forais de Azurara da Beira, de Tentúgal,
de Sátão, de Coimbra, de Soure e de Tavares, ao couto
concedido à Sé de Viseu e à doação do riquíssimo Mosteiro
de Lorvão em favor do bispo Gonçalo Pais de Coimbra.
A série de forais atribuídos a povoações da região de
Coimbra situa-se por volta do ano de 1111 e integra-se num
contexto complexo, que requer uma explicação mais
pormenorizada.
Como vimos anteriormente, a resistência moçárabe foi
combatida desde 1092, no plano religioso, pelo bispo
Crescónio e, desde a sua morte, em 1098, pelo bispo
Maurício Burdino. Apesar da origem estrangeira do segundo,
não se conhecem manifestações graves de oposição ao seu
governo. Ao mesmo tempo, as forças militares autóctones,
compostas por cavaleiros, alguns deles de origem moçárabe,
e por imigrados de outras regiões da Península, foram
enquadradas por francos, alguns dos quais exerciam funções
administrativas em nome do conde. Uma parte destes últimos
fixou-se em Viseu, ou nos seus arredores, que, como vimos,
atraiu as atenções do conde. Desde o afastamento de Martim
Moniz, em 1094, para se alistar nas hostes de Cid, o
Campeador, não há notícias de perturbações a esta situação.
Em 1111, porém, com o recrudescimento da ofensiva
almorávida, por ocasião da conquista de Santarém,
verificou-se Um grave desacordo entre os cavaleiros de
Coimbra e os francos. Ora sabemos, por um perspicaz estudo
de Gérard Pradalié acerca destes acontecimentos, que Martim
Moniz tinha voltado à sua antiga cidade. Depois da morte de
Cid, o Campeador, em 1099, Valência resistiu até 1102. É
provável que Martim Moniz aí tenha permanecido até esta
data, mas depois teve de retirar com os outros cristãos que
a abandonaram. Em 1105, aparecia junto do conde D. Henrique
em Terra de Campos, perto de Palença, e cinco anos mais
tarde em Coimbra. Tinha talvez obtido a confiança do conde.
Mas, uma vez em Coimbra, aproveitou as circunstâncias para
reagrupar os seus antigos partidários moçárabes, como se
depreende de uma bula do papa Pascoal II de Janeiro de 1110
ou 1111, que o associa ao prior do cabido, Martinho Simões.
A morte de Afonso VI, em 1109, e a consequente perturbação
de todo o quadro político peninsular, com a intensa
participação de D. Henrique na política leonesa, devem ter
levado Martim Moniz a considerar a ocasião propícia^ara
tomar a direcção do partido antifrancês.
De facto, os moçárabes, chefiados, no plano religioso,
por Martinho Simões, deviam ter procurado tirar partido da
longa ausência de Maurício Burdino, que tinha participado
numa peregrinação a Jerusalém durante os anos de 1104 a
1108 e que pouco depois, nos últimos dias de 1108 ou nos
primeiros de 1109, foi transferido para Braga, por morte de
S. Geraldo. Gonçalo Pais de Paiva, o novo bispo, apesar de
português, iniciou desde o princípio do seu pontificado uma
acção repressiva, para a qual obteve o apoio do conde D.
Henrique, que em 1109 lhe entregou o Mosteiro de Lorvão e
os seus domínios. O novo bispo entrou em luta com o cabido
da catedral quando tentou reorganizá-lo, decerto para
excluir dele os últimos partidários da liturgia hispânica.
Obteve para isso bulas especiais da Santa Sé.
A revolta de 1111 deve corresponder, portanto, a um
momento de conflito grave em Coimbra. Foi necessário que o
conde viesse apressadamente à cidade, interrompendo as suas
intensas actividades em Terra de Campos. Viu-se então
obrigado a aceitar as principais reivindicações dos
cavaleiros da cidade, entre as quais a de retirar dali os
seus agentes Ebraldo e Munio Barroso. É provável que, como
contrapartida, tenha exigido a Martim Moniz o abandono de
Coimbra. De facto, encontramo-lo ainda nesse mesmo ano de
1111 na corte de Afonso I de Aragão. O conde conseguiu,
assim, que a sua autoridade fosse de novo reconhecida.
A atribuição de forais a Sátão, Soure, Tavares e
Azurara da Beira, que reproduzem aproximadamente o modelo
de Coimbra e que datam de 1111 ou 1112, mostra que o conde
reconheceu a necessidade de reforçar os privilégios das
comunidades locais para as encorajar a participar na defesa
do território, então gravemente ameaçado pelos Almorávidas,
evitando, assim, qualquer pacto com o inimigo. A pressão
externa contribuiu, portanto, para fortalecer a autonomia
dos concelhos próximos da fronteira. Este facto, porém, não

42
levou a uma espécie de ressurgimento moçárabe. O bispo
Gonçalo de Coimbra continuou a combatê-lo vigorosamente no
plano religioso. Durante os anos seguintes, deve ter
conseguido suprimir os principais focos de resistência na
cidade e na diocese. Quando chegou ao fim do seu
pontificado, em 1128, as antigas observâncias deviam ter
desaparecido por completo. A lembrança das lutas religiosas
ficou, porém, bem viva na memória da gente de Coimbra e
havia de inspirar, muitos anos mais tarde, alguns dos
passos mais significativos da Gesta de Afonso Henriques.
Quanto às comunidades concelhias das zonas de Viseu e
Coimbra, tendo atraído cavaleiros do Norte, que se
associaram aos autóctones, acabaram também por esquecer as
velhas questões do ritual e da cultura moçárabes, para se
empenharem na organização municipal e no recrutamento de
forças capazes de resistirem às investidas sarracenas. Com
efeito, a pressão externa continuou <f a ameaçar o vale do
Mondego, como se sabe pelos graves acontecimentos de 1116 e
1117, que descreveremos em breve. Tinham sido, afinal, as
dissensões internas, entre as quais as lutas entre
«francófilos» e moçárabes, que enfraqueceram a capacidade
de defesa. Mas a pressão da guerra externa obrigou a
esquecê-las, contribuindo, assim, para finalmente se
superarem as antigas divergências religiosas e culturais.
Apesar de os actos que acabámos de comentar mostrarem a
atenção que mereceram a D. Henrique os problemas internos
do condado, verificamos que durante o curto período do seu
governo esteve muitas vezes e durante muito tempo ausente
de Portugal, sobretudo a partir de 1101. Encontramo-lo em
Sahagún em Fevereiro de 1103; em Castela em Fevereiro,
Março, Maio e Setembro de 1104; em Santo Isidro da Las
Duenas em Janeiro de 1105; entre Maio e Setembro de 1105 em
Burgos; entre Agosto de 1106 e o fim de Março de 1108
estava em Portugal, onde deve ter sabido da morte de
Raimundo, em Setembro de 1107; no Verão de 1108 assistia à
cúria régia de Toledo, que tratou da sucessão do trono
leonês; deve ter sido logo a seguir que fez a viagem a
França de que fala a Crónica anónima de Sahagún; no Verão e
Outono de 1109 voltava a Portugal e desde os primeiros
meses de 1110 até à Primavera de 1111 estava em Aragão e
Castela, primeiro ao serviço de Afonso I e mais tarde de
Urraca; encontramo-lo a seguir em Coimbra a pacificar a
cidade depois da revolta de Martim Moniz; no Inverno de
1111-1112 em Leão; na Primavera de 1112 em Astorga, onde
veio a morrer inesperadamente.
Estas longas ausências mostram o empenhamento com que
interveio na política leonesa. Vejamos, portanto, quais os
problemas que aí estavam em jogo, para tentarmos
compreender o sentido da actuação do conde no complicado
xadrez de forças contraditórias em que participou tão
activamente. Recordemos, para isso, que as questões
religiosas, que no plano interno tiveram tanto relevo, como
vimos, revestiram também uma importância decisiva na cena
mais vasta do reino de Leão. Representam a face externa de
um conflito com graves repercussões sociais e políticas.
Estas últimas atingiram o seu ponto mais agudo depois da
morte de Afonso VI e desenrolaram-se emtorno do problema
sucessório. Este facto precipitou, com efeito, o
desencadeamento das contradições que já definimos mais
acima, iniciando-se, assim, uma crise que ocupou todo o
primeiro quartel do século XII.
Apesar dos seus sucessivos casamentos e uniões
extraconjugais, Afonso VI só por volta do ano 1100 teve um
descendente do sexo masculino, o infante Sancho, filho da
moura Zaida, nora do rei de Sevilha, que os Almorávidas
mataram em 1091, e que se havia refugiado na sua corte. O
rei começou desde 1104 a considerar Sancho como seu
herdeiro legítimo, incitado, certamente, pelo grupo de
vassalos que viam com maus olhos a supremacia do partido
«francófilo» e a eventualidade de o trono vir a cair nas
mãos do conde D. Raimundo, marido da única descendente
legítima do rei de Leão. Os seus apoiantes cluniacenses
devem ter considerado o facto uma séria ameaça contra os
seus projectos político-eclesiásticos. Foi certamente esta
conjuntura que levou Hugo, abade de Cluny, a enviar à
Península o seu legado Dalmácio Geret e a promover um
acordo entre os dois parentes, Raimundo e Henrique, os
principais agentes dos seus interesses. O pacto realizou-se
na presença do legado, em data desconhecida, mas muito
provavelmente, segundo as minuciosas investigações de
Charles Julian Bishko, nos fins de Janeiro de 1105.
Henrique reconhecia Raimundo como o legítimo herdeiro dos
reinos de Leão, Castela e Galiza e prometia defendê-lo

43
contra qualquer homem ou mulher, na qualidade de seu
vassalo. Raimundo, por sua vez, prometia conceder a
Henrique o território de Toledo, com um terço dos seus
tesouros ou o reino da Galiza.
Uma série de acontecimentos inesperados precipitou o
desenlace das contradições, que o próprio pacto já
revelava. Em Março de 1105 nascia Afonso Raimundes, filho
de Raimundo e de Urraca, o que dava maiores garantias de
continuidade ao partido «francófilo». A criança era
entregue, algum tempo depois, ao conde galego Pedro
Froilaz, o que desde logo associava ao mesmo partido uma
importante porção da aristocracia galega. Em Dezembro de
1106, Afonso VI caía doente e neste estado havia de
permanecer até à data da sua morte, mais de dois anos
depois. No ano seguinte, em Setembro de 1107, morria
inesperadamente o conde D. Raimundo, o qué não podia deixar
de lançar a maior perturbação entre os seus apoiantes.
Poucos meses depois, em Maio de 1108, desaparecia também o
infante Sancho, morto pelos Almorávidas na Batalha de
Uclés. O partido antifrancês ficava, assim, privado do seu
pólo natural, ao passo que os seus opositores se podiam
reunir em torno do infante Afonso Raimundes e contavam com
a importante ajuda de D. Henrique.
Afonso VI tentou prevenir de algum modo as lutas que
não podiam deixar de surgir. Mandou convocar cortes para
Toledo, ainda no Verão de 1108, para aí tomar uma decisão
sobre a sucessão ao trono. Sabemos que Henrique saiu delas
«airado d’el-rei», ainda antes de terminarem, o que quer
dizer que caiu na situação de banido e traidor. É provável
que tenha querido defender a sucessão de Afonso Raimundes,
que, segundo o acordo relativo ao segundo casamento de sua
mãe, ficava apenas como rei independente da Galiza, numa
situação nitidamente inferior aos futuros filhos de Urraca
e Afonso I de Aragão. É possível que fossem justamente as
complicações decorrentes das decisões tomadas em Toledo que
levaram D. Henrique a França, decerto para consultar o
abade de Cluny acerca da difícil situação por elas criada.
Torquato Soares, porém, pensa que esta viagem não se deve
situar em 1109, mas no Inverno de 1109-1110, e que o conde
não teria chegado a passar os Pirenéus, por ter sido preso
por Afonso I de Aragão. Nestas circunstâncias teria sido
persuadido pelo soberano aragonês a passar ao seu serviço,
como veremos mais adiante.
No ano seguinte, em Julho de 1109, o velho rei Afonso
VI deixava este mundo. Pela mesma altura, morria também o
abade Hugo de Cluny, que sustentara tão empenhadamente o
conde D. Henrique. O casamento de Urraca com o rei de
Aragão realizou-se, depois de algumas hesitações, antes do
fim do mesmo ano. Durante vários meses, os Almorávidas,
chefiados por Ali ben Yusuf, cercaram Toledo e ameaçaram
seriamente a cidade. Afonso Raimundes era proclamado
herdeiro do reino da Galiza, mas atribuía-se a sucessão do
trono leonês aos futuros filhos de Urraca e de Afonso I de
Aragão.
A atitude do conde D. Henrique segue então uma
trajectória inesperada. Sabe-se que esteve ao serviço do
rei Afonso I de Aragão e que tomou parte na Batalha de
Valtierra contra o rei de Saragoça, em Janeiro de 1110.
Talvez este serviço vassálico fosse o preço da
reconciliação com o seu legítimo senhor feudal. Seria isso
necessário para poder continuar como principal defensor dos
interesses franco-cluniacenses no reino de Leão? Ou tratava
apenas de lutar pelas suas ambições pessoais? Seja como
for, o serviço do rei aragonês colocou-o do seu lado contra
Urraca, o que sucedeu rapidamente. Em Outubro de 1110
continuava junto dele e com ele combatia contra as tropas
da rainha na Batalha de Candespina. Em Novembro seguinte,
porém, D. Urraca conseguia atraí-lo para o seu campo, e ele
passava a atacar o rei de Aragão, cercando-o em Penafiel,
ainda antes do fim do mesmo ano. Foi nesta ocasião que,
segundo a Crónica anónima de Sahagún, D. Teresa chegou ao
acampamento, vinda de Coimbra, e convidou seu marido a
exigir a entrega imediata das terras que Urraca lhe havia
prometido. A crónica, tomando o ponto de vista leonês,
atribui a uma figura feminina um papel maléfico e
perturbador, como explicação ingénua de uma intriga bem
mais complexa. Quem sabe, no entanto, como pensa Torquato
Soares, se estabeleceu por essa altura com sua irmã o
pacto, sem data, que ainda hoje se conserva, em que ambas
se prometem um apoio mútuo, apesar de nele não figurar o
nome do conde? Logo a seguir, porém, verificando o prejuízo
que tais compromissos lhe podiam trazer, ou cedendo a
intrigas dos seus vassalos, Urraca inicia conversações
secretas com Afonso I para obter a reconciliação com ele e
manda levantar o cerco. Entrega Zamora e Astorga ao conde,
como recompensa dos seus serviços, mas reúne-se com o seu

44
marido em Leão. Esta alteração das condições políticas
coincide com a ofensiva almorávida que levou à perda de
Santarém e ameaçou Coimbra em Maio de 1111 e com a revolta
de Martim Moniz, que já descrevemos, e que trouxe Henrique
a Coimbra.
Entretanto, os Galegos, instigados pelo bispo Diego
Gelmírez, interessado em obter o apoio dos Cluniacenses
para os seus projectos de política eclesiástica, resolviam
coroar solenemente Afonso Raimundes como rei da Galiza.
Urraca, que voltara a separar-se do marido, juntava-se aos
Galegos e ao filho. Atraindo de novo Henrique ao seu
partido, tratou de recrutar tropas para combater Afonso I.
Henrique acompanhou ainda os exércitos que o atacaram perto
de Astorga e depois o cercaram em Carrión, nos primeiros
meses de 1112. A sua impressionante carreira de chefe
militar terminou inesperadamente com a sua morte, em 14 de
Abril de 1112, estando nessa altura na cidade de Astorga.

Evolução das contradições

Antes de encerrarmos o capítulo do período henriquino


do Condado Portucalense, tomemos uma certa distância dos
acontecimentos para nos apercebermos das transformações que
entretanto, em pouco tempo, se haviam dado na relação das
forças em presença.
Até à morte de Afonso VI, o conflito opunha duas
correntes principais, polarizadas em torno de um partido
pró-francês e de outro a que podemos chamar
«castelhano-leonês». Os seus protagonistas não eram só
membros do clero, mas também da nobreza. Estes começaram,
obviamente, a defender também os seus interesses pessoais
no xadrez da luta pelo Poder. Deu-se, assim, uma
transferência do campo religioso e cultural, em que as
oposições se polarizavam em torno da aceitação ou rejeição
do ritual romano, para o campo político, no qual o grupo de
bispos e nobres outrora apoiados em Afonso VI passaram a
ser combatidos por outros clérigos e nobres que os
invejavam. A reacção antifranca, porém, separa-se cada vez
mais da luta contra a liturgia romana e a reforma
gregoriana, que se iam entretanto assimilando, em virtude
do seu próprio dinamismo, para se polarizar em torno de
interesses regionais, ou seja, dos grupos de nobres que se
associam entre si para manterem as posições políticas
alcançadas ou eliminarem a concorrência dos seus
adversários.
Por outro lado, tendo morrido Afonso VI, surge uma
terceira força, que se apoia em Afonso I de Aragão e que
recruta os seus adeptos sobretudo na gente das cidades,
desejosa de sacudir o jugo senhorial. Actua sobretudo nas
cidades do Norte da Península, que se situavam ao longo do
caminho francês de Santiago de Compostela. Estalaram
revoltas citadinas e anti-senhoriais em Santiago e outros
lugares. Este movimento, que seria abandonado pelos
Aragoneses quando o Batalhador se separa definitivamente de
Urraca e desiste das suas pretensões ao trono leonês,
prolonga-se depois pelo seu próprio impulso, o que leva a
uma outra recomposição dos partidos em presença. Em vários
casos conduz à reconciliação de chefes religiosos e
militares, que esquecem as suas antigas querelas para se
oporem aos burgueses revoltados. Também este fenómeno
contribui para regionalizar as questões, polarizadas agora
por revoltas anti-senhoriais que já nada tinham que ver com
problemas eclesiásticos nem com os interesses dos
cavaleiros e monges franceses.
Foram ainda os «francófilos», decerto, que em 1114
alcançaram do papa a bula que impunha a separação aos dois
cônjuges. Esta restituía, na prática, os direitos
sucessórios a Afonso Raimundes, em torno do qual se
congregavam. Mas a decadência de Cluny, resultante de
problemas internos da própria abadia, e o consequente
enfraquecimento do centro orientador fora da Península
contribuíram também para esbater a anterior identidade do
«partido». Por outro lado, apareciam agora em cena chefes
religiosos formados ou lançados pelos «francófilos», mas
que passaram a desempenhar o seu papel com uma
personalidade tão vigorosa e com o propósito de defenderem
interesses regionais tão marcados que acabaram por se
distanciar do grupo donde procediam ou por introduzir nele
as mais irredutíveis oposições. O caso mais típico é o do
arcebispo Diego Gelmírez de Compostela, cuja actuação
política se reveste da maior importância, devido à sua
espantosa capacidade de intriga, à imensa riqueza monetária
da sua igreja e ao facto de o infante Afonso Raimundes ter
os principais apoios na Galiza. Sucede o mesmo com S.
Geraldo e Maurício Burdino, que puseram todo o seu empenho
em restaurar os privilégios metropolíticos de Braga, tendo,
para isso, de se opor a eclesiásticos do mesmo grupo, como
Gelmírez; ou com Bernardo de Sédirac, que começou por ser o

45
principal representante episcopal do partido francês e
acabou por se opor a antigos companheiros de luta, em nome
dos direitos primaciais da Sé de Toledo. Para eles, os
interesses regionais também se sobrepunham por vezes aos
ideais do movimento que inicialmente os inspirava.
O que importa, porém, não é descobrir as intenções
individuais dos protagonistas, mas identificar as forças
que eles encarnam, nem sempre de maneira coerente e linear.
Assim, por exemplo, os nobres portugueses — que,
naturalmente, se viram chamados a intervir também, directa
ou indirectamente, nos grandes problemas políticos da sua
época, tendo, assim, oportunidade de sanhar ousadia e
maturidade política — assistiam, bem perto deles, ao
exemplo dos nobres galegos, quer os seguidores de Diego
Gelmírez, quer os do conde Pedro Froilaz, aio de Afonso
Raimundes, os quais durante vários anos actuaram no
primeiro plano da cena política. Preparavam-se, assim, para
jogar por conta própria, quando chegasse a ocasião, levando
consigo os interesses e necessidades das populações que
deles dependiam. O que traz de novo à tona as questões
regionais.

A rainha D. Teresa perante a nova situação

As grandes transformações na relação de forças


políticas a que acabámos de nos referir permitiram,
portanto, durante a segunda década do século XII, a
emergência de correntes regionais, que tentaram aproveitar
a complicada situação política para conquistar posições de
relevo ou fortalecer as que já possuíam. Mesmo quando,
aparentemente, não reivindicavam um estatuto autonómico,
procuravam uma certa liberdade de movimentos ou capacidade
de intervenção na esfera política. As cidades pretendem
tornar-se independentes das autoridades senhoriais. Os
nobres associam-se entre si para controlar o governo das
grandes províncias. Os eclesiásticos recrutam as suas
forças militares e tomam nas mãos a administração civil dos
territórios de que se haviam tornado senhores.
As contradições daí resultantes, conjugadas com a
indefinição e a debilidade da política régia, convidam ao
estabelecimento de alianças, precárias ou duradoiras.
Seguem, para isso, os esquemas dos compromissos pessoais,
dos juramentos em troca de benefícios, de homenagens e
prestação de serviços militares ou de conselho, ou seja, os
pactos feudais, sob as formas tradicionais do Noroeste
peninsular, que, mercê destas circunstâncias, e por
influência dos costumes franceses, tendem a constituir um
sistema mais vasto e mais coerente do que até então, apesar
de a rápida recuperação da autoridade régia, a partir do
princípio do reinado de Afonso VII (o infante Afonso
Raimundes), levar, pouco depois, a deter novamente o
processo de feudalização, que fez consideráveis progresssos
durante o período de anarquia dos anos 1105-1125/1130.
Correndo o risco de simplificar excessivamente a
realidade, podemos identificar na Galiza duas forças
hegemónicas: a dos nobres que rodeiam Pedro Froilaz de
Trava, o tutor do infante Afonso Raimundes, e a do
arcebispo de Compostela Diego Gelmírez. Acima destas,
emerge a personalidade da rainha D. Urraca, que procura não
perder a sua autoridade nas diversas regiões dos seus
Estados. Os seus aliados preferidos devem ser os nobres
castelhanos ou leoneses. Para conseguir alcarfçar os seus
objectivos, ora se alia com os galegos chefiados por Pedro
Froilaz, ora com Gelmírez, ora com os nobres castelhanos.
Parece temer a concorrência do seu próprio filho Afonso,
decerto por recear a independência da Galiza ou por temer
um excessivo papel dos Galegos na política do reino.
Qual a relação deste complexo panorama com a situação
do Condado Portucalense?
D. Teresa depara aqui com uma situação em vários pontos
diferente da da Galiza. É natural que o facto de Afonso
Raimundes ser considerado o herdeiro de D. Raimundo, e
este, por sua vez, do rei Garcia, orientasse o seu tutor
para uma tentativa de reconstituir, na medida do possível,
essa unidade política, que, portanto, incluía Portugal. O
pacto entre Raimundo e Henrique atribuía àquele a sucessão
do trono leonês e a este a do reino da Galiza; por seu
lado, a cúria régia de 1108 tinha atribuído a Afonso
Raimundes esse mesmo reino, autonomizado do de Leão, que
caberia aos descendentes de Urraca e Afonso de Aragão. Os
Travas deviam, portanto, pretender que Afonso Raimundes
herdasse a totalidade dos territórios entregues a seu pai
em 1091. Esta intenção dificilmente podia interessar aos
Portucalenses, habituados a colaborar com D. Henrique num
plano.análogo ao dos nobres galegos e pouco dispostos a
aceitar a orientação religiosa de Compostela, que daí
adviria necessariamente.

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D. Teresa devia, portanto, ter-se sentido
constantemente pressionada por duas forças contrárias: a
dos barões portucalenses, para reivindicar um lugar
paralelo ao de Urraca ou, pelo menos, ' a autonomia em
relação à Galiza; e a dos magnates galegos, para aceitar a
reunificação entre a Galiza e Portugal. Não admira, por
isso, que os Travas adoptassem a táctica de casarem a
«rainha» viúva com algum membro da sua família:
associando-a aos seus interesses, resolveriam o problema da
divisão do antigo reino da Galiza. D. Urraca, por seu lado,
não deixaria também de tentar utilizar a sua irmã, ora para
a lançar contra os Galegos, ora para apoiar estes contra
ela, conforme as situações de momento e os interesses dos
nobres castelhanos.

Teresa, de 1112 a 1116

A morte do conde D. Henrique, em Abril de 1112, privava


Urraca de um poderoso aliado na a luta contra Afonso I. Foi
talvez por causa disso que nesse momento se reconciliou com
o marido. As forças pró-francesas, temendo que assim se
eliminasse a possibilidade de Afonso Raimundes suceder no
trono de Leão e Castela, conseguiram que o papa nomeasse
como seu legado na Península o próprio abade Pôncio de
Cluny, que, de facto, veio à Hispânia no Verão de 1113 e
excomungou todos os que apoiavam a união dos soberanos de
Leão e Castela. O arcebispo Diego Gelmírez manifestou-se
também publicamente em Burgos contra o casamento de Urraca
e o domínio aragonês. De facto, Urraca e Afonso acabaram
por se separar, em virtude de uma bula papal de 1114. Isso
não impediu os Aragoneses de continuarem a dominar em
Castela, enquanto Urraca governava apenas Leão e a Galiza.
Compreende-se assim que nos anos seguintes ela procurasse
afirmar a sua efectiva autoridade sobre a Galiza,
comprometida pela coroação de Afonso Raimundes como seu
rei. Diego Gelmírez, que já antes, em 1113, tomara um papel
decisivo nesta conjuntura, promovendo a referida coroação e
dirigindo uma expedição para o colocar no trono de Leão,
tratava também de criar os seus pontos de apoio em Portugal
e de intrigar nos meios eclesiásticos, para conseguir o seu
ambicionado objectivo de obter os direitos metropolíticos
de Braga.
Em 1112, conseguiu que fosse nomeado para a diocese do
Porto um dos seus mais fiéis clérigos, o arcediago Hugo de
Compostela, de origem francesa, que foi sagrado em Março de
1113. Poucos meses depois, aproveitando uma rivalidade
entre Maurício e o arcebispo Bernardo de Toledo, começou a
exercer actos eclesiásticos que deviam competir ao
arcebispo de Braga, como, por exemplo, a sagração episcopal
do bispo de Lugo, sufragâneo de Braga (Abril de 1114).
Maurício, que entretanto fora excomungado pelo arcebispo de
Toledo, resolveu protestar pessoalmente na cúria romana.
Estava em Anagni e em Roma em Novembro e Dezembro de 1114 e
aí obteve toda a espécie de garantias contra os seus dois
adversários de Toledo e de Compostela.
Uma coisa, porém, eram as bulas papais, outra o que se
passava na Galécia. Gelmírez respondia estabelecendo
acordos pessoais com os bispos de Coimbra e do Porto e
assinando um pacto com os outros bispos da Galiza. Por
isso, o triunfo de Maurício Burdino na corte pontifícia
teve, nos anos imediatos, menos consequências do que as
manobras de Gelmírez. Com efeito, Maurício envolveu-se a
tal ponto nas questões da cúria romana que acabou por ser
escolhido como antipapa pelo imperador Henrique V, em Março
de 1118, e não voltou mais a Braga. O bispo Hugo do Porto,
chegado também, por sua vez, à cúria papal, conseguiu assim
tornar-se isento do seu metropolita de Braga e em Abril de
1116 foi-lhe atribuída a administração da diocese de
Lamego, apesar de esta pertencer a outra província
eclesiástica. Diego Gelmírez estendia, assim, os seus
tentáculos sobre Portugal, por intermédio do seu fiel
auxiliar, o bispo do Porto.
Entretanto, a partir de Abril ou Maio de 1115,
levanta-se contra Gelmírez a oposição dos nobres galegos,
dirigidos pelo ponde de Trava e nesse momento aliados com a
rainha D. Urraca. Esta deve ter chegado a acordo com eles
acerca da autoridade de Afonso Raimundes e captou a
confiança de Pedro Froilaz atribuindo-lhe a defesa de
Toledo — uma tarefa que outrora teria provavelmente cabido
ao conde D. Henrique —, que nessa altura se via sujeita a
perigosas investidas almorávidas, pouco tempo antes de
começarem a atacar Coimbra. Esta reconciliação devia ter
deixado Gelmírez mal colocado perante Urraca, pois fora ele
o principal instigador da coroação de Afonso Raimundes e da
expedição galega contra Leão.
Urraca, porém, querendo ver reconhecida a sua
autoridade na Galiza, dirigiu-se em 1116 a Santiago à
frente de um exército castelhano-leonês, quebrando o seu
anterior acordo com os Travas. Pedro Froilaz e Afonso
Raimundes tiveram de sair da cidade, enquanto Gelmírez se
via forçado a pactuar com a rainha. Esta dirigiu-se depois

47
a Tui, para submeter o condado de Toronho, que apoiava
também Afonso Raimundes.
É neste momento que Teresa entra em cena. Pedro Froilaz
obtém a sua colaboração na luta contra Urraca. A coligação
de nobres portugueses e galegos cerca a rainha no Castelo
de Sobroso, perto de Puenteareas, mas ela consegue
escapar-se e retira-se com as suas tropas para Santiago e
depois para Leão, não tendo podido submeter com êxito as
províncias ocidentais do seu reino.
Data talvez desta ocasião o primeiro ensaio que o conde
de Trava fez de neutralizar não a autoridade de D. Teresa,
mas a autonomia do Condado Portucalense. Com efeito, apesar
de a historiografia recente, desde o século xvn, considerar
lendárias e ofensivas as informações dos livros de
linhagens que atribuem a D. Teresa um segundo casamento com
Bermudo Peres de Trava, as recentes investigações de A. de
Almeida Fernandes dão-lhes uma certa verosimilhança.

D. Teresa e os Travas

Não podemos expor em pormenor os seus fundamentos.


Admitimo-las, todavia, como hipótese plausível. De facto,
pode ter sido precisamente esta união efémera ou uma
tentativa de casamento que impediu depois um verdadeiro
matrimónio com Fernão Peres, irmão de Bermudo. Com efeito,
segundo o direito canónico, bastava uma união ilícita
anterior para impedir um casamento posterior com um
consanguíneo próximo da pessoa com quem houvera relações.
Tal união tornava incestuoso o segundo casamento.
Explicar-se-ia assim a penitência que os dois irmãos, de
facto, fizeram mais tarde, ao fundarem o Mosteiro de
Sobrado, na Galiza e ao irem em peregrinação à Terra Santa,
factos de cuja historicidade se não pode duvidar. Também
não se pode duvidar do casamento posterior de Bermudo Peres
com uma filha de D. Teresa e de D. Henrique, que, por estas
razões, teria sido duplamente incestuoso.
Sendo assim, penso que se deve considerar verosímil
este hipotético acontecimento: De facto, é muito improvável
que não surgissem fortes pretendentes à mão de Teresa (ou
seja, ao governo do Condado Portucalense), como acontecia
com todas as viúvas ricas. Os Travas eram os mais
interessados nisso: esse casamento consolidaria a sua
preponderância na Galiza e resolveria o problema da divisão
do antigo reino do rei Garcia. No caso de Afonso Raimundes
vir a ocupar o trono leonês, abriria a um descendente dos
Travas a possibilidade de se tornar rei da Galiza; se ele
permanecesse apenas como rei da Galiza, em conformidade com
as decisões das Cortes de 1108, consolidaria o papel dos
Travas e garantiria a Afonso o domínio também sobre
Portugal. Além dos indícios e deduções que apontámos,
pode-se também referir outro dado relacionável com este
projecto: à partir de 1117, D. Teresa começou a usar nos
seus documentos o título de «rainha», sinal de que
reivindicava, assim, os direitos que lhe cabiam como filha
de Afonso VI, entre eles, possivelmente, o de governar como
soberana uma parte dos Estados por ele deixados.

O Condado Portucalense de 1116 a 1121

Durante o Verão de 1116 e o ano de 1117, a situação na


fronteira meridional complicou-se, de modo a alterar a
evolução dos acontecimentos. Uma invasão almorávida ameaçou
gravemente Coimbra. Os habitantes do Castelo de Soure, que
defendia a cidade pelo sul, temendo não poderem resistir,
abandonaram o lugar, depois de o incendiarem. Os Mouros
tomaram Miranda do Corvo e, a 7 de Junho de 1116, o Castelo
de Santa Eulália, a jusante de Montemor-o-Velho. Em
Fevereiro de 1117, o cardeal Boso referia-se a estes
acontecimentos informando os bispos reunidos em Burgos de
que os Sarracenos tinham incendiado os arrabaldes de
Coimbra e matado milhares de cristãos. A rainha D. Teresa
mal tinha tido tempo de se pôr a saívo dentro das muralhas
da cidade. O ataque fora dirigido, segundo parece, pelo
próprio Ali ben Yusuf, emir de Marrocos. No Verão seguinte,
o emir voltou ao Ocidente para cercar Coimbra durante três
semanas, sem conseguir aí entrar.
Os violentos ataques dos Muçulmanos tiraram, pois, a D.
Teresa a possibilidade de intervir com algum êxito na
política galega, afastando, nesse momento, a hipótese de um
matrimónio com Bermudo Peres e a sua instalação na Galiza.
Devia desejar, pelo contrário, obter o auxílio dos
exércitos de além-Minho, para reforçar a defesa da
fronteira do Mondego. De facto, talvez se deva atribuir a
esta época a fixação em Portugal de alguns membros da
nobreza galega, que deram origem a linhagens tão
importantes como, por exemplo, a de Palmeira, ascendente
dos Pereiras.

48
Os Galegos, por sua vez, também pareciam demasiado
ocupados com os seus problemas internos para organizarem
uma intervenção decisiva na fronteira do Mondego. D. Urraca
voltou à Galiza na Primavera de 1117 e assinou um acordo
com os representantes de Afonso Raimundes, reconhecendo a
sua autoridade sobre Galiza e Toledo e reservando para si o
governo de Leão e do resto de Castela. Quando entrou em
Compostela, os burgueses, a quem antes tinha feito grandes
promessas de os libertar do jugo do arcebispo, sentiram-se
abandonados por ela e iniciaram uma revolta aberta.
Insultaram-na, agrediram-na fisicamente e por pouco não a
mataram. O arcebispo foi também gravemente ameaçado, mas
conseguiu fugir. Encerrados, porém, dentro da cidade e sem
qualquer auxílio externo, os amotinados tiveram de se
submeter à coligação militar que os cercava. Os seus
cabecilhas foram severamente castigados. As violências
praticadas pelos cidadãos acabaram por congraçar os antigos
rivais, ou seja, a rainha, os Travas e o arcebispo.
Restabelecida, assim, a ordem interna, Gelmírez deve
ter-se consagrado durante bastante tempo à consolidação da
sua autoridade senhorial em Compostela. Foi talvez por isso
que não conseguiu intervir na eleição de um novo arcebispo
de Braga, Paio Mendes, membro de uma importante família da
nobreza portucalense.
Este facto tem a maior importância. Significa que,
depois do período em que as principais dioceses portuguesas
foram entregues a bispos franceses, se podiam já encontrar,
entre os membros da aristocracia local, clérigos da
confiança das autoridades romanas. Estava ultrapassada a
fase que, nos termos actuais, se poderia apelidar de
«colonialismo franco». Os altos postos da Igreja passaram a
ser confiados a clérigos pertencentes às famílias nobres da
região, o que preparava o terreno para uma coordenação
entre a política eclesiástica local e a intervenção da
classe dominante na mesma zona. Se Diego Gelmírez tivera de
contar com uma vigorosa resistência por parte de dois
estrangeiros, Geraldo e Maurício, ao pretender diminuir os
direitos metropolíticos de Braga, não encontrou menor
oposição a partir de 1118, quando a mesma sé veio a ser
ocupada por um português.
Ora, durante o mês de Janeiro de 1119, depois do
efémero pontificado de Gelásio II, foi eleito papa o
arcebispo de Vienne, com o nome de Calisto II. Como vimos
ao tratar da família dos condes de Borgonha, era irmão do
falecido conde D. Raimundo e, portanto, tio paterno de
Afonso Raimundes, o jovem rei da Galiza. Gelmírez
considerou a ocasião propícia para obter favores do
pontífice recém-eleito. Recorrendo de novo à habilidade do
bispo do Porto, que tão bons serviços lhe havia prestado já
na corte pontifícia, convenceu o papa de que ele era o
melhor protector de Afonso Raimundes e obteve para Santiago
de Compostela os tão ambicionados privilégios. Pela bula de
17 de Fevereiro de 1120, atribuiu-lhe os direitos
metropolíticos não de Braga, mas de Mérida, então ainda sob
o jugo muçulmano. A bula não deixava de mencionar
expressamente como dioceses sufragâneas as de Coimbra e de
Salamanca.
No dia seguinte, o papa nomeava-o legado da Sé
Apostólica sobre as províncias eclesiásticas de Braga e de
Mérida e, alguns dias mais tarde, suspendia Paio Mendes das
suas funções de arcebispo de Braga. Era difícil esperar uma
vitória mais total para o arcebispo de Compostela.
Foi provavelmente por essa altura que Gelmírez
considerou necessário ver reforçados os seus poderes
políticos sobre a Galiza, conseguindo, para isso, a
protecção de D. Urraca, mas suscitando, como era de
esperar, a oposição do conde Pedro Froilaz. Prevalecendo-se
de uma posição de força, Gelmírez chegou a mandar destruir
o Castelo de Raneta, na terra de Taveirós, que Fernão Peres
de Trava, filho do conde, mandara edificar. Depois incitou
a rainha de Leão a romper hostilidades contra sua irmã, que
dominava no condado de Toronho, talvez desde 1116. De
facto, Urraca, acompanhada por Gelmírez e as suas tropas,
invadiu Portugal e saqueou todo o território. D. Teresa
refugiou-se no Castelo de Lanhoso, onde acabou por se
sujeitar à irmã. Foi talvez por esta ocasião que D. Urraca
confirmou o couto de Braga a favor do seu arcebispo e que
D. Teresa se viu obrigada a conceder também uma carta de
couto sobre a cidade do Porto em favor do bispo D. Hugo,
então ainda ausente na corte pontifícia.
A humilhação de D. Teresa não durou muito. A acreditar
na Historia compostelana, que relata com minúcia a maioria
destes acontecimentos, urdiu uma intriga tão certeira que
conseguiu separar os seus adversários. Fez as pazes com a
irmã e levou-a a prender Gelmírez, embora por pouco tempo,
obteve a concessão do senhorio de Orense e reconciliou
Urraca com Pedro Froilaz e Afonso Raimundes.

49
Os Travas na corte portuguesa

Assim, Diego Gelmírez, que obtivera um sucesso tão


estrondoso na corte pontifícia no ano de Os Travas 1120,
perdeu pouco depois algumas das suas vantagens na questão
com Braga, em grande parte na corte devido à evolução
política dos acontecimentos. Por um lado, verifica-se uma
nova e decisiva portuguesa aproximação entre os Travas e D.
Teresa, por intermédio de Fernão Peres. De facto, o filho
de Pedro Froilaz encontra-se junto de D. Teresa a partir de
Janeiro de 1121 e passa a desempenhar importantes funções
em Portugal. O arcebispo de Braga, que tivera de receber D.
Urraca na sua igreja e acompanhar Gelmírez a Compostela
durante a invasão do ano anterior, dírigiu-se a Roma para
defender os seus direitos contra as prepotências do seu
colega compostelano. Em Junho de 1121, conseguiu que o papa
lhe reconhecesse os direitos metropolíticos sobre as
dioceses de Viseu, Lamego e Idanha, todas elas pertencentes
outrora à província de Mérida, e que deviam ser, portanto,
teoricamente, sufragâneas de Compostela.
A atribuição de funções especiais a Fernão Peres de
Trava justificava-se, no plano prático, pela necessidade de
reforçar o comando guerreiro da fronteira do Mondego,
depois das perigosas incursões de 1116 e 1117. Aproximou de
novo a «rainha» dos Travas, justificou a sua coabitação
pessoal e foi também selada pelo casamento de Urraca
Henriques, filha de D. Teresa, com Bermudo Peres, o qual se
realizou nesse mesmo ano de 1121 ou no seguinte. As duas
famílias não temiam muito as censuras eclesiásticas que,
segundo o direito canónico, deveriam cair sobre este
casamento duplamente incestuoso, se é verdade que se dera
antes uma união entre Teresa e o irmão do seu amante, que
passava agora a ser seu genro.
Fernão Peres de Trava começou, de facto, a desempenhar
funções importantes no Condado Portucalense. Num documento
figura como fidelis da «rainha», o que implica uma especial
relação de vassalagem. Noutro, como conde com autoridade
sobre Coimbra e Portugal. Noutro, ainda, como «dominando em
Coimbra». Se atendermos ao segundo, não se pode deixar de
notar que a sua autoridade coincidiria, nesse caso, com
todo o território outrora governado pelo conde D. Henrique.
Se o título fosse oficial, só lhe poderia advir de
concessão expressa por parte de D. Urraca ou de casamento
com D. Teresa.
De tudo isto, e das circunstâncias que precederam a
vinda de Fernão Peres para Portugal — isto é, a invasão do
nosso território por Urraca e a posterior reconciliação das
duas irmãs, com o acordo de Pedro Froilaz e dos nobres
galegos —, deduz-se, aparentemente, que essa vinda e o
desempenho das referidas funções podiam resultar justamente
de tal acordo. Não se trataria, portanto, de um
acontecimento sentimental, como imaginaram os nossos
historiadores, desde que Herculano lhe deu uma
interpretação romântica, mas de um acto com alcance e
objectivos muito precisos no xadrez da conjuntura
peninsular.
O que se projectava devia ser, com efeito, um
verdadeiro casamento. Na sequência da interpretação
romântica e personalizada que se tornou tradicional na
nossa historiografia, abriu-se também uma querela
interpretativa, para saber se as relações entre Teresa e
Fernão Peres teriam sido lícitas ou de mero concubinato.
Abstraindo da curiosidade que costuma rodear os problemas
de alcova e que moveram quase sempre os historiadores desta
questão, deve-se reconhecer que o problema tem maior
importância do que o da averiguação sentimental ou moral,
devido justamente ao alcance político dos interesses em
causa. Para o resolver, não podemos julgar o passado com as
regras de comportamento moral da nossa época, que, por esta
altura, estavam longe de ser unanimemente aceites.
Façamos notar, antes de mais, a ambiguidade das fontes.
Apenas uma, falsa ou falsificada, mas do fim do século XII
— suficientemente próxima dos acontecimentos para se dever
ter em conta o seu testemunho —, um documento do mosteiro
galego de Montederramo, fala num verdadeiro elo conjugal
(coniux, viro meo). Duas outras fontes clericais consideram
ilícitas as relações. São a História compostelana, quase
contemporânea dos acontecimentos, que as classifica de
«adultério», e a Vida de S. Teotónio, redigida em Santa
Cruz de Coimbra depois de meados do século XII, que as diz
«ilegítimas». Quanto aos documentos autênticos da época,
apresentam frequentemente juntos os protagonistas desta
questão a realizarem os mesmos actos jurídicos, mas
mantendo ela o título de «rainha» e ele o de conde, e sem
mencionarem qualquer vínculo conjugal.
Trata-se, por certo, de um caso típico de concepções
diferentes acerca das condições em que se podia realizar um
casamento reconhecido pela Igreja. Com efeito, certos usos
matrimoniais praticados pelos leigos foram postos em causa
pelo clero nos séculos XI e XII. As divergências deram

50
lugar a numerosas questões, antes de a concepção clerical
acabar por prevalecer. Assim, para os leigos de uma época
em que não se tinha ainda generalizado o casamento solene,
com uma bênção litúrgica, a união entre D. Teresa e Fernão
Peres não era uma questão religiosa, mas civil, e podia,
portanto, considerar-se um verdadeiro casamento, mesmo que
fosse ainda viva a sua primeira mulher, como diz a Vida de
S. Teotónio. De facto, as separações conjugais eram
frequentes na época, sobretudo se as famílias dos cônjuges
chegavam a acordo sobre essa decisão. Mas as autoridades
eclesiásticas não podiam benzer esta união, quer em virtude
do casamento anterior, excepto se decretavam previamente a
legitimidade da separação, quer sobretudo, neste caso, em
virtude do seu carácter gravemente incestuoso, a
verificar-se a hipótese de ter antes havido relações entre
D. Teresa e Bermudo Peres de Trava.
Compreendem-se bem, portanto, as reservas com que os
clérigos viam este projecto matrimonial, mesmo que
porventura estivessem de acordo com os seus objectivos
políticos.
Acresce que o projecto político em que estavam
interessados os Travas, e talvez também D. Urraca, não
devia agradar a Gelmírez, que via assim colocado em lugar
da maior importância o mais activo filho do seu rival Pedro
Froilaz. Com efeito, aquela aliança elevava-o até ao nível
da filha do glorioso imperador Afonso VI e, ao mesmo tempo,
conferia-lhe a ela um poder e uma autoridade que sozinha
não podia fazer respeitar. Se o projecto se concretizasse,
deitaria por terra as suas ambições temporais. Além das
razões canónicas, Gelmírez tinha, portanto, razões pessoais
para se opor a um casamento entre Teresa e Fernão Peres. De
facto, a animosidade dos meios afectos ao arcebispo
transparece bem nas odiosas expressões com as quais
âHistoria compostelana procura denegrir a memória da
«rainha».
Como bom político, no entanto, Gelmírez não deixou de
procurar tirar algum partido da situação. Em pleno clima de
acordo entre ele e os Travas, como foi o da Primavera e do
Verão de 1122, os bispos do Porto e de Coimbra realizaram
no mês de Abril um solene acordo a que assistiram D. Teresa
e Fernão Peres. Resultava de uma manobra do arcebispo para
criar em Portugal uma frente comum contra o arcebispo de
Braga. Como vimos, ele obtivera de Roma o reconhecimento
dos seus direitos. Ao voltar a Portugal, encontrava no país
uma situação que lhe era pouco favorável; por isso, em vez
de se dirigir à sua diocese, ficou em Zamora pelo menos
desde Julho de 1121 até Março do ano seguinte. É possível
que temesse qualquer violência por parte dos seus inimigos,
como o contexto dos acontecimentos permite supor.
Mas as ambições de Gelmírez e dos Travas desencadearam
uma viva reacção por parte das principais famílias nobres
do Condado Portucalense, que receberam com maior
desconfiança a solução política encontrada sem o seu
acordo. Ela fazia descer a «sua» «rainha» ao nível da
nobreza galega, por mais prestigiosa que fosse a posição do
filho de Pedro Froilaz, e relegava-as a elas para um plano
inferior, colocando-as implicitamente abaixo dos Travas.
Subordinava os seus interesses aos dos Galegos e colocava
um estranho à frente do condado.

D. Teresa, de 1121 a 1128

Vejamos os acontecimentos que se seguiram. No campo


religioso, deu-se a prisão do arcebispo de Braga, decerto
no Verão de 1122, não se sabe se em Braga ou em Zamora. O
papa interveio em bula de Setembro de 1122, para ordenar a
D. Teresa que o libertasse. A partir de Novembro do mesmo
ano, o arcebispo passa a confirmar documentos da
chancelaria condal. Não se sabe qual a razão ou pretexto
que deu origem à prisão, mas, no contexto do ano de 1122, é
provável que Diego Gelmírez tivesse persuadido a «rainha»
de que Paio Mendes conspirava contra ela ou então que este
se tivesse pronunciado publicamente contra o seu casamento.
Mas estas dificuldades foram aparentemente removidas.
Poucos meses antes, como vimos, o bispo de Coimbra, que
era ainda Gonçalo Pais de Paiva, aceitara as directrizes de
Gelmírez e chegara a acordo com Hugo do Porto. Mas a partir
de 1124, pelo menos, voltou a tomar o partido do arcebispo
de Toledo, que entretanto havia recomeçado a sua luta
contra o compostelano. Os dois prelados, o de Braga e o de
Coimbra, tinham agora um inimigo comum.
No campo da nobreza, verificamos, logo em 1121, o
afastamento da corte dos senhores de Sousa, Soeiro e
Gonçalo Mendes; dos de Ribadouro, Ermígio, Egas e Mendo
Moniz; do da Maia, Paio Soares; e ainda de Sancho Nunes de
Barbosa, um nobre de origem galega. Pertenciam às famílias

51
mais poderosas e prestigiadas do condado, que tinham sido
favorecidos pelo conde D. Henrique com os postos de maior
confiança. Os documentos condais em que antes apareciam
como confirmantes deixam de mencionar os seus nomes.
Depois, a partir de 1125, desaparecem também da corte
os senhores da Silva, os Ramirões, os de Lanhoso, os
Guedões, os da Palmeira (de origem galega), os de Azevedo,
os de Mamei e talvez os Velhos. Com a «rainha» figuram
apenas o irmão de Sancho Nunes de Barbosa, Gomes Nunes, e
os senhores de Baião, parentes do bispo Gonçalo Pais de
Coimbra.
Neste quadro, que atitude-tomou Afonso Henriques, que
por essa altura tinha já mais de 14 anos e era, portanto,
«maior»? Com base nos Anais de D. Afonso, tem-se admitido
que se pusesse quase imediatamente ao lado dos
descontentes, porque a primeira notícia desta fonte declara
que se armou a si próprio cavaleiro em São Salvador de
Zamora no dia de Pentecostes de 1125. Este acto, a ser
verídico, só podia significar uma afirmação de
independência. A crítica moderna não pôs até aqui em dúvida
senão a data, considerando que 1122 seria mais verosímil,
por nesse ano estar em Zamora o arcebispo de Braga. De
dedução em dedução, Torquato Soares considerou que Paio
Mendes teria trazido a Zamora o pupilo de seu irmão Soeiro
Mendes da Maia, para com esta cerimónia afirmar os seus
direitos à sucessão no condado. Esta construção tem vários
pontos frágeis: Soeiro Mendes tinha morrido há muito, não é
certo que o arcebispo fosse irmão dele e não há qualquer
base textual para contestar a data de 1125.
Por outro lado, não se tiveram em conta as condições em
que o texto foi redigido. O cónego regrante que o escreveu,
à volta de 1185, pretendia exaltar a memória do primeiro
rei de Portugal e mostrar que era um instrumento de Deus.
Atribuir-lhe a iniciativa de se armar a si próprio
cavaleiro era uma maneira simbólica de exprimir a sua
predestinação desde a juventude. O que surpreende é que a
historiografia moderna não tenha achado este facto
inverosímil, quer em 1122 quer em 1125, ou mesmo mais
tarde, sobretudo se a acção se situa em Zamora. Afonso VII
fez o mesmo em Santiago de Compostela em 1124, mas incitado
por Gelmírez, com o evidente propósito de o libertar da
dependência do seu tutor, Pedro Froilaz. Não é verosímil
que Afonso Henriques tenha tomado uma iniciativa semelhante
só com o apoio dos barões ou mesmo do arcebispo de Braga,
num lugar onde eles tinham tão pouca autoridade.
Todavia, é justamente o facto insólito de se apontar o
lugar de Zamora para este acontecimento que mostra que não
deve resultar de invenção pura. Se o fosse, a acção
situar-se-ia em Guimarães, Braga ou Coimbra. O analista
modificou certamente uma informação verídica para atingir
os seus objectivos redactoriais. Admitindo que Afonso
Henriques tivesse sido armado cavaleiro em Zamora em 1125
(portanto, depois de Afonso Raimundes), temos de aceitar
que o fizesse com o acordo de sua mãe e porventura de
Fernão Peres e de D. Urraca, ou do próprio Afonso
Raimundes.
De facto, os documentos de D. Teresa trazem geralmente
a confirmação de Afonso Henriques, muitas vezes antes da de
Fernão Peres de Trava, desde 1120, e sem qualquer
interrupção até Maio de 1127. Até lá, não se pode apontar
qualquer indício seguro de um conflito entre o infante e
sua mãe ou Fernão Peres. Quem sabe, até, se o infante não
teria sido armado cavaleiro em Zamora em Abril de 1127,
quando a rainha e o conde ali se encontraram com Afonso
VII, já rei, para firmarem um pacto de tréguas, de que
falaremos mais tarde. Se assim fosse, o redactor teria
antedatado o acontecimento, para o aproximar mais do ano em
que o príncipe atingira a maioridade.
O mais verosímil, portanto, é que o afastamento dos
nobres de Entre Douro e Minho, que se fez progressivamente
a partir de 1121 e se intensificou em 1125, soem 1127 se
tivesse transformado em revolta aberta, justamente a partir
do momento em que se lhes juntou o infante D. Afonso.

A revolta dos barões portucalenses

Que acontecimentos teriam provocado a adesão do infante


à revolta dos nobres? As datas permitem sugerir a hipótese
de se tratar de uma consequência dos factos desencadeados
depois da morte de D. Urraca, em Março de 1126. Afonso VII
foi, no mesmo mês, coroado rei de Leão e Castela. Pouco
depois, vários senhores do reino, entre os quais alguns
galegos, revoltaram-se contra ele, por «temerem que o novo
rei lhes tirasse as suas honores», como diz a Historia
compostelana.

52
Um deles, pelo menos, foi vencido pelo próprio
arcebispo de Santiago, com as suas tropas, talvez já em
virtude de ter sido encarregado por Afonso VII de governar
a Galiza em seu nome, como informa a mesma crónica a
propósito de acontecimentos posteriores. Gelmírez
adiantava-se assim a Afonso VII, que nessa altura teve de
impor a sua autoridade aos súbditos do reino de Leão, que
não aceitaram de boa mente a sua coroação. Terminada essa
campanha, o rei dirigiu-se a Zamora, em Abril de 1127,
onde, como vimos, se encontrou com D. Teresa e Fernão
Peres, e estabeleceu com eles «um acordo de paz por tempo
determinado». Estes termos, usados pela Chronica Adefonsi
imperatoris para designar o sucedido, sugerem que também
eles não tinham aceitado a sua autoridade na Galiza, se
levantaram contra ele ou contra o seu representante
(Gelmírez), mas aceitaram temporariamente as pazes,
reservando para mais tarde a negociação de um acordo
completo. Esta interpretação tem a sua lógica. O conde
Pedro Froilaz, que morreu pouco depois, em 1128, tinha já
deixado de ser tutor de Afonso VII e perdeu, assim, a sua
supremacia sobre a Galiza; mas Fernão Peres pretendia
exercer um papel análogo ao de seu pai, como consorte de
Teresa e como pretendente ao trono de uma Galiza
independente, solução que não podia agradar a Gelmírez. As
tréguas deixavam este problema em suspenso, enquanto Afonso
VII procurava recuperar a sua autoridade sobre as cidades
castelhanas que ainda permaneciam nas mãos dos Aragoneses.
Assinado o acordo, dirigiu-se a Castela e começou a
empreender uma grande acção militar contra o rei de Aragão,
mas veio em breve a entender-se com ele no vale de Tâmara,
em Julho de 1127. Pôde, então, regressar ao extremo
ocidental do seu reino, para aí firmar a sua soberania de
maneira mais duradoira.
Em Setembro ou Outubro do mesmo ano percorria a Galiza
e, segundo a Historia compostelana, tratou de submeter pela
força sua tia D. Teresa, que, pelos vistos, se recusava a
prestar-lhe os serviços de vassalagem e pretendia exercer
autoridade não só sobre Portugal, mas também sobre o
condado de Toronho.
Situa-se, decerto, nesta ocasião o cerco de Guimarães,
que inspirou o episódio central da gesta de Egas Moniz,
redigida século e meio mais tarde e que mostra Afonso
Henriques como principal responsável pela resistência
oferecida a Afonso VII durante a sua expedição a Portugal
em Setembro ou Outubro de 1127, embora a referida gesta
altere o sentido dos acontecimentos, ao pressupor uma
autoridade pessoal do infante sobre o condado, quando ele
apenas agia em nome da mãe. É-se, assim, levado a admitir
um segundo cerco de Guimarães posterior a 1128, mas este
provavelmente nunca existiu. De facto, sabe-se hoje em que
circunstâncias foi redigida esta «estória»: possivelmente
deve-se a João Soares Coelho, o trovador da corte de Afonso
III e seu privado, que se baseou em episódios dispersos das
tradições relativas aos anos de 1127 e 1128, atribuindo ao
seu antepassado Egas Moniz feitos que ele decerto nunca
praticou, com o intuito de exaltar a sua própria família.
A documentação coeva confirma esta interpretação. De
facto, ainda antes da Batalha de São Mamede, em Abril de
1128, ao confirmar o foral de Guimarães dado por seu pai,
Afonso Henriques declarava pretender favorecer os burgueses
que com ele tinham suportado male et pena. Referia-se,
evidentemente, às atribulações sofridas pela população
durante o cerco de Guimarães por Afonso VII. Só se pode
compreender o acto de confirmação e esta alusão se fosse o
próprio Afonso Henriques a organizar a defesa da cidade.
Um ano depois, em Maio de 1129, o mesmo infante
agradecia também a Mendo Fernandes de Marnel e a Soeiro
Mendes de Sousa, o Grosso, cunhado daquele, o auxílio
prestado no cerco de Guimarães pelo rei Afonso, seu
consanguíneo. Como foi verificado já por Herculano, é
difícil admitir uma nova expedição de Afonso VII a Portugal
e um novo cerco de Guimarães entre Junho de 1128 e Maio de
1129. As objecções de Gonzaga de Azevedo a esta opinião não
são procedentes. O mais provável é que naquele documento se
aluda ainda aos acontecimentos de 1127.
A oposição aos invasores contou também com uma
empenhada colaboração dos nobres portucalenses,
particularmente daqueles que haviam já abandonado a corte
em 1121 e em 1125, entre os quais sobressaíam os senhores
de Ribadouro, da Maia, de Sousa e de Marnel, que obtiveram
o apoio de numerosos infanções de categoria imediatamente
inferior nas regiões do Cávado e do Vouga. Não admira que
Afonso Henriques, já armado cavaleiro desde 1125 ou 1127,
tivesse desempenhado nestes acontecimentos um papel de

53
relevo, em contraste, decerto, com a passividade de Fernão
Peres, que talvez se considerasse obrigado pelas tréguas
assinadas em Zamora poucos meses antes.
Esta interpretação dos factos apoia-se também nas
tradições orais registadas e resumidas por um texto perdido
a que Diego Catalán Menéndez Pidal chamou Crónica
galego-portuguesa de Espanha e de Portugal, mas do qual se
conserva um fragmento transcrito por várias obras dos
séculos XIV a XVI. Segundo ele, Afonso Henriques, antes de
São Mamede, teria «furtado» a sua mãe vários castelos,
entre eles o de Neiva e o da Feira, na Terra de Santa
Maria. De facto, puderam-se encontrar confirmações
documentais quanto ao primeiro. Entre 1940 e 1960 e em 1990
discutiu-se vivamente acerca do segundo. Pela minha parte,
considero a tradição verídica: não é confusão com o Castelo
de Faria (cuja revolta também está documentada). O facto é
importante, porque exprime a extensão geográfica dos apoios
do infante. Com efeito, o «tenente» do território de Santa
Maria deve ter sido afastado do governo do distrito de
Coimbra pelo próprio Fernão Peres de Trava, o que o levaria
a associar-se precocemente aos revoltosos.
No último dia de Março de 1128, os contendores
tentariam ainda chegar a acordo, talvez por iniciativa dos
senhores de Baião, fiéis a D. Teresa, uma vez que nesse dia
se encontram alguns dos revoltosos a confirmar um documento
de D. Teresa, redigido provavelmente em Vila Nova de Paiva.
Mas se alguma pacificação se conseguiu neste momento, os
acontecimentos não deixaram de evoluir para uma
confrontação violenta entre as forças em presença.

São Mamede

Como se sabe, as tropas de Afonso Henriques e as de


Fernão Peres defrontaram-se em São Mamede, perto de
Guimarães, no dia de S. João Baptista de 1128, tendo o
conde saído derrotado, Era uma data carregada de
simbolismo. A mutação cósmica do solstício marcava uma
decisiva mudança política. O santo que nesse dia se
venerava anunciara a vinda de Cristo. Parecia agora
proclamar o aparecimento de um novo reino, destinado a
tomar na Cristandade um lugar de relevo. O cónego regrante
de Santa Cruz de Coimbra, que registou cuidadosamente a
festa litúrgica celebrada nesse dia, pretendia com isso
sublinhar a importância fundamental do acontecimento e
colocá-lo na órbita das intervenções divinas. Deus não
podia deixar de se pôr ao lado do jovem cavaleiro para
afastar do Poder os adúlteros e incestuosos, que não
acatavam as prescrições da Igreja acerca do casamento. Já
antes o santo fundador do seu mosteiro, S. Teotónio, quando
vivia em Viseu, os havia expulsado da Igreja, por viverem
em pecado.
Independentemente das opiniões dos regrantes de Santa
Cruz, não pode deixar de se reconhecer que se tratava, de
facto, de uma batalha decisiva. Não tanto por dela ter
resultado a substituição dos detentores do Poder no Condado
Portucalense, mas por, pela primeira vez no seu espaço, se
terem conjugado de tal modo as forças sociais que foi
necessário alterar a sua anterior relação com o poder
político. Quem venceu em São Mamede não foi apenas Afonso
Henriques, mas, em primeiro lugar, os barões portucalenses,
que rejeitaram a autoridade dos Travas no condado e
escolheram o infante para seu chefe. Ao afastarem Fernão
Peres, recusavam-se a aceitar a política da alta nobreza
galega e do arcebispo de Compostela e proclamavam a
inviabilidade de um reino que englobasse a Galiza e
Portugal.
A importância deste acontecimento resulta de se tratar
da coligação de um número importante de nobres e de a sua
vitória contribuir decisivamente para consolidar os
vínculos de solidariedade que os uniam. Procediam do mesmo
nível social, o dos infanções, embora alguns deles, os que
assumiram a chefia da coligação, tivessem já alcançado a
posição superior de ricos-homens. As circunstâncias
transformaram a iniciativa da revolta contra Fernão Peres
de Trava num movimento irreversível, que explica, mais do
que qualquer outro acontecimento ou intervenção pessoal, as
razões imediatas do fenómeno da independência política do
Condado Portucalense, como entidade que precedeu o reino de
Portugal. Não deixa de ser curioso verificar que as mais
poderosas forças do Ocidente leonês, as dos Travas e de
Diego Gelmírez, não tivessem, afinal, dado origem a nenhum
movimento duradoiro, enquanto as dos barões portucalenses,
certamente muito inferiores às deles em riqueza e
prestígio, desencadearam uma irresistível corrente, capaz
de subsistir por si mesma e de vencer todas as tentativas
ulteriores de reabsorção.

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São Mamede e a independência para com a Galiza

Quando os barões portucalenses venceram Fernão Peres


de Trava e D. Teresa em São Mamede, talvez pretendessem
apenas obrigá-los a ceder o governo do Condado Portucalense
ao príncipe herdeiro, que já desde 1124 tinha idade
suficiente para desempenhar tais funções.
Afonso Henriques tomou então a sua autoridade com todo
o vigor. Obtido o sucesso militar, não se esqueceu de que
era neto do «imperador» das Espanhas, Afonso VI, tal como
sua mãe, que desde 1117 começara a usar o título de
«rainha». Não admira, por isso, que ostentasse, até tomar o
título de rei, os de «infante» ou de «príncipe», e nunca o
de «conde». Exprimia, assim, a sua ascendência régia e
reivindicava uma dignidade superior à dos condes e o
direito de, eventualmente, suceder nalgum dos Estados
governados por seu avô. Exprimia a mesma pretensão ao
utilizar, nos diplomas que implicavam decisões mais
claramente ligadas com as prerrogativas da soberania,
fórmulas que assimilam a sua autoridade à dos reis, mesmo
antes de se proclamar rei como veremos noutro capítulo. Não
pode também deixar de se notar que os diplomas de Afonso
Henriques manifestam constantemente, desde o princípio do
seu governo, a referência a Portugal, como determinativo do
grau hierárquico que usava, apelidando-se a si próprio como
«príncipe» ou «infante de Portugal» ou «dos Portugueses»,
uso que era absolutamente excepcional nas intitulações dos
seus ascendentes.
Uma coisa, porém, era a dignidade, outra a
independência: se o rei de Leão podia, até certo ponto,
transigir com as pretensões de seu primo quanto à primeira,
que lhe era dada pelo sangue, não podia aceitar facilmente
a segunda, que implicava uma soberania autónoma. Deixava,
portanto, que ele proclamasse a sua ascendência régia e
exercesse actos de soberania, contanto que reconhecesse a
sua condição de vassalo. Devia considerar a sua autoridade
como emanada da dele, rei de Leão; daí decorria a obrigação
de lhe prestar os serviços de auxílio e de conselho, quando
para tal fosse requerido. Sendo assim, não podemos deixar
de tentar resolver o problema da vassalagem de Afonso
Henriques ao rei de Leão, que os historiadores modernos
discutiram acaloradamente até aos anos 60.
Antes, porém, de justificar a nossa opinião a este
respeito, vejamos a sequência dos acontecimentos, a partir
dos quais se poderá construir uma interpretação
fundamentada.
A intervenção de Afonso VII na Galiza e em Portugal, em
1127, destinava-se a impor a sua autoridade, contestada por
alguns condes, entre os quais também, decerto, Fernão Peres
de Trava. Do seu ponto de vista, o caso português não se
devia distinguir muito do da Galiza. Os acordos que então
estabeleceu com D. Teresa e Fernão Peres deviam constituir
uma garantia de submissão de ambos os territórios. Mas, com
a Batalha de São Mamede, a situação mudou por completo. De
resto, verificou-se também por essa altura o progressivo
desentendimento entre Gelmírez e o rei e a própria
decadência do seu prestígio político e religioso. Assim, o
destino político de Portugal, até aí intimamente unido ao
da Galiza, passava agora a distinguir-se nitidamente do
dela.
Que se passou depois de São Mamede? Não é provável que
Afonso VII tivesse voltado a Portugal. Quando lhe chegou a
notícia da batalha devia estar já a preparar o seu
casamento com Berengária, filha do conde de Barcelona, que
se realizou em Saldaria em Novembro de 1128. Deve ter
esperado a reacção dos Travas à revolta portucalense. Por
outro lado, não lhe devia desagradar que a atribuição do
Poder a Afonso Henriques transformasse automaticamente o
problema da Galiza numa questão distinta da de Portugal.
Reduziam-se, assim, as possibilidades de se reconstituir o
antigo reino de seu tio-avô Garcia.
Imediatamente depois do seu casamento, a revolta dos
condes Pedro e Rodrigo de Lara retinha-o em Castela durante
os anos de 1129 e 1130. Logo a seguir, a morte de D.
Teresa, no princípio de Novembro de 1130, impunha
automaticamente a legitimidade da sucessão do infante e a
exclusão de Fernão Peres de Trava; este havia sido apenas
seu consorte e, ainda assim, de maneira contestável; tinha
dela uma filha, mas nenhum descendente do sexo masculino.
Mais estranha é a aparente passividade dos galegos, tanto
de Fernão Peres como de Diego Gelmírez; mas talvez a sua
atenção estivesse demasiado polarizada pela definição das
suas relações com Afonso VII para tentarem recuperar a
influência perdida em Portugal.
Afonso Henriques, todavia, não se contentava facilmente
com o exercício da sua autoridade sobre o território a sul
do rio Minho. Pretendia também estendê-la, tal como D.
Teresa tentara fazer, sobre os condados de Toronho e de
Límia. Não me parece necessário, para o admitir, supor que
tivesse dirigido expedições de ataque a esses territórios,
apesar do que a este respeito diz a suspeita Historia

55
compostelana, que lhe atribui a conquista de Tui pelas
armas. O mais provável é que, aproveitando as rivalidades
entre os representantes da nobreza galega, procurasse
atrair a si os condes desses territórios, como, de facto,
parece ter acontecido para o de Toronho, com o conde Gomes
Nunes, e para o de Límia, com Rodrigo Peres Veloso. Este
aderiu a ele pouco depois de São Mamede; aquele talvez se
tivesse durante algum tempo mantido fiel a D. Teresa, junto
da qual sempre estivera, mesmo durante o afastamento dos
senhores de Ribadouro, de Sousa e da Maia, mas viria depois
a colocar-se ao lado de Afonso Henriques, fixar-se-ia a sul
do Minho e seria o fundador da casa de Barbosa em Portugal.
Afonso Henriques procurou, portanto, afirmar a sua
soberania na zona de Límia, construindo aí o Castelo de
Celmes. Este facto, segundo a Crónica do imperador Afonso,
suscitou uma expedição de Afonso VII a Portugal no ano de
1130, a que se associaram, segundo a Historia compostelana,
o arcebispo Gelmírez e alguns condes galegos, mas com a
oposição, pelo menos, dos burgueses de Santiago, que se
teriam recusado a colaborar. É de admitir que Afonso VII se
tivesse limitado a destruir o castelo construído sem o seu
acordo e a exigir a vassalagem dos condes de Límia e de
Toronho. Talvez não quisesse demorar-se muito tempo na
região porque estava então demasiado ocupado em reprimir a
revolta castelhana dos senhores de Lara.
Por outro lado, Fernão Peres passava a interessar-se
mais pelas suas relações com Afonso VII, aparentemente para
tentar prolongar junto dele a anterior influência de seu
pai. Efectivamente, acompanhou-o nas suas mais importantes
expedições guerreiras, pelo menos a partir de 1139, e veio
a ser o aio de seu filho Fernando II de Leão. Antes, porém,
de começar a frequentar assiduamente a corte, deve ter
procurado manter a sua autoridade na Galiza, conseguindo
até eliminar a concorrência de Gelmírez. O arcebispo era
cada vez mais considerado pelo rei como uma potência
financeira, cujos recursos monetários tratava de explorar,
mesmo contra sua vontade.
A resignação de Fernão Peres quanto à perda de
influência em Portugal exprime-se bem quando, alguns meses
depois da morte de D. Teresa, vai a Coimbra e aí, perante o
seu antigo adversário, o arcebispo Paio Mendes, o conde
Afonso de Celanova, o arcediago Telo (que por esse tempo
projectava para breve a fundação de Santa Cruz de Coimbra)
e alguns outros nobres e clérigos, oferece à Sé de Coimbra
uma propriedade em São Pedro do Sul, que lhe tinha sido
dada por D. Teresa e fora delimitada pelo próprio infante
D. Afonso. Queria, assim, sufragar a alma da sua consorte.
Esta presença de Fernão Peres em terra portuguesa
verifica-se pouco depois da revolta de seu irmão Bermudo no
Castelo de Seia, se acreditarmos nos Anais de D. Afonso,
rei de Portugal. De facto, existe um documento de Maio de
1131 em que o infante oferece a vassalos seus os bens que
os rebeldes João Viegas e Pêro Pais Carofa tinham em Viseu,
por eles, contra sua vontade, se terem apoderado do Castelo
de Seia. Todavia, Bermudo Peres, ainda em Outubro do mesmo
ano, aparece na corte de Afonso Henriques e volta a ela
noutras ocasiões. Pergunta-se, por isso, se serão exactas
as informações dos Anais. Seja como for, a confirmar-se a
sua acusação, a revolta não deve ter assumido a importância
que vários autores lhe atribuem, considerando-a como a
última tentativa dos Travas para intervirem na política
portucalense.

O tratado de Tui e o recontro de Valdevez

Restabelecida a soberania de Afonso VII em Límia e


Toronho, directamente ou por intermédio dos seus
representantes, não parece que se preocupasse mais com a
situação do Condado Portucalense até 1137, apesar de em
1132 Afonso Henriques ter acolhido na sua corte o conde
Gonçalo Pais das Astúrias, revoltado contra ele e que aqui
veio buscar refúgio. No Outono de 1131, dedica-se a ocupar
Castrojeriz, retido até então pelos Aragoneses; na
Primavera de 1132, a dominar a revolta asturiana, e depois
a apoiar as operações dos Laras contra os Mouros, a partir
de Toledo; no ano seguinte, novamente associado a Rodrigo
de Lara, ataca Jerez e Cádis.
Durante o ano de 1134, quando, por seu lado, Afonso
Henriques, como veremos depois, iniciava a sua ofensiva
antimuçulmana, dão-se grandes modificações na relação de
forças nacionais da Península Ibérica. Afonso I de Aragão
morre sem deixar descendentes directos e legando o seu
reino às ordens militares. Sucede-lhe seu irmão, Ramiro II,
que abandona o mosteiro onde era monge para tomar a coroa e
casar. Ao mesmo tempo, restaura-se o reino de Navarra, que
estava sujeito à coroa de Aragão desde o fim do século XI.
Afonso VII, por seu turno, ocupa Saragoça, reconhecendo-lhe

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Ramiro II a soberania sobre tão prestigiosa cidade. No
princípio de 1135, o rei de Navarra presta vassalagem ao
mesmo Afonso VII e no dia de Pentecostes do mesmo ano, em
Maio, o rei de Leão faz-se coroar imperador.
Este acontecimento, que, à primeira vista, não parece
relacionar-se directamente com o destino de Portugal, teve
sobre ele a maior influência. Eram nessa altura vassalos de
Afonso VII os reis de Navarra e de Aragão e os condes de
Barcelona, Tolosa e Montpellier. Para poder, com alguma
razão, reivindicar o título de imperador, tinha de receber
a homenagem de reis. Quantos mais eles fossem, mais elevada
seria a dignidade que reivindicava. A vassalagem de Afonso
Henriques, como neto de Afonso VI, apenas aumentava o seu
prestígio.
Não se tendo Afonso Henriques revoltado abertamente
contra ele, Afonso VII tratou primeiro de definir com mais
clareza as suas relações com os reis de Navarra e de
Aragão, firmando os laços de vassalagem com o segundo por
meio do casamento de seu filho com Petronilha de Aragão e
obtendo a vassalagem de Ramiro II, concedendo-lhe em
benefício a cidade de Saragoça; o rei de Navarra
revoltou-se, mas a sua desobediência foi reprimida.
Foi justamente neste contexto que Afonso Henriques, de
acordo com o rei Garcia de Navarra, como afirma a Historia
compostelana, aproveitou a ocasião para ocupar os condados
de Toronho e de Límia. As suas forças encontraram-se com as
de Fernão Peres de Trava, de Rodrigo Veilaz, conde de
Sárria, e de outros nobres galegos na Batalha de Cerneja,
na terra de Límia; o infante conseguiu capturar Rodrigo
Veilaz. Afonso VII estava então ocupado a dominar a revolta
do rei de Navarra. Depois de ter chegado a acordo com ele,
veio à Galiza, submeteu o conde de Límia à sua autoridade e
encontrou-se com Afonso Henriques em Tui, obtendo o seu
juramento de fidelidade. Deu-se este facto no dia 4 de
Julho de 1137. Conserva-se o texto do acordo então
assinado.
Têm sobre ele discutido áspera e eruditamente a maioria
dos autores que tratam desta época, sem conseguirem chegar
a consenso acerca da sua interpretação. Enquanto os autores
espanhóis, entre eles a melhor especialista das
instituições feudais, Hilda Grassotti, vêem nele um pacto
feudal, uma homenagem vassálica, a maioria dos portugueses,
juntamente com Cari Erdmann e Pierre David, consideram-no
um pacto bilateral, que apenas exprime uma certa
inferioridade por parte de Afonso Henriques, mas não
obrigações de submissão vassálica. Apesar da autoridade de
Paulo Merêa, que melhor o estudou, parece-me, neste caso
especial, que o profundo conhecimento de Hilda Grassotti no
campo das instituições feudo-vassálicas castelhano-leonesas
lhe confere maior credibilidade. De resto, o contexto
político explica suficientemente o interesse que ambos os
contendores tinham em não definirem a situação com clareza
suficiente para evitarem todas as ambiguidades. Afonso VII
podia contentar-se com uma garantia relativamente vaga de
fidelidade e depois considerar o primo seu vassalo, como
lhe convinha, para poder reivindicar a sua qualidade de
imperador, com mais um vassalo de origem régia. Afonso
Henriques, por seu lado, submetia-se astuciosamente a este
acto para poder continuar a governar o condado sem grande
oposição, mas também sem se comprometer demasiado.
De resto, se é verdade que os Sarracenos tinham obtido
por essa altura uma importante vitória sobre forças
portuguesas, junto do rio Nabão, e ameaçavam intensificar
as suas operações militares na zona de Coimbra, como
veremos depois, não lhe convinha manter forças muito
consideráveis na fronteira galega.
Quer se tratasse de pacto de vassalagem quer do acordo
bilateral, e admitindo até que a sua ambiguidade fosse
propositada por ambas as partes, Afonso Henriques mostrou
em breve que não desistia de se apoderar de outros
territórios na fronteira galega. Tornou a invadir Toronho
nos primeiros meses de 1141 e, por isso, a provocar nova
reacção de Afonso VII. Este tinha estado desde 1139 num
prolongado cerco à praça de Oreja, durante o qual se deu
também a Batalha de Ourique, como veremos em breve; depois,
manteve novas conversações com o rei de Navarra, até que
acabou por firmar com ele uma paz duradoira. Tendo, assim,
alcançado uma situação estável, que manteve durante todo o
ano de 1140, aproveitou-a para viajar por vários lugares de
Castela e de Leão. Na Primavera de 1141, estava talvez em
Zamora, quando foi surpreendido pelo ataque de seu primo na
zona galega; dirigiu-se então para essas bandas, a
esclarecer a situação. Os dois exércitos encontraram-se
perto de Valdevez.
Ao contrário do que seria de esperar, os Anais de D.
Afonso, rei de Portugal referem-se ao acontecimento como um
«bafordo», espécie de torneio, sem o carácter de batalha,
que certamente se daria se houvesse um antagonismo radical

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e interesses inconciliáveis de parte a parte. Por sua vez,
a Crónica de Afonso imperador descreve o conflito como
preliminar de um combate que não se chegou a realizar.
Vários cavaleiros de Afonso VII teriam sido capturados
pelos inimigos; iepois disso, os próprios portugueses
teriam convencido o seu chefe a fazer as pazes e a obter a
benevolência do rei para se poderem voltar contra os
Muçulmanos, que oprimiam violentamente o Sul do território.
Compreende-se a divergência dos dois narradores. O
primeiro considera o «bafordo» como um verdadeiro torneio,
ou seja, uma prova destinada a demonstrar o juízo de Deus.
Dela resultaria a manifestação da predilecção divina para
com o infante, como os Anais dizem claramente:
«Vendo, pois, o imperador que tudo o que o rei de
Portugal empreendia se tornava próspero, e que a boa
fortuna o orientava, e que Deus o ajudava, e a ele, pelo
contrário, tudo era adverso, e que se quisesse competir com
ele lhe aconteceriam ainda maiores malefícios, mandou
chamar o arcebispo de Braga, D. João, e outros homens bons,
e pediram-lhe para ir ter com o rei de Portugal, para lhe
proporem a paz.»

Para o redactor da crónica imperial, pelo contrário, se


o combate não se deu, foi apenas porque Afonso VII acedeu,
na sua clemência, ao pedido de paz dos Portugueses.
Parece deduzir-se destes relatos que não havia, afinal,
qualquer incompatibilidade radical entre os dois
adversários. A batalha evitou-se graças à astúcia e à
prudência dos Portugueses e à não agressividade de Afonso
VII, disposto agora, como antes, a fazer concessões,
contanto que seu primo reconhecesse a sua autoridade
imperial. Foram, portanto, restituídos os castelos que
tinham tomado um ao outro e o rei de Leão procurou remover
a origem da discórdia, banindo os dois condes que, ao fim e
ao cabo, tinham suscitado a questão, Rodrigo Peres Veloso,
conde de Límia, e Gomes Nunes, conde de Toronho. Ao
primeiro acabou por perdoar. O segundo, humilhado,
ter-se-ia exilado para lá dos Pirenéus e feito monge
cluniacense. Parece, portanto, que o pomo da discórdia não
estava tanto na reivindicação da independência por parte de
Afonso Henriques, mas antes na sua pretensão de dominar
territórios que pertenciam tradicionalmente à Galiza e que
Afonso VII não estava disposto a perder.

O título de rei

O que marca definitivamente a independência de Afonso


Henriques é o título de rei, que, como se sabe, começou a
adoptar entre Julho de 1139 e Fevereiro ou Maio de 1140. As
circunstâncias em que isto sucedeu permanecem, todavia,
envolvidas por um certo mistério.
Com efeito, a fonte que melhor devia explicar o facto,
os Anais de D. Afonso, rei de Portugal, começa por lhe
chamar «infante»; depois, a partir das notícias relativas a
1132, passa, sem transição nem explicação alguma, a dar-lhe
o título de rei. A Vida de S. Teotónio diz que Afonso
Henriques, sendo antes dux de Portugal, «com o andar dos
tempos» tornou-se rei de quase toda a Lusitânia e de parte
da Galécia; noutro passo refere, de passagem: «[...] como
já se chamasse rei, por causa da sua invencível coragem nas
actividades guerreiras...».Dir-se-ia, portanto, que estas
duas fontes, procedendo ambas de Santa Cruz de Coimbra, e
redigidas entre 1184 e o fim do século XII, evitam dar uma
explicação clara acerca da maneira como Afonso Henriques se
tornou rei.
As fontes narrativas leonesas e galegas são um pouco
mais precisas, sobretudo a Crónica de Afonso imperador,
escrita por um bispo de Astorga aproximadamente em 1150.
Diz que os Portugueses, depois da morte de D. Teresa, a
quem já chamavam rainha, também chamaram rei a Afonso,
«como depois realmente foi», o que parece indicar ter
havido o sancionamento de alguma autoridade. Ora, esta só
podia ser a de Afonso VII. Com efeito, o título de rei dado
a Afonso. Henriques surge em dois documentos da chancelaria
régia leonesa redigidos em 1143, por ocasião da chamada
«Conferência de Zamora», entre o infante português e o rei
seu primo, durante a visita a Portugal do legado papal
Guido de Viço. Mas as fontes narrativas castelhano-leonesas
do princípio do século XIII, de Lucas de Tui e de Rodrigo
de Toledo, dizem, a primeira, que ele «se fez chamar rei»,
e a segunda, que ele «se impôs a si mesmo o nome de rei».
Supõem, assim, parece, uma aclamação ou um uso de
chancelaria.

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Ao contrário de todas estas, a tradição portuguesa
posterior ao princípio do século XIV fala constantemente
numa aclamação pelos guerreiros depois da Batalha de
Ourique, que, de facto, se deu entre Julho de 1139 e
Fevereiro ou Maio de 1140, quando se alterou o uso da
chancelaria portuguesa. Os Anais de D. Afonso não mencionam
o caso, apesar de descreverem a batalha com algum pormenor.
Recentemente, ao verificar a importância que sempre teve em
Santa Cruz de Coimbra o pavês (escudo cerimonial) de Afonso
Henriques, importância já testemunhada na primitiva
inscrição do seu túmulo, propus a hipótese de ter havido
efectivamente uma aclamação pelos seus guerreiros, em que
teria sido elevado sobre o escudo, como acontecia nas
aclamações dos chefes germânicos, que se manteve durante a
Idade Média para os reis de Navarra. Assim se explicaria
que o escudo se guardasse como uma espécie de relíquia,
juntamente com aquela que se dizia ser a sua espada. A
ligação quase mágica do escudo de Afonso Henriques,
pendurado sobre o seu túmulo, com a monarquia era marcada
pela crença, testemunhada no princípio do século XV, de que
ele caía da parede quando morria um rei de Portugal. Essas
duas relíquias eram, pois, testemunhos eloquentes de que
Afonso Henriques devia o título de rei às suas acções
guerreiras, o que concorda, efectivamente, com o teor das
fontes narrativas citadas.
Sendo assim, penso que os Anais omitem o facto
propositadamente, em virtude da sua origem clerical. O seu
autor, como clérigo, não podia admitir facilmente que o
título de rei fosse legitimado por uma aclamação popular ou
de guerreiros, como o não admitiu a cúria papal até 1179.
Provavelmente também não queria referir-se ao facto por não
ter havido, decerto, nenhuma coroação litúrgica, como a
que, muito provavelmente, sancionou a autoridade de Sancho
I. Não devia, sequer, achar suficientemente significativo o
reconhecimento do título pelo rei de Leão, que decerto não
foi solenizado por nenhum acto, mas deve ter constituído
apenas a aceitação de um facto consumado.
O carácter guerreiro, e portanto secular, da autoridade
régia parece ter sempre prevalecido durante toda a primeira
dinastia, como acontecia, de resto, em Leão e Castela, como
vários autores têm sublinhado, apesar de se poderem
documentar as coroações litúrgicas de alguns reis
peninsulares. Também em Portugal os cronistas são omissos
quanto a cerimónias religiosas de coroação, e o termo
«alçar», que eles usam, evoca a elevação e aclamação do rei
sobre o pavês e tem uma conotação secular. Mas existem os
textos litúrgicos da cerimónia de coroação em manuscritos
do século XII, com indícios de terem sido efectivamente
usados, e o Livro dos arautos, do princípio do século XV,
menciona expressamente o costume de os reis portugueses
serem coroados na Catedral de Coimbra.
Penso, portanto, que os reis de Portugal costumavam ser
aclamados e coroados liturgicamente, ao contrário de Afonso
Henriques, que provavelmente foi apenas aclamado num
contexto guerreiro, sem procurar qualquer legitimação
sacral para o seu título. Mas a ideia de que fora o sucesso
guerreiro que legitimara a dignidade régia de Afonso
Henriques, reconhecida por uma aclamação popular,
permaneceu como elemento essencial, levando os cronistas a
omitirem qualquer referência à cerimónia de coroação.
Explica-se assim o facto de o papa ter demonstrado
maior resistência a reconhecer o título de rei a Afonso
Henriques do que o imperador Afonso VII, aparentemente mais
afectado com isso. Tendo-se Afonso Henriques tornado seu
vassalo, o papa devia-se considerar a única autoridade
capaz de legitimar o seu título. Não podia reconhecer o
direito que ele se arrogava de reivindicar uma dignidade
que lhe não tinha concedido. Afonso Henriques, por seu
lado, não podia pedir a nenhuma autoridade religiosa a
legitimação daquilo que atribuía à sua ascendência régia e
ao sucesso das suas armas. Daí o embaraço dos cronistas
crúzios do fim do século XII. A bula de 1179 constituiu,
pois, um acto jurídico, que supriu a ausência de coroação
litúrgica pelo reconhecimento de um facto consumado.
Ainda antes de 1139, Afonso Henriques tinha procedido
como um príncipe independente, apesar da sua condição de
vassalo. A partir desse ano, porém, quem sabe se desde a
Batalha de Ourique, tendo assumido o título de rei, o
processo de autonomia de Portugal chegava ao seu termo.
Portugal era um reino independente. Não tardou a ser
reconhecido como tal pelo imperador de Leão e Castela, logo
a seguir pelos outros reis da Península e, finalmente,
depois de dezenas de anos de resistência, pelo papa, de
quem Afonso se tornou vassalo em 1143. Tinham decorrido 47
anos desde que Afonso VI separara Portugal da Galiza, para
atribuir este território ao conde D. Henrique, a título de
dote hereditário, pelo seu casamento com sua filha D.
Teresa.

59
A monarquia guerreira (1139-1190)

Se as vitórias guerreiras de Afonso Henriques lhe


permitiram usar o título de rei e aos seus súbditos e pares
considerá-lo como seu legítimo soberano, foi também a
guerra que consolidou a sua autoridade e lhe permitiu
transmitir o título e a independência a seu filho Sancho I.
Foi ainda a guerra que lhe assegurou um território
suficientemente amplo para deixar de ser apenas um condado
e se tornar um verdadeiro «reino», com várias províncias.
Foi ainda o sucesso nos campos de batalha que deu a Sancho
I a possibilidade de se apresentar como legítimo sucessor
de um grande chefe militar. O recrudescimento do poder
inimigo trouxe, porém, a Sancho I o infortúnio militar. A
fronteira estabilizou-se e teve de consagrar os últimos
anos do seu reinado a consolidar a sua autoridade interna.
A partir da década de 90, Portugal começava a deixar de ser
um reino inteiramente voltado para a guerra. O seu rei
passava a ter de se ocupar, antes de mais, com os problemas
da sua organização administrativa, económica e social.

O espeço nacional

Quando, a partir de 1131, aproximadamente, Afonso


Henriques abandonou Guimarães, antiga residência dos condes
de Portucale, para fazer de Coimbra o centro das suas
deslocações através dos seus domínios, tomou, talvez, a
mais transcendente de todas as suas decisões para a
sobrevivência de Portugal como nação independente. Em boa
verdade, é preciso reconhecer que já D. Henrique e D.
Teresa tinham permanecido frequentemente em Coimbra. Mas, a
partir de 1131, a prevalência desta cidade como centro da
monarquia que em breve se iria formar tornou-se uma
evidência. Passou a ser o lugar onde o rei residia mais
frequentemente e onde estava situado o Mosteiro de Santa
Cruz de Coimbra, santuário que, pela sua ligação com o
monarca, exprimia o seu vínculo com o poder divino, de que
o seu era a emanação terrena.
A proximidade do palácio régio com o lugar sagrado que
lhe confere valor simbólico não basta, porém, para
demonstrar o significado histórico da fixação de Afonso
Henriques em Coimbra. As consequências da simples
deslocação espacial da sua residência de Guimarães para ali
são muito mais encadeadas e complexas. Recordemos
rapidamente as principais.
Passando a viver mais frequentemente em Coimbra, Afonso
Henriques distancia-se da nobreza senhorial do Norte, a
quem devia, afinal, o Poder, mas da qual não queria
depender. Evitava assim a confrontação com uma nobreza que
aí tinha a base da sua força e formava um conjunto unido
por fortes laços de solidariedade e de parentesco. O risco
pode medir-se melhor ao verificar que Ermígio Moniz, irmão
de Egas Moniz e provável chefe da linhagem de Ribadouro até
à sua morte, ocorrida decerto em 1135, parece ter exercido
funções de grande importância sobre o território do
condado, à semelhança, talvez, das que Soeiro Mendes
desempenhara no tempo do conde D. Henrique. Estas funções
desapareceram, porém, com a morte de Ermígio, para ficarem
apenas as dos dignitários da corte, de origem doméstica — o
mordomo-mor (que Ermígio foi também) e o alferes-mor.
Podem suspeitar-se ainda as pretensões da nobreza
senhorial, ao verificar as tradições de antagonismo para
com Afonso Henriques consignadas nos livros de linhagens,
onde se encontram algumas narrativas acerca das suas
querelas pessoais com D. Gonçalo de Sousa, mordomo-mor
entre 1157 e 1167, e com Fernão Mendes de Bragança.
Afonso Henriques retribui generosamente o apoio que os
nobres do Norte lhe dispensam, concedendo-lhes, até 1150,
cartas de couto sobre os mosteiros que patrocinam e
sancionando os seus poderes senhoriais, mas sem lhes fazer
grandes concessões fundiárias fora das suas regiões de
origem. A nobreza senhorial permanece, portanto, acantonada
entre o Minho e o Vouga, onde domina sem contestação. Até
ao fim do século XII, não cria senhorios fora desta zona. O
rei apoia-se, portanto, num grupo social diferente, que
virá a constituir o embrião de uma nobreza de serviço dócil
e maleável, mas sem hostilizar os senhores do Norte,
concedendo-lhes, pelo contrário, os principais postos da
cúria. Pôde, assim, evitar a emergência de dinastias
senhoriais capazes de concorrer com o poder régio, como
foram em Castela os Castros, os Laras e os Haros, cuja
riqueza e prestígio os nobres portugueses sempre invejaram.
Esta independência não seria possível se Afonso
Henriques não contasse com uma base social de apoio a que
estava ligado directamente: os cavaleiros de Coimbra, que,
mesmo de origem obscura, se podem considerar nobres, e

60
vilãos dos concelhos e das comunidades rurais do Centro do
País. Com efeito, havia em Coimbra um concelho cuja
autonomia já vinha de longe, como vimos ao tratar da sua
revolta contra os representantes do conde D. Henrique, em
1111.0 rei escolheu muitos dos seus mais fiéis auxiliares
entre os seus membros, formando com eles um séquito e
estabelecendo com eles relações análogas às que unem o
chefe com os componentes do seu bando. A eles vieram
associar-se cavaleiros nobres vindos do Norte, de famílias
modestas ou de outras mais ricas, onde não podiam herdar,
por serem filhos segundos. Nesse conjunto, escolhe
preferentemente os responsáveis por tenências e alcaidarias
mais próximas da fronteira, em comissões temporárias e sem
carácter hereditário. A memória da relação do grupo com o
rei encontra-se expressa na assim chamada Gesta de Afonso
Henriques.
Neste texto surge justamente um programa de política
régia em relação com os grupos sociais de apoio baseada na
preservação do equilíbrio entre os fidalgos e os concelhos.
Este depende da retribuição dos primeiros com benefícios,
quando prestam o serviço militar, e do respeito pelas
liberdades e privilégios dos segundos.
Deste modo, o primeiro rei de Portugal não instaura
apenas uma relação nova com a nobreza, sem dúvida a classe
dominante do País, que nem por isso deixa de ser um reino
feudal, intermediária necessária e única entre ele e as
outras classes sociais dela dependentes nas zonas onde
vivia, mas também com outro sector da classe dominante, os
cavaleiros não nobres dos concelhos, que dominam no resto
do País, onde não tinha penetrado o regime senhorial. O rei
podia, portanto, exercer aí verdadeiros poderes estatais,
cujo respeito era garantido por uma tradição de vida
comunitária e pública que vinha desde a época romana e fora
parcialmente preservada pela dominação árabe. Explica-se
assim, ao menos parcialmente, a rápida emergência da
concepção do poder régio como uma autoridade pública, que
desde sempre tempera a tendência desagregadora das
monarquias feudais.
Por outro lado, a especial relação do rei com os
concelhos permite também compreender o vigor da organização
concelhia e a sua capacidade de resistência ao fenómeno não
menos real da senhorialização.
Em terceiro lugar, a vinda de Afonso Henriques para
Coimbra proporciona-lhe a sua inserção habitual num meio
urbano, o que contribui também para, em termos de estrutura
do Poder, opor a sua autoridade àquela que é exercida pela
nobreza senhorial. Com efeito, as cidades outrora
muçulmanas preservaram muitas das suas características
urbanas. Continuando a desempenhar o papel de centros de
decisão política e económica, dão às regiões que delas
dependem características diferentes das das cidades do
Norte, cujos centros de poder estavam nos campos.
A cidade impõe, é claro, uma específica repartição do
trabalho, uma diferente consciência do tempo, da medida e
do dinheiro, uma outra forma de convivência, uma
mentalidade menos dependente das imposições da Natureza.
Apesar de a cidade do século XII não ser ainda a que irá
emergir nos séculos XIV e XV e de, nesta época, a oposição
entre a cidade e o campo ser menor do que quando ela veio a
tornar-se grande produtora artesanal, as diferenças entre a
vida urbana e a rural são fundamentais. Beneficiando destes
caracteres, Afonso Henriqlies pode organizar mais
racionalmente a sua administração, ter mais contactos
internacionais, obter mais informações do que se passa
além-fronteiras, utilizar a economia monetária. Tudo isto
lhe assegura maior capacidade de acção. Esta baseia-se
também no uso de instrumentos jurídicos e de concepções
políticas que por essa altura se começam já a desenhar na
Itália e em breve se iriam difundir também noutras regiões
do Ocidente através das cidades.
Em quarto lugar, o facto de Coimbra estar perto da
fronteira com o território islâmico impõe ao rei uma
intensa actividade guerreira, exercendo, assim,
empenhadamente o primeiro e mais importante dos deveres dos
soberanos peninsulares. Com efeito, os ataques constantes a
que Coimbra estava sujeita impuseram a Afonso Henriques a
necessidade de alargar a cintura das fortalezas protectoras
a sul e depois o propósito de destruir os centros de
Santarém e Lisboa, donde tais investidas partiam. A
conquista destas duas cidades, que pode apresentar-se, de
certo modo, como resultante da fixação do soberano em
Coimbra, traz, por sua vez, consequências de grande
alcance: alarga o espaço de manobra do rei, põe os
territórios do Norte em íntima conexão com regiões dotadas
de recursos económicos diferentes, aumenta o número de
cidades ricas e populosas. O País passa, assim, a

61
estruturar-se como uma unidade económica e política em
torno de três grandes metrópoles — Lisboa, Santarém e
Coimbra —, o que, em termos relativos, acabará por reduzir
o papel que o Entre Douro e Minho, grande alfobre de homens
e de produtos agrícolas, tinha desempenhado até então.

[Legenda de figura.]

O sistema defensivo de Coimbra e as conquistas


portuguesas de 1147-1191.
Note-se a posição dos castelos de Soure, Pombal,
Germanelo, Penela, Miranda do Corvo e Arouce, que foram
mandados construir por Afonso Henriques entre 1136 e 1142,
pela mesma altura em que concedeu foral a Miranda e Penela.
Defendiam o acesso de Coimbra pelo sul e permitiam assim
aos seus habitantes aproveitar os campos a sul do Mondego
para abastecer a cidade. A zona mais exposta, em torno de
Soure e de Pombal, era concedida aos Templários em 1129 ou
1130. O grupo de castelos à volta de Tomar — Ourém, Ceras,
Torres Novas, Almourol e castelo do Zêzere —, quase todos
dentro do vasto domínio concedido aos Templários em 1159,
asseguravam a defesa de Santarém e Lisboa contra ataques
vindos de Lesta (de Badajoz). O castelo de Coruche, mandado
construir entre 1166 e 1173, foi entregue por Afonso
Henriques à Ordem de Évora em 1176.
Reforçava a defesa de Lisboa, protegendo-a de ataques
vindos também de Lesta pela margem sul do Tejo.

62
Finalmente, a fixação do rei em Coimbra põe-no em
contacto com a tradição cultural moçárabe, obviamente
diferente da que predominava ao norte do Douro e que
preservava elementos importantes não só da civilização
árabe, mas também do direito e da liturgia visigóticos, de
algumas instituições romanas, da língua latina e dos
costumes populares vindos já desde o Baixo Império, que se
podem opor, pela sua feição mediterrânica, à tendência
cultural dominante no norte guerreiro, campestre e rude. De
facto, Coimbra havia sido, como vimos, entre 1080 e 1116,
um importante foco de resistência contra a cultura dos
clérigos e guerreiros vindos do Norte. Apesar do triunfo
destes, a memória de tais lutas não se apagou; as oposições
que então surgiram mudaram de sentido, mas não
desapareceram por completo. Estão em boa parte subjacentes
aos conflitos que desde o início opuseram os cónegos
regrantes de Santa Cruz de Coimbra ao cabido da catedral.
Apesar da fidelidade daqueles à liturgia romana e das
íntimas relações que desde logo estabeleceram com Roma, sob
cuja jurisdição viriam em breve a colocar-se, tornaram-se
os mentores intelectuais do movimento que herdou o que
ainda restava das tradições moçárabes e que, por isso,
captou a simpatia e o apoio dos cavaleiros da cidade,
descendentes daqueles que outrora haviam resistido aos
franceses.
Ora Afonso Henriques, ao fixar-se em Coimbra, tornou-se
o mais fiel protector de Santa Cruz. Fez do mosteiro o
centro de apoio cultural da corte. A protecção que concedeu
ao mosteiro contribuiu poderosamente para o tornar o pólo
mais activo de uma síntese cultural de grande pujança e com
influência sobre todo o resto do País.
Assim, a instalação de Afonso Henriques em Coimbra, ao
mesmo tempo que confere uma força enorme à corrente
cultural e institucional de carácter mediterrânico, permite
ao País superar a separação entre o condado de Portucale e
o de Coimbra, neutralizar os fenómenos negativos da
«colonização» do Sul pelo Norte, para os integrar numa só
nação com regiões verdadeiramente complementares, agindo
uma sobre a outra, como dois pólos opostos, mas
indissoluvelmente ligados entre si por uma corrente que se
alimenta da sua própria diferença.
A defesa de Coimbra

A primeira manifestação de uma atitude ofensiva de


Afonso Henriques para com os Muçulmanos foi a implantação
de um castelo em Leiria, mandado por ele construir em 1135,
o qual se destinava a servir de ponto de apoio da posição
estratégica do Castelo de Soure, oferecido pelo mesmo
infante aos Templários em 1129 ou 1130, e que, por isso,
defendia a cidade de Coimbra das incursões sarracenas
vindas do Sul. Estas deviam partir sobretudo de Santarém e
penetravam em direcção a Coimbra através da região de
Ladeia, entre Penela e Soure, a este da serra da Lousã.
Por isso, Afonso Henriques ordenou logo a seguir a
ocupação desta zona, numa operação que mais tarde era
recordada como «a presúria de Fernão Cativo», do nome do
alferes-mor Fernão Peres Cativo. Pouco depois, talvez pelos
anos de 1136-1137, realizou ele próprio um fossado, a que a
tradição oral chamou o «fossado de Ladeia». Ao mesmo tempo,
protegeu as comunidades da região, dando forais a Miranda
do Corvo, em 1136, e a Penela, em 1137. Finalmente, em
1142, mandava construir o Castelo de Germanelo, junto ao
Rabaçal, e, talvez pela mesma época, os de Alvorge e
Ansião. Assegurava a defesa de Coimbra por meio de uma
série de operações perfeitamente coerentes e bem
articuladas. Os habitantes, que até então não ousavam
cultivar as terras do seu termo, com medo das invasões e
pilhagens que aí faziam os ladrões sarracenos, puderam,
desde então, trabalhar com mais segurança e assim garantir
o abastecimento de géneros à cidade.
Mas as operações conduzidas por Afonso Henriques com os
seus cavaleiros não eram apenas defensivas. Diz a Crónica
de Afonso Imperador, cujo autor também teve conhecimento de
alguns factos da história portuguesa, que o Castelo de
Leiria foi construído para combater os castelos de
Santarém, Lisboa e Sintra e outros da mesma região. Os
Portugueses começaram desde então a intensificar as suas
operações de pilhagem em terra inimiga, saqueando as
povoações muçulmanas situadas para lá da serra de Minde. Os
Mouros reagiram violentamente, acabando por arrasar o
Castelo de Leiria, segundo parece, em 1140.
A posição desta fortaleza, no entanto, tinha-se
revelado demasiado importante para os cristãos. Por isso,
não tardaram a recuperá-la, talvez em 1142, se está certa a
data do primeiro foral de Leiria, ou em 1144-1145, se
admitirmos as correcções que alguns autores lhe fazem,
baseando-se na data atribuída a tal facto pelos Anais de D.
Afonso. De resto, o carácter militar da zona,

63
Constantemente atravessada por exércitos predadores,
mantém-se ainda durante um certo tempo. Sabemos que em 1144
houve um importante ataque de mouros ao Castelo de Soure e
que no ano seguinte se apelava em Coimbra para a
necessidade de os seus habitantes auxiliarem os do Castelo
de Leiria. Um documento deste ano exorta os voluntários,
alegando que quem morresse em combate alcançaria méritos
idênticos aos dos peregrinos de Jerusalém.
É evidente que nem todas as operações foram dirigidas
pessoalmente pelo infante. Em 1137, como vimos, estava em
Tui, onde assinou um pacto com Afonso VII, mais ou menos na
mesma ocasião em que um exército português era exterminado
perto de Tomar. Tratava-se, sem dúvida, de um fossado como
tantos outros. Dois anos depois, no entanto, o rei
intefnava-se mais profundamente em território inimigo e
conseguia uma vitória que ficou célebre nos anais
portucalenses.

A Batalha de Ourique

Não é aqui o lugar para desenvolver largamente e apontar


eventuais soluções para os problemas que se levantam a
respeito da Batalha de Ourique. Bastará aludir a duas ou
três questões mais importantes. Antes de mais, às
acaloradas discussões acerca do lugar onde a batalha se
realizou, que tem sido identificado com povoações do mesmo
nome perto de Leiria, no Ribatejo e no Baixo Alentejo.
Pretendem os primeiros dar mais verosimilhança ao facto,
que assim se integraria perfeitamente nas operações que
temos vindo a descrever, e se situam, na verdade, entre
Coimbra e o Tejo. Desejam os últimos respeitar uma tradição
atestada pelo menos desde o princípio do século XIV e
manter o grau de importância que as fontes mais antigas lhe
atribuem. De facto, uma expedição capaz de atravessar a
linha do Tejo e que penetrasse tão profundamente no
território muçulmano teria de ser necessariamente mais
forte e mais bem organizada. De qualquer, maneira, o facto
de em Ourique se terem reunido vários chefes mouros
significa, se a batalha se deu perto de Leiria ou no
Ribatejo, que se reuniram para atacar Coimbra e que Afonso
Henriques lhes saiu ao encontro, derrotando-os. Se, pelo
contrário, se deu no Alentejo, resultou de uma operação
ofensiva do infante, eventualmente suscitada pelos
movimentos de tropas muçulmanas que por essa altura se
dirigiam a Toledo ou que tentavam auxiliar os almorávidas
cercados em Oreja (Coimenar), a sul da mesma cidade, pelo
imperador Afonso VII. Neste último caso, porém, será
preciso não tomar à letra a informação, provavelmente
exagerada, de que em Ourique se reuniram tropas vindas de
Sevilha, Badajoz, Elvas, Évora e Beja. A conjugação de
combatentes vindos destes lugares só é admissível se a
batalha se tivesse dado a norte do Tejo (no caso de se
dirigirem a Coimbra) ou a leste de Badajoz (se se
dirigissem a Toledo ou Oreja).
É provável, porém, que a enumeração daqueles lugares se
deva considerar resultante de um processo literário
hiperbólico, sem fundamento real. Também não foi possível
até agora identificar o «rei» Esmar, nem Homar Atagor,
sobrinho de um tal «rei» Ali, que nessa ocasião teriam sido
derrotados e que os Anais de D. Afonso mencionam. A
coincidência da data da batalha com o dia de S. Tiago;
patrono dos cristãos em luta com os Mouros, acentua o
simbolismo da admirável vitória, mas também não dá
garantias de veracidade.
O certo é que a importância atribuída a Ourique não
cessou de crescer desde o momento da batalha e que se foram
tecendo em torno dela uma série de relatos maravilhosos,
destinados a conferir-lhe um significado simbólico. Esta
propensão para mitificar o acontecimento resulta, sem
dúvida, de se pretender ligá-lo à fundação da
nacionalidade, por se associar à aclamação de Afonso
Henriques como rei. Já vimos que esta aclamação não é de
todo inverosímil e que pode mesmo explicar a veneração
atribuída ao objecto material do pavês, que se colocou
sobre o túmulo do rei e que inspirou as armas reais
portuguesas. A associação dos dois factos veio, portanto, a
suscitar a necessidade de imaginar uma intervenção divina
que demonstrasse o seu sentido transcendente e que
sublimasse a função de Afonso Henriques como enviado por
Deus para esmagar os inimigos da fé. O sentido inicial de
tais relatos, em que prevalecia o sancionamento divino do
combate contra o Islão, veio, no fim do século XIV, a
transformar-se no da garantia da eterna protecção sobre o
reino, como nação independente destinada por Deus a uma
missão sobrenatural.
Deixando de lado o significado ideológico que este
conjunto de associações vai tomando, resta-nos observar que
pouco de objectivo sabemos acerca do facto em si mesmo.
Podemos apenas admitir que, durante o Verão de 1139, Afonso
Henriques dirigiu um fossado constituído por forças

64
bastante mais numerosas do que o habitual e que, apesar de
ter sido atacado ou de atacar ele próprio um exército
considerável, regressou cheio de glória ao território
cristão. Ourique foi a sua primeira grande vitória contra
os Mouros.
Ao regressar a Coimbra, encontrou-se ali com D. João
Peculiar, que acabava de chesar de Roma, onde assistira ao
concílio ecuménico de Latrão e recebera o pálio
arquiepiscopal das~mãos do papa, o que também contribuiu
para atribuir um significado especial ao acontecimento, que
os clérigos não se esqueceriam de pôr em relevo, para
exortar os cristãos à guerra santa.
Nos anos seguintes, porém, não se registaram outros
sucessos militares importantes. Recrudesceram, no entanto,
os ataques almorávidas a Leiria e a Coimbra. Estes
coincidem aproximadamente com a presença de Afonso na
fronteira galega ou leonesa, em Valdevez, em 1140 ou 1141 e
em Zamora, em 1143.
Por esses anos, porém, sabemos que a costa portuguesa
começou a ser mais frequentada pelos navios de cruzados,
que demandavam a Terra Santa e fundeavam no Porto, para aí
se abastecerem. Uma considerável armada chegou mesmo a
atacar Lisboa, sem, contudo, penetrar na cidade Limitou-se
a devastar os arredores, talvez no ano de 1142.

A vassalagem à Santa Sé

Até 1143, a vassalagem de Afonso Henriques ao rei de


Leão não o impedia de gozar de uma verdadeira autonomia
interna. Nesse ano, desejando, decerto, garanti-la de
maneira mais efectiva coloca-a no plano mais decisivo e
mais claro do direito e da relação com uma instância de
poder diferente da que regulava a hierarquia feudal.
De facto, no Verão desse ano chegou à Península o
cardeal legado da Santa Sé, Guido de Viço. A sua vinda à
Hispânia, não muitos meses depois de aqui ter estado o
abade de Cluny Pedro o Venerável, relaciona-se, decerto,
com a preocupação que a cúria romana teve de estabelecer
sobre novas bases as suas relações com os reis cristãos da
Península, tanto por causa das alterações políticas
entretanto sobrevindas na Itália, como das transformações
sucedidas na Hispânia desde a morte de D. Urraca.
De facto, tanto Cluny como a cúria pontifícia
atravessavam nesse momento uma grave crise. O mosteiro
borgonhês, depois de, enfim, ter superado o abalo causado
pela desorientação administrativa e disciplinar do abade
Pôncio, a quem sucedeu, em 1122, Pedro, o Venerável, via-se
na necessidade de transformar a sua política
administrativa. Contando, antes, com o afluxo de metais
preciosos que lhe vinham da Hispânia, tinha agora de
racionalizar a administração dos seus domínios fundiários.
Como resultado da visita de Pedro, o Venerável, Afonso VII
decidiu actualizar o censo outrora prometido por seu avô,
reduzindo-o a 200 maravedis de ouro, e compensar a soma em
dívida com a doação de um domínio para Cluny fundar uma
nova comunidade na Península.
Quanto à Santa Sé, a perturbação não era menor. Depois
do apaziguamento conseguido em 1122 com a Concordata de
Worms, que pôs fim a uma importante fase da luta das
investiduras a cúria romana via-se a braços com o cisma de
Anacleto II, que obrigou Inocêncio II a refu^iar-se em
França, onde obteve o reconhecimento dos soberanos da
Europa, graças à actuação e-às exortações de S. Bernardo e
de S. Norberto. O imperador Lotário trouxe Inocêncio a Roma
e impô-lo pelas armas. A sua morte permitiu aos Normandos
recuperarem a Itália do Sul, trazerem Anacleto de novo a
Roma e, apesar de seu falecimento, continuarem a oprimir
Inocêncio II. Este recorreu aos apoios eclesiásticos
exteriores, reunindo um concílio ecuménico no seu palácio
de Latrão. A ele assistiu D. João Peculiar, que ali tinha
ido buscar o pálio. Pouco depois, porém, Inocêncio II foi
aprisionado pelos Normandos e, para recuperar a liberdade,
teve de se submeter a todas as suas exigências. Foi ele
ainda quem enviou Guido de Vico à Península, mas morreu
durante a sua viagem.
O legado vinha, pois, à Hispânia procurar o apoio
político e económico de que o papa necessitava. Mas aqui as
condições também se tinham modificado consideravelmente. Já
não se podia contar com as valiosas ofertas em ouro
enviadas pelo rei de Leão e por eclesiásticos detentores de
grandes tesouros, como Diego Gelmírez e Bernardo de Toledo.
Eram cada vez mais frequentes as viagens de bispos à cúria
pontifícia para pedirem a resolução de problemas quase
quotidianos, mas para eles importantes. Os prelados e os
seus representantes deixavam também as suas dádivas, embora
menores. Iam-se multiplicando, desde a década de 30, os
mosteiros isentos, ligados directamente à Santa Sé, o que

65
permitia à cúria intervir em toda a espécie de assuntos e
receber os censos monetários que eles pagavam. De facto, a
Península continuava a ser ainda, apesar de tudo, um
importante intermédio na difusão das espécies em metais
preciosos, vindas de Africa e do Oriente através do mundo
muçulmano.
Seria absurdo, porém, reduzir a viagem de Guido de Vico
a uma operação financeira. A reforma gregoriana tinha
levado a numerosas modificações na organização
eclesiástica, que era necessário coordenar sob a orientação
da Santa Sé. Roma necessitava de novas informações locais
para conduzir com segurança a sua sistemática política de
controlo da vida eclesiástica, que foi lentamente passando
da autonomia diocesana da Alta Idade Média à progressiva
centralização papal.
Dadas as informações indispensáveis acerca do contexto
em que se situa o encontro entre o cardeal e Afonso
Henriques, vejamos agora o que diz respeito à intervenção
daquele no problema da independência portuguesa. Guido de
Vico, depois de ter estado em Coimbra e no Porto, onde
tratou de assuntos eclesiásticos, reuniu em Valhadolid, nos
dias 19 e 20 de Setembro de 1143, um concílio com muitos
bispos de toda a Península. Assistiu a ele o bispo de
Coimbra, Bernardo, mas não o de Braga, João Peculiar. Daí
dirigiu-se a Zamora, onde estava em 4 e 5 de Outubro e onde
se encontrou com os reis de Portugal e de Leão. Depois
regressou a Roma, passando pelo reino de Aragão.
A 13 de Dezembro, o rei de Portugal dirige-se ao papa,
declarando, por carta, que tinha feito homenagem à Sé
Apostólica nas mãos do cardeal Guido, como cavaleiro de S.
Pedro (miles Sancti Peiri), se obrigara a pagar o censo
anual de quatro onças de ouro, sob a condição de o papa
defender a honra e a dignidade dele e a da sua «terra», e
afirmando que não reconhecia autoridade de nenhum outro
poder eclesiástico ou secular a não ser a do papa.
Estes os factos. Uma parte da sua interpretação não é
difícil: Afonso Henriques, desejando garantir a sua
independência política, prestava vassalagem ao papa, para
se libertar da sujeição a Afonso VII. Não era ele, porém, o
único interessado. Guido tinha vindo à Península para obter
auxílio monetário e apoio moral ao pontífice, vexado por
Anacleto e pelo rei da Sicília. O censo anual em ouro
oferecido por Afonso Henriques era uma resposta directa a
tais apelos, mas, ao mesmo tempo, implicava, como
contrapartida, a aceitação da homenagem ao papa em vez da
que até ali o vinculava ao imperador, ou seja, a realização
de conversações anteriores, eventualmente por ocasião da
passagem do legado por Coimbra. Não é provável que elas se
tivessem dado na reunião de Zamora. E pouco verosímil que
Afonso VII tivesse nessa altura conhecimento de uma
homenagem que punha em causa a sua própria autoridade. A
conferência de Zamora deve, portanto, ter sido uma reunião
promovida pelo legado para apaziguar eventuais tensões
entre os dois soberanos e talvez para os exortar a
conjugarem os seus esforços na luta contra os Almorávidas,
que por essa altura davam já mostras de enfraquecimento
político.
Se Afonso VII soube então da homenagem à Santa Sé, é
provável que o legado tivesse também procurado fornecer-lhe
algumas garantias, orais ou escritas, de que o acto de seu
primo em nada o prejudicaria. De facto, veremos depois com
que prudência Roma se houve com os dois reis para evitar
uma posição que fosse considerada ofensiva por parte do
imperador.
Pode perguntar-se também de quem foi a ideia de
aproveitar a via da vassalagem à Santa Sé como forma de
assegurar a independência. É fácil reconhecer aqui a mão de
um clérigo particularmente hábil em conjugar os poderes
temporais e espirituais para atingir os mesmos fins.
Provavelmente D. João Peculiar. De formação francesa, um
dos fundadores de Santa Cruz de Coimbra, protector da vida
eremítica e talvez da observância cisterciense, mostrou-se
sempre extremamente hábil em obter o apoio de Roma. Como
cónego regrante, tinha ido pessoalmente à cúria romana para
obter a isenção canónica para o seu mosteiro, tornando-o
assim independente de um bispo pouco cómodo. Como prelado
de Braga, lutou incansavelmente contra a submissão ao
arcebispo de Toledo e procurou recuperar dioceses
sufragâneas de Santiago de Compostela em território
português. O melhor meio para conseguir estes fins foi
encorajar a libertação política de Afonso Henriques. O
reverso desta estratégia foi a utilização de meios
eclesiásticos para obter o mesmo fim.
Assim, a questão da independência orienta-se para uma
nova fase. A partir de 1143, Afonso Henriques abandona
durante bastantes anos as suas pretensões sobre os
territórios galegos, para se consagrar à conquista de
terras na fronteira meridional.

66
Qual a reacção de Afonso VII? Não se conhece nenhuma
até 1148. Os documentos leoneses que mencionam a estada de
Afonso Henriques em Zamora dão-lhe o título de rei, o que
não pode deixar de significar a benevolência com que Afonso
VII o tratou nesse momento. Quer desconhecesse a sua
vassalagem como miles Sancti Petri até 1148, o que não é
provável, quer não acreditasse nas suas consequências
práticas, parece ter-se incomodado pouco com ela. Mas
depois da conquista de Lisboa, quando o rei de Portugal,
decerto inspirado de novo por D. João Peculiar, se apressou
a proceder à restauração das sés de Lisboa, Viseu e Lamego,
designando bispos que foram todos eles consagrados pelo
arcebispo de Braga, o imperador deu-se conta de que o facto
tinha consequências graves. Só nessa altura, que se saiba,
protestou contra a vassalagem ao papa, e aproveitou a
ocasião para o acusar de conceder as indulgências da
cruzada ao rei de Portugal e de não defender eficazmente os
direitos primaciais do arcebispo de Toledo. Eugénio III
procurou justificar-se e exprimir a benevolência da Santa
Sé para com ele, concedendo-lhe a rosa de ouro. Sossegado
ou não com estas manifestações de apreço, o certo é que
Afonso VII, talvez demasiado ocupado com as suas expedições
de reconquista e com a evolução das suas relações com os
reinos de Aragão e Navarra, não parece mais ter procurado
recuperar a sua autoridade sobre Portugal.
A situação só se modificaria com a partilha dos seus
Estados, ou seja, com a separação dos reinos de Leão e de
Castela. Este acontecimento, que se deu depois da sua
morte, em 21 de Agosto de 1158, levou à restauração do
reino independente de Leão, cujo soberano procurou mais de
uma vez reaver o território português. Mas nessa altura já
a independência de Portugal era uma realidade
suficientemente sólida para resistir às tentativas de
reabsorção.

As novas taifas
No princípio de 1143 morreu em Marrocos o emir Ali ben
Yusuf. Sucederam-se imediatamente graves perturbações, que
se agravaram com o rápido crescimento da reforma almóada,
que acabaria por se sobrepor ao domínio almorávida.
Entretanto, as lutas travadas em torno da sucessão de Ibn
Yusuf enfraqueceram o poder almorávida na Península e
permitiram a eclosão de alguns movimentos de independência
em várias regiões de ai Andaluz, que conduziram à formação
de unidades políticas autónomas, a que se chamaram as
«novas taifas». As mais importantes ' estabeleceram-se em
Valência, Córdova, Múrcia e Mértola. Mas as suas fronteiras
e os seus chefes mudaram constantemente até à
reconstituição da unidade sob o domínio dos Almóadas, que
entre 1147 e 1151 se apoderaram sucessivamente de quase
todos os reinos independentes entretanto criados.
Para a história de Portugal tem especial importância o
movimento religioso relacionado com o sufismo e chamado
«dos muridin» (adeptos), iniciado pelo místico e chefe
guerreiro abu-l-Qasim al-Husayam ben Qasi, o célebre Ibn
Qasi, natural de Silves, cujos discípulos se apoderaram de
Mértola em Agosto de 1144 e lha entregaram para governar no
mês seguinte. Logo outros chefes se revoltaram em Évora
(Abu Muhammad Sidray ben Wasir) e em Silves (Abu Walid ben
al-Mundir) e, depois de prestarem obediência a Ibn Qasi,
obtiveram a adesão de Faro e conquistaram Huelva e Niebla,
sob o comando de al-Mundir. Este tentou mesmo apoderar-se
de Sevilha, mas foi derrotado e retirou-se para Silves. Por
seu lado, Ibn Wasir, que governava em Beja e submeteu
Badajoz, revoltou-se em 1145 contra Ibn Qasi. Tentando
sujeitá-lo pelas armas, al-Mundir foi derrotado e preso em
Beja; o seu antigo adepto não hesitou em lhe mandar
arrancar os olhos. No princípio do ano seguinte, Ibn Qasi
foi expulso de Mértola pelo mesmo Ibn Wasir. Dirigiu-se
então a Marrocos, para pedir auxílio ao califa almóada Abd
al-Mumin, convidando-o a conquistar a Andaluzia. De facto,
o califa enviou à Hispânia um grande exército, comandado
por Barraz ben Muhammad al-Masufi, que, depois de
atravessar o estreito, conquistou Algeciras, Jerez e
Niebla; depois, Mértola e Silves, que entregou a Ibn Qasi;
a seguir, aceitou a obediência de Ibn Wasir, que conseguiu
manter o governo de Beja, Évora e Badajoz, submetendo-se ao
califa; finalmente, dirigiu-se a Sevilha, que conquistou em
Janeiro de 1147.
Ibn Qasi, no entanto, não suportou durante muito tempo
o domínio das tropas africanas. Pouco depois revoltou-se
contra elas, ao mesmo tempo que surgiam revoltas locais em
Niebla, Badajoz, etc. Depois de um período de lutas, que
tanto Afonso Henriques como Afonso VII aproveitaram para
desencadear as suas expedições para sul, alguns chefes das
taifas, temendo a ofensiva cristã, dirigiram-se em 1150 a
Salé, a capital do império almóada, para prestarem
vassalagem ao califa. Entre eles foram Ibn Wasir, que

67
ainda dominava em Évora e Beja. Ibn al-Hacham, que
entretanto tinha ocupado Badajoz, e ainda os senhores de
Niebla e Tejada, de Jerez, etc. Ibn Qasi recusou-se a fazer
o mesmo e procurou um acordo com Afonso Henriques, que lhe
enviou presentes. Formou-se então uma conspiração, dirigida
por Ibn al-Mundir, apesar de cego, entretanto libertado da
prisão. Estando Ibn Qasi em Silves, em Agosto-Setembro de
1151, foi morto no seu palácio e a sua cabeça espetada na
lança que recebera de Afonso Henriques. O governo passou às
mãos de Ibn al-Mundir, que, todavia, não gozou muito tempo
do Poder, pois foi afastado pouco depois por Ibn Wasir.
Enfim, em 1157-1158, o califa Abd al-Mumin colocou seu
filho Abu Yaqub Yusuf como governador de Sevilha, e este
suprimiu por completo a autonomia dos reis ocidentais,
afastando do Poder o último deles, Ibn Wasir. Como reino
taifa, ficava apenas o de Múrcia, governado por Ibn
Mardanish, o «rei Lobo», que resistiu à unificação até à
sua morte, em 1172.
Estas perturbações permitiram a Afonso VII atacar
Calatrava, intervir nas lutas em torno da posse de Córdova,
tomar o porto mediterrânico de Almeria (Agosto a Outubro de
1147), conquistar Uclés (1150) e pôr cerco a Jaén (1151).
Raimundo Berenguer de Aragão, por seu lado, conquista
Tortosa (1148), Lérida e Fraga (1149). O primeiro projecta,
até, dominar Sevilha, com o auxílio de uma armada de
cruzados francos, em 1151, depois de ter feito em Tudellén
um acordo com Raimundo Berenguer acerca da partilha das
terras a conquistar. O projecto, porém, não se chega a
realizar. Este conjunto de acontecimentos mostra bem o
enfraquecimento do império almorávida e o vigor da ofensiva
cristã durante os anos de 1143 a 1151. É neste contexto que
se insere a conquista portuguesa de Santarém e de Lisboa.

Santarém e Lisboa
É provável que Afonso Henriques tivesse começado a
preparar-se para uma grande ofensiva pouco depois de
regressar de Zamora. Só temos conhecimento, porém, dos seus
actos neste sentido desde o seu ataque a Santarém, donde
partiam numerosas incursões de pilhagem em direcção a
Coimbra. Existe um relato relativamente pormenorizado da
conquista, escrito, decerto, a partir de informações
directas ou indirectas de algum cavaleiro que nela tomou
parte, mas que foram envolvidas depois por um relato já
marcado pela ideologia de cruzada, difundida entre nós no
fim do século XII. Do relato transparece, todavia, um
valioso elemento primitivo, o espírito de camaradagem que
unia Afonso Henriques aos seus homens.
A conquista de Santarém, descrita nesta fonte como uma
operação-surpresa extraordinariamente feliz, parece de tal
modo rápida e simples que custa a crer pudesse ter sido
executada sem o auxílio de alguns habitantes da cidade,
como, de resto, seria natural, nesta época de graves
tensões e cumplicidades, em que todo o ai Andaluz foi
fértil. Seja como for, a posse desta cidade, cuja mítica
abundância os geógrafos árabes exaltavam em termos
hiperbólicos, facilitava a conquista de Lisboa. Tendo
entrado em Santarém a 15 de Março de 1147, Afonso Henriques
já no mês de Julho punha cerco a Lisboa.
A proximidade destes acontecimentos sugere que o rei
soubera já, antes de se dirigir a Santarém, que poderia
contar em breve com o auxílio dos Cruzados. O célebre
relato da conquista de Lisboa afirma que foram persuadidos
a auxiliar os Portugueses por um discurso do bispo do
Porto, que nesta cidade os recebeu e que fora avisado da
chegada por uma carta de Afonso Henriques em que lhe pedia
obtivesse a sua ajuda. Vinham de Colónia, da Lorena, da
Flandres, de Bolonha, da Normandia e sobretudo da
Inglaterra e da Escócia, e eram comandados por Arnaldo de
Aerschot, Cristiano de Diest, Saerius de Arques, Hervé de
Glanville, etc. Conhecemos bem todos os pormenores do
cerco, graças à minuciosa descrição que dele fez um dos
membros da cruzada. A aceitarmos as conclusões de um estudo
de Josiah Cox Russel (1970), seria Ranulfo de Glanville,
que, depois de ter estado na Terra Santa, foi justiceiro da
Inglaterra, antes de voltar de novo à Palestina, para
morrer, junto de São João de Acre, em 1190. H. Livermore,
porém, em estudo mais recente, e talvez com mais razão,
prefere atribuir a autoria ao presbítero normando Raul, de
que não há outros escritos, mas apenas um documento de
doação datado de Lisboa de 1149.
Não é aqui o lugar para resumir as dramáticas
descrições que a partir desta única fonte fizeram vários
autores, sobretudo Herculano. Basta lembrar que o cerco
durou 17 semanas, causou grande mortandade de parte a parte
e terminou com a vitória cristã, em 14 de Outubro de 1147.
A maioria dos Mouros saiu da cidade. Aqueles que não
puderam retirar-se para território muçulmano ficaram em

68
Lisboa, sobretudo nos arredores, como dependentes do rei. A
alcáçova foi ocupada pelos Portugueses e pelos cruzados que
ali quiseram morar. Outros, leigos e clérigos,
estabeleceram-se na região ou mesmo mais longe, como, por
exemplo, os dois irmãos de Cornibus, que fundaram uma
colónia franca em Atouguia da Baleia.
O rei teve ao seu lado, durante quase todo o cerco, o
seu imprescindível conselheiro João Peculiar. Deve ter sido
ele quem o aconselhou a proceder à restauração imediata das
três antigas dioceses, todas elas pertencentes outrora à
metrópole de Mérida e que, portanto, deveriam ser
sufragâneas de Santiago de Compostela. De facto, o rei
nomeou como bispo de Lisboa o inglês Gilberto de Hastings,
como bispo de Viseu Odório e como bispo de Lamego o cónego
regrante de Coimbra, Mendo, antigo companheiro de João
Peculiar. Todos eles foram sagrados pelo arcebispo de
Braga, que assim afirmou a sua independência para com
Santiago de Compostela e Toledo. Como vimos, foram
justamente estes actos que suscitaram os protestos de
Afonso VII junto da cúria romana e a resposta de Eugénio
III, em 1148.
Uma vez conquistada uma cidade tão importante, o rei de
Portugal prosseguiu nas suas expedições, aproveitando as
lutas internas que impediam os contingentes militares de
Évora, Badajoz e Cáceres de intervir. De facto, a ser
autêntica a carta em que os habitantes de Lisboa pediram
auxílio ao senhor de Évora e Beja, Ibn Wasir, e a resposta
que este lhes dirigiu a escusar-se de o fazer, ambas
transcritas pelo relato da conquista de Lisboa, é evidente
o isolamento das diversas cidades muçulmanas nas décadas de
1140 e de 1150. Afonso Henriques pôde, assim, apoderar-se
logo de seguida de Sintra, Almada e Palmela, importantes
fortalezas necessárias à defesa de Lisboa. Depois, tentou
conquistar Alcácer do Sal, com o auxílio dos cavaleiros de
Santarém, apesar da inferioridade das suas forças. Os Anais
de D. Afonso contam que ele apenas dispunha de 60
cavaleiros, com escudos, lanças e espadas, mas sem nenhuma
armadura nem capacete. Apesar de tão reduzidos em número e
de o rei ter sido ferido numa perna, os Portugueses teriam
vencido os inimigos em batalha campal e conseguido obrigá-
los a refugiarem-se atrás das muralhas.

Os combates a sul do Tejo

Com a ocupação da linha do Tejo terminou a mais


importante fase da ofensiva portuguesa. As conquistas e os
combates que se deram depois, até à década de 1160, foram
menos decisivos. Temos uma vaga notícia de que o bispo de
Lisboa estava em 1151 em Inglaterra, onde pregava a cruzada
e tentava convencer os seus compatriotas a organizarem uma
expedição a Sevilha, decerto a mesma que em Abril desse ano
era esperada por Afonso VII para empreender tão importante
expedição, mas que não deve ter chegado a atacar aquela
cidade. Com efeito, a partir desse mesmo ano, como vimos,
os Almóadas estabelecem-se firmemente no al Andaluz e
submetem a maioria dos antigos reinos taifas. O porto de
Almeria, cuja conquista fora a mais gloriosa das de Afonso
VII, foi recuperado em 1157, de nada lhe valendo o socorro
que o imperador tentou levar-lhe. De regresso às suas
terras, Afonso VII morreu em Fresneda, em 21 de Agosto
desse mesmo ano.
Perante a recuperação almóada, Afonso Henriques
procurou novos auxílios de forças externas à Península. Já
vimos que teve pouco êxito a frustrada aliança com Ibn Qasi
em 1151. Além de fazer doações aos cruzados que quiseram
ficar em Portugal, ofereceu vastos domínios aos Templários,
juntamente com os direitos eclesiásticos de Santarém.
Chamou os Cistercienses a Alcobaça, dando-lhes aí um enorme
território, que eles começaram desde logo a desbravar
(1153). Depois, fez mais doações a mestre Gualdim Pais, o
procurador dos Templários em Portugal, provavelmente
regressado havia pouco da Terra Santa (1156 ou 1157), e
concedeu à sua ordem o Castelo de Ceras (1159), algum tempo
mais tarde transferido para Tomar. Os Templários ocupavam
assim importantes posições estratégicas junto do rio Zêzere
e ficavam, por isso mesmo, encarregados da defesa de
Santarém e de Lisboa, impedindo as incursões muçulmanas
vindas de leste de atingirem estas duas cidades.
Criados estes pontos de apoio para consolidar a
organização dos territórios conquistados, o rei recomeçou
as suas campanhas. Em 1158 ou 1160, após um cerco de dois
meses, com a ajuda de alguns cruzados, tomou Alcácer do
Sal, em circunstâncias mal conhecidas. Admitiu-se a
hipótese de estes cruzados terem sido os que acompanharam
Teodorico da Alsácia numa das suas viagens à Terra Santa,
mas as informações que a este respeito possuímos não se
ajustam bem a tal hipótese.

69
Depois de uma interrupção de quatro a seis anos,
durante os quais se inicia a guerra intermitente com
Fernando II, rei de Leão, de que falaremos em breve, as
tropas portuguesas põem-se de novo em movimento na
fronteira sul, por iniciativa de forças diferentes das do
rei, mas que ele, decerto, apoiou. A primeira deve-se ao
bispo de Lisboa, Gilberto, que pediu auxílio ao rei Luís
VII de França, como sabemos por uma carta que dirigiu a um
tal conde Roterícus. Este, depois de ter estado na corte de
Fernando II de Leão, com quem se incompatibilizara, fora
acolhido com simpatia por Afonso Henriques. O conde foi
identificado como Routrou de Perches e a data da carta
atribuída a 1163. A sua vinda a Leão e à corte portuguesa
devia estar relacionada com os projectos pessoais de Luís
VII, rei de França, que sempre se interessou pela política
peninsular, mesmo depois de enviuvar da infanta castelhana,
filha de Afonso VII. Sabe-se que chegou a projectar dirigir
uma cruzada na Hispânia, do que foi dissuadido pelo papa
Eugénio III. A partir deste ano, os movimentos na fronteira
portuguesa redobram de intensidade. Entre 1165 e 1167,
Geraldo, Sem Pavor, à frente de um bando de cavaleiros e de
aventureiros, apoderou-se de um importante grupo de
fortalezas. A sua acção merece ser considerada com algum
pormenor, em virtude das características especiais de que
se revestiu e por ser pouco conhecida.

Geraldo, Sem Pavor, e o desastre de Badajoz

Temos informações precisas acerca destes acontecimentos


através de uma história dos Almóadas relativa ao período de
1159a 1184, escrita no fim do século XII por Abd al-Malik
ben Sahib Asala, provavelmente nascido em Beja. Diz ele, a
propósito de Geraldo, Sem Pavor, que os cristãos de
Santarém tomaram de surpresa a cidade de Beja na noite de
sábado, 22 de Dulhija, do ano de 557 da Hégira, ou seja, a
1 de Dezembro de 1162. Depois de quatro meses e oito dias
de posse, arrasaram-lhe os muros e despovoaram-na. Em
seguida, enumera outras cidades tomadas por Geraldo:
Trujillo, Évora e Cáceres, no ano de 1165, e os castelos de
Montanchez, Serpa e Juromenha, em 1166.
O mesmo autor relata os processos tácticos utilizados
por Geraldo para conseguir obter em tão pouco tempo estas
surpreendentes vitórias: resultavam de ataques inesperados
durante a noite e no Inverno, com a penetração nas
fortalezas por escadas encostadas às muralhas. Estas
informações devem aproximar-se da breve referência que a
Geraldo fazem os Anais de D. Afonso. Dizem estes que Beja
foi tomada de noite no último dia de Novembro de 1162 por
Fernão Gonçalves, os homens do rei e alguns cavaleiros
vilãos; em 1166, Évora foi tomada de noite por Geraldo,
chamado «Sem Pavor», e os «ladrões seus companheiros», e
entregue ao rei; este, por sua vez, tomou pouco depois
Moura, Serpa e Alconchel e mandou reedificar o Castelo de
Coruche.
Apercebemo-nos, assim, de que a acção dos cavaleiros
vilãos de Santarém devia ter desencadeado, pelo seu
sucesso, uma série de ousadas operações dirigidas por
Geraldo, Sem Pavor, que se tornou então uma espécie de Cid,
o Campeador. Agia por sua conta e risco, com um bando de
salteadores, provavelmente marginais e aventureiros. Afonso
Henriques apoiou-os e tirou partido das suas acções
armadas, apoderando-se das cidades que eles conquistavam,
pelo menos de Évora, e conjugando com eles as suas acções
militares.
Apesar de os companheiros de Geraldo serem marginais, a
sua acção tornou-se, pelo menos a partir de certo momento,
uma campanha com objectivos militares mais ambiciosos e
mesmo cuidadosamente programados, como se deduz da sucessão

[Legenda de figura.]
As campanhas de Geraldo, Sem Pavor, para a conquista de
Badajoz.
Neste mapa representam-se as diversas conquistas de
Geraldo, Sem Pavor, antes de atacar Badajoz, em 1169. Se
está certa a sucessão indicada por Abd al-Malik ben Sahib
Asala (Beja, Trujillo, Évora, Cáceres, Montanchez, Serpa,
Juromenha), verifica-se a certeira táctica do caudilho, que
atacava de surpresa os castelos protectores do grande
baluarte muçulmano do Ocidente, para enfraquecer a sua
defesa antes do assalto final. Verifica-se também a
coordenação das suas campanhas com as de Afonso Henriques,
que ataca sucessivamente Coruche, Moura e Alconchel, para
depois se lhe associar no cerco final a Badajoz.

70
geográfica dos acontecimentos. Embora as suas conquistas
sigam uma linha sinuosa, imposta pela táctica da surpresa,
transparece o claro objectivo de ocupar sucessivamente os
pontos de apoio militar que rodeavam Badajoz e asseguravam
a sua defesa, para, finalmente, isolar esta cidade: Beja,
Évora, Moura, Serpa e Juromenha protegiam-na a oeste e
sudoeste; Cáceres, Trujillo e Montanchez a leste e
nordeste; Alconchel a sul. De facto, diz ainda Ibn Sahib
que, a partir de 1166, Geraldo se instalou em Juromenha, a
uns 25 km daquela cidade, «combatendo e incomodando
constantemente os muçulmanos de Badajoz». Finalmente, em
1169, Geraldo desencadeou o ataque final à poderosa
fortaleza. Conseguiu passar as muralhas exteriores e entrar
na povoação, mas resistiu-lhe a alcáçova, onde os
guerreiros almóadas se refugiaram. O caudilho chamou então
em seu auxílio o rei de Portugal, que veio reforçar com as
suas tropas o cerco da alcáçova.
O ataque a Badajoz representava enorme perigo para o
poderio muçulmano no Ocidente da Península. Desde a época
califa] que a cidade constituía o centro do seu sistema
militar nesta zona da fronteira, à semelhança do que haviam
sido antes Toledo, ao centro, e Saragoça, a oriente. De
facto, a reconquista cristã nunca conseguiu avançar com
segurança para além da linha do Tejo até à tomada de
Cáceres e de Badajoz, em 1227 e 1229. Os combates em torno
destas fortalezas, no princípio do século XIII, foram
constantes, e a eventualidade de os Almóadas perderem este
grande centro do comando militar levou-os a concentrarem aí
todas as suas forças, para poderem resistir à ofensiva
portuguesa.
O emir, vendo-se na iminência de perder Badajoz, mandou
pregar a guerra santa para socorrer a cidade com tropas
mais numerosas e enviou para ali um primeiro corpo
comandado por seu irmão Abu Hafs, ou, segundo outra fonte,
preferida por A. Huici Miranda, o xeque Umar Inti
al-Hintati. Quando as tropas de socorro chegaram a Sevilha,
souberam que o rei de Leão, Fernando II, tinha também
marchado em direcção a Badajoz para impedir Afonso
Henriques de a tomar.
A intervenção do rei de Leão era compreensível. Em
1153, assinara em Sahagún um acordo com seu irmão Sancho
III, no qual reservava para si a zona do Alentejo e do
Algarve, com os territórios de Niebla, Montanchez e Mérida,
enquanto Sancho III se propunha conquistar as províncias
que ficavam a oriente dessas cidades. Sendo assim, a posse
de Badajoz pelos Portugueses impedia a expansão dos
Leoneses para sul.
A partir do momento em que Geraldo se fixou em
Juromenha e se tornou claro que os Portugueses tentavam
apoderar-se de Badajoz, Fernando II, que no mesmo ano
conquistara Alcântara, a uns 60 km a noroeste de Cáceres,
verificou que não podia competir com eles. Não admira,
pois, que decidisse aliar-se com os Almóadas para impedir
Geraldo de atingir os seus objectivos. Não era a primeira
vez que se entendia com eles: no Verão de 1158 tinha
enviado o seu alferes Fernão Rodrigues de Castro a Sevilha,
e dali a Marrocos, para assinar com o califa um pacto de
defesa mútua. Apesar de este acordo ter provavelmente
caducado, em virtude da conquista de Alcântara pelas tropas
leonesas, Fernando II estava demasiado interessado nele
para o esquecer.
Quando o rei de Leão acampou junto da cidade, mandou um
mensageiro ao governador sitiado na alcáçova para o
encorajara resistir. Os Almóadas fizeram uma surtida
inesperada de dentro da alcáçova, conseguiram chegar às
portas exteriores e abriram-nas, permitindo assim a entrada
dos seus aliados. Geraldo e Afonso Henriques tiveram de
retirar precipitadamente. Foi então que se deu o célebre
episódio em que o rei de Portugal partiu uma perna, quando,
ao tentar fugir, chocou contra o ferrolho de uma das portas
da muralha exterior. Levado pelos seus para Caía, foi pouco
depois capturado por cavaleiros leoneses e conduzido à
presença de Fernando II. Este concedeu-lhe a liberdade,
provavelmente depois de lhe exigir que cessasse os ataques
a Badajoz. O rei de Portugal voltou para Coimbra e dali
para Lafões, ou, mais exactamente, para as termas de São
Pedro do Sul, onde esteve convalescente durante alguns
meses.
Quanto a Geraldo, Sem Pavor, obteve a liberdade
mediante a restituição das praças que tinha em seu poder,
exceptuando, talvez, Juromenha. Segundo parece, Montanchez
e Trujillo foram entregues aos Leoneses, mas Cáceres e
Serpa regressaram à posse dos Almóadas. O indomável
caudilho, porém, fixou-se de novo em Juromenha e recomeçou
os seus ataques, apesar de Badajoz ter sido reforçada com
tropas chefiadas pelo filho do xeque Umar Inti. Foi
necessário recrutar um poderoso exército em Marrocos,
comandado pelo irmão do califa, Sayyid Abu Hafs, que chegou
71
a Badajoz em Novembro de 1170, quando nas imediações já
estava acampado Fernando II, que, pelos vistos, se
preparava para tomar posse da cidade, antes que Geraldo
conseguisse conquistá-la. Perante os socorros almóadas, o
rei de Leão regressou ao seu país. Abu Hafs conseguiu
expulsar Geraldo de Juromenha, mas ele fixou-se em Lobón,
na estrada que ligava Badajoz a Sevilha, para interceptar
as expedições de armas e víveres. Em 1172, se não há
confusão com um acontecimento muito semelhante de 10 anos
antes, Geraldo voltou a atacar Beja, que entretanto tinha
sido abandonada pelos cristãos. O assalto foi feito com a
habitual surpresa e durante a noite. Depois de pilhada, de
lhe terem de novo arrasado as muralhas e de a incendiarem,
Beja foi abandonada no princípio de Janeiro de 1173.
Durante a maior parte deste tempo, os Almóadas tiveram
de combater não só na frente ocidental, mas também em torno
de Múrcia, cujo rei lhes resistiu vigorosamente, sem nunca
desistir da sua independência. Depois de, em 1173, ser
finalmente vencido, o califa, que tinha dirigido
pessoalmente alguns dos combates, concentrou as suas forças
no ataque de algumas cidades castelhanas, entre elas Ávila,
Toledo e Talavera, onde causou grandes perdas. O conde Nuno
de Lara, tutor do pequeno rei Afonso VIII, filho de Sancho
III, teve de pedir tréguas a Yusuf I. Afonso Henriques
também enviou os seus embaixadores a Sevilha para solicitar
a interrupção das hostilidades. Depois de dois meses de
conversações, em Setembro e Outubro de 1173, assinaram umas
tréguas de cinco anos e regressaram a Coimbra.
Termina aqui a carreira de Geraldo, Sem Pavor, ao
serviço da conquista portuguesa. Nesse ano, comandando 350
homens, passou ao serviço do califa, fixando-se em Sevilha
até 1176, data em que o acompanhou a Marrocos. Segundo
fontes árabes, começou pouco depois a trocar
correspondência secreta com Afonso Henriques. O incansável
aventureiro teria convidado por escrito o rei de Portugal a
desembarcar com as suas tropas em Marrocos, onde poderia
obter fabulosos despojos. As cartas foram descobertas e
Geraldo condenado à morte.
Entretanto, no Inverno de 1174 e na Primavera de 1175,
Yusuf I mandou repovoar Beja e reconstruir as suas
muralhas. Pela sua parte, em data que ignoramos, mas que
deve situar-se entre 1166 e os primeiros anos das tréguas,
Afonso Henriques mandava edificar o Castelo de Coruche, com
uma posição importante junto à via de acesso a Lisboa e
Santarém pelo Alentejo. Além disso, rodeou a cidade de
Évora da maior atenção. Imitando o exemplo de Fernando II,
que apoiara a fundação da ordem militar de Sanflago da
Espada, em 1170, promoveu em Évora, em 1175 ou 1176, a
criação de uma milícia portuguesa, que adoptou os costumes
e a regra da ordem castelhana de Calatrava. Entregou o seu
comando ao governador militar de Lisboa e da Estremadura,
Gonçalo Viegas de Lanhoso, e confiou-lhe logo a seguir, em
1176, a defesa de Coruche. De facto, os freires da nova
ordem desempenharam um importante papel na defesa de Évora
em 1181.
Depois das investidas de Geraldo, Sem Pavor, e dos
avanços que graças a ele se tinham dado na fronteira
sudeste do reino, estas medidas permitiram consolidar
militarmente as posições alcançadas. De facto, Évora não
voltou a cair nas mãos dos Mouros, apesar do seu
isolamento. Este facto parece um tanto surpreendente,
sobretudo depois das invasões almóadas de 1184, 1190 e
1191, que reocuparam todos os postos portugueses a sul do
Tejo, excepto Évora. A proximidade de Badajoz parece também
não a ter afectado grandemente. Para explicar este facto
não basta reconhecer a importância do papel desempenhado
pelos freires de Évora na defesa da cidade, embora este
facto seja inegável e atestado historicamente. Com efeito,
Évora passou a desempenhar um papel económico de primeira
importância. As actividades comerciais que então ali se
desenvolveram não beneficiavam só os cristãos, mas também
os muçulmanos que se consagravam às transacções de
fronteira. Évora tornou-se o principal centro onde afluíam
as mercadorias andaluzas, que os Portugueses compravam com
o ouro obtido nos despojos de guerra dos anos anteriores.

Consequências da Reconquista

Antes de terminarmos a matéria referente à conquista do


território português, convém sublinhar algumas das
implicações do alargamento dos Estados de Afonso Henriques
à região que vai do Mondego ao Alto Alentejo e ao rio Sado.
Já mais acima tivemos ocasião de examinar as
consequências da fixação do príncipe D. Afonso em Coimbra.
O recuo da fronteira reforça e amplia o que ali dissemos. A
abundância de terras férteis na Estremadura e a atracção

72
das cidades, afamadas pela sua prosperidade, constituíam um
enorme incentivo aos movimentos migratórios vindos de
norte, permitindo, sem dúvida, a rápida absorção de todos
os habitantes excedentários de além-Douro. Procuraram antes
de mais as cidades e outros lugares bem defendidos, mas
logo a seguir começaram a ocupar e desbravar os espaços
rurais até ali incultos. A sua afluência deve ter causado
alguns problemas de integração. De facto, certos indícios
indirectos permitem afirmar que existia uma considerável
quantidade de pobres e marginais em zonas de fronteira
durante a segunda metade do século XII. No conjunto, porém,
o avanço da fronteira constituiu um factor de grande
importância para o equilíbrio demográfico do País e para a
ampliação do espaço dominado pela economia urbana e
monetária. Foi, portanto, um elemento decisivo para a
viabilidade da independência e para o desenvolvimento
económico de Portugal.

A reorganização municipal

Como é que Afonso Henriques e os seus conselheiros


administraram o território que assim foi formando o novo
reino de Portugal? Podemos distinguir neste campo três
grandes vectores da política afonsina: a acção que
comummente se designa «repovoadora», a implantação de
órgãos da administração central e a política eclesiástica.
Vejamos sucessivamente estes três aspectos.
A política «repovoadora», que usa como principal
instrumento a organização concelhia, parece estar
subordinada, até ao fim do século XII, às necessidades
militares. Há nela três fases principais: a primeira, já
examinada, destinava-se a consolidar o sistema defensivo em
torno de Coimbra, e incluía a formação de um aro de
fortalezas que asseguravam a sua protecção contra os
assaltos vindos de Santarém e de Lisboa; a segunda
orientava-se para o fortalecimento das comunidades
municipais de Évora e da Beira interior entre 1157 e 1169;
e a terceira, para beneficiar as povoações da Estremadura,
Ribatejo e Beira interior, com o intuito de as reforçar
contra os assaltos almóadas posteriores a 1184 e os novos
ataques leoneses do fim do século XII. Conhecemo-las pela
análise dos forais dados aos respectivos concelhos pelos
dois primeiros reis de Portugal. Trataremos agora das duas
primeiras e mais adiante da última.
Na política de reforço das comunidades em torno de
Coimbra insere-se a concessão de forais a Penela (1137),
Leiria (1142), Germanelo (1142-1144) e Arouce, junto à
Lousã (1151). Podem ainda relacionar-se com este grupo os
dois forais de Sátão (1127-1139) e de Seia (1136),
povoações que, embora se situem a nordeste de Coimbra,
estavam então ligadas ao sistema defensivo do Mondego. De
facto, nessa época, os ataques vindos de Badajoz atingiam
ainda toda a Beira interior. As notícias que dão conta
destas incursões, que vão, por exemplo, até Lamego, estão
envolvidas em lendas tardias, mas devem basear-se em factos
reais.
A grande investida de Afonso Henriques de que resultou
a conquista de Lisboa e de Santarém em 1147,
surpreendentemente, não levou à concessão de qualquer
foral, excepto em benefício dos cavaleiros de Sintra, em
1154.O movimento espontâneo das populações vindas do Norte
assegurava a afluência de gente a essa região. De facto,
como vimos, não só se organizaram solidamente, mas também
se tornaram pontos de partida para agressivas incursões em
território inimigo, sobretudo no caso dos cavaleiros vilãos
de Santarém. O carácter inóspito de Sintra, porém, tornava
necessário conceder-lhe privilégios especiais, para assim
garantir a vigilância necessária à segurança de Lisboa.
Pode dizer-se o mesmo a respeito do foral de Évora, o
único que está relacionado com a última fase da reconquista
afonsina e que data de 1166. Foi ditado pelo propósito de
atribuir privilégios a habitantes de um lugar exposto a
perigosos ataques inimigos.
A partir de 1157, e durante um período que vai
aproximadamente até à data do desastre de Badajoz,
conhece-se um importante grupo de forais atribuídos a
concelhos situados perto da fronteira leonesa e que
reproduz geralmente o modelo do de Salamanca. São todos não
datados, excepto o de Linhares, concedido em 1169; devem
ter sido outorgados em ocasiões muito próximas umas das
outras, excepto o de Freixo de Espada à Cinta, o único a
norte do Douro; a sua data crítica permite considerá-lo o
mais precoce de todos. Beneficiaram as povoações
fortificadas de Trancoso, Marialva, Aguiar da Beira,
Celorico da Beira, Moreira de Rei, Linhares e Penela da
Beira. A criação nesta zona de municípios autónomos,
dotados de privilégios, destinava-se a formar as malhas de

73
uma rede defensiva contra as possíveis agressões militares
leonesas a partir de Cidade Rodrigo, lugar repovoado pelo
rei Fernando II por volta de 1160 ou 1161. De facto, a
guerra entre Leão e Portugal atingiu particularmente esta
zona, a partir da celebração do já mencionado Tratado de
Sahagún, em 1158.
Além destes forais, conhecemos ainda uns tantos que
favoreceram povoações dispersas, entre as quais se
distingue um grupo no vale do Douro. Neste caso, porém,
trata-se de cartas dadas a pequenas comunidades rurais, ou
seja, a Ansiães (1137-1139), Mesão Frio (1152), Celeiros
(1160) e São João da Pesqueira (1169-1175). Este conjunto
talvez se possa explicar pela importância que durante este
século teve Constantim de PaUoias, que já tinha obtido
foral pelo conde D. Henrique e era sede de uma das feiras
mais antigas de que há notícia no nosso país. São também
«rurais», portanto inseridos nas estruturas senhoriais,
outros concelhos a que Afonso Henriques deu foral na zona
feudal do Noroeste português: os de Espinho, Panoias, no
concelho de Mortágua (1144), Banho, junto a São Pedro do
Sul (1152), e Barcelos (1156-1169), na futura cidade do
mesmo nome. O facto de o primeiro ter sido concedido em
conjunto com Mem Moniz, irmão de Egas Moniz, acentua o
carácter que já referimos.
A administração central e local

O que acabámos de ver acerca da política concelhia até


1169 pode, de certo modo, relacionar-se com a criação dos
primeiros órgãos de administração central do incipiente
reino de Portugal.
O aparecimento de funcionários palatinos, como o
mordomo-mor e o alferes-mor, data, como se sabe, da época
do conde D. Henrique, mas as suas funções não parecem ter
alcançado grande estabilidade até ao fim da época condal. A
permanência no cargo inicia-se no princípio do governo de
Afonso Henriques: o mordomo-mor torna-se vitalício e a
série de alferes-mores pode reconstituir-se facilmente.
Conhecemos bem a sucessão dos primeiros, a partir do que
inaugurou a série, Ermígio Viegas de Ribadouro, que até à
sua morte deve ter desempenhado um cargo com
responsabilidades particularmente alargadas, segundo parece
deduzir-se da maneira como os documentos se referem às suas
funções. Segúiu-se-lhe seu irmão Egas Moniz de Ribadouro
(1136-1145), que a lenda posterior transformou em «aio» do
rei. Depois, Fernão Peres Cativo (1146-1155), que era de
origem galega e foi um dos mais fiéis seguidores de Afonso
Henriques e fundador da casa de Soverosa. Mais tarde,
Gonçalo Mendes de Sousa, irmão do dedicado auxiliar do
infante na Batalha de São Mamede (a acreditar na chamada
Gesta de Afonso Henriques) e seu colaborador na defesa de
Guimarães durante o cerco de Afonso VII. Tendo ele morrido
em 1167 ou 1168, sucedeu-lhe o conde Vasco Sanches de
Barbosa, sobrinho, parece, do conde Gomes Nunes de Toronho,
que, como vimos, tinha sido banido por Afonso VII depois do
«bafordo» de Valdevez. Vasco Sanches também era, portanto,
de origem galega, como Fernão Cativo.
Quanto aos alferes de Afonso Henriques, encontramos
menos coerência e algumas sobreposições. Mesmo assim, o
cargo parece tornar-se cada vez mais definido, embora os
seus detentores o desempenhem durante períodos geralmente
curtos. Depois de Lourenço Viegas de Ribadouro, filho de
Egas Moniz, que o exerceu durante um breve período, em
1129, encontramos Fernão Cativo, entre 1130 e 1136, antes
de se tornar mordomo, e a seguir Garcia Mendes de Sousa
(1138-1141), provavelmente irmão mais novo do mordomo-mor
Gonçalo de Sousa. Segue-se Álvaro Peres, decerto irmão de
Fernão Cativo, entre 1142 e 1145. No ano seguinte, aparece
com o mesmo ofício Mendo Fernandes de Bragança. Mais tarde,
durante um período que vai de 1147 até ao desastre de
Badajoz, desempenha o cargo Pêro Pais da Maia, chamado
justamente «o Alferes». Foi ele, no princípio da sua
carreira, quem auxiliou o rei na conquista de Lisboa e
depois em todas as suas grandes expedições. Todavia, Afonso
Henriques deve ter-lhe atribuído graves responsabilidades
no desastre de Badajoz, porque deixa o cargo a partir desse
momento. Incompatibilizado com ele, passou ao reino de
Leão, onde Fernando II lhe confiou o mesmo cargo na sua
corte.
Desta simples enumeração se verifica que os principais
cargos palatinos eram desempenhados por membros das mais
categorizadas famílias nobres de Entre Douro e Minho,
detentoras de poderes senhoriais desde o princípio do
século Xí, que se tinham tornado governadores de terras da
mesma região e depois acompanharam os condes borgonheses.
Os mordomos-mores eram chefes de linhagem; os alferes eram

74
muitas vezes seus parentes mais novos e o cargo parece ser
para eles uma etapa da sua carreira palatina. O caso de
Pêro Pais da Maia é, portanto, excepcional, porque ocupa o
cargo durante mais de 20 anos e é chefe da sua linhagem.
O mordomo e o alferes não são, no entanto, os únicos
dignitários da corte. Ao seu lado aparecem nomes de origem
galega, que, por vezes, se mantêm em funções não
especificadas, mas durante mais tempo, e parecem gozar,
até, da maior confiança por parte do rei. Facto
compreensível, se se tiver em conta que ele acolhia no seu
séquito filhos segundos e outros nobres sem domínios
territoriais, que, portanto, dependiam da sua benevolência,
se tornavam membros da sua casa e aí encontravam também
outros vassalos e cavaleiros de condição inferior, com os
quais o rei estabelecia igualmente um vínculo feudal, que
não excluía, de resto, relações de verdadeira camaradagem.
Quer isto dizer que o rei, tendo sido levado ao Poder pelos
barões de Entre Douro e Minho, se distanciou deles, sem,
todavia, os hostilizar, pois continuou a atribuir-lhes os
cargos palatinos mais honrosos. Foi esta a razão pela qual
se guardaram na memória dos seus descendentes tradições
depreciativas para com o rei, que transparecem nas anedotas
a seu respeito conservadas nos livros de linhagens, mas não
os levam a combatê-lo abertamente pelas armas, como tantas
vezes aconteceria em Castela.
Conhecem-se muito poucos actos de Afonso Henriques no
plano da administração local propriamente dita para poder
caracterizá-la de maneira suficientemente precisa. O mais
provável é que se tivesse limitado a conservar os
governadores das terras definidas anteriormente. Na Beira e
na fronteira meridional, desde a zona de Viseu e Lamego até
às áreas de combate, o carácter mais militar do cargo leva
ao seu exercício por períodos mais curtos e explica as
frequentes substituições dos seus detentores. Dir-se-ia,
mesmo, que tais cargos eram, em geral, atribuídos a
cavaleiros durante a sua juventude, como forma de iniciação
na carreira das responsabilidades administrativas. De
resto, nas povoações mais próximas das zonas de fronteira,
os delegados régios não ostentavam a designação de
«tenentes» (governadores). Aparecem como «alcaides» dos
concelhos e, portanto, limitam-se a comandar as guarnições
militares dos respectivos castelos e a representar o rei
junto do município. Os raros casos de governadores que
conhecemos, como Gonçalo Viegas, em Lisboa, e Mem Estrema,
em Santarém, não resultam de se ter criado uma categoria
administrativa estável, nem dão origem ao cargo de
fronteira, à semelhança do que existia em Castela. Este
cargo não criou raízes em Portugal, apesar de algumas
referências vagas em fontes tardias. Sublinha-se, assim, o
carácter militar e local dos representantes do rei no
Centro e na fronteira, a limitação dos seus poderes em face
dos privilégios autonómicos dos concelhos, que geralmente
possuem a jurisdição civil e militar sobre o território que
o castelo defende, e a tendência precoce para a intervenção
directa do rei nestas mesmas zonas, sem o intermediário dos
governadores das terras.
Se as funções judiciais, militares e fiscais eram
desempenhadas pelos governadores das terras nas zonas de
regime senhorial e pelos juízes municipais, sob a
vigilância dos alcaides, nas zonas de regime concelhio, não
havia muito lugar para outros funcionários régios. Estes
reduzem-se, afinal, aos mordomos das terras, que estão
encarregados de cobrar as rendas e direitos senhoriais dos
reguengos e terras da coroa. Todavia, o carácter senhorial
da autoridade régia em relação a estes domínios leva a que
acabem por desempenhar também funções judiciais, policiais
e fiscais de carácter subalterno. Será necessário esperar
pela época de Afonso II, e sobretudo pela de Afonso III,
para se poder notar o desenvolvimento dos órgãos de
administração central, por intermédio do aperfeiçoamento
das funções judiciais da coroa.

A política eclesiástica de Afonso Henriques

Alguns actos da política eclesiástica de Afonso


Henriques foram já mencionados. Lembro os mais importantes,
em virtude das suas consequências directamente políticas: a
vassalagem à Santa Sé, em 1143, e a nomeação dos bispos de
Lisboa, Lamego e Viseu, logo depois da conquista de Lisboa,
em 1147. Vimos também que ambos deviam ter sido inspirados
por D. João Peculiar. De facto, enquanto este prelado foi
vivo, dominou inteiramente a política eclesiástica do rei.
Foi ele quem interveio junto da Santa Sé nas suas
frequentes viagens à cúria pontifícia, quem negociou as
decisões papais a respeito da controversa questão das
metrópoles e dos direitos dos arcebispos de Toledo e de
Compostela, quem procurou sempre, decerto com o acordo de

75
Afonso Henriques, estender os seus direitos metropolíticos
sobre todas as dioceses portuguesas, mesmo aquelas que
pertenciam outrora à província eclesiástica de Mérida e que
tinham sido atribuídas a Compostela em 1120. Para isso, nem
sempre conseguiu obter a colaboração de todos os bispos
portugueses. Entre as várias questões que teve de sustentar
com eles, pode-se apontar a que o opôs ao bispo de Coimbra,
que, por outro lado, combatia também os cónegos regrantes
de Coimbra, dependentes directamente da Santa Sé desde que
obtiveram o privilégio da isenção canónica, em 1135.
Deve ter sido também ele quem aconselhou outros
mosteiros canonicais, como Grijó (1139) e Refojos de Lima
(1154), a pedirem a Roma o mesmo privilégio de isenção,
passando assim a depender directamente do papa. O movimento
estendeu-se depois aos Templários (1159) e aos mosteiros
cistercienses de Tarouca e Lafões, em 1163, de Alcobaça, em
1164, e de Santa Maria de Aguiar, em 1182.
Assim, os legados pontifícios que por esta época vieram
a Portugal tiveram, por isso mesmo, bastantes questões a
dirimir. Os bispos e os religiosos isentos raramente
estavam de acordo entre si. Foi muitas vezes necessário
pedir a intervenção dos juízes apostólicos para solucionar
as questões daí resultantes. Quando os legados vinham a
Portugal, resolviam-nas directamente. Noutras ocasiões, a
Santa Sé nomeava juízes apostólicos, escolhidos entre os
bispos portugueses, galegos ou leoneses que lhe eram mais
fiéis ou entre os abades dos mosteiros mais poderosos,
sobretudo os isentos. O recurso à Santa Sé tornou-se,
então, uma prática cada vez mais frequente, mesmo para
questões que não resultavam directa ou indirectamente da
isenção canónica. Temos algumas notícias da visita do
cardeal legado Guido de Viço, que já mencionámos a
propósito da vassalagem do rei à Santa Sé, em 1143; depois,
da do cardeal Jacinto, que em 1154 esteve em Coimbra,
Tibães e Tui, tendo aqui procurado (sem o conseguir, é
claro) dar uma sentença definitiva sobre as questões entre
Braga e Compostela.
Em 1161, estiveram em Coimbra os núncios Teodino e
Leão, para recolherem dinheiro para a Santa Sé, e, em 1168
ou 1169, um tal mestre Pedro, que desempenha também as
funções de colector da cúria no nosso país. Antes da morte
de João Peculiar, encontra-se ainda outro legado, que tenta
apaziguar as questões entre Braga e Compostela e dirimir os
conflitos resultantes da jurisdição sobre as dioceses
sufragâneas de ambas, cedendo, praticamente, à maioria das
reivindicações do arcebispo de Braga: foi o cardeal
Jacinto, que veio segunda vez a Portugal nos primeiros
meses do ano de 1173.
Tendo visto o contexto em que se passaram estas
visitas, compreende-se que as numerosas intervenções de
legados papais criassem no espírito de muitos cavaleiros e
vassalos do rei a impressão de que eles vinham ao nosso
país para recolher dinheiro e intervir em questões
internas. Esta reacção pressente-se ainda hoje no relato de
um dos episódios mais importantes da chamada Gesta de
Afonso Henriques, ou seja, aquele que descreve a estória do
«bispo negro». Os autores mais «críticos» da historiografia
moderna empenharam-se em demonstrar que se tratava de um
personagem fictício. Sem querer propriamente demonstrar a
historicidade do episódio, não pode deixar de se notar que
há referências a um conflito semelhante entre o rei de
Portugal e o cardeal Jacinto na Crónica de Henrique II de
Inglaterra. A imagem traçada na Gesta correspondia,
decerto, a uma efectiva reacção do rei contra a cúria
romana, partilhada pelos seus vassalos e dramatizada depois
pelo jogral que a criou. As interpretações apologéticas de
raiz clerical baseadas na imagem de Afonso Henriques
transmitida pelos escritos de Santa Cruz de Coimbra não
correspondiam à realidade. Ao heróico defensor da
Cristandade, inspirado por Deus e seu fiel servidor,
apresentado nos Anais, contrapõe-se o chefe independente,
pouco interessado nas questões canónicas, que não admitia
qualquer espécie de sujeição a autoridades alheias,
retratado pela Gesta.
Não quer isto dizer que o rei e os seus conselheiros
não tivessem beneficiado bastantes instituições
eclesiásticas além da arquidiocese de Braga, em que
pontificava João Peculiar. Aquela que, sem dúvida, ocupa o
lugar de maior relevo nesta política é a de Santa Cruz de
Coimbra, cuja importância junto de Afonso Henriques já
sublinhámos. Este mosteiro tornou-se, assim, senhor de
direitos eclesiásticos em Leiria e de grandes domínios em
todo o vale do Mondego, nas faldas setentrionais da serra
da Estrela e numa vasta área à volta de Coimbra. As
biografias de Telo, seu fundador, e de S. Teotónio, seu
primeiro prior, acentuam de maneira inequívoca a devoção
que o rei tinha para com ele e o seu papel de conselheiro
espiritual.

76
A influência dos Regrantes nesta época pode imaginar-se
também pelo facto de, a partir de 1134, terem introduzido a
regra de Santo Agostinho e as suas observâncias em muitos
mosteiros antigos do Norte do País, que pertenciam, em
grande parte, a famílias da nobreza média e inferior. É
possível que as suas comunidades tivessem resistido até
esta época à adopção de usos cluniacenses, conotados, como
estes estavam, com uma cultura importada e uma liturgia
imposta à força. O alinhamento por costumes que tinham
incorporado alguma coisa de moçárabe, embora sem deixar de
aceitar a liturgia romana, devia parecer-lhes uma solução
para os antagonismos anteriores, porque aceitava a
renovação religiosa sem pactuar com os usos monásticos
anteriormente combatidos.
O Norte do País ficou, assim, semeado de mosteiros de
cónegos regrantes, cuja prosperidade se situa num período
que vai desde meados até ao fim do século XII. Em direcção
ao sul, os Regrantes, com a protecção do rei, vieram também
a fundar o Mosteiro de S. Vicente de Fora, em Lisboa,
mostrando assim a sua capacidade de adaptação, quer a meios
rurais quer a meios urbanos. Mas nada mostra melhor o
apreço que Afonso Henriques tinha por eles do que o facto
de ter nomeado para algumas dioceses bispos procedentes de
Santa Cruz de Coimbra, além de João Peculiar, o que
permitiria uma certa homogeneização da pastoral
eclesiástica numa fase da reforma mais adaptada ao meio
nacional do que no tempo de S. Geraldo.
A corte também protegeu os Cistercienses. O primeiro
mosteiro que tiveram entre nós foi o de Tarouca, que, sendo
de fundação anterior, permaneceu durante algum tempo sob a
regra beneditina, e pouco depois de 1140 se filiou no
Mosteiro de Claraval, cujo abade era nessa altura S.
Bernardo. Mais tarde, foram-se também filiando na mesma
ordem várias abadias de tendência eremítica da Beira Alta,
como Salzedas, Lafões, São Pedro das Águias, Sever do
Vouga, Maceira-Dão, etc. Mas o acontecimento mais decisivo
para o futuro desta ordem em Portugal foi a fundação de
Alcobaça, pouco antes de 1153, no centro de um vasto
domínio dado pelo rei. O seu propósito era, decerto, povoar
uma região pouco habitada, mas fértil, da Estremadura. Os
monges brancos, todavia, permaneceram nos locais afastados
das povoações, como eles, por essa altura, preferiam,
bastante isolados da vida religiosa dos leigos e do clero
diocesano e sem grande influência sobre a corte ou a
sociedade aristocrática. Começaram desde então a desbravar
as terras despovoadas, que cultivaram por administração
directa, e a acumular os rendimentos agrícolas. Dentro em
breve obteriam excedentes comercializáveis, que lançaram no
mercado abastecedor das cidades mais próximas, activando
assim a vida económica do País. Os da Beira, porém, já
nesta altura começavam a atrair também a devoção e as
doações da alta aristocracia senhorial, como aconteceu, por
exemplo, com os senhores de Ribadouro.
Com a mesma intenção de fomentar o povoamento, Afonso
Henriques concedeu várias doações e privilégios a
comunidades eremíticas situadas na Beira Alta, ou mais a
norte, no cruzamento de caminhos e na periferia das regiões
mais habitadas. Estas frágeis e pobres comunidades
desempenharam um papel importante no repovoamento, apesar
de, para o fim deste século e no princípio do seguinte,
acabarem por se transformar em casas filiadas em ordens
regulares ou em simples igrejas paroquiais.
Enfim, pode também relacionar-se com a mesma tendência
a protecção que o rei concedeu a albergarias, como a do
Marão, que confiou à protecção da Sé de Braga em 1134, e a
de Gavieiras, também à mesma sé, em 1136.
Os antigos mosteiros, existentes desde há muito no
Norte e protegidos pelos nobres que viviam perto deles,
também não foram ignorados pela chancelaria régia. Afonso
Henriques concedeu-lhes numerosas cartas de couto, que lhes
atribuíam direitos senhoriais sobre territórios mais ou
menos vastos. Estas, porém, talvez se destinassem sobretudo
a favorecer os senhores que o rei procurava captar ou
recompensar. Muitas destas retribuem bens recebidos em
troca pelo rei, como cavalos e dinheiro. Constituem uma
série numerosa até 1150, ou seja, até ao período em que o
rei precisava do auxílio dos senhores do Norte para
organizar as suas expedições. A partir da conquista de
Lisboa, deixa de necessitar de contribuições materiais da
nobreza nortenha e por isso cessam as concessões deste
género.
A intervenção do rei noutro movimento religioso que
caracterizou a segunda metade do século XII, o dos
mosteiros beneditinos de mulheres, foi mais reduzida. Este
movimento levou a transformar em comunidades exclusivamente
femininas aquelas que antes eram dúplices, isto é, de

77
homens e mulheres, ou a fundar mosteiros novos, entre eles
alguns de raiz eremítica, e abrangeu casas como Rio Tinto,
Vairão. Arouca. Recião, Tarouquela, Semide, Tuias, Gondar,
etc. O papel de Afonso Henriques e dos seus conselheiros
foi, neste caso, bastante pequeno, porque se tratava de
mosteiros destinados, em boa parte, a recolher as filhas
dos senhores do Norte, sobretudo da média e da pequena
nobreza, que começavam a adoptar a estrutura familiar
línhagística e procuravam excluir do casamento pelo menos
algumas das filhas.

A política externa portuguesa até 1169

A vassalagem de Afonso Henriques à Santa Sé, em 1143,


exprime o distanciamento para com o imperador Afonso VII e
o desejo de escapar ao seu propósito de ser o coordenador
de todas as forças cristãs na Hispânia. Pode-se atribuir o
mesmo sentido ao seu casamento, dois anos depois, com
Matilde, filha do conde Amadeu II de Sabóia e Piemonte,
sendo este, por sua vez, filho de uma irmã do conde
Raimundo de Borgonha. Procurando a sua mulher fora da
Península, mas no Sul da Europa, e numa descendente dos
condes da Borgonha, o primeiro rei de Portugal exprimia com
clareza a sua independência política e o seu desejo de
reatar relações com a região donde procedia seu pai. Por
outro lado, o conde de Sabóia era um vassalo do imperador
da Alemanha e estava, por intermédio deste vínculo, ligado
à zona política que caía sob a influência da Santa Sé. O
seu condado era vizinho de Avinhão, onde se situava o
Mosteiro de S. Rufo, com o qual Santa Cruz de Coimbra
mantinha nessa altura relações muito estreitas. Avinhão
estava também, de resto, dentro do império alemão, como
cidade do antigo reino de Aries, embora fosse adquirido
pelo conde de Toulouse durante o século XII. Sendo assim,
pode-se propor a hipótese de esta decisão se dever, mais
uma vez, à inspiração de D. João Peculiar, embora a
justificação «oficial» que corria em Santa Cruz.no fim do
século XII e que se apresenta nos Anais de D. Afonso seja a
de que este casamento se destinava a excluir a união
incestuosa com uma consanguínea, difícil de evitar se ela
viesse de um reino peninsular. De qualquer maneira, a
ligação matrimonial do rei de Portugal com a filha de um
vassalo do imperador romano-germânico distanciava-o do
imperador hispânico, rival daquele pelo uso de um título
idêntico. Teria um propósito semelhante o casamento de
Teresa, filha de Afonso Henriques, depois chamada Matilde,
como sua mãe, com Filipe da Alsácia, conde da Flandres,
vassalo do rei da França, como veremos mais tarde.
Destes actos de política europeizante podem-se
aproximar os que se relacionam com as cruzadas, nascidas
não só de um puro e simples propósito de reforço militar,
mas também do desejo de encontrar auxílio nos países do
Norte para evitar negociações com os reinos vizinhos,
sujeitas a contrapartidas menos gratuitas. Com efeito,
Afonso Henriques teve conhecimento da vinda dos cruzados
que depois o ajudaram a conquistar Lisboa antes de eles
terem fundeado no Porto. Este facto, aliado a uma série de
deduções a partir de indícios indirectos, levou Gonzaga de
Azevedo, em 1938, e H. Livermore, recentemente, a admitirem
a hipótese de Afonso Henriques ter sido informado por S.
Bernardo, dando assim alguma verosimilhança a uma tradição
lendária da historiografia alcobacense. Sabe-se também que
o bispo Gilberto de Hastings, depois de nomeado para
Lisboa, procurou, como já vimos, obter auxílio de
voluntários na Inglaterra, em 1151, e na França, junto de
Luís VII, por volta de 1163. É possível que a conquista de
Alcácer do Sal, em 1158 ou 1160, também fosse feita, como
vimos, com a ajuda de uma expedição de cruzados comandada
por Filipe da Alsácia. Podem igualmente ter constituído
elos de ligação com a Europa do Norte as relações
estabelecidas através dos Templários, dos Hospitalários,
dos Cistercienses e das viagens de D. João Peculiar e
outros bispos à cúria romana. A curiosidade da corte
inglesa pelo que se passava em Portugal deu origem a
notícias relativamente numerosas acerca de alguns factos da
nossa história relacionados não só com a Reconquista, que
aparecem na crónica de Henrique II (Gesta regis Henrici
Secundi) ou nos Annales de Rogério de Hoveden, mas também
com o próprio Afonso Henriques, na mesma obra de Rogério de
Hoveden (com uma alusão à lenda do «bispo negro») e na
curiosa recolha de narrativas de Walter Map, De nugis
curialium (os conflitos do rei com sua mulher). Este
interesse parece ser mais preciso do que o que se encontra
também na Chronica regia coloniensis e noutros textos
alemães com referências aos cruzados que passaram pela
costa portuguesa.
Estes contactos, que evidenciam a precocidade das
tentativas portuguesas para subtrair o País à órbita
política peninsular, não devem fazer esquecer que o seu
destino se jogava, de facto, na Hispânia. Daí o seu

78
carácter intermitente quando comparados com os que se
estabelecem com os outros reinos peninsulares. Depois dos
protestos de Afonso VII junto do papa para reclamar contra
a benevolência com que aceitara a vassalagem de Afonso
Henriques e lhe concedera as indulgências da cruzada, não
se conhecem quaisquer outros actos seus contra a nossa
independência.
A morte de Afonso VII veio, porém, modificar a situação
de Portugal, em virtude da divisão dos seus Estados pelos
seus dois filhos, Fernando II e Sancho III, que herdaram
respectivamente as coroas de Leão e de Castela, sem que
nenhum deles tivesse pretendido exercer a dignidade
imperial. Começava assim a época a que Menéndez Pidal e
outros autores chamaram dos «cinco reinos», ou seja, o
período de equilíbrio entre as diversas nações hispânicas
cujo conjunto constituía uma certa unidade. Eram os reinos
de Navarra, Aragão, Castela, Leão e Portugal. Esta divisão
propiciou um verdadeiro equilíbrio de forças, assegurado
pelas alianças e rivalidades oscilantes entre as diversas
formações nacionais, com as quais se jogava para evitar que
algum deles lograsse atingir uma posição de supremacia.
De facto, pouco depois da morte de Afonso VII, os reis
de Leão e de Castela celebravam entre si uma aliança, a que
já aludimos, que foi assinada em Sahagún em 13 de Maio de
1158. Dividiam entre si a zona muçulmana a reconquistar e
partilhavam também o reino de Portugal, se viessem a
apoderar-se dele. A morte de Sancho III, no fim de Agosto
seguinte, veio a comprometer o ataque comum de Leoneses e
Castelhanos contra Portugal. Mas Fernando II decidiu
empreender sozinho a sua ofensiva; temos conhecimento dela
a partir de Setembro seguinte. A guerra não durou muito
tempo. Em 14 de Novembro, os dois reis assinavam um tratado
de paz. O rei de Leão passou a atacar o reino de Castela,
com a esperança, decerto, de recuperar a seu favor a
unidade política existente anteriormente.
Apesar de terem perdido o seu rei, os Castelhanos
resistiram vigorosamente. Foram eles, sem dúvida, que
solicitaram o recomeço da ofensiva de Afonso Henriques, que
em Dezembro de 1159 dominava pelo menos em Tui, a capital
do condado de Toronho, que tantas vezes tentara adquirir. A
sua posição ali tornou-se de tal modo segura que, em 30 de
Janeiro de 1160, recebeu em Tui o conde de Barcelona,
Raimundo Berenguer IV, para negociar com ele o casamento de
seu filho, também chamado Raimundo, com a princesa Mafalda.
Iniciava-se assim a política de aproximação entre Portugal
e a Catalunha ou Aragão, várias vezes repetida e renovada,
sempre que as duas nações dos extremos oriental e ocidental
da Península precisaram de resistir às tendências
expansivas de Castela.
Os condados de Límia e de Toronho eram há muito
disputados entre os soberanos de Portugal e de Leão, mas
este sempre tinha levado a melhor. O território de Ribacoa
também era disputado por Afonso Henriques, que tentou aí
exercer actos de soberania. É provável que eles tivessem
provocado a decisão de Fernando II de restaurar Cidade
Rodrigo, antiga Augustobriga, provavelmente em 1161, para
fazer dela ponto de apoio da sua autoridade nessa região. A
partir daí, os territórios do Alto Douro e da Beira Alta
que lhe estavam mais próximos tornaram-se áreas de combates
frequentes. Tal foi, como vimos, a razão que levou Afonso
Henriques a conceder várias cartas de foral nessa região:
eram uma forma de ligar a si os respectivos concelhos.
Nesta segunda zona, Os conflitos foram mais tardios do
que na Galiza. Pelo firn de 1160, os dois reis de Portugal
e de Leão encontraram-se no mosteiro beneditino de
Celanova, na Galiza, e celebraram um acordo que restituía a
Fernando II a cidade de Tui e.o respectivo território. Mas
a paz durou pouco. Em 1162 o rei de Portugal exercia actos
de soberania sobre Límia e no ano seguinte conseguia
recuperar Toronho. Em 1163 estendeu a sua autoridade a
Salamanca. Até 1165, pelo menos, continuou a dominar sobre
os dois condados galegos. Nesse ano voltou a encontrar-se
com Fernando II, desta vez em Pontevedra, e celebrou com
ele novo tratado de paz, selado com a promessa de lhe dar
em casamento sua segunda filha, Urraca Afonso. É possível
que por essa ocasião tivessem também chegado a acordo sobre
as áreas de conquista portuguesa e leonesa em território
muçulmano. Fernando II casou com Urraca Afonso em Junho
seguinte, e o rei de Portugal abandonou Tui, pelo menos em
1168. Existe uma doação de Afonso Henriques à catedral da
mesma cidade em Março de 1169, mas esse acto não implica o
exercício da soberania.
Como vimos anteriormente, Afonso Henriques voltou a
encontrar-se com Fernando II, em circunstâncias
completamente diferentes, na cidade de Badajoz, em Maio de
1169. Com a sua derrota encerrava-se a possibilidade de
alargar o território de Portugal até aos limites da antiga
79
Lusitânia. Depois disso, não voltou a encontrar-se com o
seu primo e genro. Os conflitos entre os dois reinos
repetiram-se nos anos seguintes, mas envolveram já o
príncipe D. Sancho, que desde esse mesmo ano de 1169 passou
a orientar a política portuguesa, principalmente a de
natureza militar, como veremos mais adiante.
Embora as divergências entre Afonso Henriques e
Fernando II fossem frequentes, o rei de Leão parece ter-se
interessado mais em apoderar-se do trono de Castela do que
em recuperar Portugal. Deve ter compreendido rapidamente
que seria difícil conquistar o nosso reino, ao contrário do
que pensava por ocasião do Tratado de Sahagún: a
independência de Portugal tinha-se consolidado
profundamente, graças ao concurso de circunstâncias
favoráveis e à habilidade política e militar de Afonso
Henriques. De facto, na relação de forças entre as duas
principais potências centrais da área cristã, os reinos de
Leão e Castela dominaram a cena peninsular até 1230.
Perante este problema, Portugal representava um papel
secundário. Reconhecida a dificuldade de reunificar
Portugal e Leão, os dois reis tiveram de optar
preferentemente pelas alianças e não pelos conflitos. A
independência de Portugal foi-se, assim, fortalecendo à
custa das rivalidades entre Leão e Castela.

A sucessão de Afonso Henriques

O desastre de Badajoz impossibilitou Afonso Henriques de


voltar a comandar os seus exercitos. Depois de voltar de
Lafões, onde tinha passado alguns meses de convalescença,
passou a viver permanentemente em Coimbra. Quer fosse por
impossibilidade física, quer para não ter de cumprir
promessas feitas a Fernando II, não voltou mais a cavalgar.
A Tradução galega da Crónica geral e a Crónica dos vinte
reis dizem que passou a andar «em andas e em colo de
homens», porque tinha prometido a Fernando II voltar para a
prisão desde que pudesse cavalgar. Segundo os Anais
conimbricenses, o rei armou Sancho I cavaleiro em 15 de
Agosto de 1170, festa da Assunção de Nossa Senhora. Tinha
ele então 17 anos e já desde meados do ano anterior possuía
casa própria, com um mordomo e um alferes diferentes dos do
rei, provável sinal de que passou a superintender pelo
menos em alguns negócios do reino. A partir de 1172,
desaparece a duplicidade daqueles cargos; figuram nos
documentos só o seu mordomo e o seu alferes. Não se sabe se
o governo do reino ficou inteiramente para as suas mãos,
limitando-se o rei a passar os diplomas em seu nome, ou se
repartiram entre si o comando militar e a administração do
território.
O casamento de Sancho I, em 1174, com D. Dulce, filha
de Raimundo Berenguer IV, rei de Aragão, ao mesmo tempo que
reatou uma aliança esboçada em 1160 e que, afinal, não se
realizou, por aquele rei não ter chegado a casar com a
princesa Mafalda, acentuou ainda mais a posição do príncipe
como associado ao trono. Ao mesmo tempo, confirmava a
política de equilíbrio entre os cinco reinos e a tendência
para o de Portugal buscar alianças alheias a Castela.
Existem alguns indícios, embora pouco claros, de que a
entrega da governação a Sancho não tivesse sido pacífica.
Não se sabe se foi essa a razão do afastamento de Pêro Pais
da Maia, o Alferes, da corte portuguesa e do seu exílio na
corte leonesa, como já referimos. Seguiu o mesmo caminho o
filho bastardo de Afonso Henriques, Fernando Afonso, que
foi nomeado alferes do rei para substituir Pêro Pais. É
provável que o segundo se identifique com o que até aqui se
tem considerado outro bastardo de Afonso Henriques, Afonso,
que professou na Ordem Militar do Hospital e veio a ser o
seu grão-mestre. Dizem autores tardios que, sendo ele
primogénito, reivindicou o trono português para si e foi
mandado matar por isso. A partir desta identificação o
investigador brasileiro José Ariel Castro elaborou uma
interessante tentativa de reconstituição que não posso
deixar de referir aqui, embora não me pareçam seguros
alguns dos seus pontos.
Como este autor mostra, Fernando Afonso era filho de
Châmoa Gomes e, portanto, meio-irmão de Pêro Pais. Nasceu
da união de sua mãe com Afonso Henriques, depois de ela
enviuvar de Paio Soares da Maia e antes de o rei casar com
Matilde de Sabóia. Era ele, portanto, o primogénito. Depois
de se exilar para o reino de Leão, professou na Ordem do
Templo, de onde passou para os Hospitalários. Foi mestre
desta ordem na Hispânia, pelo menos a partir de 1198, e
depois eleito grão-mestre em 1202, eventualmente em virtude
da influência que sua meia-irmã, a condessa Matilde da
Flandres, exercia junto do papa Inocêncio III. Tomou parte
na 4.ª Cruzada (1202-1204), que, como se sabe, desviou o
seu objectivo para ir conquistar Constantinopla, em vez de
se dirigir à Terra Santa. Antes ou depois desse
acontecimento, Afonso promoveu a redacção e aprovação de

80
Novos estatutos para a sua ordem. Estava em Acre em Julho
de 1204 e recebeu uma doação de Balduíno, imperador de
Constantinopla, em 1205. No ano seguinte, porém, renunciou
ao seu cargo e resolveu voltar a Portugal. Diz a Chwnica
magistrorum defunctorum (um texto do século XIV) que ao
regressar à sua pátria foi envenenado «pela sua gente». De
facto, a sua sepultura está na Igreja de S. João de
Alporão, em Santarém, e o seu epitáfio diz que morreu em
Março de 1207, o que concorda com uma informação do
Chwnicon conimbricense com poucos dias de diferença.
Segundo o autor que vimos seguindo, refere-se ao mesmo
facto a informação transmitida pelo Livro velho de
linhagens de que Fernando Afonso foi morto em Évora pelos
cavaleiros de Uclés (Sant’Iago). Este conjunto de factos
pode admitir-se sem grande dificuldade. Parece mais
problemática a proposta de resultarem da oposição entre
Fernando Afonso e o rei certos conflitos registados muitos
anos mais tarde, de maneira particular as lutas com Pêro
Mendes de Poiares, morto na Batalha de Crasconho (ou
Trasconho), que até aqui se têm considerado relacionadas
com as questões entre Sancho I e o bispo do Porto, Martinho
Rodrigues. A estas interpretações opõe-se, a meu ver, o
facto de Sancho I ter beneficiado largamente a Ordem do
Hospital, na zona de Santarém e de Lisboa, e de em 1198 ter
encarregado o seu irmão, como mestre dos Hospitalários da
Hispânia, de entregar ao papa o censo que lhe devia. Por
outro lado, se Fernando Afonso pretendia o trono, não pode
tê-lo manifestado antes de 1173 (e não quando o governo foi
entregue a Sancho, em 1169), porque aceitou o cargo de
alferes de seu pai e poucos meses depois o de alferes do
próprio Sancho. Não há dúvida, porém, de que aparecem
durante o reinado de Sancho I, além da questão com Pêro
Poiares, vários indícios dispersos de conflitos com o rei,
sem que se possam descobrir facilmente os seus motivos.
Referi-los-emos nas páginas seguintes.
Deixando agora de lado esta questão obscura, vejamos os
principais acontecimentos do governo de Sancho I desde que
foi associado ao trono, ainda em vida de seu pai.

A consolidação política do reino

Se o exílio de alguns nobres portugueses em Leão


resultava de uma contestação da autoridade do rei de
Portugal e da sua decisão a respeito da sucessão do trono,
não parece que Fernando II tivesse aproveitado essa
circunstância para tentar atacar Afonso Henriques. Não se
conhecem actividades suas contra Portugal antes de 1180. Na
década de 1170-1180, o rei de Leão esteve ocupado
principalmente com a defesa do seu território tanto na
fronteira sul como na fronteira leste. Teve, com efeito, de
suportar, em 1174, o ataque de Abu Hafs, um dos chefes de
Abu Yaqub Yusuf, de que resultou a perda para ele das
importantes fortalezas de Alcântara e de Cáceres e a grave
ameaça de Cidade Rodrigo, que foi cercada, mas conseguiu
resistir. No ano seguinte, pressionado pela Santa Sé e
pelos eclesiásticos do seu reino, tinha de se separar de
Urraca Afonso, irmã de Sancho I, iniciando-se assim uma
prolongada questão acerca dos domínios leoneses que ela
tinha recebido como dote. Em 1177, organizava uma expedição
de contra-ataque aos Almóadas, chegando até Jerez e Arcos
de la Frontera, mas tinha de se retirar com pesadas perdas.
Em 1178 via-se obrigado a repelir um ataque de seu sobrinho
Afonso VIII de Castela em Terra de Campos. Foi talvez esta
ofensiva castelhana que incitou Sancho í a desencadear as
hostilidades portuguesas contra Leão. Pode também ter-se
dado um desacordo acerca da maneira de resolver os
problemas decorrentes do repúdio de Urraca Afonso, em
virtude do destino das arras dadas por Fernando II, que, em
princípio, deviam permanecer na posse da rainha portuguesa.
De facto, sabemos que pelo menos uma importante povoação
incluída nas arras era Castro Torafe. Apesar disso, o rei
ofereceu-a à igreja romana, que, por sua vez, a deu aos
cavaleiros de Sant’Tago. As questões daí resultantes
devem-se ter tornado cada vez mais azedas e levaram, por
fim, à guerra aberta.
Por outro lado, disputava-se então entre os dois reinos
a região de Ribacoa, que em 1174 Afonso Henriques
considerava sua, pois nesse ano deu carta de couto ao
mosteiro cisterciense de Santa Maria de Aguiar, que aí
estava situado. Os problemas de soberania continuavam ainda
por resolver em 1180, e foi talvez por isso que Sancho I
tentou atacar nesta zona. Sofreu, porém, uma pesada derrota
na Batalha de Arganal, perto de Cidade Rodrigo. A posição
portuguesa em Ribacoa tornou-se assim insustentável, de tal
modo que os Portugueses não parece terem tentado reaver
este território durante os anos seguintes. De resto, o
apoio com que então contava da parte de Afonso VIII
faltou-lhe logo a seguir, porque este rei fez as pazes com
o seu tio em 21 de Março de 1181, em Medina de Rioseco, e

81
renovou-as depois de novas hostilidades, entre Fresno e
Lavandera, em 1 de Junho de 1183.
As questões entre Portugal e o reino de Leão não
parecem, portanto, nessa altura, o resultado de novas
tentativas de absorção de Portugal pelo rei de Leão, mas de
pretensões expansionistas de Sancho I, incitado pelos
ataques castelhanos. A sua derrota foi humilhante, mas não
pôs em perigo a independência do reino. O seu casamento com
D. Dulce de Aragão, em 1174, de que já falámos,
representava o sinal da sua aceitação como sucessor do
trono na extremidade leste da Península. Enfim, em 23 de
Maio de 1179, o papa Alexandre III acabou por reconhecer a
Afonso Henriques o título de rei, pela célebre bula
Manifestis probatwn. Este diploma, que, além disso, tomava
o rei e os seus herdeiros sob a protecção da Santa Sé,
declarava Portugal como um reino pertencente a S. Pedro e
prometia o auxílio papal para a defesa da dignidade régia.
Em sinal de reconhecimento por tais favores, Afonso
Henriques quadruplicou o censo que pagava à cúria romana e
pagou de uma só vez 1000 peças de ouro. Terminava assim um
longo período de resistência da cúria romana ao
reconhecimento da independência plena de Portugal,
resultante, provavelmente, como vimos, de Afonso Henriques
nunca ter querido solicitar ao papa um título que pretendia
não dever a ninguém.
As novas condições da Península Ibérica tinham tornado
evidente que a luta contra o Islão, que tanto interessava à
Santa Sé, já não aconselhava a unificação política da
Hispânia, mas o fortalecimento dos seus diversos reinos. De
facto, depois da morte de Afonso VII, tinham-se revelado
completamente ultrapassadas as ideias de um império
hispânico. Fernando II ainda tentara, durante a menoridade
de Afonso VIII, reivindicar o papel de tutor de seu
sobrinho e exercer uma certa supremacia sobre Castela.
Apesar de alguns sucessos militares, teve de renunciar às
suas pretensões. Por outro lado, nesse mesmo ano de 1179,
os reis de Castela e de Aragão celebraram entre si um
tratado para a repartição de terras a conquistar em
território muçulmano, excluindo qualquer vassalagem entre
eles. Afonso VIII renunciava, portanto, a qualquer
pretensão de supremacia sobre Aragão. O quadro político da
Península cristã estava definido e manter-se-ia sem
alterações durante vários séculos.
Estes factos podem-se aproximar do que se verifica
também na organização eclesiástica. As rivalidades que nas
décadas anteriores tinham suscitado as lutas mais renhidas
em torno da supremacia dos arcebispos de Toledo ou de
Santiago de Compostela sobre todo o território ibérico
também se revelaram completamente ultrapassadas.
Consolidou-se o statu quo da partilha diocesana, apesar do
seu carácter anómalo, resultante de a metrópole da Galiza
ter jurisdição sobre várias dioceses em Portugal e Leão, de
algumas das quais estava completamente separada, ao passo
que Braga exercia os seus direitos metropolíticos não só
sobre dioceses portuguesas, mas também sobre várias outras
do reino de Leão. Como diz Cari Erdmann, a cúria romana e
os prelados fizeram da necessidade virtude, procurando
tirar partido da situação. De facto, os bispos leoneses
foram muitas vezes nomeados juízes apostólicos para
julgarem questões em território português, assim como os
portugueses em território leonês. Este facto permitia-lhes
actuarem com maior independência do poder pplítico. A
questão da primazia de Toledo, esquecida durante algumas
décadas, voltaria, porém, a ressurgir no fim do século XII
e no princípio do seguinte.
O reino de Portugal representava, portanto, um poder
político consolidado. As ameaças à sua independência não
eram graves por parte dos outros reinos cristãos e a igreja
romana confirmava essa autonomia. As principais
dificuldades que Afonso Henriques e Sancho I tiveram de
enfrentar vieram sobretudo do Islão.
A ofensiva almóada (1174-1184)

Como vimos, com a implantação de um novo império


muçulmano em Marrocos sob a chefia de Ibn Tumart, os novos
detentores do Poder procuraram reconstituir a unidade não
só religiosa, mas também cultural e política. Desenvolveram
uma acção militar agressiva e intolerante, que conduziu à
absorção progressiva dos diversos reinos taifas de ai
Andaluz, ao fortalecimento das fronteiras com os reinos
cristãos e à organização de expedições ofensivas para
recuperar algumas cidades que entretanto tinham caído nas
mãos dos reis de Leão, de Castela ou de Portugal. Os reinos
independentes de al Andaluz foram submetidos a partir de
1146. Os do Ocidente, apesar das vicissitudes que já
descrevemos, aceitaram com certa rapidez a autoridade do
califa Abd ali-Mumin. No Levante, porém, o rei de Múrcia,

82

Muhammad ibn Ahmad ibn Saad ibn Mardanish, chamado pelas


crónicas cristãs o «rei Lobo», resistiu à unificação
berbere até à sua morte, em 1172. A partir de 1171, porém,
a atitude dos Muçulmanos tornou-se mais ameaçadora. Nesse
momento estava já em declínio o poder do «rei Lobo» no
Levante. Tendo morrido em 1172, seu filho decidiu
submeter-se ao califa Abu Yaqub. Foi, pois, com as mãos
livres que Abu Hafs dirigiu a sua vitoriosa expedição em
terras leonesas. de que já falámos, e que os Almóadas
puderam ocupar importantes posições na via guinea, que
assegurava os acessos ao reino de Leão através de Cidade
Rodrigo numa importante zona de pastagens e de circulação
de gado. Ficava assim assegurada também, pela posse de
Cáceres, a posição de Badajoz, que superintendia
militarmente em todo o território ocidental de ai Andaluz.
Dali partiam incursões que podiam penetrar no vale do Tejo
e ameaçar as praças conquistadas por Afonso Henriques.
Os propósitos guerreiros dos Almóadas manifestaram-se
também pelo facto de em 1175 terem resolvido restaurar
Beja, ainda desmantelada depois das incursões de Geraldo,
Sem Pavor. Consolidavam assim uma importante posição
militar face a Évora. Foi talvez este acontecimento o que
levou Afonso Henriques ou Sancho I a incentivarem a
fundação em Évora de uma nova ordem militar portuguesa, a
exemplo das que, poucos anos antes, tinham sido criadas em
Cáceres e em São Julião de Pereiro com a protecção de
Fernando II, ambas em território leonês. A criação da ordem
de Évora inclui-se entre as medidas defensivas que foi
necessário tomar contra o recrudescimento da agressividade
muçulmana. Foi seu fundador Gonçalo Viegas de Lanhoso, que
desempenhava até então as funções de governador militar de
Lisboa e da Estremadura, depois de ter sido mordomo da
infanta D. Teresa, antes de ela sair do reino para casar
com Filipe da Alsácia, conde da Flandres.
No Verão de 1178, Sancho I resolveu organizar uma
importante expedição em território muçulmano, talvez para
mostrar que a incapacidade física de seu pai não retirava
aos Portugueses a capacidade militar. Constituída por
forças importantes, levou a sua ousadia ao ponto de
alcançar e destruir os arredores de Sevilha, na margem
direita do Guadalquivir. A sua importância foi menor do que
pretende a Crónica de 1419, que a descreve, embora com
vários anacronismos que não permitem reconstituir os factos
com suficiente exactidão.
A dureza da guerra tornava cada vez mais difíceis
actuações de tropas não especializadas, como tinham sido
até ali os cavaleiros vilãos ou os chefes de bandos, como
Geraldo, Sem Pavor? A partir de 1150, aproximadamente, os
combates decisivos eram travados, do lado cristão, pelas
ordens militares e, do lado muçulmano, pelos cavaleiros
voluntários dos ribat, que faziam da guerra santa um acto
de piedade. Na linha do Tejo, já os Templários
desempenhavam havia mais de 20 anos um importante papel
para a defesa de Lisboa com os seus castelos do vale do
Zêzere. Estes, a partir de 1170, foram reforçados para lá
do Tejo pelos cavaleiros de Évora, de que já falámos, e na
Beira Interior pelos de SantTago da Espada, recentemente
fundados em Leão. Aos primeiros confiou o rei de Portugal,
em 1176, o Castelo de Coruche, fundamental ponto de apoio
para a protecção dos acessos a Lisboa e Santarém pelo Sul e
à comunicação com Évora. Os segundos, todavia, por estarem,
decerto, demasiado ocupados com a intensificação dos
combates entre Cáceres e Cidade Rodrigo, não devem ter tido
a possibilidade prática de, por essa altura, guarnecerem
suficientemente os castelos de Monsanto e de Abrantes, que
receberam do rei de Portugal em 1172 e 1173, o que levou o
rei a retomar a sua chefia.
Os freires de Évora, ainda não filiados em Calatrava,
cujos costumes viriam em breve a adoptar, não só defenderam
valorosamente a cidade onde tinham sido fundados, mas
também a zona de Lisboa. Em 1179, Gonçalo Viegas foi
chamado a organizá-la, em virtude, talvez, dos ataques
marítimos que a cidade deve ter sofrido desde essa ocasião
e que se repetiram frequentemente durante os anos
seguintes, dando assim lugar às lendas tecidas em torno da
figura de D. Fuás Roupinho, mencionadas na Crónica de 1419.
No mesmo ano, o rei e a chancelaria decidiram dotar as
cidades de Santarém, Lisboa e Évora de um novo foral,
concebido a partir de um modelo criado para Santarém. Foi
este o foral português mais minucioso, com privilégios
maiores e mais apropriados a meios já claramente
urbanizados. Permitia organizar a vida económica e a
administração destas cidades em termos mais claros do que
até ali e destinava-se, decerto, a fixar as populações em
locais ameaçados pelo inimigo, assegurando, assim, a sua
defesa contra novos ataques.

83
Este conjunto de medidas foi ditado pela necessidade de
reforçar a defesa do território contra a ameaça almóada.
Revelaram-se, de facto, suficientemente eficazes, como
veremos em seguida.
Os ataques mouros multiplicaram-se a partir de 1179, o
que permite considerá-los como uma resposta à provocatória
expedição de Sancho I até Sevilha, no ano anterior. De
facto, segundo os Anais de D. Afonso, em Outubro desse ano,
Abrantes sofreu um ataque que teria sido conduzido pelo
próprio filho do califa e por um seu irmão. As fontes
árabes não falam neste acontecimento e é improvável a
presença de Yaqub, o herdeiro do trono, como seu chefe. Os
Anais exageraram, talvez, as dimensões de uma incursão
menos importante. No ano seguinte, segundo a mesma fonte,
os Almóadas atacaram Coruche; o seu castelo foi destruído e
os habitantes levados em cativeiro. Os historiadores árabes
também ignoram esta vitória sua, mas falam claramente no
ataque do vali de Sevilha, Abu Abd Allah Muhammad ben
Wanudin, a Évora em Maio de 1181, que já referimos de
passagem, e que não se encontra registado nas fontes
portuguesas. Quer se trate, ou não, nestes três casos, de
operações relacionadas entre si, os ataques mouros às
praças e cidades do Sul tornavam-se cada vez mais
frequentes e mortíferos. Os cavaleiros de Évora, senhores
de Coruche, sofreram certamente importantes baixas, e por
isso foi necessário aumentar a defesa da sua sede. Disso se
encarregou Mem Soares Estrema, o governador militar de
Santarém, que então foi transferido para Évora. Entretanto,
deram-se também os já referidos ataques marítimos a Lisboa.
Tudo isto prenunciava uma operação militar de grande
envergadura, como a que, na Primavera de 1184, foi dirigida
pessoalmente pelo emir de Marrocos, Abu Yaqub Yusuf I.
Tendo começado a preparar a expedição em Setembro de 1183,
atravessou o estreito de Gibraltar em Maio do ano seguinte
e dirigiu-se a Sevilha, onde se lhe juntaram milhares de
homens. O autor dos Anais de D. Afonso, na última notícia
da sua obra, deixada incompleta, enumera minuciosamente
todos os caudilhos que tomaram parte na expedição, pondo em
relevo a extraordinária ameaça que ela constituiu para o
reino.
De facto, as principais cidades da linha fronteiriça do
Tejo correram nessa ocasião um perigo extremamente grave.
Durante o mês de Junho, o enorme exército avançou até
Santarém e pôs cerco à cidade da qual dependia a sorte de
Lisboa. Tentando conciliar as informações das crónicas
árabes e do inglês Radulfo de Diceto, concluímos que
Santarém foi defendida pelo príncipe D. Sancho, que acorreu
talvez já depois de iniciado o cerco (segundo Radulfo), e
que os invasores chegaram a entrar na cidade. Os
Portugueses foram auxiliados por um contingente de galegos
chefiados pelo arcebispo de Compostela e por tropas
leonesas comandadas por Fernando II, que, todavia, já deve
ter chegado ao local depois de os Muçulmanos terem começado
a retirar, talvez já enfraquecidos pelos combates e
intimidados com a sua aproximação.
Estes pormenores são aceites por Dozy e por Botelho da
Costa Veiga, depois de terem sido considerados os mais
verosímeis por Herculano. Ambrósio Huici Miranda,
especialista deste período da história muçulmana, conclui,
por sua vez, que os Portugueses tiveram tempo de preparar a
defesa contra o cerco, devido à lentidão com que os
Almóadas sempre avançavam em expedições deste género. As
dificuldades do combate num terreno muito acidentado, que
os cavaleiros mouros, habituados a atacar em campo aberto,
não conseguiam vencer facilmente, a denodada resistência
dos sitiados e o auxílio galego e leonês levaram, enfim, o
emir a retirar-se. A manobra parece ter-se feito em grande
confusão, o que permitiu a ura destacamento português
lançar-se sobre o acampamento do emir, tendo ele ficado
gravemente ferido por uma lança. Conseguiu, porém, retirar
para a outra margem do Tejo e iniciar a viagem de regresso
a Sevilha, durante a qual acabou por morrer. Os seus
companheiros ocultaram o seu falecimento, para só o
revelarem ao chegar a Sevilha, onde, pouco depois, no
princípio de Agosto de 1184, foi aclamado sucessor seu
filho Yaqub al-Mansur.
É possível que durante o cerco de Santarém vários
corpos de tropas almóadas tivessem feito incursões a
diversos pontos da Estremadura, podendo datar dessa
ocasião, ou da incursão de 1191, que referiremos mais
adiante, a mortandade dos monges de Alcobaça e o cerco de
Torres Vedras. A veracidade destes acontecimentos,
contestada por vários autores, continua insegura.
De qualquer maneira, os Berberes e os Andaluzes tinham
incutido tal terror nos habitantes das fronteiras
portuguesas que as povoações devem ter sido gravemente
afectadas. Muita gente parece ter retirado para Coimbra, ou
mesmo mais para norte. Apesar da vitória e da morte do
emir, foi, pois, no meio de grande apreensão que morreu o

84
velho rei Afonso Henriques, em 6 de Dezembro de 1185.
Sancho I. depois de aclamado rei, mostrou-se à altura
dos acontecimentos, concentrando todos os seus esforços não
só em reforçar a defesa, que já antes o tinha preocupado,
como vimos há pouco, mas também em recomeçar a ofensiva.
Fez novas e importantes concessões às ordens militares,
cujos cavaleiros, com experiência, disciplina e bom
armamento, ofereciam melhores garantias de proteger
eficazmente o nosso território. Beneficiou com elas os
freires de Évora e de Santiago. Aos primeiros deu, em 1187,
o castelo de Alcanede e a vila de Alpedriz e prometeu o
Castelo de Juromenha, quando viesse a ser conquistado. Aos
segundos ofereceu, em 1186, os castelos de Almada, Palmela
e Alcácer do Sal, que asseguravam a protecção de Lisboa
pelo sul.
Para atrair habitantes às povoações da fronteira, cuja
resistência era tão decisiva, repetiu o procedimento que
inspirou os forais de Santarém, Lisboa e Coimbra de 1179,
dando privilégios análogos e vários lugares da Beira, agora
ameaçados por incursões vindas de Cáceres e de Badajoz.
Estão neste caso Gouveia e Covilhã, em 1186, Avô, Viseu e
Folgosinho, em 1187, e Valelhas, em 1188. Não o preocupava
menos a segurança da fronteira leonesa, o que o levou a
atribuir forais a Bragança e a Penarroias em 1187.
Nos primeiros anos do seu reinado, porém, Sancho I
prefere ainda os métodos ofensivos. Animava-o a isso,
decerto, o nascimento do seu primeiro filho varão, o futuro
Afonso II, no dia de S. Jorge de 1186. A festa do santo
patrono dos cavaleiros cristãos, que nesse dia se
celebrava, parecia vaticinar-lhe um feliz destino militar.
Por isso o rei lhe pôs o nome de Afonso, que deveria
induzi-lo a imitar o seu glorioso avô, cujas acções
guerreiras começavam já a revestir dimensões lendárias. De
resto, o nascimento, no ano seguinte, de um novo filho do
sexo masculino assegurava melhor a sucessão do trono. Foi-
lhe posto o nome de Pedro, certamente como homenagem ao
Príncipe dos Apóstolos, a quem pertencia o senhorio sobre o
reino de Portugal. A estes seguiram-se, com pequenos
intervalos, mais dois filhos varões, Fernando e Henrique,
ficando, assim, completamente garantida a sua sucessão.
Por outro lado, a morte de Fernando II de Leão, em 22
de Janeiro de 1188, e os acontecimentos que se lhe seguiram
no reino vizinho permitiam alimentar a esperança de que a
inimizade leonesa se transformasse em franca colaboração. O
sucessor, Afonso IX, era filho de uma infanta portuguesa,
D. Urraca Afonso, e, portanto, sobrinho de Sancho I. Apesar
de o casamento ter sido dissolvido em 1175 por impedimento
de parentesco e sentença da Santa Sé, Afonso IX era o
preferido de seu pai. As pretensões de sua última esposa,
D. Urraca Lopes de Haro, que queria impor a sucessão de seu
filho Sancho, não deram qualquer resultado durável. Apenas
levaram Afonso IX, para combater os seus adversários, a
assegurar-se da benevolência portuguesa e a procurar reunir
as forças nacionais, fazendo apelo aos representantes dos
concelhos nas cortes que reuniu em Leão em Abril de 1188.
Era, talvez, a primeira assembleia política de toda a
Península Ibérica e de todo o Ocidente cristão em que
participavam representantes não nobres. O novo soberano
leonês teve também de combater o rei de Castela, Afonso
VIII, que lhe invadiu o território ainda nesse mesmo ano.
Mas a incursão durou pouco tempo e termirjou com um acordo
entre eles, embora desfavorável para o rei de Leão. Afonso
IX viu-se obrigado a aceitar ser armado cavaleiro por
Afonso VIII e teve de lhe beijar as mãos em Carrión, numa
cerimónia que os contemporâneos consideraram como
inequívoco sinal de submissão. Tudo isto levava Sancho I a
não temer qualquer agressão por parte dos Leoneses.
O rei de Portugal podia, portanto, consagrar-se à luta
contra os Mouros. O novo emir de Marrocos, Abu Yaqub Yusuf
al-Mansur, estava nessa altura em Africa, ocupado em
assegurar a sua autoridade, posta em risco pela revolta dos
mouros das Baleares e pela disputa do trono por dois
parentes seus. Por outro lado, a emoção com que a
Cristandade recebeu a notícia da tomada de Jerusalém por
Saladino, era Outubro de 1187, trazia aos portos
portugueses muitos cruzados. Sancho I deve ter então
preparado uma grande acção militar com bastante
antecedência, porque ditou o seu primeiro testamento ainda
no ano de 1188.
Na Primavera de 1189, chegou a Lisboa uma armada de
cruzados vindos da Dinamarca e da Frísia. Associaram-se-lhe
alguns portugueses, que com eles continuaram a viagem por
mar e foram atacar o Castelo de Alvor, em frente de Silves.
Alvor foi completamente destruída, fazendo assim supor que
seria relativamente fácil tomar também a própria cidade de
Silves. Ao contingente de frísios e dinamarqueses em breve

85
Se seguiu outro de alemães, flamengos, franceses do Norte e
ingleses, que o rei provavelmente já esperava. Reuniu-se,
pois, a eles e aos barcos portugueses que tinham regressado
de Alvor.
Tendo saído de Lisboa a 14 de Julho de 1189, foram
cercar Silves, depois de uma rápida viagem por mar. O longo
cerco, cujas vicissitudes se conhecem através de um
pormenorizado relato feito por um cruzado alemão, terminou
pela conquista da cidade, em 3 de Setembro do mesmo ano. A
morte do emir de Marrocos durante o ataque a Santarém e a
conquista de Silves constituíam duas importantes vitórias.
De facto, Silves tinha um grande valor estratégico, como
local donde partiam numerosas incursões de piratas
sarracenos que vinham assolar Lisboa e Alcácer do Sal por
via marítima. Com a sua conquista ficavam asseguradas as
vias do comércio internacional que passava por Lisboa e
preparava-se o acolhimento de navios italianos que
comerciavam no Mediterrâneo e se atreviam a passar o
estreito.
Os cruzados continuaram viagem em direcção à Terra
Santa durante o mês de Setembro e Sancho I regressou a
Lisboa. Ficavam na cidade Mendo Gonçalves de Sousa, como
governador, o clérigo flamengo Nicolau, como bispo
designado pelo rei, e vários cavaleiros templários,
hospitalários, do Santo Sepulcro e de Évora, além de outros
homens não filiados em ordens militares. O governador foi
em breve substituído por D. Rodrigo Sanches. A segurança da
cidade, no entanto, não era grande.
Não se sabe bem por que razão, Sancho I resolveu
expulsar os Templários e Hospitalários de Silves. Quem sabe
se não lhe deram a colaboração que deles esperava. Pode
também ter havido alguma dissensão provocada por discórdias
entre o rei e seu irmão Fernando Afonso, decerto já com uma
posição importante na Ordem do Hospital. Seja como for,
concedeu ao bispo os dízimos das suas propriedades e
proibiu-os de aí edificarem igrejas. Os principais
defensores da cidade passaram a ser, portanto, os
cavaleiros de Évora.
As desavenças manifestadas no documento a que aqui
aludimos podem talvez aproximar-se daquelas de que fala o
primeiro testamento de Sancho I, que menciona a
infidelidade de certos cavaleiros para com ele. Mas as
alusões a estes actos de infidelidade são tão vagas, que
ficamos sem nada saber acerca da sua natureza e dos seus
motivos. Elas prenunciavam, todavia, perturbações e
desavenças internas, que depois viriam a agravar-se.

Sessenta anos de crise (1190-1250)

No ano de 1190, inicia-se um longo período de crise,


que durará até ao princípio do reinado de Afonso III.
Começa com as duas invasões almóadas dell90ell91, que
puseram toda a região do Tejo a ferro e fogo. Seguiram-se,
pouco depois, repetidos surtos de fomes e cataclismos
naturais, que duraram até 1210, aproximadamente;
entretanto, sobreveio um novo período na guerra com Leão e
apareceram conflitos sociais dispersos nas cidades e em
algumas regiões rurais, além de lutas e violências que
envolveram o rei com alguns nobres e o opuseram aos dois
bispos de Coimbra e do Porto. Superadas estas dificuldades,
veio o reinado de Afonso II, que foi marcado por graves
dissensões entre o monarca e vários sectores do poder
senhorial. A sua morte debilitou o sector que até então
lutara pelo fortalecimento monárquico e^permitiu, durante o
reinado de Sancho II, o crescimento quase desenfreado dos
poderes locais, até que se instalou uma situação de
anarquia de tal modo grave que levou o episcopado a pedir
ao papa a destituição do soberano, iniciando-se, assim, um
período de guerra civil. Com o fim desta e a instauração de
uma política de reordenamento de poderes, abriu-se uma nova
era, cujo começo se pode estabelecer pelo ano de 1250.
Pode, portanto, classificar-se o período situado entre 1190
e 1250 como época de crise.

As invasões almóadas de 1190 e 1191

No primeiro momento, a maior perturbação veio da ameaça


almóada. O emir de Marrocos resolveu vingar a morte de seu
pai e responder com toda a violência à provocação que a
tomada de Silves constituía. Abu Yaqub al-Mansur começou a
reunir tropas em Marrocos em Janeiro de 1190, atravessou
com elas o estreito em Abril e, depois de ter estado em
Córdova, organizou três exércitos. O primeiro, comandado
por seu primo Sayyid Yaqub ben Abi Hafs, governador de

86
Sevilha, dirigiu-se a Silves, que sitiou em Junho-Julho de
1190, mas a cidade defendeu-se vitoriosamente. Outro
destacamento, comandado por Sayyid Abu Zakariya ben Abi
Hafs, outro primo do emir, foi atacar Évora, que repeliu
também os agressores. O califa comandou pessoalmente um
terceiro conjunto de tropas que partiu de Córdova em
direcção ao Tejo, para atacar Torres Novas e Tomar.
Juntaram-se-lhe as forças comandadas por Sayyid Abu
Zakariya, vindas de Évora, que provavelmente pensaram
voltar a atacar mais tarde. Tendo, de facto, penetrado em
Torres Novas, por rendição do seu alcaide, dirigiram-se
depois a Tomar, onde os Templários eram comandados pelo
velho procurador Gualdim Pais. As tropas de Sancho I
concentraram-se então em Santarém, de cuja posição dependia
o destino de Lisboa. Foram reforçadas, segundo parece, por
um contingente de cruzados anglo-normandos que por essa
ocasião tinham chegado a Lisboa.
A sorte foi favorável aos Portugueses. Os exércitos
almóadas e, segundo parece, o próprio califa foram atacados
pela disenteria, provocada, decerto, pelo calor e pela
falta de abastecimentos. Como sempre, o lento avanço das
tropas almóadas permitia o abandono dos campos e a recolha
das colheitas nos castelos, antes de os atacantes chegarem.
Concentrados em volta de Tomar, os Mouros destruíram os
arredores, organizaram expedições de pilhagem a vários
lugares da Estremadura, tendo chegado, talvez, a Leiria e
Alcobaça, ou mesmo até perto de Coimbra. Mas as perdas dos
Almóadas durante as surtidas que os Templários fizeram fora
do castelo e a doença do califa obrigaram-nos a retirar,
poupando, assim, a fortaleza de Tomar, depois de um cerco
rigoroso.
O grave perigo que então ameaçou as cidades portuguesas
da linha do Tejo repetiu-se no Verão seguinte. Yaqub
al-Mansur ficou em Sevilha, onde preparou outra expedição
ainda com maior cuidado. Pelos fins do mês de Abril, deixou
Sevilha e dirigiu-se a Alcácer do Sal, que se rendeu em 10
de Junho de 1191. Pouco depois, marchou sobre os castelos
de Palmela e de Almada, que os cavaleiros espatários
abandonaram e ele mandou destruir. Desta vez, não tentou ir
mais longe. Bastou-lhe levar as forças marroquinas até às
margens do Tejo, ficando assim Lisboa e Santarém sem defesa
fácil contra razias esporádicas e imprevisíveis que mais
tarde haveriam de partir de Alcácer, depois de o seu
castelo ter sido reconstruído. O exército principal do emir
dirigiu-se então para sul e foi atacar Silves ainda no mês
de Junho. Os sitiados acabaram por capitular, em 10 de
Julho, podendo os sobreviventes retirar em paz para o
território cristão. O governador da praça, que por essa
altura devia ser Rodrigo Sanches, voltou ao reino, mas
haveria de morrer poucos anos depois na Batalha de Alarcos.
Yaqub al-Mansur regressava, pois, a Sevilha, desta vez
vitorioso, embora sem obter as vantagens decisivas que no
ano anterior tinha procurado. O território português ficava
consideravelmente reduzido. Das posições a sul do Tejo,
restava apenas uma de grande importância, Évora, agora
isolada e numa situação tal que só o facto de poder trazer
algumas vantagens para ambas as partes pode explicar se
tivesse mantido nas mãos dos Portugueses, sem que novas
tentativas de conquista, segundo parece, a tivessem
afectado. Com efeito, esta cidade de fronteira continuava a
desempenhar uma importante função económica, como
entreposto do comércio que se fazia entre duas regiões com
características distintas e até certo ponto complementares.
Os riscos e as dificuldades de comunicação entre áreas
militarmente inimigas, assim como as vantagens das
expedições de pilhagem em território adverso, a que uma
parte dos habitantes da cidade se dedicava, constituíam,
afinal, a contrapartida de vantajosos lucros que os
intervenientes de ambos os campos obtinham com tais
actividades.
A situação na fronteira meridional estabilizou-se até
aos novos avanços da ofensiva cristã para sul, a partir da
Batalha de Navas de Tolosa, em 1212, e sobretudo, na frente
ocidental, depois da tomada de Cáceres pelas tropas
leonesas, em 1227. O vigor da agressividade almóada foi
diminuindo progressivamente, até se transformar em atitude
defensiva e finalmente se verificar, tal como nas épocas de
decadência do califado de Córdova e do império almorávida,
uma nova fragmentação política, com a independência dos
últimos reinos taifas. Depois do Verão de 1191, porém, a
situação de Portugal era de desolação e de angústia. Não se
sabia se os Almóadas voltariam a atacar Santarém e Lisboa e
se se poderia resistir a nova invasão. Com efeito, em 19 de
Julho de 1195, as tropas do rei de Castela sucumbiram em
Alarcos a uma estrondosa derrota, em que morreram vários
cavaleiros portugueses, entre eles o mestre fundador dos
cavaleiros de Évora, frei Gonçalo Viegas, e o valoroso
Rodrigo Sanches, antigo governador de Silves. Gualdim Pais
morreu também nesse mesmo ano, não se sabe se em combate.

87
Outros ataques de menor envergadura atingiram o
território português. O reino estava, portanto, dividido
entre o medo e a necessidade de concentrar todas as suas
forças militares. Compreen-de-se, assim, que, nesta
situação, se assistisse a um poderoso esforço ideológico
destinado a reforçar os ânimos esmorecidos pelas derrotas e
a acentuar a incompatibilidade entre a fé cristã e o credo
muçulmano. É, com efeito, nesta ocasião, por volta das
décadas de 80 e 90 do século XII, que se deve situar a mais
intensa produção literária portuguesa relacionada com o
tema da cruzada ou da guerra santa.

A guerra antileonesa

Nos parágrafos anteriores referimo-nos já a alguns


episódios da guerra de Portugal com o reino de Leão.
Vejamos o que acontece neste domínio durante a década de
1190. Também os combates nesta frente contribuem para
agravar a situação de crise que o reino então vivia.
Durante os primeiros anos do reinado de Afonso IX, que
sucedeu a seu pai em 1188, as relações entre ele e Sancho I
devem ter melhorado substancialmente. O novo rei era filho
de Urraca Afonso e, portanto, sobrinho de Sancho I. Pôde
contar com o apoio português para combater os seus rivais
dentro do próprio reino, entre eles seu irmão mais novo,
filho do segundo casamento de Fernando II. A aproximação
foi então selada com o casamento que celebrou com sua prima
direita Teresa Sanches, que contava então 16 anos. As bodas
celebraram-se em Guimarães em 15 de Fevereiro de 1191.
Nenhum dos dois reis hesitou pelo facto de os cônjuges
serem parentes tão chegados; não parece terem ficado
impressionados por a Santa Sé ter obrigado os pais de
Afonso IX a separarem-se em virtude de um parentesco mais
longínquo. Sinal de que, para eles, a política devia ser
mais importante do que o cumprimento das regras
eclesiásticas e que contavam com a possibilidade de
resolver facilmente os problemas resultantes da infracção.
De facto, o casamento selava uma aliança contra Castela,
que pouco depois foi reforçada por um acordo expresso entre
os reis de Portugal, de Leão e de Aragão, assinado em
Huesca em Maio de 1191 e no qual se referia expressamente a
coligação dos três contra o rei de Castela. É evidente que
o anterior casamento de Sancho I com Dulce de Aragão
facilitou o acordo.
Afonso VIII respondeu de maneira ao mesmo tempo
indirecta e eficaz, pedindo à cúria romana que o casamento
fosse declarado nulo. De facto, o seu parentesco era
demasiado próximo para Roma poder transigir. A sentença foi
dada em Salamanca pelo cardeal Guilherme de Santo Angelo,
legado papal de Celestino III. Os esposos, todavia, não
acataram a sentença: continuaram a coabitar, sem obedecer
às censuras de excomunhão e interdito não só sobre as suas
pessoas, mas também sobre os dois reinos. Só se separaram
em 1195 ou 1196. Este desfecho resultou, em parte, da
aproximação entre Afonso IX e Afonso VIII, sancionada pelo
Tratado de Tordehumos de 20 de Abril de 1194, que já
continha cláusulas sobre a posse dos castelos dados em
arras a D. Teresa. Este problema foi depois mais
minuciosamente regulado por outro tratado, desta vez entre
Sancho I e Afonso IX, em Maio ou Junho seguintes, assinado
provavelmente em Zamora.
Apesar de ambos os acordos se destinarem a manter as
boas relações entre os reis de Portugal e de Leão, as
garantias revelaram-se insuficientes. Nos primeiros meses
de 1196, as ameaças de guerra eram tão intensas que Afonso
II de Aragão, por essa altura muito interessado em promover
o entendimento dos reis da Península, fez uma peregrinação
a Compostela e veio depois a Coimbra, em Fevereiro do mesmo
ano, para persuadir Sancho I a não desencadear as
hostilidades. Morreu, porém, passados dois meses. Sucedeu-
lhe Pedro I, que não se mostrou tão empenhado na paz.
Poucos meses depois, aderiu a uma coligação antileonesa
formada pelos reis de Castela e de Portugal. Nessa altura,
o desprestígio de Afonso IX em Roma era tal que Sancho I
obteve uma bula que lhe concedia, no combate contra o rei
de Leão, indulgências iguais às da guerra santa (10 de
Abril de 1197).
Os combates prolongaram-se durante, dois anos. Na
primeira fase, Sancho I saiu vitorioso na fronteira galega,
onde ocupou Tui e Pontevedra. Por seu lado, Afonso IX,
aliando-se aos Almóadas, incitava-os a atacarem Castela. De
facto, depois da desastrosa Batalha de Alarcos (1195),
Afonso VIII teve de sé defender de novas e violentas
incursões mouras até Madrid, Alcalá de Henares, Uclés, etc.
O rei de Castela procurou então acabar a guerra com o
de Leão assinando com ele um acordo (1197), que selou
dando-lhe em casamento sua filha Berenguela, a segunda
mulher de Afonso IX. O parentesco de ambos era também
demasiado evidente para o papado deixar de intervir.
Inocêncio III ordenou-lhes que se separassem, ao mesmo

88
tempo que procurava promover a paz entre os soberanos ainda
desavindos (1198).
Na frente portuguesa, a guerra continuou, sem dúvida
para garantir o cumprimento do que ficara estabelecido no
tratado de 1194. O rei de Leão, mais livre do lado
castelhano, lançou uma ofensiva maior na Beira Alta, onde
veio a travar-se, provavelmente em 1198, uma sangrenta
batalha no lugar de Ervas Tenras, perto de Pinhel; aí
morreram numerosos membros das mais nobres famílias
portuguesas. No ano seguinte, a guerra ainda continuava,
desta vez mais ao norte: Afonso IX cercou Bragança, e
Sancho I atacou Cidade Rodrigo. Foi nesta ocasião que
morreram, do lado português, o nobre Nuno Fafes e Lopo
Fernandes, mestre dos Templários.
Não se sabe como veio a terminar este conflito. Parece,
todavia, que Tui e Pontevedra voltaram pouco depois às mãos
do rei de Leão. Além disso, não se encontrou nenhum
testemunho seguro do prolongamento das hostilidades depois
de 1199. Sancho I não parece ter tentado retomar a guerra
com Leão. Mas, durante o reinado de Afonso II, Afonso IX
voltou a intervir frequentemente na política portuguesa,
como veremos mais adiante.

A administração interna 1169-1210

O governo de Sancho I até 1199 foi, como resulta do que


acabámos.de ver, dominado por questões militares. Durante
os 40 anos do seu governo efectivo (incluindo a co-regência
durante a vida de seu pai), o rei de Portugal não devia ter
tido ocasião para se ocupar intensamente dos problemas
internos do reino. As actividades militares e diplomáticas
predominaram no horizonte do rei e da corte. Por isso devem
relacionar-se com os problemas fronteiriços os numerosos
forais que se concederam durante estes anos e os primeiros
do século XIII, embora a incidência destes actos sobre a
política interna do reino seja também importante. De facto,
os poucos forais dados antes de 1190 beneficiaram terras do
interior, como Viseu, Gouveia, Avô ou Folgosinho da Beira,
mas a maioria dos que foram outorgados depois da tomada de
Silves diz respeito a terras da fronteira: tanto da
meridional, em luta frequente contra os Mouros, como da
oriental e setentrional, ameaçada pelos Leoneses. Estão
entre os primeiros os forais de Torres Novas e Almada
(1190), aquele imediatamente depois de o castelo ter sido
tomado e destruído por Yaqub al-Mansur, este pouco antes de
o mesmo emir o ter desmantelado, em 1191.
Mais tarde, a acção repovoadora orientou-se para as
povoações próximas de Évora, que tinham de assegurar a
defesa da cidade, como Marmelar (1194) e Montemor-o-Novo
(1203), e para as do Ribatejo, que reforçavam a segurança
de Santarém, como Pontével (1194), Povos (1195) e Benavente
(1200). Ao mesmo tempo, apoia o povoamento das colónias de
francos e de flamengos nesta região, concedendo Pontével
aos primeiros (1195) e atribuindo aos segundos várias
terras em Montalvo de Sor (1199) e em Azambuja (1200). Para
montante do Tejo, reforçava as posições dos Templários no
vale do Zêzere e atribuía aos Hospitalários o Castelo de
Guinditesta, que depois se chamaria Belver (1194).
Sancho I procurou recuperar o domínio sobre a península
de Setúbal, afectada pela destruição de Palmela e de
Alcácer, em 1191. Pouco antes de 1199, já tinha dado terras
a colonos francos em Sesimbra e em 1201 concedeu foral a
esta mesma povoação. Oferecia assim uma primeira
resistência às expedições que os guerreiros mouros de
Alcácer do Sal lançavam em direcção a Lisboa. Alguns anos
depois os Espatários devem ter reconstruído Palmela, porque
tinham já aí um comendador. Os Portugueses não se deixavam,
portanto, esmorecer pelas destruições causadas pelos
Almóadas em torno de Lisboa.
Na fronteira oriental, Sancho I também concedeu
privilégios aos povoadores que queriam guarnecer os
castelos face aos Leoneses. São, com efeito, posteriores a
1190 os forais de São Vicente da Beira (1195), Penedono
(1195), Belmonte (1199), Guarda (1199), Penamacor (1209) e
Pinhel (1209). Ao mesmo tempo, confiava aos Templários as
povoações de Idanha (1197), Açafa, mais tarde chamada Ródão
(1199), e Idanha-a-Nova (1206).
Na fronteira transmontana, onde já em 1187 tivera o
cuidado de conceder foral a Penarroias e a Bragança,
procurou reforçar a sua soberania organizando os municípios
de Junqueiro da Vilariça, perto de Torre de Moncorvo
(1201), e de Rebordãos (1208). Na galega, finalmente, deu
foral a Valença, em data desconhecida, e mandou construir
uma torre em Melgaço (1199), obtendo para isso a ajuda dos
monges do Mosteiro de Longos Vales.

89
A continuidade e a coerência destas decisões que se
verificam ao percorrer os diplomas dados por Sancho I não
se deviam apenas, decerto, à sua política pessoal, mas
antes, e talvez mais ainda, aos progressos das estmturas
administrativas da corte. A chancelaria tinha abandonado
quase por completo a prática de conceder cartas de couto,

[Legenda de figura.]
Localidades a que foram atribuídas cartas de foral entre
1169 e 1210.

90

que subtraíam à administração régia importantes porções dos


seus domínios e diminuíam as receitas fiscais, mas
prosseguiu a política de concessão de forais com uma
persistência e uma coerência que a simples enumeração feita
evidencia.
A coerência das decisões tomadas pela chancelaria pode-
se explicar relacionando-a com a preparação intelectual dos
seus responsáveis, que parece contrastar com o carácter
provavelmente rude do rei. Já nos anos anteriores vários
chanceleres-mores eram designados «mestres», o que
significa que eram provavelmente formados em Direito ou
Teologia por alguma universidade. Mas, em 1182 ou 1183,
passou a desempenhar as mesmas funções um «criado» do rei,
provavelmente de origem não nobre ou filho de algum
cavaleiro de condição modesta (Luís Ribeiro Soares propôs
recentemente a hipótese de ser filho de Paio Delgado).
Provinha, portanto, da corte e não do clero, como os
anteriores. Supõe-se que tenha estudado Direito, talvez na
Universidade de Bolonha, antes de 1176. Foi o célebre
chanceler Julião Pais, que permaneceu no cargo durante todo
o reinado de Sancho I e ainda nos primeiros anos do de
Afonso II. Conhecem-se vários diplomas de Afonso Henriques,
de Sancho I e de Afonso II em favor dele e de alguns
membros da sua família; sabe-se o prestígio de que gozava
em Coimbra, em cuja sé ficou o seu túmulo; está também
documentado o seu casamento com uma dama da pequena
nobreza, herdeira dos senhores de Atouguia. É evidente a
preponderância que tinha na corte.
Podem ter sido as suas convicções acerca da necessidade
de afirmar o poder régio acima dos poderes senhoriais, do
clero ou dos nobres, o que inspirou os princípios que
constam de alguns diplomas que certamente ditou, ou mesmo
certas medidas pouco simpáticas para determinados membros
do clero tomadas por Sancho I. Todavia, a acção deste
monarca está longe de se caracterizar por uma política
centralizadora e de tendência burocrática, cujos primeiros
passos só seriam dados no reinado seguinte. Assim, embora
mestre Julião se deva considerar uma personalidade-chave
para a difusão destes princípios em Portugal, deve ter sido
um político hábil e moderado, que soube adaptar-se às
condições reais do seu tempo. De facto, os conflitos a que
a nova orientação deu lugar iniciaram-se com Afonso II. Os
que mencionamos mais adiante e que afectaram sobretudo as
relações do rei com p bispo do Porto não têm ainda tais
características. Por outro lado, podem explicar-se também
por um ambiente de inquietação e de dificuldades de vária
ordem causado pela grave crise cujos indícios vamos
enumerar em seguida.

A crise dos anos 1190-1210

Com efeito, Portugal foi assolado por várias fomes,


pestes e outras calamidades durante os últimos 20 anos do
reinado de Sancho I. Tendo estas dificuldades surgido pouco
depois das destruições causadas pelas invasões almóadas de
1184, 1190 e 1191 e no período mais aceso da guerra com
Leão, provocaram a desolação e a angústia e desencadearam
conflitos sociais de vária ordem.
Não se pode determinar com exactidão a cronologia, a
geografia nem a intensidade destes cataclismos. Uma das
fontes que os referem é a Crónica de 1419, que atribui os
malefícios a castigo divino por causa do casamento
incestuoso de Teresa Sanches com Afonso IX de Leão, que se
celebrou em 1191. Depois disto, data com precisão, entre
1199 e 1208, diversas calamidades de natureza
meteorológica. Os Anais conimbricenses, por sua vez,
descrevem com cores negras uma grande fome que atribuem a
1172, mas pode corrigir-se esta data para 1202. Admitindo
que a Crónica transmite as ameaças dos pregadores que
atribuíram as calamidades a castigo divino por ocasião da
aplicação das sentenças de excomunhão e interdito lançado
sobre Portugal e Leão pelo cardeal Reinério em 1192 ou
1193, pode situar-se a série de anos maus entre esses anos
e 1218. Os outros apontamentos clericais que ficaram
registados na Crónica de 1419 mencionam: um surto de peste
na Terra de Santa Maria (entre o Douro e o Vouga) e em
Braga logo a seguir ao «ano mau», que coincidiu com o
interdito do reino (na nossa hipótese, em 1193 ou 1194); um
eclipse do Sol em 1199, visto em Coimbra e Lisboa; uma
série de anos maus até 1200; a referida fome de 1202,
registada também nos Anais conimbricenses; uma violenta
chuva de pedra em 1206 e outra em Santarém e Coruche no ano
seguinte; e uma grande tempestade marítima, com numerosas
vítimas, em 21 de Outubro de 1208. Este conjunto de
fenómenos permite admitir que a rainha D. Dulce tenha
morrido de peste em 1 de Setembro de 1198 e ainda que o
infante D. Afonso tenha sido afectado por este surto de
enfermidades generalizadas. O rei considerou as suas
melhoras como resultado da intercessão de Santa Senhorinha

91
de Basto, a cujo santuário concedeu uma carta de aouto,
mencionando expressamente o facto, em 29 de Maio de 1200.
Um documento de Braga de 1206 e uma bula do mesmo ano
referem uma grande fome, da qual morreu muita gente e que
atingia até os cónegos da sé. Sabe-se ainda que houve
graves intempéries em Évora, Santarém e Coruche em 1216 e
1218. Tudo isto coincidia aproximadamente com as fomes que
assolaram o resto da Europa e o Norte de Africa entre 1193
e 1197 e a Inglaterra em 1202.
Pode concluir-se destas informações que a fome e a
peste atingiram mais fortemente o Norte do País, a região
mais densamente povoada, onde o contágio da doença era mais
mortífero. Os outros cataclismos podem ter trazido
perturbações mais limitadas. A situação criava um clima
propício a perturbações e violências. Conhecem-se, de
facto, surtos de agitações e de revolta nas cidades e
povoações mais importantes, que alastraram para os meios
rurais.
Assim, em carta patente dirigida ao bispo, ao alcaide e
aos alvazis de Lisboa para remediar males de que o rei teve
conhecimento por cidadãos que tinha enviado ao rei de Leão,
Sancho I toma providências para cessarem os abusos das
autoridades. Consistiam sobretudo em requisições de
alimentos e em violências injustificadas. As queixas feitas
neste ano repetem-se em 1210. Nesta data, o rei tenta
reprimir os mesmos e outros abusos, agora não apenas sobre
os alimentos mas também sobre as propriedades dos cidadãos
e sobre mouros e judeus do rei. Na segunda carta mencionam-
se roubos e crimes frequentes e convidam-se os magistrados
a reprimi-los com severidade. Refira-se, enfim, outra carta
sem data, mas que deve pertencer à mesma época, em que o
rei censura a confiscação pelo alcaide e alvazis de Lisboa
de bens de um tal Paio Gonçalves, dependente do Mosteiro de
Alcobaça. É provável que fosse o encarregado de aí vender
os géneros que o mosteiro já por essa altura exportava para
a cidade.
Os habitantes do couto de Alcobaça também se queixavam
dos alcaides e magistrados das comunidades vizinhas, que
lhes penhoravam e saqueavam as moradas abusivamente, o que
levou o rei a recomendar moderação aos responsáveis pelos
concelhos de Leiria, Óbidos, Torres Vedras e Sintra, em
carta sem data, mas evidentemente anterior a 1210. O abade
de Alcobaça, por sua vez, queixava-se dos moradores de
Óbidos, também em data desconhecida, o que leva o rei a
ordenar aos alcaides dessa povoação e de Alenquer que
reprimam o abuso. Outra carta de Sancho I dirige-se aos
juízes da Pederneira para castigarem danos e ofensas feitas
pelos habitantes do lugar contra o prior de Alcobaça. Tudo
isto permite admitir que o mosteiro cisterciense, possuindo
abundantes reservas de géneros armazenados, aproveitasse a
ocasião para tirar deles grandes lucros e que esta
circunstância provocasse a revolta das populações famintas.
Mais ao norte, em Leiria, foram os clérigos da cidade,
dependentes do eclesiástico de Santa Cruz de Coimbra, que
protestaram contra as exigências dos cónegos regrantes.
Depois de uma querela que deve ter subido aos tribunais
civis e eclesiásticos, os Regrantes assinaram com eles um
acordo, em que fixavam as porções que os raçoeiros de
Leiria poderiam receber dos rendimentos do seu ministério,
moderando, provavelmente, algumas das suas opressões
anteriores, e tomavam providências para os futuros clérigos
lhes serem mais submissos.
Em data que se ignora, mas que se situa provavelmente
antes de 1208, pode-se registar a inimizade surgida entre o
rei e o cavaleiro Pedro Poiares, da família de Baião, pelo
lado de seu pai, e sobrinho do bispo do Porto, D. Martinho
Rodrigues da Palmeira, por parte de sua mãe. Como veremos
mais adiante, Sancho I teve também graves questões com este
bispo a partir de 1208. Mas o conflito com Pedro Poiares é
provavelmente anterior, porque existe uma carta do rei ao
bispo, não datada, em que lhe pede que não receba o seu
sobrinho na cidade; deduz-se dela que nessa altura não
existia entre eles qualquer conflito, pois o rei elogia a
maneira como o bispo governava a cidade. Nessa carta,
Sancho I declara que Pedro Poiares se associara aos seus
inimigos e estes lhe destruíam a terra e causavam grandes
prejuízos. Ignoramos se o bispo acatou a recomendação do
rei. Mas a revolta de Pedro Poiares terminou mal, porque
foi morto com muitos fidal gos na Batalha de Crasconho, nas
margens do rio Sousa, segundo informação do Livro de
linhagens do conde D. Pedro, que atribui a vitória a seu
primo direito, Pêro Rodrigues de Pereira, filho de um irmão
do bispo do Porto. Esta circunstância permite pôr em dúvida
que o bispo tivesse apoiado Pedro Poiares e não traz
qualquer informação acerca da hipótese adiantada por José
Ariel Castro de a sua revolta se relacionar com as
possíveis pretensões ao trono do bastardo régio Fernando
Afonso, segundo parece assassinado em Évora em 1207, como
vimos mais atrás.

92
O episódio pode, no entanto, estar relacionado com a
questão que opôs Sancho I a Lourenço Fernandes da Cunha,
conhecida através de dois documentos em que aquele nobre
enumera os graves prejuízos que lhe infligiram por ordem do
rei. Um desses documentos é a célebre «Notícia do torto»,
um dos primeiros textos redigidos em língua vulgar, que
acusa o rei de lhe ter destruído a torre do seu solar da
Cunha, com numeroso armamento, e de lhe despovoarem 70
casais. Estes acontecimentos também não estão datados, mas
são obviamente, anteriores a 1210. Tiveram sequelas
posteriores, porque em 1214 ou 1215 Lourenço Fernandes
queixa-se de seus parentes, filhos de Gonçalo Ramires
Ramirão, que praticaram também grandes violências sobre 23
dos seus casais em entre Douro e Cávado. Não é provável que
os seus parentes agissem por conta do rei.
Enfim, antes de passarmos a relatar com mais pormenor
as questões do rei com os bispos de Coimbra e do Porto, de
que se conhecem significativos pormenores e que se devem
inserir igualmente no contexto da agitação destas duas
décadas, mencionamos, para terminar o elenco das
perturbações sociais, as violências de que, pouco antes de
1209, se queixavam as confrarias de pedreiros que
trabalhavam nas pontes de vários locais do País. Eram
suficientemente notórias para que o rei tivesse de mandar
protegê-los por carta desse ano, onde refere especialmente
os abusos praticados por um tal Raimundo de Caldas sobre os
construtores da ponte de Penamacor.
Como se vê, a maior parte destas agitações afecta
centros urbanos como Lisboa, Leiria, Coimbra e Porto. As
fomes atingem Braga duramente. Alguns conflitos alastram
para zonas rurais, como as fonteiras do couto de Alcobaça,
os concelhos vizinhos do Porto, o vale do Ave, onde
Lourenço da Cunha tinha a maioria dos domínios atingidos, o
vale do Sousa, onde se deu a Batalha de Crasconho,
Penamacor e à volta de várias pontes. Resultam, directa ou
indirectamente, das carências materiais sentidas em todos
estes centros e regiões, onde a organização social e
administrativa não conseguia, obviamente, resolver os
problemas resultantes da afluência de populações vindas dos
campos e acossadas pela fome, que as frágeis estruturas
económicas das cidades, com abastecimentos mal organizados,
não podiam absorver. Note-se também que estes conflitos se
repercutem imediatamente sobre o exercício dos poderes
senhoriais, como veremos particularmente a respeito das
questões com os bispos, e provocam conflitos entre as
diversas instâncias do poder político, regional e local.
Prenunciam de longe uma crise que, depois de alguma
acalmia, haveria de marcar quase todo o reinado de Sancho
II.

O primeiro conflito do rei com os bispos

O ambiente de perturbação que descrevemos era propício


ao aparecimento de conflitos de todo o género. Aqueles que
melhor se conheciam até há pouco eram os que opuseram os
bispos e o rei e abriram uma longa série que durou até ao
fim do século XIII. Intervieram neles os bispos do Porto e
de Coimbra. Os acontecimentos podem-se reconstituir como se
segue.
Em 1200, o bispo do Porto, Martinho Rodrigues, depois
de um difícil período de controvérsias, em que chegou a
intervir o arcebispo de Braga, conseguiu chegar a acordo
com os seus cónegos acerca da distribuição das rendas da
diocese e do cabido. A questão, todavia, não ficou
completamente resolvida, porque ainda em 1207 o papa
intervinha para obrigar alguns cónegos a cumprir o que
antes fora estabelecido. O bispo, por sua vez, já em 1200
temia a intervenção do rei, porque fez prometer aos cónegos
que só em último caso recorreriam a ele para resolver
eventuais diferendos. Devia haver, portanto, quem incitasse
o rei a apoderar-se do caso.
Fê-lo efectivamente, segundo parece, sob pretexto de o
bispo se ter recusado a assistir ao casamento do príncipe
D. Afonso com Urraca de Castela, filha de Afonso VIII, no
final de 1208, pois eram parentes, embora em grau remoto.
Aproveitando, provavelmente, conflitos relacionados com
diferentes maneiras de interpretar a jurisdição episcopal
sobre a cidade, os burgueses, incitados pelos oficiais
régios, saquearam as casas de alguns cónegos partidários
dobispo e praticaram outras violências. Apesar do interdito
que lançou sobre a cidade, o clero que estava contra ele
continuou a celebrar os ofícios divinos. Temendo violências
maiores, ficou durante meses encerrado no seu palácio, sem
querer sair daí, até que resolveu fingir aceitar um acordo
com o rei e, depois de libertado, fugiu para Roma. Os
oficiais régios confiscaram-lhe os bens patrimoniais e
prenderam alguns membros do seu séquito. Em Maio de 1210,
Inocêncio III nomeava juízes apostólicos para averiguarem o
procedimento dos cónegos, castigarem os que haviam
desobedecido ao prelado e censurarem com a excomunhão 20
93

Burgueses que, segundo as informações recebidas, prestadas,


evidentemente, pelo bispo, eram considerados os cabecilhas
da revolta. A sentença foi dada já depois da morte do rei,
em Novembro de 1211.
Entretanto, estalava também outro conflito em Coimbra.
Resultou de um desacordo quanto aos direitos que deveriam
ser pagos ao rei por uma aldeia dos domínios episcopais.
Recusado o seu pasamento, os oficiais do rei praticaram
violências na casa do bispo e dos cónegos e saquearam
alfaias da igreja. O bispo lançou o interdito sobre a
diocese e apelou para Roma, ao passo que o rei mandava
sequestrar os bens dos clérigos que acatassem as censuras
canónicas. Sancho I, temendo que ele saísse do País, como o
do Porto, mandou-o prender.
É provável que nestas questões o chanceler Julião
tivesse, até certo ponto, encorajado o rei. De facto, uma
bula papal de 1211 acusa-o de ocultar o teor de certas
cartas apostólicas a respeito das questões de Coimbra. No
Inverno de 1210, porém, a agressividade do rei já tinha
diminuído. Tinha caído doente e temia morrer antes de se
poder reconciliar com a Igreja. Aceitou as exigências dos
juízes apostólicos e mandou restituir os bens confiscados
ao bispo do Porto. Para reparar os prejuízos que lhe
causou, revogou o foral outrora dado pelo bispo Hugo à
cidade do Porto, mandou que os cidadãos lhe pagassem todos
os direitos senhoriais e se reconhecessem como seus
vassalos, isentou os clérigos do serviço das armas e
escreveu ao juiz e concelho do Porto exortando-os a
exigirem de todos os habitantes a obediência ao seu senhor.
Tudo isto mostra que na base do conflito estava uma
contestação burguesa às exigências jurisdicionais do
prelado como senhor feudal. Inicialmente, o rei encorajou a
revolta dos cidadãos, mas depois teve de os abandonar à sua
sorte.
Quanto ao bispo de Coimbra, Sancho I mandou libertá-lo
durante o mesmo ano de 1210, mas o papa só teve
conhecimento disso muito mais tarde, porque em Fevereiro de
1211 nomeava o arcebispo de Compostela juiz apostólico
encarregado de mandar restituir ao prelado os bens em que
tinha sido prejudicado. Em Maio confirmava o testamento do
rei e a absolvição das censuras eclesiásticas, proferida já
pelo arcebispo de Braga.
Note-se que estes conflitos não devem ser julgados em
função de procedimentos de direito canónico, que só por
essa altura se começavam a aplicar, depois da modificação
do Decretam de Graciano de meados do século XII. Numa época
em que as jurisdições civil e eclesiástica não estavam
ainda bem definidas, muitos dos privilégios clericais que
depois vieram a generalizar-se tendiam a ser interpretados
como direitos senhoriais; o rei considerava a sua aplicação
como inovações que prejudicavam os seus direitos. Os
conflitos daí decorrentes arrastaram-se durante muitas
décadas. Apesar de os bispos invocarem frequentemente a
libertas para justificarem o seu procedimento, não era,
muitas vezes, a autonomia do poder espiritual que estava em
causa, mas o conflito de jurisdições. As intervenções
papais, que normalmente apoiavam os bispos, contribuíram
para os incitar a uma intransigência na defesa das suas
posições, que só veio a alterar-se com uma melhor definição
das esferas de poder. Enfim, o clima de lutas e
contradições que se viveu durante o período de crise
contribuiu também para exacerbar os ânimos e dificultar as
soluções.

A sucessão de Sancho I

Sancho I fez testamento em Coimbra em Outubro de 1210.


No mês seguinte, dirigiu-se para sul, em lenta viagem que o
levou primeiro a Alcobaça, onde expediu, talvez, as
numerosas cartas sem data com as quais favoreceu o mosteiro
nos conflitos com os concelhos vizinhos, e depois a
Santarém, onde provavelmente esperava o socorro dos médicos
conhecedores da tradição muçulmana que decerto havia na
cidade. Devia há um certo tempo ter sido atingido pela
doença de que morreu em Santarém, no fim de Março de 1211,
com 57 anos de idade. Rodeavam-no vários eclesiásticos, que
aproveitaram a ocasião para obter favores para as suas
instituições: entre outros, o arcebispo de Braga, o abade
de Alcobaça, o bispo de Coimbra e o prior de Santa Cruz.
Pensava assim propiciar a misericórdia divina e reparar as
violências praticadas contra as pessoas sagradas. Entre os
membros da corte, favoreceu também mestre Julião Pais e seu
filho Egídio.
A sua sucessão não foi pacífica, tal como acontecera,
talvez, com a de Afonso Henriques, como referimos a
propósito do seu bastardo Fernando Afonso De resto, as
disputas em torno da transmissão da coroa foram frequentes
na Península até ao fim do século XIII. De facto, o costume
de reservar o trono para o primogénito varão não era ainda,
segundo parece, inteiramente pacífico. A sucessão linear
94
por linha masculina impôs-se com dificuldade, apesar de ser
frequentemente praticada não só pelos reis, mas também por
muitas casas senhoriais e defendida pelos juristas imbuídos
dos princípios do direito romano. Os filhos segundos
reivindicavam frequentemente a partilha do reino, se
houvesse algum fundamento para contestar a atribuição da
coroa ao primogénito. Um dos indícios da igualdade de
direitos dos príncipes é o facto de todos eles serem
designados «reis». Assim, por exempo, os Anais
conimbricenses chamam rex tanto a Pedro Sanches como a
Fernando Sanches quando noticiam o seu nascimento. Foi
certamente por isso que, no seu primeiro testamento, Sancho
I, cujos filhos eram ainda menores, regulou minuciosamente
a sucessão de «todo» o reino, declarando que o fazia «para
tudo permanecer em paz e tranquilidade». Admitindo morrer
antes de o primogénito chegar à maioridade, previu a
formação de um grupo de tutores, mas não a divisão do
reino.
No segundo testamento, de 1209, volta a declarar que o
faz «para que os seus filhos, os seus vassalos e o reino
permaneçam em paz e tranquilidade» e atribui o trono a D.
Afonso, deixando vários bens móveis e imóveis aos restantes
filhos e filhas, chamando àqueles «infantes». Na sequência
do mesmo testamento, aparece a declaração do herdeiro, que
promete cumprir todas as prescrições. Mas, dois meses mais
tarde, o rei toma precauções suplementares: invoca o
juramento do filho e nomeia «juízes» responsáveis pelo
cumprimento o arcebispo de Braga, o abade de Alcobaça, o
prior de Santa Cruz de Coimbra, o abade de Santo Tirso, o
mestre dos Templários, o prior do Hospital e seu meio-irmão
Pedro Afonso. Ordena a Gonçalo Mendes de Sousa, a Lourenço
Soares de Ribadouro e a Gomes Soares que se recusem a
entregar ao príncipe os castelos de que fizeram homenagem
até ele cumprir o testamento. Sinal evidente de que previa
já obstáculos ao cumprimento dos seus legados.
Estes provinham, decerto, de sectores adversos à
partilha hereditária e à proliferação de direitos
senhoriais. Os eclesiásticos que então o rodeavam
faziam-lhe crer que o infante poria em causa os favores
considerados excessivos. De facto, o reinado de Afonso II
foi entrecortado por infindáveis querelas acerca de várias
disposições, sobretudo as que favoreciam as infantas. O
núcleo de tal resistência encontrava-se, sem dúvida, na
chancelaria; o seu inspirador devia ser mestre Julião. Mas
o ambiente favorável às concessões senhoriais, que
certamente o rodeava desde que deixara Coimbra, devia
apoiar as pretensões dos infantes Pedro e Fernando.
O partido da unidade, porém, prevaleceu. Pedro Sanches
saiu do reino e foi pôr-se ao serviço de Afonso IX de Leão,
tornando-se desde então um feroz adversário de Afonso II.
Se este dava sinais de estar atingido pela lepra, era
natural que ele alimentasse algumas esperanças de governar
em sua vez. Quem sabe, até, se reivindicava para si a
herança, alegando a incapacidade física do irmão. A melhor
defesa de Afonso II era, portanto, apoiar-se no partido da
unidade e da chancelaria.
Quanto ao infante D. Fernando, a quem, provavelmente,
não agradava ficar no reino às ordens do irmão, resolveu,
como tantos filhos segundos dessa época, procurar a sorte
no exílio, dirigindo-se à Flandres, onde vivia sua tia
Teresa (ou Matilde, como aí lhe chamavam), que tinha
enviuvado de Filipe da Alsácia, morto em São João de Acre,
na Palestina. O condado, depois de passar sucessivamente
pelas mãos de Balduíno, VIII e de Balduíno IX (imperador de
Constantinopla), pertencia às filhas deste último, Joana e
Margarida, ambas menores e sujeitas à tutela de Filipe,
conde de Namur, por sua vez vassalo de Filipe Augusto, rei
de França. Este, como soberano, decidia do casamento das
herdeiras. Matilde, mediante grossa quantia de dinheiro,
conseguiu que Filipe Augusto aprovasse o casamento de Joana
com o sobrinho Fernando Sanches, que assim se tornou conde
da Flandres. As bodas realizaram-se em Paris em Janeiro de
1212, prestando o infante português homenagem nas mãos do
rei de França. Isto não o impediu, logo no ano seguinte, de
entrar na coligação antifrancesa de que resultou a Batalha
de Bouvines, em 1214. Fernando ficou prisioneiro de Filipe
Augusto até ser libertado mediante pesado resgate, que por
ele ofereceu sua mulher em 1226.
A unidade do reino foi, portanto, preservada. Na mente
de Sancho I talvez prevalecesse ainda a ideia de garantir a
transmissão intacta do património fafrniliar, mais do que
de uma função pública. Mas, na chancelaria e nos serviços
administrativos da coroa, ia-se tornando cada vez mais
firme a convicção de que a função régia não era propriedade
privada, mas uma magistratura pública permanente, que devia
criar órgãos independentes das vicissitudes pessoais e
temporais, suscitáveis de prejudicar o seu exercício.

95

Aspectos contraditórios de um reinado

Afonso II começou a governar com 25 anos de idade. Morreu


apenas com 37. Sofria de uma doença grave, que podia ser
uma variante da lepra. Como vimos, aos 14 anos escapou da
morte por milagre atribuído a Santa Senhorinha de Basto. Os
inquiridores de 1258 chamavam-lhe «aquele que foi gaffo» e
o Livro das kalendas de Coimbra diz que morreu ex
crassitudine, «por causa da sua gordura», como resultado,
evidentemente, da doença de que sofria. Esta podia ser,
como pensava Júlio Dantas em 1923, a lepra propriamente
dita ou uma «dermatose vulgar de aspecto lepróide», que de
facto lhe entumescia o corpo.
Como vimos, já Sancho I tinha passado os últimos meses
de vida em Santarém, talvez para aí ser tratado por médicos
experientes na tradição herdada dos Árabes. Afonso II
também foi repetidas vezes à mesma cidade a partir de 1217;
em 1219 foi a Santiago de Compostela, quem sabe se para
pedir a intercessão do apóstolo para a sua cura; desde
Janeiro de 1221 até à sua morte não voltou a sair de
Santarém. Sabemos o nome de seis médicos seus, referidos em
vários documentos datados de Santarém no dia de Sexta-Feira
da Paixão: eram dois cónegos de Lamego, dois mestres de
Évora, um de Lisboa e um do Porto. A proximidade constante
da morte fê-lo redigir três testamentos, em Junho de 1214,
Janeiro de 1218 e Novembro de 1221. Nos últimos documentos
que promulgou já não pôde desenhar o sinal do seu punho,
talvez por a lepra ter atingido os membros superiores, como
notou Júlio Dantas. Morreu em Santarém, a 25 de Março de
1223.
Tudo isto mostra a constante fragilidade física do rei.
Já no Verão de 1214 devia sentir-se à beira da morte,
quando redigiu o seu primeiro testamento. O perigo deve ter
passado, porque depois de uns anos, dos quais não ficou
praticamente documentação nenhuma, sabemos que viajou
frequentemente, tanto no Norte como na Beira e na
Estremadura, mesmo nos meses de Inverno, embora
permanecesse mais longamente em Guimarães, Coimbra e
Santarém, até ficar aqui durante os dois últimos anos de
vida.
A doença não impediu Afonso II de iniciar uma
centralização estatal surpreendentemente inovadora,
persistente e vigorosa. De tal modo inovadora, que
constitui um dos mais precoces ensaios de supremacia do
Estado que se conhecem na Europa feudal e que em alguns
pontos lembra a acção de Frederico II. Este, todavia, viveu
muito mais tempo e por isso aprofundou melhor as suas
reformas políticas. Este facto só se pode compreender se
admitirmos que o rei depositava a maior confiança em
auxiliares imbuídos de concepções jurídicas e capazes de
pôr em prática medidas até então desconhecidas das
administrações feudais. Dado o carácter agressivo que elas
representavam para as forças sociais dominantes,
particularmente o clero e a nobreza, temos também de
admitir que existia na corte não apenas um cérebro que
concebia as medidas a tomar, mas também os «homens fortes»,
que asseguravam a sua execução prática e venciam as
resistências, que, como veremos, se levantaram, de facto.
Não sabemos até que ponto esse cérebro foi o próprio
rei. Vários indícios, porém, como a continuidade da
política, apesar da mudança dos protagonistas, e mesmo a
radical alteração que se deu à sua morte, tendo, todavia,
os principais auxiliares do fim do seu reinado permanecido
em funções durante algum tempo, parecem apontar para essa
solução. A documentação existente permite, porém,
identificar com segurança os seus colaboradores.
O primeiro deles foi, sem dúvida, o chanceler Julião
Pais, cuja prática adquirida em quase trinta anos de
exercício da função lhe conferia grande autoridade.
Permaneceu no cargo até à sua morte, em 1215, continuando a
receber significativas provas de apreço, que se juntaram às
que havia obtido dos dois reis anteriores. Sucedeu-lhe um
fiel discípulo, talvez ainda mais radical do que ele,
Gonçalo Mendes, que conservou o cargo até 1228, isto é, até
cinco anos depois da morte de Afonso II. A influência de
Gonçalo Mendes deduz-se de uma bula papal de Dezembro de
1220, em que é mencionado, juntamente com o mordomo Pêro
Anes da Nóvoa,como a personagem que conduzia o rei à
«impiedade», e por isso veio a ser excomungado pelo papa em
Janeiro seguinte, com a recomendação de o rei o substituir
por homens «prudentes e honestos».
Conhecemos também os nomes de outros juristas
auxiliares do chanceler: mestre Vicente, deão de Lisboa,
mestre Julião, deão de Coimbra e filho de Julião Pais, e
mestre Pedro, chantre do Porto. Foram todos suspensos das
suas funções clericais, juntamente com outros clérigos não
nomeados, como instigadores da política de Afonso II, por
bula papal de Junho de 1222; Gonçalo Mendes, de cuja
biografia, infelizmente, nada se conhece, soube escolher
como seus colaboradores alguns excelentes peritos de

96
Direitos canónico e civil, que em Roma defenderam com
sucesso os direitos régios nas querelas com as infantas e
mesmo com os bispos de Braga e do Porto. Eram eles mestre
Silvestre, mais tarde arcebispo de Braga, e o já mencionado
mestre Vicente, mais tarde bispo da Guarda e depois do
Porto. Foram ambos professores da Universidade de Bolonha e
comentadores das decretais do papa, alcançando o segundo a
maior autoridade entre os juristas da sua época, sob o nome
de Vicente Hispano, como mostrou António Domingues de Sousa
Costa em erudita investigação. Este autor mostrou também
que não se tratava, como pensou Herculano, de clérigos
laícistas, contrários aos direitos da Igreja, mas antes de
juristas com um notável espírito de rigor, persuadidos de
que a coroa era soberana na sua esfera. Achavam que a
autoridade do rei vinha de Deus e se assemelhava à do
imperador no império, sem por isso negarem a soberania da
Igreja no campo espiritual.
Não havia, portanto, contradição em apoiarem a oferta
dos dízimos dos direitos régios a todas as dioceses do
reino e a algumas ordens religiosas, como Afonso II fez a
conselho deles em 1218, e ao mesmo tempo censurarem a
excessiva acumulação de bens fundiários nas mãos do clero,
como já acontecia no reinado anterior, segundo se deduz de
uma bula de Fevereiro de 1211 em que Inocêncio III se
refere a essa opinião, considerando-a suspeita de heresia.
Por isso levaram, logo no início deste reinado, à
promulgação da lei contra a amortização dos bens da Igreja
e combateram energicamente a detenção de direitos
senhoriais por parte das infantas Teresa e Sancha, apesar
de estas invocarem a obrigação de se cumprir o testamento
de Sancho I e de terem apelado para o papa. De facto, o bom
fundamento jurídico das suas alegações foi reconhecido pela
própria cúria romana, durante o longo processo em que o rei
não se poupou a esforços para ganhar a sua causa.
Quanto a Pêro Anes da Nóvoa, o mordomo-mor, tratava-se
de um galego, neto, por sua mãe, do conde Fernão Peres de
Trava e filho de João Aires da Nóvoa, influente membro da
corte de Afonso IX de Leão. A preponderância da família
confirma-se pelo facto de um irmão de Pêro Anes, Gonçalo,
ter sido grão-mestre da Ordem de Calatrava de 1218 a 1238,
depois de ter sido rico-homem na Galiza. Pêro Anes saiu da
sua terra para servir o rei de Portugal talvez por
influência de seu sogro, Pêro Pais da Maia, o Alferes.
Este, como vimos, depois de ter servido o rei de Leão,
tinha voltado à corte portuguesa em 1186. Pêro Anes iniciou
as suas funções em Portugal como auxiliar do primeiro
mordomo-mor de Afonso II, Martim Fernandes de Riba de
Vizela, e substituiu-o antes de 1217.
O principal adversário das novas tendências na cúria
era Gonçalo Mendes de Sousa, o último mordomo-mor de Sancho
I, que gozara junto dele de grande autoridade e prestígio.
Voluntária ou contrariadamente, exilou-se em Leão, vindo a
tornar-se depois acérrimo defensor das infantas Teresa,
Sancha e Mafalda.
Os dois auxiliares da autoridade régia e inimigos dos
poderes senhoriais, Gonçalo Mendes e Pêro Anes da Nóvoa,
dominaram a política régia pelo menos desde 1216, o que
causou a maior irritação aos seus adversários. Os escribas
da cúria romana do pontificado de Honório III chamavam-lhes
«ímpios, facinorosos, sedutores, gente ambiciosa que se
compraz em fazer mal e em ser por isso temida, homens
pestíferos e, finalmente, rãs aninhadas nos pórticos do
paço, que enredam o rei na maldade, movendo-o à mercê do
próprio instinto», para utilizar as palavras com que
Herculano traduz expressões textuais das bulas pontifícias.
Mencionei já os auxiliares do chanceler. Quanto aos do
mordomo-mor, são certamente os que de 1217 a 1220 confirmam
constantemente os diplomas régios. Um deles é Gil Vasques
de Soverosa, que em 1220 foi o principal executor das
medidas tomadas contra o arcebispo de Braga. Além dele,
decerto, os irmãos Pôncio e Lopo Afonso de Baião, Lourenço
Soares de Valadares (neto de Egas Moniz), João Pires da
Mala (cunhado do mordomo Pêro Anes), seu irmão Martim
Pires, o Jami, e Martim Anes de Riba de Vizela, alferes
depois de 1217. Eram, portanto, membros de algumas famílias
de velhas tradições linhagísticas. O grupo devia, porém,
apoiar-se num conjunto de indivíduos de condição inferior,
que desempenhavam funções domésticas, mas adquiriram
importância suficiente para serem mencionados nos
documentos régios: o barbeiro, o escanção, o reposteiro, o
falcoeiro, o cevadeiro, o uchão e ainda outros, como o
tabelião de Lisboa. Alguns dos seus nomes, como Pedro Qui
Venit e Quanto Mi Quiseres, exprimem bem a sua condição de
não nobres.

97
Ensaios de centralização

As inovações de Afonso II em matéria política são,


efectivamente, da maior transcendência, numa época em que
dominava ainda a concepção feudal do exercício do Poder.
Mencionemos as mais importantes.
A primeira foi a realização de uma cúria solene onde
foram promulgadas, várias leis gerais, poucos meses depois
de o rei ter sido coroado. Diz a notícia inicial do seu
tçxto que a cúria se reuniu «com conselho de dom Pedro
[arcebispo] eleito de Braga e de todos os bispos do reino e
dos homens de religion e dos ricos-homens e dos seus
vassalos». O carácter inovador da assembleia está bem
marcado por se dizer também que nela foram estabelecidos
«juízes», mas que o reino e todos os que nele morassem
seriam regidos e julgados pelo rei e seus sucessores, sem
excluir os próprios juízes por ele instituídos. Não poderia
haver mais clara afirmação da superioridade do poder
judicial do rei e da sua capacidade de intervenção em todos
os níveis. A proclamação do princípio parece visar
directamente outros detentores do poder judicial, em
particular os senhores leigos e eclesiásticos, que o
exerciam nas suas honras e coutos. Além disso, declara-se
na mesma notícia que o rei determinou fossem guardadas as
suas leis e as da Igreja de Roma e que não se pudesse
invocar nenhuma regra ou princípio incompatível com estas
duas fontes de direito. Afonso II afirmava, pois, a sua
própria capacidade legislativa e colocava-a a par da do
papa.
Admitindo a sua autenticidade, trata-se da mais precoce
declaração do poder régio em matéria legislativa em toda a
Península Ibérica. É surpreendente a afirmação deste
princípio muitos anos antes de aparecer consignado nas
Partidas de Afonso X, o Sábio. Não é menos sintomático o
paralelismo estabelecido entre as leis régias e os
«dereitos [leia-se, decerto, “decretos”] da sancta Egreja
de Roma». Este paralelismo correspondente a afirmar o
princípio da autonomia do poder civil na sua esfera,
equivalente ao da Igreja no domínio espiritual. Tal
princípio é, efectivamente, afirmado por Vicente Hispano
numa das suas obras, quando compara o poder do imperador da
Alemanha com o do «imperador» da Hispânia: o primeiro
recebeu o «gládio» do papa, isto é, o poder temporal, mas o
segundo não o recebeu de ninguém a não ser de Deus. O papa
podia invocar este facto para reclamar uma autoridade sobre
o imperador, mas não sobre os reis da Hispânia. As ideias
acerca da relação entre o poder civil e a Igreja, que
Vicente Hispano, sem dúvida, ensinou na Universidade de
Bolonha até 1212, eram, portanto, professadas como
princípio fundamental do exercício da função régia ainda
antes de ele estar ao serviço do rei de Portugal.
As leis promulgadas nesta ocasião, ou, segundo
pretendem alguns autores, em várias datas através do
reinado de Afonso II, embora todas elas atribuídas pelas
cópias que no-las transmitiram à mesma cúria régia,
manifestam pela primeira vez, ao nível da formulação
jurídica, a influência do direito de Justiniano, como
verificaram já Gama Barros e outros especialistas. Para
além deste aspecto técnico, verifica-se que várias das leis
contêm afirmações genéricas ou doutrinais que justificam a
sua promulgação. Assim, por exemplo, a doutrina de que os
clérigos não devem estar sujeitos «per poderio segral» ou
de que «o bom príncipe deve limpar a sua província dos maus
homens» e lhe «pertence fazer mercê aos indefesos e
protegê-los contra os poderosos». Afirmações que revelam
uma clara noção do que deve ser a função régia, em
contraste com a ausência de proclamações deste tipo em
datas anteriores e ainda raras nesta época.
Aparece também na cúria de 1211 a primeira lei da
desamortização, pela qual se proíbem os mosteiros e ordens
religiosas de comprarem bens fundiários, excepto para, com
os seus rendimentos, poderem celebrar ofícios por alma dos
reis.
Outra medida da política afonsina é a execução das
primeiras inquirições gerais, que foram realizadas no ano
de 1220. Os juízes e delegados régios que recolheram os
depoimentos dos inquiridos talvez não tivessem ultrapassado
os limites de algumas terras de além-Douro; mas, se não
cobriram todo o reino, escolheram exactamente as regiões
onde as sonegações aos direitos régios eram mais abusivas e
frequentes, em virtude do alargamento dos senhorios
eclesiásticos, das ordens militares ou dos fidalgos.
Percorrendo essa zona, os inquiridores consignaram por
escrito todos os foros e serviços que deviam ser pagos aos
mordomos régios e registaram a quem pertenciam os direitos
patronais sobre as igrejas e os proprietários eclesiásticos
dos casais.
As inquirições tinham tido como precedentes, desde
havia muito tempo, inquéritos esporádicos em locais onde se
verificavam contestações acerca do montante dos foros ou do
senhor a quem pertenciam. A inovação de Afonso II consiste
em ordenar a realização de um inquérito sistemático, como
se a coroa fosse prejudicada por todos e pretendesse repor
uma ordem por toda a pane subvertida. Ora, os actos deste

98

género que se fizeram também noutros países, como o


Domesday book inglês, de carácter muito diferente, aparecem
na França só em meados do século XIII. As nossas
inquirições constituem, pois, outra inovação muito precoce
no contexto da centralização régia europeia.
Pode considerar-se relacionada com ela a prática de
exigir a confirmação dos principais diplomas que
estabeleciam imunidades ou concelhos e que, portanto,
subtraíam territórios mais ou menos vastos à administração
régia. Afonso II mandou proceder a grande quantidade de
confirmações, pressupondo tal prática que a sua ausência
fazia suspeitar da legalidade do exercício dos direitos
senhoriais. É claro que este princípio nunca chegou a
aplicar-se uniformemente. A administração régia teve de
utilizar outros processos para reprimir os abusos da
senhorialização. Mas representa um claro propósito de
limitar os seus progressos à custa dos bens da coroa e
sobretudo a aplicação prática do princípio segundo o qual o
rei é a fonte e o garante da legalidade dos poderes
exercidos em territórios imunes.
Não admira, por isso, que os juristas da corte de
Afonso II tivessem lutado com tanto vigor contra o
estabelecimento de senhorios nas terras das infantas,
apesar de elas poderem invocar em seu favor o testamento
paterno. A questão subiu, como vimos, ao juízo da cúria
romana e o rei teve, por isso, de enviar à Santa Sé vários
juristas, como os mestres Silvestre Godinho, Vicente e
Lanfranco de Milão, que defenderam a sua causa. Por agora
bastará dizer que a sua acção foi tão decisiva que
conseguiram obter o reconhecimento quase completo dos
direitos régios pelo papa Inocêncio III.
Não ficaram por aqui as inovações surgidas durante o
reinado de Afonso II. Uma das mais importantes, posta em
relevo por Rui de Azevedo em 1967, é a elaboração do
primeiro registo oficial dos diplomas régios, o que
evidencia o decisivo aperfeiçoamento dos serviços
burocráticos da chancelaria. O livro foi escrito a partir
de Novembro de 1217 e começa, significativamente, pela
cópia da doação feita em Dezembro de 1211 ao chanceler
Julião. Também este registo é um facto singularmente
precoce no contexto político europeu. Com efeito, a prática
da transcrição de documentos pelas respectivas
administrações no acto da sua expedição começa na Sicília,
na Inglaterra e na França no princípio do século XIII. O
mais antigo códice deste género que se conhece provém da
França e cobre o período de 1205-1212. Depois segue-se o
quase contemporâneo de Afonso II e em terceiro lugar o da
coroa de Aragão, começado em 1252. O chanceler Gonçalo
Mendes, que superintendia nestes serviços, estava, pois, a
par das mais modernas práticas administrativas da sua
época. O códice ainda existente mostra, por fim, que o
chanceler escolheu escribas capazes de uma perfeição
caligráfica excepcional.
No reinado de Afonso II começam, ainda, os primeiros
ensaios para implantar o notariado, com o intuito de, por
meio dele, registar os diplomas particulares e os dotar dos
requisitos formais indispensáveis para garantir a sua
validade jurídica. Como mostrou E. Borges Nunes, aparecem
em 1212 as primeiras menções documentais a tabeliães régios
e em 1214 os mais antigos instrumentos tabeliónicos
conservados. Aqueles encontram-se em Canedo, Panóias e
Santarém; estes em Guimarães. Ao contrário do que acontece
na Itália do Norte e na França do Sul, onde o tabelionado
nasce espontaneamente de decisões locais das cidades e
comunas, em Portugal surge simultaneamente em locais
distantes e parece resultar de uma decisão superior, que só
pode ser a do rei. A instituição parece ter tido
dificuldade em se impor: quase desapareceu com Sancho II,
para ressurgir e se generalizar rapidamente com Afonso III.
Dir-se-ia que a medida, excessivamente «moderna» para se
impor com rapidez, se difundiu sem dificuldade quando as
condições se tornaram mais favoráveis.
Mencione-se, por fim, o aparecimento dos primeiros
documentos redigidos em português. A relevância histórica
do facto resulta de a língua vulgar surgir quase ao mesmo
tempo num documento privado, a célebre «Notícia do torto»,
que podia ser um mero apontamento sem qualquer intenção
jurídica, e num documento dotado de toda a solenidade — o
testamento régio de 27 de Junho de 1214. O carácter oficial
do segundo está bem patente no facto de dele terem sido
feitas treze cópias (de que existem duas), para enviar aos
arcebispos de Braga, Santiago e Toledo, aos bispos do
Porto, Lisboa, Coimbra, Évora e Viseu, aos mestres do
Templo e do Hospital, ao abade de Alcobaça e ao prior de
Santa Cruz. O facto é quase chocante, tendo em conta que a
língua vulgar só viria a ser adoptada oficialmente nos
documentos dotados de validade jurídica no fim do século.

99
Dir-se-ia que o rei pretendia proclamar, perante as mais
venerandas autoridades eclesiásticas da Hispânia, a
«diferença» que opunha a autoridade temporal à espiritual,
como se a língua própria da primeira fosse a vulgar e da
segunda o latim. Dir-se-ia um processo simbólico de criar
um paralelismo antinómico entre a área do poder espiritual
e a do poder temporal. É óbvio o carácter especulativo
desta interpretação: nada sabemos das intenções do rei. Mas
não se pode também esconder o carácter surpreendente do
facto. A sua excessiva precocidade está bem patente no
facto de a própria chancelaria régia não ter então-adoptado
o português e de continuar a redigir documentos em latim
até ao princípio do reinado de D. Dinis. A inovação era tão
insólita que não alterou os hábitos e conceitos dos
clérigos da corte.
Não pode deixar de a este respeito se colocar o
problema da língua original das leis de 1211, que só
conhecemos através de um texto em português. Até aqui
tem-se admitido, sem o provar, que este texto é tradução do
latim. Perante o que acabámos de ver, torna-se urgente
averiguar os fundamentos desta asserção, porque, no caso de
ter chegado até nós o texto original, a sua redacção em
português representaria um novo indício de uma atitude
política não menos surpreendente e inovadora do que as já
mencionadas. Mesmo que venha a estabelecer-se em bases
sólidas a tese até aqui aceite, tudo o que dissemos até
agora é suficiente para considerar a actuação política de
Afonso II como uma das mais precoces tentativas europeias
para criar, na prática, o Estado moderno.

Afonso II e as infantas

Tendo em conta estes indícios de uma precoce tentativa


de lançar as bases do Estado moderno, compreende-se que ela
tivesse suscitado reacções violentas e persistentes. Já
mencionámos de passagem a proclamação da supremacia régia
na cúria de 1211, a lei da desamortização, as inquirições e
confirmações régias, a luta contra a formação dos senhorios
jurisdicionais das infantas. Convém agora averiguar as
reacções que estas medidas provocaram, particularmente a
luta contra as infantas e a oposição entre o rei e o clero,
que se podem conhecer bem através da documentação
eclesiástica e pontifícia a que deram lugar. A segunda,
porém, ultrapassa o aspecto da luta anti-senhorial, porque
envolve também o exercício de privilégios clericais que a
Igreja reivindicava como garantia da sua «liberdade».
Conhecemos mal, porém, devido à escassez de provas
escritas, as vicissitudes da resistência aristocrática à
centralização afonsina.
A luta contra os poderes senhoriais das infantas ocupou
os primeiros anos do reinado de Afonso II. Já devia ser
prevista por Sancho I e pelos vassalos que o rodeavam à
hora da morte, como se depreende da acumulação de garantias
para a execução do seu testamento. De facto, Inocêncio III
expediu nada menos de sete bulas para exigir o seu
cumprimento, o que se deve interpretar mais como resultado
da influência que o partido senhorial procurava na corte
pontifícia do que do empenho do papado neste assunto. Um
dos seus principais elementos devia ser Estêvão Soares,
membro da velha família da Silva, que tinha importantes
domínios no vale do Cávado. Podemos enumerar também os
príncipes Pedro e Fernando, os bastardos régios filhos de
Maria Pais «Ribeirinha» e de Maria Aires de Foraelos e
alguns dos Sousas, entre eles Gonçalo Mendes. Este último
refugiou-se em Leão, onde obteve o governo de Trasserra e
da Estremadura, em 1211.
As questões com as infantas Teresa, Sancha e Mafalda
situaram-se no plano judicial e nas «vias de facto». No
primeiro, começaram com o protesto dos Hospitalários junto
da cúria romana por terem sido expulsos pelo rei das vilas
que Mafalda lhes concedera. No segundo, resultaram do cerco
que mandou pôr a Montemor-o-Velho e a Alenquer,
pertencentes, respectivamente, a Teresa e a Sancha. Esta
actuação violenta provocou a intervenção dos exilados:
Pedro Sanches apoderou-se de várias povoações em
Trás-os-Montes com o auxílio do rei de Leão, de Pedro
Fernandes de Castro e de Fernando, filho de D. Teresa e de
Afonso IX; Gonçalo Mendes de Sousa correu em auxílio dos
sitiados de Montemor, entrou no castelo de noite e pouco
depois venceu as tropas régias, comandadas por Martim Anes
de Riba de Vizela. Este teria caído num paul perto de
Coimbra e morrido da perda de sangue, chupado pelas
sanguessugas, segundo uma narrativa conservada no Livro do
conde D. Pedro. Se alguma coisa há nela de verdade, não
causou a morte do alferes, que continuou no cargo até 1240,
no reinado de Sancho II.
A transmissão desta estória nos meios senhoriais e da
de Martim Sanches, que mencionaremos adiante, por contraste
com a ausência de relatos favoráveis a Afonso II
consignados em qualquer outro escrito, mostra que o rei
perdeu o apoio da historiografia clerical, que tanto havia

100
exaltado a memória de Afonso Henriques, e não suscitou
nenhuma obra para defender o seu papel, ao passo-que os
nobres cultivavam a lembrança dos feitos que os opunham ao
rei. Não pode deixar de se notar que na estória de Martim
Sanches se desprestigia o rei, mas não os seus partidários
nobres, apesar de terem combatido o herói que aí se
pretende exaltar.
Entretanto, ou pouco depois, os juízes pontifícios
encarregados de mandar executar o testamento de Sancho I
excomungaram Afonso II e lançaram o interdito sobre o
reino. Eram dois bispos leoneses e Estêvão Soares da Silva,
arcebispo de Braga. O rei protestou junto da cúria romana,
onde se fez representar pelos já citados mestres Silvestre
Godinho e Vicente de Lisboa, que devem ter permanecido aí
até 1216. De facto, a partir do Verão de 1212, a atitude do
papa tornou-se contemporizadora. Passou a procurar uma
solução de compromisso que respeitasse os direitos régios
ou, pelo menos, garantisse que os castelos das infantas não
fossem entregues sp$ inimigos do rei. Em Maio de 1213,
ordenou aos juízes eclesiásticos que absolvessem o rei da
excomunhão, o que eles fizeram, com relutância, só oito
meses depois, condenando-o a pagar 50 000 cruzados. Mas até
desta pena o rei foi parcialmente dispensado, depois de ter
recorrido ao papa. Além disso, confirmou com a sua suprema
autoridade o princípio de que os domínios das infantas
deviam estar sujeitos à jurisdição régia.
Os adversários do rei não desarmaram com o seu
insucesso na cúria. Imediatamente depois da morte de
Inocêncio III renovaram o processo em Roma e conseguiram a
nomeação de um novo juiz apostólico, o bispo de Lugo (outro
leonês), o que levou o rei a reiterar a apelação para a
Santa Sé nos primeiros meses de 1218. Em Maio seguinte, o
paparevocou a causa ao tribunal apostólico e convocou para
Roma os procuradores das partes. Aí se arrastou o exame
jurídico da questão até à concórdia entre as infantas e
Sancho II, promovida pelo arcebispo de Braga imediatamente
depois da morte de Afonso II.

Estêvão Soares da Silva

Entretanto, o soberano e os seus juristas lançavam no


interior do reino uma ofensiva contra a usurpação dos
direitos régios, ordenando as inquirições, que foram
executadas durante o ano de 1220. Já nessa altura se deviam
ter iniciado as questões directas entre o rei e Estêvão
Soares da Silva. Este deve ter passado a fazer admoestações
públicas e ameaças contra o rei, acusando-o de exigir
impostos sobre as igrejas e mosteiros e de não respeitar as
liberdades eclesiásticas. Como ele não acatasse as suas
advertências, excomungou-o, juntamente com o mordomo-mor e
o chanceler. O rei respondeu com represálias sobre os seus
bens, executadas na zona de Coimbra por Gil Vasques de
Soverosa e na zona de Braga pela gente do concelho de
Guimarães. Houve também depredações de oficiais régios
sobre o seu couto de Ervededo, situado no território galego
de Límia. Este facto deu pretexto a que o seu governador,
Martim Sanches, o bastardo régio português ao serviço do
rei de Leão, pegasse em armas com gente de Toronho e de
Límia e se dirigisse a Ponte de Lima, onde estava então
Afonso II. Este retirou-se para o Castelo de Gaia,
confiando a defesa do território a Mendo Gonçalves de
Sousa, João Pires da Maia e Gil Vasques de Soverosa. Os
Portugueses foram derrotados e tiveram de se retirar para
Braga e Guimarães, enquanto os Galegos devastavam a região.
As tradições linhagísticas que já mencionámos não deixam de
repisar a humilhação de Afonso II.
Encorajado com a protecção externa, Estêvão Soares da
Silva continuou a sua luta, embora tendo o cuidado de se
retirar para o reino de Leão. Deixou de figurar como
confirmante dos documentos régios entre Junho de 1221 e 15
de Agosto de 1222. Antes disso, apelou para o papa, que em
22 de Dezembro de 1220 encarregou os bispos de Palença,
Astorga e Tui de confirmarem a sentença de excomunhão.
Honório III, depois de expor todas as acusações de que o
rei era alvo, ameaçou-o de dispensar os seus vassalos do
juramento de fidelidade e de exortar os reis e nobres a
ocuparem o reino, severidade que não pode deixar de se
contrapor à relativa moderação de Inocêncio III na causa
das infantas. O papa parecia querer repetir em Portugal o
processo de luta que o seu predecessor tinha utilizado
contra João, Sem Terra. Assim, o rei de Leão, que em tempos
fora considerado um instrumento de Satanás por se aliar com
os Muçulmanos, era agora escolhido como auxiliar do clero
para proteger o arcebispo de Braga. O bispo de Coimbra, que
se recusara a ajudar o de Braga, foi severamente
admoestado.

101
Pelo conjunto de bulas enviadas nesta ocasião por
Honório III verifica-se que estava em causa uma divergência
fundamental de concepções acerca dos privilégios clericais
reivindicados desde o Decretum de Graciano, interpretados
pelo arcebispo como uma extensão do poder temporal da
Iareja, e a pretensão à quase total isenção dos clérigos
para com a jurisdição régia. Os juristas do rei, pelo
contrário, admitiam os privilégios eclesiásticos, mas
pretendiam manter o direito de lançar impostos como o de
colheita, mesmo sobre igrejas e mosteiros, de julgar os
clérigos acusados de crimes e delitos no cível, de manter
as obrigações de os moradores de domínios eclesiásticos não
imunes cumprirem os serviços das jeiras, castelania,
anúduva, hoste, etc. Em suma, procuravam manter o exercício
do poder fiscal e judicial do rei nos territórios
submetidos à sua alçada, sem ceder a nenhuma forma de
extensão do poder senhorial da Igreja, sob o pretexto de
privilégios clericais. Baseavam-se para isso na já
mencionada soberania dos dois poderes, cada qual na sua
esfera, como se verifica, entre outras coisas, pela
concessão do pagamento à Igreja do dízimo sobre os direitos
régios em 13 de Abril de 1218, a conselho dos seus
juristas, como nesses diplomas se diz expressamente. As
acusações feitas nas bulas papais representam, afinal, o
ponto de vista de Estêvão Soares e de outros bispos, mas
não convenceram todo o clero, uma parte do qual continuou a
apoiar o rei, como se verifica pelo facto de vários bispos
e clérigos não terem acatado a sentença de excomunhão e
sofrerem, por isso, a pena da suspensão, em bula de 16 de
Junho de 1222, onde o papa renovou a ameaça de expor o
reino de Portugal à conquista de outros soberanos e de
absolver os seus vassalos do juramento de fidelidade.
Nesta altura, porém, já se procurava a conciliação,
decerto porque a saúde do rei se agravava. Durante o Verão
de 1222, mestre Vicente, deão de Lisboa, começou a negociar
um acordo prévio, que o rei já não pôde assinar, porque
morreu em Março de 1223. Este facto deu ocasião a que o
arcebispo impusesse logo a seguir um acordo em tudo
desfavorável à coroa. Os seus defensores tiveram de ceder
largamente na questão das infantas e em toda a linha na
controvérsia com ele.

O poder régio

Como se pode verificar das páginas anteriores, não se


deve interpretar esta luta como um longínquo precedente das
que se deram nos séculos XVIII e XIX em virtude das medidas
laicistas dos soberanos a partir do iluminismo. Como
dissemos, o rei procurava o exercício pleno da sua
soberania na sua esfera própria. A frequente sobreposição
de jurisdições, todavia, deu ocasião a numerosos conflitos.
Assim, por exemplo, frei Soeiro Gomes, prior dos
Dominicanos, que havia pouco tempo estabelecera a sua ordem
em Portugal, redigiu com a ajuda do bispo Pedro Soares de
Coimbra uma série de instruções, que provavelmente diziam
respeito a repressão dos hereges pelos bispos e à
instauração da inquisição diocesana. O rei considerou este
acto como uma intromissão na sua esfera e proibiu a sua
execução, sob penas muito severas. Temia, sem dúvida,
talvez com alguma razão, que os bispos criassem tribunais
próprios e forças seculares para reprimirem eventuais
heresias.
As lutas do rei com vários membros do clero foram,
pois, violentas e prolongadas. A possibilidade de acordo
viria, afinal, das soluções propostas pelos juristas do
rei, como mestre Silvestre Godinho e mestre Vicente, apesar
de serem os mais odiados por Estêvão Soares da Silva, entre
outros. Ambos vieram a desempenhar altos cargos
eclesiásticos, um como arcebispo de Braga, outro como bispo
da Guarda e do Porto, e nessas funções contribuíram para
apaziguar as tensões existentes entre os dois poderes.
Entretanto, as inquirições tinham revelado numerosas
usurpações dos direitos régios, não só por parte dos bispos
e abades, mas também dos senhores leigos e das ordens
militares. Não se conhecem, porém, medidas concretas de
Afonso II para as reprimir. Não se conhece também nenhuma
revolta aberta dos nobres contra a centralização régia. De
resto, os inquiridores, tal como sucederia ainda com Afonso
III, não contestavam os direitos senhoriais em si mesmos;
pretendiam, antes de mais, evitar a invasão dos reguengos e
a perda de direitos pelo rei. Só D. Dinis levaria mais
longe a centralização política. O reinado de Afonso II
revela, pois, as primeiras divergências graves não só com
um sector importante do clero, mas também com parte da
nobreza, como reacção contra o processo de centralização
que ele iniciou com uma determinação que a sua fragilidade
física não permitia esperar.

102

A guerra santa

Nos primeiros anos do século XIII manifestaram-se os


primeiros indícios de fraqueza do império almóada. As
revoltas dos descontentes multiplicaram-se a partir de
1198, por ocasião da morte de Yaqub al-Mansur e sobretudo
da de seu filho Muhammad al-Nasir, em 1213. Ao
enfraquecimento político do califado de Marrocos
correspondeu o ímpeto com que Afonso VIII de Castela
procurava vingar a derrota de Alarcos. Os combates
intensificaram-se em 1210, quando este rei fez apelo a
franceses, italianos, aragoneses, leoneses e navarros e
obteve as indulgências de Roma para empreender uma grande
expedição, assim como as censuras eclesiásticas contra
qualquer rei cristão que o atacasse. Juntaram-se-lhe os
reis de Aragão e Navarra, mas não os de Leão e Portugal. De
Portugal, no entanto, partiram muitos membros das ordens
militares, sobretudo templários, e uma «copiosa multidão de
peões», como diz Rodrigo Ximénez de Toledo, que foi um dos
grandes organizadores da expedição. O exército cristão
obteve uma esmagadora vitória sobre as forças almóadas,
comandadas pelo próprio califa, na Batalha de Navas de
Tolosa, em Julho de 1212. Como se sabe, esta batalha marca
o declínio do império almóada. Seguiram-se-lhe no campo
muçulmano novas perturbações, que acabariam por dar lugar,
em 1223, à nova fragmentação política conhecida pelo nome
de «terceiras taifas».
Enquanto o rei de Castela continuava a ofensiva,
conquistando, a seguir, os castelos de Baeza e de Úbeda e
chegando, portanto, ao Guadalquivir, Afonso IX tomou
Alcântara e atacou Cáceres, sem ter podido tomá-la. Era
Portugal, porém, Afonso II não empreendeu nenhuma expedição
para alargar o território, não sabemos se por a sua saúde
não lhe permitir comandar as tropas, se por ter, nessa
altura, de organizar a defesa contra os ataques do rei de
Leão. Não descurou, no entanto, a defesa do País,
prolongando a política iniciada por Afonso Henriques e
continuada por Sancho I de conceder às ordens militares
grandes domínios situados nos territórios próximos da
fronteira. Em 1214, entregou aos Templários uma vasta zona
da Beira Baixa, onde Fernando Sanches tinha já, com ajuda
da mesma ordem, fundado Vila Franca, depois chamada Castelo
Branco, para proteger a região dos mouros vindos de Cáceres
e de Badajoz, juntamente com o Castelo de Marvão,
construído também por esta época, como sabemos pela doação
de Aramenha ao Mosteiro de Alcobaça em 1217.
Quanto aos freires de Évora, viram aumentados os seus
domínios e confirmada a sua função defensiva naquela cidade
pela concessão do domínio de Avis, com a obrigação de aí
fundarem um castelo. Este domínio viria a tórnar-se a sede
da ordem, deixando os cavaleiros de usar o nome da cidade
onde tinham sido fundados.
Limitaram-se a estas as acções de Afonso II na luta
antimuçulmana. Não foi ele, porém, o seu único protagonista
neste período. A fronteira avançou para sul graças a
iniciativas vindas de outros sectores. Assim, por exemplo,
sabemos por uma bula de Inocêncio III de 1216 que o papa
assegurou ao bispo de Évora a jurisdição sobre todo o
território povoado por cristãos entre os limites da sua
diocese e os infiéis, o que significa que a ocupação ia
avançando em direcção ao Baixo Alentejo, talvez por
iniciativa das ordens militares.
Mas o facto mais importante é a conquista de Alcácer do
Sal, em 1217. Os Portugueses tinham até então procurado
neutralizar os ataques almóadas a Lisboa reconstruindo
Palmela e povoando Sesimbra, mas Alcácer permanecia o ponto
de partida de incursões constantes. A chegada a Lisboa de
uma grande armada de cruzados proporcionou a ocasião de
atacar a fortaleza inimiga. Vinham das cidades alemãs e
frísias das margens do Reno e os seus chefes eram os condes
de Withe e da Holanda, este último companheiro de
infortúnio do infante Fernando da Flandres na Batalha de
Bouvines. Reuniram-se em Lisboa em Julho de 1217 e Soeiro,
bispo da mesma cidade, convenceu-os a empreenderem o
desejado ataque. Obteve também o concurso do abade de
Alcobaça e de vários representantes das ordens de SantTago,
do Templo e do Hospital. Uma parte dos cruzados não aceitou
a proposta e partiu rumo à Terra Santa. Ficaram uns 100
navios frísios e alemães, aos quais se juntaram mais alguns
voluntários portugueses, entre eles o bispo de Évora.
Iniciaram o ataque no fim de Julho, mas os Sarracenos
receberam em Setembro o auxílio de forças poderosas vindas
de Badajoz, Sevilha, Córdova e Jaén, o que mostra a
importância que os Almóadas atribuíam à preservação da
fortaleza. Pouco depois afluíam também ao campo cristão
maiores reforços de ordens militares, de cavaleiros
portugueses e até leoneses, entre os quais Pedro Alvites,
mestre dos Templários de toda a Hispânia.

103
A sorte do combate decidiu-se numa batalha campal entre
os reforços de ambos os exércitos, na qual os Sarracenos
foram derrotados. Os sitiados, porém, continuaram a
resistir e só se renderam em 18 de Outubro. O sentimento de
triunfo foi enorme. Os vencedores expuseram-no em carta ao
papa Honório III, e Gosuino, decerto um cruzado, escreveu
um poema a relatar a vitória, do qual ficou uma cópia no
Mosteiro de Alcobaça. Alguns cruzados, entre eles Guilherme
de Holanda, dirigiram-se ao papa pedindo-lhe que comutasse
a sua promessa de irem combater na Terra Santa, mas ele
recusou e acabaram por partir, no fim de Março de 1218.
Alcácer do Sal foi entregue aos cavaleiros de Sant’Iago,
que provavelmente não deixaram, nos anos seguintes, de
fazer incursões no Alentejo, depois de terem reparado o
castelo, parcialmente destruído pelo cerco.
Entretanto, a reconquista leonesa procurava também
avançar para sul, lançando novos ataques a Cáceres e
Badajoz, mas não conseguiria ocupar estes castelos até ao
ano de 1227.

A guerra o reino de Leão

Na fronteira leonesa, a atitude de Afonso II também foi


geralmente defensiva, apesar das com frequentes investidas
de Afonso IX e dos exilados portugueses, que junto dele iam
procurar apoio contra o seu detestado rei anti-senhorial.
Como vimos acima, a luta entre Afonso IX e Sancho I
tinha sido violenta e prolongada, até 1199. Não se sabe se
terminou por meio de algum tratado. As hostilidades
renovaram-se quando, no princípio do reinado de Afonso II,
este se recusou a cumprir algumas cláusulas do testamento
paterno e saíram do reino, como já vimos, os príncipes
Pedro e Fernando, além de vários fidalgos, entre eles
Gonçalo Mendes de Sousa e alguns dos seus irmãos. Sabemos
por documentos leoneses e por uma bula pontifícia que
Afonso IX com seu filho Fernando, o infante Pedro Sanches e
Pedro Fernandes de Castro atravessaram a fronteira e
ocuparam Melgaço, Freixo, Urros, Mós, etc, apoderando-se
assim de quase toda a província de Trás-os-Montes.
Entretanto, a vitória de Navas colocava Afonso VIII de
Castela numa posição de superioridade perante os outros
reinos cristãos. Convenceu, por isso, os de Portugal e de
Leão a assinarem um acordo de tréguas em Coimbra em 11 de
Novembro de 1212 e negociou em seguida um tratado directo
com o de Leão, que foi ratificado na Páscoa do ano
imediato. Pelo primeiro deles, Afonso IX obrigou-se a
restituir a Portugal os castelos que tomara. Afonso VIII
cumpria assim os deveres de solidariedade com Afonso II,
que era seu genro pelo casamento com sua filha D. Urraca.
Entretanto, a querela sobre os direitos senhoriais das
infantas tornara também outro rumo. A rivalidade leonesa e
as pressões dos exilados devem ter influenciado a
severidade dos bispos nomeados juízes apostólicos, o que
levou a cúria a chamar o caso a Roma. Os exilados
portugueses viram, portanto, frustradas as suas investidas.
Pedro Sanches desistiu dos seus hipotéticos direitos ao
trono português e acompanhou seu amigo Pedro Fernandes de
Castro a Marrocos, onde viveu algum tempo e onde teve
ocasião de recolher as relíquias dos cinco franciscanos que
aí sofreram o martírio em 16 de Janeiro de 1220. Os Sousas
voltaram à corte portuguesa a partir de Fevereiro de 1219,
juntando-se a Garcia Mendes, que nunca a abandonara, e a
Rodrigo, que já tinha regressado em 1217. Desligavam-se,
assim, de Afonso IX, que em Março ou Abril de 1219 voltou a
atacar o nosso território, apoderando-se de Chaves. As
pazes foram restabelecidas, em 13 de Junho seguinte, quando
Afonso II assinou com ele o Tratado de Baronal, por ocasião
da sua ida a Santiago de Compostela. A cidade de Chaves,
todavia, só seria restituída muito mais tarde, em virtude
do acordo do Sabugal com Fernando III, em 1231. De momento,
porém, a rápida solução do conflito devia-se à aproximação
entre Portugal e Castela, estreitada em 1215, quando,
depois da morte de Afonso VIII, o tutor do herdeiro, ainda
menor, Álvaro Nunes de Lara, se propôs casado com Mafalda,
irmã de Afonso II. O acordo realizou-se facilmente e a
cerimónia efectuou-se em Castela nesse mesmo ano, mas o
casamento não se consumou. Os rivais dos Laras, chefiados
pela rainha Berengária, acusaram-nos de parentesco e o
contrato foi dissolvido por Roma. Mafalda regressou a
Portugal já depois da morte do se.u ex-noivo, que faleceu
ern virtude de um acidente em Junho de 1217. A coroa
castelhana foi então atribuída a Fernando, filho de Afonso
IX e da própria Berengária, apesar de o casamento de ambos
haver sido também dissolvido por sentença apostólica.
A paz de Baronal, no entanto, não impediu novas
agressões leonesas. Recomeçaram em 1220, embora
provavelmente sem a intervenção do rei de Leão. Nesse ano,
o bastardo régio português, Martim Sanches, governador do

104
território de Límia, atravessou a fronteira, provavelmente
como represália por violências praticadas por oficiais de
Afonso II sobre o couto de Ervededo, situado no mesmo
território e pertencente, como já vimos, ao arcebispo
Estêvão Soares da Silva. Venceu as forças portuguesas em
Ponte de Lima e na Várzea, descendo depois até Braga e
Guimarães.
O novo rompimento oficial entre os dois reis deu-se
dois anos depois, em circuntâncias mal conhecidas, mas que
devem estar relacionadas com o recrudescimento da questão
sobre os direitos senhoriais de Teresa, ex-mulher de Afonso
IX, a qual voltou a ser julgada na cúria romana a partir de
Maio de 1218. Não estava resolvida quando Afonso II morreu,
porque o acordo sobre os bens da rainha é um dos primeiros
actos do reinado de Sancho II. O rei de Leão podia nessa
altura invocar a ameaça que Honório III fizera a Afonso II
em Dezembro de 1220, repetida em Junho de 1222, de expor os
seus Estados à conquista de outros reis.
Ultrapassemos um pouco o reinado de Afonso II, para
fazer notar que os conflitos militares entre Portugal e
Leão desapareceram praticamente desde a morte de Afonso IX,
em 1230. Com a união das duas coroas de Leão e de Castela,
Fernando III tornou-se o soberano mais poderoso da
Península. Durante as décadas centrais do século XIII, ele
e seu filho Afonso X preocuparam-se em obter uma vitória
definitiva sobre o outro poder maior da Península, o
muçulmano. Com a conquista de Córdova e Sevilha, Castela
alcançou um território que ia do Cantábrico ao
Mediterrâneo. Só depois disso Portugal voltou a ter de
defrontar o perigo cristão.

A sucessão de Afonso II

A questão sucessória não se coloca, com a morte de


Afonso II, a respeito do detentor da coroa, pois nessa
época devia já estar aceite o princípio da transmissão
hereditária numa linha única, mas por causa da continuidade
da sua política, tão inovadora e contestada. Já durante a
sua vida os adversários tinham tentado afastar ou
neutralizar os seus principais auxiliares, suscitando a
excomunhão de uns e a suspensão de outros. É natural que
ele tenha procurado prevenir a subversão completa da sua
obra. Este propósito inspira provavelmente a indicação
feita nos seus dois primeiros testamentos de que o reino
devia ser governado por D. Urraca e pelos seus vassalos até
o filho ser maior, no caso de não ter atingido a maioridade
quando lhe sucedesse. Na minha opinião deve-se aqui tomar a
palavra no seu sentido estrito de indivíduos que lhe tinham
prestado uma homenagem pessoal e não de súbditos em geral.
De facto, não teria sentido confiar o governo do reino a
todo e qualquer vassalo. Por isso a expressão mantém-se no
último testamento, em que a rainha não é mencionada, por já
ter falecido.
De facto, o príncipe herdeiro tinha uns 13 anos quando
seu pai morreu. Na concórdia que fez com suas tias, em
Junho de 1223, declara-se expressamente que a executaria
logo que chegasse à idade da «rebora», que era aos 14 anos.
Todavia, tendo sido criado por uma irmã do arcebispo de
Braga, Estefânia Soares, viúva do antigo alferes de Sancho
I e primeiro mordomo-mor de Afonso II, Martim Fernandes de
Riba de Vizela, pode admitir-se que vivesse com ela à data
da morte de seu pai. Sabemos que ela lhe tinha dedicada
afeição, porque em 1213 havia feito uma doação ao Mosteiro
de Tarouca em acção de graças pela sua saúde. Nestas
circunstâncias compreende-se que o arcebispo, na falta de
sep cunhado, assumisse o papel de tutor, mesmo que não
fosse vassalo do rei, no sentido estrito. Assim se
explicaria o papel que tomou no estabelecimento das duas
concórdias com as infantas e consigo próprio, e que parecem
significar a vitória do partido «senhorial», ao contrário,
decerto, do que desejava o rei falecido.
Esta vitória, no entanto, não exclui um certo
compromisso. As negociações haviam já começado, conduzidas
por mestre Vicente, que fora recompensado por este papel em
Agosto de 1222. Além disso, como veremos, os principais
auxiliares de Afonso II mantiveram os seus postos durante
algum tempo. Veremos também que se pode pôr a hipótese de
em 1226 ter havido alguma tentativa para entregar o trono
ao príncipe D. Afonso, futuro rei Afonso III. Mas nada
permite supor que houvesse em 1223 qualquer dúvida acerca
do legítimo detentor do trono português.

Contradições políticas

As duas concórdias a que já aludimos mostram que o


ajuste de contas por parte do «partido senhorial» se fez
imediatamente depois da morte de Afonso II. Foram assinadas
em Coimbra em Junho de 1223. Uma atribuía às infantas os
rendimentos de Torres Vedras, como forma de reparar os

105
prejuízos sofridos, mas reservava o posto de alcaide da
vila para um vassalo do rei com cuja escolha elas
concordassem. Recebiam pacificamente as vilas de Alenquer,
Montemor e Esgueira, com a condição de reverterem para a
coroa depois da sua morte. As reparações eram pesadas, mas
salvava-se o princípio da inalienabilidade dos direitos
régios.
A outra concórdia representava uma cedência completa do
«partido monárquico». Estêvão Soares da Silva receberia uma
indemnização de 6000 maravedis, que lhe eram entregues
imediatamente. O restante seria calculado por frei Soeiro
Gomes, prior dos Dominicanos, Garcia Mendes, arcediago de
Braga, e Fernão Peres, chantre de Lisboa (sobrinho do
chanceler Julião Pais e fundador do mosteiro cisterciense
de S. Paulo de Almaziva, perto de Coimbra), mas desde logo
se depositavam 30 000 maravedis na Torre de Água Levada e
20 000 no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra como garantia
do que faltasse pagar. Além disso, prometia-se o castigo
dos agressores do arcebispo, Garcia e Rodrigo Nunes,
decerto simples mandatários, cuja punição representava
simbolicamente a humilhação dos verdadeiros responsáveis.
Apesar desta aparente vitória dos inimigos do rei
falecido, os seus auxiliares não foram banidos. Pêro Anes
da Nóvoa permaneceu como mordomo-mor pelo menos até Junho
de 1223; Martim Anes (provavelmente, filho de João
Fernandes de Riba de Vizela) como alferes-mor; e Gonçalo
Mendes como chanceler. Outros fidalgos que antes
confirmavam constantemente os documentos de Afonso II
também ficavam na corte, sobretudo Gil Vasques de Soverosa,
responsável pelas violências contra o arcebispo de Braga, e
Pôncio Afonso de Baião. Aí figuram também vários nobres com
posições que hoje desconhecemos, como Gonçalo Mendes de
Sousa e seus irmãos Garcia, Rodrigo, Henrique e Vasco; João
Fernandes de Límia, antigo dapífero de Sancho I, que
regressara à corte em 1218, depois de ter casado com a
antiga barregã de Sancho I, Maria Pais, a Ribeirinha; e
Abril Pires de Lumiares, bisneto de Egas Moniz, que havia
de se tornar mais tarde um intransigente adversário do novo
rei.
A nobreza estava, portanto, dividida. Se em 1223 houve
uma tentativa de compromisso, deve ter dado resultados
passageiros, como mostra a sucessão dos cargos curiais até
1226, demasiado rápida para não se atribuírem as suas
vicissitudes às lutas pelo Poder, que, sem dúvida,
perturbavam a vida da corte. O cargo de chanceler mantém-se
nas mãos de Gonçalo Mendes. Mas o de mordomo-mor passa de
Martim Anes, em Setembro de 1223, a Henrique Mendes de
Sousa em Abril de 1224, a seu irmão Gonçalo Mendes em
Dezembro do mesmo ano, a João Fernandes de Límia em Junho
de 1225 e Julho de 1226, a Abril Pires de Lumiares em mês
indeterminado do mesmo ano. São membros da nobreza
senhorial ou indivíduos neutros e conciliadores. Mas de
1228 a 1231 o ofício volta a pertencer ao antigo mordomo de
Afonso II, Pêro Anes da Nóvoa.
O cargo de alferes-mor, por sua vez, é desempenhado por
Martim Anes de Riba de Vizela em Abril de 1224, por João
Fernandes de Límia, em Dezembro do mesmo ano e em Junho de
1225, e de novo por Martim Anes a partir de 1226. Embora as
mudanças também sejam rápidas, revelam menos perturbações
do que as do mordomo. O cargo militar do alferes sofria
talvez menos contestação do que aquele cargo político.
Enfim, o arcebispo Estêvão Soares da Silva não deve ter
abandonado a posição determinante que decerto alcançara em
1223, mas não há provas evidentes da sua intromissão em
questões concretas. Também não se encontram provas da
intervenção de Afonso IX de Leão, que, pela sua anterior
protecção aos exilados, e até por ter tido duas barregãs
portuguesas, Teresa Gil de Soverosa e Aldonça Martins da
Silva (a segunda, prima direita do arcebispo), devia estar
interessado com o que se passava na nossa corte; a sua
idade, a preocupação em conquistar algumas fortalezas na
Estremadura leonesa e a evolução da política castelhana
solicitavam-lhe a atenção para outros assuntos.
As questões entre os dois partidos não são suficientes
para explicar os numerosos conflitos que surgem um pouco
por toda a parte. Assim acontece, por exemplo, no que opôs
o bispo de Lisboa ao seu deão mestre Vicente. O primeiro
queixou-se ao papa do seu adversário e dos apoios que ele
recebia da corte. A questão levou ao assassinato dos
sobrinhos do bispo; mas os responsáveis refugiaram-se em
Alenquer, o castelo das infantas, que, aparentemente, devia
pertencer ao partido oposto a mestre Vicente. Por outro
lado, encontram-se documentos passados pelo rei sem as
formalidades habituais da chancelaria, como se o chanceler
tivesse perdido o controlo sobre a sua emissão. Entre eles
incluem-se os privilégios dados à diocese de Évora, à qual
o rei fez generosas concessões em 1224 e alguns forais
concedidos a comunidades locais.

106
Os antigos partidários de Afonso II, porém, não
perderam totalmente o domínio da situação. Assim, em
Outubro de 1224, mestre Vicente recebia grandes elogios do
mesmo papa que poucos meses antes o censurava a ele e a
ouiros adversários do bispo de Lisboa. O papa aconselhava-o
a exercer fielmente o cargo de chanceler, concedia-lhe
vários benefícios e emitia uma bula de protecção dirigida
ao rei, fazendo expressa referência à sua juventude e
ameaçando com penas espirituais quem ousasse atentar contra
os seus direitos ou perturbar a sua autoridade.
Por esta altura esteve na Península o legado apostólico
bispo de Lidda, que exortou os cristãos a contribuírem com
esmolas para a cruzada na Palestina, e o papa encarregou o
arcebispo de Braga de recolher as contribuições. O rei de
Leão tentava de novo a conquista de Cáceres e Badajoz e
deve ter proposto ao de Portugal que ao mesmo tempo
atacasse as fortalezas mouras mais próximas. Com efeito, a
Crónica latina dos reis de Castela fala num «pacto» entre
os dois reis. O arcebispo Estêvão Soares acompanhou Sancho
II na expedição que ele fez para tentar conquistar Elvas na
Primavera ou no Verão de 1226. A empresa, no entanto,
revelou-se mais difícil do que se esperava. Diz a mesma
crónica que Afonso IX, não podendo tolerar o calor do
Verão, levantou o cerco de Badajoz e que o rei de Portugal,
«abandonado pelos seus, retirou-se, gemendo e sofrendo mais
do que imaginar se pode». De facto, existe um documento em
que o rei beneficia Afonso Mendes Sarracins por ter
«entrado no fosso» de Elvas, arriscando-se a morrer por
ele. Mas não conseguiu conquistar a cidade, ao contrário do
que pensou Herculano.
Se o foral de Marvão foi, como se supõe, concedido
pouco antes do cerco de Elvas, pode admitir-se que os seus
confirmantes sejam aqueles que nessa ocasião o
acompanhavam. Eram ricos-homens de diversas tendências:
Abril Pires de Lumiares, Martim Anes de Límia, Gonçalo
[Legenda de figura.]
Planta do castelo de Mértola. Esta planta reconstituída
por Cláudio Torres mostra a zona onde se abrigava o gado e
acampavam os cavaleiros. Por isso, a sua conquista, em
1238, por Paio Peres Correia e a Ordem de Santiago,
constituiu um passo decisivo para o domínio efectivo do
Alentejo e do Algarve no reinado de Sancho II.

107
Mendes de Sousa, Gil Vasques de Soverosa, João Pires da
Maia, Soeiro Pais de Valadares, Pôncio Afonso de Baião,
Fernão Fernandes de Bragança e outros, além de Estêvão
Soares da Silva e de vários prelados. Os mais «políticos»
pensavam talvez que a guerra ajudaria a absorver as
rivalidades, juntando os adversários numa empresa comum. Em
vez disso, a derrota agravou as contradições. Os
contendores, momentaneamente unidos, devem ter lançado uns
sobre os outros as culpas do fracasso.
Embora não tenhamos testemunhos directos das lutas na
corte, pois são raros os documentos régios entre 1226 e
1229, podemos imaginá-los em virtude da nova composição da
cúria a partir de 1228. Além disso, há notícias de
conflitos armados no seio da nobreza. Assim, em 1226 os
Vasconcelos e Alvelos iniciaram uma vingança privada que
levou a vários assassinatos. No mesmo ano, deram-se
violências em Trás-os-Montes, talvez na fronteira leonesa.
Uma bula de Janeiro de 1227 acusa o rei e os seus ministros
de terem vexado o bispo do Porto e os seus habitantes. Deve
ser desta época a saída do príncipe Afonso para França,
pois no mesmo ano de 1226 Fernando Sanches foi finalmente
libertado da prisão na corte francesa e regressou a
Flandres; pode ter sido ele ou sua tia materna, a rainha
Branca de Castela, mulher de Luís VIII, quem o acolheu no
seu exílio. Luís Gonzaga de Azevedo admitiu mesmo a
hipótese de depois do fracasso de Elvas ter rebentado uma
guerra civil, em que os adversários de Sancho II pretendiam
substituí-lo por seu irmão mais novo, apesar de ele ter
apenas 14 anos. O fracasso levá-lo-ia a procurar refúgio
além-Pirenéus, onde acabou por casar com a condessa Matilde
de Bolonha, que em 1232 enviuvou de Filipe Aurepel, filho
de Filipe Augusto. Tudo isto, porém, são suposições e
hipóteses difíceis de confirmar com alguma segurança.
Ao certo, sabe-se que Gonçalo Mendes de Sousa e seus
irmãos deixaram de confirmar documentos régios desde 1226;
que Pêro Anes da Nóvoa voltou ao cargo de mordomo-mor entre
Fevereiro de 1228 e Agosto de 1231; que Martim Anes de Riba
de Vizela, o antigo alferes de Afonso II, permanece nas
suas funções no mesmo período; que Gil Vasques de Soverosa,
antigo agressor do arcebispo de Braga, voltou a figurar na
corte em lugar de relevo; que mestre Vicente, já citado
como chanceler em 1224, apesar de Gonçalo Mendes o ser
ainda em 1226, ocupou definitivamente o cargo desde o fim
deste mesmo ano. Enfim, Estêvão Soares da Silva deixou de
figurar nos documentos régios, embora só tenha morrido em
1228.
Tudo indica, portanto, que o grupo de vassalos de
Afonso II recuperou o Poder e conseguiu voltar a dominar na
corte. O papel mais importante parece pertencer a mestre
Vicente. Não deve, porém, ter enveredado por uma política
intransigente, mas pela via da negociação, como, de resto,
fizera desde 1222. Além disso, os legistas da corte, depois
de terem ajudado Afonso II nas suas lutas contra certos
bispos, alcançavam prestígio suficiente, mesmo na cúria
romana, para que esta não se opusesse à sua ascensão na
carreira eclesiástica: Silvestre Godinho foi o sucessor de
Estêvão Soares no arcebispado de Braga, em 1229, e mestre
Vicente acumulava as suas funções de chanceler com as de
bispo da Guarda, até ser transferido para o Porto.
Perante tudo isto, Sancho II parece ter desempenhado um
papel passivo e incoerente. A Crónica de 1344 diz que ele
«não fazia justiça [isto é, não governava como devia ser]
por sua simpleza». Incapaz de dominar os acontecimentos
cada vez mais agitados do seu país, acabaria por ser vítima
da sua própria fraqueza.

A conquista do Alentejo

Quando, em 1217, morreu acidentalmente o jovem rei


Henrique I de Castela, sucedeu-lhe Fernando III, filho de
Afonso IX de Leão e de Berengária, irmã do falecido. Depois
de pacificar o reino, iniciou em 1224 uma vigorosa e
persistente luta contra os Muçulmanos, que haveria de
continuar até à morte. Os seus triunfos incitaram seu pai e
Sancho II a retomarem também a guerra santa e a atacarem
Badajoz e Elvas, com o fracasso que já vimos.
É possível que Sancho II se interessasse pela guerra
santa. Talvez fosse por isso que em 1224 fez grandes
concessões ao bispo de Évora, encarregado pelo papa de o
proteger contra eventuais usurpadores. Em 1228 e 1229, era
a isso exortado pelo legado papal João Halgrin de
Abbeville, cardeal de Santa Sabina, que, além de procurar
difundir na Hispânia os decretos promulgados no IV Concílio
Ecuménico de Latrão (1215), exortou os reis da Península a
recomeçarem a cruzada, obtendo para isso as indulgências
papais em Fevereiro de 1229.

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João de Abbeville esteve por duas vezes em Portugal,
primeiro em Dezembro de 1227 e Janeiro de 1228, e um ano
depois, na passagem de 1228 para 1229. Na primeira estada
consagrou a Igreja de Santa Cruz de Coimbra, começada a
construir havia quase um século; depois percorreu
sucessivamente Salamanca, Astorga, Ávila, Segóvia,
Valhadolid e Calahorra, para em seguida voltar a Coimbra,
onde, em Janeiro, presidiu a uma cúria solene com o rei, os
ricos-homens e os bispos, provavelmente com o intuito de
pacificar os partidos opostos; nessa ocasião, instigou o
povoamento de Idanha-a-Velha, convenceu mestre Vicente a
aceitar a mirra da mesma diocese, para a qual fora nomeado
sem ter tomado posse, e solicitou as indulgências da
cruzada, que foram concedidas, como dissemos, em Fevereiro
de 1229. Em Março de 1229 estava em Léridae no ano seguinte
era nomeado legado junto do imperador Frederico II.
O avanço da reconquista leonesa também se tinha tornado
encorajador. Afonso IX conquistou Cáceres em 1227. Na
Quaresma seguinte (Março ou Abril), o infante português
Pedro Sanches conquistou Mérida, ao serviço do mesmo rei, e
repeliu Ibn Hud, xeque de Sevilha, que tentou recuperá-la.
Os habitantes de Elvas abandonaram a cidade e Sancho II
ocupou-a, dando-lhe foral em Maio de 1229; depois ocupou
também Juromenha, não se sabe se por abandono ou por
conquista. Enfim, no dia de Pentecostes de 1229 (3 de
Junho) ou de 1230 (26 de Maio), os Leoneses apoderaram-se
de Badajoz. Destruída, assim, a armadura de fortalezas que
protegia a fronteira do Ocidente, as tropas cristãs
avançaram sem dificuldade na campina alentejana. A morte de
Afonso IX, em 14 de Setembro de 1230, longe de perturbar o
movimento, permitiu imprimir-lhe maior unidade, uma vez que
o seu sucessor, Fernando III, reuniu as duas coroas de Leão
e de Castela e fez da 1 cruzada o seu principal objectivo.
Neste contexto de euforia conquistadora, seria
surpreendente que Sancho II não tivesse colaborado
pessoalmente em expedições de cruzada. As fontes
fidedignas, porém, não permitem averiguar este ponto com
segurança. De facto, só existe um testemunho seguro acerca
da sua intervenção pessoal na conquista de Aiamonte em 1239
ou 1240. Pelo contrário, podem-se atribuir com segurança
acções militares a vários outros chefes guerreiros, como
Paio Peres Correia, prior de Sant’Iago, Martim Anes do
Vinhal, que colaborou com a mesma ordem militar no Baixo
Alentejo, Afonso Peres Farinha, prior do Hospital, que com
os seus confrades ; conquistou Moura, Serpa, Aroche e
Aracena, o infante Fernando de Serpa, a quem Gregório IX
concedeu nada menos de 12 bulas para o exortar nas suas
expedições durante o ano de 1239, e provavelmente também às
próprias milícias concelhias próximas da fronteira, como
sugeriu, com bons argumentos, Rui de Azevedo.
Para admitir a acção pessoal do rei dispõe-se apenas,
além do já referido documento acerca da conquista de
Aiamonte, de algumas bulas de Gregório IX que se referem à
sua actividade guerreira: em Outubro de 1232 proíbe
qualquer eclesiástico de o excomungar enquanto permanecesse
em combate contra os Sarracenos; em Junho de 1233 encarrega
o franciscano frei Tiago de o absolver de excomunhão por
violência contra clérigos enquanto estivesse numa expedição
militar (in exercitu vel alibi constitutus); em Outubro de
1234 concede as indulgências da cruzada a quem o ajudasse
na guerra contra os Mouros e na ocupação das cidades
abandonadas por ele adquiridas; em Fevereiro de 1241 renova
a concessão de indulgências a quem o auxiliasse na guerra
santa. Como se vê, estas bulas demonstram mais o
empenhamento do papa em o exortar à cruzada do que a sua
participação efectiva nos combates. Além disso, não se pode
deixar de estranhar o silêncio das fontes narrativas e
documentais a esse respeito, sendo certo que, apesar de a
historiografia posterior não lhe ser favorável, por
pretender justificar Afonso III, não se perderam por
completo algumas narrativas que o defendem. Se, de facto,
teve papel activo na guerra, não se percebe por que razão
dele não ficou memória alguma.
Na dúvida, portanto, acerca do verdadeiro responsável
por todas as iniciativas de conquista, podemos reconstituir
como se segue a sua cronologia: Moura e Serpa foram tomadas
em 1232; Beja, acerca da qual não há qualquer notícia, deve
ter sido ocupada sem combate entre 1232 e 1234; Aljustrel,
conquistada em 1234; Mértola e Alfajar de Pena, em 1238;
Aiamonte e Cacela, em 1239 ou 1240; Alvor, em 1240 ou 1241;
Tavira e Paderne, talvez em 1242. A relativa rapidez destas
operações explica-se pela anarquia reinante nos reinos
taifas e pela simultaneidade da ofensiva castelhana. De
facto, as tropas castelhanas conquistaram Úbeda em 1233,
Córdova em 1236, Múrcia, Arjona e Jaén entre 1243 e 1246.

109
Uma parte das conquistas portuguesas, nomeadamente as
de Aljustrel, Mértola, Cacela, Tavira e Paderne, é
expressamente atribuída pela Crónica da conquista do
Algarve à Ordem de SantTago, sob a chefia de Paio Peres
Correia. As últimas, porém, se a data de 1242, que acima
indicámos, está exacta, não lhe podem ser atribuídas,
porque nesse ano já ele se encontrava em Castela. A
sequência das operações mostra que a táctica dos Espatários
consistiu em ocupar a linha do Guadiana antes de assediar
as cidades algarvias, para assim as separar das suas fontes
de abastecimentos a partir da Andaluzia.
Qualquer que tenha sido a actuação de Sancho II, não
pode deixar de se atribuir a maior importância à de Paio
Peres Correia. Coberto de glória devido aos seus triunfos,
passou ao reino de Castela, onde já estava no fim do ano de
1241; pouco depois, encontrava-se ao lado do infante D.
Afonso de Castela, futuro rei Afonso X, e acompanhava-o nas
campanhas que levaram à conquista de Múrcia, em 1243, e de
Lorca e Mula, em 1244; mais tarde, associava-se ao mesmo
infante e ao rei Fernando III na conquista de Jaén, em
1246; a seguir, ao infante Afonso de Molina na conquista de
Aljarafe e nas campanhas contra o rei de Niebla, em 1247;
finalmente, ao rei Fernando III no cerco de Sevilha, em
1248. As suas acções neste cerco são postas em relevo pela
Primeira crónica geral de Espanha, de Afonso X.

A política externa no reinado de Sancho II

De 1128 a 1223, Portugal teve monarcas suficientemente


firmes e aguerridos para desencorajar eventuais agressões
leonesas ou castelhanas e para resistir às mortíferas
invasões almóadas. Uma grande parte do sucesso destas
acções deve-se também a uma feliz conjugação de
circunstâncias, jue favoreceu a independência portuguesa.
Durante o período de graves dissenções internas e de
raqueza do poder régio que caracterizou o reinado de Sancho
II, a conjuntura voltou a favorecer-nos. De facto, a
velhice de Afonso IX e, quem sabe, alguma consideração pelo
sobrinho de sua ex-mulher, assim como o crescente poderio
de seu filho Fernando III, constituíram obstáculos às
ventuais ambições de soberania leonesa sobre o território
português. Quanto a Fernando III, lepois de durante todo o
ano de 1231 ter percorrido o reino de Leão e a Galiza para
desencorajar jualquer esboço de rebeldia, consagrou-se com
demasiado empenhamento à guerra contra os louros para se
interessar em atacar qualquer soberano cristão.
Durante a sua viagem de soberania em Leão encontrou-se
com Sancho II no Sabugal em 2 de ^bril de 1231. Poucos dias
depois, estando já em Zamora, garantiu-lhe a restituição de
Chaves, letida até ali por Afonso IX, embora se declarasse
defensor dos castelos que serviam de garantia os direitos
da ex-rainha Teresa. Pelo decurso dos acontecimentos
posteriores, verifica-se que [uis assegurar os seus
direitos à zona leonesa da Reconquista, embora respeitasse
a portuguesa, em a contestar. É possível, também, que
tentasse exortar Sancho II à cruzada, para garantir maior
xito às suas próprias expedições.
O alheamento de Fernando III a respeito das questões
internas portuguesas contrasta com ertas manobras da
nobreza castelhana para obterem algum apoio português na
sua revolta contra rei. Com efeito, deve estar relacionado
com estas manobras o casamento de Sancho II com lécia Lopes
de Haro. Membro da poderosa família dos senhores de
Biscaia, Mécia tinha conseguido atrair Álvaro Pires de
Castro e casar com ele por ocasião da sua revolta contra
Fernando III, m 1234 ou 1235. A intervenção de Berengária
evitou que passasse ao campo muçulmano e ermitiu que se
reconciliasse com o rei, colaborando nas campanhas
andaluzas de 1235 e 1236. Tendo Mécia enviuvado em 1239 ou
1240, casou pouco depois com Sancho II. Este facto deve,
pois, ser contemporâneo da revolta de seu irmão Diogo Lopes
de Haro contra Fernando III em 241-1242, que terminou
novamente por mediação de Berengária. Compreende-se, assim,
que a IV Crónica breve de Santa Cruz e o Livro de linhagens
declarem que a rainha-mãe de Castela se nha oposto
inutilmente a tal matrimónio.

As lutas contra os bispos

Não vamos descrever em pormenor as complicadas querelas


que opuseram Sancho II a alguns spos do reino, apesar de a
documentação disponível ser abundante. Por um lado, nem
sempre é Dssível compreender o que estava em causa; por
outro, parece-nos que os verdadeiros motivos sidem no facto
de a debilidade do Poder e as contradições da corte serem
favoráveis a intervenções abusivas de oficiais régios em

110
querelas locais, independentemente de qualquer ordem
superior, contribuindo, assim, para as agravar e para levar
à intervenção da cúria romana, o que tornava difícil
qualquer conciliação. Vejamos, em todo o caso, os episódios
mais importantes.
Os conflitos anteriores à legacia de João de Abbeville
parece terem sido superficiais e passageiros, como
aconteceu em Lisboa, entre o bispo e mestre Vicente. O
bispo, provavelmente tirânico e pouco escrupuloso, suscitou
reacções no seu próprio clero. Depois de várias peripécias,
foi a Roma em 1231 para defender a sua causa, obtendo de
Gregório IX violentas bulas contra o rei e o interdito
sobre todo o país em Dezembro desse ano. Morreu no ano
seguinte, dando lugar a uma sucessão difícil, disputada por
vários candidatos, entre os quais mestre Vicente, que ainda
não tinha tomado posse da diocesse da Guarda, até que o
papa nomeou mestre João Rolis, seu capelão, que tinha
inimigos na corte de Sancho II. A questão arrastou-se
durante anos. Por fim, foi nomeado o bispo galego Aires
Vasques, em 1244. Como é evidente, a intervenção da corte
régia agravou um conflito já existente, mas não o provocou.
No Porto, as questões vêm de 1227, data em que uma bula
acusa Sancho II de aí intervir abusivamente. A legacia de
João de Abbeville deve ter contribuído para as resolver.
Mas em 1233, o mesmo bispo, Martinho Rodrigues, estava em
Roma, onde obteve várias bulas que acusavam o rei, entre
outras coisas, de não respeitar a jurisdição temporal do
bispo sobre a cidade. Outra série de bulas, entre Fevereiro
e Agosto de 1234, dá a entender que vários párocos se
negavam a pagar certos direitos exigidos pelo prelado. A
questão ainda não estava resolvida em Setembro de 1235,
quando o novo bispo, Pedro Salvadores, obteve de Gregório
IX a faculdade de absolver da excomunhão os oficiais régios
que vexavam a sua diocese. O abrandamento de tensões que
esta bula permite admitir dissipou-se, porém, desde Março
de 1238, em que novas bulas retomam as mesmas e outras
censuras. Nesse ano, ou pouco depois, os burgueses do Porto
dirigem-se por carta ao arcebispo de Braga e aos restantes
bispos do reino queixando-se das injustas violências que
Pedro Salvadores contra eles praticava. Sabemos também que
entre as vítimas estavam os próprios franciscanos, cujo
convento mandou saquear e incendiar, o que levou o papa a
encarregar os bispos de Braga, Viseu e Lamego de os
protegerem. A questão com o rei terminou com uma composição
entre ele e o bispo em Maio de 1238, sendo absolvido das
censuras eclesiásticas no Verão seguinte. Mas o conflito
entre o bispo e os burgueses do Porto continuou, pelo menos
até que entre eles se celebrou outro acordo, com a ajuda do
bispo Tibúrcio de Coimbra e do rico-homem Abril Pires de
Lumiares. Verificamos aqui, portanto, como em Lisboa, que
os conflitos são anteriores à intervenção dos oficiais
régios e que estes os agravaram, mas não os provocaram.
Se Sancho II exerceu pessoalmente algum papel nestas
questões é coisa difícil de provar. O mais verosímil é que,
por incapacidade política, ignorância ou fraqueza, tivesse
deixado actuar os seus oficiais, mesmo de categorias
inferiores. Mas pode acontecer também que manifestasse
alguma simpatia por movimentos populares do género dos que
por essa época suscitavam não só as heresias catara e
albigense na Provença e regiões limítrofes, mas também os
movimentos de penitentes e das ordens mendicantes,
sobretudo a franciscana. Vinha talvez daí o epíteto de
«Capelo», que aludia provavelmente à sua devoção ao hábito
de terceiro franciscano ou de alguma confraria de leigos. O
ambiente favorável aos Franciscanos está bem patente.na
rapidez com que se propagaram: no princípio do reinado já
tinham conventos em Guimarães, Coimbra. Lisboa e Alenquer;
nos anos seguintes fundaram outros em Évora, Leiria, Porto,
Guarda, Covilhã, Estremoz e Santarém. Os Dominicanos, por
sua vez, também tinham conventos em Santarém, Coimbra,
Porto e Lisboa. A sua pobreza contrastava com a acumulação
de bens por parte de muitos bispos e com o seu apego aos
privilégios temporais.
Sendo assim, não admira que dentro do próprio clero nem
todos acatassem as censuras eclesiásticas: o bispo de
Coimbra, protector dos Dominicanos, não respeitou o
interdito lançado sobre o reino; Silvestre Godinho,
arcebispo de Braga, foi proibido pelo papa de absolver o
rei da excomunhão decretada pelo bispo de Salamanca durante
o conflito com Pedro Salvadores. Os Franciscanos e os
Dominicanos foram intimados a respeitar o interdito e
alguns dominicanos eram acusados de o infringir. Nestas
circunstâncias, compreende-se que alguns clérigos da corte,
solicitados a intervir nos referidos conflitos, tivessem
entrado na liça para contestar o exercício discutível de
poderes canónicos ou senhoriais dos bispos. De qualquer
maneira, no meio das contradições de todo o género que por

111
toda a parte surgiam, Sancho II foi incapaz de desempenhar
um papel conciliador ou arbitral. Demonstrava, assim, a sua
incapacidade política.

A anarquia

As lutas entre membros da nobreza, que vimos terem-se


intensificado em 1226, parecem atenuar-se a partir de 1229,
depois da visita do legado João de Abbeville. Não era
fácil, no entanto, pacificar a sociedade portuguesa. Não se
tratava apenas de uma crise política. O mesmo legado dizia,
numa constituição publicada na Galiza, que «a casa de Deus,
que deve ser especialmente consagrada ao seu louvor, é
fortificada, rodeada de fossos e amuralhada por vários
nobres e homens poderosos, sem licença dos prelados, contra
o estabelecido pelos padres santos, e assim reduzida a uma
indigna servidão».
É evidente que a multiplicação de torres e fortalezas
das igrejas só pode dever-se ao agravamento das lutas entre
os nobres. As honras e coutos eriçavam-se de espadas e
lanças, criando-se, assim, um clima de violência. As
vinganças privadas entre Vasconcelos é Alvelos na região de
Penafiel, contadas pelo Livro de linhagens, e os relatos de
abusos praticados pelos senhores, de que se encontram
inúmeros exemplos nas inquirições de 1258, mostram que as
palavras do legado papal se aplicavam bem a Portugal.
O quadro é descrito também numa carta do bispo do Porto
ao capítulo geral dos Dominicanos, realizado em Burgos em
1237, em que ele pedia a fundação de um convento da ordem
na sua cidade:

«Porque andam levantados infinitos salteadores, que,


sem temor de Deus, nem respeito dos homens, fazem dos
mosteiros e igrejas dedicados ao culto e serviço de um só
Deus covas de latrocínios, castelos de soldadesca,
estrebarias de suas bestas, casa pública de mulheres
infames e perdidas. E, saqueando os casais e fazendas dos
clérigos e lavradores, e até dos frades, matam à espada os
mesmos caseiros diante dos altares, ou os queimam com os
clérigos. E não bastam, para refrear tamanhas
exorbitâncias, nenhumas diligências de monitórios e
excomunhões. Quem poderá ouvir sem muita dor, que chegam a
arrebatar as crianças dos peitos das mães, e umas passam de
estocadas, outras arrebentam nos penedos, outras afogam nos
rios, se os pais, depois de roubados de tudo não acorrem a
resgatá-las com alguma coisa de valia, por pouca que seja,
ou com lágrimas e rogos?»

Mesmo admitindo o exagero que naturalmente se deve


atribuir à amplificação dramática deste texto, não se pode
negar, face aos testemunhos anteriormente citados, que o
bispo se inspirava em situações reais e que estava
vivamente impressionado com o que se passava na sua diocese
e nas de Braga e Lamego, mencionadas na mesma carta como as
mais atingidas pela anarquia.
A situação tinha raízes profundas. A nova estrutura
familiar da nobreza, formada desde meados do século XII,
difundiu o esquema sucessório unilinear ou linhagístico e,
consequentemente, a marginalização dos filhos segundos.
Estes tinham participado activamente na Reconquista durante
a sua fase mais acesa. Mas, depois do refluir do fim do
século XII, orientaram-se predominantemente para as ordens
monásticas e militares, os cabidos canonicais ou o serviço
vassálico. Muitos, porém, ficaram na região de origem, na
dependência dos chefes da sua própria linhagem,
frequentemente obrigados ao celibato, mas dando origem a
numerosos bastardos. Ao mesmo tempo, a cavalaria permitia o
acesso à nobreza de alguns membros da aristocracia
concelhia ou de vassalos não nobres de reis e senhores,
principalmente no Centro e no Sul. Multiplicavam-se assim
os componentes das camadas inferiores da nobreza e
gerava-se um autêntico «proletariado nobre», com poucos
recursos, mas que se recusava a viver do trabalho.
É certamente desta camada que parte a maioria das
violências e abusos contra igrejas e mosteiros, dela que
nasce o clima de instabilidade, a proliferação do
banditismo nobre ou seminobre, ela que alimenta a guerra e
a vingança privada entre os bandos. Mas também nas cidades
nascem conflitos, estes suscitados pela dificuldade de
integração dos imigrantes vindos de toda a parte, numa
afluência descontrolada, que a crise demográfica de
1190-1210 mal tinha interrompido. Aí rebentavam também
lutas armadas contra os poderes senhoriais, como no Porto,
ou entre meirinhos régios e mordomos episcopais, como em
Lisboa. Os próprios mendicantes não escapavam. Os
franciscanos do Porto viram a sua casa incendiada e
espoliada pelo bispo, os de Guimarães tiveram de ser

112
protegidos por ordem do papa, os de Leiria foram
perseguidos pelos cónegos regrantes de Coimbra, que tinham
jurisdição sobre a cidade.
Havia, portanto, um clima generalizado de instabilidade
e de insegurança. O rei e os seus funcionários contribuíam
para o agravar, ao envolverem-se em conflitos locais. A
guerra santa no Alentejo e Algarve, em vez de atrair
numerosas hostes de guerreiros e de, assim, contribuir para
a descompressão social, como desejava, decerto, João de
Abbeville, tornou-se um campo de acção das tropas
especializadas das ordens militares, absorvendo apenas as
energias de uma minoria. Era necessário o papa exortar a
população a ocupar as fortalezas e cidades abandonadas
pelos Muçulmanos. As riquezas que outrora atraíam tanta
gente a Santarém e Lisboa já só interessavam a poucos,
porque tinham deixado de acreditar na sua abundância
fabulosa, a não ser em grandes metrópoles como Córdova ou
Sevilha.

Tentativas de solução

Nasceu assim o sentimento de que era necessário


reconstituir um poder político suficientemente forte para
fazer face à situação. Os acordos celebrados por Sancho II
com o bispo do Porto e com o arcebispo de Braga em 1238
deviam resultar já dessa convicção. Sabemos que um dos
eclesiásticos que nessas negociações tiveram papel
importante foi Tibúrcio, bispo de Coimbra, que antes fora
arcediago de Palença, e que obteve para isso o auxílio de
Abril Pires de Lumiares, que vivia na corte pelo menos
desde 1223. Nessa altura já não estava na corte aquele que
antes disso tentara exercer um papel moderador, mestre
Vicente de Lisboa, que depois de 1236 se consagrou ao
governo da diocese da Guarda, em que foi confirmado,
entregando o lugar de chanceler a Durando Froilaz, que
acompanharia Sancho II até à data da sua morte.
Em 1237, Tibúrcio e Vicente estiveram em Roma para
tratar de negócios das suas dioceses, particularmente dos
limites entre elas. É muito possível que então tivessem
informado o papa e a cúria romana das dificuldades que o
País atravessava, da incapacidade política do rei e da
crescente luta pelo Poder na corte portuguesa. Com efeito,
Gonçalo Mendes de Sousa regressou a ela depois do
desaparecimento de Pêro Anes da Nóvoa, mas cresceu também a
importância de seu inimigo Gil Vasques de Soverosa e do
filho deste, Martim Gil. Nos primeiros lugares da corte
figurava também em lugar de destaque Rodrigo Sanches, tio
bastardo do rei, e Abril Pires de Lumiares. A oposição
entre estes nobres acabaria na sangrenta lide de Gaia, com
Gil Vasques de um lado e Abril Pires e Rodrigo Sanches do
outro.
É provável que já desde 1239 o papa Gregório IX
pensasse em promover alguma personalidade capaz de
desempenhar no reino um papel que de alguma maneira
compensasse a incapacidade de Sancho II. Com efeito, as 12
bulas que emitiu em Novembro e Dezembro de 1239 em favor do
infante Fernando de Serpa, irmão mais novo de Sancho,
revelam um especial interesse por ele: o papa recebe-o como
vassalo da Santa Sé, proíbe que o excomunguem ou
interditem, assegura-lhe a protecção pontifícia na luta
contra os Mouros, dá-lhe as indulgências da cruzada, a ele
e aos seus auxiliares, absolve-o, com os que combatem os
Mouros em Serpa, de eventuais delitos espirituais, pede ao
arcebispo de Compostela que intime os bispos e clero de
Portugal a auxiliarem-no na guerra santa, dá-lhe as
indulgências dos peregrinos da Terra Santa, manda ao
arcebispo de Toledo que obrigue os portugueses que tinham
feito voto de lutarem contra os Mouros a cumprirem-no,
permite-lhe fazer comércio com os Maometanos, se aplicar o
seu lucro na remissão de cativos, escreve a vários cónegos
e dignitários de Lisboa para anular tudo quanto tinha
atentado em seu prejuízo após a sua viagem a Roma, dá
indicações ao bispo de Osma para receber a sua penitência
e, finalmente, ordena ao mesmo bispo e ao abade de
Valhadolid que anulem o seu compromisso com Sancho II de
renunciar a todo o direito e acção sobre os bens paternos.
Esta última bula é particularmente significativa. Parece
representar um incitamento a que o infante de Serpa reclame
o trono em caso de incapacidade de seu irmão mais velho.
Se Fernando, depois de ter regressado da cúria; acaso
tentou a sua sorte em Portugal, não foi bem sucedido.
Encontramo-lo pouco depois em Castela, onde casou com uma
filha do conde Fernando Nunes de Lara e se integrou nas
hostes do príncipe D. Afonso, quem sabe se para recrutar
apoios castelhanos para os seus eventuais projectos. Voltou
em 1243 a Portugal, onde aparece como governador da Beira
oriental, provavelmente autonomeado, para tentar tirar
partido da situação. Mas a Santa Sé deve ter deixado de o
apoiar, provavelmente por ter morrido Gregório IX, que

113
Punha nele tantas esperanças. Sucedeu-lhe Celestino IV por
uns breves 15 dias (1241) e depois o sólio pontifício só
voltaria a ser ocupado em 1243, por Inocêncio IV.
Entretanto, agravava-se a agitação social. Em Março de
1245, o novo papa emitia a bula Inter alia desiderabilia,
em que pinta com as cores mais negras a situação do reino e
responsabiliza Sancho II. Informado por Silvestre Godinho,
que morreu na Itália em 1244, e depois pelo seu sucessor,
João Viegas de Portocarreiro, que nesse ano estava também
na cúria, quis assim provocar uma reacção da qual poderia
pedir contas aos bispos portugueses convocados para o
Concílio de Lião, que se iniciaria em 28 de Junho. O papa
declara que vários prelados e leigos tinham acusado o rei
de não respeitar as liberdades eclesiásticas, oprimir as
igrejas, não acatar as admoestações feitas pelo seu
predecessor, ser negligente na repressão dos malfeitores,
incapaz de resolver uma evidente falta de justiça, deixar
os patronos dos mosteiros, mesmo ilegítimos, praticar neles
todas as violências, não reprimir a heresia, deixar perder
os castelos, domínios e herdades da coroa, permitir o
incesto, as rapinas, o rapto de monjas e de mulheres
seculares, deixar os opressores extorquirem dinheiro aos
camponeses e aos clérigos, tolerar a violação de igrejas e
de cemitérios e a infracção de tréguas, não defender as
terras cristãs dos Sarracenos e outros crimes do mesmo
género. Enfim, o papa encarregava os bispos do Porto e
Coimbra e o prior dos Dominicanos de Coimbra de o
informarem das medidas tomadas pelo rei para modificar o
seu procedimento quando viessem ao Concílio de Lião, para o
qual tinham sido convocados. Embora insistindo
principalmente nas consequências que para os clérigos
indefesos tinha a situação de anarquia, transparece neste
texto, por detrás da imagem retórica, a impressão de uma
imensa desordem social. É evidente que o papa não considera
o rei capaz de a resolver; pretende apenas justificar a
medida que já tencionava tomar.
A incapacidade de Sancho II permaneceu, efectivamente,
na memória dos seus súbditos. Sem recorrer aos documentos
clericais nem aos cronistas régios posteriores a Afonso
III, devido à posição partidária de ambos, podemos
mencionar o testemunho anónimo da IV Crónica breve de Santa
Cruz, onde se diz que o rei «nom fazia justiça nem a».
Neste contexto, a palavra «justiça» não significa o
exercício do poder judicial, mas a manutenção da ordem
social e a vigilância da equidade, tal como se entendia na
época. Por sua vez, Pedro de Barcelos diz acerca dele que
«os mãos conselheiros lhe fizeram deixar de fazer justiça,
em tal guiza que perecia a terra e ia toda em perdiçom, ca
roubavam os caminhos e faziam todo o dano na terra e ele
não tornava a elo nem ua couza».

A intervenção papal

Diz o mesmo autor que os bispos do reino se reuniram


com os ricos-homens e o povo e resolveram pedir ao papa que
desse um governador ao reino. Para isso enviaram-lhe o
arcebispo de Braga e o bispo de Coimbra, sugerindo o nome
do infante Afonso de Bolonha. De facto, a bula Inter alia
desiderabilia menciona as acusações de bispos e leigos. Já
vimos que o seu portador foi João Viegas de Portocarreiro.
Pode também ter havido uma reunião alargada dos
descontentes. Mas houve também outros intervenientes na
preparação da decisão papal.
A participação de Afonso na Batalha de Saintes, como
vassalo de Luís IX, contra Henrique III de Inglaterra, em
Julho de 1242, tornou-o, decerto, protegido do rei de
França. Um ano depois, empreendeu a peregrinação a
Compostela, obtendo para isso um salvo-conduto da corte
inglesa para poder embarcar em Bordéus, segundo um
documento revelado por Patrícia de Baubeta (1988). Teve
tempo de contactar com os seus compatriotas, porque só
regressou em Maio de 1244, para se encontrar em Limoges com
Luís IX e sua mãe, Branca de Castela. O seu nome foi logo
em seguida conhecido na corte pontifícia, porque Inocêncio
IV tentou aliciá-lo para a cruzada que deveria procurar
recuperar Jerusalém depois da efémera restauração do seu
reino conseguido por Frederico II (30 de Janeiro de 1245).
Poucos dias depois (4 de Fevereiro), o papa mandava a
Sancho II separar-se de Mécia Lopes de Haro, por ter casado
sem dispensa de consanguinidade; a acusação tinha partido
do conde de Bolonha, o que revela o seu propósito de evitar
que seu irmão tivesse filhos legítimos. Ora o arcebispo de
Braga estava junto da cúria pontifícia desde 1244.
Inocêncio II já tinha, portanto, aceitado a candidatura do
conde de Bolonha quando mandou redigir a bula Inter alia
desiderabilia (Março de 1245).
De facto, em 8 de Abril concede-lhe as indulgências da
Terra Santa para a expedição contra os infiéis que ele
pretendia fazer na Hispânia. Em 24 de Julho, depois de
encerrado o Concílio de Lião (17 de Julho), onde tinha

114
excomungado Frederico II, proibido os seus súbditos de lhe
prestarem obediência e convidado os príncipes alemães a
elegerem um sucessor, emitiu a bula de deposição de Sancho
II (Grandi non immerito), dirigida aos barões, concelhos e
povos de Portugal, bispos e clero. Franciscanos e
Dominicanos e principalmente às quatro ordens militares. Ao
contrário do que acontecera com o imperador da Alemanha.
Sancho II não perdia a coroa, mas era declarado incapaz de
governar, como rex inutilis. Afonso de Bolonha não era
nomeado rei, mas apenas governador e defensor do reino em
vez de seu irmão.
A bula causou uma enorme perturbação em Portugal. Abril
Pires de Lumiares, que já devia viver numa situação de
quase independência na Beira Alta, organizou um exército,
juntamente com Rodrigo Sanches, tio do rei, e nobres da
família dos Correias e dos Toronhos, entre outros, e atacou
o valido de Sancho II em Gaia, provavelmente em Agosto de
1245. Apesar da coligação, as tropas fiéis ao rei saíram
vitoriosas; Abril Pires e Rodrigo Sanches morreram na
batalha, com outros membros da nobreza senhorial.
Entretanto, o conde de Bolonha encontrava-se em Paris
com o arcebispo de Braga e um procurador do bispo de
Coimbra e jurou perante eles que respeitaria as liberdades
da Igreja (6 de Setembro). Estavam também presentes um
capelão do papa, o chanceler de Paris, alguns franciscanos
e dominicanos, os cavaleiros Rodrigo Gomes de Briteiros e
Gomes Viegas (de Portocarreiro), Pedro Ourigues (pai de
João de Aboim) e Estêvão Anes (futuro chanceler). As
promessas feitas são relativamente genéricas. As mais
significativas referem-se à obrigação de fazer aplicar a
justiça, respeitar os costumes do reino e seguir o conselho
dos prelados. O conde teve, porém, o cuidado de registar
que era livre de seguir ou não o seu conselho na concessão
de terras e benefícios e que cumpriria o juramento «salvo o
meu direito e do reino», o que mostra a sua intenção de
salvaguardar a independência própria da esfera secular.
No fim de Dezembro de 1245, chegou a Lisboa, em plena
guerra civil. Apoiavam-no os concelhos do Centro e do Sul e
os castelos de Santarém, Alenquer, Torres Novas, Tomar e
Alcobaça. Leiria aderiu pouco depois. O rei reuniu as suas
tropas, com bastantes nobres e cavaleiros, provavelmente
para se dirigirem a Lisboa, mas não passaram de Coimbra,
onde, durante o ano de 1246, permaneceu como seu principal
ponto de apoio. Pediu auxílio a Fernando III e ao príncipe
Afonso de Castela, que nessa altura cercava Jaén. Depois de
conquistar a cidade, em Abril, dirigiu-se a Portugal com
vários nobres galegos e castelhanos, entre eles Rodrigo
Gomes de Trastâmara, Ramiro e Rodrigo Froilaz, condes de
Astorga, Fernando Anes de Límia, Martim Anes, Nuno de Lara
e Diogo Lopes de Haro, irmão da rainha D. Mécia.
Por outro lado, o futuro Afonso X auxiliava Sancho II
no plano diplomático. Junto da cúria pontifícia acusava o
conde de Bolonha de praticar violências injustificadas, o
que levou o papa a escrever-lhe para ele moderar a sua
actuação. Além disso, pedia ao rei de Aragão que lhe
enviasse 300 cavaleiros, sob o comando de seu próprio filho
e de Pedro Coronel, e que interviesse junto de Pedro
Sanches para não auxiliar o curador e defensor do reino. Só
depois disso, no Inverno de 1246-1247, entrou em Portugal,
quando se davam violentos combates entre Coimbra e Leiria.
Já antes, decerto no Verão de 1246, deu-se o rapto da
rainha D. Mécia, que então se encontrava com Sancho II em
Coimbra, o qual foi executado por Raimundo Viegas de
Portocarreiro, irmão do arcebispo de Braga, de alcunha o
Torres. Tendo a rainha sido levada para Ourém, Sancho II
cercou o castelo, mas não conseguiu entrar nele. O relato
contado no Livro de linhagens ficou como exemplo da mais
vil traição que um vassalo pode fazer a seu senhor. Pela
mesma altura, deram-se outras traições de vários alcaides
dos castelos da Beira, que depois foram também
violentamente verberadas pelos trovadores que decerto
acompanhavam Afonso de Castela e que os cancioneiros
transmitiram.
Em Janeiro de 1247, o conde de Bolonha foi derrotado em
Leiria. Mas nos meses seguintes a situação inverteu-se. Em
Fevereiro, os franciscanos e dominicanos da Guarda e da
Covilhã eram obrigados a comunicar as determinações
pontifícias aos partidários do rei. Em Março, o príncipe D.
Afonso de Castela retirava-se, talvez intimado por seu pai,
que queria reunir tropas para cercar Sevilha. De facto, em
Abril já ele se encontrava em Burgos. Em Julho começava o
cerco da capital andaluza.
Muitos alcaides eram partidários do rei deposto. Alguns
continuaram a defendê-lo obstinadamente e a sua fidelidade
tornou-se tão lendária como a feia traição dos que
infringiram a homenagem para se juntarem ao conde de
Bolonha. Sancho II, abandonado a pouco e pouco pela
maioria, acabou por se retirar também, se é que não saiu de

115
Portugal juntamente com o príncipe de Castela. A Crónica de
1344 conta um significativo episódio atribuído à ocasião em
que os vencidos passaram por Trancoso, que nessa altura
estava nas mãos dos filhos de Garcia Mendes de Sousa e de
Lopo Afonso de Baião. Estes prestaram homenagem a Sancho
II, por intermédio de Fernão Garcia de Sousa, o
Esgaravunha, mas acusaram Martim Gil de Soverosa de ser o
responsável por todos os males que o reino sofria. O valido
do rei quis castigá-lo pela injúria, mas foi impedido pelos
castelhanos da comitiva. A hoste do rei pôde então
continuar a sua marcha para Toledo.
Foi lá que o rei de Portugal morreu, pouco depois de 3
de Janeiro de 1248, data do seu testamento. Segundo Gil de
Zamora e a Crónica de 1344, Sancho prometera a Afonso X
dar-lhe o reino e tê-lo-ia feito seu herdeiro. Mas o
testamento, que existe em cópia, nada diz a tal respeito. É
possível que esta intenção resultasse de uma declaração
particular e que, por isso, Afonso X se considerasse com
direitos ao senhorio sobre o trono português, o que
explicaria as pretensões por ele invocadas mais tarde,
quando armou cavaleiro seu neto D. Dinis, como recorda, por
sua vez, a Crónica de Afonso X, ressuscitando, assim, a
antiga ideia da vassalagem de Afonso Henriques a Afonso VII
de Leão e Castela.
Deixando estes factos na dúvida, lembremos que, com a
morte de Sancho II, a agitada situação portuguesa parece
ter-se aquietado com certa rapidez, quanto ao exercício da
autoridade régia. Mas a crise social deve ter continuado a
grassar em várias regiões, sobretudo no Centro do País,
pois os bispos ainda se queixavam da permanência do
banditismo nas Cortes de Guimarães de 1250. A nobreza,
esgotada pelas suas questões internas, acabou por aceitar
sem dificuldade de maior o curador e defensor do reino, que
a morte de Sancho II depressa tornou herdeiro legítimo do
trono. Afonso III revelou-se, na verdade, um chefe
autoritário, decidido e excelente administrador dos bens da
coroa. Os nobres desavindos talvez não desejassem outra
coisa. Necessitavam de alguém que arbitrasse os seus
conflitos e lhes garantisse, afinal, a supremacia social,
que era a sua razão de ser. O próprio escândalo causado
pelo facto de o clero ter, com a sua autoridade, desligado
os alcaides do sagrado juramento feudal e as consequentes
traições acabariam por ser aproveitados mais tarde como
histórias exemplares, que vieram a constituir exemplos
positivos e negativos do código da fidelidade vassálica de
que a nobreza necessitava para se estruturar melhor e
completar a sua ideologia própria.

O triunfo da monarquia

A implantação do Poder

Com a morte de Sancho II, seu irmão Afonso tornava-se o


titular legítimo do trono português. Deixava de ser apenas
o curador e defensor do reino, para juntar ao título de
conde de Bolonha o de rei de Portugal. Tendo a sua
autoridade anterior sido violentamente contestada não só
pelos privados do rei, mas também por uma parte da nobreza,
por muitos alcaides de castelos e até por alguns membros do
clero, é admissível, embora nenhuma fonte histórica o diga,
que Afonso III tivesse querido dar alguma solenidade ao
acto de posse do trono. Se assim foi, pode ter-se feito
coroar em Coimbra, por onde decerto passou em Fevereiro de
1248, a caminho de Guimarães, onde estava em Março
seguinte. Aqui ficou durante, pelo menos, dois meses. Se
neste momento não reuniu cortes, como presume frei António
Brandão, sem apoio em nenhum documento, deve, pelo menos,
ter tido muitos contactos com os nobres de Entre Douro e
Minho, para lhes captar o apoio, lhes exigir obediência e
tomar medidas tendentes a impor a ordem numa região
profundamente perturbada pela anarquia e pela demissão da
autoridade.
Conhecemos mal as acções seguintes de Afonso III. Mas é
provável que durante o ano de 1248 continuasse a ter como
principal objectivo a consolidação da sua autoridade. Para
isso recompensou alguns principais auxiliares na guerra
civil, como aconteceu com o nobre castelhano Afonso Teles
de Albuquerque, seu primo (por ser filho de Teresa Sanches,
bastarda de Sancho I), a quem entregou o governo de Viseu.
Ao irmão deste, que também o tinha auxiliado com os seus
homens durante a guerra civil, confiava o cargo de
alferes-mor. Aos fiéis vassalos que o acompanhavam desde
Bolonha entregava os melhores lugares da cúria, apesar de
pertencerem a uma nobreza secundária, como aconteceu com
Rui Gomes de Briteiros, que fez mordomo, e com Estêvão
Anes, que nomeou chanceler. Enfim, aos concelhos que o
tinham apoiado desde o princípio confirmou os foros e

116
privilégios, como fez ao de Lisboa. Mas tratou também de
atrair aqueles vassalos de Sancho II que se mostraram mais
maleáveis, como aconteceu pelo menos com Gil Martins de
Riba de Vizela, que acompanhara Sancho II no exílio de
Toledo, mas que em Agosto de 1248 já estava na sua corte. A
recompensa por ter aceitado a sua autoridade teve-a pouco
depois, ao ser nomeado mordomo-mor, em substituição de Rui
Gomes de Briteiros, que morreu em 1249. Afonso III
mostrava-se assim um hábil manobrador de homens, como foi
sempre até à sua morte.
Pode talvez causar uma certa surpresa que logo no
princípio de 1249 Afonso III tenha empreen-dido, uma
expedição ao Algarve para conquistar as cidades e castelos
que ainda estavam nas mãos dos Mouros. Este facto torna-se,
porém, mais compreensível se o considerarmos como uma
operação de prestígio, não muito onerosa, porque o poder
muçulmano no Algarve estava sensivelmente debilitado depois
das campanhas dos Espatários e porque o rei podia assim
recompensar com melhores despojos os chefes das campanhas
militares anteriores de um exército ainda em pé de guerra e
decerto pouco beneficiado pela guerra civil. Esta campanha
trazia ainda a vantagem de permitir ao rei cumprir a
promessa de combater os muçulmanos na Península, conforme
tinha pedido ao papa em 1245, ganhar as respectivas
indulgências e apresentar-se como um digno sucessor dos
reis portugueses de outrora, que tanto haviam combatido
pela fé cristã e acrescentado o reino. Finalmente, captava
para a coroa uma parte do território muçulmano dependente
da rica cidade de Sevilha, que acabava de cair nas mãos do
rei de Castela, antes que este a reivindicasse para si.
A expedição de conquista, se de conquista se tratou,
parece ter sido rápida. Em 25 de Fevereiro de 1249, Afonso
III estava ainda em Ourém e em Março, não sabemos em que
dia, já datava de Faro, decerto com a cidade já ocupada, um
diploma solene em que figuram vários membros da corte.
Depois disso, em Abril e no princípio de Maio ocupou
provavelmente outros castelos do Algarve, como Porches e
Albufeira, que, no ano seguinte, estando de novo no
Algarve, haveria de conceder à Ordem de Avis.
Esta reconstituição dos factos, que segue, em boa
parte, a interpretação de Herculano, baseia-se
principalmente nos três documentos que o rei data de Faro e
na afirmação feita pela Crónica da conquista do Algarve de
que ele teria conquistado esta cidade. Herculano toma como
lendário o relato dos acontecimentos pela mesma crónica e
altera por completo os seus dados cronológicos. De facto,
estes são inverosímeis. As conquistas são aí atribuídas na
sua quase totalidade a Paio Peres Correia durante o reinado
de Afonso III (mas aquele já estava em Castela em 1242 e,
que se saiba, poucas vezes voltou a Portugal depois disso)
e colocadas depois do casamento do rei com D. Beatriz, o
que, efectivamente, é impossível. Estas contradições
levaram um autor, L. Gonzaga de Azevedo (1932), a negar por
completo a conquista do Algarve por Afonso III e as guerras
que ela teria provocado nos anos seguintes com Afonso X,
primeiro como príncipe e depois como rei de Castela. De
facto, é difícil, com os dados actualmente disponíveis,
pronunciar-se sobre muitos pormenores dos acontecimentos.
Mas a opinião de Azevedo tem também várias fraquezas.
No estado actual da investigação, o mais verosímil
parece ser o seguinte: Afonso III conquistou ou ocupou o
Algarve, mas os seus direitos não eram evidentes. As
contradições a que o facto deu lugar em virtude da oposição
de Afonso X contribuíram para alterar as informações das
fontes, nomeadamente da Crónica da conquista do Algarve.
Deixando de lado esta questão obscura, e reservando
para mais tarde uma breve exposição sobre as suas
consequências políticas e diplomáticas, vejamos agora como
é que o rei, depois de ter fixado os limites territoriais
do reino, prosseguiu a sua política de pacificação e de
apropriação do Poder.

A implantação da ordem

A conquista ou a tomada de posse do Algarve não


resolviam directamente as questões internas do País,
profundamente abalado com o anterior período de anarquia.
Depois de quase dois anos de governo pleno, mais firme no
Poder e com mais informações acerca do país que tinha de
governar, Afonso III reuniu cortes em Guimarães em
Maio-Junho de 1250. Verifica-se através dos longos e
numerosos capítulos dos agravos do clero que o banditismo e
a desordem campeavam ainda em muitos lugares, mas que, por
outro lado, os agentes do rei praticavam não poucas
violências, de que o clero se queixava também, pelo menos

117
nas dioceses de Braga, Porto, Coimbra e Guarda. O bispo do
Porto reclamava já contra o desrespeito pela jurisdição
senhorial que exercia na cidade, revelando, assim, um
conflito que haveria de se prolongar durante muitos anos,
como veremos em breve. Existe também uma lei geral, datada
de Janeiro de 1251, onde se prevêem severas penas contra os
malfeitores que invadiam as casas dos fidalgos, lhes
cortavam as vinhas, roubavam gados e causavam toda a
espécie de danos. É provável que seja a resposta do rei a
agravamentos dos nobres feitos nas mesmas cortes e que
pretenda não só reprimir o banditismo vilão e as
malfeitorias dos nobres, mas também desencorajar violências
dos funcionários régios, que, no seu ssforço de reprimirem
abusos, violavam algumas imunidades.
A implantação da ordem custou, de facto, alguns
conflitos com as classes privilegiadas. Sabemo-lo não
apenas por estas queixas e indícios, mas também por
notícias mais concretas acerca de ama ou outra questão,
nomeadamente com o bispo do Porto, em 1252 e 1253, com o
mestre dos Templários, provavelmente pela mesma época, e
com o bispo de Coimbra, em 1254. O primeiro, revoltado com
a infracção ao seu senhorio por funcionários régios,
desencadeou uma desordem para protestar contra o
desembarque de mercadorias em terras reguengas, em vez de
desembarcarem nas suas; o rei não hesitou em mandar ocupar
a cidade, exigir do alcaide a entrega das chaves do castelo
e das torres e obrigar o bispo a pagar uma multa de 1500
libras. Quanto ao mestre dos Templários, é provável que uma
questão resultante de o rei se haver apoderado dos tesouros
da ardem ou exigido algum empréstimo forçado tivesse levado
à sua destituição, como supõe Herculano. O bispo de
Coimbra, enfim, queixava-se de que o rei lhe tinha
destruído os castelos de Avô e de Coja, ocupado vários
casais e senhorios, desrespeitado os seus privilégios e
substituído, sem d seu acordo, clérigos nomeados por ele.
Por isso, reclamou para o papa, que por tais abusos
censurou o rei numa bula de Agosto de 1254. Mas o tempo dos
grandes conflitos com o clero estava ainda longe.
A tarefa de Afonso III não era fácil. Não se tratava só
de reprimir abusos e desordens vindos de trás, mas também
de fazer face a uma conjuntura económica desfavorável em
toda a Península. Os maus anos agrícolas que se abateram
sobre ela provocaram a fome e a carestia dos géneros pelo
menos a partir de meados da década de 1250, o que explica
vários fenómenos nestes anos ocorridos tanto em Portugal
como em Castela, como descobriu recentemente S. Aguadé
Nieto. Desconhecem-se até este momento notícias concretas
de anos maus em Portugal antes de 1270-1273. Mas elas
registam-se em Castela durante o período de 1255-1262, em
paralelismo com o período de maus anos agrícolas verificado
na Europa Central em 1257-1259. É, por isso, muito provável
que a crise tivesse também afectado Portugal. Ela é
mencionada expressamente, de resto, num breve passo da
Crónica de 1419, que até agora tem passado despercebido e
que diz: «Em tempo deste rei foram alguns anos de grande
fome, e ele se trabalhou com grande cuidado de acorrer aos
proves, e livrou muitos da morte, com suas esmolas que lhes
dava.» Seria essa, portanto, a verdadeira explicação da
célebre e extensa lei do tabelamento de preços de Dezembro
de 1253, que os nossos historiadores da economia comentam
cuidadosamente. Como é evidente, destinava-se a reprimir
uma excessiva alta de preços. A sua causa, porém, talvez
não seja a previsão da quebra da moeda, como se tem pensado
até aqui, mas a crise agrícola, que parece ter começado
mais cedo em Portugal do que em Castela. Esta é igualmente
a razão pela qual o rei se propunha desvalorizar a moeda,
como veremos a seguir. Data também provavelmente deste ano,
e não de 1273 (visto que dá a Afonso o título de conde de
Bolonha), a lei que proíbe a exportação de cereais.
A sua decisão foi apresentada, como se sabe, nas Cortes
de Leiria de 1254, reunidas em Fevereiro e Março, e que os
melhores comentadores, particularmente Marcelo Caetano,
consideram como reunidas para obter o acordo para tal
decisão não só do clero e da nobreza, mas também dos
procuradores dos concelhos. Assim se explica que os membros
das cortes fizessem as maiores objecções à intenção do rei:
se se executasse o seu propósito, a alta de preços seria
muito maior ainda. Preferiram, por isso, aceitar a «compra
da moeda», isto é, dar o seu acordo para o rei cobrar uma
contribuição voluntária geral que o indemnizasse pela
renúncia à desvalorização que ele se considerava com o
direito de ordenar. Como era natural, dado o facto de se
tratar de um assunto deste género, o rei convocou também os
procuradores dos concelhos, inaugurando as, sim,
provavelmente (Marcelo Caetano pensa que já poderiam ter
estado presentes em Guimarães em 1250), o costume, que
depois prevaleceu, de convocar sempre os representantes dos
concelhos, tal como se praticava já no reino de Leão desde

118
1188. Deve ter resultado também da mesma assembleia a
decisão de proibir a exportação de metais preciosos, panos,
couros e mel, conforme ficou estabelecido numa lei que data
de Dezembro desse mesmo ano ou do seguinte. Enfim, em Março
de 1255, o rei jurava perante o bispo de Évora que não só
não procederia à quebra da moeda, mas também à cobrança do
imposto do «monetágio», e, para o tornar mais solene,
enviava dele cópias aos mestres das ordens militares
(provavelmente devido ao facto de estarem mais directamente
ligados a uma economia monetária) e pedia a sua confirmação
ao papa. Tudo isto mostra que a tentação de proceder à
desvalorização devia ser enorme, mas que as resistências
eram também grandes, e que o rei preferiu resolver as suas
dificuldades de outra maneira, a ter de defrontar a
oposição dos maiores poderes do reino.
Antes de vermos que medidas Afonso III resolveu tomar
para obviar a tais dificuldades, voltemos atrás na
sequência cronológica, para averiguar o que entretanto
acontecia no plano das relações diplomáticas com Castela.

As relações com o reino de Castela

Havia muitos motivos para tornar particularmente


difíceis as relações de Afonso III com o rei Afonso X, o
Sábio. Como vimos, este prestara um auxílio pessoal e muito
vigoroso a Sancho II durante a guerra civil de 1245 a 1248.
Em 1247, causara centenas de mortos ao então conde de
Bolonha numa batalha junto a Leiria. Se é verdadeira a
informação prestada pelas crónicas castelhanas, obtivera de
Sancho II o senhorio de Portugal, como recompensa pelo seu
auxílio, decisão que Afonso III, obviamente, não poderia
aceitar. A ocupação do Algarve, por seu lado, veio agravar
os motivos de desentendimento.
Com efeito, o «reino do Algarve» coincidia
aproximadamente com o de Niebla, que tinha permanecido
depois da conquista de Sevilha nas mãos de seu senhor, Ibn
Mahfut, como vassalo do príncipe Afonso de Castela, depois
da conquista de Sevilha, em 1248. O príncipe devia,
portanto, considerar seu dever de suserano defender o
vassalo contra os ataques dos seus inimigos. É possível,
por isso mesmo, que em 1249 ou 1250 tenha atacado o
território português. De certeza, porém, sabe-se apenas que
reclamou perante o papa por Afonso III se ter apoderado de
castelos «seus» no reino do Algarve, o que suscitou uma
bula mais ou menos evasiva de Inocêncio IV em Outubro de
1250. A permanência de Afonso III na Guarda durante o mês
de Setembro do mesmo ano pode eventualmente significar que
precisava de reforçar a fronteira numa situação de guerra.
Desta, porém, não há qualquer notícia expressa. Informações
transmitidas por fontes castelhanas examinadas por Júlio
González mencionam, todavia, a conquista de Aroche e
Aracena por Afonso III no ano de 1251. Eram povoações que
pertenciam ao reino de Niebla e que Afonso X, mais tarde,
reclamou vigorosamente. O que sabemos actualmente do
itinerário de Afonso III, com lacunas para os meses de
Março-Abril e Junho-Agosto desse ano, não se opõe a tal
informação, embora também a não confirme.
A morte de Fernando III em Sevilha, em 31 de Maio de
1252, veio alterar a situação, dando a Afonso X maior
capacidade de decisão. Ocupado, porém, com os negócios do
reino, reuniu cortes na mesma cidade em Outubro e só depois
disso deve ter podido renovar os seus ataques ao Algarve, o
que sucedeu, talvez, em Novembro e Dezembro, pois nessa
altura encontrava-se em Mérida e Badajoz, junto à fronteira
portuguesa. O itinerário de Afonso III não ajuda, porém, a
confirmar esta reconstituição dos acontecimentos, porque
nada diz quanto ao paradeiro do rei desde Abril de 1252 até
Março de 1253. Admitamos, todavia, que dirigia as operações
militares na fronteira sul. Entretanto, Afonso X tomava
medidas concretas para exercer a sua soberania sobre o
Algarve ocidental. Pedia ao papa para proceder à
restauração do bispado de Silves e este, em Dezembro de
1252, encarregava o bispo de Cartagena de o fazer. No mês
seguinte, porém, o papa exorta os dois reis a procurarem
uma solução pacífica para o conflito e declara ao rei de
Portugal que não pretende prejudicar os seus eventuais
direitos sobre o Algarve. Mas poucos meses depois já a
diocese de Silves tinha bispo nomeado e largamente dotado
pelo rei de Castela com a posse de Lagos e propriedades em
Silves, Albufeira, Faro e Tavira. Afonso III, como bom
político, não contesta a nomeação de frei Roberto, mas em
1254, na Sé de Lisboa, perante o bispo Aires Vasques,
protesta solenemente contra os actos unilaterais de
soberania por parte de Afonso X.

119
Como bom político, também, resolve procurar uma solução
menos onerosa e menos incerta do que a da guerra. Foi
certamente dele que partiu a proposta de reconciliação e o
seu casamento com a filha bastarda de Afonso X e de Maria
Guilhén de Gusmão, D. Beatriz, que ainda não tinha chegado
à idade núbil. Segundo os conceitos da época, tratava-se de
um casamento humilhante para o rei de Portugal, mas honroso
para o rei de Castela, por se tratar de uma bastarda.
Nenhum dos dois parece ter-se perturbado muito com o
anterior casamento legítimo de Afonso III com Matilde, a
quem devia o seu título de conde de Bolonha. Sinal da falta
de escrúpulos do rei português, bem acentuado, de resto,
embora com uma valorização ambígua, pela tradição
historiográfica consignada na Crónica de 1419. Perante o
espanto dos seus vassalos, ter-lhes-ia respondido que, «se
em outro dia achasse outra molher que lhe desse tanta terra
no regno, pêra o acrecentar, que logo casaria com ela».
Sinal de que se preocupava mais com questões de governo do
que de honra. Por outro lado, não hesitou, ao menos
aparentemente, em aceitar prestar vassalagem a Afonso X
pelo reino do Algarve. Vamos ver com que intenções.
A verdade é que os autores que até aqui têm tratado
deste assunto interpretam de maneira diferente o acordo
acerca da soberania do Algarve. Não vejo, porém, outra
forma de explicar as alusões mais tardias a este acordo,
cujo texto se perdeu, e as atitudes posteriores dos
protagonistas. De facto, penso que Afonso III resolveu
celebrar um acordo suficientemente ambíguo para poder ser
considerado por Afonso X como um feudum oblatum (fief de
reprise), isto é, de ceder os seus direitos de soberania
mediante a concessão do mesmo território como um feudo
sujeito ao concessionário, mas que ele interpretava como
uma enfiteuse. Assim, Afonso X passou a considerar-se
senhor feudal do Algarve, ao passo que Afonso III reclamava
para si o «domínio alto» e cedia apenas o «domínio útil».
Os documentos posteriores, que se referem a um
«outorgamento» de Afonso III ao seu sogro, mas, ao mesmo
tempo, a sua reivindicação do domínio alto, dificilmente
permitem outra solução. De resto, foi essa a tradição que
prevaleceu, mesmo em Portugal, e que transparece
indirectamente da Crónica de 1419, quando legitima as
conquistas de Afonso III no Algarve por uma concessão do
rei de Castela em virtude do casamento daquele com D.
Beatriz. Com efeito, segundo os costumes da época, era
habitual um acto de homenagem ser sancionado pelo casamento
do vassalo com a filha do senhor. A condição bastarda de D.
Beatriz acentua a inferioridade de Afonso III nos termos do
acordo. A Crónica reconhece, portanto, que o senhorio
pertencia de direito ao rei de Castela e procura resolver
assim a anomalia de ele ter passado para orei de Portugal.
Seja como for, o casamento de Afonso III com D. Beatriz
celebrou-se em Chaves em Maio de 1253. A condessa Matilde
só mais tarde soube disso e reclamou na cúria pontifícia,
mas esta só veio a reagir em Maio de 1255, quando ordenou a
Afonso III que comparecesse perante ela dentro de quatro
meses para ser julgado por bigamia. É claro que Afonso III
não respondeu. No ano seguinte, em Julho, o papa
ordenou-lhe que se separasse de Matilde e lhe restituísse o
dote. Perante a sua passividade, a cúria enviou-lhe nova
bula em Abril de 1258, acusando-o de adultério e de incesto
e ordenando novamente, com as devidas penas canónicas, a
restituição do dote e a separação. As penas, todavia, não
foram aplicadas, em virtude da morte da condessa Matilde.
Entretanto, D. Beatriz chegara à idade núbil e no fim de
Fevereiro de 1259 tinha o primeiro filho de Afonso III, a
princesa D. Branca. É provável que o rei tivesse querido
celebrar este nascimento protegendo com todo o empenho a
fundação e construção de um convento de clarissas em
Santarém, por transferência da comunidade de Santa Clara de
Lamego, que foi autorizada por Alexandre IV em Abril do
mesmo ano. Em Outubro de 1261 nascia Dinis, o primeiro
filho varão e sucessor do trono. Este acontecimento e a
supressão do reino de Niebla pela conquista da cidade a Ibn
Mahfut por Afonso X, em Fevereiro de 1262, criaram
condições para rever a questão do Algarve e a encaminhar a
favor de Afonso III.
De facto, em Abril de 1263 foi nomeada uma comissão
para tratar de solucionar as divergências que a esse
respeito existiam entre Portugal e Castela. Um dos seus
componentes era Paio Peres Correia. Em 5 de Junho seguinte
celebrava-se novo acordo entre os dois reis. É possível que
a necessidade de entendimento não fosse suscitada apenas
por divergências acerca dos direitos de soberania, que
trazia consequências práticas, nomeadamente quanto à
legitimidade de concessões de terras algarvias às ordens
militares feitas por um ou outro soberano, mas também por
hostilidades fronteiriças, fossem elas simples escaramuças

120
ou implicassem mesmo a intervenção de verdadeiros
exércitos, pois se conhecem apenas por meio de vagas
alusões dos documentos de 1263. Seja como for,
estabelecia-se que a partir de então o rei de Castela
reservaria para si as regalias seguintes: distribuir os
bens da coroa situados no Algarve ocidental, conceder
forais, manter irrevogáveis as doações feitas anteriormente
e receber a apelação judicial dos tribunais da região.
Prerrogativas que significavam, obviamente, a titularidade
superior do senhorio e não apenas o domínio útil, como diz
Herculano. Afonso X, porém, enfeudava o Algarve a D. Dinis,
seu neto, que ficava, como seu vassalo, obrigado a ajudá-lo
em tempo de guerra com uma hoste de 50 lanças. Para penhor
do acordo, entregavam-se os principais castelos do Algarve
a D. João de Aboim e a seu filho, que juraram cumprir e
fazer cumpir todas as suas condições.
Afonso III, porém, não desistia de se libertar da
tutela castelhana. A ocasião veio em breve, suscitada pela
revolta dos mudéjares da Andaluzia, com a colaboração do
rei mouro de Granada, em meados de 1264. Afonso X teve de
reunir um grande exército para recuperar várias praças. Foi
decerto para obter o auxílio de Afonso III que lhe cedeu,
em 20 de Setembro desse ano, as regalias que para si tinha
reservado em 1263, mantendo, embora, o penhor dos castelos
atribuídos a D. João de Aboim e a obrigação do serviço
militar de 50 cavaleiros. Sempre pronto a tirar partido das
situações, Afonso III aproveita a ocasião para exigir um
empréstimo forçado dos concelhos, prometendo que não
voltaria a lançar nenhum pedido desse género. É possível
também que fizesse reverter em seu proveito a concessão
feita pelo papa a Afonso X em Junho de 1265 para financiar
a cruzada, isto é, a sua luta contra os mouros revoltados e
contra o rei de Granada, com a décima parte dos rendimentos
eclesiásticos dos reinos de Castela e de Portugal. Enfim,
nesse mesmo ano, envia a sua hoste a Castela, para prestar
auxílio a seu sogro, não sabemos se apenas com 50
cavaleiros ou com mais, mas tendo como seu chefe nominal o
pequenino infante Dinis (com 4 anos de idade).
No ano seguinte ainda continuava a guerra com Granada,
mas Afonso X tinha já recuperado as cidades sublevadas e
preparava-se para organizar uma expedição a Marrocos, de
que só desistiria dois anos mais tarde. Ficasse ou não
seduzido pelo seu pequeno neto, Afonso X acabou por
renunciar em seu favor a todos os direitos sobre o Algarve,
incluindo a obrigação de receber a ajuda militar de 50
cavaleiros e o penhor dos castelos do Algarve detidos por
D. João de Aboim. Recebeu como única compensação as
povoações de Aroche e Aracena, ficando o rio Guadiana á
demarcar a fronteira entre os dois reinos, a partir da foz
do Caia para sul. O documento, outorgado em Badajoz em 16
de Fevereiro de 1267, legitimava para sempre a integração
do Algarve em Portugal. Diz a Crónica de Afonso X que a
cedência completa do rei castelhano provocou tal
descontentamento por parte dos fidalgos castelhanos que
desencadeou a sua revolta aberta contra ele. Trata-se,
evidentemente, de uma informação fictícia. Mas revela, pelo
seu próprio teor, que na corte castelhana se pensava
habitualmente que o rei de Portugal devia prestar a
homenagem ao de Castela e que a cedência deste a tal
respeito era um sinal de fraqueza.

A superação da crise e a remodelação da administração

As medidas tomadas por Afonso III para superar a crise


agrícola que provavelmente se abateu sobre o País em 1252
ou 1253, e que levou ao já mencionado tabelamento de
preços, à proibição de exportar cereais e metais preciosos,
assim como às tentativas de desvalorização da moeda,
consistiram, além disso, numa severa política de
organização administrativa, da qual existem régia inúmeros
testemunhos. Podemos mencionar, em primeiro lugar, a
promulgação de uma grande quantidade de forais e de
aforamentos colectivos, particularmente durante os anos de
1253 a 1258. Só em 1255, o rei emitiu 17, em 1257, oito, e,
em 1258, seis. Uma grande parte situa-se em Trás-os-Montes
e no Alto Douro e destina-se a converter em moeda os
pagamentos em géneros e a organizar a cobrança em
prestações ou arrendá-la a intermediários. Outros
destinavam-se a fomentar povoações, que se tornaram em
breve centros económicos importantes, como Beja, Estremoz,
Chaves e Viana do Castelo, o primeiro em 1254 e os
restantes em 1258.
Nos centros urbanos, sobretudo em Lisboa, criou ou
comprou uma grande quantidade de tendas, assegurando,
assim, a obtenção de importantes rendimentos monetários.
Verificando o lucro que o bispo do Porto recebia dos
impostos sobre as mercadorias que aí chegavam, procurou
desde muito cedo beneficiar também deles; depois das
questões que mencionámos já, deu, em 1255, foral a Vila

121
Nova de Gaia para incrementar o seu porto e assim atrair aí
o comércio, sobretudo o internacional, e reservou para a
coroa metade dos direitos alfandegários das mercadorias que
entrassem quer em Gaia quer no Porto.
As viagens que fez pelo reino, e que, durante os anos
de 1250 a 1258, o levam várias vezes, primeiro ao norte do
Douro, e depois, em 1256 e 1257, à Beira, assim como as
informações dos seus mordomos, cuja cobrança ele
evidentemente vigiou com todo o cuidado, mostraram-lhe que
tinha urgente necessidade de estancar a constante
apropriação de direitos régios por fidalgos, bispos, ordens
monásticas e sobretudo por ordens militares. Para obviar a
tais perdas, renovou e alargou geograficamente o processo
já usado por Afonso II de fazer inquirições gerais.
Organizou cinco alçadas, que começaram a recolher as
informações nos locais por onde passavam entre Abril e
Julho de 1258 e que terminaram o seu trabalho antes do fim
do mesmo ano. Este imenso e minucioso inquérito, um dos
mais impressionantes monumentos da documentação medieval
portuguesa, serviu não apenas para registar os abusos e
ilegalidades, mas também para fixar o cadastro dos foros e
rendas que a coroa devia receber, e ainda — consequência
não menos importante — para atribuir ao rei todos os bens
que não tinham senhor (que podiam ser colectivos, mas não
da coroa, como, por exemplo, o padroado de muitas igrejas)
e para incluir no conceito de foros senhoriais aqueles que
antes podiam ser considerados públicos. Foram, portanto, um
poderoso instrumento no processo de generalização do regime
senhorial.
No mesmo ano de 1258, promulgou um regimento da casa
real, destinado, aparentemente, a moderar as despesas e a
definir as responsabilidades dos diversos membros da corte,
regimento esse parcialmente reformulado em 1261. A partir
de 1258 (até 1262) começava a conceder várias cartas de
privilégios a feiras, para isentar de impostos os seus
frequentadores, favorecendo, assim, o comércio interno.
No estado actual da investigação não se verificou ainda
de que maneira foram aproveitadas as informações obtidas
nas inquirições e que providências tomou o rei para
recuperar os direitos de que tinha sido privado por
apropriação senhorial ou, pelo menos, para evitar novas
espoliações. Não se sabe, mesmo, se houve alguma acção
decisiva no sentido de recuperar rendimentos já perdidos há
bastantes anos. Penso, todavia, que talvez se possa situar
neste contexto a criação do cargo de meirinho-mor,
encarregado de vigiar e coordenar as intervenções dos
meirinhos regionais (que já existiam desde muito antes).
Esta decisão foi talvez anunciada nas Cortes de Coimbra de
Abril de 1261. Com efeito, existe um regimento que lhe
define as atribuições, datado dubitativamente por Herculano
de 1254 ou de 1261, mas a segunda data é certamente mais
provável. Nesse caso, o nomeado teria sido decerto Nuno
Martins de Chacim, que já devia ser meirinho regional de
Entre Douro e Minho (justamente a área em que era preciso
uma intervenção mais severa). De facto, temos conhecimento
de numerosas intervenções deste membro da pequena nobreza
para reprimir crimes, violências e abusos, sobretudo nas
regiões onde a ocupação senhorial era mais densa.
Pouco antes das Cortes de Coimbra, estando em
Guimarães, onde permaneceu de Janeiro a Março, promulgou
uma lei geral, em que regulamentava os direitos que os
padroeiros podiam exigir das suas igrejas e mosteiros e que
se inserja, evidentemente, numa política de repressão dos
abusos senhoriais verificados pelos inquiridores, mas que
se destinava a favorecer o clero contra uma baixa nobreza
turbulenta e pouco escrupulosa e não a exigir deles a
restituição de direitos régios sonegados. Aproximadamente
na mesma ocasião, o rei emitiu também uma solene proibição
dos abusos das ordens militares quanto à cobrança do
direito de montado, que prejudicava os criadores de gado
não pertencentes a tais corporações.
As Cortes de Coimbra podem ter servido para o rei
anunciar decisões acerca dos abusos detectados pelos
inquiridores, mas destinavam-se sobretudo, a acreditar na
documentação actualmente conservada, a tratar do problema
da moeda. Afonso III queria desvalorizá-la, visto que já
tinham passado sete anos depois de 1254. Perante os
protestos das cortes, o rei desiste da cunhagem que já
tinha começado a fazer, atribui às espécies já em curso um
valor inferior ao das moedas antigas e decide, em troca,
cobrar um imposto geral proporcional ao rendimento dos
contribuintes (divididos em três escalões, com rendimentos
anuais entre 10 e 1000 libras), exceptuando, todavia, os
Dispôs, chefes de ordens militares, cavaleiros e cónegos;
finalmente, compromete-se a não lavrar nova moeda senão daí
a quatro anos. Como vimos, é possível que a lei sobre as
atribuições do meirinho-mor fosse também promulgada nestas

122
cortes. Nesta mesma ocasião pode também ter dado
publicidade à lei sobre os bens de avoenga, que regulava os
direitos dos parentes na transmissão de bens familiares.
Como se vê, Afonso III desenvolveu durante o ano de
1261 uma importante actividade legislativa, provavelmente
na sequência das inquirições de 1258, embora nem sempre
directamente relacionada com os seus resultados. Daí devem
ter resultado protestos por parte dos atingidos, começando
a formar-se uma oposição progressivamente mais intensa, que
a pouco e pouco fez confluir numa corrente mais forte as
resistências até então dispersas. Esta corrente acabou por
desembocar numa pertinaz ofensiva do clero, mas não parece
ter suscitado da parte da nobreza nenhum movimento sério de
revolta. Vejamos, pois, os indícios que nos permitem
averiguar as posições dos principais protagonistas no
xadrez do Poder durante os anos de 1258 a 1268.

Mudanças de Protagonistas

De facto, até 1258, além dos conflitos iniciais já


mencionados, podemos detectar mais alguns com membros do
clero, ainda dispersos, e que podiam filiar-se num ambiente
de tensão provocado pela crise agrícola da época. Quero-me
referir às intervenções do rei nas questões entre o bispo
de Coimbra e o Mosteiro de Santa Cruz, em 1256 e 1257, e
sobretudo às violências físicas praticadas em Lisboa contra
o bispo Aires Vasques, das quais resultou a sua morte, em
Outubro de 1258. Embora o seu responsável directo fosse o
alcaide de Lisboa, é difícil admitir que ele agisse a
mandado do rei, pois este preferia geralmente métodos menos
brutais para resolver questões deste género. Tinha bastante
habilidade para escolher colaboradores fiéis e eficientes,
que colocava em lugares estratégicos para atingir os seus
fins, e evitava a confrontação directa. Foi certamente por
isso que procurou introduzir no episcopado clérigos de quem
podia esperar depois serviços especiais.
Assim fez em 1254, ao conseguir que fosse nomeado bispo
de Viseu o seu capelão Mateus Martins; em 1258, ao
apresentar Pedro Anes como bispo de Lamego; ao influenciar
a eleição de Vicente Mendes no Porto, em 1260; ao
conseguir, depois de quatro anos de questões no foro
eclesiástico, que a Aires Vasques sucedesse mestre Mateus
em Lisboa, preterindo-se, assim, a candidatura de Pedro
Julião, o futuro papa João XXI, preferido por uma parte dos
cónegos; e, enfim, ao fazer eleger para Évora o capelão da
rainha, Durando Pais, em 1266. Os seus cálculos devem ter
dado os seus resultados até 1267. Mas depois, como veremos,
não impediram nenhum destes bispos de se colocar contra
ele, excepto mestre Mateus de Lisboa, que o apoiou sempre,
mesmo contra todos os seus colegas no episcopado.
Nos primeiros anos depois das inquirições, no entanto,
as intervenções de Afonso III devem ter sido consideradas
globalmente positivas pelo clero, particularmente a lei
sobre os direitos dos padroeiros. De contrário não teria
conseguido facilmente que os bispos portugueses escrevessem
ao papa, em Maio de 1262, pedindo-lhe que legitimasse o seu
casamento com D. Beatriz e os filhos já dela nascidos. O
pedido foi secundado por outros intercessores, entre os
quais Luís IX, rei de França, Teobaldo, rei de Navarra,
Carlos, conde de Anjou e da Provença, e vários senhores
portugueses. Apesar destas influências, a concessão papal
fez-se esperar, pois só foi dada mais de um ano depois, em
Junho de 1263.
Até 1266 não é fácil, portanto, descobrir indícios
anunciadores de qualquer oposição do clero contra o rei,
apesar das queixas que este tinha contra ele, em virtude
das informações que recebeu dos inquiridores em 1258.
Na corte parece ter havido algumas mudanças
importantes, provocadas, eventualmente, pela política de
repressão dos abusos senhoriais. De facto, são talvez das
Cortes de 1261 os capítulos dos concelhos de Coimbra e de
Montemor com acusações contra os alcaides locais; de 1264 a
lei que reprime os abusos de poderes dos alcaides em geral;
de 1265 a que proíbe a mudança de estatuto das terras
foreiras, reguengueiras e de cavalaria, para o rei não
perder os respectivos foros quando fossem adquiridas por
privilegiados; também de 1265 a que regulamenta o pagamento
das anúduvas, ou prestações em trabalho para a reparação de
muralhas e castelos; de 1266 a que procura reprimir a
usura.
Mais significativas, porém, são as mudanças dos
detentores de importantes cargos na corte. Antes de mais,
do mordomo-mor, que em 1264 deixa de ser Gil Martins de
Riba de Vizela, um prestigiado representante da nobreza

123
senhorial, que foi substituído pelo fiel cortesão de
categoria inferior D. João de Aboim. Gil Martins
provavelmente incompatibilizou-se com Afonso III, porque
abandonou o País para se fixar na corte do rei de Castela
até à morte de Afonso III. Por outro lado, os dois senhores
da família de Albuquerque abandonaram também os seus cargos
e a cúria entre 1262 e 1264 e voltaram igualmente para
Castela. André Fernandes de Castro, outro nobre castelhano,
segue o mesmo caminho, deixando a sua tenência de Ribaminho
em 1262. Na corte, além de João Peres de Aboim passar a
desempenhar o cargo de mordomo-mor, Nuno Martins de Chacim,
ligado aos senhores de Bragança por linha bastarda e
feminina, tornou-se o grande executor das missões
antipáticas de carácter policial contra os nobres, quer
como assaltantes de igrejas e mosteiros, quer como
invasores da propriedade régia, como lhe impunha, a partir
provavelmente de 1261, o seu cargo de meirinho-mor. Por
esses anos, os fiéis Mem Rodrigues de Briteiros e Estêvão
Anes, o chanceler, estavam mais firmes do que nunca. Da
nobreza de velha cepa só frequentavam a corte os
ricos-homens da família de Baião, como tenentes de várias
terras, e Gonçalo Garcia de Sousa, como alferes-mor. Abaixo
deles estavam os «privados», cavaleiros e trovadores, como
João Soares Coelho ou Afonso Peres Farinha, igualmente
fiéis, domesticados e bons executores das missões que o
monarca lhes confiava.
Além de constituir, assim, uma nobreza de serviço, bem
hierarquizada e poderosa, em que podia confiar, Afonso III
apoiou-se também nos seus bastardos, que dotou
soberbamente, casando-os com as melhores herdeiras do
reino. Não admira, pois, que se não conheça nenhuma
tentativa séria de qualquer nobre para contestar a sua
autoridade. Se ele procurou recuperar os direitos sonegados
pela nobreza senhorial do Norte, os prejudicados com isso
não parece terem resistido seriamente.

A política centralizadora

Com estas bases firmes, Afonso III pôde desenvolver uma


política centralizadora de grande alcance, cujos pontos
fundamentais passaremos a examinar, até ao fim do seu
reinado.
Recordemos, como medidas já aqui mencionadas: no plano
administrativo, a promulgação de forais e a melhor
organização das cobranças de direitos pelos mordomos nos
reguengos e terras da coroa; no plano executivo e, de certo
modo, policial, a criação do cargo de meirinho-mor.
A partir de 1265, no plano judicial, aperfeiçoa e
desenvolve as suas atribuições, dotando o tribunal régio de
um corpo de magistrados em quem delega a faculdade de
decidir pelo menos os casos correntes. Além disso, cria um
corpo de leis processuais que regulam os mecanismos da sua
justiça. Só algumas destas leis estão datadas; situam-se
entre 1266 e 1275, o que pode significar que pertencem
também a este período as numerosas leis menores não datadas
(que podem ser simples normas criadas pelos clérigos da
corte e não leis propriamente ditas).
Mencionemos ainda outras providências mais difíceis de
datar: os seus almoxarifes cobravam cuidadosamente os
foros, rendas e colheitas recolhidas pelos mordomos e pelos
arrendatários; controlava cuidadosamente as nomeações de
clérigos das igrejas do padroado régio; reservou para si,
pelo menos no Algarve, os rendimentos da pesca do sal, dos
pisões, dos lagares, dos fornos e dos banhos públicos;
passou a exigir de todos os alcaides o juramento de
homenagem directamente a ele e não ao rico-homem da terra
nem ao seu prestameiro.
Afonso III montou assim, a pouco e pouco, com certeira
habilidade política, o aparelho burocrático em que apoiava
a centralização régia. O cuidado administrativo
permitiu-lhe aumentar os rendimentos da coroa e, por isso,
sustentar um corpo de servidores cheios de zelo que
assegurava a eficiência da máquina estatal por ele
construída.
De facto, a cobrança do imposto que tinha instituído
nas Cortes de 1261 permitiu-lhe só fazer nova cunhagem de
moeda em 1270, sinal evidente de que tinha conseguido
estabilizar os rendimentos da coroa. A política de fomento
das feiras por meio das cartas de isenção, já iniciada no
período de 1258-1262, foi retomada entre 1272 e 1275. Em
1272, promulga uma lei em que renova a de 1261 para
reprimir os abusos de fidalgos contra bens de mosteiros e
igrejas, encarrega os meirinhos de vigiarem o seu
cumprimento e isenta os mosteiros pobres de pagarem as
prestações e serviços aos seus padroeiros. No mesmo ano,
emite outra importante lei para reprimir a vingança
privada, que provocava grandes violências não só entre os
nobres, mas também entre os homens livres dos concelhos.

124
Em 1277 (provavelmente), proíbe aos nobres, incluindo os
ricos-homens, pousarem nos casais foreiros da coroa e nos
reguengos.
Como se vê, este conjunto de leis e decisões revela uma
firme implantação do Poder e uma autoridade dificilmente
contestável. A ausência de qualquer indício sério de
resistência da parte da nobreza, aparentemente a mais
atingida, a julgar pelos indícios que se conservam e que
fomos examinando, contrasta com a revolta aberta do clero,
dotado de outra capacidade de organização e de outros meios
de luta, e que, além disso, como tinha acontecido nos
reinados anteriores, podia recorrer a um poder exterior ao
reino, o do papado. Vamos ver como se desenrolaram os
acontecimentos.

As questões com os bispos

Embora não fosse propriamente um protector do clero, a


função de justiceiro que Afonso III aparentemente assumiu,
ao promulgar as leis já mencionadas, ao proteger os
mosteiros contra os abusos dos padroeiros e ao libertá-los
de salteadores indesejáveis por intermédio dos meirinhos,
devia torná-lo simpático pelo menos a uma parte dos seus
membros. Por outro lado, as divergências com os bispos não
pareciam graves. Não é fácil, portanto, explicar a enorme
controvérsia que Afonso III teve com o conjunto dos bispos
portugueses a partir de 1267. A maioria dos autores filia-a
na acção do rei contra as apropriações de direitos régios
por parte do clero depois das inquirições, mas a verdade é
que não se encontram muitas provas concretas de iniciativas
desse género. E, quanto às inúmeras acusações feitas pelos
bispos a Afonso III, e que constam do extenso libelo
acusatório apresentado na cúria papal pouco depois, é
difícil distinguir as que se destinam sobretudo a
desacreditar o rei daquelas que de facto constituíam o pomo
da discórdia, ou as que representam uma generalização
enganadora de casos esporádicos daquelas que apontam
divergências efectivamente correntes e dificilmente
resolúveis.
A verdade é que o diferendo era grave e global, porque
envolveu todos os bispos do reino, mesmo aqueles que deviam
a sua nomeação ao rei, exceptuando o de Lisboa.
De facto, sem que saibamos quem organizou a ofensiva,
todos os bispos do reino se achavam na cúria pontifícia
entre o fim do ano de 1267 e o princípio de 1268. Entre
Março e Junho, apresentavam ao papa um extenso libelo de 43
artigos com toda a espécie de acusações contra o rei. As
principais eram as seguintes: o desprezo pelas sanções
eclesiásticas por parte dos juízes e meirinhos régios; a
resistência das autoridades régias e concelhias contra a
implantação do dízimo pelo clero, nos lugares que ainda não
o pagavam, e que eram muitos; a oposição a uma extensão dos
privilégios eclesiásticos previstos no direito canónico e
que as autoridades seculares procuravam reduzir ao mínimo;
a oposição régia à extensão da propriedade e da jurisdição
eclesiástica em detrimento das terras e dos direitos da
coroa.
Eram questões que tinham suscitado até ali muitas
querelas locais e que acabaram por se multiplicar a tal
ponto que pareciam cobrir todo o país. As pequenas batalhas
e escaramuças dispersas tinham dado lugar a uma guerra
generalizada que opunha ao clero não só o rei e os seus
representantes, mas também os concelhos. Estes, de facto,
parece terem desenvolvido uma acção de resistência passiva
e activa contra a difusão do dízimo e contra uma aplicação
abusiva do privilégio do foro judicial para o clero, acção
essa que envolvia represálias mútuas, excomunhões e
violências de todo o género.
Como primeiro acto ofensivo contra o rei, os bispos,
além de apresentarem o libelo ao papa, lançaram o interdito
cada um sobre a sua respectiva diocese, com excepção da de
Lisboa. O rei enviou à cúria papal dois delegados seus,
Afonso Peres Farinha e mestre Tomé, e cartas de vários
concelhos do País a elogiarem a sua governação; além disso,
propôs-se tomar a cruz para combater na Terra Santa.
Clemente IV, quer por ter percebido que havia algum exagero
nas acusações dos bispos, quer por acreditar nos delegados
do rei e na sua promessa de empreender a cruzada, levantou
por seis meses, em 31 de Julho de 1268, o interdito lançado
pelos bispos e permitiu ao rei receber durante algum tempo
o produto de legados pios e as esmolas para a Terra Santa,
para preparar a sua expedição. Noutra bula, recomendou ao
rei que se emendasse dos seus actos de opressão à Igreja e
noutra ainda nomeou um legado seu para vir a Portugal
averiguar as razões das discórdias e tentar encontrar
solução para elas.

125
Seguiu-se então uma série de acontecimentos fortuitos
que neutralizaram a ofensiva dos bispos e foram adiando
sucessivamente a resolução do conflito durante quase dez
anos, ou seja, até à morte do rei O primeiro deles foi a
morte de Clemente IV, em Novembro de 1268, o que impediu a
partida do núncio designado para Portugal. Depois, a
vacância da Santa Sé até Março de 1272. Afonso III não
precisou mais de pensar em cumprir a sua promessa de ir à
Terra Santa, se é que alguma vez teve intenção de o fazer.
O novo papa, Gregório X, só em Maio de 1273 retomou a
questão, enviando então ao rei uma bula em que recordava as
principais acusações dos bispos, lhe propunha que desse
cartas de seguro aos bispos (que continuavam ainda na cúria
papal) para poderem regressar ao reino sem medo de
represálias e nomeava como seus delegados os superiores
dominicano e franciscano de Lisboa, com a faculdade de
levantar o interdito geral durante sete meses, se o rei
prometesse emendar-se dos seus erros.
Afonso III resolveu então reunir cortes em Santarém
para tratar do assunto. Tiveram lugar no fim do ano de 1273
e em janeiro de 1274. Estiveram aí presentes os delegados
papais. O rei declarou que desejava obedecer ao papa e
nomeou uma comissão de 35 nobres e eclesiásticos para
averiguar todos os assuntos em causa e reparar as ofensas e
prejuízos à Igreja. Como faziam parte dela os mais
poderosos e fiéis auxiliares do rei, é evidente que se
tratava de uma forma astuciosa de adiar o problema. De
qualquer maneira, o prior dominicano e o guardião
franciscano comunicaram ao papa as boas intenções do rei e
a questão apaziguou-se até 1275, sem que os prelados
tivessem regressado a Portugal. Neste ano, em Setembro,
Gregório X, que entretanto havia estado profundamente
absorvido com o Concílio Ecuménico de Lião de 1274, emitiu
a constituição apostólica De regno Portugaliae, em que
historiava toda a controvérsia entre os reis e os bispos
portugueses desde o tempo de Afonso II, recordava o que
Afonso III devia à Santa Sé e o seu juramento de Paris,
resumia os pontos de discórdia, classificava as decisões
das Cortes de Santarém como uma farsa destinada a
dissimular a pertinácia do rei e decretava uma série de
prazos para a aplicação das mais severas penas canónicas
sobre o rei e o reino, as quais teriam lugar
automaticamente ao fim de períodos certos, no caso de ele
não acatar as exigências pontifícias: três meses depois de
o rei receber o documento, cairia o interdito sobre os
lugares onde ele estivesse; ao fim dos quatro meses
seguintes, incorreria em excomunhão e perdia todos os
direitos sobre os seus bens de padroado eclesiástico; um
mês mais tarde, alargar-se-ia o interdito geral a todo o
reino; finalmente, ao cabo dos três meses seguintes, o papa
dispensaria todos os súbditos do rei do juramento de
fidelidade e de qualquer obrigação de obediência à sua
autoridade.
Estas ameaças, porém, não surtiram o devido efeito,
porque Gregório X morreu em Janeiro de 1276. Em Fevereiro
foi eleito Inocêncio V, que designou um franciscano, frei
Nicolau Hispano, para vir a Portugal com plenos poderes
para dar execução à referida constituição apostólica. Ele
veio, de facto, mas, por o rei ter conseguido enleá-lo nas
suas manobras dilatórias ou por ele próprio não ter
mostrado firmeza suficiente na sua actuação, ou ainda por
Inocêncio V ter morrido em Junho do mesmo ano, regressou à
cúria papal sem que a sua missão tivesse qualquer resultado
prático. Adriano V, que ocupou o sólio pontifício apenas de
meados de Julho a meados de Agosto seguinte, não pôde,
evidentemente, ocupar-se do caso. Sucedeu-lhe, em Setembro,
o papa português Pedro Hispano, sob o nome de João XXI, que
logo no mês seguinte deu novos poderes ao mesmo frei
Nicolau, com severas instruções para levar a sua missão até
ao fim.
Tendo ele chegado a Portugal em Janeiro, logo a 7 de
Fevereiro conseguiu do rei uma solene audiência, em que
estiveram presentes muitas autoridades civis e
eclesiásticas, diante das quais leu várias bulas anteriores
e a constituição de Gregório X. Como o rei pedisse cópias
desses documentos para deliberar, frei Nicolau foi celebrar
missa à sé, durante a qual publicou a ordenação do papa e
afixou o seu texto na porta da catedral. Os prazos
previstos para as sanções canónicas começaram, portanto, a
contar a partir daí, sem que as dilações procuradas pelo
rei pudessem impedir a sua aplicação.
De facto, houve vários encontros entre frei Nicolau e o
rei, em Fevereiro e Março de 1277, sempre sem qualquer
resultado visível. Por isso, o núncio resolveu dirigir-se a
outras cidades do reino, onde foi publicar solenemente as
ordenações papais. Entre 1 de Abril e 24 de Maio, esteve em
Santarém, Coimbra, Porto, Braga, Guimarães, Lamego, Viseu e
Guarda. Nesta última cidade, recebeu o pedido do rei para
voltar a Lisboa para novo encontro pessoal; tendo sido
recebido em 27 de Julho, convenceu-se de que nada se
modificara e por isso foi publicar as instruções papais

126
no Convento de S. Francisco; depois seguiu para Évora, onde
fez o mesmo. Chamado de novo à presença do rei, assistiu em
6 de Outubro a outra audiência solene na presença dos
infantes D. Dinis e D. Afonso, em que Afonso Peres Farinha
fez um astucioso discurso elogiando o zelo do legado, mas
procurando mostrar que era excessivo face à brandura do
novo papa. Com efeito, em Março anterior João XXI tinha
dirigido ao rei a bula Jucunditatis et exultationis, onde
confessava o seu empenho, como português que era, em
resolver a dissensão do rei com os bispos, se desculpava
das censuras que tivera de manter e exortava o rei a seguir
a justiça e a respeitar os ministros da Igreja. Não se sabe
se nessa altura já o rei tinha conhecimento da morte de
João XXI, em 20 de Maio, mas, se sabia dela, deve ter-se
sentido encorajado a continuar as suas manobras evasivas.
A reunião terminou, é claro, sem que tivesse havido
qualquer espécie de acordo. Frei Nicolau mandou então um
notário apostólico redigir a notícia em que tudo isto é
relatado e em que se transcrevem os documentos em causa.
Não sabemos o que aconteceu depois. Herculano e outros
autores que o seguiram presumem que os prazos dados pelo
papa Gregório X foram cumpridos e que, portanto, os bispos
e o clero português consideraram Afonso III sem autoridade
legítima. Pensaram mesmo que fosse essa a razão de várias
lutas civis referidas sem data pelo Chronicon
conimbricensis e pelos livros de linhagens, em particular a
chamada «lide de Gouveia», em que morreram Gil Vasques de
Soverosa (sobrinho de Martim Gil de Soverosa, o campeão de
Sancho II e vencedor da lide de Gaia, em 1245). Mas a
enumeração dos combatentes mortos e as referências dos
livros de linhagens a este acontecimento parecem indicar
antes uma luta entre bandos de nobres sem qualquer relação
com o juramento de fidelidade ao rei. As outras lutas
referidas pertencem a datas muitos diferentes.
Na minha opinião, nada prova o que quer que se pareça
com uma revolta aberta contra a autoridade de Afonso III.
Nos concelhos, os magistrados já estavam habituados a serem
excomungados com frequência pelos bispos e clérigos para
tomarem demasiado à letra a dispensa de obediência ao rei.
O País já se tinha adaptado ao interdito: havia sempre uma
ou outra igreja em que se podiam celebrar os ofícios
divinos, quer por algum privilégio especial, quer por
qualquer outra razão. Não era fácil perturbar uma
autoridade civil que se implantara tão solidamente como a
de Afonso III e que era exercida por um conjunto de
oficiais extremamente fiéis e dedicados. Poucos se
atreveriam a arrostar as consequências de uma recusa de
obediência. Não creio, portanto, que as severas penas
previstas por Gregório X tivessem dado grandes resultados
práticos. Estava cada vez mais longe a época em que a
excomunhão e o interdito atemorizavam, de facto, a maioria
dos fiéis.
De resto, Afonso III entregou o governo do reino a seu
filho D. Dinis em meados de 1278. Desde 1275 que não
voltara a sair de Lisboa, provavelmente porque a sua saúde
ia declinando a pouco e pouco. Não se conhecem nenhumas
letras pontifícias de Nicolau III (1277-1280) a urgir a
submissão do velho rei. Pelo contrário, numa bula de Abril
de 1278, tendo nomeado novo arcebispo para Braga,
comunica-lho e pede protecção para ele, o que significa que
não contestava a sua autoridade. Mas, em Janeiro de 1279,
Afonso III, que continuava excomungado, manda redigir um
documento na presença dos seus colaboradores mais íntimos,
em que declara submeter-se ao papa, ordena a entrega de
várias terras à Igreja e recebe a absolvição de frei
Estêvão, abade resignatário de Alcobaça. Pôde, por isso,
ter exéquias litúrgicas depois da sua morte, em 16 de
Fevereiro.

O difícil apaziguamento da política eclesiástica

A morte de Afonso III criava condições para imprimir


uma nova orientação ao conflito entre o rei e os bispos,
embora, como é óbvio, não pudesse solucioná-lo
automaticamente. O reino continuou sujeito ao interdito, o
que mantinha um problema que toda a gente, decerto,
desejava resolver. Todavia, as negociações para o conseguir
só se iniciaram em 1281, talvez em Outubro-Novembro.
Entretanto, os adversários pareciam observar-se mutuamente
e evitar quaisquer hostilidades: D. Dinis reconhecia o
arcebispo de Braga, o franciscano frei Telo, nomeado pela
Santa Sé, ao passo que o papa Nicolau III recomendava ao
núncio nomeado em Março de 1279 para visitar Leão e Castela
que interviesse junto de Afonso X para este persuadir o rei
de Portugal a respeitar as liberdades eclesiásticas. A
morte de Nicolau III, em Agosto de 1280, e a vacância da
sede pontifícia até Janeiro de 1281 foram adiando as
negociações.

127
Estas parece terem começado por iniciativa de D. Dinis,
que se reuniu na Guarda com os bispos que então havia no
reino. Aí, depois de se terem lido os documentos emitidos
por Gregório X, os bispos debateram durante várias semanas
as questões pendentes, provavelmente já sem a presença do
rei. Chegaram finalmente a um texto de acordo, que lhe foi
apresentado em Évora em Abril de 1282. Daí, estando reunido
em cortes, escreveu ao papa, então já Martinho IV, a pedir
que o ratificasse. A resposta demorou. Veio só em 1284, com
a exigência de numerosas emendas e instruções a dois
delegados apostólicos, o bispo de Leão e o arcediago de
Ledesma, encarregados pelo papa de persuadir o rei a
aceitar a nova versão.
D. Dinis, por sua vez, também não se apressou muito a
tratar do assunto. Fê-lo nas Cortes de Lisboa, em Junho de
1285. Os bispos escreveram daí ao novo papa, Honório IV,
acusando o soberano de ter mandado ler os artigos propostos
por Martinho IV sem a presença do clero e apenas para
declarar que a ordenação papal havia caducado com a sua
morte. Por outro lado, o rei resolveu nomear dois
embaixadores seus para negociarem um novo acordo com a
Santa Sé. Foram Martim Pires, chantre de Évora, e Estêvão
Lourenço. Defenderam as suas posições perante uma junta de
três cardeais nomeados por Honório IV, mas quando ele
morreu, em 1287, ainda não tinham conseguido chegar a
qualquer acordo. Entretanto, Estêvão Lourenço foi
substituído pelo fiel conselheiro de D. Dinis, João Martins
de Soalhães, então cónego de Coimbra. Eleito novo papa,
Nicolau IV, em Fevereiro de 1288, o rei renovou a
procuração dos seus embaixadores em Junho do mesmo ano e as
negociações recomeçaram em Roma, com quatro bispos
portugueses aí presentes.
Finalmente, no princípio de 1289, os delegados de ambas
as partes conseguiram chegar a um texto com 40 artigos, que
foram aprovados pelo papa em 7 de Março do mesmo ano. A
bula que solenemente os confirmava previa várias sanções,
no caso de o rei não cumprir o que os seus embaixadores
haviam prometido e exigia que os artigos fossem aprovados
em cortes. D. Dinis aceitou este documento, que passou a
ser considerado uma verdadeira concordata, e como tal foi
inserido em textos legais posteriores, nomeadamente nas
Ordenações afonsinas. Vem normalmente acompanhado de um
suplemento com 11 artigos, que não foram aprovados por
nenhuma bula.
O longo interdito a que o reino tinha estado sujeito
desde 1267 foi finalmente levantado em 31 de Junho de 1290.
O acontecimento foi registado como um dos mais notáveis da
época pelo livro de noa de Santa Cruz de Coimbra.
Terminava assim um conflito que havia durado 23 anos. A
dificuldade de chegar a um acordo mostra bem a gravidade
das divergências e os obstáculos que foi necessário
ultrapassar. Como vimos, estavam em causa interesses
dificilmente conciliáveis, que envolviam não só o rei e os
seus funcionários, mas também a população e as autoridades
dos concelhos. Durante os dez anos que durou a negociação
no tempo de D. Dinis, deve ter-se feito um grande esforço
de definição de regras de convivência que permitissem a
conciliação pragmática dos principais motivos de conflito:
o exercício dos privilégios eclesiásticos, sobretudo o do
foro, e a sua coordenação com a alçada das autoridades
judiciais civis e a aceitação do dízimo eclesiástico pelos
concelhos. Por outro lado, a ocupação das dioceses por um
número considerável de bispos favoráveis ao rei facilitou
as coisas. Podemos enumerar os seguintes: Durando Pais de
Évora e Mateus de Lisboa, que vinham já do tempo de Afonso
III; Domingos Anes Jardo, chanceler, para Évora (1285) e
depois para Lisboa (1289); João Martins de Soalhães para
Lisboa (1294) e depois para Braga (1313); Martim Pires de
Oliveira para Braga (1295); Pedro Martins, chanceler, para
Coimbra (1296); Estêvão Anes Brochado, também chanceler,
igualmente para Coimbra (1304); Geraldo Domingues para o
Porto (1300) e depois para Évora (1314); Martinho, médico
do rei, para a Guarda (1319), etc. As relações entre os
bispos e a coroa começaram, assim, a tornar-se mais
pacíficas.
A partir de 1290, embora não tivessem cessado por
completo as ocasiões de atrito entre a coroa e os bispos,
deixou de ser necessário recorrer à sé apostólica para as
resolver. De facto, conhecem-se duas novas concordatas, uma
de 129.2, outra de 1309. A primeira, com cinco artigos,
destinada a responder a queixas dos bispos do Porto, da
Guarda, de Lamego e de Viseu; a segunda, com 22 artigos,
para resolver divergências com o bispo e o cabido de
Lisboa. O rei e os seus funcionários tinham-se habituado a
buscar um quadro legal para solucionar toda a espécie de
conflitos, quer eles fossem com o clero, quer com os
nobres, quer com os concelhos, e até com os foreiros da
coroa.

128
Por outro lado, procuraram também dominar a situação,
tirando partido de questões que, em princípio, opunham os
clérigos aos nobres, para favorecerem uns ou outros,
conforme os casos. Assim, as leis de desamortização que D.
Dinis promulgou em 1256, 1291, 1292, 1305 e 1309 favoreciam
não só a coroa, mas também os nobres, pois estes eram
prejudicados com a excessiva acumulação de bens fundiários
pelo clero. Em sentido inverso, as leis que restringiam os
abusos dos padroeiros sobre igrejas e mosteiros, que datam
de 1281, 1297, 1307, 1311, 1317 e 1322, favoreciam o clero
contra as extorsões dos nobres.
As graves questões que D. Dinis sustentou com o bispo
D. Egas de Viseu (1289-1313), e que levaram este a escrever
a obra De liberte Ecclesiae, e com o bispo franciscano frei
Estêvão Miguéis do Porto (1310-1313) e de Lisboa
(1313-1322) não levaram à intervenção do papado. Embora a
segunda tenha sido agravada pelo contexto da guerra civil
de 1319-1324, o que ajuda a compreender o rigor do monarca
para com eles, ambas revelam a sua prepotência e a
progressiva submissão do clero ao poder político.
De facto, a cúria pontifícia tinha vindo a perder a sua
capacidade para exercer uma autoridade teocrática sobre os
reis da Cristandade. O último conflito grave do pontífice
com um monarca sucedeu entre Bonifácio VIII e Filipe, o
Belo, e saldou-se por uma grande humilhação do papa. Não
admira, por isso, que os embaixadores de D. Dinis à cúria
romana tenham podido resolver com relativo sucesso alguns
importantes assuntos de que trataremos depois, nomeadamente
a independência da Ordem Militar de Santiago, a
substituição dos Templários pela Ordem de Cristo e a
concessão por três anos do dízimo das rendas eclesiásticas
de todo o reino para financiar uma armada de galés
destinada a guerrear os Mouros durante igual período
(1320). É provável que o prestígio alcançado por D. Dinis
na Península Ibérica tivesse ajudado a fazê-lo respeitar
também na cúria papal, apesar de não ter sido, talvez, mais
condescendente para com o clero do que Afonso III.

O papel D. Dinis na política peninsular

O efectivo papel que D. Dinis exerceu na política


peninsular constitui, na verdade, uma das de
características mais relevantes do seu reinado. Poucas
vezes se repetiu uma conjuntura em que Portugal tenha
podido não apenas subsistir como reino verdadeiramente
independente no âmbito da Hispânia, mas em que o seu rei
fosse também considerado como um interlocutor essencial e
com uma autoridade política respeitada por todos. Este
fenómeno histórico não se deve apenas ao facto de D. Dinis
ter implantado solidamente o seu poder no interior do
reino, beneficiando dos trunfos acumulados por seu pai e do
poder material que ele próprio adquiriu e o fez respeitar
além-fronteiras, mas também ao contraste que durante mais
de três décadas (aproximadamente de 1280 a 1315) se
verificou entre a situação interna de Portugal, onde
reinava a ordem pública, e Castela, onde campeavam a
instabilidade governativa e os conflitos sociais. Vejamos,
pois, os principais acontecimentos que demonstram esta
visão panorâmica da política externa dionisina. A primeira
demonstração do seu êxito foi a aliança com o reino de
Aragão, expressa no casamento com Isabel, filha de Pedro
III, o Grande. Tratava-se de uma aliança valiosa, porque
Aragão acabava então de adquirir uma importância
fundamental na economia e na política mediterrânicas e
porque Pedro III (1276-1285) e sobretudo seu filho, e irmão
de Isabel, Jaime II (1291-1327) exerceram um papel de
primeiro plano na diplomacia peninsular. Isabel colaborou
também directamente nas negociações entre os dois reinos e
na protecção de aragoneses que passaram a viver em
Portugal, desempenhando, assim, uma real influência
política. As cartas que dela se conservam no Arquivo da
Coroa de Aragão demonstram este facto e permitem mesmo
supor que a sua acção neste campo pudesse ter sido mais
vasta do que aquela que está directamente documentada. As
negociações para o casamento foram lentas. Iniciadas em
1280, com o envio de uma embaixada portuguesa a Aragão,
incluíram, no ano seguinte, uma embaixada aragonesa à corte
de D. Dinis; depois, em Abril de 1281, a generosa carta de
dotação da futura rainha com o senhorio de três vilas e a
segurança de doze castelos; mais tarde, em Fevereiro de
1282, em Barcelona, o casamento por procuração; e
finalmente, em Junho seguinte, em Trancoso, as bodas dos
dois esposos.
Os anos seguintes foram dominados pela guerra civil
castelhana, que opôs o príncipe Sancho a seu pai, Afonso X.
Considerando-se herdeiro legítimo da coroa, por morte de
seu irmão mais velho, o infante Fernando de la Cerda, em

129
Vez dos filhos menores deste último, que o rei preferia,
revoltou-se abertamente contra ele em 1282. Apesar de a mãe
de D. Dinis, a rainha D. Beatriz, que, como vimos, era
filha bastarda de Afonso X, apoiar seu pai
incondicionalmente, ao ponto de ter deixado Portugal para
se reunir a ele em Sevilha, o nosso rei, por razões pouco
claras, preferiu apoiar o príncipe Sancho. Assim o
demonstram a Crónica de Afonso X, algumas declarações do
próprio rei de Castela e as cartas em que Pedro III de
Aragão procura dissuadi-lo de intervir. Não sabemos, porém,
se D. Dinis contribuiu com um auxílio material efectivo ao
príncipe revoltado ou se se limitou a apoiá-lo por outros
meios. Seja como for, parece ter dado mostras nesse momento
de uma atitude mais ditada pelos seus interesses políticos
do que por princípios morais ou de justiça, como, de resto,
fez normalmente durante todo o seu reinado.
Afonso X morre em 4 de Abril de 1284, nomeando D.
Beatriz sua testamenteira e deixando-lhe o antigo reino de
Niebla. Sancho IV faz-se proclamar rei e é coroado em
Toledo, conseguindo impor a sua autoridade em Castela,
apesar das disposições de seu pai em favor dos infantes de
La Cerda. A aliança de D. Dinis com ele manifesta-se quando
ambos se associam para cercar o infante português D. Afonso
em Arronches, em Novembro de 1287, como veremos mais
adiante; depois, na Primavera e Verão de 1289, quando o
auxilia com alguns cavaleiros na guerra contra Afonso III
de Aragão, apesar de este ser seu cunhado; e ainda em
Setembro de 1291, quando se encontra com ele em Cidade
Rodrigo para combinar o casamento de sua filha Constança
com Fernando, o príncipe herdeiro de Castela. A aliança
luso-castelhana só esmorece em 1293, quando o rei português
protege D. João Nunes de Lara nas suas desavenças com
Sancho IV e quando este decide romper o acordo acerca do
futuro casamento de seu filho, prometendo desposá-lo com
uma filha do rei Filipe, o Belo, de França.
Depois da morte de Sancho IV, em Abril de 1295, a cena
política de Castela torna-se muito agitada. Fernando IV,
herdeiro da coroa, tinha apenas 9 anos de idade. A tutoria
de D. Maria de Molina (viúva de Sancho IV, de um casamento
nunca legitimado) é contestada pelos infantes Henrique
(irmão de Afonso X), João (irmão de Sancho IV), Afonso e
Fernando de la Cerda. Cada um procura por seu lado ou em
alianças instáveis de uns com os outros dominar os
acontecimentos. O infante D. João busca o apoio de D.
Dinis, que o reconhece como rei, o que leva o novo tutor do
pequeno rei, o infante D. Henrique, a comprar a posterior
neutralidade do soberano, português mediante a promessa de
lhe entregar as povoações de Moura, Serpa, Aroche e
Aracena, de demarcar a fronteira luso-castelhana em litígio
e de renovar a promessa do casamento de Fernando IV com D.
Constança. Este compromisso foi firmado numa entrevista
pessoal entre os dois reis, na presença de D. Maria de
Molina, em Cidade Rodrigo, em meados de Outubro de 1295.
Pouco depois, o infante D. João aceitava a autoridade de
Fernando IV e ratificava este acordo.
Em Janeiro do ano seguinte, renovam-se, com a
intervenção activa dos Aragoneses, as tentativas para
retirar o trono a Fernando IV. Os infantes D. João e D.
Afonso de la Cerda partilham o reino entre si, atribuindo
Leão, Galiza e Astúrias ao primeiro, Castela e Andaluzia ao
segundo e Múrcia ao rei de Aragão. Em Abril, os dois
primeiros chegam a ser aclamados reis, um em Leão e outro
em Sahagún. Em Setembro e Outubro, D. Dinis auxilia o
infante D. João com centenas de cavaleiros. Associado com
ele e com Afonso de la Cerda, marcharam de Salamanca sobre
Tordesilhas e Simancas com o intuito de conquistar
Valhadolid. Dão-se também combates entre castelhanos e
portugueses na fronteira alentejana. Mas a resistência e a
diplomacia castelhanas, organizadas por D. Maria de Molina,
permitem vencer ou resistir a todos os adversários. D.
Dinis não ousa avançar até Valhadolid, como tinha
projectado, e retira para a Beira, embora provavelmente
mantenha a ocupação dos principais castelos de Ribacoa,
então ainda em território leonês.
Iniciadas as conversações de paz na Primavera de 1297,
os acordos com Portugal são assinados pessoalmente pelos
dois reis em Alcanices, perto da fronteira leonesa, em 12
de Setembro do mesmo ano. Aí se estabelece que as praças
tomadas por D. Dinis em Ribacoa permaneçam na sua posse,
juntamente com Olivença, Campo Maior, Ouguela e São Félix
de Galegos, assim como Moura e Serpa, já cedidas em 1295,
mas não entregues. Pelo contrário, Portugal desiste da
posse de Aroche e de Aracena, além de outras povoações em
litígio, como Valência, Ferreira, Esparregal e Aiamonte. O
pacto acerca da nova linha da fronteira era ratificado com
nova promessa do casamento de Fernando IV com D. Constança,
conforme fora já estabelecido, e com o de D. Beatriz, irmã

130
do pequeno rei castelhano, com o príncipe Afonso, herdeiro
da coroa portuguesa. Além disso, o nosso rei comprometeu-se
a ajudar o de Castela com 300 cavaleiros, sob o comando de
João Afonso de Albuquerque. Este colaborou, de facto, nos
combates contra o infante D. João durante os meses
seguintes.
Com pequenas alterações posteriores, este tratado fixou
até aos nossos dias, como'se sabe, a demarcação territorial
entre Portugal e Castela, que tem sido, por isso,
considerada como a linha de fronteira mais estável da
Europa. Apesar de tão favorecido por ele, D. Dinis parece
ter querido tirar ainda mais benefícios da situação. Depois
das Cortes de Valhadolid de Fevereiro de 1298, as
hennandades de vários concelhos castelhanos pediram o seu
auxílio para combater o infante D. João e os nobres que o
apoiavam. Em Julho, o nosso rei dirigiu-se com as suas
tropas a Castela, mas, encontrando-se em Toro e em Mota dei
Marquês com o infante D. Henrique, que fazia jogo duplo,
propôs a D. Maria de Molina que reconhecesse o infante D.
João como rei da Galiza. Perante a recusa da rainha,
retirou para a Beira e permaneceu todo o mês de Agosto e
parte de Setembro no Sabugal, talvez esperando o evoluir
dos acontecimentos, mas a posição castelhana não se
alterou.
Em Março de 1300. D. Dinis voltou a encontrar-se em
Cidade Rodrigo com os soberanos de Castela, para com eles
repartir os custos das bulas que era necessário obter em
Roma para a legitimação de Fernando IV e para as dispensas
de parentesco dos dois casamentos combinados em Alcahices,
importante passo para a legitimação da autoridade do
soberano castelhano. De facto, no ano seguinte. Fernando IV
atingia a maioridade e recebia as bulas, celebrava as suas
bodas com D. Constança em Janeiro de 1302 e passava, a
partir daí, a obter de seu sogro um apoio efectivo, que ele
não lhe negou mais durante todo o seu curto reinado.
Tendo renascido a oposição dos nobres, sob a chefia do
infante D. Henrique, de Diogo Lopes de Haro e de D. João
Manuel, Fernando IV pediu auxílio a D. Dinis. Encontrou-se
com ele em Badajoz, provavelmente em Abril de 1303, e
obteve um empréstimo monetário de 1 milhão de maravedis,
ficando os rendimentos da própria cidade de Badajoz como
penhor do seu pagamento, e obrigou-se a ajudá-lo
militarmente na guerra contra os seus opositores.
A superioridade política portuguesa levou os soberanos
de Castela e de Aragão a recorrerem à autoridade de D.
Dinis para sancionarem solenemente os acordos já em
negociação entre eles e que pretendiam resolver as
divergências que de há muito opunham os dois reinos acerca
da posse de Múrcia e de Alicante, ocupados pelos Aragoneses
em 1296, e as pretensões do infante de La Cerda ao trono
castelhano. Fernando IV declarou aceitar a arbitragem
portuguesa em Junho de 1304 e logo no mês seguinte D. Dinis
dirigia-se à fronteira castelhano-aragonesa à frente de uma
solene comitiva, que, segundo parece, incluía mais de 1000
nobres e de que também faziam parte sua mulher a rainha D.
Isabel, seu irmão, o infante D. Afonso, seu filho bastardo
D. Pedro e João, Afonso de Albuquerque. D. Pedro haveria
mais tarde de recordar a viagem na Crónica de 1344, em
termos que exprimem bem a impressão que ela lhe causou. Os
três reis encontraram-se em Torrellas, entre Agreda e
Tarazona, onde D. Dinis pronunciou a sua sentença acerca
das questões em litígio em 8 de Agosto de 1304. Seguiram
logo depois para Tarazona, onde fizeram um pacto de amizade
entre si e onde Fernando IV ratificou a entrega que havia
feito a D. Dinis das povoações que lhe cedera no Algarve. O
nosso rei regressou à sua corte com um prestígio acrescido,
depois de ter acompanhado Fernando IV até Valhadolid.
Durante as lutas entre Fernando IV e João Nunes de
Lara, D. Dinis voltou a emprestar dinheiro a Fernando IV,
acedendo a um pedido que sua filha Constança lhe veio
trazer pessoalmente em 1307, e fê-lo de novo dois anos
depois, por ocasião da sua guerra com Granada, que levou ao
cerco de Algeciras e à conquista de Gibraltar; além disso,
colaborou nas campanhas com 700 cavaleiros, comandados por
D. Martim Gil de Sousa. Neste ano, as boas relações entre
os dois reinos firmaram-se mais ainda com o casamento do
infante D. Afonso com D. Beatriz, irmã de Fernando IV, tal
como fora estabelecido em 1297, e, no ano seguinte, com o
pacto que ambos fizeram de defender e conservar os bens dos
Templários contra qualquer decisão em contrário, mesmo
vinda do papa. Com efeito, aqueles tinham começado a ser
violentamente atacados pelo rei de França, Filipe, o Belo,
desde 1307. O rei de Aragão associou-se mais tarde a este
acordo, a que se seguiram as negociações, de que falaremos
depois, que conduziram à criação da Ordem de Cristo, em
1319.

131
Como vimos, a política externa de Portugal foi dominada
entre 1282 e 1310 pelas relações m Castela. Por detrás das
acções que manifestam a superioridade portuguesa não estão
apenas as dissensões internas de Castela, mas também uma
posição aragonesa geralmente favorável a D. Dinis, na qual
Santa Isabel exerceu um papel considerável. Em 1312
preparava-se um estreitado destas relações. O irmão
bastardo de Santa Isabel, D. João de Aragão, dirigiu uma
embaixada à corte de D. Dinis para propor o casamento de D.
Violante, filha de Jaime II, na casa real portuguesa.
Pretendia também arbitrar questões fronteiriças entre
Portugal e Castela, não totalmente resolvidas. A morte de
Fernando IV, em Setembro de 1312, interrompeu, porém, as
negociações. Nessa altura já se avolumavam as discórdias
entre o nosso rei e o príncipe D. Afonso, que levaram à
guerra civil de 1319. Apesar de a cena política castelhana
se ter tornado de novo muito agitada durante a menoridade
de Afonso XI, e sobretudo depois da morte de D. Maria de
Molina (1321), D. Dinis não voltou a intervir no reino
vizinho. Estava demasiado ocupado com os problemas internos
do seu país.
O prestígio da corte portuguesa além-fronteiras pode
também ser aferido pelo facto de ela ter sido procurada,
por várias razões e durante períodos mais ou menos longos,
por alguns poderosos magnates castelhanos, como o infante
D. João, João Afonso de Albuquerque, João Nunes de Lara,
Pedro Fernandes de Castro e o infante Afonso de la Cerda
(que casou com D. Maria, filha bastarda de D. Dinis), assim
como por nobres aragoneses e membros da família real de
Aragão, como D. Bataça, Raimundo de Cardona, Pedro de
Aragão, João de Aragão e Sancho de Aragão, e até por
genoveses, como Manuel Pessanha.
As relações de Portugal com reinos não peninsulares
foram, obviamente, menos assíduas. Não podemos, em todo o
caso, deixar de mencionar o tratado de comércio que D.
Dinis estabeleceu em 1308 com o rei Eduardo II de
Inglaterra e a concessão colectiva que Filipe IV, o Belo,
de França fez aos mercadores portugueses de Harfleur em
1310. São dois acordos que significam claramente a expansão
do comércio português em direcção ao Atlântico Norte.

A política de nacionalização

Vimos há pouco que D. Dinis tirou partido da guerra com


Castela para se apoderar de alguns territórios fronteiriços
e para definir a fronteira com um rigor que não permitisse
dúvidas no futuro. Era uma forma de evitar questões
inúteis. A sua preocupação com a fixação da fronteira
manifestou-se, por um lado, procedendo à demarcação dos
limites por meio de tratados e de comissões mistas e, por
outro, pela construção ou reparação de castelos
fronteiriços e pelo aperfeiçoamento do exército e do
equipamento militar necessário à defesa.
No primeiro caso, já em 1295, ou no princípio do ano
seguinte, tinha acordado com Castela a delimitação da
fronteira, mas os delegados castelhanos não compareceram ao
encontro aprazado para Pinhel. O assunto continuou a
dominar as relações luso-castelhanas nos anos seguintes. Em
1312 foram ainda questões de fronteira, entre outras, que
como vimos, trouxeram a Portugal o embaixador D. João de
Aragão. Em Outubro de 1314 houve, finalmente, uma reunião
das delegações portuguesa e castelhana para demarcar a
fronteira na zona de Moura e Noudar. D. Dinis preocupava-se
de tal modo por excluir qualquer intervenção de poderes
externos no seu reino que me 1307 teve uma árdua contenda
com o bispo de Tui, cuja diocese ia até ao rio Lima, porque
não admitia que os clérigos desta parte do território
português mandassem redigir os seus documentos aos notários
daquela cidade.
Quanto à política militar, a acreditar na Crónica de
1419, reforçou os castelos de Moura, Serpa, Olivença, Campo
Maior, São Félix de Galegos, Ouguela, Sabugal, Alfaiates,
Castelo Rodrigo, Vila Maior, Castelo Bom, Almeida, Castelo
Melhor, Castelo Mendo, Avô, Monforte, Arronches,
Portalegre, Marvão, Alegrete e Castelo de Vide. Além disso,
mandou construir ou renovar as fortificações de Borba, Vila
Viçosa, Arraiolos, Évora Monte, Guimarães, Moura, Miranda,
Monção, Castro Laboreiro, Veiros, Alandroal, Monsaraz,
Noudar, Rechado e Juromenha.Mesmo que esta impressionante
lista, constituída quase totalmente por lugares de
fronteira, não seja totalmente exacta, existem suficientes
indícios documentais acerca de um número considerá-1 de
obras militares para dever apresentá-la como uma informação
muito expressiva. A Monarchia Lusitana, por exemplo,
conservou a memória do monge cisterciense que dirigiu as
obras dos castelos de Monsanto e do Sabugal em 1302.

132
Por outro lado, D. Dinis procurou também dispor de um
exército mais operacional do que o recrutado apenas pelos
velhos processos feudais. Daí a instituição, em data
desconhecida, da obrigação de cada concelho fornecer e
armar uns tantos besteiros, chamados os «besteiros do
conto». O rei não se contentava, portanto, com o
recrutamento dos cavaleiros nobres acontiados, que tinham a
obrigação estrita de servir a coroa, e com a exigência, se
necessário fosse, do cumprimento do fossado pelos vilãos,
consignado nos forais. De facto, é provável que também
procurasse renovar o cumprimento do serviço militar dos
vilãos detentores de terras de «cavalaria». A instituição
dos besteiros do conto teve, porém, uma importância maior.
O rei passou então a dispor de um corpo mais
profissionalizado, mais disponível, mais fiel e
militarmente mais eficaz.
Foi igualmente D. Dinis quem iniciou a política de
criar coutos de homiziados, embora se conheça apenas a
instituição do de Noudar, em 1308. O cumprimento das penas
por crimes em lugares com importância militar perto da
fronteira permitia assegurar a defesa dessas zonas quando
pouco povoadas. Tratava-se aqui, no entanto, de uma medida
precursora de um processo que só seria utilizado
sistematicamente no fim do século XIV e durante todo o
século XV.
Está na mesma ordem de ideias o cuidado posto em criar
uma força naval, que se traduziu pela nomeação do primeiro
almirante português conhecido, Nuno Fernando Cogominho
(talvez em 1307), substituído depois, em 1317, pelo genovês
Manuel Pessanha, a quem depois, em documentos muito
conhecidos, foram dadas as melhores condições para
organizar uma armada militarmente eficaz. O equipamento das
suas galés suscitou tal atenção a D. Dinis que em Maio de
1320 obteve de João XXII uma bula, já mencionada
anteriormente, que lhe atribuía por três anos o dízimo das
rendas eclesiásticas de todo o reino, para obter o
necessário financiamento das galés, com o pretexto de fazer
guerra aos Mouros. Mais do que atacar Marrocos ou Granada,
o rei pretendia, evidentemente, combater a pirataria
sarracena que assolava as costas portuguesas. De facto,
todas as igrejas do reino foram taxadas em 1320 e 1321 e o
dízimo deve, efectivamente, ter sido aplicado ao fim
previsto. A importância do papel atribuído a Manuel
Pessanha por D. Dinis está bem patente nas impressionantes
concessões de bens e privilégios que o rei lhe ofereceu em
1317, 1319 e 1322.
Pode-se ainda relacionar com esta política o
persistente esforço de D. Dinis por tornar independentes de
províncias não portuguesas as ordens militares que existiam
no nosso país, excepto a do Hospital (a de Avis já era
propriamente portuguesa, apesar de seguir a regra de
Calatrava). Para isso, desenvolveu um imenso esforço
diplomático junto da Santa Sé, a fim de obter as
necessárias licenças. Começou pela Ordem de Sant’Iago,
cujas ligações a Castela devia considerar mais perigosas.
Em Setembro de 1288, Nicolau IV, respondendo a um pedido
dos freires portugueses, permitiu-lhes eleger provincial
próprio, independente do mestre da Hispânia. Apesar de esta
bula ter sido confirmada por Celestino V em 1294, foi
revogada pouco depois por este mesmo pontífice e por
Bonifácio VIII. Assim, tendo sido eleito um português, em
1314, foi no ano seguinte excomungado pelo mestre
castelhano. A decisão de manter os freires portugueses
sujeitos a Castela foi confirmada por João XXII em 1316 e
1317. D. Dinis procurou então defender a sua causa por meio
de uma embaixada à Santa Sé, de que fazia parte Manuel
Pessanha (1318). Conseguiu, assim, que o papa nomeasse como
juízes apostólicos nesta causa os arcebispos de Braga e de
Compostela (1319). Apesar de Roma não ter nunca confirmado
a independência da província portuguesa, ela tornou-se a
partir daí um facto consumado.
O processo relativo à Ordem do Templo é mais conhecido,
pelo menos nas suas linhas gerais. Em 1307, as acusações
suscitadas por Filipe, o Belo, contra os seus membros
levaram Clemente V a mandar celebrar na Hispânia um
concílio que averiguasse as suas responsabilidades
efectivas. Os padres reunidos em Salamanca, entre eles o
bispo de Lisboa, concluíram pela sua inocência. Apesar
disso, o papa mandou sequestrar os seus bens na Península,
e alguns eclesiásticos, como os Cónegos Regrantes de Santa
Cruz e o bispo da Guarda, quiseram apoderar-se deles. O rei
não consentiu (1308), mas depois instaurou um processo
judicial com o objectivo de os incorporar na coroa, obtendo
sentença favorável em 1310. Neste mesmo ano reuniu-se novo
concílio em Medina dei Campo, e a seguir um outro em
Salamanca, tendo este a presença de prelados portugueses.
Nessa altura já D. Dinis tinha feito um pacto com Fernando
IV de Castela para não permitir a alienação dos bens dos
Templários, ainda que o papa ordenasse o contrário.
Finalmente, uma vez extinta a ordem e atribuídos os seus
domínios aos Hospitalários, por decisão do Concílio de
Vienne (1312), a que assistiram quatro bispos portugueses,

133
o pontífice exceptuava desta última decisão os le se
situavam na Hispânia.
D. Dinis propôs então criar com eles uma nova ordem
militar, encarregando uma embaixada de tratar deste assunto
junto da Santa Sé (1318). O papa aceitou instituir a Ordem
de Cristo por uma bula datada de 14 de Março de 1319,
atribuindo-lhe a regra de Calatrava, sujeitando-a à
jurisdição espiritual do abade de Alcobaça e colocando a
sua sede em Castro Marim. Em Novembro desse mesmo ano, foi
eleito o primeiro mestre e em 1321 foram aprovados os
primeiros estatutos. O rei seguia, assim, o exemplo do de
Aragão, que, com o património dos templários valencianos,
criou a Ordem de Montesa, embora entregasse o restante do
património aragonês aos Hospitalários. O rei de Castela
incorporou na coroa a maioria dos domínios dos extintos
cavaleiros do Templo.
Como se vê, D. Dinis seguiu em todos estes passos uma
política de nacionalização extremamente coerente e de tal
modo determinada que se pode considerar como precursora de
processos de concentração das forças políticas nacionais
usados depois pelas monarquias da segunda metade do século
XV. A relevância dos aspectos militares é bem patente. Mas
podemos também incluir no mesmo processo de nacionalização
outras medidas de carácter diferente, como a adopção da
língua vulgar nos documentos oficiais da chancelaria, uso
que se generalizou por volta de 1296, e a criação de uma
universidade portuguesa, provavelmente, em 1288.
Estes dois aspectos do seu reinado são demasiado
conhecidos para insistir neles, mas convém sublinhar a sua
relação com a política nacionalizadora aqui indicada. A
adopção do português pela chancelaria não significava
apenas o triunfo de uma língua «vulgar», sobre o latim (ou
seja, da instância civil sobre a eclesiástica, do profano
sobre o sagrado), nem apenas a difusão do processo de
racionalização administrativa, incompatível com a difícil
aprendizagem de uma língua morta, mas também a escolha de
uma língua própria do reino, diferente das restantes da
Hispânia e da Cristandade.
Quanto à universidade, sublinhe-se também o propósito
de criar um corpo de clérigos e de juristas que pudessem
colocar os seus conhecimentos ao serviço da Igreja e da
administração pública nacionais, sem ter de recorrer a
instituições estrangeiras, menos acessíveis e porventura
menos adaptadas às necessidades nacionais. Os primeiros
documentos que dela se conhecem, nomeadamente a sua
transferência de Lisboa para Coimbra, em 1309, mostram que
o rei se interessou bastante por esta instituição.

Aperfeiçoamentos administrativos e controlo económico

A ausência de um estudo crítico sobre a legislação de


D. Dinis impede de apreciar devidamente a sua obra
administrativa. De facto, conhecem-se bastantes das suas
leis, mas em edições defeituosas e por vezes com datas
erróneas ou não datadas. Assim, é difícil tirar partido,
para uma síntese histórica, do corpo legislativo que se lhe
atribui, e que é bastante numeroso. Por outro lado, havendo
conhecimento de que reuniu cortes umas seis vezes, tem de
se reconhecer que não substituiu um único texto dos seus
capítulos, em contraste com o que se passou tanto no
reinado do seu predecessor como nos dos restantes reis até
ao fim da primeira dinastia. Fica a impressão de que, ao
contrário do que aconteceu com seu pai, as cortes serviram
mais para deliberar sobre questões pontuais do que para
emitir legislação fundamental. É provável, de facto, que D.
Dinis se considerasse como detentor de uma capacidade
legislativa própria e não dependente de uma assembleia como
as cortes. Assim, há conhecimento de que as de Évora e de
Lisboa, respectivamente em l282 e 1285, trataram sobretudo
dos acordos com os bispos, a que já nos referimos; as já
mencionadas de 1285, as de Guimarães de 1288 e a de Coimbra
de 1291 deliberaram sobre as inquirições e as reclamações
da nobreza senhorial contra as sentenças sobre as honras
consideradas devassas; enfim, as de Lisboa de 1323
debateram as questões levantadas pela guerra civil.
Note-se, porém, que houve também leis gerais promulgadas em
cortes, como a lei sobre heranças, datada de Coimbra de
1291, e a lei sobre os tabeliães e os selos dos concelhos,
promulgada nas cortes de Coimbra de 1303.
Tanto quanto é possível apreciar o conjunto da obra
legislativa de D. Dinis, parece que ela se caracteriza
sobretudo pelo intuito de assegurar a eficácia do aparelho
administrativo, enquanto destinado a garantir directa ou

134
indirectamente a cobrança de foros e rendas da coroa. A
operacionalidade do aparelho judicial da coroa e o seu
controlo sobre os tribunais inferiores, como instância de
apelo, parecem ser a preocupação que se lhe segue na ordem
de prioridades da política régia. Noutro lugar desta obra
se poderá comparar o progresso da centralização régia com o
dos reinados anteriores. Note-se apenas que a lei de 1303,
há pouco citada, constitui uma inovação de grande
importância, na medida em que atribui à coroa um
instrumento de controlo burocrático dos concelhos,
colocados, assim, na sua estrita dependência. Juntamente
com outras medidas de que falaremos depois, tornava pouco
mais do que formal a autonomia dos concelhos para com o
poder régio. Por outro lado, a organização do tabelionado
parece ter interessado especialmente D. Dinis: além da já
citada lei de 1291, definiu a sua taxação em 1285 e
publicou o seu regimento em 1305.
Para apreciar a política administrativa do património
régio dispomos actualmente de um indicador expressivo: a
enumeração dos forais e aforamentos dionisinos recentemente
estabelecida por Rosa Marreiros (1990). O impressionante
número de 1342 cartas de aforamento por ela contabilizado
(29 por ano, em média) mostra que a formalização dos
contratos rurais, individuais e colectivos se tornou uma
prática sistemática dos mordomos régios. Estudando mais de
perto a sua distribuição no tempo, verifica-se que tal
prática deve ter sido verdadeiramente programada. Com
efeito, foi particularmente intensiva durante os anos de
1281 a 1295 (758 aforamentos, a uma média de 54 por ano),
diminuindo depois a sua frequência durante o período de
1296 a 1317 (532 aforamentos, a uma média de 25 por ano),
descendo, por fim, para um total de apenas 35 nos últimos
oito anos do reinado (4,6 por ano, em média).
Não foi feita uma análise do conteúdo desta importante
massa documental de forma a poder reconstituir a estratégia
administrativa subjacente. Creio, porém, que em muitos
contratos se verificou um significativo aumento das
prestações exigidas, o que deu lugar, por vezes, a
contestações, que a administração régia remetia para a
apreciação em tribunal, com a habitual sentença contra os
foreiros. Além disso, outros indícios dispersos parecem
indicar também uma severa exigência na cobrança de todas as
rendas.
Parece também que o rei se interessou particularmente
com o controlo das comunas judaicas e com as prestações dos
mouros forros. Por outro lado, sabemos que um certo número
de aforamentos e cartas de povoação se destinou a
aproveitar terrenos até ali insalubres, a secar pântanos, a
povoar matas, a fomentar a pesca e a criação de póvoas
marítimas, a aproveitar terrenos antes despovoados. De
facto, é significativo o número de cartas dadas a lugares
pouco habitados, embora não esteja feita a sua
contabilização de forma a definir com clareza a política de
fomento do nosso rei.
Tudo isto mostra, portanto, uma administração muito
mais exigente e, consequentemente, o aumento considerável
dos rendimentos da coroa, que já tinham sido bem explorados
por Afonso III, embora este provavelmente se interessasse
mais por rendimentos monetários e urbanos do que por
rendimentos rurais. Compreende-se, assim, o aumento de
recursos obtidos por D. Dinis. Da sua prosperidade material
e até financeira são indícios, por exemplo, a firmeza da
moeda que mandou cunhar, a capacidade que teve para custear
as guerras com seu irmão D. Afonso, com Castela e com seu
filho e ainda a disponibilidade monetária que lhe permitiu
por mais de uma vez, como vimos, fazer avultados
empréstimos a seu genro Fernando IV e até, a acreditar nas
informações da Crónica de 1419, a seu cunhado Jaime II.
Apesar de se poder talvez interpretar a política de
fomento que mencionámos a propósito dos aforamentos como
primariamente destinada a aumentar os rendimentos da coroa,
é preciso também reconhecer que ela não parece ter tido,
apesar disso, um carácter estreito e meramente exploratório
dos foreiros da coroa. Com efeito, podem-se considerar como
resultantes de uma estratégia administrativa que não se
destinava primariamente a esse fim, mas a estimular a
organização concelhia e as actividades comerciais, por
exemplo, os numerosos forais dados por D. Dinis, assim como
as suas igualmente numerosas cartas de concessão de feiras
francas.
Assim, dos 80 forais que concedeu, quase metade foram
emitidos entre 1282 e 1290, ou seja, pela mesma altura em
que multiplicava também os aforamentos, embora continuasse
ainda a dá-los mais tarde, especialmente entre 1302 e 1305.
A maioria (43) beneficiava povoações transmontanas, embora
concedesse também um número considerável a outras da Beira
Baixa, Alentejo e Algarve. É evidente, portanto, o
propósito de favorecer o povoamento de regiões com

135
[ Legenda de figura.]

Localidades a que foram dadas cartas de foral entre 1248 e


1325.

136
fraca densidade demográfica e em que era necessário
proteger a organização comunitária dos povoados que aí se
implantavam.
Quanto às cartas de privilégio de feiras francas,
outorgou-as sobretudo durante os períodos de 1284 a 1295
(19 das 42 cartas que concedeu) e de 1301 a 1308 (13 das
mesmas 42), ou seja7 em períodos em que a actividade de
organização dos domínios régios por meio dos aforamentos e
de concessão de forais foi igualmente intensa. Se muitas
delas se situam na Beira Alta e em Trás-os-Montes, é
evidente, porém, a preferência por lugares perto das
fronteiras galega, leonesa e castelhana, junto a vias de
penetração e de circulação no interior, como o Douro e a
estrada da Beira, ou em zonas de trocas intensas, como a
Estremadura. A sua contribuição para o desenvolvimento das
trocas em meios rurais foi, portanto, verdadeiramente
efectiva.
Na mesma ordem de ideias, podem-se mencionar outras
medidas pontuais e bem conhecidas, como a confirmação da
bolsa de mercadores portugueses, com entrepostos na
Flandres, na Inglaterra, na Normandia, na Bretanha e em La
Rochelle, em 1293, e a protecção a empresários que se
consagraram à exploração de minas de ferro e de mercúrio
(azougue), em 1282, de ouro, em 1290, e de sulfatos de
alumínio e sódio ou potássio (pedra-ume), em 1301. Como é
evidente, tanto a protecção das actividades comerciais de
mercadores no Atlântico Norte como da mineração revelam uma
percepção da sua importância económica que vai muito para
além do simples fomento da produção agrícola e da
colonização rural segundo moldes tradicionais. Também é
óbvio que a coroa não estava isolada de um movimento mais
vasto, que a administração régia, em todo o caso, acompanha
e contribui para estimular. De facto, poder-se-iam apontar
indícios cada vez mais numerosos da expansão económica em
que Portugal então se insere e que atestam o
desenvolvimento do comércio externo, agora mais bem
protegido contra a pirataria sarracena, sobretudo a partir
de 1320, e o maior volume da circulação monetária.

A política anti-senhorial

Nem tudo, porém, é indício de prosperidade económica,


de aperfeiçoamento administrativo e de concertação social
durante o reinado de D. Dinis. A concentração de poder
político e económico que, evidentemente, conseguiu
permitiu-lhe combater eficazmente o poder senhorial, embora
seja difícil dizer até que ponto se limitou a impedir a sua
natural proliferação ou conseguiu mesmo reduzi-lo ou
atrofiá-lo de maneira efectiva. A luta travada entre a
coroa e os detentores do poder senhorial constitui, de
facto, um dos aspectos mais mercantes do reinado e da
actuação política de D. Dinis. Demonstrando uma grande
capacidade de decisão, utilizou os instrumentos jurídicos
ao seu dispor para fazer prevalecer a sua vontade e
demonstrou que não hesitava em pegar em armas quando era
necessário para atingir os seus objectivos.
O recurso à força armada começou logo no início do seu
reinado, quando, em 1281, segundo parece, atacou seu irmão,
o infante D. Afonso, em Vide, por ter decidido cercar a
vila e transformá-la em castelo sem lhe pedir autorização.
Com efeito, em 1270, Afonso III tinha dado ao infante um
importante senhorio, constituído pelas vilas de Portalegre,
Marvão, Arronches e (Castelo de) Vide. O mais provável é
que D. Dinis tivesse sobretudo pretendido evitar a
constituição de um potentado feudal hereditário,
especialmente perigoso para a coroa por estar situado na
fronteira entre Portugal e Castela, e poder, por isso
mesmo, aliar-se com o reino vizinho contra o seu senhor. O
pretexto para a intervenção do rei neste momento foi, de
facto, o aumento de uma torre que provavelmente já existia
no lugar e a constaição de muralhas em torno da vila.
Não sabemos ao certo se chegou a haver combates.
Conhecemos apenas a composição entre os dois irmãos, feita
por intermédio de dois vassalos procuradores do infante,
que se tinha retirado para Sevilha, para junto de Afonso X,
que provavelmente o protegia. O acordo fez-se em Estremoz
em Fevereiro de 1282 e foi depois ratificado pessoalmente
pelo infante. Além de prometer derrubar as fortificações
militares que tinha mandado fazer, comprometeu-se a ser
armado cavaleiro pelo rei e a ficar seu vassalo durante
toda a vida, excepto se viesse a obter algum reino ou
condado fora de Portugal. O rei, por seu lado, aumentaria o
seu rendimento anual em 35 000 libras, que seriam pagas em
terras, dinheiro ou panos.
Este episódio foi apenas o prenúncio de uma luta muito
mais lenta e insidiosa contra a proliferação senhorial, que
D. Dinis começou a travar no princípio do ano de 1284, não
já contra um grande magnate, mas, de uma maneira geral,
contra todos os senhores que pudessem gozar ilegitimamente

137
de direitos senhoriais, com prejuízo da jurisdição régia.
De facto, inspirado na prática de seus pai e avô, D. Dinis
ordenou a realização de inquirições gerais, mas fê-lo de
uma maneira mais persistente e sistemática do que eles.
Tal como eles, procedeu também a inquirições locais,
ainda antes de ter iniciado os inquéritos, sistemáticos,
como aconteceu, por exemplo, em Silvade, na Terra de Santa
Maria, em Dezembro de 1283. O cadastro geral foi iniciado
em Fevereiro seguinte, no julgado de Gaia e na Terra de
Santa Maria, e prolongou-se até Agosto de 1284,
prosseguindo por várias regiões de Entre Douro e Minho e da
Beira. Ao contrário das inquirições de 1220 e de 1258, que
se destinavam principalmente a registar os foros e rendas
pagos a el-rei, embora mencionassem também aqueles que
tinham sido sonegados por fidalgos, ordens militares ou
senhores eclesiásticos, as de 1284 trataram principalmente
de averiguar de que maneira tinham sido adquiridas e
transmitidas aos actuais detentores as honras dos fidalgos.
Nelas se relatam também problemas de jurisdição, como as
funções, direitos, rendimentos e formas de designação dos
mordomos e juízes régios, assim como casos anteriores de
demandas e conflitos ocorridos entre nobres e
representantes do rei.
Os nobres não ficaram passivos perante esta ofensiva da
administração central. Nas Cortes de Lisboa de 1285
protestaram contra a quebra de imunidades senhoriais,
respondendo o rei, provavelmente, de maneira evasiva. Foi
talvez o clima de contestação criado nesta ocasião que
incitou o infante D. Afonso a desencadear uma verdadeira
revolta contra D. Dinis. Conhecemos mal o motivo imediato
da contenda. Pode ter sido provocada, como se pensa
habitualmente, pelo apoio que o infante terá concedido a
Álvaro Nunes de Lara, que durante o ano de 1286 se revoltou
abertamente contra seu senhor, Sancho IV de Castela. Com
efeito, neste ano assolava com o seu bando povoações
castelhanas junto à fronteira portuguesa, sobretudo na
Beira e em Trás-os-Montes. Um dos combates que então
travaram foi em Alfaiates, ainda pertencente ao reino de
Leão. Nele morreram dois cavaleiros portugueses irmãos do
mordomo do infante D. Afonso, como informa o Livro de
linhagens. A associação do infante com o senhor de Lara
reuniu contra ambos os reis de Portugal e de Castela. D.
Dinis e Sancho IV cercaram D. Afonso em Arronches durante
os meses de Outubro e Novembro de 1287. O infante teve de
se submeter e acabou por celebrar um acordo de paz em
Badajoz em meados de Dezembro. Aí, além de renovar os
compromissos feitos em 1282, obrigava-se a mandar aos seus
alcaides dos castelos de Marvão e de Portalegre que
prestassem homenagem ao rei, como garantia de que não
utilizaria contra ele estas duas importantes fortalezas.
Por outro lado, resignava-se a trocar a vila de Arronches
pela de Armamar, perto de Lamego, sinal evidente de que D.
Dinis estava preocupado com a eventualidade de revolta de
uma praça-forte perto da fronteira. A posição de Armamar,
no interior do reino, oferecia menos perigo.
É provável que D. Dinis pretendesse também, com esta
acção militar, dissuadir qualquer revolta por parte da
nobreza senhorial. Foi, portanto, numa posição de força que
voltou a responder aos protestos dos nobres nas Cortes de
Guimarães, em Junho de 1288, embora procurasse
astuciosamente evitar uma confrontação directa, colocando a
questão no plano do direito. Assim, prometeu designar uma
nova comissão de inquérito para averiguar a legitimidade
das honras criadas desde o tempo de Afonso II; mas
apresentava-a como instância de arbitragem, pois incluía,
além de um tabelião e de um representante do rei, o
advogado bracarense Domingos Pais, um representante do
clero, o prior do Mosteiro de Santa Marinha da Costa, junto
a Guimarães, e outro da nobreza, o cavaleiro Gonçalves
Rodrigues Moreira. Tendo eles jurado perante o arcebispo de
Braga cumprir escrupulosamente a sua missão, começaram o
novo inquérito ainda durante o Verão desse ano,
continuando-o até ao ano seguinte na região de entre Douro
e Vouga, em Entre Douro e Minho e na Beira.
Em vez, porém, de dar satisfação aos fidalgos, a
comissão acumulou no seu relatório toda a espécie de casos
de usurpação dos direitos régios. Denunciava a apropriação
de tributos régios em locais onde os nobres não tinham
bens, as violências que praticavam contra os funcionários
régios, os processos fraudulentos de constituição de honras
novas desde Afonso II, a construção de quintas em terras
não imunes e a instalação de funcionários senhoriais que
exigiam rendas para os seus detentores, etc. O carácter
sistemático do inquérito permite conhecer nominalmente não
só os principais senhores nobres e eclesiásticos, mas
também os pequenos cavaleiros e os representantes de ramos
secundários das maiores famílias, que viviam em todo o
Norte, para além da sena da Estrela. Foram estes os mais
duramente atingidos pelo rigor da averiguação régia.

138
Entretanto, o rei activava as conversações com a cúria
romana e com os bispos para chegar a acordo sobre as
questões em litígio, acordo esse que de facto se celebrou,
como vimos, em Março de 1289. A pacificação das relações
com o clero permitiu-lhe, portanto, publicar solenemente a
sentença judicial sobre o resultado das inquirições de
1288, por meio de uma provisão régia datada de 5 de
Novembro de 1290. Das suas actas foram depois extraídas as
sentenças relativas a diversos grupos de julgados, que os
executores régios se encarregaram de aplicar localmente
ainda durante o mesmo mês de Novembro. Os delegados régios
encarregavam os tabeliães, juízes e mordomos de cada
julgado de convocarem os seus moradores para assistirem a
uma solene assembleia, onde lhes era lida a sentença e as
ordens dadas aos juízes, alcaides e porteiros locais para a
executarem. Ao contrário do que provavelmente acontecera
depois das inquirições de 1220 e de 1258, todo este
processo deve ter dado efectivos resultados, pelo menos
reprimindo a extensão e a multiplicação de honras de
senhores menos poderosos.
Entretanto, coma paralelamente um outro processo acerca
da fortuna da família de Sousa, a mais poderosa
representante da nobreza tradicional portuguesa.
Aproveitando a questão que opunha entre si os herdeiros do
conde Gonçalo Garcia de Sousa, e na qual se apresentou como
árbitro, o rei mandou averiguar da legitimidade dos
direitos senhoriais exercidos nas terras da família. Os
juízes mandaram proceder a uma inquirição. Na Páscoa de
1287, D. Dinis mandou ler os seus resultados em reunião
solene da corte, para a qual foram convocados todos os
interessados; não compareceram os senhores de Bragança e de
Briteiros, cujos direitos foram, por isso, declarados
nulos. Iniciado, depois disso, o julgamento da causa, foi
dada a sentença sobre o destino dos bens em Setembro de
1288. Os herdeiros não foram prejudicados e o rei não
contestou o exercício de nenhuma jurisdição senhorial
obtida por herança, mas o processo mostrou bem que ele se
arrogava o direito de interferir na sucessão do património
senhorial e de demonstrar, na prática, que a confirmação
dos direitos dependia da sua generosidade de rei e de
senhor. Apresentava-se, assim, como a verdadeira fonte
distribuidora de dons e de poder aos membros da sua corte,
que eram, afinal, os mais categorizados representantes da
nobreza senhorial. O seu propósito de dominar uma nobreza
de corte que lhe devesse o poder e o prestígio teve mais
tarde como expressão a nomeação do primeiro conde
territorial português, João Afonso de Albuquerque, feito
conde de Barcelos em Maio de 1298.
As sentenças resultantes das inquirições de 1288-1289
levantaram, como é evidente, maiores protestos, embora a
legitimação de muitas honras, à semelhança do que
acontecera com os Sousas, contribuísse para dividir a
nobreza. Os protestos dos descontentes fizeram-se ouvir de
novo nas Cortes de Coimbra de Março de 1291, sem grandes
resultados. Para de alguma maneira satisfazer a nobreza, D.
Dinis promulgou nessa mesma ocasião.a lei que proibia as
ordens de herdarem bens dos seus professos e de lhes
comprarem propriedades fundiárias ou os receberem em
doação, alegando justamente que as terras dos fidalgos
estavam «minguadas e mui pobres».
Durante os anos de 1295 a 1299, D. Dinis deve ter
estado demasiado empenhado na sua intervenção em Castela,
de que já tratámos, para voltar a ocupar-se da repressão do
poder senhorial. Em Abril de 1299 rebentou a terceira
revolta do infante D. Afonso, que desta vez foi cercado em
Portalegre, entre Maio e Outubro do mesmo ano, com ajuda
das ordens militares de Avis e do Templo. O resultado final
foi, como em 1281 e 1287, a submissão do infante e a troca
dos seus senhorios perto da fronteira castelhana por outros
do interior: recebeu Ourém em vez de Marvão e Sintra em vez
de Portalegre. O acordo foi celebrado em Lisboa em Julho de
1300.
Fortalecido com esta nova vitória, o rei decidiu
completar a sua obra de saneamento do exercício dos
direitos senhoriais no país feudal. Em i 301 mandou
recomeçar as inquirições em quase todo o Minho e em parte
da Beira: depois, em 1303, de novo no Minho e em
Trás-os-Montes; e finalmente, em 1307, nestas mesmas
províncias e na Beira. Entretanto, em Maio de 1305,
promulgava a lei que proibia os nobres de armarem
cavaleiros os vilãos dos concelhos, declarando que só o rei
podia exercer este privilégio.
Os resultados das inquirições provocaram tais protestos
que o rei confiou o exame dos seus resultados a uma junta
de cinco membros, presidida pelo arcebispo de Braga, que
era nada menos do que o cortesão Martim Pires de Oliveira.
Não admira, portanto, que os resultados dos inquéritos e as
sentenças tivessem sido confirmados. Renovaram-se,
portanto, as queixas dos fidalgos e foi nomeado um novo
examinador, desta vez o bispo franciscano do Porto, frei
Estêvão Miguéis, que devia ser considerado mais isento.

139
O resultado foi idêntico. Por isso, os nobres reclamaram de
novo e o rei cometeu a apreciação do caso a dois
comissários, um nomeado por ele, outro pelos nobres.
Verificando-se dificuldades na nomeação do segundo,
arrastou-se o processo até 1315, ano em que os nobres
voltaram a pedir a designação de um cavaleiro para os
representar. Em 1316, o tribunal da corte repetiu mais uma
vez a sentença anterior. Consequentemente, o rei continuou
a encarregar os seus delegados de exigirem os direitos
régios nas honras devassas. Conhecemos, por exemplo, uma
ordem régia de 1321 para o meirinho-mor de Aquém-Douro
reprimir os abusos praticados nas honras novas e na
periferia das honras antigas.
Neste momento o contexto já era diferente. A
resistência da nobreza no plano judicial e por meio da
desobediência aos delegados régios dera lugar à revolta
aberta. Tendo encontrado um líder na pessoa do infante D.
Afonso, herdeiro do trono, muitos deles pegaram em armas
para o apoiar nas suas reivindicações contra seu pai.

A guerra civil de 1319-1324

O clima de dissensões entre o rei e os nobres alterou-


se substancialmente a partir do momento em que se verificou
uma divisão no seio da nobreza de corte e em que, por isso
mesmo, os revoltados da nobreza média e inferior puderam
ter como aliados os descontentes da corte. O primeiro
indício deste facto parece ser o processo que opôs entre si
os dois herdeiros de João Afonso de Albuquerque, seus
genros, o bastardo régio Afonso Sanches e o alferes-mor,
Martim Gil de Sousa, o qual foi sentenciado no tribunal
régio no princípio de Janeiro de 1312. Martim Gil herdou o
título de conde de Barcelos, mas Afonso Sanches ficou com a
maior parte da fortuna, isto é, o senhorio e o Castelo de
Albuquerque. Ofendido com a decisão, Martim Gil exilou-se
em Castela, onde morreu em Novembro desse mesmo ano. O seu
testamenteiro foi Raimundo de Cardona, mordomo-mor do
príncipe D. Afonso, que já tinha casa própria desde que
casara, em 1309. Afonso Sanches, pelo contrário, era
cumulado de favores por D. Dinis, entre eles a nomeação
para o cargo de mordomo-mor da coroa.
A clivagem no seio da alta nobreza acentuou-se em 1316
com o exílio de Raimundo de Cardona em Castela, sem que
saibamos as razões exactas deste facto, que empurrava o
príncipe para o lado dos descontentes. Neste ano, as
contradições eram já suficientemente graves entre o rei e o
príncipe para que o papa João XXII tivesse encarregado o
arcebispo de Compostela de os reconciliar. Em vez disso, a
questão agravou-se com as dissensões entre D. Dinis e os
dois bispos do Porto e de Lisboa, Fernando Ramires e seu
tio frei Estêvão Miguéis, entretanto transferido do Porto
para a capital. O rei apoiava as reclamações do concelho do
Porto contra o bispo e em 1317 dava sentença contra ele.
Neste mesmo ano, sem que conheçamos as razões do facto, o
partido senhorial, que começara a tomar como alvo das suas
críticas o bastardo Afonso Sanches, conseguiu um importante
aliado na pessoa de outro bastardo régio, Pedro Afonso,
apesar de este ser também objecto dos favores régios, pois
fora feito conde de Barcelos (1314) e alferes-mor (1317).
Pedro Afonso, prevalecendo-se talvez destas funções, para
que acabava de ser nomeado, chefiou um combate contra os
partidários de Afonso Sanches e derrotou-os. Caiu assim na
ira régia e teve de se exilar enYCastela. O rei,
entretanto, procurava obter o apoio da Igreja, conseguindo
que o papa encarregasse Geraldo, bispo de Évora, de
admoestar os seus súbditos a acatar a sua autoridade sob
pena de excomunhão.
Em 1318 agravavam-se as dissensões com os bispos de
Lisboa e do Porto. D. Dinis condenou à morte dois
familiares do primeiro e mandou o seu mordomo Vasco Pereira
ocupar as torres e o palácio do segundo. Temendo
provavelmente violências maiores, ambos deixaram o reino e
foram procurar refúgio em Avinhão. Mais tarde o rei acusava
Frei Estêvão de intrigar junto do príncipe herdeiro
incitando-o à revolta.
As hostilidades devem ter começado em 1319, quando o
herdeiro exigiu que lhe fosse entregue a justiça do reino.
Como é evidente, esta reclamação devia ser sugerida por
todos os nobres que se consideravam prejudicados com a
maneira como o rei utilizava o poder judicial para reprimir
os abusos senhoriais. Explorando os favores excessivos do
rei para com o bastardo Afonso, a nobreza apontou o
príncipe como aquele que poderia restabelecer a justiça,
até o convencer a assumir essa pretensão. Segundo a Crónica
de 1419, procurou até apoios externos na pessoa da rainha
D. Maria de Molina, que teria escrito a D. Dinis para lhe
solicitar que acedesse ao pedido de seu filho. Este facto

140
parece confirmar-se com uma notícia da Crónica de Afonso
XI, que menciona um encontro do príncipe com a rainha em
Fuente Aguilero em Maio de 1319.
Este conjunto de acontecimentos provocou a ira de D.
Dinis, que resolveu acusar publicamente seu filho,
apresentando-o já em revolta aberta contra ele, num
manifesto que mandou ler em Santarém em 1 de Julho de 1320
e no qual lhe fazia severas acusações. Em Setembro
seguinte, obtinha nova bula de João XXII para condenar
todos aqueles que incitavam o infante à revolta. É possível
que o bispo de Évora, que já em 1317 fora encarregado de
excomungar os adversários do rei, tivesse então actuado
nesse sentido, fulminando alguém com as censuras
espirituais. Os partidários do príncipe assassinaram-no em
Estremoz em Março de 1321, mostrando assim que não era
possível qualquer espécie de conciliação. Em 15 de Maio, D.
Dinis mandava ler em Lisboa um segundo manifesto acusatório
contra seu filho. Segundo informações posteriores, é
provável que D. Afonso tivesse por essa altura ocupado a
cidade de Leiria por traição do copeiro do rei, cujos bens
foram depois confiscados. Em 17 de Dezembro, D. Dinis
apresenta o seu terceiro manifesto, ainda em Lisboa. Nesta
altura devia já pretender obter o apoio da opinião pública
para a acção armada que, de facto, desencadeou logo a
seguir.
Em resposta, o príncipe apoderou-se de Coimbra, ainda
nesse mês de Dezembro. Após ter entrado também em
Montemor-o-Velho, avançou com as suas tropas em direcção ao
norte, onde ocupou os castelos da Feira e de Vila Nova de
Gaia e o Porto. Depois atacou Guimarães, onde se tinha
refugiado o meirinho-mor do rei, Mem Rodrigues de
Vasconcelos, que dirigiu a defesa da cidade. Quanto ao rei,
depois de ter tomado Leiria e de ter castigado com a maior
severidade alguns dos seus habitantes, avançou sobre
Coimbra, onde estava no princípio de Março de 1322. D.
Afonso abandonou então o cerco de Guimarães para socorrer
Coimbra. Aqui, depois de algumas escaramuças, começaram as
conversações de paz. A iniciativa partiu, provavelmente, da
rainha Santa Isabel, que as conduziu pessoalmente, com
ajuda do conde D. Pedro de Barcelos, entretanto regressado
do exílio em Castela. Para afastar os dois exércitos e
evitar os combates, o rei estabeleceu-se em Leiria e o
príncipe em Pombal. Chegaram finalmente a acordo no mês de
Maio. D. Afonso recebeu o senhorio das povoações que tinha
ocupado, isto é, Coimbra, Montemor, Feira, Gaia e Porto,
mas fez por elas homenagem ao rei.
Estes acontecimentos deviam ter abalado seriamente a
saúde de D. Dinis, então com 61 anos de idade. Em 20 de
Junho, fazia o seu segundo testamento. No ano seguinte
(1323), como era de esperar, os motivos de desentendimento
continuavam a dominar a cena política. Em Outubro
reuniram-se cortes em Lisboa a pedido de D. Afonso; não
tendo, porém, obtido satisfação para as suas
reivindicações, resolveu abandonar a assembleia e
retirar-se para Santarém, onde reuniu um exército com o fim
de conquistar Lisboa. Os seus homens defrontaram-se com os
do rei, que eram sobretudo vilãos do concelho de Lisboa, no
lugar chamado Albogas, perto de Loures. A intervenção da
rainha trouxe novamente a paz.
Durou pouco tempo. Em Fevereiro seguinte, o rei
dirigiu-se de Lisboa a Santarém, onde seu filho continuava
a morar. Nem este nem o conselho da cidade quiseram
recebê-lo. Os homens de um lado e do outro travavam
violento combate, que ficou indeciso. Depois tentaram novo
acordo, que foi assinado em 26 de Fevereiro. O rei aumentou
em 10 000 libras as rendas do herdeiro e comprometeu-se a
retirar o cargo de mordomo-mor a Afonso Sanches. Substituiu
também o meirinho-mor, Mem Rodrigues de Vasconcelos, por
Vasco Pereira e o meirinho da casa real, Lourenço Anes
Redondo, por Lourenço Mendes. Era uma efectiva cedência às
reclamações de seu filho e da nobreza senhorial. Mas todos
deviam desejar o fim das violências. Em Maio de 1324,
chegou a Santarém o arcebispo de Compostela, enviado pelo
papa para confirmar os acordos estabelecidos, tentando
assim, com a solenidade da sua presença, dar um carácter
sagrado à celebração da paz.
D. Dinis não viveu muito tempo depois destes
acontecimentos que em boa parte fazem duvidar da solidez da
política anti-senhorial, por ele conduzida com tanto vigor
e persistência, e que mostram também, pelas humilhações a
que sujeitaram um rei antes disso tão orgulhoso pelo
triunfo do seu poder, a relativa fragilidade dos seus
sucessos anteriores. No último dia do ano de 1324 fez o seu
terceiro testamento. Morreu em Santarém, em 7 de Janeiro de
1325. Muitos dos progressos da supremacia régia não
voltariam mais a ser postos em causa. Mas a guerra civil
mostrara que não era possível acabar facilmente com os
privilégios senhoriais da nobreza.

141
A Sociedade Feudal e Senhorial

Como vimos no capítulo I, a unidade política de


Portugal sobrepõe-se a unidades locais e regionais de
âmbitos variáveis, que anteriormente tinham poucos vínculos
comuns. As diferenças mais notáveis, como vimos também
sumariamente, são aquelas que separam entre si, por um
lado, uma região situada, grosso modo, no Noroeste
português e no litoral até ao Mondego, onde a organização
social e económica se sujeita ao regime senhorial, e, por
outro, o espaço geográfico que abrange o Norte interior e
as Beiras, onde predomina a organização concelhia. $ão
estas duas grandes áreas que nos servem de ponto de partida
para definir as estruturas históricas predominantes na
Idade Média portuguesa. O facto, porém, de a reconquista do
território português ter sido feita predominantemente pela
autoridade régia, com a colaboração intensa dos concelhos
do centro do País e, mais tarde, das ordens militares, que
organizavam os seus domínios sob uma forma concelhia,
apesar da sua sujeição ao senhorio, leva a que o País, a
sul da cordilheira central, adopte também uma forma
semelhante, mesmo quando os concelhos estão dependentes de
senhores nobres, eclesiásticos ou militares.
Ao definir as estruturas fundamentais da sociedade
medieval portuguesa antes do século XIV, é necessário,
portanto, ter em conta os dois modelos fundamentais que as
inspiram. Convém tratá-los separadamente para explicar o
seu funcionamento normal. As variantes locais e regionais
que na realidade histórica se observam devem ser
interpretadas em função de cada um dos modelos
predominantes na respectiva área.
Para compreender, porém, as peculiaridades tanto da
organização senhorial como da organização concelhia
portuguesas é indispensável situar desde logo uma e outra
no meio geográfico em que se desenvolveram, e que
imprimiram a ambas uma fisionomia particular. Partiremos,
portanto, em ambos os casos, de uma definição do espaço em
que cada uma delas se tornou hegemónica. Passaremos,
depois, a descrever os referidos modelos. Uma vez que as
principais diferenças que separam os dois tipos de
organização se situam no nível social, mais do que no
económico ou no cultural, será também esse o nível
privilegiado na exposição que se segue.

O espaço

O Entre Douro e Minho

Recordemos as principais características geográficas da


área onde o regime senhorial se implantou de maneira mais
completa. Fortemente acidentada a poucas dezenas de
quilómetros da costa, subindo com rapidez a altitudes de
centenas de metros nas terras interfluviais, entrecortada
por numerosos cursos de água, alguns deles com caudais
abundantes, é também beneficiada pelas chuvas e coberta de
nuvens durante muitos dias do ano. É a mais húmida de todo
o território português. Encostada à barreira de serranias
que a separam do interior transmontano e abrangendo as
colinas que até elas sobem desde as planícies e areais da
costa, constitui, de facto, uma grande área de condensação
propícia à proliferação espontânea de espécies vegetais
como o carvalho alvarinho, o castanheiro, o ulmeiro, o
choupo ou o pinheiro-bravo, favorável, nos numerosos vales,
ao aparecimento de prados e à cultura intensiva de cereais
de regadio, de plantas hortícolas e de árvores de fruto.
Terra fecunda, portanto, para plantas, animais e homens.

142
E, por outro lado, uma região cheia de compartimentos
naturais, o que, sem prejudicar a concentração demográfica,
permite, ao mesmo tempo, a disseminação das unidades de
exploração de pequenas dimensões pelos campos férteis, onde
se pode praticar a cultura intensiva de uma grande
variedade de produtos agrícolas. Mas os montes e colinas
que os dividem, semeados de penedos graníticos, que
outrora, na Idade de Ferro, estavam povoados de castros,
podem também sustentar os rebanhos de cabras e ovelhas,
que, assim, não necessitam de percorrer grandes distâncias
desde o curral familiar até às pastagens naturais e a ele
podem regressar ao cair da noite. Isto, pelo menos, quando

[Legenda de figuras.]
Principais estradas, castelos, solares e mosteiros de Entre
Douro e Minho.
Castelos — 1. Pena da Rainha; 2. Froião; 3. Cerveira; 4.
Melgaço; 5. S. Martinho; 6. Nóbrega; 7. Bouro; 8. Lanhoso;
9. Celorico de Basto; 10. Aguiar de Sousa; 11. Monte
Córdova; 12. Baião; 13. Castelo de Paiva; 14. Benviver; 15.
Guimarães; 16. Vermoim; 17. Castelo da Maia; 18. Penafiel
de Bastuço; 19. Santo Estêvão; 20. Neiva; 21. Faria; 22.
Feira.
Torres e solares — 1. S. Julião da Silva; 2. Azevedo; 3.
Parada; 4. Penagate; 5. Tougues; 6. Faia; 7. Lumiares; 8.
Portocarreiro; 9. Freitas; 10. Belmir; 11. Urro; 12.
Soverosa; 13. Baguim; 14. Palmeira; 15. Cunha; 16. Aboim.
Mosteiros — 1. Bravães; 2. Sanfins de Friestas; 3. Ganfei;
4. Barbudo; 5. Carvoeiro; 6. S. Salvador da Torre; 7. S.
Romão da Neiva; 8. Várzea; 9. Manhenle; 10. Vilar de
Frades; 11. Refojos do Lima; 12. Rendufe; 13. Bouro; 14.
Fonte Arcada; 15. Refojos de Basto; 16. Travanca; 17.
Pombeiro; 18. Vieira; 19. Refojos de Riba d’Ave; 20. Santo
Tirso; 21. Vairão; 22. Vila Boa do Bispo; 23. Paço de
Sousa; 24. Pendorada; 25. Soalhães; 26. Tuias; 27., Arouca;
28. Cárquere; 29. Salzedas; 30. Tarouca; 31. Cete; 32.
Moreira da Maia; 33. Leça; 34. Rio Tinto; 35. Landim: 36.
Tibães; 37. Vilela; 38. Grijó; 39. Pedroso.

143
a erosão não escalvou as zonas superiores do monte e as
tornou incapazes, mesmo, de alimentar o gado miúdo. Porque
até aí chegou muitas vezes o aproveitamento agrícola,
desbastando a vegetação natural, mas entregando as terras
altas à erosão e a uma consequente esterilidade.
Nos lameiros dos lugares baixos pode pastar
tranquilamente o gado bovino. Em alguns vales encontram-se,
mesmo, férteis e largos alvéolos, planos e bem irrigados, e
numerosas agras, que se prestam à divisão em campos abertos
e ao cultivo comunitário de cereais de regadio.
Protegido a leste pelas altitudes das serras da Peneda,
Laboreiro, Gerês, Cabreira, Marão, Montemuro e Gralheira, o
Entre Douro e Minho é, pois, recortado em compartimentos
naturais pelos vales dos rios, que correm no sentido
leste-oeste e que possuem caudais abundantes, e pelos
numerosos rios e ribeiros que neles confluem. Enquanto
alguns deles abrem largos vales na massa granítica e se
espraiam em planícies, sobretudo mais perto do litoral,
outros correm apertados entre fundas escarpas. Em alguns
casos, os rios associam-se com os seus afluentes principais
para formarem zonas «mesopotâmicas» perto das suas
confluências, como acontece naquelas que a própria
nomenclatura medieval recorda, como em Entre Homem e Cávado
e em Entre Ambal as Aves (entre Ave e Vizela).
Assim, a região minhota dos vales, planícies e colinas,
extremamente recortada e compartimentada, contrasta com a
das montanhas que a circundam e penetram, permitindo que
possam viver perto umas das outras comunidades bastante
diferentes entre si: de um lado, as que praticam uma
agricultura intensiva e formam zonas demográficas
extremamente densas, embora a maioria dos seus componentes
se distribua por pequenas unidades de exploração familiares
e autónomas, elas próprias compostas por retalhos dispersos
de campos muito divididos; do outro, as que vivem em boa
parte do pastoreio de gado miúdo, em terras pobres e
inóspitas, onde se juntam em aldeias, praticam uma
agricultura intermitente apenas em algumas épocas do ano,
necessitam de manter laços de forte solidariedade colectiva
para organizarem o trabalho e preservarem os mais caros
instrumentos de produção, como o forno, a eira, o moinho e
o lagar. A solidariedade das comunidades de montanha, que
ao mesmo tempo lhes confere a resistência e a estabilidade,
ainda há poucos anos mantinha, nas regiões mais altas e
acidentadas de Entre Douro e Minho, vestígios claros de
usos comunitários, como o moinho e o forno do povo, a
levada comum e a vezeira do gado, e dava grande importância
à caça em grandes grupos, organizada colectivamente pelos
homens de várias aldeias vizinhas (como no Soajo).
No Entre Douro e Minho senhorial, porém, as primeiras
são as predominantes. As segundas situam-se sobretudo na
periferia, isto é, mais perto das serras, que rodeiam toda
a região a leste. Aparentemente, é naquelas e não nestas
que mais cedo se implanta o regime senhorial. Dir-se-ia que
a densidade demográfica e a fertilidade do solo permitiram
desde cedo a criação de excedentes de produção e a sua
apropriação por uma minoria e, consequentemente, uma
hierarquização social, que não seria possível nascer
espontaneamente nas regiões onde o rigor das condições
naturais obrigava a maiores nivelamentos. A dispersão dos
cultivadores nos campos, organizados em explorações
familiares autónomas, não é propícia à criação de laços
comunitários nem à resistência a formas de apropriação de
uma porção do produto por parte de quem exerce alguma forma
de autoridade.

A circulação

A concentração demográfica, a compartimentação e a


proximidade das comunidades entre si, a dispersão do
habitat foram, decerto, condições que levaram à implantação
em Entre Douro e Minho de uma apertada rede de
comunicações, quer os viajantes, mercadores, almocreves ou
peregrinos andassem a pé ou usassem os transportes
terrestres, quer preferissem os barcos, que podiam, com
calado baixo, navegar pelos rios. De facto, as vias
terrestres e fluviais cruzam-se.em todas as direcções. Tudo
aqui se afadiga e agita como numa colmeia.
Este conjunto, no entanto, estava, durante uma época de
transportes difíceis e de raio curto, excepto a dorso de
cavalo ou mula, e por isso com carregamentos reduzidos,
relativamente isolado do resto da Península. A penetração
mais fácil fazia-se pela zona do litoral, atravessando
sucessivamente os rios que desaguavam no Atlântico, pelas
vias que para sul o ligavam às cidades do litoral, junto à
foz do Mondego, do Tejo ou do Sado, e para norte com as
terras da Galiza, em muito parecidas com as do Entre Douro

144
e Minho. As velhas vias romanas que saíam de Braga em
direcção a Astorga parece não terem sido muito frequentadas
durante a Idade Média, pelo menos até ao fim do século XII.
As montanhas a leste formavam, de facto, uma barreira
natural, que não facilitava os contactos com o interior da
Península.
Os camponeses e senhores da região puderam assim
desenvolver com uma certa autonomia as relações sociais que
os uniam entre si, sem grandes interferências de poderes
externos, nem da parte dos chefes árabes ou moçárabes do
Sul, nem da parte dos soberanos asturianos e leoneses, os
quais se contentaram, no primeiro caso, com incursões
esporádicas e, no segundo, com a colocação na zona de
delegados seus, que sobre ela exerciam uma vigilância
superficial. Os maiores contactos estabeleceram-se com os
senhores galegos, ora em relações de pacífica vizinhança,
ora com larga abertura à implantação aqui de excedentes
populacionais vindos do Norte. Assim o impuseram as
condições em que se fazia a comunicação com o exterior.
No interior, porém, a circulação parece ter sido sempre
intensa. É o que se depreende, desde logo, pela densidade
da rede viária e fluvial, atestada já no século XII. Ela
orienta, como é óbvio, a organização do espaço, canaliza ou
condiciona os vectores da dominação senhorial, é utilizada
estrategicamente pelos diversos poderes regionais em
presença para manterem as posições adquiridas ou
conquistarem posições novas. Mas a própria densidade humana
e a extrema fragmentação da propriedade fundiária permitem
associações e oposições de tal modo complexas e variadas
que a história das famílias desta região está em constante
mutação e em recomposições incessantes. A multiplicação de
ramos colaterais é fácil: verifica-se o aparecimento de uma
variada gama de níveis de fortunas, desde aquilo a que
poderíamos chamar um proletariado nobre de pequenos
cavaleiros quase miseráveis, até às famílias mais poderosas
e respeitadas.
Mas o excesso de gente é também uma característica
dominante e permanente. Por isso é necessário desenvolver
estratégias sucessórias que rejeitam para o exterior uma
parte dos membros da comunidade ou das famílias nobres e os
obrigam a procurar fora da terra a subsistência ou o
sucesso. As diferenças de fortuna e de hierarquia facilitam
as solidariedades e os compromissos pessoais, os serviços
vassálicos e as protecções senhoriais, a constituição de
séquitos formados por parentes pobres, mas também a
emigração, para longe, daqueles que não se querem sujeitar
a uma dependência doméstica sem futuro nem glória, ou,
entre os camponeses, os que a terra estreita já não pode
sustentar.
Neste espaço fervilhante de gente e de vida
estabelecem-se alguns pólos de dominação. A sua supremacia
traduz-se no poder sobre áreas especialmente férteis ou
mais densamente habitadas e no controlo das vias de
comunicação que unem essas áreas entre si. Os seus
detentores extraem o Poder da abundância de bens ou de
homens concentrados nos lugares que dominam ou que circulam
pelos caminhos mais frequentados. Num nível superior, já
próximo do poder régio, podem-se também considerar os pólos
que dominam as vias de comunicação, por assegurarem o
exercício de um poder supra-regional, isto é, por
permitirem exercer o Poder a maiores distâncias, por
intermédio de uma rede de pólos que transmitem ao longe as
ordens do senhor. É, pois, necessário apresentar
concretamente as vias de comunicação, os castelos e os
solares e verificar como sé conjugam entre si os fulcros e
segmentos deste conjunto.
A observação da realidade depressa mostra, no entanto,
que os pólos de dominação não se situam apenas nos solares
e castelos, mas também nas cidades e povoações mais
importantes, apesar de o Entre Douro e Minho desta época
ter uma componente urbana reduzida. Nestas povoações
prevalecem então os bispos com o seu cabido e os
mercadores. Estes pertencem àquele pequeno grupo de homens
que não se integram nas estruturas feudais, mas o seu
domínio sobre a circulação de bens e os instrumentos de
troca torna a sua existência necessária. Os senhores
aceitam as suas organizações e liberdades; eles adaptam-se
às estruturas feudais.
Mais adaptados a estas, formando mesmo uma das suas
componentes mais importantes, são os mosteiros, não menos
detentores do poder regional do que os castelos e solares,
apesar da sua natureza diferente, uma vez que se baseia na
sua função religiosa e simbólica e não na força bruta dos
seus ocupantes.
O mapa da página 142 é, sem dúvida, mais eloquente do
que qualquer explicação. Nele se pode ver como se conjugam
a rede dos castelos com a dos caminhos, a das torres e
solares com a dos mosteiros e povoações, e de tudo isto com
as condições físicas e climáticas que o espaço

145
minhoto lhes impõe. Sublinhemos apenas a importância dos
principais pólos que orientam a circulação, procedendo a
uma contagem do número de vias que se cruzam nas principais
povoações, usando, para isso, os dados recolhidos em 1978
por C. A. Ferreira de Almeida. Pode mesmo proceder-se a uma
hierarquização de povoações, em função do número total de
vias que as servem (cf. o quadro abaixo).
Cruzamento de vias fluviais e terrestres nas principais
cidades do Norte de Portugal.

Povoações - Vias principais - Vias fluviais – Vias


secundárias - Total
Porto – 6 – 2 – 2 - 10
Guimarães – 3 – 2 – 5 - 10
Braga – 5 – 2 – 2 - 9
Ponte de Lima – 3 – 2 – 4 - 9
Ponte do Porto – 3 – 2 – 3 - 8
Penafiel – 3 – 2 – 1 - 6
Valença – 2 – 2 – 2 - 6
Monção – 2 – 2 – 2 - 6
Ponte da Barca – 2 – 2 – 2 - 6
Barcelos – 2 – 2 – 2 - 6
Entre-os-Rios – 1 – 3 – 2 - 6
São João da Madeira – 2 — - 3 - 5
Caminha — - 2 -2 - 4
Amarante – 2 – 2 - — - 4
Marco de Canaveses – 1 – 2 – 1 - 4

Os castelos, as povoações e a organização social do espaço


Observe-se também neste mapa a posição dos solares e
castelos e a sua relação, por um lado, com os caminhos e,
por outro, com o relevo. Depressa se notará que os castelos
se situam geralmente nos montes e colinas que dominam os
vales e os caminhos. Os seus detentores aproveitam as
ruínas dos antigos castros da Idade do Ferro para
construírem os seus lugares-fortes, vigiarem as estradas,
se defenderem de ataques inimigos. A constelação das torres
e castelos não coincide, portanto, com a das encruzilhadas.
Muitos deles permanecem ainda em meados do século XIII como
centros administrativos ou militares das circunscrições
medievais e dão-lhes os respectivos nomes. Mas os senhores
não os habitam permanentemente. Em alguns casos, sabemos
concretamente que se fixaram e tomaram o nome de «honras»,
situadas em lugares mais amenos e acessíveis. É provável
que se deva distinguir uma fase primitiva, em que ocupavam
os castros, outra, posterior, em que aí deixavam as suas
guarnições e iam viver para paços e quintãs ou centros
dominiais. A primeira metade do século XIII parece ser a
época de transição. Durante a segunda metade deste século,
os castelos isolados devem ter sido completamente
abandonados. A partir daí, o domínio de cada circunscrição
territorial faz-se a partir de centros urbanos e não das
fartalezas roqueiras.
Mas já nos séculos XI e XII há precedentes desta
organização do espaço, não em torno de castros, mas de
povoações que dominam o território circundante, então
chamado «termo». Olhando para o mapa das terras e julgados
traçado a partir das inquirições de 1220, nota-se o curioso
fenómeno de encontrar os termos concentrados numa mancha
que abrange São João de Rei, Lanhoso, Braga, Guimarães,
Refojos de Riba de Ave, Ferreira de Aves, Aguiar de Sousa,
Felgueiras e Lousada. Pelo contrário, em torno desta
mancha, para o litoral, a norte do Cávado, e no vale do
Tâmega, os inquiridores usam o nome «terra». Os julgados
são ainda raros, apenas dois, mas situam-se junto à
referida mancha. Verificando, por outro lado, que os termos
se associam menos frequentemente a castelos do que as
terras, pode-se perguntar se não designam preferentemente
circunscrições dependentes de povoações do que de castelos,
apesar de encontrarmos algumas excepções significativas a
esta regra.

146
Por outro lado, nem sempre os castelos dão o nome à
terra. Assim acontece, por exemplo, com Aboim, centro da
terra da Nóbrega, com Arnóia, centro da de Celorico, com
Aguiar, centro da de Sousa, com Aradros, centro da de
Benviver, com Monte Córdova, centro da de Refojos da Riba
de Ave, com Monte Castro, centro da de Gondomar, etc.
Sinal, porventura, de que estas terras existiam antes de
nelas dominarem os respectivos castelos. Ou seja, eram
talvez áreas sem centros definidos, como os vales
existentes na zona do Cantábrico ao Douro, cujo carácter
primitivo tem sido bem acentuado por Garcia de Cortázar. O
facto de se situarem na periferia da referida mancha de
termos de 1220 parece confirmar esta hipótese.
Assim, os castros e castelos contribuíram para a
ordenação do território segundo áreas de influência que se
sobrepuseram a um ordenamento anterior, impondo o domínio
senhorial a espaços que antes se organizavam segundo
critérios diferentes.
Mas a própria rede de castelos, como já apontei de
passagem, deu lugar a outra forma de dominação. Como vimos,
situavam-se normalmente no cimo de montes, à semelhança e
até nos mesmos lugares que os antigos castros. Eram,
portanto, lugares inóspitos e foram quase sempre de tal
modo abandonados em épocas posteriores que é hoje difícil
fixar com certeza o lugar onde se situavam. Pelo contrário,
as honras estabelecem-se em lugares amenos e muitas vezes
até distantes dos castelos que as respectivas famílias
senhoriavam como tenentes. Foi o que aconteceu, por
exemplo, com a da Silva em relação com o Castelo de Fraião,
com a da Maia, que devia viver em Santo Tirso, em relação
com Monte Córdova, com a de Bravães, que senhoriava Pena da
Rainha, com a de Penagate, pertencente aos senhores de
Bouro.

Povoamento

Apesar de, em geral, o Entre Douro e Minho ser


densamente habitado, não se deve esquecer que mesmo dentro
do seu território se encontram diferenças consideráveis.
Olhando, por exemplo, para a rede de igrejas cartografadas
por Avelino de J. da Costa para a arquidiocese de Braga, e
por Cândido dos Santos para a diocese do Porto, verifica-se
que ela atinge a sua densidade máxima numa mancha que
coincide exactamente com a das circunscrições designadas em
1220 por «termos», por oposição à área das «terras». Note-
se também como aqueles têm uma superfície bastante mais
reduzida do que estas. É, portanto, evidentemente, a mais
densamente habitada desde antes do século XI.
Está situada entre a zona das montanhas e o litoral e
coincide com a superfície de solo granítico delimitada a
sudoeste pela faixa silúrica xistosa que vai da foz do
Cávado à do Tâmega e se prolonga, rodeada por afloramentos
devónicos, até às faldas da serra de Montemuro. Corresponde
também, aproximadamente, à zona onde a pluviometria regista
médias anuais entre 1500 mm e 2000 mm, podendo subir acima
dos 2000 mm em alguns lugares, mas nunca descer abaixo dos
1000 mm. Aqui se encontram frequentemente, entre os
afloramentos graníticos, terras fundas abundantes em húmus.
A densidade de igrejas dos mesmos mapas volta a
concentrar-se para lá da faixa xistosa, entre a foz do Ave
e a foz do Douro, ou seja, na antiga terra da Maia, até ao
Porto, onde voltam a aparecer os solos graníticos. Este
tipo de terras prolonga-se para sul do Douro, até às
montanhas do Vouga, mas aí aliadas já aos xistos.
Uma conjugação semelhante, isto é, com pluviosidade
alta, solo granítico e terras fundas, embora a altitudes
superiores às do Minho, encontra-se nas antigas terras de
Santa Maria, Castro Portela, Paiva, Arouca, Zebreiro,
Penafiel de Covas e Lafões, até Lamego e Viseu. A acreditar
na carta dos antigos territórios portugueses traçada por
Amorim Girão e Paulo Merêa em 1943, é também aquela onde a
concentração de lugares é maior ainda antes do fim do
século XI.

A terra e o regime senhorial

Foi nestes autênticos viveiros humanos que se


desenvolveu o regime senhorial. Sustentou a prosperidade de
uma grande quantidade de senhores, que sujeitaram pela
posse das armas e o serviço de poderes públicos uma
numerosa massa de homens dedicados à agricultura intensiva
e se apropriaram, para sustentar a sua superioridade, da
capacidade produtiva dos camponeses. Nas regiões mais
densamente habitadas encontra-se uma enorme quantidade de
nobres, mas frequentemente de nível médio ou inferior. Na
periferia, os senhores são mais poderosos. O seu poder

147
parece, portanto, não se basear tanto na posse de terras de
cultivo, mas no domínio público sobre territórios vastos,
sustentado por forças militares capazes de percorrer
rapidamente longas distâncias a cavalo, de exigir
prestações pela administração da justiça e pela protecção
militar, não só dos agricultores, mas também dos pastores e
caçadores das áreas montanhosas, como aconteceu
primitivamente, decerto, com os senhores de Sousa, de
Bragança, de Baião e de Ribadouro. Já os da Maia talvez
devessem a sua prosperidade ao poder militar, que lhes
permitia fazer incursões para sul, em terras não cristãs
(como aconteceu também com os de Ribadouro), e ao domínio
sobre as vias de comunicação em torno do Porto. É mais
difícil imaginar como se teria implantado o regime
senhorial na região de povoamento mais denso. Talvez a
acumulação de muitas famílias nobres sobre esta zona
especialmente fértil e povoada neutralizasse os poderes
concorrentes e impedisse a emergência de famílias mais
poderosas. Mas a sorte dos camponeses dependentes nem por
isso foi aqui melhor, pois a própria magreza de recursos
dos senhores os fazia, então, mais exigentes. Outra
característica desta área parece ser a presença de um
número considerável de comerciantes, burgueses e
intermediários, que activa as trocas, pode investir os seus
lucros na terra e contamina, com a sua independência das
estruturas feudais, as relações de dominação dos camponeses
pelos senhores.

O regime senhorial fora de Entre Douro e Minho

Algumas comunidades rurais conseguiram ver reconhecido,


no século XIII, o privilégio de escolherem elas próprias os
seus protectores, formando beetrias, frequentes na zona
mais acidentada do Marão e no vale médio do Douro. Outras,
sobretudo em Trás-os-Montes, mantiveram a sua organização
comunitária até ao fim do século XII ou até mais tarde, mas
acabaram por ter de se submeter à vaga invasora dos nobres,
que então se apropriaram dos direitos senhoriais. Aconteceu
o mesmo na Beira Alta, principalmente pela mão dos monges
cistercienses de Tarouca e de Salzedas e de senhores como
os Cunhas e Lumiares. Nas faldas ocidentais da serra da
Estrela estabeleceram-se cavaleiros de Coimbra, uns de
origem estrangeira (francos ou asturianos), outros da
própria região (moçárabes). Mais tarde os Crúzios, o cabido
e o bispo de Coimbra obtiveram também aí os seus coutos e
senhorios. Depois, mais a sul, o rei entregou aos
Templários muitas das terras calcárias que prolongam o
sistema central até à serra dos Candeeiros, à volta de
Pombal, e ainda uma extensa região no vale do Zêzere, com
algumas férteis lezírias do Ribatejo, para assegurarem a
defesa de Lisboa e Santarém. Aos Cistercienses de Alcobaça
permitiu a criação de grandes senhorios sobre terras até
então mal cultivadas e que eles tornaram intensamente
produtivas.
A vaga senhorial avançou ainda para sul do Tejo, ao
abrigo das concessões às ordens militares ao serviço da
guerra fronteiriça, sem dar ainda lugar, antes do fim do
século XIII, a uma organização orientada para a produção.
Depois da conquista de Alcácer do Sal, em 1217, a vasta
planície alentejana tornou-se zona de latifúndios,
pertencentes sobretudo à Ordem de SantTago, no Alentejo
ocidental e no Baixo Alentejo. Sob a sua orientação, ou sob
a dos monges militares do Crato, de Évora e do Templo, o
ordenamento senhorial pôs-se ao serviço da pecuária
transumante e talvez já, em alguns lugares, da produção de
cereais e outros géneros para o mercado.
O rei, por sua vez, também se adapta ao regime
senhorial. Estende as-exacções senhoriais propriamente
ditas aos «herdadores», isto é, aos descendentes de
cultivadores livres ou proprietários de alódios que ainda
viviam à margem dos senhorios, exige deles prestações de
origem pública como se fossem senhoriais (a fossadeira, a
voz e a coima), confia aos mordomos e juízes, depois aos
meirinhos, a administração senhorial destas numerosas
terras, organiza as inquirições para fixar os seus direitos
senhoriais. O rei torna-se, por isso, o promotor de facto
da expansão senhorial, ou melhor, orienta-a para seu
benefício, embora o facto de ser responsável pelo poder
público altere, até certo ponto, a natureza das suas
relações com os dependentes. Este facto, que impõe, afinal,
o mais sério obstáculo à senhorialização, revela-se
sobretudo nas cidades e centros urbanos, onde a concessão
de cartas de foral preserva ou cria instituições de direito
público, que, no primeiro caso, prolongam organizações
comunitárias anteriores e, no segundo, as imitam, fazendo
de todos eles a principal base do processo de centralização
régia.
Levados, primeiro, pela necessidade de obter a
colaboração dos dependentes na organização militar,
enquanto foram terras de fronteira, depois pela
prosperidade dos concelhos urbanos dependentes do rei ou
pelo interesse em atrair povoadores a terras maninhas,
também os priores das ordens militares, os eclesiásticos

148
e alguns leigos que no Centro e Sul se fixaram concederam
cartas de foral idênticas às que o rei atribuía, garantindo
assim uma certa autonomia aos respectivos municípios,
estimulando as suas actividades produtivas e mantendo a
uniformidade regional das instituições concelhias. Assim se
criou um regime híbrido, em que se associa o regime
senhorial com o concelhio.

Os senhores

Recordemos a visão global que apresentámos no volume


anterior acerca do processo que desembocou na implantação
do regime senhorial. No fim do século XI, já estava
profundamente enraizado em Entre Douro e Minho e começava,
provavelmente, a expandir-se para leste e para sul. Ao
tratarmos do espaço senhorial, no parágrafo anterior,
expusemos também rapidamente o processo de extensão
geográfica do mesmo regime, em detrimento de formas de
organização comunitária predominantes no interior e no
Centro do País. Para se compreender o seu funcionamento
durante os séculos XII e XIII, temos agora de examinar mais
de perto a natureza da superioridade dos privilegiados.
Chamemos-lhe «nobres», apesar de a acepção jurídica deste
termo não ser evidente nesta época. Para o conseguirmos,
creio que o melhor caminho será averiguar o sentido da
terminologia então usada para designar os privilegiados:
infanzones, filii benenatorum, boni homines, nobiles,
barones, próceres, maiores palatii, milites, cabalarii,
domni, seniori. Verificaremos assim que as bases da
superioridade social estão no sangue, na força das armas,
no poder económico e na autoridade sobre os outros homens.
Poderemos depois enumerar as principais famílias de que há
notícia nestes séculos e as áreas onde dominam. Finalmente,
ver como se associam aos que não possuem força militar, mas
fazem parte de uma outra instância detentora de
superioridade social e que a eles é parcialmente
assimilada: o clero.

O sangue

Como vimos no volume anterior, no fim do século XI já


existiam no território de Entre Douro e Minho senhores cuja
superioridade social não supõe necessariamente o exercício
de uma autoridade delegada pelo rei, mas que exercem
poderes pessoais transmissíveis aos descendentes. Creio que
a designação mais adequada a este grupo de nobres é a de
«infanções», ao menos na medida em que estes se opõem aos
condes e em que a categoria se transmite pelo sangue. Já
vimos o significado militar e vassálico da palavra antes de
meados do século XI. Mais tarde, porém, passa a designar os
membros da nobreza de sangue, isto é, aqueles cuja
categoria se transmite pelo nascimento. O termo, aplicado a
pessoas concretas, é raro em Portugal em documentos da
prática jurídica, mas encontra-se como designação evidente
de uma categoria privilegiada nos textos foralengos e
aparece depois, nas composições trovadorescas, para indicar
fidalgos de condição inferior ou mesmo francamente
desprovidos de recursos, sobretudo por oposição aos
fidalgos da corte.
Até meados do século XII, é mais corrente estes nobres
serem chamados filii benenatorum, sobretudo no escatocolo
dos documentos, quando referem os componentes de uma
assembleia. O seu significado é muito provavelmente
semelhante ao de «infanções». Todavia, quase só se encontra
ao norte do Vouga e parece usar-se para evitar qualquer
ideia de dependência vassálica daqueles a quem se aplica.
Tanto uma expressão como outra foram praticamente
abandonadas desde que apareceu o termo «fidalgo», mais
próximo da linguagem vulgar. Este surge no princípio do
século XIII e torna-se depois o mais corrente para indicar
os nobres por nascimento.
Comparemos o uso destes vocábulos que se inspiram na
transmissão da categoria social pelo nascimento com aqueles
que sugerem outro tipo de superioridade. Assim, boni
homines, de uso mais frequente e mais persistente do que
filii benenatorum, encontra-se quase exclusivamente a sul
do Douro. Pressupõe que o Poder não é necessariamente
herdado, mas próprio, e pode referir-se a pessoas de todas
as categorias, desde os cavaleiros vilãos dos concelhos até
aos condes. O seu emprego regista-se até às primeiras
décadas do século XIII.
O uso de nobilis é mais complexo. Por um lado, começa
por se usar como adjectivo e pressupondo o par antitético
nobilis-ignobilis. Num reduzido grupo de documentos de
Coimbra da década de 1120 e noutro de Braga da mesma época

149
aparece como substantivo, mas não há a certeza de se
restringir a uma categoria social com privilégios
específicos. Este sentido pode-se presumir já iso para o
fim do século XII e é precedido da expressão nobilis homo
como sinónimo de «rico-homem», embora não se chegue a
generalizar com este sentido. Num considerável número de
textos parece reservar-se a nobres da corte régia ou
condal. Mas mesmo nos séculos seguintes pode continuar a
empregar-se a palavra como adjectivo; é usada
preferentemente por escribas mais cultos, cuja linguagem se
aproxima da literária.
Os outros termos usados para exprimir a superioridade
social podem ser reservados aos nobres ategoria superior
que acompanham a cúria régia, como barones, proceres e
maiores palatii, mais o uso dos dois últimos é excepcional
e o do primeiro limita-se a documentos datados entre 1086 e
1160.
Do conjunto destes testemunhos depreende-se que existe
um pequeno grupo de homens que está no topo da escala
social, perto do poder régio, e que representa o modelo
para todos os outros da mesma classe, mas situados mais
abaixo. Estes são, obviamente, muito mais numerosos e
formam um grupo que se opõe ao vulgo e transmite a sua
superioridade pelo sangue. Sendo assim, não admira que os
forais, numa linguagem mais jurídica e classificativa,
oponham os «infanções» aos «cavaleiros» (vilãos), mesmo
quando atribuem a estes privilégios semelhantes aos
daqueles, dentro do espaço do respectivo concelho.

As armas

Os termos que designam a profissão das armas, miles e


cabalarius, podem também usar-se com uma conotação social.
Em forais do conde D. Henrique, particularmente no de
Coimbra de 1111 e nos seus derivados, usa-se o primeiro
para indicar cavaleiros vilãos; mas, com este sentido, e
sem qualificativo, torna-se raro em documentos mais
tardios, ou é preterido por cabalarius. Desde a primeira
década do século XII, é corrente encontrar, sobretudo a sul
do Douro, o termo miles com os qualificativos de bónus,
cives, per naturam, vilanus, minor, ou melior, como
equivalente de potens, ou como oposto a tributarius ou
apedon; o que quer dizer que durante o século XII o termo
não é por si só sinal de «nobreza», mas que indica
sobretudo o exercício das armas e a capacidade de coagir,
com razão ou sem ela. Os qualificativos permitem, então,
quando o contexto não é claro, distinguir os cavaleiros
nobres dos que o não são. Mas estes usos vocabulares
pressupõem a tolerância de uma certa osmose entre uma
categoria e outra, pelo menos a sul do Douro, isto é, na
área próxima da fronteira com o Islão, onde a guerra torna
mais fácil a ascensão social.
Quando o termo miles se associa a um possessivo ou a um
genitivo, indica claramente o cavaleiro vassalo de outrem;
encontramos estes indivíduos desde o segundo quartel do
século XII, não só como membros do séquito régio, mas
também de nobres, como, por exemplo, de Egas Moniz. Mais
tarde, durante o século XIII, é frequente, tanto nos
documentos da prática jurídica como em textos narrativos e
literários, encontrar cavaleiros como vassalos do rei ou de
nobres, mas pode-se muitas vezes reconhecer, principalmente
na poesia trovadoresca, que os cavaleiros de um séquito são
nobres sem fortuna, de categoria inferior e com uma ligação
ténue ou quase mercenária com o seu senhor, embora a
ideologia nobre lhes exija o cumprimento estrito dos
deveres de fidelidade. Mas podem receber «contras», que mal
chegam para o seu sustento.
Como indicativo da categoria social de indivíduos
concretos, miles aparece muito raramente antes da década de
1180 e multiplica-se depois de 1220. A partir daí, e nesse
contexto, indica certamente um membro da nobreza, mas de
condição inferior e que vive da profissão das armas. A
conexão entre a nobreza e o serviço militar a cavalo não é,
portanto, a regra, até ao fim do século XII, ao contrário
do que faria pensar o paralelismo entre miles e «infanção»
nos documentos anteriores a 1080. Mesmo depois de 1200, o
ideal de cavaleiro não se transmite facilmente ao conjunto
da nobreza de sangue. «Cavaleiro» será, pelo menos até
meados do século XIII, um termo que não inclui normalmente
as categorias mais altas da aristocracia de sangue. A
condição de cavaleiro, como indício de superioridade
social, só tem sentido quando estabelece a diferença entre
o nobre e os não privilegiados. O seu uso interessa apenas,
portanto, aos nobres de categoria mais baixa, que não
querem confundir-se com os cavaleiros vilãos e muito menos
com os camponeses. Esta prática social contrasta com a da
Galiza e da corte régia leonesa, onde miles pode aplicar-se
com

150
um sentido mais nobilitante desde o segundo quartel do
século XII, o que significa que nas regiões de regime
senhorial a profissão das armas e a posse de cavalo
implicavam normalmente a condição de nobre, ao contrário do
que acontecia nos concelhos. É provável, também, que aí se
introduzisse mais cedo a investidura e a bênção litúrgica
das armas, o que contribuía para prestigiar a condição de
cavaleiro. A osmose social, favorecida pela participação de
vilãos na guerra, perto da fronteira com o Islão, acaba por
dar lugar ao «fechamento» social da nobreza, primeiro com a
maior intervenção das ordens militares na defesa da mesma
zona desde o fim do século XII, depois com a transferência
dos combates mais para sul e, finalmente, com a conquista
definitiva do território, em 1249.
Nestas circunstâncias, não admira que a ideologia das
«três ordens», enquanto identifica os belatores com os
nobres, só bastante tarde se registe entre nós e apareça
por intermédio da tradução portuguesa da Segunda partida de
Afonso X, o Sábio, donde passou às Ordenações afonsinas.
Antes disso, é evidente que a identificação da nobreza com
a função militar existia também, mas a sua expressão
privilegiada era a transmitida pelas canções de gesta
castelhanas, particularmente o Cantar de mio Cid, cujos
pressupostos ideológicos são muito diferentes dos que se
manifestam nos romances e na literatura cortesã, que desde
o século XII inspiram o ideal do cavaleiro além-Pirenéus.
Em Portugal, como, de resto, em toda a Península Ibérica,
devem ter sido as ordens militares que mais contribuíram
para difundir uma concepção cristã da cavalaria, primeiro
favorecendo a difusão de canções de gesta e depois dos
próprios romances de cavalaria, como se deduz de ter sido
um clérigo da Ordem de Santiago o tradutor da Demanda do
Graal ou, pelo menos, do José de Arimateia, em tempos de
Afonso III.

O Poder

Já mais acima vimos que o modelo de nobreza pressuposto


pela terminologia até aqui examinada apontava para o grupo
restrito dos senhores que rodeavam o rei ou os condes. Não
admira, portanto, que eles se associem ao palatium, isto é,
ao local onde se exerce o poder público. A multiplicação
dos delegados do rei, primeiro, e dos que depois os imitam
em relação a áreas restritas, isto é, nos seus próprios
senhorios, mesmo sem vínculo com o rei, leva a que se dê
uma proliferação de centros de poder, o que corresponde à
difusão do regime senhorial, que já descrevemos no volume
anterior. Todavia, a ligação dos senhores com a terra e os
agricultores implica que o tipo de poder público exercido
por eles tenha uma componente mais administrativa e
económica do que militar; ou melhor, esta assume então uma
forma a que poderíamos chamar «policial».
O vínculo inicial com o poder régio justifica também
que o espaço do domínio fundiário inicialmente atribuído
pelo rei ao seu delegado para recompensar e justificar o
poder público se chame honor, termo que designa igualmente
a própria autoridade pública. Um dos fenómenos mais
interessantes do regime senhorial português é que este
termo passe a indicar o domínio principal de uma família
nobre, aquele que lhe dá o nome e que é transmitido ao
herdeiro principal, e que, além disso, está imune das
prestações devidas ao rei. Assim, a «honra» não é só um
substantivo abstracto que significa a qualidade superior de
quem deve ser venerado e respeitado por desempenhar uma
função pública e que, por seu lado, se deve comportar com a
dignidade e a superioridade correspondentes, mas também o
substantivo concreto que se aplica ao domínio nobre por
excelência.
Por outro lado, é também próprio dos esquemas de
reprodução do regime senhorial que a «honra», no sentido
abstracto, quase confundida com a qualidade superior do
nobre, se transmita hereditariamente. Mas a partir do
momento em que a sucessão da função e do domínio próprio da
linhagem (a «honra» como substantivo concreto) se faz numa
linha única, verifica-se que cada linhagem cultiva a sua
«honra» como se se tratasse de um dom específico, que
caracteriza os seus membros e os diferencia dos de outras
famílias, embora da mesma categoria social. Este fenómeno
sugere uma aproximação com a primitiva crença no totem, que
constituía ao mesmo tempo o emblema e a divindade
protectora do clã, aquele que lhe conferia uma certa virtus
e permitia aos seus membros tomarem consciência da sua
identidade familiar. Mesmo que não se possa provar com
segurança a ligação da heráldica medieval com os cultos
totémicos, a escolha de símbolos para ostentar nos escudos
e bandeiras familiares representa um processo que tem uma
efectiva analogia com o totemismo, se põe ao serviço da

151
consciência de superioridade colectiva da classe nobre e
inspira um certo culto da virtus própria da linhagem.
Por estas razões, o modelo de nobreza que até ao fim do
século XIII transparece da terminologia usada para designar
a classe senhorial é mais o do «detentor de poder» do que o
do «guerreiro» (miles), o que parece significar que a
sociedade não considera a força das armas, só por si, como
justificadora de poder e superioridade. De facto, a palavra
que nos documentos dessa época melhor os exprime é sénior.
Significa o mais velho, o patriarca, o chefe da linhagem,
porque este é simultaneamente o que tem poder de mandar, ao
menos no âmbito da sua domes, isto é, não só na casa como
edifício, mas também sobre todos os que nela habitam, e que
são os membros de uma família alargada e os seus
dependentes. O «senhor» aparece, portanto, apesar da
relação efectiva do grupo com o uso das armas, não como o
guerreiro ou o rei, mas como o dono da «casa», como quem
estende sobre todos os seus descendentes, sobre o seu
domínio e nas terras ao redor um poder semelhante ao do
patriarca. Não é apenas um guerreiro, um chefe ou um juiz,
mas também um administrador, aquele que gere os bens
materiais e os distribui, que organiza a produção e o
consumo, decide do esbanjamento ou da poupança, dá as
filhas e sobrinhas em casamento para selar as alianças com
outras linhagens, escolhe o herdeiro e a sua mulher, envia
os mais novos para longe, para praticarem o ofício da
guerra, protege a igreja ou o mosteiro familiar e nele se
manda enterrar, para que a sua memória permaneça como
exemplar para todas as gerações da sua linhagem até ao fim
dos tempos.
Daí, também, que se possa estabelecer uma relação
íntima entre os termos sénior e domnus. O domnus (domines)
é, na origem, o que tem poder sobre a casa (domus). Em
meados do século XIII, domnus e dom não eram ainda
exclusivos de nobres. Aplicavam-se provavelmente a
proprietários que exerciam uma certa supremacia ou
suscitavam respeito por parte dos outros membros da
respectiva comunidade, assim como ao rei e a mulheres
nobres ou a outros membros da alta nobreza cuja autoridade
era evidente. Mais tarde, porém, prevalece a tendência para
usar a palavra como um título reverenciai, que se vai
estendendo a todos os membros da nobreza.
Assim, o que sobressai na linguagem usada para indicar
os membros da nobreza senhorial não é tanto, até ao fim do
século XIII, o seu carácter militar, mas a capacidade de
gerir, administrar e comandar, como se se misturasse na
mente dos homens de então o modelo do delegado do rei e o
dos grandes proprietários da época imperial, senhores das
villae ou domínios territoriais. A posse de abundantes
terras habitadas e cultivadas constitui, portanto, condição
fundamental para se ser «senhor». É essa, na verdade, a
base efectiva do Poder, aquela que sustenta a capacidade
para ter homens de armas ao seu serviço, o poder de julgar,
de oferecer dons e benefícios aos amigos e protegidos, de
escolher alianças matrimoniais prestigiantes, de ter uma
morada, um paço (palatium) que pode tentar imitar o do rei.
Daí que seja ridículo ou mesmo absurdo pretender ser nobre
quando mal se pode sustentar um cavalo, se não pode comer à
vontade e se tem de vestir pouco mais do que andrajos, como
faziam os infanções pobres da província, ridicularizados
pelos trovadores e jograis da corte no século XIII. O
infanção que, mesmo assim, pretende ser nobre só pode
suscitar o escárnio e o divertimento de toda a gente.
Tentando agora ligar entre si o que fomos verificando a
partir do vocabulário que designa os nobres, recordemos que
a conjugação do modelo do «senhor» com o do «conde»
(enquanto detentor de um poder público por delegação do
rei), que os infanções do século XI pretendiam imitar, se
encontra na sua maior pureza em Entre Douro e Minho. A
medida que avançamos para sul, prefere-se, para indicar a
superioridade social, uma expressão baseada no
qualificativo bónus, que sugere a prosperidade material
(boni homines), ou o termo relativo maior, por oposição a
minor, e encontram-se testemunhos da identificação dos
potentes com os milites. Aqui, a relação entre a
superioridade social e o nascimento é secundária. A osmose
social é maior e os cavaleiros vilãos equiparam-se aos
infanções no território do concelho em que dominam.
Esta distinção geográfica verifica-se no século XII. No
século XIII, espalha-se sobre todo o reino a ideia de que a
verdadeira nobreza implica não só o sangue herdado dos
antepassados já nobres, mas também a profissão das armas e
o poder efectivo sobre uma terra com os seus homens.
Atenuam-se as diferenças regionais. A classe dominante é-o
agora cada vez mais de todo o território nacional e
constitui um modelo único, que não dispensa nenhum dos seus
elementos: o sangue, as armas e o Poder.

152
As categorias

A divisão tradicional da nobreza portuguesa em três


categorias hierarquicamente diferentes — cavaleiros,
infanções e ricos-homens —, embora apoiada, de facto, em
textos legais a partir da segunda metade do século XIII,
oculta uma realidade social certamente mais fluida do que
parece exprimir. De facto, são designações de natureza
diferente entre si e que, portanto, não se excluem
necessariamente umas às outras. Assim, o cavaleiro é
propriamente o que vive do serviço militar. Quando, numa
época relativamente tardia, indica o que recebeu a
investidura das armas, por oposição ao escudeiro, pode,
sobretudo quando jovem, indicar alguém da alta nobreza.
Normalmente, porém, aplica-se aos nobres sem fortuna que
vivem na dependência de outrem e o servem no seu séquito
militar. O infanção, mais tarde o fidalgo, é propriamente o
que descende de um nobre, qualquer que seja a sua fortuna
ou poder. Todavia, o facto de esse nascimento ser a única
coisa que o distingue de outros homens, quando lhe faltam
os bens e as armas, explica que possa designar, sobretudo
em textos literários, os nobres de categoria inferior e não
os outros. Quanto aos ricos-homens, são propriamente, até
ao fim do século XIII, aqueles que receberam do rei «pendão
e caldeira», isto é, que são seus representantes como
governadores de terras e que, por isso, têm para com ele
uma dependência vassálica, apesar de se encontrarem no topo
da escala social. Sp mais tarde passam a identificar-se com
os nobres poderosos, independentemente do exercício de
qualquer função pública ou relação de vassalagem com o rei.
Assim, há cavaleiros não nobres, infanções que podem ou
não ser cavaleiros, ricos-homens que na sua juventude foram
escudeiros antes de receberem a bênção das armas como
cavaleiros, nobres de uma categoria média ou até superior
que nunca foram considerados cavaleiros, etc. Estas
designações são fundamentais, porque exprimem as categorias
da época. Mas não podem fazer esquecer que só por si pouco
dizem acerca da efectiva hierarquia social, isto é, aquela
que poderíamos hoje exprimir pela distinção entre nobreza
superior, média e inferior, pensando nas diferenças
efectivas de prestígio, riqueza e proximidade do poder
régio, ou seja, aquela que o conde D. Pedro, no prólogo do
Livro de linhagens, considera também: «Se é de gran poder
[...] se é seu igual [...] se é mais pequeno que si.» Na
prática, é quase sempre difícil determinar se uma certa
personagem pertence a uma categoria superior, inferior ou
média. Os livros de linhagens, no entanto, pressupõem
distinções relativas de prestígio, que atribuem quer à
linhagem como conjunto quer a cada um dos seus respectivos
membros, numa hierarquia subtil, sugerida por indicadores
de que hoje nos apercebemos mal, como, por exemplo, os
casamentos dignificantes ou degradantes, o lugar onde se
situa a honra, as funções, os nomes, as alcunhas, as
estórias dos combates e episódios que definiam o
comportamento dos antepassados, a categoria eclesiástica
dos parentes, etc. Dada a subtileza destas distinções,
compreende-se que cada família tenha a sua história,
memorizada na genealogia, e que haja sempre entre elas uma
competitividade na aquisição de um prestígio ou um poder
simbólico, que pode ser ou não reconhecido socialmente, que
suscita rivalidades e leva a que as estórias conservadas
pelos seus membros tenham, muitas vezes, um significado
oposto à daquelas que os seus inimigos contavam.
A relação de dependência para com o rei estabelece
outras distinções hierárquicas mais objectivas, embora nem
sempre isentas de ambiguidade, sobretudo quando os seus
critérios se cruzam com os critérios de valor socialmente
definidos pela própria nobreza. Até ao fim do século XII, a
monarquia guerreira serve-se de dois tipos de vassalos: os
que constituem uma nobreza de serviço de categoria modesta,
porque composta sobretudo por nobres sem fortuna que vivem
do serviço das armas (entre os quais filhos segundos, não
herdados, de famílias poderosas), na estrita dependência do
rei, e os ricos-homens, a quem ele confia o governo de
terras e que possuem um poder próprio efectivo, com o qual
o podem contestar e até combater, apesar de nem por isso
deixarem de lhe prestar homenagem.
A partir de Afonso II, porém, a nobreza de serviço
adquire um relevo cada vez maior. Primeiro, como principal
grupo executante da centralização régia, o que faz dela
rival da nobreza senhorial, isto é, dos ricos-homens
governadores de terras, com poder suficiente para lhe
fazerem face, e dos nobres mais modestos, que vivem nas
suas honras e tentam aumentar o seu poder à custa do
património régio. Depois, com Afonso III, a nobreza de
serviço torna-se cortesã, isto é, igualmente dependente do
rei, mas cultivando cuidadosamente a superioridade
simbólica por meio do aperfeiçoamento do uso dos
instrumentos culturais do vestuário, da fala, das boas
maneiras e da manipulação estratégica do código ambíguo da
vassalidade, com todos os seus processos de submissão ao
senhor e de participação no seu poder superior. A partir
desta altura, a nobreza de corte procura apresentar-se como

153
modelo de toda a classe, o que traz como consequência o
desprezo dos rudes nobres da província e a atracção que a
corte exerce sobre eles. Este fenómeno, que implica uma
efectiva submissão de toda a nobreza à monarquia, não
exclui uma oposição efectiva da nobreza senhorial ao rei,
na medida em que este empreende, com Afonso III, e
sobretudo com Dinis, uma persistente luta contra o
exercício efectivo dos poderes senhoriais, ao menos quando
entram em concorrência com os seus, nos lugares em que o
rei pretende obter ou recuperar uma autoridade directa e
não exercida por delegação.
Este processo, cujos conflitos descrevemos no capítulo
anterior, conduz também a uma recomposição da nobreza e da
sua hierarquia. Até meados do século XIV, ela não aceita
facilmente a que o rei pretende impor-lhe, pelo menos
quando, além da resistência armada, opõe ao rei a arma de
ridicularizar os vassalos demasiado submissos,
desconhecedores dos códigos da classe ou incapazes de
generosidade. Mas a hierarquia que o rei passa a dominar
mais directamente, ao criar a nobreza titular, desde o
momento em que nomeia o primeiro conde territorial, o conde
de Barcelos (1298), inicia uma nova classificação
aristocrática, que, nos séculos xiv e xv, irá definir de
uma maneira mais nítida e exemplar os escalões superiores,
conferindo-lhes maior prestígio, mas agravando a sua
dependência do monarca.

Os nomes

O que vimos anteriormente acerca dos sinais distintivos


de cada linhagem, isto é, o seu emblema heráldico, as suas
tradições, a memória familiar, a série de indícios que lhe
determinam um lugar específico, embora constantemente
precário, na constelação da nobreza, convidar-nos-ia agora
a identificar concretamente as principais famílias,
apontando as honras que possuem e transmitem, as regiões
onde se situam os seus principais domínios, as funções que
os seus membros desempenharam, como se aliaram ou
combateram entre si, quais as suas trajectórias de ascensão
ou decadência, as estratégias que usaram para triunfar ou
as causas que explicam as suas eventuais derrotas. É
evidente, porém, que uma enumeração completa seria
demasiado longa. Temos de nos limitar a escolher os casos
mais importantes e significativos no contexto da história
nacional, mesmo com o risco de omitir dados essenciais para
outros pontos de vista. Tentemos, porém, organizar uma
exposição coerente, distinguindo as épocas e agrupando as
famílias em função das regiões ou da sua relação com a
corte.
Assim, durante o governo de Henrique de Borgonha, a
linhagem mais importante é, sem dúvida, a de Soeiro Mendes
da Maia, que domina a «terra» do mesmo nome e protege o
Mosteiro de Santo Tirso. Quase ao mesmo nível estão os
senhores de Ribadouro, Baião e Paiva, com quem estabelece
alianças matrimoniais. Com a morte do chefe da linhagem,
porém, perdem a posição cimeira. Embora mantenham um lugar
importante na corte e na sua região de origem, não parecem
sobressair nem em relação com os condes nem perante os seus
pares. Ali, deixa de haver uma linhagem predominante e
aparecem, aparentemente ao mesmo nível, vários senhores de
origem galega, como os Pereiras e os Barbosas, sem falar
nos Travas, cujo papel junto de D. Teresa é bem conhecido.
Apesar da expulsão de Fernão Peres, não perdem totalmente a
importância em Portugal, quer como origem de alianças
matrimoniais quer por meio de ramos laterais que aqui se
estabelecem. O mesmo acontece com outros nobres galegos,
como os Límias e Soverosas, os últimos dos quais tomam
lugar importante na corte de Afonso Henriques e na dos reis
seguintes, até Sancho II. Com D. Teresa, outros nobres,
além deles, desempenham funções palatinas, como os de Baião
e alguns de categoria inferior; entre estes aparecem os
detentores de cargos aparentemente importantes, como os de
mordomo e alferes: Silvas, Bravães, Azevedos e Velhos.
Nas terras de Entre Douro e Minho, já na época condal
se podiam contar muitas famílias de certo relevo, como as
quatro últimas que acabámos de mencionar, e ainda os
Penagates, Lanhosos, Fafes, Guedões, Tougues e Ramirões,
entre outros. A provável ligação de alguns deles aos
Travas, sobretudo os Velhos, Azevedos e Bravães, talvez
explique o seu desaparecimento da corte de Afonso Henriques
até meados do século xii. A sul, entre o Douro e o Vouga, a
família mais importante é a de Marnel, logo seguida das de
Grijó, provavelmente seu ramo secundário, de Paiva e de um
ramo dos de Ribadouro que se liga mais a Arouca e ao qual
pertenceu, decerto, Martim Moniz. Este pretendeu, como
vimos, suceder ao conde Sanando em Coimbra, mas acabou por
ser afastado, em virtude das suas posições moçárabes.
154
As famílias de Ribadouro, Sousa e Bragança têm já uma
efectiva importância na época condal, mas adquirem uma
posição superior com a revolta de Afonso Henriques. Sabe-se
bem o papel que a primeira teve até à morte de Egas Moniz
(1146) e a segunda desde esse momento até ao fim do reinado
de Afonso III. De facto, a supremacia dos Sousas
manteve-se apesar da rivalidade aberta com Afonso II e de
uma certa secundarização no tempo de Sancho II. Pelo
contrário, a importância de Egas Moniz junto de Afonso
Henriques não se transmitiu aos filhos, apesar do cargo de
alferes desempenhado por Lourenço Viegas em 1128. A
tentativa de liderar a nobreza senhorial representada por
Abril Pires de Lumiares, seu descendente, no fim do reinado
de Sancho II, terminou por um fracasso. As tradições dos de
Ribadouro foram reivindicadas no século XIII por um
descendente por bastardia, João Soares Coelho, o Trovador,
que foi provavelmente o criador da conhecida lenda de seu
antepassado Egas Moniz.
Maior fortuna tiveram os Sousas, cujos chefes de
linhagem desempenharam frequentemente o cargo de
mordomo-mor da corte e vários filhos segundos o de alferes.
Não perderam o poder com a revolta contra Afonso II, nem
por se afastarem mais da corte, com Sancho II. Possuíam uma
enorme fortuna na zona de transição do Minho para
Trás-o-Montes, que foi partilhada por várias famílias no
reinado de D.Dinis. Embora não tivessem criado uma memória
épica exaltando feitos de antepassados mais ou menos
míticos, como os senhores da Maia e de Ribadouro,
reivindicavam uma ligação, talvez imaginária, com os condes
do século X e com os seu santos, como Santa Senhorinha e S.
Rosendo, ao mesmo tempo que uma certa rivalidade para com o
rei.
Os Braganças também desempenharam importantes funções
palatinas nas cortes de Afonso Henriques e de Sancho I e
tiveram ligações matrimoniais com o primeiro e com as
famílias de maior prestígio de Entre Douro e Minho, mas
parecem, apesar disso, manter uma posição marginal,
expressa, aparentemente, por se lhes atribuir uma memória
de violência, de ferocidade e de irregularidades
matrimoniais. É possível, no entanto, que estas estórias se
destinassem a denegrir os ascendentes de um personagem
odiado pela nobreza senhorial da época de D. Dinis, Nuno
Martins de Chacim.
O prestígio gozado pelas famílias de Sousa, Maia,
Baião, Ribadouro e Bragança ainda se mantinha no princípio
do reinado de D. Dinis, apesar de então nenhuma delas ter
já qualquer representante da linha varonil e de haverem
sido substituídas por linhagens que no princípio do século
XIII ocupavam posições bem mais modestas. Com efeito, a
crise de meados do século XIII representa a época de
mutação da nobreza, depois dos conflitos que a agitaram
durante toda a, primeira metade do mesmo período. Nesta
época, assistimos à decadência ou ao desaparecimento de
famílias como as já citadas da Maia, Ribadouro, Bragança e
Soverosa, a um afastamento temporário da corte das de Sousa
e Baião, à promoção de outras, como as de Nóvoa e Ribeira
(que não mantiveram as suas posições durante muitas
décadas), ao sucesso firme de algumas, como a de Riba de
Vizela, que viria a reivindicar a sucessão dos senhores da
Maia e chegaria com D. Dinis, por um momento fugaz, até ao
nível supremo dos condes de Barcelos, e finalmente às
tentativas de ascensão de umas quantas com o apoio de
membros de ordens militares ou de eclesiásticos, como os
Pereiras, Correias, Portocarreiros, Fafes, Farinhas ou
Leitões. Destas, porém, só os Pereiras continuaram a sua
ascensão, até atingirem o lugar proeminente que se conhece
bem na segunda metade do séculoxiv. Mencione-se ainda a
lenta mas segura ascensão dos Cunhas e dos Pachecos, com os
seus importantes domínios na Beira, e que também
alcançariam posição de relevo desde a época de Afonso IV.
Durante a segunda metade do século XIII, a mutação
política presidida por Afonso III criou as condições para o
sucesso nobiliárquico de famílias antes obscuras, como os
Nóbregas-Aboins, Estêvão Anes, chanceler, Briteiros,
Pimentéis, Coelhos ou Vasconcelos. Destes, porém, uns
tornaram-se senhores de fortunas fabulosas, como os
primeiros, outros não passaram muito da mediania e nem
sempre conseguiram manter o favor da corte, como os
Pimentéis, alguns não chegaram a constituir linhagem, como
Estêvão Anes, ou acabaram por se extinguir, como os Aboins.
A partir de Afonso III, a estratégia centralizadora do
monarca levou-o a favorecer a constituição de linhagens por
bastardos régios, cujos serviços esperava lhe fossem
particularmente fiéis. Assim nasceu a dos Sousas
Chichorros, de um bastardo de Afonso III. D. Dinis quis
fazer o mesmo com os seus dois bastardos, Afonso Sanches e
Pedro Afonso, casando o primeiro na casa de Albuquerque e o
segundo na casa dê Sousa-Aboim, mas a falta de descendência
de ambos frustrou o seu projecto. O mesmo rei, sem

155
favorecer nenhuma das grandes famílias tradicionais,
serviu-se de nobres de categoria inferior, como
Vasconcelos, Chacins, Soalhães, Oliveiras, Brochados ou
Urro (João Simão), dando a uns cargos civis, a outros
postos eclesiásticos.
Voltemos agora atrás para lembrar famílias que nasceram
fora de Entre Douro e Minho e que, por isso, não alcançaram
prestígio nem fortuna semelhante às que daí procediam,
embora algumas estivessem destinadas a dar origem a
personagens com alguma importância social no futuro ou que
constituíram as porções mais prestigiadas da aristocracia
do Centro do País.
Entre elas, podemos considerar, na Beira, as
descendentes de cavaleiros que se fixaram na região desde a
época condal e a que pertenciam alguns dos cavaleiros do
séquito de Afonso Henriques, como os senhores de Góis e de
Arganil, os Redondos e os Tavares. Alguns ligaram-se por
afinidade a famílias do Norte, particularmente a um grupo
da fronteira galega, onde deviam desempenhar funções
militares desde a época de Afonso Henriques, como os
Valadares, Cerveiras ou Silvas. Podem-se associar a estes
os nobres originários de Entre Douro e Minho, mas que na
Beira lançaram os seus ramos, como os Cunhas, já
mencionados, os Alvarengas (um ramo dos de Ribadouro), os
Taveiras, os Penelas (aparentados com os de Valadares), os
Meios (de um ramo bastardo dos de Riba de Vizela), etc.
Podemos também considerar as linhagens que se formaram
na Estremadura e Ribatejo, com ligações matrimoniais com as
do Norte, mas que não conseguiram geralmente posições
sociais muito elevadas nem fortunas muito consideráveis.
Podemos citar as que descendiam de cavaleiros de origem
estrangeira, sobretudo francos e flamengos, que se fixaram
na região depois da conquista de Lisboa ou no reinado de
Sancho I, como os Atouguias e Azambujas. Associemos a estes
os que na mesma região desempenharam funções de alcaides e
obtiveram alguns domínios, muitos deles vivendo na cidade,
como os já citados Brochados, os Dades de Santarém, os
Albergarias, os Delgados, os Ataídes, entre outros.
Para completar o quadro, mencionemos os galegos do
século XIII. Nesta época, os que aparecem em Portugal são
os que procuram o exílio por haverem sido deserdados na sua
terra e aqui tentam subsistir, quer como cavaleiros do
séquito real ou dependentes de senhores mais ricos, quer
como trovadores. Este motivo trouxe a Portugal indivíduos
de nome Marinho, Lobeira, Churrichão, Varela ou Sorodeia.
Compreende-se, por isso, que não passassem de categorias
modestas. Mesmo quando as composições trovadorescas foram
conservadas em cancioneiros portugueses, a sua passagem em
Portugal pode ter sido efémera. Alguns talvez nem chegassem
a atravessar o rio Minho. As suas poesias podem ter sido
trazidas por algum coleccionador mais zeloso, como era o
conde D. Pedro de Barcelos. Muitas delas não pertenciam a
nobres, mas ajograis e clérigos que estavam ao seu serviço.
Note-se, portanto, que a grande maioria dos nomes da
alta nobreza dos séculos XII e XIII procede de Entre Douro
e Minho, onde tinha, por vezes, raízes muito antigas. Nas
suas terras férteis e densamente habitadas, com solos
fundos entre colinas de granito, multiplicam-se sem cessar,
dividindo-se por linhas colaterais e bastardas em pequenas
casas modestas, ou lançando novos ramos na Beira,
Estremadura, Ribatejo e Alentejo. Aqui, mesmo as linhagens
cujos domínios datam do tempo da conquista dificilmente
conseguem concorrer com o rei e com os nobres vindos do
Norte e até da Galiza. Com efeito, a infinita divisão da
propriedade e a partilha hereditária das terras minhotas,
apesar das precauções tomadas contra a divisão patrimonial,
obriga os que ambicionam um sucesso mais seguro a procurar
o serviço régio ou os domínios nas terras mais vastas e
abertas do Centro e do Sul. Mas aqui a concorrência também
é grande: os cavaleiros vilãos e homens-bons dos concelhos
defendem-se como podem, os mordomos do rei guardam
cuidadosamente o seu património, as ordens militares, os
mosteiros, o clero diocesano e os cabidos têm muitos
membros para sustentar; por isso as grandes casas
senhoriais lutam com dificuldades para se implantar nesta
zona. Só a partir do século XIV é que elas conseguem criar
casas sólidas fora de Entre Douro e Minho, recorrendo,
então, a um tipo de economia diferente da que as sustentara
no princípio da era senhorial.

Monges e sacerdotes

Não basta enumerar os principais nomes de famílias


nobres para conhecer as forças senhoriais que possuíam
armas e cavalos, arrecadavam os produtos da terra e, ao
mesmo tempo, protegiam e oneravam os camponeses. Como

156

vimos, serviam-se muitas vezes das forças sagradas para


ascender socialmente. Procuravam cair nas boas graças dos
monges e clérigos ou submetiam-nos à sua protecção.
Aliavam-se aos interlocutores privilegiados das potências
sobrenaturais, para melhor garantirem a sua «honra», a sua
força, a sua prosperidade, a ilusão de vencerem o tempo.
Todavia, não se confundiam com eles: os monges e
sacerdotes desempenhavam outra função social, ocupavam-se
de outras tarefas, não traziam armas, exerciam outro tipo
de poder. Mas eram «senhores» como eles, porque não
trabalhavam pessoalmente a terra e sujeitavam os camponeses
seus dependentes a uma autoridade semelhante. Por outro
lado, o clero não se pode confundir com uma classe social.
Tanto fazem parte dele os bispos e abades, que são
efectivamente «senhores» quer pelos seus poderes quer,
muitas vezes, pelo sangue (pois a maioria é nobre por
nascimento) como os párocos e monges, que vivem modesta ou
até pobremente, e que, por isso, são socialmente
dependentes. Os párocos têm, até, de pagar ao bispo ou às
comunidades monásticas a que as suas igrejas pertencem
prestações mais ou menos pesadas, que lembram as próprias
exacções senhoriais e cujo número não cessa de aumentar
durante o século XIII. Assim acontece mesmo quando são
livremente eleitos pela comunidade de homens livres
(herdadores), o que em meados do século XIII sucede ainda,
esporadicamente, no Minho e frequentemente em
Trás-os-Montes. Não podemos, portanto, falar do clero como
de um conjunto unitário. Temos sempre de distinguir nele
diversos componentes. Comecemos pelos monges, que têm uma
ligação mais íntima com a nobreza senhorial.
Durante o fim do século XI e todo o século seguinte,
deu-se um movimento de concentração das comunidades
monásticas que alterou a fisionomia da vida religiosa de
Entre Douro e Minho. Sendo até aí muito numerosos os
pequenos mosteiros com três ou quatro monges estreitamente
ligados às respectivas comunidades rurais, foram
progressivamente desaparecendo para se tornarem igrejas
seculares dependentes de mosteiros maiores, com ricos
domínios fundiários e uma organização verdadeiramente
senhorial. Tanto as autoridades eclesiásticas,
influenciadas pelo movimento gregoriano, como as civis e a
aristocracia favoreceram este movimento, contribuindo para
criar abadias poderosas, onde se praticava uma liturgia
solene e viviam muitos monges, impressionando, assim, os
cavaleiros e camponeses das imediações.
Estas comunidades religiosas tornaram-se poderosos
instrumentos de senhorialização. Não dispunham de armas,
mas conheciam a escrita e podiam, com a sua ajuda, acumular
bens de geração para geração e registar sem falhas a
lembrança dos foros a pagar. Não se esqueciam de guardar os
títulos de propriedade e quando era preciso exibiam-nos
perante os tribunais, que assim lhes davam quase sempre
razão. Podiam também dedicar-se mais racionalmente do que
os senhores à exploração das terras, aos desbravamentos, à
acumulação de rendas para vender a bom preço nos anos maus.
Alguns deles, como os Cistercienses, praticavam a gestão
directa, usavam o trabalho manual dos conversos — uma
mão-de-obra praticamente gratuita —, entravam a fundo na
economia de produção e de troca, edificavam granjas perto
das estradas e encruzilhadas, estudavam a melhor maneira de
conservar os géneros para não se deteriorarem, compravam
terras sem cessar.
Não menos eficazes instrumentos de senhorialização
foram os bispos, que, entre o fim do século XI e o fim do
seguinte, se dedicaram com grande persistência à acumulação
de enormes patrimónios fundiários, que conhecemos bem
através de registos de privilégios, compras e doações, como
o Líber fidei para a arquidiocese de Braga, o Censual do
cabido para a diocese do Porto e o Livro preto para a de
Coimbra. Os beneficiários destes domínios não eram só os
bispos, mas também os cónegos da catedral. As divergências
entre uns e outros acerca da distribuição dos respectivos
rendimentos levou-os a adoptar o sistema da divisão das
propriedades entre o bispo e o cabido, por vezes ao cabo de
lutas difíceis e prolongadas. Os acordos a que chegaram
foram-se sucedendo nas várias dioceses entre os anos de
1145 e de 1260. O sistema foi depois adoptado pelos
próprios mosteiros beneditinos e pelos Cónegos Regrantes de
Santo Agostinho durante o século XIII, com a divisão da
mesa abacial e da mesa conventual.
A concentração de comunidades monásticas a que me
referi teve também o condão de estimular, por oposição,
algumas formas de vida religiosa que não se integravam
facilmente no sistema senhorial. Daqui resultou a
proliferação de agrupamentos eremíticos, que a partir das
décadas de 1110-1120 começaram a aparecer em lugares
afastados ou perto das encruzilhadas dos caminhos e na
periferia das zonas mais habitadas. O seu número cresceu
consideravelmente durante a segunda metade do século XII.

157
Procuravam assim responder a um ideal de despojamento, de
austeridade, de valorização do «deserto» e de separação do
«mundo». Alguns vieram a desaparecer ou transformaram-se em
comunidades regulares filiadas em ordens religiosas, como
os Cistercienses e premonstratenses, as monjas beneditinas
e, mais raramente, os Cónegos Regrantes. Mas o movimento
decaiu por completo no princípio do século XIII, ficando só
os eremitas isolados nos arredores das cidades, integrados
num movimento espiritual relacionado com o aparecimento de
emparedados e de beguinas dos meios urbanos.
Observando mais de perto o fenómeno de concentração dos
mosteiros de Entre Douro e Minho nos séculos XI e XII,
podemos dar uma ideia das características peculiares desta
região, completando assim observações já apontadas nas
páginas anteriores. Um quadro simples mostrará rapidamente
os dados e a sua distribuição geográfica.

Os mosteiros fundados no Norte de Portugal entre o século


IX e o século XIII.

Dioceses – Regiões – Fundação (séculos IX-X) – Fundação


(século XI) - Fundação (século XII) – Total – Permanecem no
século XIII

Tui - Minho/Lima – 4 – 1 – 14 – 19 - 17

Braga - Lima/Cávado - - 16 – 4 – 20 - 14
Cávado/Ave – 4 – 28 – 1 – 33 - 14
Ave/Tâmega – 3 – 11 – 9 – 23 - 14
Além-Tâmega – 1 – 8 – 9 - 4

Porto - Ave/Sousa – 7 – 5 – 7 – 19 - 8
Sousa/Corgo – 5 – 6 – 9 – 20 - 13
Sta. Maria – 7 – 8 – 1 – 16 – 4

Totais – 30 – 76 – 53 – 159 - 88

Note-se, desde logo, a impressionante diferença que


opõe o Minho a Trás-os-Montes (além-Tâmega). A abundância
de mosteiros ali fundados, opõe-se a sua escassez aqui. Em
seguida, a sua prodigiosa multiplicação na zona minhota da
arquidiocese de Braga durante o século XI, por oposição ao
número de fundações do Alto Minho, que se dá sobretudo no
século XII. Depois, a distribuição regular de fundações na
diocese do Porto, durante os três séculos considerados,
embora com uma redução do movimento fundacional na Terra de
Santa Maria no século XII.
Se considerarmos ter havido um paralelismo entre o
movimento fundacional e o comportamento demográfico da
região, confirma-se a concentração da densidade
populacional em Entre Douro e Minho, sobretudo nos grupos
de concelhos da sua zona média, como referimos na primeira
parte deste capítulo. Mas a proliferação deu lugar, no
século XIII, a uma enorme redução de comunidades
monásticas, sobretudo entre o Cávado e o Ave, onde o seu
número diminuiu para menos de metade. Uma redução
semelhante se deu na diocese do Porto, sobretudo na Terra
de Santa Maria e entre o Ave e o Sousa.
Uma observação mais fina permitiria mostrar que as
fundações do século XII, quase todas anteriores a 1150, são
mais resistentes do que as anteriores. Trata-se, em geral,
de comunidades mais bem organizadas e que conseguem
absorver muitas fundações anteriores. Assim, a concorrência
religiosa tem limites: os da própria saturação das
instituições eclesiásticas, que, a partir de certo momento,
entram em oposição com a própria estrutura senhorial
aristocrática. De facto, a região onde se acumula maior
número de famílias diferentes é também aquela onde a rede
paroquial é mais densa, os mosteiros mais numerosos e a
terra mais fecunda. Durante a segunda metade do século, a
maioria das fundações novas pertence a monjas beneditinas
ou a grupos eremíticos, que por vezes se transformam em
cistercienses. Nessa altura já não têm lugar nas zonas mais
densamente habitadas e procuram o Alto Minho,
Trás-os-Montes (com poucas fundações), o Alto Douro e a
Beira.

158
Examinando, agora, a relação entre os mosteiros e as
famílias patronais, verifica-se um fenómeno não menos
interessante: a maioria dos mosteiros protegidos pelos
nobres mais ligados à corte condal e das primeiras décadas
afonsinas, sendo de fundação antiga, deixa os seus usos
hispânicos para adoptar a regra beneditina e os costumes
cluniacenses. Os mosteiros protegidos por nobres de
categorias inferiores, sobretudo por cavaleiros aparentados
com a nobreza coimbrã e sul-duriense, hesitam mais em
abandonar as observâncias peninsulares tradicionais, mesmo
quando se pretendem reformados, e acabam, em grande parte,
por receber, a partir de 1131, a Regra de Santo Agostinho e
os usos dos cónegos de Santa Cruz de Coimbra, embora o seu
tipo de inserção no meio senhorial se assemelhe em tudo ao
dos mosteiros beneditinos. Enfim, os Cistercienses, apesar
de não estarem propriamente sujeitos a patronos, ficam mais
ligados à alta aristocracia. Também parecem, sobretudo na
Beira, relacionar-se com cavaleiros vilãos dos concelhos,
cujos membros provavelmente resolvem professar entre os
conversos, mas a sua acumulação de bens e de dinheiro
traz-lhes, a partir do princípio do século XIII, a
antipatia das populações locais.

[Legenda de figura.]
Eremitas portugueses (século XII). Como se vê neste
mapa, os eremitérios foram frequentes no Norte de Portugal
durante o século XII. Situavam-se sobretudo na periferia de
regiões mais densamente habitadas e perto de encruzilhadas
de caminhos. Para o fim do século, e no princípio do
seguinte, a sua maioria desapareceu: transformaram-se em
mosteiros regulares de várias ordens religiosas ou em
igrejas paroquiais do clero diocesano.

Apesar da preferência de certos grupos da aristocracia


por correntes monásticas diferentes, os mosteiros de
inspiração beneditina (cluniacense) exercem uma influência
determinante no modelo de sociedade que mais se adapta ao
regime senhorial. O esplendor do seu culto litúrgico
solene, a oração pública quase constante, a profusão de

159
sufrágios pelos mortos, e de uma maneira muito especial
pelos da família patronal, nos dias de aniversário do seu
falecimento e junto do seu túmulo, que era guardado para
sempre como um tesouro pelos monges, intercessores
privilegiados pela sua prosperidade e pelo seu sucesso,
tudo isto tornava a relação entre os nobres e 0s monges uma
associação privilegiada. Para além desta comunhão de
interesses simbólicos, os monges ofereciam também aos
leigos, e particularmente aos nobres, uma visão do mundo
que integrava harmoniosamente o Céu e a Terra e sublinhava
a sua complementaridade, apesar da constante tensão que os
opunha entre si. A visão do mundo proposta pelos
Cluniacenses atribuía também um lugar próprio às forças
políticas e à guerra, ao trabalho produtor dos camponeses e
à função régia, à luta contra os infiéis e ao exercício dos
poderes judiciais e fiscais, aos deveres dos senhores e dos
trabalhadores da terra, às obrigações morais de todos os
leigos, à vida e à morte. Mesmo sem ser totalmente
coerente, lógica e explícita, tal como é adoptada no
Ocidente ibérico, sem corresponder por completo às
expectativas e convicções daqueles a quem se dirigia, esta
visão triunfa de facto no seio da^sociedade senhorial. Não
apenas por ter do seu lado os detentores do poder
coercitivo e material, mas também porque apela para um
ideal utópico de união de todos os homens numa só
comunidade, a da Jerusalém celeste, colocada no Além, mas
para a qual todos os homens caminham.
A capacidade persuasora deste modelo escatológico não
lhe vem só de corresponder a um imaginário simétrico do dos
mitos da Idade de Ouro ou do passado paradisíaco, mas
também porque os centros religiosos, sobretudo os
monásticos, organizam, sustentam e animam as festas onde
todos os fiéis se congregam no ritual que antecipa a
celebração eclesial do fim dos tempos, ordena as procissões
que desencadeiam a circulação entre o sagrado e o profano,
integrando todos os grupos dos fiéis, e assim alimentam a
esperança da plenitude escatológica. Finalmente, possuem os
recursos dos rituais de bênção e de maldição, que, pela sua
própria expressividade, afirmam o domínio sobre as forças
sobrenaturais, que garantem a fecundidade e o sucesso
contra os inimigos ou, pelo contrário, espalham a fome, a
doença e a morte.
Os pobres párocos e modestos abades das comunidades de
herdadores também praticam os rituais legados pelos
antepassados. Mas os que se desenrolavam nas sés catedrais
e nos grandes mosteiros eram muito mais sedutores, pela
abundância de recursos que podiam utilizar. E embora a
teimosa vitalidade da religiosidade popular (de que
falaremos mais adiante) demonstrasse a sua incansável
capacidade de se adaptar a todas as culturas, modas e
pressões ou condenações da hierarquia, as formas de culto
propostas pelas autoridades oficiais nunca deixaram de
seduzir os leigos de todas as classes sociais e de ser a
mais firme base das crenças dos camponeses.
Assim, os mosteiros e igrejas desempenham uma
importante função de articuladores da ordem social, não só
no plano mental, elaborando os símbolos, mitos e
formulações teóricas que apresentam o mundo sob uma forma
ordenada e compreensível, mas também no plano existencial,
criando ritos e festas que respondem a pulsões colectivas,
conscientes ou inconscientes, reabsorvem ensões e restauram
a ordem, mesmo quando parecem permitir a sua subversão.
São, pois, os centros de um poder que não se confunde com o
dos nobres e o do rei, apesar de estar normalmen-e do seu
lado. O poder não advém ao clero apenas por os seus chefes
pertencerem à classe dominante, mas também da dinâmica
criada pelo encontro que nos santuários se dá entre a
participação popular e a oficial, entre as concepções
arcaicas de uma e as eruditas de outra. Os sanitários
monásticos, onde a religião oficiai tem a sua celebração
mais acabada, exercem uma função que transcende as
estratégias dos próprios grupos intervenientes e da
política senhorial, episcopal ou régia. Convém
distingui-los dos santuários de romaria, onde a religião
popular se exprime com toda a sua força, embora não atraia
só os vilãos, mas também os nobres.
Enfim, é necessário não esquecer a especificidade
própria da organização eclesial, para não confundir, sem
mais, o clero com a nobreza senhorial. Com efeito, os
monges são o instrumento intelectual dos nobres, ao
fornecerem-lhes as vantagens da escrita, ao receberem no
seu seio alguns dos seus membros, que depois promovem a
postos hierárquicos, ao sustentarem a noção da permanência
das linhagens, apesar das mortes e nascimentos dos seus
membros. Mas, se é preciso, resistem-lhes, reivindicam a
sua «liberdade» como coisa sagrada, ameaçam-nos com
maldições e castigos divinos, lembram-lhes que estão
sujeitos à lei moral, como todos os homens, organizam-se e

160
comunicam entre si, aliam-se aos bispos, pedem a protecção
da cúria romana, apelam para òs preceitos do direito
canónico, queixam-se ao rei quando os nobres abusam da sua
força para lhes exigirem alimentos, os roubarem ou
destruírem os seus bens.
É verdade que a reforma gregoriana, que agudizava a
oposição entre leigos e clérigos, não desencadeou entre nós
conflitos graves entre uns e outros. Deixou, todavia, as
suas marcas no ideal de independência entre os dois
poderes. A capacidade de permanência das instituições
eclesiásticas permitiu-lhes resistir aos abusos da nobreza,
que foram numerosos sobretudo durante o século XIII. No
caso dos Cistercienses, o seu isolamento e a relação com
centros estrangeiros e com uma cultura importada levou-os a
desempenhar um papel muito próprio. O ideal da «liberdade»
foi especialmente reivindicado pelos Cónegos Regrantes em
meados e no fim do século XII, exposto em várias cartas de
isenção que obtiveram de seus patronos, com quem, aliás,
continuaram a manter boas relações. Nos mosteiros citadinos
de Coimbra e Lisboa inspirou escritos onde reivindicavam um
papel de mentores do poder político e até do episcopal.
Esta independência levou os reis a escolherem vários
cónegos regrantes como bispos nos séculos XII e XIII, o que
lhes permitiu realizar uma acção pastoral que não foi ainda
suficientemente estudada. São exemplo disso João Peculiar,
no Porto (1136-1138) e em Braga (1138-1175), Mendo
(1147-1176) e Godinho Afonso (1176-1188), em Lamego,
Álvaro, em Lisboa (1164-1184), Paio, em Évora (1180-1204),
e Estêvão Soares da Silva, em Braga (1212-1228).
Estabelece-se assim uma certa relação entre o ideal
monástico e a organização pastoral diocesana, sobretudo
entre meados do século XII e as primeiras décadas do
seguinte.

Solidariedade: o parentesco

Como se sabe, numa sociedade sem Estado, o que a nível


local impera de facto é o poder e a ajuda ou a benevolência
dos que estão próximos. A autoridade régia é distante,
apesar do prestígio sagrado que a envolve. Para os
inferiores, torna-se indispensável buscar protecção; para
os do mesmo nível, precaver-se contra eventuais inimizades,
por meio de alianças e acordos. Ora, as alianças
estabelecem-se fundamentalmente por meio do matrimónio.
Este, por sua vez, inspira regras preferenciais ou
prescritivas destinadas a assegurar o equilíbrio social e a
estabilidade das relações, a regular as estratégias de
reprodução ou de acumulação patrimonial e simbólica. As
regras matrimoniais, por sua vez, conjugam-se com as
sucessórias, especialmente importantes quando se abandona
uma estrutura parental cognática, horizontal, baseada na
igualdade de todos os componentes do clã sob a autoridade
do chefe, para adoptar a estrutura linhagística, agnática e
vertical, que na sucessão inferioriza os filhos segundos e
as fêmeas.
De facto, este sistema, ensaiado primeiro por famílias
de governadores de terras nas regiões periféricas de Entre
Douro e Minho, para imitar o modelo sucessório da
monarquia, parece ter-se generalizado durante a segunda
metade do século XII. Daí que se adopte o hábito de
preterir os filhos segundos, atribuindo-lhes uma porção
marginal do património familiar, mandando-os como vassalos
servir o rei ou um senhor poderoso, alistando-os nos
exércitos da Reconquista, em Portugal ou na Andaluzia,
fazendo-os entrar num mosteiro, na vida clerical ou numa
ordem militar ou, finalmente, proibindo-os de casar e
sustentando-os como cavaleiros do senhor da linhagem. Para
as filhas, o seu casamento era especialmente útil para
selar as alianças com outras famílias, sobretudo com
aquelas de quem se esperavam serviços; as outras, porém,
tinham de ficar celibatárias na casa paterna ou iam
professar como monjas de alguma comunidade. Daí o
considerável aumento de fundações monásticas femininas, sob
a regra de S. Bento, na segunda metade do século XII, mais
tarde sob a reforma cisterciense ou das comendadeiras da
Ordem de Sant’Iago e, a partir do segundo quartel do século
XIII, das Clarissas ou das Dominicanas.
Assim se explicam fenómenos frequentes das genealogias
medievais: a habitual inferiorização social das linhas
colaterais perante a principal, a frequente barregania dos
filhos segundos, o considerável número de ilegítimos, a
ocupação dos jovens e bastardos como cavaleiros e
trovadores, a caça às viúvas e às jovens herdadeiras de
famílias sem varonia pelos membros da nobreza inferior. Os
casos concretos são inúmeros: basta verificar em que
posição familiar se encontram os cavaleiros, bispos,
cónegos, monjas, freires de ordens militares, pais de
filhos ilegítimos, nobres que morrem solteiros e sem
sucessão, para encontrar aí a explicação de muitos destinos
individuais.

161
Convém, todavia, não fazer de uma prática normal uma
regra absoluta. Conhecem-se muitas excepções. Podem mesmo
encontrar-se famílias que parecem praticar uma estratégia
de multiplicação e de apoio mútuo dos seus membros, como se
preferissem manter a antiga horizontalidade da estrutura
cognática. O que quer dizer que o sistema é de facto
maleável e está aberto a projectos particulares como
resposta a situações fortuitas, muitas vezes impossíveis de
medir ou detectar. Por outro lado, a estratégia
«malfhusiana» pressuposta pela restrição linhagística da
linha única parece responder a uma situação de grande
aumento da natalidade, como foi a do Ocidente europeu nos
séculos XI e XII, e particularmente a de Entre Douro e
Minho. Pode-se perguntar se a situação inversa, que se
verificou depois da peste negra, provocou reacções opostas.
Quanto ao regime matrimonial, podemos começar por
observar que é expressamente reconhecido, por exemplo, no
Livro velho de linhagens, para o caso da família da Maia,
como um elemento prestigiante, e que uma análise empírica
permite, sobre 32 famílias dos livros de linhagens,
verificar que foi de facto praticado um regime matrimonial
que obedece, em boa parte, ao sistema de «circulação de
mulheres», isto é, a agrupamentos de famílias unidos por
matrimónios frequentes ao longo de várias gerações. Os
quadros que apresentamos, embora não exprimam o pormenor,
dão uma ideia gráfica da maneira como o sistema funcionou
entre os séculos XI e XIII.
São seis os grupos que assim se uniram por matrimónios
preferenciais. Em primeiro lugar, a nobreza de corte
(anterior à guerra civil de 1245), na qual incluímos
Barbosas, Sousas, Riba de Vizela, Soverosas, Límias,
Ribeiras, Travas e a família real, com seus bastardos. A
seguir, o grupo dos ricos-homens da nobreza tradicional,
também ligados à corte, mas que foram, na sua maioria,
afastados dela desde o reinado de Afonso III e cujo núcleo
principal era constituído pelas linhagens consideradas
fundamentais pelo Livro velho. Finalmente, a nobreza
regional, dividida, por sua vez, em quatro grupos: os de
entre Douro e Ave, de entre Ave e Lima, de além-Lima e da
Terra de Santa Maria. Entre estes encontram-se também
governadores de terras e membros com funções na corte, mas
em posições inferiores às dos dois primeiros grupos; é de
entre eles que emergem os principais componentes da nova
nobreza de corte criada por Afonso III, o que explica as
suas ligações com membros de outras categorias a partir de
meados do século XIII.
As alianças têm, assim, orientações preferenciais, mas
não prescritivas: os chefes de linhagens cortesãs procuram,
em primeiro lugar, mulheres do mesmo grupo, e, em segundo
lugar, as prestigiadas ricas-donas do segundo grupo; só
esporadicamente casam com senhoras da nobreza média, de
implantação regional. Os primogénitos dos melhores
ricos-homens, com damas da corte e, em segundo lugar, com
as da sua própria categoria; fazem as outras alianças com
filhas da nobreza regional que vive perto dos seus solares.
As suas mulheres, porém, aliam-se frequentemente com
primogénitos da nobreza regional, sobretudo de entre Douro
e Lima. A categoria secundária destas pode sugerir que o
casamento selasse, neste caso, relações de solidariedade de
carácter vassálico. Mas só um estudo mais detalhado dos
casos poderia confirmar ou negar esta hipótese. De qualquer
maneira, o que adiante veremos sobre a natureza peculiar do
feudalismo português leva a considerar esta hipotética
vassalidade como raramente formalizada e provavelmente não
implicando obrigações estritas de parte a parte.
Quanto aos grupos regionais, facilmente se verifica a
preferência dos seus chefes por casamentos com mulheres
cedidas por ricos-homens mais poderosos e, na sua falta,
com as do mesmo nível e região. Há, porém, uma
característica própria dos nobres do Alto Minho, cuja
relação com a corte, quando vivia em Coimbra, no século
XII, lhes propicia alguns casamentos com damas desse meio.
É claro que estas lógicas preferências não excluem
anomalias, como são aquelas em que filhos segundos e nobres
de categoria inferior se unem a damas da corte e filhas de
ricos-homens. Seriam casos a estudar um por um. Não é de
excluir que se trate de deturpações da fonte utilizada: as
genealogias podiam transformar bastardas em legítimas.
Outras devem-se a trajectórias específicas de certas
famílias, como a dos Pereiras, que entrou em decadência no
século XIII, antes de recuperar a sua conhecida importância
social. Outras, ainda, a cargos palatinos de filhos
segundos da nobreza inferior.
Note-se também que os casamentos prestigiantes se
procuram às vezes fora de Portugal. Assim se explicam
ligações com os Travas, e, nos séculos XIII e XIV, com
Laras, Castros, Meneses e outros. Os nobres galegos de
ramos secundários, pelo contrário, procuram confirmar a sua
ascensão em Portugal casando com fidalgas da corte. Alguns
162
cavaleiros da Beira trazem as suas mulheres de Toledo ou
Sevilha.
O sistema de «circulação de mulheres», próximo da
endogamia, evita as infracções mais graves aos impedimentos
matrimoniais da igreja romana, mas aproveita a facilidade
com que ela dispensa ou tolera outros casamentos
consanguíneos. Tendo-se abandonado a união com primas e até
sobrinhas, frequente até ao fim do século XI, mantém-se,
todavia, um regime intermédio, sem regras prescritivas e
apenas com normas preferenciais. Estas não são ditadas, de
resto, pela solidariedade de estruturas largas de
parentesco, como nas estruturas «elementares» de povos que
praticam uma endogamia estrita, mas por princípios
estratégicos destinados a conseguir melhores posições no
xadrez da manutenção do poder já alcançado ou na obtenção
do que se ambiciona. As subtis normas hierárquicas acima
indicadas definem o quadro que condiciona o jogo.

Solidariedade: a vassalagem

O segundo processo de criação de laços de


solidariedade, depois do parentesco, é o da vassalagem.
Também ela constitui uma forma de estruturar a classe nobre
e de lhe permitir manter a sua posição dominante.
Tradicionalmente negada pela historiografia portuguesa
desde Herculano até Marcelo Caetano, tem, creio eu, de se
admitir, não só como ideal efectivamente dominante para a
mentalidade aristocrática, que fazia da fidelidade pessoal
o mais sagrado princípio da vida social e política, mas
também como um conjunto de instituições, cuja aplicação,
embora menos coerente e codificada do que na França do
Norte ou na Catalunha, nem por isso é menos efectiva.
Remetendo para estudos anteriores, onde procurei
examinar directamente os documentos que demonstram esta
posição, limitar-me-ei a apresentar aqui as principais
conclusões do que creio ter provado. Com efeito,
encontram-se referências frequentes a fideles, ou
cavaleiros de senhores, como o conde Sisnando de Coimbra,
Soeiro Mendes da Maia, Egas Moniz, Pedro Fernandes de
Castro, Gonçalo Pais, D. João Peculiar. Há-as também a
concessões de honores, isto é, de funções públicas ou dos
seus rendimentos; de tenencias, ou de benefícios
fundiários, no princípio do século XII por senhores como
Soeiro Mendes da Maia; de concessões de castelos mediante
homenagem e implicando fidelidade vassálica por outros
nobres, como Godinho Fafes, em Lanhoso, em 1245; de
subenfeudação de castelos, como os cedidos por Gonçalo
Pires Ribeiro em 1323 ou 1324; de entrega de atondos, isto
é, de benefícios compensatórios do serviço de um fidelis,
como o que fez Martim Moniz a seu cavaleiro João Gosendes
em 1092; do uso dos termos prestamum, aprestamum ou
prestimonium com o sentido de benefício feudal no princípio
do século XII e nos forais de Penarroias e de Bragança em
1187; de séquitos de senhores compostos por nobres que lhes
faziam serviço de cavaleiros ou outras funções domésticas,
como é o caso de Paio Honoriques, mordomo do conde Rodrigo
Pires Veloso, em 1133, etc. Sendo assim, são significativos
os textos dos livros de linhagens em que se dá notícia de
um nobre «fazer» cavaleiros, particularmente a amplificação
lendária de casos como os de Fernão Gil de Soverosa, que
«fez» 37, ou de Gonçalo Pereira, que teria «feito» 32,
dando-lhes os respectivos cavalos, para depois os resgatar
e entregar a outros tantos cavaleiros.
Estes testemunhos mostram, portanto, que existiu
feudalismo entre nós. Todavia, não se pode negar que ele
cria vínculos ténues, fragmentários e instáveis, faz da
vassalagem um serviço marcado por uma efectiva
inferioridade e nunca chega a ligar os grandes senhores
entre si. Os serviços vassálicos são frequentemente
compensados por doações plenas, que não mantêm o vínculo
feudal, ou por benefícios em dinheiro, panos ou outros bens
móveis, que aproximam o vassalo do mercenário. Por outro
lado, a terminologia institucional é imprecisa ou ambígua,
pois chama «vassalo» ao que é simples súbdito, «préstamo» a
contratos precários de camponeses, «homenagem» a um mero
juramento, «senhor» a quem não tem vassalo algum, e assim
sucessivamente. Além disso, permite o serviço militar com
entrega de benefícios fundiários a cavaleiros vilãos, reduz
o ritual da homenagem a um simples beija-mão ou contenta-se
com a homenagem tácita de quem se comporta como vassalo.
Isto não significa, no entanto, que a fidelidade não
seja, afinal, o mais sagrado dever de quem assume para com
outrem qualquer espécie de compromisso e que o contrato
feudal não seja a referência implícita de todas as relações
públicas. A terminologia feudal utiliza-se correntemente na
vida quotidiana como se fosse o modelo de todas as relações
sociais assimétricas, isto é, daquelas em que existe um

163
las em que existe um compromisso bilateral, mas um dos
contraentes depende do outro. Por isso está frequentemente
presente na poesia trovadoresca para exprimir as relações
entre os amantes; por isso o pecado de traição é o mais
reprovável de todos os crimes.
A debilidade do sistema vassálico português explica-se
provavelmente pelo facto de em Portugal não se terem nunca
chegado a formar casas senhoriais suficientemente poderosas
para terem vassalos de alguma categoria e riqueza. O seu
desenvolvimento foi impedido quer pela perda de varonia das
linhagens principais quer pela concorrência da coroa, que,
a partir de Afonso II, procurou sempre impedir a
proliferação de casas senhoriais fora do seu território de
origem. De facto, elas crescem ou estiolam na rivalidade de
umas com as outras, acotovelando-se mutuamente no exíguo
espaço minhoto. Depois, quando se lhe abrem os horizontes
mais amplos das planícies e planaltos meridionais, têm de
sofrer a concorrência das ordens militares e monásticas,
dos concelhos e sobretudo do rei. Poucos conseguem
vencê-la. Quando, finalmente, se constituem casas
senhoriais no Centro ou no Sul, já a monarquia está tão
solidamente implantada que só o podem fazer com a sua ajuda
e na sua dependência. Por isso nenhuma consegue recursos
suficientes para recompensar vassalos poderosos nem para
reunir mesnadas capazes de os obrigar a curvar a cabeça
quando hesitam em manter a fidelidade.
Assim, os vassalos «criados» nas casas senhoriais são
sobretudo filhos segundos de parentes modestos, que não
podem fazer exigências, mas que, não tendo muito a perder,
facilmente abandonam tal protecção para procurar outra mais
vantajosa. De facto, os vassalos devem ser quase todos
domésticos e raramente dotados de prestamos fundiários: os
seus benefícios são em bens móveis, panos ou dinheiro.
Mesmo assim, a atitude do cavaleiro mercenário, que vende o
serviço a quem dá mais, é censurada nas cantigas de
escárnio, como a que João da Gaia faz a respeito de Fernão
Vasques Pimentel. O género de vida destes vassalos está bem
expresso nas coloridas referências que facilmente se
encontram noutras cantigas de escárnio da mesma época.
Apesar de o ideal de fidelidade ser vivamente
recomendado e constituir como que o modelo por excelência
das relações sociais, é provável que os laços de
solidariedade mais eficazes fossem, afinal, os do
parentesco. A vassalagem, de resto, apesar de ser de
natureza diferente, não faz mais do que reforçá-los e
hierarquizá-los, pois os dependentes nobres são muitas
vezes parentes pobres. Assim, o modelo de classe
apresentado pelo conde D. Pedro no Livro de linhagens
pretende justamente unir as duas coisas: ao propor-se
«meter amor e amizade entre os nobres fidalgos da Espanha»,
dá como razão o facto de serem todos aparentados («pois
eles vêem de úu linhagem [...] nem devem poer deferença
entre si»). Daí que «o que tem parente no quinto ou sexto
grão ou dali acima se é de gram poder deve-o servir porque
em de seu sangue. E se é seu igual deve-o d’ajudar. E se é
mais pequeno que si deve de lhe fazer bem, e todos devem
seer-de úu coraçom». Porque, se assim fosse, diz o conde,
«non haveriam mester reis nem justiças, ca amizade os faria
viver seguramente em no serviço de Deus», ou seja, numa
solidariedade e ordem tal que dispensariam a realeza.
De facto, em Portugal, o rei é o único grande senhor
feudal: o que tem muitos e bons vassalos, torça para lhes
exigir fidelidade, terras e «contias» para os recompensar,
hostes para os castigar. É o modelo concreto que todos
gostariam de poder imitar e ao mesmo tempo o rival que
chega, com D. Dinis, a pretender tornar-se o «único»
senhor, com grande escândalo dos nobres que contra ele se
revoltam.
Assim, os laços da feudalidade são um modelo utópico,
cujo ideal exprime uma falta de unidade nunca conseguida
vencer na prática. Todavia, ao apresentarem-se como ideal
dão a ilusão de que ela é possível. Funcionam, por isso,
como factor de identificação social, de consciência
colectiva e de manutenção da posição de classe dominante
que de facto são.

Ideologia

A nobreza estrutura-se não só pelos laços reais do


parentesco e da vassalidade, mas também pela consciência de
classe. Esta manifesta-se como um sentimento de
superioridade èm matéria de gostos, de valores e de
crenças, assim como por costumes peculiares. São raros os
textos que apresentam estes costumes como valores e que os
justificam, mas eles funcionam como tal na prática.
Inspiram a caça, a guerra, os jogos físicos, a
familiaridade com o clero, o gosto pelas hierarquias e
respectivos sinais exteriores, sobretudo o vestuário e as
armas, o saber conhecer os bons cavalos, os bons cães e os

164
bons açores ou falcões, o culto das tradições e estórias
dos antepassados, a defesa da honra, a apreciação da
palavra justa no momento certo, a valorização da vingança e
da resistência física, da fidelidade à palavra dada, da
camaradagem dos que se agrupam em bandos.
Na impossibilidade de expor tudo isto em pormenor,
recordemos que até meados do século XIII predominam
provavelmente costumes ancestrais que conhecemos mal, mas
que, segundo algumas estórias dos livros de linhagens,
deviam valorizar os laços que prendiam o senhor a um espaço
concreto e aos homens e mulheres do senhorio ou da sua
parentela, com as suas preocupações, a interesses locais,
às rivalidades e conflitos com os vizinhos, à rebeldia para
com o rei. Nessa altura, a força prevalece sobre a cultura
(no sentido de uma estética, uma cultura intelectual ou um
domínio racional dos sentimentos). A partir de Afonso III,
porém, a corte régia torna-se mais poderosa e com maior
prestígio e concentra a prática exemplar dos valores que se
chamam justamente «de cortesia», baseados na repressão da
violência e no culto da palavra, no domínio da aparência,
no ambíguo jogo da obtenção do Poder pela sedução ou pelo
serviço e submissão ao rei, como senhor de todos os dons
essenciais. Passa então a ditar o gosto, as opiniões, os
valores, as preferências, difunde tudo isto por meio de
agentes exímios na arte da palavra — os trovadores e
jograis —, atrai a si todos os que descobrem que sem ela
não podem mais manter a sua posição social. Torna-se então
determinante na construção da ideologia nobiliárquica.
De entre os seus testemunhos interessam-nos de modo
especial aqueles que exprimem directamente o desprezo dos
vilãos. Este justifica-se pelo seu mau cheiro, a pele
escura, os cabelos desgrenhados e precocemente
embranquecidos, a abundância de pêlos, o vestuário
miserável. A distância do nobre para com o camponês é,
porém, tão grande que ele só muito raramente aparece no seu
horizonte. Está fora do seu mundo. Os não nobres cuja
inferioridade mais se exprime são os cavaleiros vilãos, que
pretendem imitá-lo, mas no exército do rei se apresentam
com cabelos e barbas animalescos, vestuário ridículo, armas
rudes, cavalos mal aparelhados, e que morrem de medo quando
atacados pelos ginetes mouros; só servem para acompanhar os
transportes da retaguarda, não para entrar na batalha. Além
do mais, são ignorantes, deixam-se enganar e enganam os
seus senhores, não conhecem as barreiras sociais, e, por
isso, expõem-se ao desprezo de todos.
Sendo assim, devem-se considerar especialmente
infamantes os maus casamentos atribuídos a certos nobres
que desposam mulheres de condição inferior, como se diz de
alguns mencionados nos livros de linhagens. A diferença
social manifesta-se até na onomástica. Até ao fim do século
XII, nenhum nobre se chama Domingos, Bento, Tomé ou
Bartolomeu. Dificilmente se chamará Julião. As alcunhas
reservam-se para gente inferior, filhos segundos ou nobres
de segunda categoria.
De facto, os nobres consideram a estabilidade social
como um princípio quase absoluto, tal como a própria ordem
cósmica. As categorias sociais devem manter-se como estão.
Separadas. Estáveis. Não deve haver transferências de uma
para outras. Os inferiores, como os pequenos cavaleiros que
aspiram a ser ricos-homens, mesmo os que o rei favorece e a
quem dá a sua confiança, expõem-se às severas críticas de
todos e até ao ridículo. Os senhores avarentos, que não
pagam aos seus vassalos e cavaleiros com generosidade, são
desprezíveis. Os infanções esfomeados e provincianos
cobrem-se de ridículo. Os favoritos podem ser nobilitados
pelo rei, mas não basta isso para saberem vestir ou
combater como os nobres de velha cepa. Todos se devem,
portanto, comportar como está preceituado, segundo os
costumes e regras de conduta que a respectiva posição
social impõe. É esse o mais importante segredo da
preservação da ordem que Deus estabeleceu no Miando e que
nele deve reinar desde a criação até ao fim dos tempos,
como fazendo parte da sua própria natureza.
Os dependentes

A lógica do sistema senhorial faz que ele tenda a


alastrar, a suprimir os interstícios que uma organização
anterior, a que fizemos referência no primeiro volume,
ainda deixara aqui e além, mas se tornam cada vez mais
raros no espaço minhoto, que continua a ser o ponto de
partida para esta exposição. Não é necessário, ao contrário
do que fizemos para a nobreza, explicar os fundamentos da
inferioridade social dos dependentes. Os privilégios da
nobreza são por si suficientes para compreender que quem os

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não possui passará a depender dela: se a nobreza se
apropria não só da riqueza, mas também de todas as formas
de poder sobre os homens — exercer a autoridade pública,
julgar, comandar guerreiros, cobrar impostos, ditar a lei
—, aqueles cujas prerrogativas se fundam apenas na posse de
seus corpos e de suas terras têm fatalmente de acabar por
se lhe sujeitar. O sistema senhorial acaba não só por
multiplicar os senhores, mas também pôr lhes equiparar o
rei e tornar o seu poder análogo ao deles; os dependentes
do rei terão também um estatuto semelhante: deixam de ser
livres, para ficarem sujeitos e ele como senhor privado.
Por outro lado, o sistema tende a nivelar também os
dependentes, apesar de procederem de categorias diferentes,
dotadas ou não de liberdade. Assim como o modelo do senhor
é o nobre, o modelo do dependente é o servo. Todavia, a
falta de liberdade que caracteriza o servo é ambígua.
Ignora-se até que ponto afectava todos os dependentes. O
que uniformiza a sua classe não é tanto a servidão, mas o
facto de todos se dedicarem a actividades produtivas. Na
ideologia indo-europeia classificar-se-iam na «terceira
função». Os teóricos dos séculos XI e XII chamam-lhes, por
isso, laboratores, tomando como modelo os que trabalham na
terra. Mas incluem nela os que se dedicam ao comércio ou
vivem da pastorícia e da caça, porque também são
produtores, apesar de, segundo a lógica do sistema
senhorial, se adaptarem mal ao tipo de dependências que ele
cria.
A unidade da classe não pode, todavia, fazer esquecer
as diversas categorias que a compõem. De facto, as
obrigações dos dependentes são bastante variadas.
Examinadas de uma perspectiva evolutiva, permitem
compreender melhor o funcionamento do sistema senhorial.
Depois de estudarmos cada uma delas, veremos as formas de
solidariedade que as unem.

As categorias
Apesar da tendência para o nivelamento, podem-se
distinguir entre os vilãos, como nitidamente privilegiados,
os herdadores. Conhecemos o seu estatuto sobretudo através
das inquirições de Afonso II e de Afonso III, onde já não
se podem classificar como livres, porque são propriamente
homens do rei (considerado como «senhor»). Nota-se aí que a
sua dependência é recente: pertencem ao rei porque todo o
homem tem de ter senhor (como dizem as leis de 1211). O
facto de, na sua maioria, estarem obrigados à «voz e coima»
e, como foros, pagarem apenas a fossadeira e não outras
prestações senhoriais, evidencia a natureza pública destes
tributos. O primeiro indicava que eram julgados no tribunal
público e não rio do senhor da terra; o segundo,
considerado até aqui como substitutivo do fossado, ou
serviço militar (que só obrigava os homens livres), creio
se deve interpretar antes, como sugeriu Alberto Sampaio,
como um imposto público sobre a terra, equivalente ao que
na Beira se chama «jugada». Normalmente não pagam uma
porção do vinho e do cereal que as suas terras produzem nem
as miunças ou «direituras», que correspondem à ocupação da
casa e do quintal. A terra pertence-lhes: herdaram-na dos
antepassados; por isso se chamam «herdadores». Em algumas
freguesias, conseguem preservar o direito de eleger o
pároco — outro vestígio da sua antiga liberdade —, embora
tenham de o sujeitar à confirmação do rei. Um certo número
deles paga prestações senhoriais, como a lutuosa, a
pousadia ou jantar, mais raramente a ramada, a
entroviscada, a anúduva, etc, sem que se possa descobrir
uma razão lógica para as inúmeras variedades de situações
que se encontram em Entre Douro e Minhoca não ser admitindo
que se devam à grande variedade de processos e de factores
que determinaram a implantação do sistema senhorial em cada
lugar.
Seja como for, os casos registados nas inquirições de
1220 e de 1258 mostram ã rápida degradação a que foi
sujeita a condição dos herdadores durante o século XIII. Os
frequentes indícios de organizações colectivas e a maior
ligeireza das prestações senhoriais em Trás-os-Montes, onde
a senhorialização era então mais recente, confirmam esta
interpretação.
Ao contrário do que acontece com os herdadores, não
existe um termo comum para designar os vilãos que não
trabalham terra própria, mas a que o senhor lhes entregou a
eles ou aos seus ascendentes. Por uma questão de clareza,
chamamos-lhes «colonos», embora seja raro o uso deste termo
na documentação da época. O facto de não serem
originariamente livres explica que normalmente não paguem
fossadeira nem voz e coima. Cultivando terra alheia, não
admira que paguem por ela uma percentagem da produção de
vinho e de cereal e produtos caseiros (miunças ou
direituras) pelo uso da casa e do quintal. São a maioria
dos cultivadores dos «reguengos», segundo a divisão do
cadastro de 1220 (por oposição aos que aí pagam «foros e
dádivas», ou seja, direitos públicos e senhoriais).

166
A melhor maneira de averiguar a condição efectiva
destes camponeses consiste em determinar que proporção de
vinho e pão entregam ao senhor. A norma, com numerosas
excepções, aponta para o predomínio de um terço do cereal e
de metade do vinho em Entre Douro e Minho, mas mais ligeira
em terras altas e menos férteis, onde pode ir até um sexto
ou um sétimo do cereal e nenhum vinho. Os poucos contratos
rurais anteriores a 1200 parecem apontar para rendas menos
pesadas, mas esta diferença pode resultar quer de os
cultivadores serem, à partida, homens livres, quer de
viverem em áreas menos férteis. Os numerosos «prazos» do
século XIII mostram que mesmo os cultivadores por contrato
se têm de sujeitar a prestações senhoriais a partir de
1250-1275, incluindo o pagamento de jeiras (trabalho por
conta do senhor), o que é um novo resultado do agravamento
da sua condição e do processo de nivelamento a que já nos
referimos.
Até há pouco, pensou-se, talvez por influência da
mítica categoria dos servos da gleba, que os camponeses dos
domínios senhoriais, embora sujeitos a pesadas prestações,
gozavam normalmente de uma situação estável. O facto de
perderem os bens, se abandonavam a terra, parecia
significar que o senhor não queria perdê-los, tal como
acontecia com os escravos; não se imaginava que pudesse
expulsá-los facilmente. Ora, algumas investigações recentes
mostram que o característico excesso de mão-de-obra do
Minho até meados do século XIV levava a que o senhor
expulsasse os cultivadores sob qualquer pretexto (como os
do couto de Pedroso em 1271 e 1278) e que em certos casais,
chamados «sanjoaneiros», eles fossem normalmente
substituídos por ocasião de S. João (24 de Junho). Por
outro lado, quando o senhor tinha o poder judicial, como
era habitualmente o caso dos que eram nobres e
eclesiásticos, aplicava pesadas multas a todos os
infractores das normas estabelecidas, sobretudo as que
reprimiam os prejuízos causados ao senhorio ou que
restringiam a comercialização dos produtos do cultivador, o
uso do bosque e do rio, a ampliação da área cultivada, etc.
A condição dos colonos dos domínios senhoriais era,
portanto, bastante dura.

[legenda de figura.]
Porções cobradas pelos senhorios nos emprazamentos.
Este mapa, baseado num de Robert Durand (1982), mostra
quais as razões pagas predominantemente em cada região
segundo os emprazamentos a sul do Douro do fim do século
XII e do século XIII. Desprezando os casos minoritários,
verifica-se uma exigência maior dos senhorios nas zonas de
Lamego e da Estremadura, e muito reduzida na zona da seira
da Estrela. Este fenómeno revela, evidentemente, diferenças
consideráveis nas relações sociajs de produção. Mas pode
também resultar das disparidades de fecundidade do solo.

Mais dura ainda devia ser a dos antigos escravos. Como


se sabe, a transição da Antiguidade para a Idade Média
caracteriza-se, entre outras coisas, pelo seu
desaparecimento progressivo. A maioria deles, porém, não
recebeu a liberdade total: foi colocada no domínio e dotada
de terras, passando assim à categoria de servos. Os
especialistas da história da escravatura pensam que este
processo, iniciado ainda no Baixo Império, se prolongou até
ao século X. No século seguinte, porém, o avanço da
Reconquista multiplicou os escravos mouros em mãos de
cristãos. Dedicavam-se normalmente a trabalhos domestiços e
artesanais, mas nem esses trabalhos nem a sua condição de
mouros impediu de serem muitas vezes colocados também no
domínio e dotados (casati) de um casal ou unidade de
exploração familiar. É provável que fossem sobretudo estes
antigos escravos e os seus descendentes que tinham de pagar
prestações em trabalho periódico (uma vez por semana ou
algumas semanas por ano) por conta do senhor (jeiras). A
verdade, porém, é que estas prestações, embora
relativamente frequentes, não oneram a maioria dos
dependentes. De facto, uma das características comuns do
regime senhorial minhoto é que as reservas senhoriais eram
normalmente exíguas; o senhor não necessitava, pois, de
muita mão-de-obra para a parte do domínio que administrava
directamente. As guerras da Reconquista continuaram a
alimentar a escravatura doméstica durante os séculos XII e
XIII (até 1149). Esta, por sua vez, continuou a fornecer

167
cultivadores rurais, que os senhores leigos e eclesiásticos
foram colocando nos seus domínios, como testemunham os
numerosos mauri mencionados nas inquirições. Existem muitas
notícias tanto dos primeiros como dos segundos, sobretudo
até ao fim do século XIII. Nesta altura, os mouros que
permaneceram em território cristão e aqui continuaram as
suas actividades eram considerados propriedade do rei e
dedicavam-se normalmente a trabalhos artesanais ou à pesca.
Dêmos como exemplo os mouros pescadores de Paredes
(Leiria), que em 1286 receberam de D. Dinis uma carta de
povoamento. Aparentemente, a condição destes antieos
escravos é muito semelhante à dos que chamamos «colonos».
Admitimos, no entanto, que uma análise aprofundada acerca
das prestações em trabalho pagas pelos cultivadores permita
definir melhor esta categoria de dependentes e a sua
eventual origem servil. A tendência niveladora pode ter
funcionado em seu favor, fazendo esquecer a antiga
inferioridade.
As três categorias de herdadores, colonos e servos,
chamemos-lhes assim, parecem englobai-a maioria dos
dependentes nos meios rurais de regime senhorial. Mas a
necessidade de assegurar a administração dominial leva a
atribuir uma considerável importância a um grupo
minoritário, que não se distingue pelo grau de liberdade,
mas pelo facto de englobar os que servem de intermediários
entre os senhores e os dependentes, sendo eles próprios
dependentes e mesmo, porventura, escravos de origem.
O mais importante número destes intermediários é
formado pelos mordomos, constantemente mencionados na
documentação da época: a eles se dá a pousadia e jantar
quando vão visitar os casais, se promete servir e
respeitar, medem o grão na eira e o vinho no lagar, vigiam
os moinhos e os gados, impõem os padrões dos pesos e
medidas e a forma de medir, juntam os homens para cavar as
vinhas ou pisar as uvas, exigem o serviço da carraria para
acompanhar a entrega das rendas no celeiro de senhor ou
para enviar mensagens. Dotados de poderes quase
discricionários, são odiados pelos camponeses e tiram
proveito da sua situação para prosperarem. Não se sabe,
todavia, até que ponto podiam tornar-se completamente
livres e investir os seus ganhos em propriedades suas para
produzirem por conta própria.
Outro intermediário é o juiz. Se exerce o seu ofício
nas terras da coroa, pode até ser eleito pelos herdadores;
este caso é raro no Minho, mas frequente em Trás-os-Montes.
Não sabemos como evoluiu a sua figura no século XIII. As
inquirições e o desenvolvimento da justiça régia parece
terem-lhe dado prerrogativas consideráveis, e mesmo um
certo papel na luta anti-senhorial, mas o relevo cada vez
maior dos mordomos régios, com funções judiciais nos
reguengos, pode ter produzido o efeito contrário. É um dos
problemas em suspenso da nossa historiografia medieval. De
qualquer maneira, o juiz régio parece ser bastante
diferente do juiz senhorial, que, pelo menos nos coutos,
aplicava a justiça em nome do senhor e que devia ser tão
odiado como o mordomo.
Mencionemos, finalmente, os arrendatários, isto é, os
cultivadores que se encarregam de promover empreitadas de
desbravamentos, que tomam casais de outrem à sua conta
mediante o pagamento de uma soma previamente acordada com
ele. Este tipo de contratos parece ter sido mais frequente
do que o sistema senhorial faria prever. Conhecem-se
negócios deste género feitos por cavaleiros, mas
provavelmente houve-os também realizados por mercadores que
resolveram investir os seus lucros na terra, sobretudo à
volta de cidades onde moravam, para desenvolverem a
produção de géneros mais facilmente comercializáveis, como
as hortaliças e sobretudo o vinho.
No outro extremo do sistema senhorial, mal integrados
ria sua orgânica típica, encontramos a categoria dos
assalariados. Pertence-lhes p grupo dos cabaneiros, que não
têm terra própria para cultivarem e são numerosos na
periferia das cidades. Pagam uma renda em produtos
domésticos e vivem miseravelmente do trabalho sazonal nos
domínios das redondezas.
Os assalariados permanentes são moços de lavoura e
vivem em casa do senhor: são jovens solteiros e fazem
trabalhos domésticos ou tratam dos animais da reserva.
Podem também ser pastores e levar o gado do senhor onde for
necessário. A lei dos preços de 1253 prevê os salários
inuais de dez espécies destes moços, conforme as suas
ocupações predominantes.
Distingamos, finalmente, os trabalhadores que não se
dedicam à agricultura, mas à caça, à pesca ou a colher a
cera e o mel silvestres. São uma espécie residual dos
produtores, outrora numerosos, que se dedicavam a
actividades pré-agrícolas. Vivem numa certa marginalidade e
abundam nas terras altas, onde ainda existem amplos
terrenos de bosque e de monte não cultivado.

168
Solidariedades campesinas

O panorama de um sistema senhorial totalmente dominado


pelas relações verticais entre senhores e dependentes, com
a inteira servidão destes últimos, é demasiado esquemático
para dar conta de uma realidade pluriforme e em que
intervêm factores muito variados. Pode-se considerar
razoavelmente próximo da realidade histórica nos coutos e
honras, mas bastante distante em muitas outras situações. É
o caso das regiões em que na mesma aldeia vivem
cultivadores dependentes de vários senhores, dividindo
estes, por vezes, as rendas da mesma unidade de exploração,
em virtude das partilhas hereditárias. Ora, esta situação é
extremamente frequente, sobretudo na área mais densamente
habitada de Entre Douro e Minho, onde, apesar de existirem
condições para o habitat disperso, prevalecia ainda,
provavelmente, o concentrado em aldeias. Assim, a
predominância do regime senhorial nem sempre impede a
solidariedade campesina e a efectiva liberdade
administrativa dos cultivadores, que podem associar-se
entre si para muitas questões de interesse colectivo.
Embora se possa presumir que os interesses das
comunidades rurais deveriam reforçar os laços da
solidariedade familiar, só podemos encontrar testemunhos
concretos de um sistema de parentesco unilinear, como o que
prevaleceu para a nobreza, embora a sucessão campesina não
seja necessariamente por via masculina. De facto, os
próprios senhores tendem a impor aos seus caseiros a
transmissão das suas explorações numa linha única, para
evitar a sua divisão, ou então tomam precauções para que
haja sempre um responsável pelo pagamento das rendas: o
cabeça-de-casal. Nos contratos rurais (prazos) vai-se
impondo a fórmula em «três vidas», isto é, vigente durante
a vida do contraente, do seu cônjuge e de um filho de
ambos. Mas, em certas zonas onde o crescimento demográfico
é maior, estas precauções não impedem a proliferação de
casais, e, por isso, a sua divisão em fracções. A
existência de agregados familiares alargados ou múltiplos
parece ser frequente. As condições de cultivo e as
necessidades de associação e de controlo da sucessão devem
ter contribuído para tornar frequente o sistema de
circulação de mulheres, à semelhança do que acontecia com a
nobreza.
A maré senhorial foi destruindo as antigas organizações
comunitárias de cultivadores, primeiro nas áreas mais
férteis, depois nas mais agrestes. Estas podem ter
resistido muito tempo. Em meados do século XIII estavam
ainda vigorosas em Trás-os-Montes e por vezes
permitiam-lhes fazer face à imposição de prestações
senhoriais. Outras vezes mantinham-se através da conquista
do direito de escolher o seu senhor, formando beetrias,
como aconteceu na zona de transição do Minho para
Trás-os-Montes, ou quando pertenciam ao rei e este lhes
concedia forais para reconhecer algumas prerrogativas da
colectividade. A igreja paroquial constitui normalmente um
elemento vinculador da comunidade vicinal. Daí a
importância dos casos em que os herdadores mantêm o direito
de eleger o cura. O papel ordenador da igreja reforça-se
mais tarde com as confrarias, que aparecem primeiro nas
cidades, mas alastram no meio rural durante o século XIII.
As comunidades rurais, quer pela sua própria natureza,
quer em virtude das imposições do meio geográfico, quer por
causa das condições impostas pelo regime senhorial, não
criam qualquer vínculo normal umas com as outras. Pelo
contrário, cultivam a rivalidade e a concorrência. O único
elemento que permite ultrapassar as fronteiras mentais da
sua compartimentação é a importante e arreigada prática das
romarias a santuários situados nacruzamento de caminhos, em
lugares ermos, onde a Natureza toma uma configuração
extraordinária e onde, portanto, favorece o encontro do Céu
com a Terra. Aqui preservam-se vigorosamente formas de
culto quase pré-histórico, que a igreja oficial tolera e
que, por corresponderem a pulsões do inconsciente ou do
subconsciente colectivo, seduzem fortemente não só os
camponeses, que aí acorrem para pedir a cura dos seus males
ou obter a fecundidade dos campos, dos animais e das
mulheres, mas também os nobres de todas as categorias. São
eles que inspiram numerosas cantigas de amigo, onde se
evoca o ambiente de festa popular aí vivido. Ao fornecerem
o lugar para a celebração de feiras, onde a troca de bens
tem uma conotação quase religiosa, abrem caminho a uma das
mais conhecidas formas de ligação dos últimos vestígios da
Pré-História com as novas formas da economia moderna.

Os Concelhos

O espaço próprio do regime feudal e senhorial era, como


vimos, o Entre Douro e Minho. O dos concelhos, o resto do
País. Depois de termos procurado descrever os aspectos
principais do primeiro, passamos agora ao segundo. Convém
não esquecer o artificialismo do esquema. Queremos aqui
reconstituir um modelo, isto é, uma abstracção, e para isso
procurámos o que se podem considerar as situações mais
típicas. Neste caso, são os concelhos do interior do País.
Mas é necessário considerar também, logo de seguida, o das
cidades do litoral e do Sul, que adoptam igualmente a
organização municipal. Teremos, pois, de fazer constantes
distinções que permitem dar uma efectiva operacionalidade
ao modelo, quando utilizado para exprimir as grandes
situações históricas.
Convém também não esquecer que, mesmo no território
tipicamente concelhio, se fez sentir um regime dominante
que em pontos fundamentais não coincidia com a organização
municipal, ou seja, que o feudalismo contaminou, em
fórmulas e doses variáveis, conforme as épocas e os poderes
prevalecentes, todo o território português fora de Entre
Douro e Minho, sua região de origem; mas o resto do País
nem por isso deixou de manter o sistema concelhio como
organização de base.
A vastidão e a variedade do espaço concelhio obrigam
também a fazer, à partida, outras distinções fundamentais,
porque as características de cada meio geográfico
condicionam decisivamente as formas que em cada um deles
revestem os respectivos concelhos. De facto, as condições
do litoral diferem muito das do interior, mesmo a Sul do
Mondego, e as do Norte opõem-se em muita coisa às do Sul.
Estas grandes coordenadas dão conta de uma série de
características fundamentais nas quatro grandes áreas que
delimitam, mas no interior destas encontram-se outras
condições mais específicas, que, por sua vez, recortam cada
uma delas em áreas menores; em algumas destas predomina o
seu carácter de zonas de transição, noutras os caracteres
são nitidamente antagónicos. Assim, o que se diz acerca do
Ribatejo não se aplica ao Alentejo, e o que se diz deste
difere do que se pode dizer da Beira Baixa ou do Algarve. A
divergente evolução histórica de cada uma destas regiões
acentuou frequentemente as diferenças impostas pelo meio
físico ou climático. Que o leitor tenha presente todas
estas variáveis de tempo e de espaço, para não forçar as
generalizações que uma exposição esquematizante terá sempre
de fazer para se poder distinguir o essencial do
secundário.

O espaço

Montanha e planície

Nunca é de mais insistir na diferença fundamental que


separa, por um lado, a região a norte do sistema montanhoso
da Estrela, com uma altitude média superior a 400 m e com
uma pluviosidade média superior a 1000 mm, e, por outro, o
resto do território português, onde aquela desce abaixo de
200 m e esta é inferior a 800 mm. Mas ambas se unem numa
comum oposição ao Entre Douro e Minho, cuja implantação,
virada ao Atlântico, permite uma maior condensação marítima
e cujos solos graníticos, fertilizados pela água, podem
alimentar muita gente: nem numa nem noutra se pode
verificar concentração populacional, quer devido ao solo
rochoso, acidentado e escalvado pela erosão, a norte, quer
devido à escassez de água, a sul. Exceptuam-se o litoral
estremenho e a costa algarvia, onde a condensação marítima
sobre os pendores que ligara a costa ao interior volta a
criar condições mais propícias à fixação dos homens.

170
[Legenda de figura.]
Centros urbanos medievais e aglomerados.
Utilizando simultaneamente dois indicadores — o número
de tabeliães previstos no tabelamento do fim do século XIII
e o número de conventos urbanos (mosteiros e conventos
mendicantes) fundados até ao fim do mesmo século — podemos
ter uma ideia da grandeza relativa dos centros «urbanos» na
mesma época. Pode ver-se também onde predomina o habitat
disperso e o habitat concentrado.

171
Na maior parte deste território, o meio geográfico
adverso contribui, portanto, para concentrar a população em
aldeias ou cidades; as condições históricas, desde o século
vm até meados do século XIII, igualmente. Quero-me referir
à situação de guerra permanente, que já descrevemos no
volume anterior e que obrigava as populações a
defenderem-se das incursões militares. Tanto uma razão como
outra contribuem para reduzir a área do terrádego às vinhas
e hortas entre as casas e no seu aro mais imediato e ao
círculo seguinte dos campos de cereal. Mais longe
situava-se frequentemente uma zona intermediária entre o
ager e o saltus, onde se faziam as culturas temporárias,
que não constituíam desbravamentos permanentes ou campos
sujeitos a longos períodos de pousio, e depois o monte
selvagem, sob a forma de bosque ou de maninho, onde havia
muita caça grossa e miúda, onde se podia apanhar lenha à
vontade, colher o mel e a cera silvestres, pescar nos rios
ou levar o gado a pastar. A caça e a pesca podiam ser
apenas actividades subsidiárias na economia das aldeias de
habitat concentrado no interior do País, mas a pecuária
era, sem dúvida, a de maior valor, devido às condições
físicas e climáticas e à frequência do combate ou do roubo:
as atalaias e esculcas nos pontos altos do concelho e os
hábitos de guerra sazonal permitiam recolher o gado e as
pessoas quando o inimigo se aproximava, minorando, assim,
as dificuldades de uma situação adversa.
Nestas condições, rodeadas de uma natureza ingrata ou
ameaçadas pelos inimigos, formavam-se no interior do País
comunidades fortemente concentradas sobre si mesmas,
criadoras de sistemas colectivos de defesa, atentas à
preservação de laços de solidariedade para estabilizar os
frágeis equilíbrios alcançados, fortemente tradicionais,
propensas à violência, dotadas de códigos penais
verdadeiramente cruéis. É evidente que estas
características, vindas desde tempos imemoriais, se
verificam mais no interior do que no litoral. Aqui, a
possibilidade de arrancar à terra variados meios de
subsistência atrai homens de outras regiões, a facilidade
das comunicações propicia constantes transferências de
pessoas e de bens, mistura as tradições culturais, permite
aos mais ousados e empreendedores triunfar sobre os fracos
e abre caminho ao individualismo. Profundamente arreigados
por séculos de defesa, os hábitos sociais são muito mais
estáveis e persistentes nas comunidades do interior do que
nas do litoral. Mesmo quando as oligarquias municipais se
sucedem e alteram os seus processos de domínio social, os
hábitos de controlo colectivo e de vigilância mútua mantêm-
se. São precisos muitos séculos para se alterarem, mesmo
quando desaparece a pressão externa da guerra. Nas cidades
do litoral, pelo contrário, tudo muda rapidamente.
Note-se, finalmente, que a avareza das condições
naturais e o carácter rudimentar da tecnologia disponível
não permitem modificar facilmente o panorama da implantação
populacional. Os séculos XI a XIII, justamente os que nos
interessam, foram época de forte crescimento demográfico,
de que resultaram frequentes tentativas de desbravamentos
em locais antes desertos. Muitos deles transformaram-se em
povoações estáveis; outros, porém, revelaram tal
fragilidade perante as condições adversas de clima e de
produtividade do solo que tiveram de ser abandonados, ainda
no século XIII (é o caso concreto de Coja, antes de 1260),
ou, mais tarde, durante a grande depressão dos séculos XIV
e xv.
Campo e cidade

Se dispuséssemos de dados quantitativos acerca da população


dos centros urbanos portugueses nos séculos XII e XIII,
poderíamos apresentar uma rápida visão sintética do
problema que agora nos interessa e simplificar esta
exposição. Na sua total ausência, teremos de proceder por
aproximações sucessivas e limitar-nos a observações
elementares. Verificaremos, primeiro, uma distribuição de
cidades reduzida à área litoral, numa faixa contínua de
sentido norte-sul, que deixa o interior apenas com centros
de dimensões reduzidas; depois, a alteração das suas
funções, quando deixam de estar integradas em dois grandes
espaços económicas — o cristão e o muçulmano —, para
formarem o eixo fundamental de todas as relações económicas
e políticas dentro do espaço nacional definido em 1249; em
terceiro lugar, a importância de um processo evolutivo
urbano condicionado por sucessivas transformações no
desenvolvimento das comunicações, da circulação económica e
da difusão da moeda; finalmente, a oposição entre uma
evolução rápida e profunda das cidades e a estabilidade dos
campos, ao mesmo tempo que se dá uma influência progressiva
daquelas sobre estes.

172
A geografia urbana de Portugal revela, de facto, um
grande contraste entre o litoral e o interior. As cidades
de alguma dimensão situam-se num eixo de sentido norte-sul,
paralelo à costa atlântica, tendo como pólos principais
Braga, Guimarães, Porto, Coimbra, Santarém, Lisboa e Évora,
e que daqui se bifurca, por um lado, em direcção a Badajoz
(que sucede à antiga encruzilhada romana de Mérida) e a
Sevilha, e, por outro, à via fluvial do Guadiana, que
permite alcançar mais facilmente o Mediterrâneo a partir de
Mértola. No extremo Norte, este eixo aponta para Santiago
de Compostela, cuja poderosa atracção fez o sucesso de
vários burgos no caminho para França. Até ao fim do século
XII, era um dos mais importantes meios de comunicação entre
o mundo cristão peninsular e o muçulmano, assegurando,
assim, as trocas entre dois espaços com características
económicas muito diferentes. Os seus entrepostos principais
foram Coimbra, entre 1064 e 1147, Lisboa, entre 1147 e
1165, e Évora, entre 1165 e 1248. Quando se completou a
formação territorial portuguesa, Lisboa passou a
desempenhar o papel de grande entreposto do comércio
marítimo nas trocas entre o mundo atlântico e o
mediterrânico.
As violências e destruições trazidas pela guerra, se,
por um lado, dificultaram muitas das relações económicas e
as reduziram às transferências de bens móveis captados na
pilhagem ou transaccionados pelo comércio de produtos
artesanais e de luxo, por outro, obrigaram os principais
centros urbanos a tirar partido dos seus próprios recursos.
Quando as condições militares se alteraram e foi possível
organizar os transportes de mercadorias pesadas, as cidades
desenvolveram-se rapidamente, sobretudo as que estavam
perto do mar. De facto, a deterioração das vias terrestres
e a compartimentação do espaço medieval criavam grandes
dificuldades ao transporte demercadorias em grosso, que
quase só se podia fazer por via fluvial ou marítima. Assim,
a peregrinação a Santiago e as cruzadas, depois da
conquista de Coimbra, em 1064, permitiram o desenvolvimento
das cidades a norte do Mondego; a conquista de Lisboa
transferiu para esta cidade o pólo do comércio marítimo
atlântico; não muito tempo depois, a de Évora atribuiu a
esta cidade um papel fundamental nas comunicações da área
atlântica, a partir de Lisboa, com a área mediterrânica,
num eixo aproximadamente semelhante ao que outrora, no
mundo romano, se orientava para Mérida. A conquista do
Algarve assegurou melhor o domínio de uma destas vias, mas
teve mais impacte sobre a circulação marítima do que sobre
as vias terrestres.
Apesar de, durante a época medieval, a diferença entre
a cidade (vila) e o espaço circundante (termo) ser muito
maior do que aquela que resultou do domínio definitivo da
economia urbana, na época moderna, a relação entre uma e
outro foi sempre fundamental. A cidade não podia existir
sem esse espaço e vivia em grande parte do domínio fiscal
que sobre ele exercia. Mas a prosperidade urbana não
dependia tanto deste facto como da intensidade das relações
que podia estabelecer com centros económicas mais distantes
e de grandes dimensões. O crescimento destes pólos
fundamentais, por sua vez, levou à multiplicação de
núcleos-satélites à sua própria volta. Assim se formaram em
Portugal umas tantas constelações urbanas em torno do
Porto, Coimbra, Santarém, Lisboa, Évora e Silves. Basta
examinar um mapa dos centros urbanos medievais para o
verificar. Não vamos descrever aqui a sua evolução, pois a
história das cidades processa-se em ciclos curtos e sofre
alterações mais rápidas do que as do mundo rural e o que
nos interessa neste momento são as estruturas e o tempo
longo. Acentuemos apenas que as manchas urbanas são tanto
mais densas quanto mais habitados os pólos de que dependem,
como se vê pela sua cartografia.
Mais para o interior, a situação é muito diferente: a
dificuldade dos transportes terrestres torna mais moroso o
processo de desenvolvimento urbano nesta área. Leva muito
tempo a superar o atrofiamento das suas vias de comunicação
desde o fim do Império até ao século XIII. Tanto mais que a
guerra santa criou uma vasta zona dominada pelos combates
constantes, onde a economia se baseava quase exclusivamente
na criação de gado e na pilhagem, a partir de povoados
rodeados de muralhas. Era a que ocupava uma imensa área por
onde antes circulava um dos principais eixos de comunicação
da época romana, entre Mérida e Astorga. Esta situação
atrofiou todas as ligações com o interior. Só depois da
conquista de Cáceres, em 1227, a que se seguiu rapidamente
a de Mérida e de Badajoz e, em 1248, a de Sevilha, é que
ela se alterou. Reconstituídos os eixos de comunicação
norte-sul no interior da Península, desenvolveram-se os
seus pólos principais na meseta ibérica e a seguir as vias
transversais, que a pouco e pouco foram ligando cada um
deles aos principais pólos do litoral português.

173
Assim aconteceu com Bragança pelo menos na época de D.
Dinis e com a Guarda a partir de Sancho I. Évora, de que já
falámos, estava fora desta zona, na medida em que assumia o
papel de entreposto de ligação da costa atlântica com
Sevilha, através de Badajoz. Assim se explica o quase
desaparecimento de Egitânia (Idanha), que tinha sido
diocese na época romana e visigótica que ainda era
importante para Rasis. Viseu e Lamego, que exerceram uma
função militar importante entre 1064 e 1147,
desenvolveram-se com dificuldade. Constantim de Panoias,
que parecia ser importante no fim do século XI; quase
desapareceu, para ressurgir em Vila Real de Trás-os-Montes,
com D. Dinis. Elvas cresceu a pouco e pouco, junto a
Badajoz. Castelo Branco apareceu tarde. Beja definhou, para
voltar a recuperar lentamente no século XIV.
Assim, a função económica das cidades foi determinante
para o seu destino. Dependeu da sua situação dentro de uma
rede vasta, em que a transferência de mercadorias em grosso
representou um papel decisivo, não só pela possibilidade
que lhes deu de assegurar o abastecimento de uma população
numerosa, mas também pelo facto de, atraindo produtos
abundantes e variados, concentrarem também os compradores e
todos os organizadores de serviços que a troca em larga
escala tornava necessários.
Mas a função política não foi menos importante. Como
pólos de transmissão do Poder, fixaram a corte régia e
concentraram as autoridades intermédias, as forças
militares que elas controlavam e os serviços burocráticos,
que permitiram estender a justiça e a fiscalidade régia a
todo o reino. Não esqueçamos também que a sua eficácia se
baseou principalmente na sua capacidade para concentrar uma
grande força económica com ramificações de nível igualmente
nacional.
O contraste entre a evolução rápida das cidades e a
estabilidade dos campos é um dos aspectos da fundamental
diferença de comportamento de umas e de outras. Convém
lembrar aqui alguns desses aspectos, apesar de muitos deles
serem óbvios. Assim, é bom acentuar que certos fenómenos,
como as ordens mendicantes, as confrarias, as catedrais,
com os seus cónegos, os cabidos de cónegos seculares, as
escolas, o mercado permanente, as judiarias e mourarias, os
banhos públicos, a prostituição, as ruas de mercadores, a
divisão do trabalho artesanal, os cambistas, os almocreves
e regatões, as forjas e fornos de telha ou cerâmica só
existem em povoados com um certo grau de vida urbana. Só aí
se encontram nomes como Julião, Tomé ou Bartolomeu. Só à
sua volta se desenvolvem culturas hortícolas. Aí se
concentra a mão-de-obra assalariada e especializada, aí se
aglomeram os pobres, pedintes e marginais. Mesmo quando há
muitos quintais, hortas, almuinhas e até ferragiais no meio
do tecido urbano, quando os mercadores e mesteirais
investem na terra, quando a divisão do trabalho é
rudimentar, quando os trabalhadores são pagos em géneros,
quando o autoconsumo sustenta uma economia paralela à do
mercado, a cidade é um mundo diferente do campo, porque
nela o tempo tem outro significado e os ritmos sazonais
provocam menos alterações na vida quotidiana. Na cidade as
estruturas do parentesco criam laços humanos menos
estreitos ou são substituídas por solidariedades
artificiais, como as das confrarias e outras associações, a
mentalidade mágica convive com a nacionalidade, os
privilégios da fidalguia esbatem-se, os pesos e medidas
uniformizam-se, a moeda calcula-se em função de um padrão
universal, os sistemas de câmbio e de financiamento
aperfeiçoam-se, o controlo da escrita está presente em
todas as relações sociais e económicas.
O mundo rural, pelo contrário, é o espaço da sujeição
às mutações climatéricas e sazonais, aos ritmos cósmicos,
às frágeis protecções sacrais e da solidariedade colectiva
contra os anos maus, as intempéries, os mistérios de uma
natureza cega e incompreensível. Daí o peso das relações de
parentesco e, pelo menos nos aglomerados aldeãos, a criação
de oligarquias, cujos membros se protegem uns aos outros,
se associam para construir e explorar moinhos, lagares e
azenhas, organizar a defesa e os abastecimentos, guardar os
rebanhos, cuidar do touro reprodutor, proteger os parentes
desfavorecidos, preparar as festas, manter a justiça.
A dureza do trabalho inspira a criação de estímulos e
de processos competitivos nos trabalhos agrícolas, a
fragilidade das estruturas produtivas preserva.com uma
fixidez inalterável as técnicas tradicionais, de eficácia
conhecida, nas sementeiras e colheitas, na conservação dos
cereais, na matança do porco, na confecção do queijo, na
poda das vinhas, na arte de jogar o pau, na construção das
cabanas e medas de palha, na preparação das armadilhas dos
coelhos e dos enxovais das noivas. Como de tudo isso
depende a fecundidade da terra, dos animais e das mulheres,
que os caprichos da Natureza tornam tão incerta e tão
indispensável, têm de se multiplicar os rituais, símbolos e
174
gestos, meio sagrados, meio lúdicos, onde se misturam a
arte, a sabedoria acumulada de geração em geração e a
crença cega na eficácia dos poderes ocultos.
Podem, por isso, chegar da cidade os pregadores
mendicantes, com as suas ideias novas, ou os cobradores do
rei e dos senhores, com as suas incessantes exigências,
existir mosteiros nas proximidades, com o fascínio da sua
liturgia e a imponência das suas igrejas de pedra, aparecer
o bispo para visitar o pároco e multar as infracções à
religião oficial, existir um cura que sobrecarrega os
fregueses com dízimos e côngruas — os chefes de família não
perdem nunca por completo a sua autoridade quase sagrada,
raramente faltam os «homens de virtude» respeitados por
todos, as mulheres continuam a transmitir entre si o
segredo das rezas, mezinhas e encantamentos. O instável
equilíbrio entre o prescrito e a prática exprime-se numa
subtil conjugação de provérbios de sentido contrário, que
condensam a sabedoria transmitida oralmente acerca de tudo
o que interessa ao homem do campo, desde a sexualidade ao
trabalho, dos ritmos cósmicos às tarefas agrícolas, da
autoridade ao jogo, do sagrado ao profano. A experiência
pessoal e os sentimentos contam pouco: o indivíduo apaga-se
perante o grupo e a única forma de lhe escapar é a
emigração.
Mas, ao passo que a cultura campesina cria, apesar de
uma certa uniformidade de estruturas gerais, uma imensa
variedade de soluções na maneira como o grupo reage ou se
adapta ao meio e às influências externas, a cultura urbana
é tendencialmente uniformizadora. A aglomeração humana, a
independência para com a natureza, o individualismo, as
relações constantes com outras cidades, as transferências
rápidas de cultura e de gente, tudo isto torna as cidades
semelhantes entre si. A sua função política contribui mais
do que tudo para acentuar a uniformização: os agentes do
monarca regem-se pelos mesmos modelos e pelos mesmos
princípios, têm a mesma linguagem, usam os mesmos métodos,
aferem tudo pelos mesmos padrões. Impõem-nos por toda a
parte. Estendem-nos não só às várias cidades, mas também
aos campos, tornando-se, com os auxiliares dos bispos e os
mercadores, os principais agentes de expansão da
mentalidade urbana em meio rural.
Por isso, não se pode esquecer que a maior parte da
documentação régia pressupõe uma mentalidade a uma
problemática urbana. É o que acontece particularmente com a
legislação, sobretudo a partir de Afonso III, como se
poderá concluir, por exemplo, ao verificar que só se
concebe a justiça como sediada na vila, isto é, em meio
urbano. A administração régia, com isto, não faz mais do
que prolongar a mentalidade subjacente à aristocracia dos
concelhos, que considera a vila como intrinsecamente
superior ao termo e os seus habitantes como automaticamente
dotados de um estatuto necessariamente superior aos
lavradores das aldeias. É indispensável ter estas
observações em conta para não interpretar como referindo-se
a todo o País a documentação que apenas dá conta do que se
passa nos centros urbanos e não esquecer a massa rural, que
constitui a quase totalidade da população do País, mas,
mergulhada na sua cultura de transmissão oral, é ignorada
pelos que usam a escrita, o quase único vestígio do passado
que chegou até nós.

A Cristandade e o Islão

No vasto espaço do Portugal concelhio é ainda


necessário ter em conta a paisagem cultural. O
prolongamento da ocupação islâmica durante vários séculos e
depois a sobreposição do Cristianismo trazido pela gente do
Norte acarretaram consequências fundamentais, sobretudo
para a época em que o processo de aculturação atinge o
auge, isto é, depois da chamada «Reconquista». Não se trata
aqui de estudar o fenómeno político das fases da ocupação
militar, mas de delimitar as áreas da efectiva e maciça
influência da cultura e instituições islâmicas e de
averiguar as consequências da aculturação verificada com a
ocupação cristã.
Apesar de a questão ter sido considerada como
absolutamente fundamental por todos os autores que
estudaram as origens da nacionalidade, continua a faltar um
estudo científico a partir de factos e não de ideias.
Assim, Herculano considerou já os moçárabes como a camada
étnica que assegurou a continuidade cultural entre a época
romana e a medieval: seriam eles os guardiões dos costumes
municipais, do direito romano, da língua e da mentalidade
latinas. A islamização teria introduzido um elemento
estranho à cultura peninsular, que se dissipou rapidamente
depois da Reconquista. Assim pensava também Sánchez
Albornoz, embora atribuísse maior importância ao elemento
visigótico, que se teria fundido facilmente com o
hispano-romano, numa síntese que depois permaneceria quase
intacta, apesar das invasões islâmicas.

175
[legenda de figura.]
Concelhos do Centro e Sul do País e domínios das ordens
militares.
A cartografia medieval dos domínios das ordens
militares e dos concelhos situados ao sul do Mondego foi
estabelecida por Rui de Azevedo em 1937 num mapa em que
este se baseia. Apenas se simplificou para o tornar mais
claro. Note-se a distribuição dos principais castelos das
ordens militares a partir de uma posição determinada em
função da defesa de Lisboa e Santarém. Os Templários
protegiam-nas dos acessos pela margem norte do Tejo, com a
ajuda posterior dos Hospitalários; os freires de Avis, pela
margem sul, controlando a via que procedia de Mérida e
Badajoz; os Espatários também pela margem sul junto à
estrada vinda de Mértola, Beja e Alcácer do Sal. Vários dos
concelhos e domínios militares alongam-se em direcção às
zonas donde podiam vir os Mouros, por razões estratégicas
ou em virtude da conquista que aumentou as posições
iniciais.

176
Entretanto, o problema preocupou Oliveira Martins e
Teófilo Braga. Este desenvolveu a tese de Herculano, para
minimizar o papel da gente do Norte na civilização
portuguesa; aquele, embora fizesse a nação resultar de uma
vontade colectiva, independentemente de qualquer base
étnica, atribuía um papel predominante ao espírito celta
(encarnado nos Lusitanos), como verdadeiramente
característico da mentalidade nacional; dissipada a vontade
colectiva durante a época moderna, seria esse o fundamento
da permanência da nacionalidade e dele brotariam fenómenos
como, por exemplo, o do sebastianismo. Sob forma diferente,
a tese de Teófilo Braga ressurgiu há poucos anos com Borges
Coelho, que filia o espírito nacional nos moçárabes, embora
não os considere tanto como portadores da cultura romana,
mas da árabe; apesar de oprimidos por todos os povos
invasores, seriam eles os verdadeiros depositários do
espírito nacional; a cultura trazida do Norte pelos
conquistadores cristãos seria uma importação estrangeira
imposta por francos aos guerreiros feudais e nunca
verdadeiramente assimilada pelo povo português.
É fácil de ver que todas estas teses se baseiam muito
mais em concepções ideológicas do que numa tentativa de
reconstituição do processo histórico a partir de todos os
elementos que é necessário considerar. Deixemos de lado o
propósito de buscar o «espírito nacional» como qualquer
coisa de equivalente a uma espécie de alma ou de princípio
vital, em que residiria a identidade colectiva. Já vimos no
princípio deste volume como se deve entender o processo de
formação da entidade política portuguesa e da
nacionalidade. Aí mencionámos a ausência inicial de uma
identidade cultural comum ao tem tório português. O que
vamos agora ver acerca da cultura islâmica, não faz mais do
que acentuar as diferenças já apontadas e mostrar as
dificuldades de assimilação. Mas encontram-se também alguns
pontos de contacto entre o Norte e o Sul que possibilitaram
a unificação e que levam a excluir a hipótese de ela se
dever a um processo de colonização propriamente dito (como
a colonização europeia dos países africanos, por exemplo).
Deu-se então uma verdadeira síntese de culturas diferentes.
A área em que ela se processou foi mais a concelhia do que
a senhorial. Mas a sua resultante refluiu depois sobre a
área senhorial, na medida em que foi particularmente
assumida pelos agentes da centralização régia, que a
difundiram por toda a parte.
Para clarificar os conceitos, comecemos por definir
propriamente como moçárabes os cristãos da área ocupada
pelos Muçulmanos. São, portanto, populações autóctones do
Centro e do Sul da Península e herdeiros da cultura
hispano-romana, embora, por necessidade de sobrevivência,
tenham adoptado também a língua e a cultura árabes. Por
extensão, e de um ponto de vista cultural (não religioso),
podem-se associar aos autóctones convertidos ao islamismo,
que são propriamente os muladis. Interessando-nos aqui
sobretudo o duplo fenómeno da preservação da cultura
hispano-romana e da assimilação da cultura árabe pelos
autóctones, não me parece necessário, salvo casos
excepcionais, distinguir moçárabes de muladis.
De facto, os moçárabes propriamente ditos devem ter
diminuído drasticamente entre os séculos VIII e XIII.
Muitos emigraram para o Norte cristão em vagas sucessivas;
outros foram perseguidos em várias ocasiões por califas,
emires e cádis, particularmente desde a época almorávida,
que trouxe chefes mais intolerantes, como o violento Yaqub
Almançor; uma parte considerável converteu-se ao islamismo;
outros ainda foram perseguidos pelos próprios cristãos no
momento de Reconquista, como aconteceu até com Afonso
Henriques, por esse facto vivamente censurado por S.
Teotónio. Apesar disso, encontram-se testemunhos dispersos
de que o seu número era ainda considerável no século XII,
sobretudo nas cidades e nos seus arredores. Alguns
mantiveram a sua identidade em Coimbra entre 1064 e 1116,
apesar da repressão que sofreram a partir de 1092, e talvez
em Lisboa, como sugere a narrativa da trasladação de S.
Vicente redigida pelo chantre da sé da mesma cidade. Devem
ter mantido intacto ao longo de muitos séculos de
resistência o culto de vários santos mártires que depois
entraram no calendário litúrgico nacional ou local, como S.
Mamede, Santa Comba, Santa Iria, os mártires de Lisboa, S.
Mancos e o próprio S. Vicente.
Por outro lado, em virtude da falta de clero e de
contactos regulares com o resto da Cristandade, os das
áreas rurais devem ter acabado por cair num certo
sincretismo religioso, que devia incluir não só a
contaminação islâmica, mas também uma eventual ressurgência
de tradições pagãs, como sugere, por exemplo, o que se
conhece acerca do santuário de Santa Maria de Terena, junto
ao de S. Miguel da Mota, que prolongou um lugar dedicado a
Endovélico. Outros, porém, parecem ter mantido persistentes
vestígios da cultura latina, ao ponto de inspirarem o
centro mais pujante da cultura clerical portuguesa do

177
século XII, Santa Cruz de Coimbra, com o seu prolonga-nento
lisbonense em S. Vicente de Fora.
O facto de os dominadores islâmicos tolerarem os
cristãos mediante a cobrança de um tributo pode ter dado
como resultado a preservação de muitas comunidades cristãs,
pois a sua conversão diminuiria os rendimentos do poder
islâmico. Mas manteve-os também numa situação de
inferioridade e de debilidade económica e cultural, salvo
nas excepções já sugeridas.
Por outro lado, em regiões onde se devem ter formado
comunidades semi-independentes, isto é na larga área de
fronteira oscilante entre o Douro e o Tejo, as populações
de cultura moçárabe devem ter obtido uma certa liberdade,
graças ao pagamento de tributos aos senhores muçulmanos, à
semelhança das taifas, que durante quase todo o século XI
tiveram de entregar «parias» aos soberanos cristãos. Quer
os seus chefes fossem propriamente moçárabes quer muladis,
adoptaram numerosas instituições, técnicas e costumes de
origem árabe, constituindo, assim, o meio onde a
assimilação cultural foi mais precoce e efectiva.
Aí, e mais a sul, deu-se durante séculos a adopção de
muitas palavras árabes pelo vocabulário português. É
interessante verificar em que áreas lexicais. Podem-se
apontar como mais importantes a pecuária, a vida marítima e
tudo o que diz respeito à civilização urbana. Quanto a esta
última, e tomando o vocabulário actual, mencionem-se
tecidos e vestuário, instrumentos musicais, cerâmica,
cestaria, construção civil, metalurgia, matérias-primas,
pesos e medidas, elementos do equipamento urbano ou
suburbano, condimentos alimentares, plantas medicinais,
produtos hortícolas e flores, tecnologia da rega e da
moagem, abastecimento citadino, etc.
Examinando um texto do século xm, como é o dos foros
longos de Alfaiates, a versão mais antiga da família de
foros de Ribacoa, encontramos nele também uma curiosa
adopção de termos árabes mais próxima da realidade
histórica de uma povoação do interior. Aí, além de
designarem dados da vida urbana, como, por exemplo, os
abastecimentos, o aluguer de casas, o comércio e o seu
controlo, o cultivo das hortas, a tecnologia da moagem, e
sobretudo instituições municipais, dizem respeito à vida
militar e à pecuária. Note-se bem a relação entre estas
duas, que já sublinhámos noutras ocasiões, a propósito,
justamente, da vida habitual das cidades amuralhadas de
fronteira até ao século XIII. Indicam fortificações,
expedições e chefes de operações de ataque, os pastores e a
sua recompensa. Mais tarde, porém, o vocabulário do
pastoreio e dos lacticínios enriquece-se com muitos outros
vocábulos de origem árabe, que se tornarão peculiares de
quem praticava a transumância.
Não se pode também esquecer uma significativa
quantidade de termos usados na vida marítima e na pesca,
que recordam a importância destas actividades para a gente
do litoral a sul do Mondego. No interior, a grande
actividade económica era a pecuária; no litoral, era a
marítima. Ambas recebem muito da civilização árabe.
Insistirei particularmente na vida marítima. De facto,
a lição do vocabulário coincide com a investigação sobre a
tecnologia dos barcos populares levada a cabo por Octávio
Lixa Filgueiras. Este demonstrou a origem mediterrânica da
maioria dos barcos populares portugueses, sobretudo dos que
se encontram até ao Vouga, por contraste com os que
persistiram a norte, que podem ser de origem bordalesa ou
normanda. Este facto explica fenómenos como o do intenso e
precoce culto a S. Vicente, invocado por pescadores e
marinheiros e tão importante para Lisboa, ou a tradição dos
oito aventureiros desta cidade, que teriam explorado o
oceano Atlântico durante um mês e encontrado ilhas
habitadas e desertas, antes de aportarem a Safim (no Norte
de Africa), segundo um relato registado pelos geógrafos
árabes Idrisi e Abu Hamid em meados do século XII. A
importância destas actividades explicaria a rapidez com que
se constituiu uma marinha portuguesa, atestada durante a
conquista de Silves, em 1189, no combate à pirataria
almóada e em tradições como a referida pela Crónica de 1419
sobre a figura lendária de D. Fuás Roupinho. Tais
actividades ligam-se ainda à precocidade do nosso comércio
marítimo, atestado, por exemplo, pelos mais de 100
salvos-condutos passados em 1226 pelo rei Henrique II.de
Inglaterra em favor de mercadores portugueses, e às viagens
em pleno Atlântico, em direcção às Canárias, com a
colaboração de genoveses, na época de Afonso IV.
Tudo isto — actividades marítimas, pecuária e vida
urbana — são fenómenos da área concelhia do País, sobretudo
da que sofreu a influência da civilização islâmica. Não se
pode dizer, portanto, como pretendia Herculano, que a sua
marca desapareceu rapidamente, nem que esta contribuição

178
[legenda de figura.]
Tipos de barcos populares portugueses (segundo O. Lixa
Filgueiras).
Note-se, neste mapa, a distribuição regular de barcos
populares construídos com técnicas procedentes do Norte da
Europa, ainda hoje existentes no curso dos rios portugueses
até ao Douro, e os que usam técnicas procedentes do Médio
Oriente em toda a costa e no curso dos rios a sul do Douro.
É evidente a origem mediterrânica dos últimos e a sua
prevalência sobre os primeiros. Sinal de que a população
moçárabe conservou estes usos, praticou a navegação
costeira e a pesca e transmitiu as técnicas antigas até à
época das grandes navegações atlânticas.

possa ser ignorada na formação não sei se da nossa


nacionalidade (no sentido de Oliveira Martins), mas
certamente da cultura nacional, englobando nesta não só os
fenómenos da cultura intelectual, mas também de civilização
material.
De resto, não faltam sequer alguns elementos de origem
moçárabe na nossa cultura artística, literária ou
intelectual. Já referimos o culto de certos santos. Os
dominadores cristãos que promoveram a evangelização do
Centro e do Sul devem ter usado a estratégia de promover o
culto desses santos para captar a população autóctone. Já
vimos também que a produção literária de Santa Cruz de
Coimbra e de São Vicente de Fora revela uma efectiva
simpatia pela cultura hispano-romana veiculada por
moçárabes. Acrescente-se a cultura científica, de que
existem exemplos mais precisos na medicina e na astronomia,
como se sabe por referências a livros e a médicos
instruídos na ciência árabe, de que beneficiou o rei Afonso
II e que deixou a sua marca na obra médica de Pedro Hispano
e de S. Frei Gil de Santarém. E ainda a cultura geográfica
de que é exemplo a tradução portuguesa da obra do mouro
Rasis, feita no reinado de D. Dinis. Nada disto se pode
comparar com a vastidão e a variedade das traduções e
adaptações de obras árabes mandadas fazer por Afonso X, o
Sábio, mas nem por isso se pode ignorar esta contribuição
fundamental para a cultura medieval portuguesa. Ela mostra
que, apesar da eventual intolerância dos guerreiros e
clérigos do Norte, não se pode exagerar a influência deste
factor e atribuir à visão do mundo senhorial o principal
papel na formação da cultura portuguesa.
Também não se pode exagerar o papel do chamado
«espírito de cruzada», como suporte ideológico do
antagonismo entre a Cristandade e o Islão nos séculos XII e
XIII. Cari Erdmann mostrou que as suas manifestações só se
encontram claramente em Portugal no fim do século XII.
Surge num momento muito preciso, a partir de 1180, como
reacção à dureza das invasões almóadas. Mantido depois nas
ordens militares, só volta a aparecer fora delas na altura
da Batalha do Salado. De facto, os relatos de conquistas de
cidades feitas por cruzados estrangeiros parecem revelar um
desentendimento habitual entre chefes nórdicos e
portugueses, devido, nomeadamente, à atitude mais tolerante
dos segundos para com os vencidos. Os chefes portugueses
pretendiam, em geral, manter as estruturas produtivas e não
exterminar por completo a população activa, como se pode
ver nos forais dados às cidades do Algarve por Afonso III,
na atitude que lhe é atribuída na Crónica de 1419 durante a
conquista de Faro e até num texto bem marcado pela
ideologia de combate, como é a Crónica de Paio Peres
Correia. A sedução que o mundo árabe exerce sobre os
guerreiros do Norte aparece ainda em algumas cantigas dos
trovadores e em certos contos populares portugueses.
De resto, o facto de os moçárabes terem falado um
«romance» de origem latina e criado cantigas nessa língua
(as carjas) mostra que se podiam entender com os
conquistadores cristãos. A sua fala parece não ter sido
muito diferente da do Norte. Por outro lado, as
instituições e a economia do Sul davam um contributo muito
mais decisivo para a centralização régia do que as do
Norte, onde imperavam as concepções feudais. Não admira,
por isso, que a monarquia tenha utilizado sobretudo a

179
linguagem institucional, os conceitos e as técnicas
vigentes no Sul e assimilado tão rapidamente os
ensinamentos do direito de Justiniano, nos séculos XII e
XIII, principal suporte teórico-jurídico da centralização
régia.

Judeus

Vejamos também rapidamente, em jeito de apêndjce, o


papel dos judeus na sociedade portuguesa medieval. Penso
que não se deve exagerar. Apesar de não se poder negar a
sua importância na vida urbana, é evidente que ela se deve
ao papel que desempenharam na vida financeira, o que lhes
permitiu activar a economia monetária, ser utilizados pelo
rei na organização do fisco e como arrendatários da
cobrança de rendas e de instrumentos de produção e troca.
Apesar de nem todos se dedicarem à especulação financeira,
não creio que se possa atribuir-lhes nenhum contributo
específico decisivo noutras actividades que também
desempenharam, sobretudo no artesanato e na comercialização
de produtos de consumo urbano. Pode todavia
atribuir-se-lhes um papel especial na prática da medicina e
da astronomia, devido ao facto de, a partir da segunda
metade do século XIII, os clérigos terem deixado de
cultivar estes conhecimentos por imposição canónica.
Todavia, a sua habilidade para a especulação financeira
levou-os muitas vezes a preferirem os seus lucros do que
investirem em actividades produtivas. Não admira, por isso,
que fossem invejados pela sua habilidade para acumular
dinheiro e se tivesse, assim, criado um antagonismo latente
para com eles desde a época de Afonso III. As numerosas
leis dionisinas acerca da usura e dos contratos ou
processos judiciais com judeus, apesar de pretenderem fazer
prevalecer a equidade, revelam que esse era um campo minado
pelo antagonismo e o ódio.
De qualquer maneira, as comunas judaicas proliferaram
com rapidez de sul para norte desde a conquista de Lisboa.
A sua presença num aglomerado urbano é claro indício do
respectivo grau de urbanização, juntamente com a presença
de conventos mendicantes e de confrarias. Os judeus
contribuem também para uniformizar a fisionomia urbana do
País.

Origens e definição

O processo de formação dos concelhos

Antes de abordarmos a descrição da sociedade concelhia,


convém definirmos a natureza dos concelhos e a sua relação
com o regime senhorial. Este problema leva a colocar a
questão da sua origem e da sua natureza, largamente
debatida por todos os medievalistas peninsulares. A questão
está longe de se ter esgotado e necessita, portanto, de uma
abordagem especial, para se compreender o alcance de muitos
dos dados apresentados neste parágrafo.
Comecemos por descartar a ideia jurisdicista que faz do
Estado a fonte de toda a legalidade e, desta, a condição
para considerar as relações sociais que ela define com as
únicas entidades que se podem ter em consideração. Esta
ideia é pressuposta mais ou menos inconscientemente por
quase todos os autores portugueses que têm estudado a
questão, porque, em geral, partem do princípio de que os
concelhos foram criados por decisão régia: mesmo que
existissem antes da concessão do respectivo foral, o que
alguns admitem, só o sancionamento régio lhes daria direito
à existência. Ora, a investigação recente tem mostrado cada
vez mais a capacidade organizativa de grupos humanos locais
independentemente de qualquer autoridade ou sancionamento
superior. É indispensável, portanto, conceber a formação
dos concelhos como um processo autónomo. De resto, o que,
na minha opinião, constitui, de facto, a sua natureza
própria é precisamente a sua capacidade autonómica. O foral
ou o sancionamento régio resultam muito mais de um pacto
entre a autoridade superior e a comunidade local para uma
delimitação dos respectivos direitos do que de uma decisão
unilateral do soberano.
Com efeito, vários estudos recentes, nomeadamente os de
Reyna Pastor de Togneri e J. A. Garcia de Cortázar,
mostraram, com uma base documental segura, que no Norte da
Península se foram criando durante os períodos visigótico e
asturiano-leonês vários tipos de comunidades rurais,
independentemente de qualquer autoridade superior. Pela
minha parte, insisti em que, quer as comunidades vicinais
directamente derivadas de grupos gentílicos que
sobreviveram à dominação romana quer as que se foram
criando posteriormente, preservaram ou restabeleceram
espontaneamente formas primitivas de organização e de
solidariedade, entre as quais se contam as prescrições
jurídicas penais que perseguem as infracções à coesão
comunitária, a relação antagónica com as comunidades

180
vizinhas, mesmo quando com elas estabelecem pactos, a
regulamentação do uso de instrumentos de produção comuns,
como o bosque, as pastagens, o moinho e as águas, o papel
predominante das solidariedades criadas pelo parentesco. De
facto, no Norte da Península Ibérica, entre os séculos VIII
e XII, quer a comunidade ocupe um espaço relativamente
vasto sem nele adoptar uma implantação fixa quer se
concentre numa ou mais aldeias, tem muitas vezes de
subsistir sem qualquer apoio de uma autoridade superior.
Esta situação foi-se tornando progressivamente menos
vulgar, mas era, decerto, a mais comum no princípio deste
período, excepto em lugares controlados pela autoridade
régia, como vimos no volume precedente.
As condições concretas em que se foi difundindo o
regime senhorial, a situação de guerra permanente e a
implantação lenta da autoridade régia permitiram a algumas
destas comunidades preservar certos vestígios das suas
prerrogativas autonómicas, mesmo depois da expansão do
regime feudal, e a outras, que haviam conseguido subsistir
em zonas de fronteira graças à sua intervenção na guerra,
negociar com os soberanos cristãos o sancionamento dos seus
direitos, mediante o reconhecimento da sua autoridade.
Historicamente falando, portanto, houve concelhos porque
antes deles existiram comunidades autónomas que conseguiram
sobreviver à implantação do regime senhorial e da
autoridade monárquica.

[legenda de figura.]
Concelhos «urbanos» portugueses. Note-se a implantação
dos concelhos «urbanos»: são muito raros na zona de regime
senhorial de Entre Douro e Minho, excepto na fronteira do
Minho. A distribuição dos concelhos está também relacionada
com o traçado da fronteira nas épocas em que eles são
sancionados pelo respectivo foral.

Os diversos tipos de concelhos

Nestas circunstâncias, é pertinente procurar os


vestígios, mesmo residuais, das comunidades «primitivas».
Pode-se admitir que o conventus publicus vicinorum
constitua um importante indício da existência de
assembleias populares não integradas no sistema jurídico
romano, e que estas assembleias, previstas no Liber
iudiciorum, se tivessem fortalecido à medida que o Estado
visigótico se foi desagregando. O seu desaparecimento, em
711, e o vazio de poder que se lhe seguiu em territórios
não ocupados efectivamente pelo Islão tornaram as
assembleias verdadeiramente necessárias à sobrevivência das
comunidades.
Se a maioria das comunidades vicinais que se criaram na
Galécia acabou por ser absorvida pelo regime senhorial,
como vimos no volume anterior, não se pode também ignorar
que subsistiram muitas com capacidade para eleger os seus
juízes e os seus párocos, sobretudo em Trás-os-Montes, e
que dessas organizações resultaram formas híbridas, como as
beetrias e os chamados «concelhos imperfeitos» (segundo a
terminologia de Herculano), ou «concelhos rurais» (segundo
a de Torquato Soares). Já falámos das primeiras. Quanto aos
segundos, é evidente que os forais que os legalizam se
destinam principalmente a responsabilizar um «mordomo» ou
«juiz» local pela cobrança das rendas que o senhor deve
receber.
Nas povoações de fronteira, cimentadas pela dureza da
guerra, o rei tinha que contar com comunidades fortemente
estruturadas e dominadas por oligarquias de cavaleiros
vilãos. Foi necessário pactuar com elas e reconhecer-lhes
uma efectiva autonomia. Assim aconteceu nos casos de São
João da Pesqueira, Penela, Paredes, Linhares e Ansiães,
cujos forais foram dados por Fernando, o Magno, ou de
Tavares, sancionado por D. Henrique. Muitas destas cartas
adoptaram modelos de forais concedidos a cidades mais bem
estruturadas, como o de Coimbra, dado a povoação da Beira

181
ocidental, o de Salamanca, às da Beira interior, e o de
Ávila, às do Alentejo e da Beira Baixa.
As vantagens da criação de um regime legal para a
organização municipal foram suficientemente reconhecidas
para que o rei as estendesse a outras povoações a que
queria dar uma certa autonomia, não já em virtude da sua
função militar, mas para favorecer a sua função económica.
Nestes casos, queria atrair os mercadores, estimular as
suas actividades e garantir o fluxo monetário e comercial.
Não sabemos, porém, se as concessões foram inspiradas pelos
privilégios concedidos a povoações que viviam da guerra ou
reconhecem antes assembleias locais preexistentes, que
eventualmente poderiam ter subsistido em algumas cidades
desde tempos imemoriais. Este tipo de concelhos existiu
sobretudo nos burgos criados na zona de influência do
«Caminho de Santiago», como é o caso de Guimarães e do
Porto. Mais a sul, podemos considerar como casos híbridos
os de Santarém, Coimbra e Lisboa (1179), depois aplicados a
muitas povoações da Estremadura e Alentejo. De facto, estes
forais continham bastantes prescrições relativas à vida
económica, mas continham também privilégios especiais
destinados a favorecer os cavaleiros vilãos, pois nessa
altura a zona do Tejo estava ainda em situação de guerra.
Finalmente, a instituição foralenga foi posta ao
serviço do povoamento. O soberano procurou, por vezes,
atrair povoadores a um lugar, oferecendo-lhes privilégios
análogos aos das terras de fronteira ou dos burgos e
cidades. Em certos casos, organizou verdadeiras empreitadas
de ocupação de terras onde desejava criar pontos de apoio
da administração régia ou de defesa militar. No primeiro
caso, para o seu melhor aproveitamento agrícola; no
segundo, por motivos estratégicos de ocupação da fronteira
com os reinos vizinhos.
Até aqui servimo-nos do caso típico e predominante dos
concelhos sujeitos ao rei, que podiam considerar-se mais
independentes do regime senhorial. Vejamos agora as
variantes introduzidas no sistema quando o senhorio era um
particular. Em algumas cidades, a estrutura urbana entra em
conflito com ele, como acontece por várias vezes no Porto e
em Leiria; noutras, contribui para dificultar o
desenvolvimento urbano, como sucede em Braga, Lamego ou
Viseu, talvez em Mértola; noutras, ainda, o regime
senhorial favorece o que se poderia chamar a «acumulação
capitalista» e a constituição de verdadeiras empresas de
produção agrícola, como verificamos em Alcobaça, noutros
mosteiros cistercienses, em alguns domínios de ordens
militares e nos de senhores nobres, como D. João de Aboim.
Estas várias distinções são de alguma importância para
perceber a relação entre as normas jurídicas de cada foral,
geralmente copiadas com poucas modificações de um modelo
anterior, e as características da respectiva povoação.
Estas nem sempre se podem deduzir daquele, visto que
reproduzem modelos criados para povoações com
características diferentes. Mas a relação entre uma coisa e
outra não é arbitrária.

Os concelhos e o regime senhorial

Em segundo lugar, é importante, para compreender até


que ponto o regime concelhio constitui ou não um sistema
peculiar de organização social, examinar em que pontos se
afasta do regime senhorial. Creio que se podem apontar os
seguintes: 1) a capacidade «deliberativa» do concelho, cuja
autonomia se exprime pelo direito de eleger os seus
magistrados, de criar um direito próprio (o «costume»), de
estabelecer um regime fiscal e um regime judicial e de
organizar as suas forças militares; 2) a garantia para os
respectivos vizinhos de serem «titulares» dos instrumentos
de produção que possuem; 3) a exclusão dos privilegiados
ou, pelo menos, do exercício das suas prerrogativas, no
âmbito do território do concelho. Estando estes pontos em
contradição com elementos essenciais do regime senhorial,
não se pode admitir que tenha vigorado na área concelhia,
apesar de se poderem enumerar outros em que se verificou
uma efectiva contaminação feudal.
Com efeito, não há dúvida de que o regime senhorial se
tornou hegemónico em todo o território nacional, apesar de
inicialmentevigorar apenas sobre uma pequena parte dele
(mas a mais habitada e dotada de maior capacidade de
expansão). Não admira, por isso, que tivesse também
alastrado sobre os concelhos. Em que pontos? Em primeiro
lugar, devido ao facto de se ter generalizado a ideia de
que não podia haver nenhum homem sem senhor. O senhor dos
homens dos concelhos era, portanto, o rei. Sendo assim, as
prestações que ele lhes cobrava podem-se considerar como
senhoriais: não só as propriamente ditas, como a pousadia,
o quinto dos despojos de guerra, o relego. o monopólio

182
de fornos e de outros instrumentos de produção, como também
as de origem pública (voz e coima, fossadeira, jugada).
Além disso, o rei podia exercer a sua autoridade por meio
do senhor da terra ou de um prestameiro e controlava a
administração da justiça concelhia, através do alcaide ou
alcaides, e como instância de apelo. Por fim, tem de se
reconhecer que os homens livres dos concelhos tinham de se
sujeitar às prestações clericais, sobretudo ao dízimo.
Por outro lado, no próprio interior do sistema
concelhio se encontram formas de relacionamento social e
económico de inspiração senhorial, que beneficiam a
oligarquia dominante. Podem-se apontar como exemplos de
adaptação do modelo senhorial aos concelhos a equiparação
dos cavaleiros vilãos aos infanções para efeitos judiciais,
a sua isenção da jugada, que recai só sobre peões, a
distinção entre peões e cavaleiros para efeitos de serviço
militar, a interiorização dos habitantes do termo em
matéria de direitos e multas judiciais, o estatuto de
menoridade jurídica dos dependentes, ou seja, dos
assalariados, solarengos e mesteirais que trabalham por
conta de outrem. Não falemos já de outros factores a que
podemos chamar «ilegais», como a intervenção abusiva do rei
em detrimento da autonomia dos órgãos locais, que se tornou
cada vez mais frequente no século XIV, os abusos da
pousadia em favor dos fidalgos e eclesiásticos, os excessos
dos nobres que se tornaram vizinhos e que impunham a
eleição de apaniguados seus para exercerem as
magistraturas, a cedência forçada de terras a senhores,
ordens militares, bispos ou conventos. De tudo isto há
exemplos mais ou menos numerosos.
Apesar disso, não se pode esquecer que o sistema
concelhio permite aos mesteirais, mercadores e
proprietários rurais exercerem um papel próprio no
desenvolvimento da economia de produção e consumo, o que
constitui o principal factor de desagregação do regime
senhorial, favorece o progresso precoce da centralização
régia, que prenuncia o Estado moderno, e faz dos concelhos
uma espécie de elemento de ligação entre o regime colectivo
pré-feudal e a modernidade pós-medieval.

As categorias sociais

Partindo do princípio de que o carácter de autonomia é


o elemento essencial do regime concelhio, podem-se
considerar os concelhos do interior como aqueles que se
aproximam mais do modelo ideal. Esta interpretação
confirma-se pelo facto de as designações das categorias
sociais nos concelhos se inspirarem numa terminologia
militar: peões e cavaleiros. Ora esta classificação
pressupõe um estado normal de guerra, que, de facto
caracteriza o interior do País na época da formação do
regime municipal. Àquelas duas categorias deve-se
acrescentar a dos dependentes, que, por não terem
praticamente direitos jurídicos, surgem na legislação
municipal em lugar à parte.

Os vizinhos

Aquilo que confere direitos aos habitantes dos


concelhos é morarem na sua área e terem bens suficientes
para pagarem os devidos tributos. São habitualmente
designados como «vizinhos», tanto em concelhos do interior
como no litoral e no Sul do País. Mas em Ríbacoa também se
chamam «pósteros» e em Santarém «raigados», ou
«soldadeiros». A quantidade de bens necessária para serem
contribuintes chamava-se em Ribacoa a «valia». Aqui os
vizinhos inscreviam-se na «carta» e no «padron» do
concelho. Os costumes municipais pressupõem que viviam em
casa própria e com família constituída.
Como é evidente, a condição de morar no concelho
resulta de só os vizinhos terem direitos. Os de outros
concelhos são «fora da lei». Podem ter direitos noutros
lugares, mas não ali. Como é evidente, a sobreposição do
direito régio sobre o municipal alterou radicalmente este
princípio. Foi o ponto de partida para que viessem a
atribuir-se direitos e deveres aos cidadãos, qualquer que
fosse o lugar onde moravam. Isto não altera, porém, o facto
de as prescrições próprias dos concelhos ignorarem esta
circunstância ou mencionarem expressamente os não moradores
como não podendo exercer nele qualquer direito.
Este facto não exclui a existência de outras categorias
de homens livres dificilmente classificáveis, como os
caçadores, pescadores, cabaneiros e jornaleiros. O direito
concelhio, porém, também os ignora, ou apenas os considera
183.
por referência aos vizinhos «normais». Provavelmente
dependiam de condições muito variáveis. Mas dentro da
lógica do regime concelhio eram categorias marginais, ou
partia-se do princípio de que as suas actividades eram
praticadas em acumulação por quem possuía terra e casa.
O espaço concelhio não era, porém, uniforme. Os
vizinhos são propriamente os que vivem na vila ou centro do
concelho. Os que só têm casa no termo, ou alfoz, têm menos
direitos. Assim, as multas pagas por quem pratica um crime
sobre o morador do termo são muito menores do que as que
reprimem quem agride o morador da vila; estes estão,
portanto, mais protegidos do que aqueles. Além disso, para
ser cavaleiro exige-se a quem vive na vila uma quantia de
bens superior do que a quem vive no termo. Em Ribacoa, os
cavaleiros da vila comandam grupos de peões ou pares de
cavaleiros das aldeias dos arredores. As diferenças
parecem, por vezes, tão marcadas que se pode perguntar se
os habitantes do alfoz participavam efectivamente nas
assembleias municipais e tinham o direito de deliberar
sobre as questões nelas tratadas, em pé de igualdade com os
outros vizinhos.

Os cavaleiros vilãos

A distinção social de base é, portanto, a que separa o


cavaleiro do peão, o que revela a situação de guerra de que
deriva. Para se ter cavalo, o que é simultaneamente um
direito e um dever, os forais estabelecem nomialmente um
rendimento-limite, que se calcula em moeda em Ribacoa e em
bens móveis e fundiários nos forais do tipo de Ávila; mas
em ambos se dá uma importância fundamental ao gado, o que
mostra também a importância económica da pecuária nos
concelhos do interior.
Dado o elevado preço do equipamento militar, incluindo
o cavalo, nos séculos XII e XIII, é evidente que os seus
possuidores formavam uma verdadeira aristocracia. A sua
superioridade social e económica confirma-se pelo facto de
possuírem normalmente armas de ferro e, inclusive,
armaduras (loriga e capelo) e tendas, de terem escudeiros e
dependentes (que em Ribacoa se chamam «aportelados») e de
possuírem terras em lugares por vezes muito distantes da
vila e mesmo fora do concelho.
Não admira, por isso, que os cavaleiros possam exercer
um certo número de privilégios. Mencionam-se o de
normalmente não poderem sofrer penas corporais, de se
castigarem severamente aqueles que os atiram abaixo de suas
montadas, de serem julgados como se fossem infanções (isto
é, tinham direito a multas e reparações idênticas e o seu
testemunho valia tanto como o deles), de não pagarem jugada
nem fornecerem pousadia a quem podia exigi-la e, pelo menos
a partir de 1273, de não pagarem as anúduvas exigidas pelos
representantes do rei. Compreende-se, assim, que se
encontrem frequentemente prescrições destinadas a proteger
os cavaleiros velhos ou doentes e que perdem o cavalo,
dispensando-os, por exemplo, do pagamento da jugada.
Devem-se interpretar no mesmo sentido as prescrições que
protegem as suas viúvas.
Como é óbvio, os cavaleiros vilãos procuravam evitar a
concorrência nos locais onde dominavam. Por isso recusavam
aos nobres o direito de habitarem no concelho, a não ser
que renunciassem a exercer nele os seus privilégios
senhoriais. Se algum construía na vila o seu paço, como
sabemos ter acontecido tantas vezes, sobretudo nas cidades
importantes, tinha de aceitar colocar-se ao nível dos
cavaleiros vilãos. Norma ilusória, como é evidente, mas que
nem por isso deixou de trazer alguns resultados práticos,
como, por exemplo, o de os nobres não desempenharem cargos
concelhios. A exclusão do exercício de direitos senhoriais
nas áreas municipais foi expressamente exigida por uma lei
de D. Dinis de 1311.
Os cavaleiros vilãos constituíam não só uma elite
social no espaço do concelho, como também uma verdadeira
oligarquia. Este facto não resulta apenas da sua
superioridade social, mas também de tenderem a apoderar-se
dos cargos e magistraturas municipais, chegando a
exercê-los quase como um monopólio. É o que se depreende,
por exemplo, dos costumes de Alfaiates, onde se parte do
princípio de que os magistrados tinham escudeiros e cavalo;
não podiam, portanto, ser peões. É claro que esta regra,
que não está expressa em parte alguma, devia resultar da
própria orgânica concelhia e de um consenso social. Não se
encontra, por isso, expressa em nenhuma lei. Não se podia
aplicar em concelhos mais pobres, onde o número de
cavaleiros era muito reduzido. De facto, a lei 164 de
Afonso III prevê expressamente o caso de peões que exerciam
funções de procuradores concelhios junto do rei.

184
Compreende-se, assim, que os costumes municipais se
destinem principalmente a garantir aos cavaleiros a
manutenção da sua posição superior na comunidade e a
criarem uma estrutura que possam dominar. Os costumes são
redigidos por eles e para eles. É por isso que os textos
que nos restam ignoram quase por completo os peões, ao
contrário do que acontece com os dependentes, apesar de
serem de categoria inferior. Este fenómeno, aparentemente
inesperado, explica-se pelo facto de os inferiores
dependerem dos cavaleiros e não dos peões, que não têm
fortuna suficiente para os sustentar. Este quase vazio dos
costumes municipais acerca dos peões criou a ilusão, em que
caiu Herculano, de que a maioria dos habitantes dos
concelhos eram cavaleiros e os peões pouco numerosos.
Dado que muitos cavaleiros tinham apenas o mínimo da
fortuna exigida para o serem, obrigou-os a criarem fortes
laços de solidariedade para poderem manter o seu estatuto.
Daí as prescrições foralengas que garantem a sucessão numa
linha única, evidentemente masculina, e que protegem as
viúvas que querem transmitir a sua condição a um parente.
Ajudando-se uns aos outros, formavam uma germanitas, como
lhe chamam os costumes de Ribacoa, e procuravam, por meio
da manutenção de uma estrutura cognática do parentesco,
proceder a uma constante redistribuição dos bens, de forma
a evitar a concentração do poder material nas mãos de
qualquer dos membros do grupo. O sistema de «bandos» e a
vingança privada, o controlo sobre o casamento e sobre a
herança dos menores completavam o quadro de uma sociedade
dominada por uma elite que necessitava de criar normas
rígidas para poder subsistir.
O dever de solidariedade e o cuidado em evitar a
acumulação de bens não podiam, é claro, funcionar nas
cidades, dominadas pelo individualismo e pela mobilidade
social. Esta diferença revela-se na ausência das referidas
normas em concelhos como o de Santarém, por exemplo. Aqui,
as prescrições acerca das viúvas justificam-se,
aparentemente, por razões de decência; acumulam-se normas
que urgem o pagamento da jugada e perseguem-se estratagemas
para o evitar, aparece a obrigação da dízima sobre as
transacções de mercadorias, encontram-se regras de
funcionamento do mercado e do comércio. Também se prevêem
as condições em que o cavaleiro pode ser dispensado do
serviço militar e usar o cavalo em trabalhos agrícolas.
Nota-se que lhes interessa mais poderem transmitir a
fortuna aos filhos do que restringir a sucessão a uma linha
única. Tudo isto, como é evidente, pressupõe maior
mobilidade social nos concelhos urbanos, onde se chega a
garantir aos mercadores a categoria de cavaleiro,
provavelmente mesmo que não possuam montada. Foi sobretudo
nestes meios, e depois do fim da guerra com o Islão, que a
designação de «cavaleiros» para a aristocracia municipal se
tornou obsoleta e se difundiu o conceito mais fluido e
relativo de «homem-bom», que evocava a riqueza e a honra e
não a função militar. A partir desta altura, a oligarquia
municipal deixa frequentemente de procurar imitar a
nobreza, adquirindo consciência de que a sua condição não
depende já das armas, mas da riqueza e dos cargos públicos.
A tentação de unir a função de belatores à de laboratores
desaparece e retomam aquela que no ideal das «três ordens»
os caracteriza, a de «produtores». Não quer isto dizer que
alguns deles não se deixem seduzir pelo fascínio que a
corte e a nobreza exercem. Foi decerto o que aconteceu com
Bartolomeu Joanes (1344), que mandou fazer para si um
solene túmulo na Catedral de Lisboa com o seu escudo
heráldico, instituiu uma capela com 16 clérigos e deixou
bens para celebrar missas quotidianas por D. Dinis e Santa
Isabel. Deve ter sido também o caso de João Gordo, cujo
belo túmulo se encontra na Catedral do Porto.
Como vimos no início deste parágrafo, os cavaleiros
vilãos das terras do interior só podiam exercer os seus
direitos dentro do próprio concelho; por outro lado, aí
perdiam um pouco a sua individualidade. O que contava era o
grupo. Nas cidades, pelo contrário, os mercadores contactam
frequentemente com outras comunidades e pretendem, muitas
vezes, ter um papel de relevo em vários concelhos. São
sobretudo estes, mais do que os primeiros, que começam a
adquirir uma certa consciência do seu papel na sociedade do
reino e, como tal, a procurar, ao menos de maneira
incipiente, certas formas de associação, não integradas nas
estruturas municipais. A bolsa de mercadores do reino,
sancionada por D. Dinis, é disso um sinal importante. A
legislação régia também contribui para normalizar critérios
de hierarquização social aplicáveis à gente dos concelhos,
apontando, para uso dos tribunais régios, os sinais
externos das suas categorias. Tomando como indício o número
de bestas que trazem normalmente consigo, fixa as custas
dos processos que as suas categorias apresentam a juízo.
Assim, abaixo dos cavaleiros nobres, que trazem quatro

185.
Bestas, os «outros cavaleiros», os procuradores «honrados»
dos concelhos, os cidadãos e os homens «honrados» pagam
todos as mesmas custas, partindo-se do princípio de que
traziam consigo duas bestas. Diferenciam-nos, assim, dos
peões, que não traziam montadas e que pagavam 36 dinheiros,
se andavam com um companheiro, e 18 dinheiros, se viajavam
sozinhos. Por outro lado, uma lei de 1261 só permite aos
cavaleiros «guizados de cavalo e d’armas» e aos mercadores
viajarem com lanças e ascumas. A prescrição deve abranger
cavaleiros nobres e não nobres como se depreende de
mencionar mercadores.
Para definir a categoria dos cavaleiros vilãos temos
ainda de esclarecer as suas obrigações militares para com o
rei. A este respeito, é essencial distinguir duas situações
diferentes. Uma, que abrange todos os cavaleiros e peões,
obrigados a responder, sem contrapartida, a uma
convocatória geral, por força da prescrição foralenga de
«ir ao exército do rei», tal como têm de participar no
fossado. É diferente a situação de certos indivíduos que
têm de combater no exército régio como contrapartida da
concessão pessoal de um préstamo, a que se chama,
justamente, «cavalaria». Esta instituição, mal interpretada
por Gama Barros e pelos medievalistas que o seguiram,
consiste na concessão de bens fundiários com a obrigação de
servir pessoalmente com cavalo e armas. Em 1328, o serviço
pessoal estava fixado em sete semanas anuais, além da
obrigação da anúduva, como vigilante, em condições que
desconhecemos, mas que devia ser exigida várias vezes ao
ano. Os detentores de cavalarias, em princípio, não pagavam
prestações sobre o rendimento do respectivo prédio, ao
contrário dos bens de jugada e reguengueiros, que pagavam
as prestações próprias dos prédios alodiais, no primeiro
caso, e de uma unidade dependente do domínio régio, no
segundo. Embora as cavalarias fossem concedidas,
teoricamente, a título precário, tornaram-se hereditárias.
Temos vários testemunhos de serem transaccionadas e
alienadas como se de bens próprios se tratassem.
A prestação do serviço militar pessoal em virtude das
cavalarias deve ter caído em desuso a pouco e pouco, apesar
de ainda ser recordada e requerida na primeira metade do
século XIV. Mas a instituição dos besteiros do conto
tornou-a inadequada em face da nova organização militar,
que exigia uma preparação quase profissional e obtinha uma
eficácia muito superior.
Os besteiros, que passaram a ser a tropa convocada
pelos alcaides, gozavam de isenção da jugada. Não deixavam
por isso de manter a categoria de peões; os seus
privilégios não os equiparavam a cavaleiros vilãos. Eram
pagos em dinheiro, o que aproximava a sua condição da de
mercenários, e parece terem sido frequentemente recrutados
entre os homens que viviam da caça. Em épocas posteriores o
seu estatuto tornou-se cada vez mais claro.

Os peões

Além dos besteiros, de que acabámos de falar, existem


outras categorias de peões. Apesar de estarem quase
sistematicamente ausentes da documentação legal, constituem
a grande massa dos habitantes dos concelhos. De facto, os
forais e costumes só falam deles para os apresentar como
contribuintes: têm de pagar a jugada e dar a pousadia, se
forem requeridos, e estão obrigados a algumas prestações
militares. Nos foros de Santarém, previne-se a
eventualidade de tentarem escapar ao pagamento da jugada.
Pouco mais se pode tirar dos textos normativos acerca
deles.
Examinando, porém, documentos de outro género, como,
por exemplo, o cadastro do rendimento da propriedade rural,
em duas paróquias de Torres Vedras, com vista ao cálculo do
pagamento do dízimo (1309), descobrimos que 81,36% têm um
rendimento inferior a cinco moios por ano e só 6,18%
superior a dez moios por ano. Quer isto dizer que a grande
maioria dos proprietários cultivava terras exíguas, com
rendimentos de cerca de 280 alqueires (3920 1 anuais). Este
cálculo é confirmado pelos de Robert Durand, que, com base
no imposto da jugada, que recai sobre o lavrador que possui
terra suficiente para lavrar com um jugo de bois, chega à
conclusão de que uma unidade de exploração suficiente para
pagar o imposto deveria produzir uns 3000 1 ou 4000 1
por.ano. É significativa a coincidência aproximada destas
deduções. Parecem significar que o tamanho normal de uma
terra de peão daria um rendimento de perto de 4000 1 de
cereal por ano. Note-se, porém, que deste rendimento tem de
se subtrair pelo menos o imposto da jugada (um moio = 960
1), o dízimo e o cereal para semear no ano seguinte, que
devia ser bastante, dado o fraco rendimento da terra. Ou
seja, restaria um rendimento líquido de uns 1500 1 por ano.

186
Cálculos mais especializados, com base nas calorias
necessárias paia a alimentação normal de um trabalhador
rural e dos salários em comida pagos a jornaleiros no
século XIV, permitem concluir que tais rendimentos eram
demasiado baixos para alimentar famílias de mais de quatro
pessoas. Pode-se deduzir daqui que os peões, mesmo
proprietários de unidades de exploração familiares, parece
estarem normalmente reduzidos a condições de mera
sobrevivência e de frequente subnutrição. Estas observações
vêm ao encontro de um modelo de propriedade rural proposto
por M. Aymard para a Europa moderna antes do século XVIII:
face a um grupo reduzido de proprietários com
possibilidades de obterem lucros, e mesmo de aumentarem o
capital, havia uma grande quantidade de pequenos lavradores
constantemente à beira da fome, que tinham de alugar
periodicamente a sua força de trabalho para poderem
completar os seus magros rendimentos e que, por isso, se
ofereciam por baixo preço como jornaleiros nas quintas
vizinhas, nas épocas dos trabalhos mais intensos. Só em
anos de maior produção teriam alguns excedentes, mas,
nestes, a baixa dos preços impossibilitava-os de
conseguirem alguns lucros.
Por isso a sua situação de inferioridade económica era
um círculo vicioso. São, portanto, os peões que fornecem os
trabalhadores à jorna, recrutados a título precário por
cavaleiros vilãos e homens-bons ou por senhores mais
poderosos, como os previstos no foral de Beringel de 1262,
«que não têm pão do seu para comer» e que são contratados
na altura das ceifas. Os seus filhos engrossam sem cessar
os grupos de gente que procura a sobrevivência nas cidades
e em terras novas e os marginais, cujo número cresce
lentamente até ao século XIV, e que, a partir daqui, apesar
da depressão demográfica, perturbam a sociedade com a sua
constante inquietação.
Nas cidades e seus arredores, alguns peões conseguem
resolver um pouco melhor os seus problemas trabalhando como
mesteirais. Aí, contam com o rendimento do trabalho
artesanal, muitas vezes com a produção das suas hortas e
almuinhas (de que o clero começa a exigir dízimos no
princípio do século XIV), e, quando podem, cultivando
vinhas para vender uma parte da produção. Nos poucos casos
em que conhecemos a composição profissional de áreas
urbanas e rurais, verificamos, como é natural, que a
maioria dos mesteirais vivia nas povoações. Os mais
numerosos parecem ser os sapateiros e a seguir os
alfaiates. Como se sabe, juntam-se por vezes em ruas ou
bairros próprios e raramente exercem magistraturas
municipais. Os que melhores rendimentos possuem parecem ser
os almocreves. Os de mais baixa condição devem ser os
pescadores. Entre eles contam-se também os caçadores, que
abastecem o mercado municipal de carne de caça e de cera e
mel.
Os pescadores têm uma importância maior na periferia
das grandes cidades, como acontece em Lisboa e no Porto,
porque o seu trabalho é indispensável ao abastecimento
alimentar de grandes massas de gente com poucos recursos.
Assim se explica, por exemplo, que Afonso III se interesse
por aqueles que afluem à zona de Setúbal, então dependente
da Ordem de Sant’Iago, com quem estabelece um acordo para
lhes garantir algumas condições de trabalho.
Mencionemos também os ferreiros, com relevo especial
nas povoações do interior e em tempo de guerra.
Encontram-se prescrições curiosas acerca deles nos forais
de Ribacoa e referências à sua profissão em Coimbra (1145),
Seia (1136) ou Sintra (1154), assim como nos foros de
Santarém e Beja, entre outros. Com o tempo, porém, a sua
importância decresce: as armas passam a ser fabricadas pelo
alfageme ou importadas de outros países.
A última categoria dos peões é formada pelos
cabaneiros, cavões, mancebos por soldada, jornaleiros, etc.
Como vimos em relação aos peões em geral, deviam ser mais
numerosos do que se poderia esperar à primeira vista, mesmo
em meios rurais, onde o seu grupo se reproduzia a partir
dos filhos de pequenos proprietários da peonagem. Na
periferia de zonas mais densamente habitadas, porém, viviam
em grupo, em cabanas (daí o seu nome mais corrente). De
facto, por documentos como as inquirições de 1258,
descobrem-se manchas deles na periferia do Porto, ao
serviço de mosteiros como Santa Cruz de Coimbra e Grijó,
numa povoação perto de Coimbra, como Ançã, etc. Aumentam
constantemente, apesar de uma lei de Afonso II de 1211 que
tentava absorvê-los nas estruturas senhoriais da época, ao
determinar que todo o homem devia ter «possissom», «mester»
ou senhor que por ele respondesse.

Dependentes

Nos concelhos do interior existe uma considerável


variedade de dependentes cios cavaleiros vilãos, o que se
explica pelo facto de eles disporem de posses suficientes
para os sustentar. Podemos distinguir, em primeiro lugar,
os «jugueiros», que em Ribacoa guardam os bois do senhor,

187
lavram as suas terras, recebem uma compensação em cereais,
sal e sapatos, trocam os bois a eles confiados pelo S.
Cipriano (14 de Setembro), podem semear em terras de
cultura temporária («barbecho») e dão ao senhor algumas
jeiras em trabalho. Ao contrário do que normalmente se
pensa, não se podem confundir com os homens que pagam
jugada ao concelho (que são os peões proprietários); são
provavelmente os que cedem as suas terras a cavaleiros dos
concelhos, pagandio-lhes um quinto da produção e algum
trabalho braçal, em troca da cedência de uma junta de bois
e de cereal para semear. A sua categoria parece tender a
confundir-se com a mais ampla dos solarengos, que moram e
trabalham no solar (a terra do cavaleiro), e deviam
corresponder aos colonos das terras senhoriais. Pouco
sabemos das condições em que viviam. No caso, porém, de se
incluírem na categoria genérica de «aportelados de amo»,
como dão-a entender certas prescrições dos foros de
Ribacoa, pode-se presumir que a sua dependência era de tal
ordem que o dono lhes podia mandar cortar uma das mãos,
recebia metade da coima, se alguém os matava ou forçava a
mulher ou a filha, e pagava a multa, se ele roubava alguém;
porisso não pagavam qualquer tributo e não tinham direitos
nem deveres, a não ser para com o próprio amo.
Os «colaços» devem designar, provavelmente, uma
categoria sinónima dos solarengos, segundo uma terminologia
mais corrente em território castelhano e leonês e pouco
usada em Portugal. Alguns dos dependentes deviam ter um
estatuto mais próximo do do criado rural, como acontecia
com os hortelãos, que, como o nome indica, trabalhavam na
horta do senhor, mas moravam em casa fornecida por ele e
podiam semear terra dele com sementes suas.
A última categoria de dependentes nas terras altas do
interior é a dos mouros, que trabalham em serviços
domésticos e artesanais e que são muitas vezes capturados
em expedições de guerra, em condições cuidadosamente
regulamentadas, por exemplo, pelos foros de Ribacoa.
Nos concelhos do tipo de Ávila, isto é, no Alto
Alentejo e na Beira Baixa, o nome genérico do dependente é
«vassalo de solar» ou «vassalo de herdade». Aqui aparecem
também os solarengos, que devem pertencer à mesma
categoria, e os hortelãos, semelhantes, decerto, aos de
Ribacoa. Outras designações são específicas destas regiões.
Assim, os «quarteiros», que correspondem talvez aos
jugueiros de Ribacoa, admitindo que o seu nome se
justificasse por pagarem um quarto da produção, em vez de
um quinto; os «mancebos», ou criados de lavoura, que
aparecem frequentemente nestas regiões, sem dúvida porque
aqui é maior a mobilidade da mão-de-obra; e, por fim, os
conductarios, ou seja, segundo parece, os jornaleiros cujo
trabalho é pago com uma ração de comida (conductus).
Pela abundância de menções aos mancebos, pode-se
presumir que os trabalhadores à jorna são numerosos no Sul
do País e que a sua condição os aproxima da dos
proletários. A vulgaridade do seu estado inspirou, por
exemplo, a Lei da Almotaçaria de 1253, onde se tabelam os
salários dos nancebos de lavoura, das vacas, dos porcos e
das ovelhas. Embora a versão da lei que se conhece seja
dirigida aos magistrados de Entre Douro e Minho, é provável
que represente mais a situação do Centro ou do Sul, porque
era aquela que o legislador, vivendo na corte, conhecia
melhor. De qualquer maneira, tal como no Norte interior, é
o amo que responde pelos seus dependentes: recebe a coima,
se alguém os matar; mas, se um deles matar alguém fora da
vila e fugir, o senhor é dispensado da respectiva multa.
Nas cidades, pelo menos nas que adoptavam os foros de
Santarém, o senhor é responsável pelos prejuízos ou roubos
do seu mancebo, excepto em caso de assassinato; se há razão
para isso, pode castigá-lo corporalmente e negar-lhe o
salário. Mas prevêem-se pequenas restrições às suas
eventuais arbitrariedades: não pode «tolher-lhe» nenhum
membro; se o expulsar sem razão, tem de lhe pagar a soldada
até ao fim do ano; se é ferido pelo amo, não tem de
compensar os danos a ele causados. Por outro lado, o
mancebo pode testemunhar em juízo acerca de companheiros
seus. Percebe-se, assim, que o mancebo continua a ser
juridicamente um menor, mas que os vínculos que o unem ao
senhor são mais frouxos nas cidades do litoral do que nas
zonas do interior, tanto a norte como a sul. Tal é o
resultado das relações sociais que se instauram em meios
urbanos, mais marcados pelo individualismo e pela
mutabilidade dos vínculos pessoais.
Além disso, existe também nas cidades um grande número
de mouros que trabalham profissionalmente na produção
artesanal, prolongando, assim, as estruturas económicas da
época muçulmana. São mencionados, por exemplo, no foral de
Santarém-Lisboa-Coimbra de 1179, onde se verifica que
trabalhavam sobretudo como ferreiros e sapateiros. Por isso
a ferraria de Santarém estava junto da mouraria da cidade.

188
O emprego de um grande número de escravos mouros no
artesanato foi, sem dúvida, uma das causas do tardio
desenvolvimento das corporações de mesteres em Portugal. O
seu trabalho só lentamente foi substituído pelo dos
mesteirais cristãos livres.
Note-se ainda que nas cidades viviam comunidades de
mouros forros, isto é, livres, mas obrigados a pagar
imposto ao rei. Afonso I deu em 1170 foral aos de Lisboa,
Almada, Palmela e Alcácer, e Afonso III aos de Évora. D.
Dinis enumerou minuciosamente os tributos que deviam
pagar-lhe. Estes mouros, embora vivessem em condições
análogas às dos judeus, distinguiam-se deles pela sua maior
debilidade económica; por as suas comunidades terem menor
unidade e coerência e pelo facto de os seus membros haverem
sido assimilados, segundo parece, sem grande dificuldade
pela maioria cristã antes do século XV.
Como se vê, apesar de um certo número de pontos comuns,
a situação dos dependentes é consideravelmente diferente
conforme a região onde vivem, podendo-se distinguir o
Norte, o Centro e o Sul e as cidades do litoral. Esta
diferença geográfica representa também uma diferença
diacrónica que não cessa de se acentuar com o tempo: quer
dizer, enquanto a vinculação dos dependentes dos cavaleiros
do interior tendia a manter-se com uma certa estabilidade,
afectada apenas pela lenta desagregação das oligarquias,
nas cidades e seus arredores, o estatuto dos dependentes
foi-se tornando progressivamente mais próximo do do
proletariado, afrouxando-se os laços entre o amo e os
mancebos e dissolvendo-se os contornos da escravatura. As
condições de que falámos acerca das camadas mais pobres dos
peões, a sua necessidade de trabalharem temporariamente nos
grandes domínios e nas quintas dos proprietários mais
abastados da segunda metade do século XIII devem ter
contribuído, pelo menos durante o período de crescimento
demográfico, para manter estável o grupo dos assalariados
permanentes. O recrutamento intermitente dos jornaleiros
nos períodos de trabalhos mais intensos revelava-se mais
vantajoso para os proprietários. A situação viria, porém, a
modificar-se profundamente durante o período depressivo dos
séculos XIV e XV.

As funções

Solidariedade e colectividade

De tudo o que vimos até aqui, já se pode deduzir que


encontramos nos concelhos do interior uma expressão mais
acabada do ideal de solidariedade colectiva do que nos das
cidades. De facto, os foros de Alfaiates dizem: «Os
homens-bons e o concelho de Alfaiates chegaram entre si a
acordo para que sejamos todos como um só, para que
defendamos unanimemente os direitos de Alfaiates e sejamos
todos amigos à boa fé e sem qualquer dolo.»
Não admira, por isso, que desde o momento em que
existem leis gerais no reino se designem os concelhos por
communitates e que eles se apresentem perante o exterior
ostentando símbolos colectivos que exprimiam a sua unidade
fundamental, nas bandeiras, selos e escudos. Conhecem-se
muitos selos concelhios colocados em documentos para
garantir a sua autenticidade desde o princípio do século
XIII e diversos actos que evidenciam o valor atribuído às
bandeiras.
Os símbolos escolhidos para representar as comunidades
concelhias, por sua vez, também exprimem a solidariedade
colectiva, como acontece no caso mais frequente dos
símbolos militares, como as muralhas ou o guerreiro a
cavalo, mas também noutros, como a águia, o touro junto a
uma muralha, o pelicano, a árvore, o barco ou a ponte. Como
seria de esperar, os primeiros encontram-se mais no
interior e os segundos mais no litoral do País. Sabe-se
também que, mesmo os concelhos mais pequenos e dependentes
de senhorio, tinham os seus selos e que, quando algum se
destacava de outro, havia acordos sobre a bandeira que cada
qual devia usar. Assim, o concelho de Castelo Branco
ostentava a da Covilhã, quando combatia contra cristãos, e
a dos Templários, quando marchava contra mouros.
Nestas condições, pode-se considerar gravemente lesiva
das mais arreigadas tradições municipais a lei de 1305,
pela qual D. Dinis designa um representante seu para selar
com o selo régio os contratos feitos perante os tabeliães
públicos, o que era uma evidente desautorização, tanto dos
concelhos como dos próprios tabeliães.
Embora muito menos referido na documentação escrita, é
também símbolo da colectividade e representação material da
justiça nela praticada o pelourinho, de que existem muitos
exemplares em Portugal, embora geralmente tardios. Era

189
junto dele que se executavam as sentenças do tribunal
local.
Ao contrário do que acontece a partir do século XIV,
são raros ou mesmo inexistentes os edifícios da câmara
municipal. A reunião da assembleia é ainda uma realidade
efectiva e por isso o local referido nos documentos desta
época é um espaço aberto: uma «praça do concelho», um
carvalho, o exterior da igreja junto a uma das suas
janelas, o adro da igreja ou um claustro. Avisados por
pregão, todos tinham de comparecer, por vezes sob pena de
multa.
Essas reuniões não serviam só para deliberar acerca de
assuntos que a todos interessavam, como a marcação de
expedições militares, o início dos grandes trabalhos
agrícolas, as posturas municipais, a data da partida do
gado para as pastagens de Verão, a reparação das muralhas,
a eleição de novos alcaides e outros magistrados, etc. Era
aí também que se julgavam todos os delitos públicos (em
Alfaiates havia mesmo dias próprios, conforme as várias
espécies de infracções), se proclamava a vindicta contra os
aleivosos do concelho, se leiloavam os escravos mouros, se
repartiam as presas de guerra, se distribuíam as terras do
sesmo.
Convém, todavia, observar que a assembleia devia ter um
carácter bastente diferente nas povoações do interior e nas
cidades do litoral. Com efeito, ali o vigor dos laços de
parentesco era enorme, ao passo que aqui as propensões
individualistas diluíam as suas imposições. De facto, ali
as regras da aliança cognática e uma certa endogamia
contribuíam para criar grupos de solidariedade, verdadeiros
bandos, que podiam opor-se entre si e criar um estado de
tensão permanente. Se algum crime se cometia, era julgado
pelo sistema de «conjuradores», isto é, de pessoas que
juravam solenemente pela inocência do acusado ou pela razão
do acusador, e depreende-se que pertenciam ao bando de cada
um deles. Os alcaides limitavam-se a vigiar a formalidade
do processo, e as causas mais graves eram decididas,
afinal, segundo parece, pela maior ou menor força dos
grupos em presença. Se não era possível chegar a uma
sentença aceite pelas partes, recorria-se a um duelo entre
acusador e acusado ou entre os seus respectivos
representantes. Este tipo de processo judicial implicava
que certos crimes fossem julgados no interior da família
larga, sem chegarem a cair sob a alçada do tribunal
público.
Nas cidades, pelo contrário, usava-se a prova por
testemunhas; p processo só podia ser desencadeado pelo
indivíduo queixoso; a mulher era menos dependente da
família; a parentela exercia uma influência diminuta em
matéria judicial; entre os delitos mais correntes
contava-se a insolvência de dívidas. Questões, em suma,
reveladoras de uma mentalidade menos dependente de
instâncias intermediárias entre o indivíduo e a autoridade
pública, particularmente do grupo de parentesco.
Dada a enorme coesão dos concelhos do interior,
fica-se, à primeira vista, surpreendido pela aparente
facilidade com que se recebiam estranhos vindos de outras
terras que pretendiam fixar-se no concelho, mesmo, quando
eram criminosos, raptores, servos e escravos cristãos
perseguidos noutros lugares. Por um lado, é compreensível
este princípio: o direito municipal era exclusivo do
próprio concelho e, portanto, nada tinha a ver com crimes
cometidos fora dele. Antes da outorga dos forais, nem
sequer se punha a eventualidade da justiça régia; e depois
ela permanece durante muito tempo como alheia aos
interesses da comunidade. Mas a afluência de marginais
podia ameaçar a sua coesão. Todavia, a extrema abertura à
recepção de estranhos mostra que ela não devia atemorizar a
oligarquia municipal; com efeito, os que chegavam de fora
só podiam, quando muito, integrar-se na massa anónima e
economicamente débil dos peões ou procurar a protecção de
um cavaleiro vilão, como dependentes. Vinham, assim,
reforçar o potencial militar e a mão-de-obra disponível,
sem perturbar o poder instituído. A violência do código
penal permitia reprimir os crimes que os recém-vindos eram
propensos a cometer.
A forte coesão interna tinha como contrapartida o quase
total desinteresse pelo que se passava nos concelhos
vizinhos: não se permitia à justiça alheia perseguir nenhum
criminoso no território próprio; se alguém a isso se
atrevesse, ficaria sujeito a gravíssimas multas; pelo
contrário, se alguém do concelho prendesse ou matasse
alguém do território vizinho, a multa seria leve, se o
fizesse sem razão alguma, e nula, se a tivesse. Mas havia
um processo especial para tentar chegar a acordo acerca dos
pleitos entre duas comunidades municipais: as duas
assembleias reuniam-se num local de fronteira, a que se
chamava «medianido». Mesmo assim, as lutas entre concelhos
podiam ser violentas e mortíferas, como a que opôs os de
Castelo Branco e Covilhã, na Beira Baixa, por volta de
1225, e os de Alvares e Almofala, na Beira Alta, 100 anos
depois.

190
Por isso, não admira que as relações económicas entre
os concelhos fossem habitualmente débeis, inexistentes ou
mesmo antagónicas. A tendência geral favorecia a importação
de bens e onerava a exportação, o que mostra que o grande
problema era o abastecimento da população local. Nas
cidades, porém, as prescrições acerca do comércio tornam-se
cada vez mais frequentes, à medida que as relações
económicas se intensificam. É raro, porém, encontrar
associações de concelhos do género das hermandades, tão
frequentes e poderosas em Castela. O único caso deste
género que entre nós se conhece foi descoberto recentemente
por H. Baquero Moreno e diz respeito a um acordo de sete
povoações acasteladas em Ribacoa, confirmado por D. Dinis
em 1296-1297, e que afinal resulta, como é evidente, de um
acordo anterior à integração destas terras em território
português; mantido em vigor apesar de normalmente não se
praticar neste reino, parece ter caído em desuso não muito
tempo depois.

Religião

Apesar de a organização concelhia ter um carácter


civil, percebe-se, sobretudo nas sociedades do interior,
que os problemas religiosos são para ela fundamentais,
embora expressos quase sempre de maneira indirecta. O
pároco faz parte da comunidade e tem privilégios idênticos
aos dos cavaleiros vilãos. Mas a tendência autonómica do
concelho leva-o a desconfiar das autoridades eclesiásticas
externas, sobretudo quando insistem em impor aos vizinhos a
cobrança de direitos, que eles vêem com maus olhos. O
princípio da reforma gregoriana, segundo o qual todo o
clérigo devia ser um «separado», com costumes, porte e
cultura totalmente diferentes dos leigos, também não agrada
aos homens dos concelhos: difundido muito lentamente a
partir de áreas de regime senhorial, mais próximas das
sedes diocesanas, acaba, todavia, por penetrar também no
interior do País e contribui igualmente para que o pároco
acabe por ser considerado um vizinho à parte. Assim, deixa
de ser o oficiante de ritos vindos do fundo dos séculos e
profundamente arreigados na mentalidade popular, para se
tornar o instrumento da religião oficial, ou vai
desempenhando o seu papel de uma maneira equívoca, como
responsável por práticas sincréticas, que o bispo vai
persistentemente tentando purificar ao longo de toda a
Idade Média. Este conjunto de problemas e de forças opostas
torna o campo religioso extremamente complexo. Às
dificuldades decorrentes da própria natureza da matéria,
junta-se ainda a escassez de documentação explícita, pois
estes temas só indirectamente são mencionados nas fontes
concelhias.
Comecemos por mostrar, antes de mais, a enorme
persistência de práticas mágicas e supersticiosas, como se
deduz de várias prescrições dos sínodos do século XIII que
condenam formas incorrectas de administrar o baptismo e
costumes francamente mágicos ou sortilégios em que se
usavam os óleos sagrados, a água benta, a hóstia e o vinho
consagrados, o que revela o carácter sincrético de tais
práticas e, ao mesmo tempo, a conivência do clero inferior
na sua execução. De facto, sabemos por fontes oriundas de
meios senhoriais que os encantamentos e as acções
divinatórias eram muito correntes entre os nobres e nas
cidades; é lógico que fossem bem mais frequentes no campo.
Uma fonte tão imbuída de erudição e de nacionalidade como o
Fuero real de Afonso X prevê expressamente que o testemunho
judicial de mulheres só tenha valor em questões próprias do
mesmo sexo e relativas a «encantamentos de mulheres».
Outra, tão aceite nos meios clericais e escolares, como o
Thesaurus pauperum de Pedro Hispano, não deixa de
prescrever receitas de carácter mágico, ou quase mágico,
para garantir o afecto de alguém do outro sexo. Não admira,
por isso, que nas regiões do Norte se guardem
respeitosamente as porcas ou verrascos da época castreja,
que nos montes onde os santuários pagãos foram substituídos
por ermidas cristãs se misturem os antigos cultos com os
recentes, como acontecia, segundo testemunho das Cantigas
de Santa Maria, em Sta. Maria de Terena (edificada em vez
de um antigo templo a Endovélico), e que as romarias tenham
preservado rituais e acções simbólicas de origem pagã.
Outras vezes são os poderes sagrados cristãos que se
invocam para acções judiciais, como acontece em Alfaiates
com a celebração da missa antes dos duelos, ou, um pouco
por toda a parte, nos juramentos e maldições, cujas
fórmulas de sabor meio pagão se misturam com as de origem
cristã, ou ainda, também por toda a parte, com a utilização
de objectos sagrados, de relíquias e de imagens de santos
para proteger as pessoas e os lugares contra os maus
espíritos, que os clérigos identificam cada vez mais
insistentemente com os demónios. Os livros de milagres,
apesar de serem redigidos por clérigos imbuídos dos
princípios da religião oficial, estão cheios de relatos

191
deste género. Se assim acontece nos meios culturalmente
mais evoluídos, pode-se admitir, sem risco de engano, que a
mentalidade da gente dos concelhos, no interior do País,
estivesse muito mais apegada a tais manifestações de
religiosidade popular.
Perante estas tendências, os bispos, fazendo-se eco de
um movimento orquestrado pelo papado, orientam a sua
estratégia de vigilância religiosa para os seguintes
pontos: exigir que os clérigos tenham uma instrução
suficiente e conheçam o latim, vistam com decência, cortem
a barba regularmente, não usem armas, não entrem em
tabernas, não tomem parte em duelos, não pratiquem nem
deixem praticar encantamentos e sortilégios, não exerçam
qualquer profissão secular. Em segundo lugar, sem se
atreverem, de início, a contestar o direito de as
comunidades elegerem os seus párocos, como continuou a
acontecer, por exemplo, em Trás-os-Montes no século XIII,
os bispos exigem que os concelhos reconheçam a sua
autoridade em matéria eclesiástica; depois, que os clérigos
sejam julgados em tribunal diocesano; finalmente, que o
pároco, qualquer que fosse a sua forma de nomeação,
recebesse a ordenação sacerdotal e fosse confirmado pelo
bispo. Tudo isto se apoia numa norma clara e cada vez mais
conhecida, invocada e comentada, o Decretum de Graciano,
redigido em Itália em meados do século XII, que depressa
recebeu o sancionamento papal e constituiu a base do
direito canónico, permitindo, assim, um procedimento
uniforme em toda a parte e, portanto, uma grande eficácia a
longo prazo.
Noutros pontos, a acção do clero orientado pelo bispo
foi mais lenta. Assim aconteceu, por exemplo, com a
perseguição do divórcio e com a difusão do casamento
sacramental, uma vez que a forma matrimonial mais corrente
continuou ainda a ser, durante muito tempo, para os vilãos
dos concelhos, a da simples coabitação ou do casamento «de
juras». Aqui, a acção do tribunal da coroa e da legislação
régia foram decisivas, embora de maneira indirecta, ao
insistirem na noção de contrato legal (que tendia a
identificar-se com o público e solene), por oposição ao
concubinato e à barregania, e como critério de legitimidade
da prole.
De maneira mais subtil, a invocação das forças ocultas
e da magia foi combatida sobretudo por meio da atribuição
de todas as práticas mágicas ao demónio, como forma de
reconhecimento do carácter sobrenatural de muitas acções
inexplicáveis, mas que nem por isso perdiam o seu carácter
intrinsecamente perverso. Isto permitiu associar o demónio
à actuação das almas do outro mundo, mas, ao mesmo tempo,
encorajar os sufrágios pelos defuntos cujas almas se
pensava estarem no Purgatório, como forma de as libertar
das suas penas e, simultaneamente, de evitar a perturbação
que as suas incursões causavam no mundo dos vivos.
A vigilância episcopal sobre o clero paroquial foi-se
aperfeiçoando cada vez mais, primeiro com a intensificação
da visita episcopal à diocese, prática vivamente louvada
pelos adeptos da reforma gregoriana desde o fim do século
XI; depois com a reunião de sínodos onde se congregava todo
o clero da diocese; pela mesma época, com a criação de
instâncias intermediárias de controlo e de administração,
isto é, dos arciprestados e arcediagados; e, finalmente,
com o aperfeiçoamento da cúria diocesana e com a actuação
crescente do tribunal eclesiástico.
O reforço da burocracia diocesana permitiu implantar um
sistema cada vez mais aperfeiçoado de cobrança de direitos
eclesiásticos. Deixando de lado os pormenores do seu
funcionamento, importa, contudo, referir o que se passa com
o dízimo, que teve fortes incidências sobre a vida
religiosa dos concelhos. Está mal estudada a sua origem,
mas sabe-se que, tendo sido prescrito pelos concílios de
Latrão de 1123 e de 1139, só desde o princípio do século
XIII começou a ser exigido um pouco por toda a parte. A
concessão voluntária que Afonso II fez em 1218 do dízimo
dos seus rendimentos a todos e cada um dos bispos
portugueses deve ter contribuído fortemente para isso. Em
meados do século XIII não estava totalmente implantado na
diocese de Lisboa, mas já se exigia normalmente na de
Braga. A generalização levou a delimitar rigorosamente as
paróquias, evitando, assim, que os habitantes das zonas
periféricas escapassem ao pagamento. Daí o movimento de
delimitação territorial, que se prolongou até ao segundo
quartel do século XIV e que suscitou numerosas
controvérsias entre bispos ou clérigos e concelhos. Esta
constitui, afinal, a questão de fundo mais difícil de
resolver durante a luta que opôs os bispos à coroa durante
todo o século XIII, bem conhecida da nossa historiografia.
É o que se deduz, por exemplo, da concordata de 1289. De
facto, a imposição do dízimo desencadeava frequentemente
resistências violentas por parte dos paroquianos, com o
apoio das autoridades municipais; aquelas provocavam a
excomunhão dos refractários; seguiam-se novas violências
dos juízes e meirinhos dos concelhos, pedia-se a

192
intervenção dos funcionários régios; verificava-se, enfim,
uma escalada de agressividade, que acabava por envolver o
próprio rei e o papado. Mas o dízimo acabou por se
generalizar.
Paralelamente, a implantação simultânea da justiça
régia e dos tribunais eclesiásticos durante o século XIII,
com as difíceis questões resultantes de haver muitos casos
judiciais reivindicados por ambos os poderes, levava também
os magistrados dos concelhos a intervirem contra as
exigências da cúria diocesana.
Finalmente, os concelhos opunham-se, sempre que podiam,
à implantação de senhorios eclesiásticos, ou mesmo às
simples aquisições fundiárias de clérigos poderosos,
sobretudo de cónegos e de membros de ordens religiosas,
porque de contrário ficariam privados de rendimentos
habituais, devido ao privilégio eclesiástico de isenção
fiscal. As leis de amortização de Afonso II e de D. Dinis
vieram em auxílio dos concelhos, mas, por outro lado, estes
e outros reis forçaram-nos por vezes, a aceitar a aquisição
de grandes domínios em terras municipais por ordens
monásticas e militares, como aconteceu concretamente com
Afonso III em alguns concelhos do Alentejo.
Os problemas religiosos não são apenas, porém, motivo
de conflito entre autoridades municipais e diocesanas. Por
outro lado, as práticas religiosas dos vilãos dos concelhos
não são absolutamente estáticas, apesar da sua tendência
conservadora. Além de algumas alterações decorrentes de uma
nova atitude do clero, baseada no princípio da maior
separação possível entre clérigos e leigos, e do uso de
estratégias de combate à magia que implicavam uma
concretização da acção diabólica, com consequências
importantes sobre as crenças populares, pode-se também
mencionar neste capítulo o importante fenómeno da
proliferação de confrarias.
Embora se registem algumas já no princípio do século
XII, só se multiplicam a partir do fim do mesmo período.
Conservam-se poucos estatutos anteriores a meados do século
XIII. Sabe-se, porém, que se destinam a colocar o grupo dos
confrades sob a protecção de um santo e a organizar a ajuda
mútua e a beneficência. A sua expressão concreta era a
esmola aos membros pobres, a ajuda mútua na doença e na
morte, a garantia de rodear o moribundo e o defunto de
preces e sufrágios e uma solene refeição pelo menos uma vez
por ano. Constituem uma forma de parentesco artificial, que
se revela até na criação de estruturas de tipo judicial
para resolver os conflitos e tensões entre os membros,
evitando assim o recurso à justiça secular, que é punida
com graves sanções. Traduzem, portanto, a necessidade de
substituir a parentela, quando o desenraizamento provocado
pelas deslocações migratórias ou o individualismo citadino
desagregam as antigas estruturas familiares. Reúnem
categorias profissionais (sobretudo nas cidades) ou
sociais, devotos de um mesmo santo ou de uma mesma prática
religiosa, como os pedreiros de Coimbra ou os sapateiros de
Guimarães, os cavaleiros vilãos de Beja e Sabugal ou os
homens-bons ovelheiros de Viana do Alentejo, os devotos do
Espírito Santo de Benavente ou os peregrinos da Terra
Santa, em Évora, ou de Rocamador, em Santarém. Podem
revelar a necessidade de defesa de um grupo face a um meio
hostil, como acontece com os clérigos de Leiria em 1211,
para se defenderem de exigências excessivas do Mosteiro de
Santa Cruz de Coimbra, ou da confraria de Lourosa, que se
opôs ao mosteiro de S. Pedro de Arganil no século XIII. Mas
são também o lugar privilegiado de influência das ordens
mendicantes, que aí procuram difundir os ensinamentos da
Igreja em matéria de honestidade no uso dos bens materiais,
de castidade e de virtudes familiares. Daí a sua natural
conexão com as «ordens terceiras» que os Franciscanos e
Dominicanos organizam e a que dão assistência, embora o
sucesso que aqui adquirem provoque a rivalidade do clero
diocesano, que os acusa de atraírem os paroquianos às suas
igrejas para aí se confessarem e ouvirem as pregações, e
até se enterrarem, fazendo-os, assim, escaparem à sua
jurisdição. Estes conflitos suscitaram debates graves e até
chocantes violências físicas, como aconteceu no Porto por
volta de 1237-1242 e pela mesma época em Leiria e
Guimarães.
Os mendicantes vieram, de facto, introduzir importantes
modificações na religiosidade dos leigos, insistindo na
prática de virtudes individuais e numa instrução religiosa
baseada na teologia, contribuindo assim para apressar a
desagregação das estruturas tradicionais de parentesco.
Implantaram-se nas cidades, sobretudo nas mais populosas e
em que havia maior número de marginais. Tendo o privilégio
da isenção canónica, só parcialmente dependiam do bispo. A
sua organização, a sua instrução e o seu dinamismo punham
em causa a autoridade do clero diocesano. Explica-se assim
uma rivalidade, que, todavia, acabou por dar lugar a uma
convivência menos conflituosa a partir do fim do século
XIII, quando os mendicantes deixaram os seus santuários
muito humildes para construírem imponentes igrejas góticas
à beira das muralhas, no espaço onde o tecido urbano então
se alargava, no meio dos bairros de gente pobre que afluía
às cidades.

193
[legenda de figura.]
Conventos franciscanos e dominicanos.
A implantação dos conventos franciscanos e dominicanos
em Portugal (como acontece também no resto a Europa) mostra
bem a sua íntima relação com a vida urbana. Os mendicantes
procuraram sobretudo s cidades mais populosas e os centros
diocesanos, onde residiam as autoridades episcopais.

194
Em algumas delas, como Coimbra. Lisboa e Leiria, os
Franciscanos vieram também competir com os tradicionais
mosteiros de Cónegos Regrantes de Santo Agostinho. Estes,
durante o século XII, tiveram uma enorme influência junto
dos cavaleiros vilãos e dos cavaleiros nobres de Coimbra.
Mas a sua conexão com os interesses senhoriais acabou por
afastá-los das estruturas concelhias. Compreende-se assim o
insucesso da fundação regrante perto de Cidade Rodrigo no
fim do século XII. Quanto aos Beneditinos, estão de todo
ausentes desses territórios. A única ordem monástica que
neles se implanta, e mesmo assim apenas na Beira Alta e na
Estremadura, é a dos Cistercienses, cujas fundações
correspondem ao esforço de repovoamento que se segue à
Reconquista de entre Douro e Tejo, na segunda metade do
século XII. Mas a concentração de poder nestes mosteiros
suscitou também vários conflitos com gente dos concelhos,
sobretudo durante a crise de 1190-1210.
A vida religiosa dos concelhos do interior, menos
urbanizados, sobretudo no Centro e Sul, deve ter sido
fortemente influenciada pela sujeição de muitos deles às
ordens militares do Templo, SantTago, Avis e Hospital, que,
como se sabe, possuíam aí extensos territórios. Ao
contrário, talvez, do que seria de esperar, a
senhorialização que trouxeram a esses concelhos,
retirando-lhes uma parte da sua autonomia, nem por isso
parece ter provocado conflitos violentos, pelo menos antes
do segundo quartel do século XIV. Pode ser, porém, que este
panorama, até agora nunca estudado, venha a modificar-se
com um melhor conhecimento da documentação disponível.
Não foram só as ordens religiosas que tiveram
influências sobre a religiosidade concelhia. Em algumas
zonas, sobretudo na Beira e na Estremadura, apareceram
durante todo o século XII, sobretudo na segunda metade,
fundações eremíticas implantadas nas encruzilhadas dos
caminhos e na periferia das zonas habitadas. A busca do
deserto constitui um curioso fenómeno da época, mas não se
prolongou muito no tempo, porque os eremitérios foram
geralmente absorvidos por ordens monásticas ou
desapareceram, dando lugar a igrejas paroquiais quando
atraíram povoadores. Durante o século XIII, tornam-se mais
raros e preferem a periferia das cidades, em contraste com
a figura quase mítica dos eremitas dos romances de
cavalaria, que tanta importância assumem no imaginário
religioso senhorial e que aí aparecem no meio da floresta.
Estão, no entanto, por estudar os antecedentes das ordens
eremíticas dos séculos XIV e XV, particularmente dos que se
reuniram na congregação dos Paulistas da serra de Ossa. De
qualquer maneira, à conexão destes devotos extremistas com
o modelo monástico que os dominou no século XII, sucedeu o
seu carácter popular no século XIV. Podem-se, por isso,
comparar com os reclusos e emparedados de ambos os sexos
que se encontram em algumas cidades nos séculos XIII e XIV
e que suscitaram a admiração de Sancho II e da Rainha Santa
Isabel. Correspondem aos begardos e beguinas dos países da
Europa Central, mas não foram muito numerosos em Portugal.
Se eram mulheres, podiam agrupar-se em pequenas
comunidades, como a que deu lugar ao convento de clarissas
de Lamego, depois transferido para Santarém, onde recebeu a
protecção por Afonso III, e se uniu, talvez, às devotas
cuja direcção espiritual era disputada por Franciscanos e
Dominicanos em 1261.
Quanto ao clero urbano, acaba por encontrar, sobretudo
nas cidades mais próximas do litoral, uma forma alternativa
de organização intermediária entre a vida diocesana e a
religiosa. Quero-me referir às colegiadas de cónegos
seculares que foram fundadas no fim do século XII e
princípio do seguinte para receber clérigos que queriam
viver em comum, sem adoptarem a estreiteza da vida
religiosa. Apareceram em Cedofeita, Santarém, Torres
Vedras, Óbidos, Abrantes e em muitas outras cidades
importantes ou vilas menores, tendo normalmente várias
igrejas dependentes e assegurando a subsistência de um
número fixo de clérigos. Este fenómeno não pode deixar de
se relacionar com o crescimento demográfico da época e o
recurso a múltiplas instituições que agrupavam os
celibatários, impedidos de casar pelas estruturas
familiares. Pode enquadrar-se também no mesmo contexto a
abundante criação de capelas, a que estavam vinculados bens
suficientes para o sustento de um ou mais capelães, e os
hospitais para clérigos pobres, instituídos como legados
pios pelos seus fundadores. O excessivo número de clérigos
e a sua afluência a instituições mais ricas obrigaram a
limitar o número de candidatos, pois não havia prebendas
para todos.
O excesso de clérigos compreende-se também em virtude
dos privilégios de que gozavam. De facto, houve sempre um
certo número que recebiam ordens menores, mas depois
casavam e viviam como leigos, pretendendo, mesmo assim,

195
obter as vantagens do estado eclesiástico. As autoridades
seculares procuraram sempre combater esta forma fraudulenta
de fuga ao fisco, ao serviço militar e ao foro dos
tribunais civis.
Nestas circunstâncias, não admira que a obrigação
canónica do celibato eclesiástico fosse frequentemente
infringida. De facto, é tão frequente encontrar filhos de
clérigos que se pergunta qual seria a proporção dos
efectivamente celibatários. Podemos fazer uma pequena ideia
contando as numerosas dispensas papais de ilegitimidade
para poder exercer ofícios canónicos ou receber a ordenação
sacerdotal. Por vezes, parece até que os párocos se sucedem
de pais para filhos, apesar da proibição em contrário do
direito canónico e, em concreto, do Sínodo de Braga de
1281. Conhecem-se mesmo algumas famílias especializadas na
captação de funções eclesiásticas, como foi a de Vasco
Martins, bispo do Porto e de Lisboa (1328-1344), filho e
neto de clérigos, e a que pertenceram mais dois bispos, um
cónego e dois outros clérigos.

Guerra e paz

Já vimos anteriormente que a situação de guerra


contínua condiciona as mais típicas instituições municipais
e até o próprio princípio da autonomia. Entre meados do
século XI e o fim do seguinte, determinava o modo de vida
dos concelhos do interior e dos mais próximos das
fronteiras do Mondego e do Tejo. A forma mais corrente do
combate ofensivo era a da «cavalgada», chamada também
«azaria» ou «almofala», mais raramente «fossado». Nelas, os
cavaleiros vilãos, chefiados por um adail, enquadravam
pequenos grupos de cavaleiros das aldeias ou de peões.
Destinavam-se sobretudo a tentar a pilhagem de gado,
escravos, dinheiro, armas, cavalos e objectos de luxo no
campo inimigo. Daí as numerosas prescrições foralengas
sobre a repartição dos despojos. Começava por reparações
aos feridos e prejudicados com perda de armas e cavalos e
por compensações a quem se tivesse distinguido em acções
mais destemidas; depois retirava-se o quinto do rei;
finalmente, repartia-se o remanescente, havendo quinhões
especiais para os alcaides. A distribuição dos mouros
aprisionados privilegiava quem tivesse algum parente em
cativeiro no campo inimigo. Daí a importância da função dos
alfaqueques, ou intermediários, na troca de prisioneiros e
escravos. O comércio de armas, cavalos e víveres era,
porém, severamente proibido.
As expedições praticavam-se na Primavera e no Verão, a
partir de Maio, quando os inimigos também atacavam, o que
obrigava a cuidados especiais com a reparação do castelo,
feita pelos peões obrigados à anúduva e pelos condenados a
trabalhos forçados. A aproximação dos inimigos podia ser
detectada por meio das torres de atalaia, colocadas em
pontos estratégicos, onde o serviço de vigilância se
chamava também «anúduva». Se o inimigo atacava,
convocavam-se todos os vizinhos (apelido), mesmo os
admitidos há menos de um ano; quem não comparecia era
castigado com penas tão humilhantes como arrancar a barba
ao peão e cortar o rabo do cavalo do cavaleiro. O mesmo
acontecia a quem fugisse no meio do combate.
A importância das actividades bélicas concelhias não se
deduz apenas da leitura dos forais e foros longos, mas
também do facto de terem sido os cavaleiros vilãos de
Santarém que cerca de 1150 atacaram Alcácer do Sal e que em
1162 se apoderaram de Beja. A gente dos concelhos foi,
decerto, a que mais efectivos forneceu aos bandos de
marginais que actuaram nas zonas de fronteira, como o que
foi comandado por Geraldo, Sem Pavor, e que tanto terror
incutiu entre os muçulmanos da zona de Badajoz na segunda
metade da década de 1160.
A partir das incursões almóadas de 1184-1191 a situação
modificou-se. A violência da guerra exigiu maior
profissionalização. Só as ordens militares puderam
responder-lhe eficazmente. O rei passou a requerer os
vilãos sobretudo para a reparação de muralhas, invocando a
obrigação da anúduva, mesmo em povoações tão longe da
fronteira como Guimarães, e até a obrigação da cavalaria,
para quem tinha de a prestar. Os vilãos, por sua vez,
desabituados da guerra, passaram a utilizar os cavalos como
montadas de almocreves ou para trabalhos agrícolas, o que
levou os almoxarifes régios a cobrar tributos sobre os
respectivos rendimentos, como sabemos por várias questões
judiciais do princípio do século XIV em que se debateu esta
questão.
Os cavaleiros do alcaide foram sempre separados dos do
concelho. Era ele também que recrutava os besteiros do
conto. Passada a época de guerra permanente, tornou-se o
responsável por serviços de carácter mais policial do que
militar.

196

A intervenção do alcaide neste campo só se conhece bem,


no entanto, nos concelhos do litoral e do Sul. Nos outros,
a justiça parece estar inteiramente nas mãos das
respectivas comunidades, por intermédio dos seus
magistrados. Aqui o código penal reveste uma verdadeira
ferocidade: abundam as penas de enforcamento, de
fustigação, do cepo, a quebra dos dentes, o arrancar da
barba, o cortar de uma das mãos. No primeiro caso, por
crimes tão ligeiros como roubar uvas ou cortar pinheiros;
no último por infracção tão inesperada como o escrivão
recusar-se a desempenhar o seu ofício. Para os cavaleiros
vilãos de Ribacoa, a justiça depende sobretudo, parece, do
equilíbrio entre os bandos. Se não funciona o sistema de
compensações, recorre-se ao duelo. Para vários crimes, o
concelho deixa os interessados desencadearem a vingança
privada; para outros, o que conta é a justiça familiar, em
condições que dificilmente se podem imaginar, e não o
tribunal público. Nos concelhos do Centro e do Sul, pelo
contrário, as autoridades judiciais têm uma actuação mais
vasta, a parentela menos influência sobre a sentença, mesmo
no caso de crimes sexuais, e procura-se restringir a
vingança privada.
À medida que o tempo decorre, verifica-se uma
intervenção cada vez maior da justiça régia, sobretudo,
desde Afonso III, para reivindicar a execução dos
condenados à morte, embora a sentença pertença aos juízes
concelhios. Desta época data também a primeira notícia de
os representantes do rei tentarem escolher os alvazis e a
organização do tribunal régio como instância de apelo. Foi
o mesmo rei quem criou os meirinhos-mores, encarregados de
assegurar a ordem onde fosse necessário, e seu filho D.
Dinis quem instituiu os corregedores, incumbidos de vigiar
directamente os tribunais concelhios. Finalmente, este
mesmo rei deu instruções a todos os magistrados régios e
municipais para comunicarem entre si de forma a perseguirem
os criminosos que fugiam para outros concelhos e entregarem
os criminosos aos tribunais competentes. Terminava assim o
princípio da independência de cada concelho em matéria
penal.
Embora a administração da justiça constituísse a
principal função dos órgãos concelhios, estes exerciam
também papéis de outra natureza. De facto, os magistrados
mais importantes eram sempre juízes, quer tivessem este
nome, quer o de «alcaides» ou «alvazis», quer fosse um só,
quer actuassem como um órgão colegial. Tinham como
dependentes funcionários encarregados de execuções
judiciais e fiscais (meirinhos), da administração dos bens
concelhios (mordomos), da superintendência em actividades
económicas e em obras públicas (almotacés) ou da
distribuição e vigilância das terras do concelho
(sesmeiros). Encontram-se outras designações, mas estas são
as mais importantes. Note-se, porém, que o número de juízes
é grande em concelhos mais conservadores, como o de
Alfaiates, e apenas de um ou dois no litoral e no Sul. O
almotacé tem tanto maior importância quanto maior é o
desenvolvimento urbano e económico do respectivo concelho.
Mencionemos, finalmente, o alcaide, que não é, em
princípio, um funcionário do concelho, mas do rei —
justamente aquele que representa a sua autoridade no local
—, assim como o almoxarife, encarregado de cobrar os
direitos régios, e o mordomo do rei, que administra os
domínios da coroa existentes dentro de um ou mais
concelhos.
Embora os concelhos se concebessem inicialmente como
espaços autónomos e independentes das comunidades vizinhas,
a realidade evolui para uma situação muito diferente. Por
um lado, a dependência para com o rei obriga-os a terem
cada vez mais em conta a sua integração num organismo
político mais vasto. Os do interior, como os de Ribacoa,
relacionam-se com ele como um poder externo, mas os do
litoral adquirem rapidamente a noção de que fazem parte do
«reino». A repetida presença dos oficiais régios e as
reuniões de cortes, a que concorrem pelo menos os mais
importantes, tornam esta ligação evidente. Além disso, têm
de aceitar, por mais resistências que a isso ofereçam, a
independência de algumas das povoações do seu termo, que,
por aumentarem em número de habitantes e em poder,
conseguem do rei o reconhecimento da sua autonomia.
Quanto à influência de outros poderes externos, como os
senhoriais, trata-se de uma questão conhecida: os
concelhos, em geral, recusam a constituição de honras nos
seus termos, mas, por abusos de fidalgos ou por cedência
mais ou menos extorquida, os casos de implantação de
senhorios nos seus termos são frequentes. Refiram-se as
violências praticadas em Numão por Abril Pires de Lumiares,
em Seia por Soeiro Amarelo antes de 1258, em Ançã por
Lourenço Antes Redondo em 1317, em Alter do Chão por Martim
Pires de Moles, as pressões de João de Aboim em Abrantes,
Santarém, Évora e Beja, etc, etc. Apesar de tudo, os
fidalgos rarissimamente desempenham magistraturas
concelhias; quando muito, fazem eleger os seus homens de
mão. Os concelhos, porém, conseguem muitas vezes o apoio do

197
rei contra os poderosos, porque ele saía sempre prejudicado
com o exercício de poderes senhoriais em terras da sua
soberania.
Num campo, porém, a luta foi quase sempre perdida pelos
concelhos: o das pousadias, ou aposentadorias. É verdade
que o exercício desta prerrogativa senhorial não pertencia
provavelmente senão aos vassalos do rei, fossem eles
governadores de terras ou fidalgos que para com ele tinham
um compromisso pessoal. Mas é possível que muitos outros o
exercessem abusivamente. Os concelhos protestaram sempre
contra tais abusos, segundo parece sem grande resultados.
Noutra matéria, os concelhos, de vítimas tomaram-se em
agressores: assim aconteceu no princípio do século XIV, a
coberto da luta anti-senhorial conduzida por D. Dinis,
quando começaram a tentar estender a sua jurisdição sobre
concelhos e senhorios vizinhos, como sucedeu com o de
Taveiro, que pertencia a Santa Cruz de Coimbra, e no qual o
concelho da cidade pretendia exercer actos de soberania em
1312. O movimento estava apenas no começo. Desencadeou
conflitos mais acesos durante o reinado de Afonso IV.

Propriedade e produção

A forte solidariedade característica das comunidades do


interior explica algumas restrições foralengas ao uso
indiscriminado da propriedade privada e prescrições
reveladoras dé vesfígios da propriedade comunitária. A
unidade de base é, sem dúvida, a família nuclear,
constituída por pai, mãe e filhos: a ela pertencem casa,
hortas, quintais, vinhas e campos; é ela que organiza a
produção. Mas as suas iniciativas são limitadas, quer por o
grupo de parentes poder contrariar a alienação e
transmissão de bens fundiários a estranhos, quer para
impedir depredações de animais, quer para proteger a
cultura da vinha, quer para garantir a eficácia dos
trabalhos agrícolas, de modo a proporcionar iguais
vantagens para todos, para assegurar a ajuda mútua na
vigilância do gado, para reconhecer a propriedade colectiva
de fornos, moinhos, azenhas ou águas. A divisão da terra é,
pelo contrário, mais individualizada no exido de aldeã,
reservado para culturas hortícolas e animais domésticos, ao
passo que o terroir que o circunda se destina à produção de
cereais e de vinha. Mais além, em zonas provavelmente
temporárias, encontram-se espaços onde se fazem
desbravamentos ou culturas sazonais. Finalmente, abre-se o
espaço livre do baldio, que o concelho não considera
propriedade de ninguém, mas que protege, porque aí todos
podem levar o gado a pastar, caçar, pescar e procurar o
mel, contanto que não destruam os recursos naturais nem
prejudiquem ninguém.
Este esquema, que provavelmente é bastante comum em
concelhos do interior, permite compreender que as
fronteiras entre eles nem sempre fossem bem delimitadas,
que houvesse apropriações individuais nos montes e colinas
longe das aldeias, que se dessem até graves conflitos entre
concelhos, em virtude do uso de pastagens em áreas
disputadas por comunidades vizinhas. Permite também
compreender que quase todos os concelhos dispusessem de
reservas de terras (sesmos), que podiam distribuir a novos
proprietários, sob a vigilância de funcionários especiais
(sesmeiros), embora se conheça mal o funcionamento desta
instituição. De qualquer maneira, exigia-se o consentimento
do concelho para alienar terras a proprietários que não
eram vizinhos, sobretudo se fossem nobres ou eclesiásticos.
Quanto à produção, sabe-se que nos concelhos do
interior havia uma certa tendência para a subordinar a um
sistema de autoconsumo, devido ao maior isolamento das
comunidades, e que nos do litoral e do Sul, embora
existissem também diversas formas de autoconsumo, se
estabeleciam mais facilmente relações económicas com outros
centros, quer para deles receber alguns produtos quer para
aí colocar excedentes. As actividades agrícolas são
normalmente predominantes, mas, nas regiões mais afastadas
das vias de comunicação do litoral, a pecuária, mais
adaptada a uma economia de guerra, representa um sector
muito importante, ao passo que nas mais próximas se vai
desenvolvendo a produção artesanal e sobretudo o comércio
de panos e matérias-primas. A premência dos combates
durante o século XII obriga a atribuir um lugar fundamental
ao artesanato do ferro.
No domínio agrícola, a produção de cereais e de vinho
parece constituir a maior preocupação de qualquer
comunidade, embora não se deva esquecer que cada família
tem normalmente um quintal onde cultiva produtos hortícolas
e cria animais domésticos, de onde tira uma parte
importante da sua subsistência. O trabalho é feito pelos
próprios donos da terra, no caso dos peões, e por

198
dependentes ou escravos mouros, no caso dos cavaleiros. Mas
o artesanato parece estar entregue sobretudo a escravos
mouros, o que explica que nos foros longos de Alfaiates,
por exemplo, eles não sejam muito favorecidos ou até que as
suas condições de trabalho suscitem algumas restrições. Nos
burgos do Norte, todavia, o artesanato parece constituir um
sector económico mais importante, a julgar, pelo menos,
pelo que se passa em Guimarães, onde já em 1167 havia a Rua
Sapateira, em 1194 a Rua Caldeiroa, em 1202 a Rua da Forja
e em 1206 a Rua Ferreira. Manifesta-se aqui uma precoce
divisão do trabalho, por comparação com muitas outras
cidades medievais, onde as designações congéneres só estão
documentadas no século XIV, como na Guarda, Abrantes ou
Évora.
De qualquer maneira, prevalece quase sempre a tendência
para favorecer a importação de produtos e desencorajar a
exportação, para proteger os comerciantes locais e
dificultar os de fora, como se o principal problema fosse o
abastecimento e se considerasse indispensável administrar
com parcimónia os recursos disponíveis. Mas nas cidades
mais activas do Centro encontram-se vestígios de estas
prescrições serem contornadas, por exemplo, por associações
de mercadores de fora com os vizinhos do lugar, de forma a
venderem os seus produtos como se fossem próprios e assim
ludibriarem os almotacés. As trocas quotidianas fazem-se
nas tendas e açougues dos mercados, situados nos adros das
igrejas mais importantes ou nas praças centrais do
aglomerado urbano, mas as transacções das feiras em
períodos certos do ano situam-se em espaços abertos,
normalmente junto às portas das muralhas, como no Campo da
Feira de Guimarães, documentado já em 1170.
Mutações

Até aqui estudámos as principais estruturas sociais e


económicas de Portugal do século XII ao princípio do século
XIV. Passamos agora a analisar algumas alterações
fundamentais das condições em que elas evoluíram, levando,
por um lado, a certas modificações no seu interior e, por
outro, a constituir e consolidar o terreno em que se
edificou a monarquia, isto é, a formação política que
englobou as diversas unidades locais — senhorios e
concelhos — e as inseriu num conjunto orgânico, superando
não só a sua tendência autonómica, mas também as diferenças
regionais que opunham o Norte atlântico ao Sul
mediterrânico, o litoral plano e urbanizado ao interior
montanhoso e escassamente habitado, a zona possuída há
muito, de cultura secularmente cristã, à recém-conquistada,
de cultura secularmente islâmica.

Demografia

Comecemos por lembrar que actualmente se considera como


dado adquirido o fenómeno do crescimento global da
população europeia durante os séculos XI a XIII, o que
explica as cruzadas, a expansão para a Alemanha do Leste,
os desbravamentos rurais, a multiplicação das paróquias, o
crescimento das cidades, a activação de novos inventos
técnicos e o desenvolvimento do comércio. Se esta situação
expansiva se verificou também na Península Ibérica,
teríamos de integrar nela a Reconquista e considerar a esta
luz a absorção das zonas ocupadas por uma unidade política
situada inicialmente só a norte do Mondego.
A teoria não convence toda a gente. Sánchez Albornoz
fala constantemente da «sede de homens» e da incapacidade
dos chefes para povoarem as zonas ocupadas. Baseados ou não
na sua argumentação, pensam o mesmo autores como Ch.-E.
Dufourcq, Angus Mackay, Robert Durand e até Reyna Pastor de
Togneri. A hipótese explicativa seduziu, porém,
historiadores como Garcia de Cortázar e Valdeón Baruque,
entre outros. Incluo-me entre eles, pelas razões que
passarei a expor.

Variantes regionais e ritmos de crescimento

Podemos começar pelas contagens de casais feitas por A. de


J. da Costa a partir das inquirições de 1258: os 21 794
casais de entre Lima e Vizela abrigariam uma população de
cerca de 109 000 habitantes, se a média por casal fosse de
5. Convém, todavia, observar que este multiplicador pode
ser baixo, se considerarmos que o casal não é o mesmo que o
fogo e que as unidades habitacionais nortenhas abrigavam
frequentemente aglomerados familiares alargados e
múltiplos, como acontecia no século XIX e, decerto, com
mais frequência ainda, num passado mais remoto. Além disso,
tem-se verificado por meio de vários indícios seguros que a
contagem de casais das inquirições não é completa. Sendo
assim, podemos arriscar como base de cálculo um mínimo de
120 000 habitantes para esta mesma zona. Consequentemente,
a densidade populacional mínima podia aí atingir uns 40
habitantes/km2, ou seja, bem menos do que na Île-de-France
no fim do século XIII (120-150 habitantes/km2), um pouco
mais do que no conjunto da França (30 habitantes/km2) e
bastante mais do que na Polónia em 1340 (8.8
habitantes/km2) e no conjunto da Península Ibérica no fim
do século xm (11 habitantes/km2). Trata-se, portanto, de
uma cifra bastante verosímil.

200
[Legenda de figura.]
Planta medieval do Porto (com as muralhas femandinas).
Note-se, nesta planta e nas posteriores, a implantação dos
conventos mendicantes fora das muralhas (no Porto fora das
muralhas mais antigas, pois a muralha fernandina foi
construída depois). Algumas capelas e albergarias são
construídas também extramuros, as segundas normalmente
junto às principais vias de acesso. Existe normalmente um
espaço aberto, o rossio, junto a uma das portas principais,
onde se situa o mercado. Em Santarém pode também
verificar-se a implantação da mouraria e da judiaria, ambas
fora de portas. Este mapa e os seguintes são adaptados do
Atlas das cidades medievais portuguesas do Centro de
Estudos Históricos de Lisboa.

Considerando agora os cálculos feitos por Oliveira


Marques com base no numeramento dos tabeliães de c. 1290,
poderíamos, admitindo que houvesse uma certa
proporcionalidade entre eles e a densidade populacional,
tentar uma extrapolação, que daria os seguintes resultados:

Regiões - Tabelião/Km2 - Habitantes/Km2 - Total de


habitantes

Entre Lima e Minho – 100 - 29,4 - 44 100


Entre Douro e Lima – 73 – 40 - 120 000
Diocese do Porto – 136 - 21,5 - 32 250
Diocese de Lamego – 160 - 18,2 - 43 680
Diocese de Viseu – 177 - 16,5 - 64 350
Diocese de Coimbra – 566 – 5 - 44 500
Diocese da Guarda – 576 – 5 - 49 000
Trás-os-Montes – 520 - 5,6 - 61600
Estremadura – 107 - 27,4 - 164 400
Alentejo – 1200 - 2,4 - 72 000
201
[Legenda de figura.]
Planta medieval de Leiria.

Embora estes cálculos se possam considerar de mero


exercício, podem, todavia, aproximar-se da realidade:
teríamos, assim, uma população total de quase 700 000
habitantes e densidades cerca de dez vezes maiores entre
Lima e Minho, Porto e Estremadura do que no Alentejo e mais
de sete vezes maiores nas dioceses de Lamego e Viseu. A
disparidade máxima situa-se, como seria de esperar, entre o
Alentejo e a região de entre Douro e Lima, 17 vezes mais
habitada.

202
[Legenda de figura.]
Planta medieval de Évora.
Planta medieval de Santarém.

Ora, estes dados resultam de aumentos populacionais


sucessivamente acumulados desde o século XI, como se pode
deduzir de estudos comparativos de indicadores demográficos
grosseiros, mas significativos, como as variações do número
médio de filhos por casal fecundo calculado por vários
autores. Apesar de algumas disparidades nos resultados,
todos concluem por um aumento muito considerável desta
cifra entre o fim do século XI e o fim do século XII e um
estacionamento ou uma ligeira diminuição entre este e o fim
do século XIII. Estes cálculos podem-se confirmar, embora
com unsa insistência maior no aumento populacional em Entre
Douro e Minho durante a primeira metade do século XIII,
mediante a comparação do número de casais referido para os
mesmos locais pelas inquirições de 1220 e pelas de 1258.
Duas contagens já feitas por M. H. Coelho mostram que esse
aumento é tanto maior quanto maior é a densidade da
população. De facto, ultrapassa 40% no julgado de Guimarães
e atinge quase 14% na terra da Nóbrega entre aquelas duas
datas. Este crescimento é, de facto, enorme, tendo em conta
a mortalidade infantil, o retardamento da data de
casamento, a frequência do celibato e o elevado índice de
masculinidade, característicos da época e que reduziam
fatalmente a natalidade. Tudo isso deve ter-se registado
também em Portugal, mas houve decerto, tal como noutras
regiões da Península, segundo cálculos de Reyna Pastor, um
aumento de esperança de vida do século XI para o XII, uma

203
[Legenda de figura.]
Planta medieval da Guarda.
204
[Legenda de figura.]
Planta medieval de Guimarães.

205
tendência para a antecipação do casamento tanto feminino
como masculino (o que aumenta fecundidade) e uma diminuição
do índice de masculinidade. As tendências inversas,
igualmente verificadas pela mesma autora para o período que
medeia entre 1200 e 1300, poderiam ser já reacções devidas
aura aumento excessivo da população, tendo em conta os
recursos tecnológicos da época em matéria de produção de
recursos. Estudos deste género não estão feitos em
Portugal, mas não pode deixar de se relacionar com o último
daqueles indicadores o impressionante aumento de fundações
monásticas masculinas entre Lima e Douro durante os séculos
XI e XII (indício do aumento da população, da frequência do
celibato masculino e do elevado índice de masculinidade) e
a súbita multiplicação de mosteiros femininos no Norte de
Portugal entre cerca de 1160 e 1250 (sinal do aumento da
população feminina). Não me parece haver dúvida, portanto,
de que se registou durante os séculos XII e XIII um grande
aumento da população do Norte de Portugal e que ele deve
mesmo ter atingido aí níveis de verdadeira saturação.

Migrações

Para resolver os problemas do aumento demográfico, uma


parte da população jovem emigra.Primeiro, para os espaços
intercalares da zona que habita: daqui nascem as «vilas
novas» e as «vilas meãs» (villae medianae), tão frequentes
no Norte do País; depois, a explosão fundacional de
mosteiros no século XI em entre Lima e Ave, seguida aqui de
uma saturação, como mostram as supressões e anexações de
1100-1200, e do seu alastramento para o norte do Lima, o
leste do Tâmega, o sul do Douro e a Beira Alta, onde se
desdobra também em fundações eremíticas. Ora, este
movimento pára por completo no século XIII. Pode-se
comparar com o aumento do número de paróquias rurais, que
atinge o limite máximo no entre Douro e Lima no fim do
século XI e no Porto por meados do século XII, mantendo-se
depois estacionário até à época moderna, como se a
saturação só pudesse ser resolvida pela emigração dos
excedentes populacionais. Um aumento semelhante foi
verificado por M. H. Coelho para o Baixo Mondego e a
Estremadura durante o século XIII, levando então a um
conhecido surto de desbravamentos de matas, de secagem de
pântanos e de fundação de póvoas marítimas.

[Legenda de figura.]
Planta medieval de Chaves.
206
Registam-se também casos de abandono de algumas terras,
como, por exemplo, em Coja, antes do repovoamento de 1260.
Mas este fenómeno resulta, decerto, da exploração indevida
de solos demasiado inóspitos, que os fracos recursos
tecnológicos da época não podiam tornar rentáveis. Esta a
razão por que tiveram de ser abandonados numa escala maior
ainda durante a crise do século XIV, ao passo que as
cidades continuavam, muitas vezes, a aumentar.
Foram decerto as emigrações que fizeram afluir gente
pobre e marginalizados à Estremadura, de que fala já a Vida
de S. Martinho de Soure no princípio do século XII e de que
dão testemunho as esmolas deixadas por Afonso Henriques aos
pobres de Lisboa. Santarém, Coruche, Abrantes, Tomar,
Torres Novas, Ourém, Leiria e Pombal no seu testamento de
1179. São eles que sustentam os bandos de vilãos que tentam
pilhar Alcácer do Sal, mesmo sem possuírem armamento de
ferro, mas conseguem conquistar Évora alguns anos depois.
Eles que constituem os latrones companheiros de Geraldo,
Sem Pavor (como lhes chamam os Anais de Afonso Henriques),
tal como os numerosos «malcalçados» que se juntam ao
exército de Cid, o Campeador, para escaparem à fome e à
«coita», como diz o seu poema.

Expansão e crises

Pelos fins do século XII, a pressão demográfica


diminui, devido às investidas almóadas de 1184-1191, que
fazem refluir a população da Estremadura mais para norte, e
sobretudo à sucessão de intempéries e de maus anos
agrícolas de 1191-1218, que provocaram vendas de terras em
Gaia, Viseu e Entre-os-Rios, fomes em Braga em 1206, uma
revolta burguesa em Lisboa em 1207, outra no Porto em
1208-1210, pilhagens nos coutos de Alcobaça pouco antes de
1210, conflitos em Leiria antes de 1211 e em Tarouca pela
mesma época.
Depois as calamidades cessam e a população volta a
aumentar, como mostram a multiplicação de paróquias urbanas
em Lisboa e Santarém, as fundações de igrejas, colegiadas e
conventos mendicantes nas cidades, os arroteamentos e
póvoas na Estremadura e outras regiões, a proliferação de
famílias da pequena nobreza nas zonas senhoriais, a
agitação social e o recrudescimento do banditismo que
precedeu a guerra civil de 1245, as expedições que as
ordens militares triunfantes conduziram no Alentejo até
1249. Estes indícios de desequilíbrio social e económico,
provávelmente em virtude de um crescimento mal controlado,
cessam por volta de 1260. De facto, registam-se indícios de
uma nova crise agrícola por volta de 1253 e de outras
aparentemente esporádicas, como uma peste na Beira em 1273
e a falta de trigo na Estremadura em 1295, mas estas
perturbações não parecem prejudicar o desenvolvimento
económico e a aparente harmonia social que caracteriza a
segunda metade de 1200.
Nesta época, de facto, parece atingir-se o equilíbrio
entre os níveis da população e os recursos alimentares, a
julgar por uma série de indícios indirectos, como a criação
de feiras, a construção de pontes e igrejas, o surto do
comércio marítimo internacional, a diminuição da pirataria
muçulmana no Atlântico, a prosperidade das cidades, a
incontestada autoridade política de Afonso III e D. Dinis.
Era, decerto, o resultado do aumento da produtividade
devido à secagem de pântanos e arroteamento de matas e
montes, a intensificação da pesca, a difusão de mais
eficazes processos de assolamento, o desenvolvimento da
criação de gado, o uso de instrumentos de ferro, sobretudo
do arado, a utilização de plantas azotadas e a
intensificação do cultivo de leguminosas, a melhoria dos
transportes e do comércio de géneros para abastecimento das
cidades.

[Legenda de figura.]
Aumento da população urbana nos séculos XII e XIII. Não
temos, evidentemente, dados estatísticos para medir o
aumento da população urbana na Idade Média. Mas a data da
fundação de novas igrejas pode sugerir os ritmos da sua
evolução. Representou-se neste gráfico o aumento de igrejas
de Lisboa e de Santarém, as duas cidades mais populosas do
reino, segundo as datas aproximadas do seu aparecimento na
documentação disponível, entre 1147 e 1260.

207
Para o fim do século XIII, porém, começam a registar-se
pequenos indícios de concentração excessiva de população em
certas zonas, sobretudo na periferia de cidades como o
Porto e Coimbra. A guerra civil de 1319-1324 e as fomes que
se abatem sobre o País desde 1331 inauguram o período de
recessão, que depois se agravará dramaticamente emi348. Os
estudos de M. H. Coelho sobre o Baixo Mondego parecem
confirmar a hipótese de a terrível devastação provocada
pela peste negra ser devida ao debilitamento da população,
enfraquecida por carências alimentares. Não ignoro que esta
interpretação não convence todos os especialistas. Pela
minha parte, porém, considero-a a mais lógica e aquela que
maior número de fenómenos explica. De qualquer maneira, o
aumento populacional afecta sobretudo as zonas já
sobrepovoadas e aquelas que, não o sendo até meados do
século XII, sofreram depois um enorme afluxo migratório,
como aconteceu na Estremadura e no Ribatejo.
As assimetrias regionais alteraram-se pouco com as
transferências demográficas, como sugerem os cálculos
feitos a partir do numeramento dos tabeliães do fim do
século XIII. Mantiveram-se, afinal, até hoje. A
incapacidade tecnológica não permitia a alteração profunda
da fisionomia populacional nas montanhas nem no Alentejo.
Os que aí tentavam o aproveitamento agrícola tinham de
acabar por fugir, acossados pela fome e pela dureza do
clima. Mas nem por isso se pode ignorar o fenómeno
fundamental das constantes correntes migratórias de sentido
norte-sul e interior-litoral. Foram elas que sustentaram a
senhorialização do vale do Douro, de Trás-os-Montes, de
parte da Beira, da Estremadura e, finalmente, do Alentejo;
que provocaram o crescimento das cidades e a fixação da
corte régia e de muitos nobres em Coimbra, Lisboa,
Santarém, Évora e várias povoações da Estremadura, elas que
fizeram da Estremadura o grande cadinho da assimilação
cultural entre gente vinda de todas as partes do País,
dominada por uma classe nobre oriunda do Norte, mas que
teve de se entender com uma burguesia citadina de origens
muito heterogéneas.
Em última análise, foi a expansão demográfica de Entre
Douro e Minho que garantiu o sucesso político do Condado
Portucalense, fazendo-lhe suceder o reino de Portugal,
quando os seus chefes se transferiram para as cidades da
Estremadura. Aqui governaram de perto homens e mulheres
vindos sobretudo do Norte e que, passando à antiga
Lusitânia, continuaram a chamar-se «portugueses», isto é,
gente de Portucale.

Tecnologia e economia

A definição global das estruturas económicas vigentes


em Portugal no período de 1096-1325 foi já feita nas duas
partes anteriores desta obra. Trata-se agora de ver de
perto a sucessão das conjunturas, que revelam persistentes
tendências para a alteração do sistema senhorial, sem,
todavia, o abalarem, devido à sua resistência e capacidade
de adaptação. Em termos gerais, pode-se dizer que o sistema
senhorial tendia para o autoconsumo, mas que a conjugação
do crescimento urbano, do desenvolvimento da circulação
monetária e da centralização monárquica o obrigou a
adaptar-se a um sistema económico de produção e de trocas.
O principal beneficiário desta transformação foi a própria
monarquia. Vejamos quais as suas fases principais.

O alargamento do espaço económico (1095-1210)

A criação do Condado Portucalense deve-se à premência


da ameaça militar trazida pela ofensiva almorávida, depois
de um largo período de euforia conquistadora. A afluência
de francos e as divisões dos cristãos no plano religioso e
no seio da nobreza senhorial revelam-se sob a forma de
violentas contradições internas por volta de 1108-1128. Mas
a intensificação da guerra na fronteira do Mondego permite
a alguns elementos da aristocracia inferior enriquecerem
nos combates e investirem na terra, adquirindo domínios
importantes nas regiões da Maia, de Santa Maria, do Vouga,
de Paiva e de Viseu. Os pequenos proprietários que lhes
venderam as suas terras reduzem-se e elas passam a ser
cultivadas pelo trabalho dependente.
A norte do Douro, o período de 1095-1130 caracteriza-se
pela fase final da constituição de grandes domínios dos
principais mosteiros beneditinos e pela acumulação de
senhorios por parte das dioceses, sobretudo de Braga e de

208
Coimbra, sem que os magnates e nobres de categoria
secundária, que para eles transferem muitas das suas
terras, fiquem prejudicados com isso, porque a distribuição
daí resultante permite uma maior rentabilização de bens
fundiários, que até então eram demasiado vastos para
trazerem vantagens efectivas aos seus proprietários
anteriores.

[Legenda de figura.]
A produção cerealífera em Entre Douro e Tejo no século
XIII, segundo R. Durand.

Em 1095-1130 verificam-se também os primeiros indícios


de uma atenção política para com os burgos nascentes de
Guimarães, Constantim de Panoias e Ponte de Lima, como
mostram os seus forais. O seu desenvolvimento devia-se,
decerto, à influência da prosperidade económica de Santiago
de Compostela, apesar de este centro de concentração
monetária se dedicar mais a entesourar ou canalizar para o
exterior (Roma e Cluny) os metais preciosos que então
acumulou. A cedência dos senhorios de Porto e Braga em
favor dos respectivos bispos mostra, pelo contrário, que os
condes portucalenses avaliam mal a futura importância
política e económica das cidades. Quanto a Coimbra,

209
verifica-se que começava desde logo a exercer uma função
mais duradoira de dinamização económica como entreposto
avançado da economia muçulmana. Os seus principais
beneficiários foram, como vimos, os cavaleiros que viviam
na retaguarda das zonas de combate e que investiam na
terra.
A fixação de Afonso Henriques em Coimbra em 1131 abre
uma nova fase, dominada pela expansão territorial, que se
prolonga até pouco depois de 1165. O esforço conquistador
que leva à conquista de Santarém, Lisboa, Alcácer e Évora
traz os seguintes resultados principais: a) no Norte,
activa a senhorialização em benefício da grande
aristocracia tradicional (Ribadouro e Sousas, entre
outros), dos cavaleiros colaboradores do rei em domínios
menores e dos mosteiros de categoria secundária; b) na
Beira, permite a consolidação dos concelhos e o
fortalecimento da cavalaria vilã, que investe na terra os
benefícios da guerra; c) em Coimbra, activa o artesanato
produtor de armas e coutos; d) na Estremadura e Alto
Alentejo, por intermédio da integração das novas cidades,
define um novo espaço económico, dotado já de um suficiente
número de centros de produção e consumo independentes da
dominante senhorial e diversificados entre si; é) pela
mesma razão, mas em virtude da disponibilidade monetária,
activa os circuitos de trocas e permite a distribuição de
moeda em torno das vias de comunicação.
Estes fenómenos, no entanto, representam virtualidades
futuras, sem, por ora, alterarem as estruturas dominantes.
Nos senhorios e concelhos continua a predominar o
autoconsumo, mesmo quando dependem ou se situam num centro
urbano, como acontece com Santa Cruz de Coimbra, que
acumula numerosos domínios no litoral e na Beira e os
organiza de forma tradicional; assim acontece também com as
sedes episcopais de Braga e do Porto, que já tinham
adquirido senhorios urbanos. Os fenómenos que escapam a
esta lógica, como as fundações eremíticas, a intensificação
das viagens e peregrinações e a pauperização nas zonas de
fronteira, manifestam a incapacidade do sistema para
integrar excedentes humanos numa situação de crescimento
demográfico e a sua dificuldade de adaptação a novas
condições geográficas e humanas.
Os primeiros indícios dessa adaptação verificam-se com
a transformação de alguns senhorios em empresas agrícolas
durante o período em que se dá a diminuição do esforço de
guerra, ou seja, em 1165-1190. Devem-se a cistercienses e
ordens militares, embora o papel daqueles seja bem mais
conhecido do que o destas. Aqueles, adoptando a
administração directa, criando, para a dominarem
eficazmente, o sistema de granjas, investindo na criação de
gado e no fabrico de melhores instrumentos de produção,
como utensílios de ferro, moinhos, canais, fornos e novas
técnicas agrícolas, depressa obtêm excedentes de produção
que colocam no mercado e adquirem reservas monetárias com
as quais pagam novas e imponentes igrejas, como as de
Alcobaça e Tarouca, e dispõem de crédito suficiente para
financiar alguns nobres e adquirir novas terras. De facto,
Tarouca compra muitas entre 1170 e 1182; em 1193 já tem
dezassete granjas, das quais uma junto ao Porto e duas
perto de Lisboa. Alcobaça também criou algumas granjas,
embora dentro do seu imenso couto; investiu em portos e
barcos; por volta de 1180 tinha uma barca para vender sal
em Lisboa.
A organização produtiva das ordens militares não foi,
decerto, tão espectacular, mas também devia reger-se por
princípios de rentabilidade, para sustentar o financiamento
das expedições militares, a edificação e o equipamento das
suas fortalezas (como mostram as várias construções
empreendidas por Gualdim Pais), a compra de armas e de
cavalos, o sustento dos numerosos jovens da nobreza que a
elas se acolhiam. Provavelmente começavam já a investir na
pecuária e adquiriram inúmeras propriedades, desde
Trás-os-Montes até ao Alto Alentejo. Nestas, vieram em
breve a revelar uma irresistível voracidade na usurpação de
direitos senhoriais (documentada nas inquirições de 1220).
Infelizmente, pouco se sabe da maneira como eram
administradas estas imensas propriedades, mas pode-se
suspeitar que também adoptavam processos tecnológicos
«modernos», pelo menos os Templários, que mandaram
construir canais junto ao rio Zêzere.
Para além destas inovações económicas, também se pode
fazer notar que o período de 1165-1190 se caracteriza por
um pujante surto de construções românicas nas cidades e nos
campos e pela extensão da disponibilidade monetária a zonas
mais afastadas das vias de comunicação.
A crise agrícola e demográfica de 1190-1210 causa
algumas perturbações, já descritas anteriormente. As suas
incidências económicas revelam-se sobretudo na interrupção
das construções românicas e na intensificação da compra de
terras a pequenos proprietários em algumas regiões. Mas a

210
crise não impede o aparecimento de factos anunciadores de
transformações importantes, como a intervenção de um nobre,
Lourenço Fernandes da Cunha, na exploração agrícola
directa, as primeiras notícias de comerciantes portugueses
que compram panos em Dublin, Inglaterra e Bruges e do
comércio de lãs importadas de Castela por Pinhel, Penamacor
e Melgaço, e até a intervenção de armadores italianos na
organização da conquista de Silves, em 1189, para
neutralizar a pirataria sarracena.

A implantação da economia de mercado (1210-1325)

Em 1210 inicia-se um novo período económico, cuja


primeira fase vai até 1250. Afonso II dá o exemplo das
inovações, mandando fazer o cadastro dos rendimentos
dominiais da coroa, organizando a chancelaria, encorajando
o comércio em Lisboa, Coimbra e Évora, dependentes do seu,
senhorio. Mas a incapacidade revelada por Sancho II
interrompe a obra assim empreendida e dá largas à
senhorialização desenfreada no Norte do País. Em segundo
lugar, as ordens militares aumentam os seus domínios por
conquista, revelando uma enorme potencialidade económica,
sobretudo a de Sant’Iago. Depois verifica-se o aumento de
certos domínios nobres, como os de Rodrigo Forjaz de Leão,
Gil Martins de Riba de Vizela e Gil Vasques de Soverosa, em
Entre Douro e Minho, ou o de Pêro Anes da Nóvoa, no Centro
do País. Em seguida agrava-se o preço da terra junto às
cidades, intensifica-se o cultivo e o comércio do vinho,
começam a aumentar os prazos em vidas e a diminuir os
perpétuos (sinal de maior intervenção do senhorio na
administração indirecta). Mas os fidalgos não se adaptam
facilmente a uma economia «moderna»: sirvam de exemplo dois
nobres da corte a quem Afonso II deu dois moinhos em Leiria
e que logo os transferem ao Mosteiro de Alcobaça, embora um
deles a título oneroso. Outros têm já a sua contabilidade,
à semelhança do referido Lourenço Soares da Cunha. Só assim
se compreende que as infantas irmãs de Afonso II tivessem
podido calcular com tanta precisão os seus prejuízos de
guerra, para deles se queixarem ao papa em 1213. Imitam,
assim, os processos administrativos cistercienses, nesta
época em franca expansão, como se verifica pelo facto de
Alcobaça obter em 1231 isenção de portagem no reino de Leão
e Castela, o que quer dizer que começava já a dedicar-se ao
comércio externo. Neste contexto, o facto de ter então
abandonado a administração directa de algumas terras, para
as ceder em prazo, pode significar apenas uma operação de
melhoria administrativa. O exemplo cisterciense era também
seguido por outros centros monásticos, como Santa Cruz de
Coimbra, e até por colegiadas, como as de S. Jorge e S.
Bartolomeu de Coimbra, que então exploram a produção do
sal.
A activação da economia monetária e do comércio externo
revela-se pelo facto de aparecerem particulares que dispõem
de moeda estrangeira, como soldos leoneses, torneses e
libras, pelo tabelamento de 38 tipos diferentes de tecidos
em 1253, dos quais 34 fabricados em Inglaterra, Flandres,
Bretanha e Normandia, além de três ou quatro em Castela.
Quer isto dizer que o comércio de têxteis do Norte da
Europa devia ter começado muito antes. De facto, nos Patent
rolls de Henrique III de Inglaterra estão registados mais
de 100 salvos-condutos a mercadores portugueses só para o
ano de 1226 e há notícias de contactos comerciais com a
França em 1240.
O fim da guerra civil, em 1248, encerra a primeira fase
da história económica ducentista. A crise agrícola de
1253-1260, que marca o início da segunda, em vez de afectar
o desenvolvimento económico, parece, pelo contrário,
obrigar a um esforço de racionalização administrativa, pelo
menos por parte do rei. É ele, de facto, um dos
protagonistas de maior relevo do período de 1250-1280, em
que se verifica a expansão generalizada da economia
portuguesa. Com efeito, as incidências económicas da sua
política são enormes. Serve-se da desvalorização da moeda
ou da ameaça de a fazer como pretexto para lançar impostos
extraordinários; recomeça as inquirições, tornando-as um
verdadeiro cadastro dos domínios régios (1258); racionaliza
a cobrança de rendas, convertendo algumas em dinheiro;
multiplica as cartas de aforamento e os forais rurais, para
melhorar a administração dos reguengos; arrenda a percepção
de direitos senhoriais e dominiais a cobradores
experimentados; exige a cobrança de direitos de montado;
adquire e explora fornos, moinhos, azenhas, pisões,
lagares, açougues, casas e tendas nas cidades e direitos de
pesca nos portos marítimos; manda construir e explora um
«canal do rei» em Abrantes; disciplina as transacções
internacionais nos portos secos e marítimos por meio da
cobrança da dízima sobre importações e exportações;
organiza a contabilidade das finanças régias; cria um porto
em Vila Nova de Gaia para captar uma parte dos cobiçados

211
rendimentos arrecadados pelo bispo do Porto sobre as
mercadorias que chegam a esta cidade.
Por outro lado, Afonso III não se limita a aumentar os
rendimentos da coroa; mesmo que noutras medidas suas o
objectivo seja esse, elas constituem em si mesmas estímulos
directos à activação da economia: é o caso das cartas de
protecção a feiras (sobretudo a partir de 1270), das leis
que visam o equilíbrio das importações com as exportações,
da proibição da exportação de cereais e metais preciosos,
da protecção aos pescadores das proximidades de Lisboa,
para facilitar o abastecimento de peixe à cidade. Mas
sobretudo a adopção da libra como padrão monetário em vez
do maravedi, o que, por um lado, permitia a integração da
economia portuguesa no sistema europeu, e, por outro,
facilitava a articulação das pequenas transacções, feitas
em soldos e dinheiros, com as transacções de grande valor.
Este ambiente estimula, é claro, os grandes
empreendimentos cistercienses e das ordens militares.
Aqueles desenvolvem as actividades de mercado, adquirindo
casas em Elvas e Beja, aumentando a exploração do ferro,
multiplicando as granjas e cedendo terras a prazo. Estes
activam a criação de gado, a pesca e o comércio; os
Hospitalários dispõem de enormes somas de dinheiro para
fazerem empréstimos; o poder financeiro dos Templários
deduz-se do cuidado com que Afonso III se lhes dirige
quando trata da quebra da moeda, em 1255. Mas estes
exemplos são agora imitados mais frequentemente por grandes
senhores eclesiásticos, como se vê dos aperfeiçoamentos
administrativos dos regrantes de Coimbra, das aquisições de
S. Vicente de Lisboa em Sesimbra e no Alentejo, das
negociações do rei com os bispos de Braga, Porto e Évora
para poder tomar as suas decisões em matéria de política
monetária em 1250, 1255 e 1261. São imitados também por
alguns nobres, como o poderoso e «moderno» D. João de
Aboim, com as suas tendas e casas em áreas urbanas; pelo
chanceler Estêvão Anes, que possui minas de ferro no
Alentejo; por Pedro Ponces de Baião, que cobra portagens na
Beira, controlando, assim, os rendimentos da transumância
fronteiriça; pela princesa Santa Mafalda, que possui
grandes rebanhos nas serras do Vouga e da Estrela e que se
dedica a fundar várias albergarias, por Soeiro Pires de
Azevedo, a quem o Mosteiro de Alcobaça cede por alta renda
em dinheiro a exploração de um domínio no Bombarral, etc.
Tais são os precursores longínquos dos típicos «fidalgos
mercadores» portugueses do século XVI.
Estes protagonistas da expansão económica não são os
seus únicos beneficiários: o desenvolvimento da circulação
«capilar» manifesta-se no novo surto de criação de
albergarias (já falámos das fundadas por Santa Mafalda), na
construção de pontes, na legislação régia contra a
destruição dos caminhos públicos e a intervenção do
meirinho-mor para a reprimir, nas primeiras referências a
almocreves, nos indícios de uma indústria de tecelagem
nacional, testemunhada pelas primeiras referências a pisões
e a panos portugueses, na multiplicação de referências a
moinhos, azenhas, instrumentos de ferro, forjas, canais,
etc.
No plano do comércio externo, por fim, verifica-se não
só a intensificação das relações económicas no Atlântico
Norte, concretamente em direcção a Bordéus e La Rochelle,
mas também o aparecimento das primeiras referências ao
comércio italiano, agora, significativamente, com a notícia
de um genovês, D. Vivaldo, fixado em Lisboa desde 1270, e
com a provável presença de comerciantes catalães também em
Lisboa. Estes factos mostram que parece caber a italianos e
catalães a iniciativa de procurar os portos portugueses
como entreposto para expandir o comércio mediterrânico em
direcção ao Atlântico.
D. Dinis herda, pois, uma administração régia com
rendimentos assegurados, mas que ele aperta mais ainda,
perseguindo implacavelmente todos aqueles que pretendem
sonegar os direitos régios, mesmo os mais poderosos,
aumentando os foros, multiplicando enormemente os
emprazamentos e aforamentos colectivos, procurando novas
fontes fiscais junto de almocreves e marinheiros,
perseguindo judicialmente os infractores, fossem eles
magnates ou concelhos, registando por escrito as rendas não
só dos reguengos, mas também dos mouros forros. Tudo isto
lhe permite acumular um grande tesouro, melhorar a moeda,
fazer avultados empréstimos aos reis de Castela e Aragão.
Por outro lado, fomenta ainda mais do que seu pai as
actividades económicas de que só beneficia indirectamente:
confirma a bolsa dos mercadores que trabalham na Flandres,
Inglaterra, Normandia, Bretanha e La Rochelle (1293),
protege os comerciantes portugueses na Inglaterra ou em
212
Aragão, mesmo acusados de pirataria, multiplica os
privilégios a feiras, sobretudo em 1284-1295 e 1301-1308,
fomenta a exploração mineira, empreende a secagem de
pântanos, o desbravamento de matas e a fundação de póvoas
junto ao mar e na fronteira galega, aplica à criação de uma
grande frota marítima o dízimo dos rendimentos de todas as
igrejas do reino que o papa lhe concedeu em 1320 para
combater os muçulmanos, confia o comando dessa frota ao
genovês Manuel Pessanha (1317), com o significativo
privilégio de a usar para o comércio com a Flandres, Génova
ou outro lugar (o que significa, decerto, que lhe entrega a
comercialização dos géneros produzidos no domínio régio).
Compreende-se assim que agora se juntem outros
comerciantes estrangeiros aos genoveses: um grupo de
galegos e aragoneses estabelece um acordo com portugueses,
assinado na Corunha (1297), e encontram-se notícias de
comerciantes de Baiona, aragoneses e catalães em Lisboa,
além de uma companhia de Pistóia, que faz um empréstimo a
mercadores de Lisboa em 1281-1285. A vinda de Pessanha para
Lisboa, com vários compatriotas, mostra também que a
colónia de genoveses aumenta significativamente. Quanto ao
comércio com o Atlântico Norte, testemunhado.pela já citada
bolsa de 1293 e pelo acordo da Corunha de 1297, é expresso
ainda pela concessão colectiva de Filipe, o Belo, aos
mercadores portugueses de Harfleur (1310), pela referência
a um cemitério português em Ruão, pelos privilégios de
Eduardo I contidos na Carta mercatoria de 1303 e,
finalmente, por um documento flamengo do fim do século XIII
que menciona os géneros trazidos de Portugal, como se então
se tivesse já estabelecido um circuito regular de
transacções.
O comércio externo português manifesta, portanto, uma
grande vitalidade. No plano interno, porém, assiste-se, por
um lado, a uma provável estagnação das empresas
cistercienses, de ordens militares e de nobres e, por
outro, à concorrência de agentes económicos de outros
escalões sociais. Com efeito, em Alcobaça e Tarouca
diminuem as aquisições dominiais e abandona-se cada vez
mais a exploração directa; a Ordem de Sant’Iago é acusada
em 1320 de descurar a administração dos seus domínios; o
rei intervém frequentemente em várias ordens militares;
depois da morte de D. João de Aboim não há notícia de
qualquer empreendimento económico de seu filho Pêro Anes de
Portel; as minas e outros domínios do chanceler Estêvão
Anes são por ele legados aos Trinitários; não se conhecem
actividades económicas de outros senhores semelhantes às
mencionadas para o reinado de Afonso III.
Pelo contrário, a intervenção de agentes económicos não
nobres nem eclesiásticos revela-se nos conflitos judiciais
do rei com vários concelhos, nas referências a almocreves e
aos seus rendimentos (em Alter do Chão, em 1305, e em
Torres Vedras, em 1309), a comerciantes de Oriola que vão
até à Flandres, e de Santarém que trazem madeira da Galiza,
ao rendimento de plantas hortícolas, de que os párocos
exigem o dízimo e os senhores direitos senhoriais, a
concelhos que intervêm na criação de gado e no controlo da
transumância, como o de Marvão, em 1313, às esmolas
captadas pelos mendicantes, suficientemente avultadas para
começarem a construir sumptuosas igrejas góticas, aos
mercadores e armadores portugueses, já mencionados
anteriormente, aos empresários que exploram minas de ferro,
de ouro e de outros metais. A circulação económica começa,
portanto, a beneficiar muita gente.
Mas a crise está de novo à porta. O seu primeiro sinal
é a guerra civil de 1319-1324. A nobreza não está
satisfeita com a perda de rendimentos e com o
enriquecimento de muitos vilãos, aos quais tem, muitas
vezes, de pedir empréstimos ou de dar as filhas em
casamento. As rivalidades que então começam a manifestar-se
estão apenas no começo. Irão alimentar, uma luta surda e
prolongada e obrigam a uma penosa recomposição social, que
haveria de se arrastar durante todo o século XIV.

Mentalidade e cultura

Partindo do princípio de que as estruturas mentais e


culturais foram já expostas resumidamente a respeito do
país senhorial e do país concelhio, orientamos agora a
nossa atenção para as principais mutações que se dão no
mesmo campo e que, sem o alterar radicalmente, nem por isso
deixam de trazer consequências importantes tanto aí como
noutros níveis históricos, nomeadamente o político. Para

213
tornar a exposição mais clara, arrumamos os testemunhos
escolhidos como mais significativos em quatro pontos
principais: as concepções religiosas, os costumes, a vida
pública e a cultura.

Concepções religiosas

No âmbito da religião, convém lembrar o que já dissemos


acerca da luta das autoridades espirituais contra a
superstição e a magia, o que, como consequência indirecta,
isola a religião popular, que tende a refugiar-se em áreas
privadas ou clandestinas, transformada em feitiçaria ou
bruxaria. A vigilância oficial só é menos rigorosa em
certas manifestações religiosas públicas menos conotadas
com a magia, embora de evidentes raízes pagãs, como as
romarias, o culto de alguns santos e algumas procissões.
Referi já também o apoio dado pela nobreza senhorial às
ordens monásticas e aos cabidos das catedrais e, por meio
delas, à celebração litúrgica solene. O interesse dos
Cónegos Regrantes por uma certa acção pastoral, que deve
ser posto em relação com a sua origem citadina, atinge
sobretudo as camadas inferiores da nobreza e anuncia já, em
alguns pontos, a pastoral típica dos mendicantes, que,
todavia, irá adoptar formas mais inovadoras e mais
francamente adaptadas à vida urbana.
O que de mais típico se pode apontar na alteração da
mentalidade religiosa é a proliferação das «devoções» desde
a segunda metade do século XII, mas sobretudo durante o
século XIII. Embora a especial confiança que revelam na
eficácia de certos objectos, tempos e acções materiais não
seja absolutamente isenta de uma mentalidade mágica,
representam, de facto, uma efectiva novidade em relação com
práticas anteriores, porque implicam o investimento pessoal
ou mesmo sentimental do sujeito que as pratica,
contribuindo assim para reforçar o individualismo
religioso. Compreende-se, pois que, embora envolvam todas
as camadas sociais, sejam mais precoces em meios urbanos do
que em meios rurais.
A sua variedade é imensa: tanto inspiram a devoção ao
nome e à invocação da Virgem Maria, como à Cruz, ao
Espírito Santo ou à Eucaristia; renovam as peregrinações,
colorindo-as com narrativas maravilhosas, que justificam a
visita a igrejas e lugares santos em Roma, Jerusalém e
outros santuários; inspiram, entre muitas outras, a devoção
a santos protectores de determinadas categorias
profissionais, como S. Vicente, invocado por pescadores e
marinheiros, atribuem méritos especiais à prática das obras
de misericórdia, sobretudo a esmola, a construção de pontes
e a redenção de cativos. Algumas destas devoções são
especialmente reveladoras da nova mentalidade. É o que
acontece, por exemplo, com a peregrinação: já não se trata
apenas de empreender a viagem como um acto de penitência
pessoal, mas de pagar a ida de alguém, partilhando, assim,
os seus méritos. Ou, então, com a devoção ao Espírito
Santo, que inspira a criação de confrarias e um culto
público especial, relacionado, segundo parece, com as
doutrinas de Joaquim de Flora, e que suscitou a adaptação
de práticas de origem pagã, assegurando-lhe um enorme
sucesso popular e uma permanência até aos dias de hoje. Ou
ainda com a devoção à Eucaristia, que inspirou a festa e a
procissão do Corpus Christi, não menos popular, e que já em
1319 atraía uma avultada esmola dos homens-bons de
Guimarães à colegiada que a organizava. Ou ainda o sucesso
de uma ordem religiosa inteiramente dedicada à redenção dos
cativos, como a da Santíssima Trindade. Ou ainda a
acumulação de relíquias por igrejas e particulares,
especialmente da mais preciosa de todas, a Cruz do
Redentor, venerada em Santa Cruz do Marmelar, emprestada
pelos Hospitalários a D. Dinis, que ele lhes manda
restituir no seu testamento e que haveria de desempenhar um
papel tão importante na Batalha do Salado. Ou, finalmente,
para não multiplicar excessivamente os exemplos, com a
devoção a Maria, que inspira as numerosas colecções de
milagres de Nossa Senhora e a mais célebre de todas, a das
Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o Sábio. Tudo isto
pode estar ainda impregnado de mentalidade mágica, na
medida em que supõe uma crença na eficácia automática e
«sacral» das práticas, mas a referência aos santos e às
Pessoas da Santíssima Trindade altera-lhes lentamente o
sentido, para se poderem tornar conciliáveis com a infinita
liberdade divina.

Moral e costumes

Outro aspecto da lenta alteração mental trazida pelas


primeiras manifestações de individualismo no plano moral
está relacionada com a consciência progressiva da
responsabilidade individual. Uma das práticas concretas

214
que melhor exprimem esta mudança é a difusão da confissão
auricular ao menos uma vez por ano e a obrigação de receber
o sacramento da Eucaristia, prescrita pelo Concílio de
Latrão de 1215.0 papel desde então atribuído aos
confessores, como responsáveis pela aplicação de uma
penitência individual aos leigos e como incumbidos de
aferir a sua culpa pessoal, objectiva e subjectiva,
constituiu um dos mais decisivos factores de desagregação
das forças sociais, que aglutinavam firmemente os grupos de
parentes e as comunidades tradicionais e que impediam a
eclosão da consciência individual. Apareceram então várias
obras destinadas a instruir os confessores na sua missão,
como o Liber poenitentiarius do canonista português João de
Deus, escrito em 1247.
A pregação popular, que os Franciscanos e Dominicanos
praticaram com tanto empenho, também contribuiu para
inculcar o sentido da responsabilidade individual.
Conhecem-se os nome de muitos pregadores portugueses, mas
um dos mais importantes é, sem dúvida, frei Paio de
Coimbra, cujos sermões, copiados no século XIII, não foram
ainda editados em conjunto, apesar de formarem uma das mais
precoces colecções atribuídas a um dominicano. Lembre-se
também, a este respeito, a figura de Santo António de
Lisboa, um dos primeiros pregadores franciscanos, o qual,
embora tenha actuado na Itália e na França meridional,
recebeu a sua formação intelectual em Santa Cruz de
Coimbra.
Outro incentivo à prática individual das virtudes
morais e, consequentemente, à responsabilização pessoal
advém das confrarias medievais, de que já falámos, junto
das quais os mendicantes exerciam um papel particularmente
activo.
Com estes incentivos, não admira que as preocupações
pela reparação de faltas pessoais se manifestem de várias
maneiras, particularmente nos testamentos em que os
moribundos deixam bens para esse fim e encarregam
testamenteiros de executarem as suas últimas vontades: aqui
se encontra, por vezes, a confissão de crimes, rapinas ou
violências injustas, de abusos de poder na cobrança de
rendas, do pecado de usura, etc, mesmo em testamentos de
reis, como acontece, concretamente, no de D. Dinis.
A gravidade atribuída às diversas faltas ou crimes não
era nessa época igual à de hoje. A maior diferença situa-se
provavelmente no âmbito da sexualidade. Com efeito, não
pode deixar de se notar que muitos testamentos e outros
actos jurídicos referem filhos ilegítimos e concubinatos,
sem que se note o mínimo vestígio de arrependimento por
parte dos responsáveis. Os livros de linhagens pressupõem
que em alguns meios nobres a barregania de nobres e
clérigos era aceite com naturalidade. As cantigas de
escárnio não revelam inibições de qualquer espécie nem
aludem a censuras clericais. Todavia, uma lei de D. Dinis
considera imoral cobrar impostos sobre a prostituição e
manda castigar severamente os abusos de oficiais de justiça
sobre mulheres presas. E se, provavelmente, não se reprime
a prostituição, pode também referir-se que Santa Isabel
fundou casas para a regeneração de mulheres que a
praticavam. Afonso III proíbe os nobres que vêm à corte com
os seus séquitos de trazerem neles «putas» e soldadeiras,
mas esta lei pressupõe também que as cortes senhoriais eram
bastante permissivas neste particular, como se deduz, de
resto, de muitas cantigas de trovadores.
Um dos problemas que mais preocupam a consciência moral
dos homens do século XIII é o do dinheiro. Até ao fim do
século XII, era usado quase só pelos mercadores, que tinham
hábitos diferentes dos outros homens. Depois, porém,
tornou-se rapidamente mais acessível a todos e
transformou-se em indispensável instrumento de troca. A
facilidade com que se acumulava, multiplicava ou perdia, as
implacáveis exigências dos judeus e outros usurários, que o
emprestavam a juros a quem lhe conhecia mal o valor, o
facto de se encontrar nas mãos de quem não dispunha de
poder político nem sagrado, a própria perturbação que o seu
uso causava numa sociedade que dominava mal os seus
mecanismos fizeram dele um grande problema moral. Muitos
pregadores e moralistas consideravam os mercadores como
irremediavelmente propensos ao pecado e destituídos de
escrúpulos e, portanto, como uma categoria profissional
fatalmente votada à condenação eterna. Estas ideias
aparecem em algumas das Cantigas de Santa Maria e estão por
detrás das acusações de homossexualidade feitas por alguns
trovadores ao chanceler Estêvão Anes, que tanta habilidade
revelou em acumular dinheiro.
Por isso, D. Dinis, que também emprestou dinheiro com
usura, sentia-se particularmente preocupado com isso quando
redigiu o seu testamento, mandava reparar injustiças daí
resultantes e dispensava os cruzados que partiam para a

215
Terra Santa de pagarem juros de dívidas. De facto, tanto
ele como seu pai promulgaram várias leis em que limitavam
os juros de empréstimos, sem os condenarem em si mesmos. Os
escrúpulos do rei não vinham apenas das advertências feitas
pelos pregadores: tinha na corte um exemplo vivo de
especial preocupação com os pobres, na pessoa da sua
própria mulher. As ideias de Santa Isabel a este respeito,
porém, não deviam estar isentas de ambiguidade: a sua
estima pela pobreza levou-a a fazer o voto de andar com o
hábito do Povorello depois de viúva, mas não deixou de
possuir um tesouro com jóias tão ricas como as que ainda
hoje se conservam no Museu Machado de Castro, em Coimbra.
De facto, o sucesso dos Franciscanos durante todo o
século XIII não impediu que nessa mesma época persistissem
ideias completamente diferentes das suas acerca dos bens
materiais. Assim o mostra, por exemplo, o testamento de
Santa Mafalda, que entesourou abundantes riquezas, como se
elas fossem em si mesmas sinal da bênção divina e só o seu
excesso permitisse o dom e a generosidade de que o próprio
Deus dá o supremo exemplo. Seu sobrinho Afonso III, pelo
contrário, que sempre mostrou grande preocupação pela
contabilidade e boa administração, revelava uma mentalidade
bem mais prática, ao recomendar no seu testamento que
executassem os seus legados pios sem tocarem nas rendas da
coroa na cidade de Lisboa, que ele, evidentemente, não
queria afectar, nem mesmo por razões espirituais. As suas
leis anti-sumptuárias de 1258 e de 1261, ao reduzirem as
despesas da corte, exprimem também uma preocupação pela
poupança bem contrária à valorização da generosidade
perdulária, que era então, e continuaria ainda a ser
considerada durante muito tempo como uma das principais
virtudes do nobre, como aconteceu, por exemplo, com o conde
D. Pedro de Barcelos.
A intenção do rei não era, é claro, imitar os
Franciscanos, mas atribuir um especial valor ao dinheiro e
talvez também a uma certa disciplina de vida. Isto não
acontecia só com ele. Na segunda metade do século XIII e no
seguinte aparecem muitos regulamentos para toda a espécie
de ofícios, modos de vida ou actividades, em conformidade,
de resto, com a propensão comum para racionalizar a vida
humana, que se manifesta igualmente no «direito comum»,
cujos princípios penetram também, é claro, em Portugal. Os
regulamentos que procuram ordenar o comer e o vestir
tornam-se então mais minuciosos, particularmente quando
redigidos para comunidades religiosas. Pode-se ver um
exemplo deste género no que Afonso Sanches mandou fazer
para o convento de clarissas de Vila do Conde em 1318.

O sentido da medida

O que acabámos de ver está também relacionado com a


preocupação de «medir», que penetra na civilização medieval
durante o século XIII. Tem, como a preocupação de poupar e
de regulamentar, uma origem burguesa: o homem da cidade
tinha de medir o espaço da sua casa e do quintal, de saber
as distâncias a que tinha de ir buscar água ou comprar
víveres e roupa, de contar o dinheiro que pagava ou
ganhava, de calcular os dias e as horas. Mas os hábitos de
rigor não se impuseram facilmente. Conquistaram primeiro, é
claro, os mercadores e funcionários régios e municipais.
Assim, num inquérito feito em Braga em 1216 acerca dos
direitos metropolíticos da arquidiocese, onde se
interrogaram sobretudo idosos, muitos não sabiam a sua
idade, outros declaravam com facilidade que tinham 100, 120
e até 140 anos; a insistente pergunta acerca do tempo
durante o qual tinha estado doente o arcebispo D. João
Peculiar recebeu respostas que variavam entre 5 e 12 anos.
Pelo contrário, é evidente o rigor com que algumas
décadas mais tarde, em documentação emitida por mordomos
régios ou relativa a povoações mais a sul, se indicam
equivalências de medidas como o moio, a teiga, o quintal do
vinho ou o molho do linho, se declara o valor do «manto»,
as dimensões do lenço, do bragal e das varas de linho
usados em regiões diferentes, se fixam os valores da nova
moeda-padrão criada pôr Afonso III em 1261, as unidades dos
géneros tabelados em 1253. Há mesmo um célebre documento de
1321 acerca de um solho gigante pescado perto de Santarém
em que o peixe se descreve com uma evidente preocupação de
rigor. Incluem-se na mesma nova tendência para a
preocupação com a medida as ordens dadas por Afonso III
para não deixarem de se datar os contratos e procurações e
o escrúpulo com que os notários dionisinos descrevem o selo
e outros sinais externos de documentos cuja autenticidade
têm de garantir.

216
O uso de padrões de medida neutros e uniformes levava
há muito, nas povoações de cultura moçárabe. a situar casas
e propriedades por referência aos pontos cardeais (oriente,
ocidente, «avrego» e «aguiam»), mas este hábito, que revela
uma concepção cósmica do espaço, é praticamente
desconhecido a norte do Mondego, onde as confrontações e
pontos de referência são as villae e os montes, quer dizer,
os lugares onde estão as igrejas e os solares ou castelos
dos senhores, ou os rios e vales que separam os seus
territórios. A concepção hierarquizada do espaço em função
dos lugares onde se exerce o Poder e o âmbito que ele
alcança dificultam, portanto, a adopção de medidas neutras
e uniformes.
A escrita faz progressos ainda mais rápidos do que a
medida. Até ao século XIII, quase só os clérigos a sabem
usar. No meio de uma civilização dominada pela oralidade,
acham mesmo necessário fazer o seu elogio, para compensar
as falhas de memória. Mas, a partir de 1200, as coisas
mudam. Um dos sinais e factores de mudança é a provável
decisão tomada por Afonso II de instaurar o notariado, pelo
menos em alguns concelhos, como Lisboa, Santarém, Leiria e
Guimarães. Esta decisão, no entanto, parece ter sido
demasiado precoce, pois só se generalizou a partir de 1250.
Foi também Afonso II quem, em 1222, mandou fazer os livros
de recabedo regni para os ofícios da cúria e quem iniciou o
primeiro registo da chancelaria, embora também estes
instrumentos tivessem sido interrompidos durante o reinado
de Sancho II.
A difusão do notariado constituiu um dos factores que
mais contribuíram para difundir a escrita e impor a
formalidade dos actos jurídicos como garantia da sua
estabilidade para além do tempo. A escrita tornou-se,
assim, um instrumento político e administrativo
fundamental. Afonso III compreendeu-o perfeitamente. Por
isso, mandou todos os tabeliães do reino escreverem nos
seus registos a lei do «acrescentamento» da moeda nova de
1270 e a lei da revelia de 1272. Nestas, a indissociável
ligação entre a escrita e o espaço urbano transparece na
fórmula: «Cada um de vós em vossas vilas que façades
escrever todas estas cousas.»
O mesmo rei ordena aos juízes dos órfãos que não deixem
de registar por escrito a relação dos bens que lhes
pertenciam, e as instruções acerca do processo jurídico
redigidas na Guarda recomendam que a sentença seja dada por
escrito. Mais tarde, D. Dinis ordena aos alcaides e alvazis
municipais que se correspondam entre si acerca dos
criminosos que fogem para outros concelhos e aos tabeliães
que anotem as sentenças, mesmo que os condenados pertençam
a outras localidades. O mesmo rei manda aos tabeliães que
registem em livro à parte a cobrança dos dízimos sobre os
contratos dos judeus, para poderem ser consultados pelos
almoxarifes, e aos mouros forros que registem os «seus
cabedaaes» nos livros do recebedor e escrivão d'el-rei.
Compreende-se, portanto, que D. Dinis promulgasse em 1315
um minucioso regimento dos tabeliães, que os municípios
fossem também obrigados a ter os seus escrivães e que até
os senhorios particulares os instituíssem também, se
queriam controlar a administração, como acontecia com a
Ordem do Hospital em Amarante.

Cultura

Não é possível dar uma ideia completa da evolução da


cultura portuguesa durante o período que nos ocupa. Teremos
de proceder por meio de breves alusões, necessariamente
muito genéricas, primeiro à cultura letrada, depois à dos
leigos. A existência de numerosas investigações e de boas
sínteses acerca da primeira dispensar-me-á de entrar em
pormenores. Quanto à segunda, a quase total ausência de
obras de investigação só permitirá apresentar alguns
exemplos um tanto ou quanto impressionistas, embora,
porventura, significativos.
Os centros de cultura clerical anteriores a 1130
reduzem-se aos mosteiros e às sedes diocesanas. Os
primeiros, tendo já desempenhado um certo protagonismo
cultural durante a renovação monástica das observâncias
hispânicas, como aconteceu com Guimarães, Lorvão, Vacariça,
Leça, Santo Tirso, Paço de Sousa, Pendorada e outros,
receberam novo impulso com a introdução dos usos
cluniacenses e a importação de livros e conceitos vindos de
além-Pirenéus. As segundas organizaram os seus cabidos
canonicais e as suas escolas-catedrais, nomeadamente em
Braga. Coimbra e Porto, e aí recolheram também livros e
ensinaram jovens clérigos durante a época em que a adopção
da liturgia romana e a recepção da reforma gregoriana
sustentavam uma renovação paralela. As controvérsias acerca
dos direitos e territórios diocesanos, que agitaram todos
os bispados, mas sobretudo as que opuseram Braga a
Compostela e a Toledo, obrigaram os seus cónegos a

217
manejarem com destreza a argumentação jurídica e a
recolherem provas e estudarem literatura e documentos
antigos, levando-os a adquirirem um notável conhecimento da
história visigótica, como se pode ver das obras que citam
nos inquéritos apresentados aos juízes apostólicos no fim
do século XII e princípios do seguinte.
A partir de 1131, com a fundação de Santa Cruz de
Coimbra, aparece o centro cultural mais original e mais
pujante do princípio da nacionalidade. Os cónegos regrantes
relacionam-se ao mesmo tempo com S. Rufo de Avinhão, donde
trazem o seu costumeiro e alguns livros, com a Itália, onde
viajam frequentemente, e com a Terra Santa, para seguirem o
exemplo do seu fundador. S. Teotónio, que aí tinha vivido
bastante tempo. Orientam-se, assim, para uma
espiritualidade que tem Jerusalém como seu centro
simbólico, por oposição a correntes anteriores dominadas
pelo imenso prestígio de Cluny e de Roma. É uma forma de
exprimirem o desejo de buscarem as origens do Cristianismo,
para além das observâncias tradicionais e talvez de
legitimarem indirectamente a tradição moçárabe, que de
alguma maneira prolongam, apesar de não recusarem a
liturgia romana. A sua relação com Afonso Henriques
garante-lhes uma projecção excepcional e encoraja-os a
apresentarem-se como mentores da sociedade cristã, tanto no
plano clerical como no plano político. É também de lá que
são recrutados vários bispos de dioceses portuguesas
nomeados durante a segunda metade do século XII e o
princípio do século seguinte, a começar por D. João
Peculiar, arcebispo de Braga, o que imprime uma certa
unidade à acção pastoral do clero diocesano dessa época.
Foi ainda de lá que partiram, em 1184, as mais claras e
precoces manifestações até hoje conhecidas do espírito de
cruzada, nessa altura motivado pelo agravamento das
invasões almóadas.
A crise disciplinar sofrida pelos regrantes de Santo
Agostinho no princípio do século XIII antecedeu de perto a
diminuição da importância cultural de Santa Cruz, que
passou a sofrer a concorrência não só do clero diocesano,
como também das novas ordens mendicantes. Muitos clérigos
foram frequentar as universidades de além-Pirenéus, como a
de Paris e, sobretudo, a de Bolonha, distinguindo-se na
primeira portugueses de renome europeu, como Pedro Hispano,
que se tornou papa com o nome de João XXI, e na segunda
canonistas célebres como mestre Silvestre e mestre Vicente,
juristas da contenda entre Afonso II e suas irmãs, além de
um canonista tão fecundo como mestre João de Deus.
Os Franciscanos e Dominicanos sobressaíram menos no
ensino do que na pregação, como mostram Os dois exemplos já
referidos de António de Lisboa e de Paio de Coimbra. A sua
acção foi, de facto, mais popular, sobretudo a dos
primeiros, o que, de resto, lhes garantiu uma influência
cultural mais profunda, mais difusa e com consequências
maiores na transformação da mentalidade dominante. Nem por
isso deixaram de se interessar pelos estudos
universitários, como mostram, por exemplo, as referências
ao estudo franciscano de Lisboa no fim do século XIII e o
facto de ter sido confiado aos conventos franciscano e
dominicano de Lisboa o ensino da Teologia quando aí foi
fundada a universidade.
Quanto aos Cistercienses, que durante o século XIV
haveriam de demonstrar uma actividade cultural tão grande,
o seu papel na época anterior está ainda por estudar.
Importaram, decerto, numerosos códices de carácter
teológico e espiritual e aplicaram-se, sem dúvida, ao
estudo da Escritura, como os seus confrades de
além-Pirenéus; sabe-se que tinham um importante
scriptorium, onde copiaram e iluminaram muitos manuscritos
desde o século XII, mas não se conhece nenhum escrito
original aí redigido nesta época, e, do ponto de vista
arquitectónico, a notável construção da igreja abacial de
Alcobaça representa a importação de um modelo estrangeiro.
Enfim, pode-se também referir que os monges, apesar do seu
rigor e alheamento do mundo, não deixaram de se interessar
pelos estudos universitários, porque fazem parte do grupo
de eclesiásticos que, com o prior de Santa Cruz de Coimbra
e outros, solicitaram ao papa a fundação do Estudo Geral,
facto cuja importância para a cultura letrada portuguesa
não é necessário sublinhar.
A cultura dos leigos é, obviamente, muito diferente. O
seu carácter exclusivamente oral até ao fim do século XII
oculta as suas principais manifestações. Só aquilo que mais
tarde se pôs por escrito e um certo número de referências
indirectas permitem reconstituir alguns dos seus traços,
ronhecemos, por exemplo, a verdadeira paixão que os vilãos
dos concelhos do interior tinham pela recitação da poesia
épica, cantada pelos cedreiros, que andavam a cavalo de
terra em terra: iuscitavam tal entusiasmo nos ouvintes que
era preciso.tabelar a sua recompensa em dinheiro, como

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acontecia em Alfaiates no fim do século XII. Nas cidades do
litoral, porém, não se sabe se estes contadores de gestas
tinham o mesmo sucesso: não há notícias deles. Mas havia,
decerto, jograis que, além de cantarem a poesia épica
castelhana, também tentavam imitá-la, compondo canções
análogas, como a que foi provavelmente redigida em Coimbra,
talvez pelo fim do século XII, e que contava a história de
Afonso Henriques.
Os senhores mais poderosos tinham também as suas cortes
e, à semelhança de alguns magnates aragoneses, castelhanos
e galegos, que, por sua vez imitavam os provençais,
gostavam de ter jograis e trovadores em suas casas. Os
cancioneiros portugueses conservaram vestígios de
composições feitas na corte dos Trastâmaras no princípio do
século XIII e as recentes investigações de A. Resende de
Oliveira levaram-no a encontrar também testemunhos de
jograis ou trovadores que viveram nas cortes senhoriais dos
Sousas, de Fernando de Serpa, de Martim Gil de Riba de
Vizela, de Pedro de Barcelos, entre outros. A tal ponto que
se pergunta actualmente se as cortes senhoriais não
representaram um meio mais animado e criativo do que a
própria corte régia, embora não se possam esquecer as
composições feitas na corte de Afonso III e sobretudo as
cantigas do próprio D. Dinis.
De qualquer maneira, os jograis e trovadores viajavam
bastante. Fossem galegos (talvez o maior número),
portugueses, castelhanos ou aragoneses, andavam
frequentemente de corte em corte, para oferecerem os seus
serviços aos reis e senhores mais poderosos e mais
interessados na cultura cortesã. Afonso III, porém, sempre
poupado, não queria sustentar mais do que três jograis na
sua corte e tabelou o que se deveria pagar aos que viessem
a cavalo de outras terras.
Tudo isto tem uma expressão predominantemente oral: os
jograis animavam as festas da corte, tocavam e cantavam,
faziam dançar as soldadeiras e rir toda a gente, incitavam
aos jogos amorosos, animavam as intrigas cortesãs. A
maioria, provavelmente, não sabia escrever. Mas o sucesso
de muitas composições e a intervenção de clérigos que
também se tornaram trovadores ou jograis levaram, primeiro,
a registar algumas por escrito, depois, a fazer pequenos
cancioneiros de autor ou de grupos de autores e,
finalmente, a organizar grandes colecções, como a que fez o
conde D. Pedro de Barcelos, ou Afonso X, nas Cantigas de
Santa Maria.
A poesia lírica e satírica representa, portanto, a
expressão mais típica da cultura cortesã. Outra
manifestação importante da mesma cultura é a
historiografia. A sua forma mais precoce foi talvez a das
genealogias, que provavelmente não se limitaram a uma
enumeração pura e simples dos ascendentes, mas incluíram
desde cedo o relato de «estórias» peculiares, destinadas a
definir o seu comportamento exemplar, positivo ou negativo,
como elemento essencial da memória familiar e da
consciência da linhagem. Embora tenham sido registadas
relativamente tarde, desde 1284 ou 1285, aparecem nesta
altura de forma já tão elaborada que pressupõem a fixação
de tradições bem mais antigas. Nada devem, então, à
historiografia de origem eclesiástica, que toma
inicialmente a forma de «anais», como os que foram
compostos em Santo Tirso no fim do século XI e que depois
foram acrescentados em Santa Cruz de Coimbra, onde
evoluíram para uma forma quase cronística na apologia de
Afonso Henriques de c. 1185. Todavia, estes escritos
acabaram, no século XIV, por ser também conhecidos e
aproveitados pelas primeiras crónicas não clericais, como a
perdida Crónica galega-portuguesa de Espanha e de Portugal
(segundo a terminologia de Diego Catalán), composta,
talvez, para a casa senhorial de Trastâmara no princípio do
século XIV — uma crónica senhorial, de novo, apesar de os
principais personagens do fragmento conservado serem os
reis de Portugal. O mesmo acontece com a grande obra de D.
Pedro de Barcelos, nitidamente influenciada pela
historiografia afonsina, a Crónica geral de Espanha de
1344, e mesmo com a tradução da Crónica do mouro Rasis,
composta por ordem de Pedro Anes de Portel. Na corte
portuguesa, a memória dos reis parece já suscitar algum
interesse durante o reinado de D. Dinis, mas nada resta de
qualquer escrito para a perpetuar, até à redacção da
Crónica breve do Arquivo Nacional, do tempo de D. Pedro I.
Os reis pensavam, talvez, que a tarefa incumbia aos Cónegos
Regrantes de Santa Cruz, que guardavam os túmulos dos dois
primeiros reis, ou aos monges de Alcobaça, que guardavam as
sepulturas da maioria dos outros. De facto, os Cónegos
cultivaram essa memória, sobretudo a do rei fundador; mas
os monges pensavam, porventura, que era mais importante
celebrar os sufrágios dos reis do que registar a memória
dos seus feitos.
Resta saber o que se passava com a cultura popular. As
informações são, obviamente, muito escassas. Admitamos que
um dos seus meios de transmissão privilegiados fosse os
provérbios; mas os que conhecemos anteriores ao século XVI

219
representam sobretudo uma mentalidade bur-ruesa e a época
da dissolução das estruturas comunitárias dos séculos XIV e
XV. Um dos seus ispectos característicos e provavelmente
mais antigo é o de atribuírem às velhas um lugar
privilegiado na transmissão do saber e o facto de
representarem uma cultura que, sem negar a função da norma,
a relativizava constantemente, exprimindo assim a
componente essencialmente pragmática do saber popular.
Já falámos também da mentalidade mágica: ao passo que
este aspecto da cultura popular não a impede de ser
bastante permeável à influência clerical nos meios urbanos,
mantém uma grande resistência nos meios rurais, como
demonstra a preservação de milenários rituais, nomeadamente
os iue se destinavam a garantir a fecundidade das mulheres,
dos animais e da terra, que pretendiam sujeitar as pulsões
sexuais à vontade humana, que deveriam trazer a
prosperidade e a vitória, que se praticavam para protecção
contra a opressão dos poderosos, que se usavam para
recuperar a saúde.
O momento peculiar das manifestações da cultura popular
é a festa, como acontece também, afinal, com os nobres. A
forma privilegiada de nela participar é a que faz intervir
p corpo e a voz e que, por meio deles, pretende dominar o
espaço. Daí a importância que nela reveste a procissão, com
a sua ostentação das insígnias identificadoras das
hierarquias e dos grupos. Daí que a pregação tenha nela
assumido sem dificuldade uma importância tão grande, pelo
menos a partir do século XIII. Mas outros elementos da
festa vêm certamente de mais longe, como os espectáculos
dos bufões, histriões e saltimbancos que a Igreja condena,
porque há neles um excesso corporal incontrolável, que os
torna de algum modo um prolongamento do paganismo. Os
contadores de histórias, os cedreiros e os jograis
inserem-se facilmente neste grupo. O gosto pelo grotesco
que as suas habilidades revelam, e que é tão típico da
mentalidade popular, como mostrou Bakhtine, inspira as
festas carnavalescas, toleradas pelas autoridades
eclesiásticas, sobretudo no fim do ano civil ou no
princípio da Quaresma. Então podem revestir o aspecto de
festas de loucos, de crianças ou de jovens que exercem o
Poder durante um ou mais dias. Destas, há poucos vestígios
medievais em Portugal, a não ser num pequeno grupo de
poesias goliárdicas preservadas num códice de Alcobaça, mas
o folclore popular preservou muitas das suas variantes até
aos dias de hoje.
Em tudo isto o corpo, a voz e o gesto desempenham um
papel fundamental. Para se fazer uma pálida ideia da
maneira como eram utilizados leia-se o relato de um milagre
atribuído a S. Vicente no princípio do século XIII o qual
beneficiou um monge cisterciense maiorquino, que teria
vindo a Lisboa agradecer ao santo a sua libertação do
cativeiro no meio dos Sarracenos. Os cónegos da Sé
organizaram uma pregação solene para dar a conhecer o
milagre ao povo da cidade e o monge assistiu a ela em lugar
bem visível, carregado de algemas e cadeias, num
espectáculo quase teatral, que os assistentes depois não
poderiam ter esquecido facilmente.
Noutros casos, como nas romarias, a festa suscita a
dança, que, por sua vez, desencadeia a comunhão com a
Natureza e as forças cósmicas elementares, como sugerem as
poesias de romaria conservadas entre as cantigas de amigo.
As autoridades pretendem também intervir neste campo. A
Igreja tenta disciplinar as festas, controlar as
manifestações carnavalescas, alterar o sentido dos rituais
mágicos, atribuindo ao demónio as forças sobrenaturais
negativas e aos santos as forças positivas, e usar a
pregação para inculcar os seus ensinamentos morais. Os
funcionários régios, por seu lado, procuram também fazer
chegar até ao povo as suas leis, ordenamentos e instruções.
Querem dá-los a conhecer a todos, fazendo-os ler em
público, como aconteceu já em 1253 com Afonso III, que
ordenava que a esse acto assistissem os prelados, alvazis,
juízes, justiceiros, alcaides e conselhos e que fossem
registados por escrito nos livros das vilas e julgados,
sublinhando assim a solenidade que pretendia dar a esta
manifestação do Poder. D. Dinis, por sua vez, manda os
tabeliães lerem certas leis periodicamente diante do
concelho, algumas delas, até, uma vez por semana. Os bispos
também mandam ler certas determinações suas nas igrejas, em
dias festivos e ao domingo, durante os sermões.
Uma das mais interessantes manifestações da alteração
da mentalidade no domínio das relações entre o Poder e os
súbditos consiste no recurso a processos de influenciar a
opinião pública. Os exemplos mais evidentes são os
manifestos mandados ler por D. Dinis em Lisboa, em três
ocasiões, durante agueira civil de 1319-1345, nos quais
apresenta as suas queixas e razões contra seu filho, o
futuro Afonso IV.
220
Em termos políticos, não podemos ainda esquecer outro
aspecto diferente da cultura portuguesa, que resulta da
diferenciação do português e do castelhano. A circulação de
cedreiros, jograis e trovadores, ou mesmo de clérigos, que
transitavam muitas vezes das suas dioceses para outras fora
do seu país, a sempre renovada emigração de nobres e
trabalhadores galegos para Portugal, a frequência de
universidades castelhanas, como Salamanca, mesmo depois da
fundação da de Coimbra, o frequente exílio de fidalgos
portugueses no resto da Península, a empresa da
Reconquista, cujo carácter supranacional de vez em quando
se lembra, e sobretudo a ideia difusa de que a Hispânia
representa uma unidade cultural, por oposição ao resto da
Europa, tudo isto impede de admitir a precoce eclosão de
uma consciência de nacionalidade demasiado vincada, quer
entre os letrados quer em meios populares.
Mas a definição de Portugal como uma entidade política
autónoma vai encontrando expressões culturais
progressivamente mais nítidas, como veremos mais tarde. Uma
das suas manifestações concretas é a adopção do português
como língua oficial da chancelaria régia durante o reinado
de D. Dinis. A separação das fronteiras e a criação de
circuitos económicos próprios, de âmbito igual ao do reino,
contribuem de maneira inequívoca para fazer evoluir o
português em sentido divergente do castelhano e,
consequentemente, para assim se criar a base de uma cultura
nacional com características próprias.

221
A CONSOLIDAÇÃO DA MONARQUIA E A UNIDADE POLÍTICA

Depois de, no segundo capítulo, termos passado em


revista os principais acontecimentos políticos do espaço
português desde a fundação do Condado Portucalense até ao
fim do reinado de D. Dinis e de, em seguida, havermos
procurado reconstituir as estruturas fundamentais das duas
grandes formas de organização sociopolítica (senhorios e
concelhos) existentes no território nacional, passámos a
examinar os diversos tipos de mutações profundas com
incidência sobre a evolução dessas mesmas estruturas.
Deixámos para este capítulo as mutações políticas, que as
afectaram de maneira ainda mais directa e decisiva. Em
termos nacionais, este é um dos problemas históricos mais
importantes. Com efeito, é a estruturação e consolidação de
um poder político único sobre o conjunto do espaço
nacional, que, por um lado, impõe a este mesmo espaço um
certo grau de coerência e de unidade e que, por outro, se
torna condição absolutamente decisiva para a própria
constituição da identidade nacional, identidade essa sem a
qual não seria sequer possível conceber o País como objecto
histórico. Trata-se, agora, de saber como se formou e
estruturou esse poder político em si mesmo e nas relações
com outros poderes regionais e locais, que existiam no
mesmo território. E, finalmente, de saber até que ponto
podemos, nesta época, falar do País, do regnum, como de uma
entidade histórica com vida própria.

A monarquia

Convém, antes de examinarmos o funcionamento da


monarquia portuguesa em si mesma, advertir que se trata de
uma monarquia «feudal», isto é, de um poder régio que não
distingue claramente o público e o privado, tal como
acontecia nos restantes países europeus da mesma época. O
Estado moderno não existe ainda: está em formação. Isto não
quer dizer que seja ilegítimo usar o termo «Estado» para
designar o poder monárquico antes do século XIV. De facto,
pode ser considerado, mesmo então, como um poder político
superior e englobante, cuja autoridade é reconhecida pelos
restantes detentores de poderes públicos ou privados,
qualquer que seja a maneira como partilha com eles essa
mesma autoridade. Apesar de não se poder identificar o
poder régio com o senhorial, é difícil isolar as
prerrogativas que nesta época lhe pertencem exclusivamente.
Muitas das funções que mais tarde se haviam de considerar
exclusivas do rei ou do Estado são, de facto, exercidos
pelos senhores; inversamente, o rei concebe o seu poder
como o de um «senhor», isto é, como uma prerrogativa
pessoal, não sujeita à lei, a não ser à lei divina.
O Estado moderno muda a natureza do poder político, na
medida em que passa a considerar o reino como um todo
unitário e o rei como uma autoridade «pública», que ele
exerce «directamente» sobre «todos» os cidadãos, qualquer
que seja o seu estatuto jurídico ou os seus eventuais
privilégios. Em termos actuais, pode-se esquematizar a
mutação dizendo que a monarquia feudal não distinguia a
autoridade pública da privada nem a autoridade política do
simples poder. O Estado moderno nasce à medida que reserva
exclusivamente para si a autoridade pública e política e em
que cria uma organização de tipo burocrático para a
assegurar, cujos funcionários exercem uma autoridade
delegada, não a título pessoal, mas em virtude das funções
que lhes são cometidas dentro dela. O que nos interessa
neste momento é averiguar como se dão os primeiros passos
que conduzem da monarquia feudal à monarquia estatal.

222
O «senhor rei»

Domimts Rex é a maneira como os inquiridores de 1258


chamam normalmente a Afonso III. A fórmula não significa
apenas o respeito devido ao rei. Mostra que ele se deve
considerar como um «senhor». De facto, as inquirições
destinam-se a fazer o cadastro dos seus rendimentos
«senhoriais». Mesmo aqueles que são de origem pública, como
os que derivam de prestações outrora de natureza fiscal, se
equiparam aos exigidos em virtude da autoridade feudal. Com
efeito, não é preciso ser rei para exigir serviços em
trabalho, voz e coima, fossadeira, anúduva ou jugada, para
apresentar o pároco de certas freguesias ou nomear juiz,
como fazem também pelo menos alguns senhores dentro das
suas terras. Muito menos para cobrar prestações como a
pousadia, a eirádiga, as portagens, os foros sobre
coelheiros, almocreves, pescadores, viúvas ou cabaneiros,
as imposições sobre moinhos, fornos, lagares, azenhas ou
açougues. Não é só o rei que pode ter cavaleiros armados,
presidir ao tribunal, tomar conta dos baldios, criar multas
ou expulsar os detentores das terras. Há senhores que
também cedem a outrem a autoridade sobre um senhorio,
mediante a obrigação da fidelidade, do conselho e da ajuda.
Todavia, a vastidão dos domínios régios permite desde
logo distinguir o rei como o mais poderoso de todos os
senhores. Além disso, ninguém se pode opor a que exija
direitos senhoriais a homens livres. É ele a verdadeira e
única autoridade sobre as comunidades e sobre os
proprietários que não dependem de nenhum senhor. Em nome
dela, confirma os párocos e juízes eleitos, que até ao
século XII provavelmente não respondiam perante ninguém, a
não ser perante as suas próprias comunidades. Exige as
prestações, públicas judiciais, militares e fiscais, cuja
memória não se perdeu desde a Antiguidade e que não se
sabe, por quem e como foram sendo cobradas durante os
séculos VIII e IX.
Mas a verdade é que o exame atento das inquirições de
1220 e de 1258 mostra que se verifica a contaminação da
autoridade régia pela senhorial, o que permite ao rei não
só cobrar as prestações de origem pública, mas também impor
as de origem senhorial sobre os cultivadores, que até então
só pagavam aquelas (os herdadores). Parece indicar também
que esta transformação era então recente, isto é, que se
deve ter dado durante o fim do século XII e princípio do
seguinte. Trata-se de um aspecto particular do processo de
desaparecimento dos alódios, em curso havia vários séculos,
mas que neste momento sofre uma efectiva aceleração.
Deixando de lado a absorção feudal dos alódios por
senhores particulares, vejamos o que se passa com a
senhorialização régia. No reinado de Afonso II, a
autoridade do rei sobre as terras anteriormente livres
ainda se distinguia claramente da que exercia sobre as do
património da coroa. Este facto deduz-se de nas inquirições
de 1220 se separar o cadastro dos «foros» do das prestações
dos «reguengos». Aqueles são normalmente fixos, estas
proporcionais à colheita; aqueles mais ligeiros do que
estas; aqueles incluem a fossadeira, de origem pública,
estas uma quota-parte da produção de vinho e cereal e as
miunças devidas à ocupação da casa e quintal. Os «foros» de
1220 não têm, portanto, um caráqter dominial. Sendo assim,
a verdadeira distinção entre reguengos ebens da coroa não
resulta de o rei possuir sobre aqueles o domínio directo e
o útil e sobre estes apenas o directo, como pretendia Gama
Barros, mas de os bens da coroa terem resultado, na sua
maioria, da apropriação relativamente recente de alódios e
os reguengos serem domínios possuídos há muito pela casa
régia. Os primeiros derivam da senhorialização de terras em
virtude do poder público do rei, enquanto os segundos
constituíam os seus domínios patrimoniais. Por isso é que
em 1220 os inquiridores consideram que o rei possui apenas
os «foros» e não a terra, enquanto dos segundos tem também
a terra «reguenga». Mas a contaminação da autoridade régia
pela senhorial faz com que o rei venha a considerar-se tão
senhor dos foreiros como dos reguengueiros e,
consequentemente, tanto de umas terras como de outras.
Com efeito, numa lei de 1265 ainda se fazia a distinção
entre terras reguengas e terras foreiras. Pouco antes, nas
inquirições de 1258, apesar de se ter abandonado a
separação do cadastro dos «foros» e dos «reguengos», também
em alguns lugares da Beira se classificam as terras
sujeitas ao rei em reguengueiras, de jugada e de cavalaria:
como tudo leva a crer que nesta região as terras «de
jugada» correspondiam às «foreiras» de além-Douro,
verifica-se que o estatuto diferenciado da terra ainda se
mantém na segunda metade do século XIII. Mas a designação
tinha já deixado de se referir à prestação paga, para
envolver a própria terra, como se o rei, que em 1220 apenas
tinha o direito de cobrar determinados foros, passasse
depois a possuir a terra de quem os pagava. A partir daí,
tende-se a assimilar as diversas situações. Com efeito, a
própria lei de 1265, apesar de distinguir os dois tipos de

223
prédios, trata-os em conjunto, e uma lei de D. Dinis de
1311, com o mesmo objectivo daquela, fala apenas de
reguengos, esquecendo a situação específica dos prédios
foreiros.
Nesta época, de facto, em termos de jurisdição, a
distinção fundamental era a que opunha as terras do rei às
dos concelhos e às dos senhores. Embora dentro de cada uma
delas o montante das prestações variasse muito de caso para
caso, todos os cultivadores se igualavam na mesma
dependência de um Senhor (o rei ou um senhor privado) ou de
um concelho. A antiga designação «herdador» vai perdendo o
seu significado e caindo em desuso.
Não era só o rei que estendia a sua autoridade
senhorial sobre os homens livres. Antes dele,
provavelmente, o tinham feito os senhores leigos e
eclesiásticos. As inquirições de 1220, 1258, 1284 e todas
as outras destinaram-se justamente a procurar impedir que a
maré da senhorialização continuasse a invadir as terras do
rei. Foram necessárias sobretudo nas regiões onde o regime
senhorial se desenvolveu mais precocemehte. Por isso, não
existem inquirições gerais ao sul do Mondego e bastou,
aqui, proceder a alguns inquéritos pontuais. Nesta parte do
País, onde predominava a organização concelhia, os próprios
concelhos procuravam lutar contra a implantação de
jurisdições senhoriais. Conhecem-se, todavia, documentos
que mostram a tentativa de certos particulares de se
apropriarem de reguengos, como as lezírias da Estremadura e
do Ribatejo.
Voltando ao processo de senhorialização régia, de que
as inquirições são um instrumento fundamental, podemos
fazer notar que a sua última fase deve ter sido a da
apropriação de matas e maninhos por parte do rei, durante
os reinados de Afonso III e de D. Dinis. De facto, parece
verificar-se que antes disso tais terras eram por vezes
consideradas terras de ninguém, não sendo sequer
reivindicadas pelos concelhos. Muitas delas foram então
transformadas em «coutadas» e reservadas para a caça, sob a
vigilância dos monteiros do rei.
À diferença do que acontecia com a maioria dos outros
senhorios, o domínio régio era constituído por uma
quantidade muito considerável de bens urbanos, o que lhe
confere também uma característica especial. Esta não altera
a natureza senhorial do poder régio, mas contribui para lhe
atribuir, em termos práticos, uma enorme superioridade. Já
no foral de Santarém-Coimbra-Lisboa de 1179 se verifica que
o rei possuía tendas e casas nestas cidades. Sancho I
refere-se nos seus testamentos a quantidades consideráveis
de gado. Tanto ele como seu pai possuíam um grande tesouro
monetário repartido pelos mosteiros de Santa Cruz e de
Alcobaça e por castelos templários e hospitalários. Sancho
II manda cumprir legados pios com os rendimentos recolhidos
pelos seus moedeiros e menciona tendas, casas e adegas em
vários lugares. Não têm conta as referências a prédios do
mesmo género possuídos por Afonso III. Mas o interesse
deste pela moeda e por bens urbanos muda qualitativamente,
porque se desdobra por todo o género de instrumentos de
produção, sob a forma de monopólios de fornos, moinhos,
tendas, salinas, pesca da baleia, banhos, pisões, açougues
ou azenhas, e inclui ferrarias, taracenas, estaleiros de
construção naval. A propriedade régia urbana concentra-se
sobretudo em Lisboa e Santarém, mas também se estende a
outras cidades, como Elvas, Évora, Guarda, Porto, etc.
Pode-se englobar no mesmo capítulo a autoridade que o rei
exerce sobre os mouros forros e os judeus, dos quais recebe
tributos especiais. Aqui, porém, estamos perante uma
prerrogativa especial, pois não é exercida por nenhum outro
senhor. Relaciona-se directamente com a predominância
urbana do domínio régio, mas não resulta do seu poder
senhorial.
Para gerir tudo isto era necessária uma complexa
máquina administrativa. Também ela não difere
essencialmente da administração senhorial, mas a sua
vastidão e complexidade conferem-lhe uma característica
própria. Em termos esquemáticos, podem-se distinguir
agentes de dois níveis: os locais, chamados normalmente
«mordomos» (ou «mordomos das eiras», «das terras», etc), ou
«vigários», e os recebedores, ou almoxarifes, que recolhiam
dos celeiros e entrepostos régios as rendas exigidas por
aqueles. O âmbito regional das funções dos segundos não
impedia que por vezes se designassem com os mesmos termos
(mordomos ou vigários). Aqueles, porém, podiam, sobretudo
em Trás-os-Montes, ser eleitos pelos habitantes do lugar,
enquanto estes são sempre designados pelo rei ou por alguém
em seu nome.
Para facilitar a cobrança, Afonso III converteu algumas
rendas em dinheiro e fixou o pagamento em três prestações,
em datas determinadas. Além disso, utilizou largamente o
processo do arrendamento da cobrança regional mediante uma
soma fixada previamente e arrematada por indivíduos que se

224
especializavam neste tipo de negócio. Além disso, tanto ele
como seu filho D. Dinis agravaram, por vezes muito
consideravelmente, as rendas de determinados lugares.
Assim, em Caminha aumentaram 42,9% entre 1258 e 1275 e 500%
entre 1275 e 1284. Sabe-se também que D. Dinis multiplicou
o sistema dos contratos de emprazamento, fez uma grande
quantidade de aforamentos colectivos, concedeu muitos
forais novos e organizou verdadeiras empreitadas de
povoamento, sobretudo em regiões de fronteira e em zonas de
costa.
Nas cidades, a cobrança das rendas devia ser mais
complicada. Assim, por exemplo, os mordomos régios de
Santarém tinham sob as suas ordens funcionários permanentes
responsáveis pela administração e pela cobrança. Podiam ter
também porteiros e saiões, incumbidos da execução de ordens
e sentenças. Quando estavam encarregados de determinadas
zonas ou funções chamavam-se «ovençais».
Tal como os senhores nos seus domínios, o rei
administra a justiça nas suas terras. Nos reguengos e
terras da coroa, fá-lo por intermédio dos mordomos, pelo
menos nos casos menores. De facto, os mordomos acumulam as
funções administrativas com as judiciais. Dada a sinonímia
dos termos «mordomo» e «vigário», não admira que também
encontremos vigários e exercer funções judiciais. Em alguns
lugares, porém, há mordomo e juiz; noutros ainda, apesar de
haver mordomos, a justiça pertence aos homens-bons do
lugar. Nos concelhos, é provável que a actividade do
mordomo fosse controlada pelo alcaide, como representante
do rei e encarregado de funções policiais.
Não se sabe bem a relação entre estes funcionários
dominiais e os juízes dos julgados, tantas vezes
mencionados nas inquirições do século XIII. Até Afonso III
estão provavelmente relacionados com a função régia e não
com a função senhorial do rei. Trataremos deles a respeito
do governo regional e local.
À medida que se generalizam as prestações em dinheiro e
se criam novas prestações de tipo fiscal, sobrepõe-se a
esta estrutura de carácter senhorial outra de carácter
estatal. A sua expressão concreta surge com o
desenvolvimento da função dos almoxarifes. Há poucas
referências a eles antes de 1250. Mas eram eles, decerto,
que cobravam a «colheita» a igrejas e mosteiros, autorizada
por uma bula de 1220. Com Afonso III, tornaram-se os
oficiais especializados do fisco e passaram a sobrepor as
suas funções sobre os mordomos.

Regalias

A bem conhecida persistência das tradições romanas na


Europa mediterrânica, e, portanto, também em Portugal, não
impediu, como vimos, que a função régia fosse contaminada
pelos conceitos feudais. Estes prevalecem até ao fim do
século XII e manifestam-se na sucessão do trono, que é
transmitido ao filho por testamento, como um bem pessoal,
na senhorializaçãodas terras foreiras, na cedência de
poderes militares, judiciais e fiscais a nobres e
eclesiásticos, nas formas de atribuição das funções
administrativas de representação régia, sob a forma de
«tenências», isto é, pela sua concessão mediante a
homenagem, na possibilidade de os respectivos detentores as
atribuírem a prestameiros, no carácter doméstico da
organização da cúria régia, etc.
A inegável superioridade da função régia acima de todas
as outras autoridades não impede a ambiguidade resultante
das noções que equiparam entre si todas as formas de poder.
Em que se baseia, pois, a superioridade do rei? Resulta, em
primeiro lugar, de ele ser especialmente responsável pela
manutenção da paz e da justiça. A sua obrigação de impedir
a subversão da ordem estabelecida impõe-lhe a luta contra
todas as formas de abuso e de violência e o direito de
julgar os nobres e outros detentores de poder. Na Península
Ibérica tem também como especial incumbência conduzir a
guerra externa contra os inimigos da Cristandade, tanto
para a defender dos seus ataques como para a dilatar pela
via ofensiva. É possível que se mantivesse também como um
legado da época tardo-romana e visigótica a noção de que o
rei, como verdadeiro detentor do poder público, tinha uma
autoridade especial sobre todos os homens livres, o que se
traduzia, no plano prático, pela capacidade para exigir
tributos de origem fiscal, como a jugada, a fossadeira e a
«voz e coima».
Estas noções, porém, não decorrem tanto de uma teoria
acerca da função régia, mas da ideia de que o rei exerce
poderes pessoais, de tipo carismático, próprios do chefe,
quer por pertencer a uma determinada linhagem marcada pelo
selo divino (o que está implícito na noção de nobilitas)
quer por se tornar uma espécie de herói, dotado de
qualidades especiais (o que se exprime pela sua strenuitas

225
pessoal). Uma dá-lhe o direito de ser rei, em virtude do
nascimento; outra confirma esse direito pelo carisma
pessoal. Daí a insistência com que os documentos referentes
a Afonso Henriques o declaram neto do magnus rex, do
inclitus Afonso VI, e com que os anais redigidos por altura
da sua morte exaltam a sua valentia (strenuitas, potentia)
e sublinham o carácter guerreiro da autoridade régia.
Mesmo num texto como a introdução à Translatio et
miracula S. Vincentii (redigido entre 1173 e 1185), marcado
pelo conceito antigo da autoridade régia, como superior a
todos os outros poderes terrestres, se pressupõe que ela se
justifica pela scientia recendi populoso, isto é, por um
certo carisma. Diz-se também, é verdade, que o rei deve
usar o poder que recebe para dilatar o culto de Deus, como
Santo Agostinho tinha ensinado na Cidade de Deus, o que
pressupõe também que o rei é o detentor do Poder por
excelência e que o manifestará com tanto mais força quanto
mais se põe ao serviço da majestade divina. Afonso
Henriques é, pois, um bom rei, porque combate com todo o
vigor os inimigos da fé.
A mesma doutrina está subjacente aos Anais de D.
Afonso, rei dos portugueses, redigidos em Santa Cruz de
Coimbra c. 1185, que exaltam sobretudo o seu valor
guerreiro como um dom pessoal. A Gesta de Afonso Henriques,
porém, um pouco mais tardia, insiste particularmente no
dever de garantir a justiça e, mais concretamente ainda, de
dar as «soldadas» aos fidalgos e de «fazer honra» aos
concelhos, quer dizer, de ser o árbitro da equidade e o
guardião da ordem estabelecida.
As expressões com que se refere o cargo régio nos
documentos da chancelaria não se afastam destes conceitos,
mas aplicam-nos à obrigação da generosidade nos dons,
sobretudo em favor da Igreja. A partir do início do reinado
de Sancho I, surgem fórmulas novas, que insistem na
obrigação de o rei cultivar as virtudes demonstradas pelos
antecessores, prevenir o futuro, administrando sabiamente
os bens temporais para utilidade dos homens, e ser exemplo
das gerações subsequentes, para garantir a paz e a
utilidade dos súbditos. Estas afirmações devem-se
provavelmente ao chanceler Julião, aquele mesmo que no fim
da sua vida inspira também, decerto, embora de maneira
muito mais inovadora, a teoria e a prática de Afonso II.
Este rei, cuja actuação já apresentámos, exprime uma
ideia bem diferente da função régia. Com efeito,
apresenta-se nas leis de 1211 como dotado de uma plena
autoridade legislativa, que exerce por si mesmo, embora
depois de consultar os prelados e vassalos. Além disso,
apresenta as leis que então promulga como decorrentes de
princípios racionais, como a «razon», o modelo do «bom
príncipe», a manutenção da paz, o direito natural, sem
qualquer referência aos preceitos divinos. Antecipa-se,
assim, à proclamação do poder legislativo do rei, que na
Península só seria afirmada por Afonso X, e mesmo ao
princípio de que o rei só deve prestar contas ao julgamento
da razão, como virá a dizer mais tarde o Liber Augustalis
(1231) do imperador Frederico II.
Apesar da impressionante precocidade desta doutrina,
muitas prescrições de 1211 são ambíguas. Aparentemente, as
leis têm um valor universal, mas, na prática, parece só se
prever a sua aplicação efectiva nos territórios
directamente sujeitos ao rei. Por isso Afonso II não deixa
de confirmar muitas cartas de couto outorgadas pelos seus
antecessores, o que significa a aceitação do regime
senhorialrembora esta prática pressupusesse também a ideia
da necessidade do controlo do rei em tal matéria e até,
talvez, da precaridade de tais concessões.
Não é menos notável o facto de em vários lugares se
afirmar a plenitude e a independência do poder régio na sua
esfera, em paralelo com o poder espiritual. Assim se faz,
segundo creio, nas palavras introdutórias das leis de 1211,
na lei contra os decretos laicales de frei Soeiro Gomes e
na doutrina expressa por mestre Vicente, legista da corte
de Afonso II, comentador das decretais dos papas e futuro
chanceler de Sancho II.
A partir de Afonso III, porém, o problema das relações
entre poder temporal e poder espiritual domina fortemente
as concepções acerca da função régia, embora não inspire,
que se saiba, nenhum texto teórico. De facto, a ideia de
que o rei é «imperador no seu reino», e, portanto, com um
poder pleno e independente do espiritual, exprime-se
implicitamente na maneira como os reis do século XIII
conduzem a sua política a respeito dos conflitos entre a
jurisdição eclesiástica e a civil, devido à sua
sobreposição em muitos pontos, quer ratione materiae quer
ratione personae. Estas lutas, todavia, não dão lugar a
qualquer forma de reflexão doutrinal, mesmo numa obra tão
directamente relacionada com elas como o De libertate
ecclesiae do bispo Egas de Viseu. Este autor procurava

226
resolver tais questões em favor da Igreja de uma maneira
pragmática e casuística, sem para isso invocar nenhum
princípio teórico, mas pressupondo constantemente o da
independência de cada um dos poderes na sua esfera.
Entretanto, no estrito âmbito da esfera civil, os reis
vão tentando explicitar a ideia da singularidade do poder
régio. Fazem-no também de maneira pragmática, enunciando as
regaliae, isto é, as prerrogativas específicas do rei.
Curiosamente, esta noção parece provir da cúria papal. Vem
expressa em bulas de 1216 e de 1217 respeitantes à
Península. A segunda fala mesmo dos iura regalia usados na
Hispânia a respeito de doações a nobres. As convicções dos
juristas de Afonso II nesta matéria têm depois uma
expressão prática no acordo de 1223 entre Sancho II e as
infantas, no qual estas declaram respeitar os forais
régios, participar no seu exército, usar a sua moeda e não
alienar os seus senhorios. Não admira, por isso, que os
especiais direitos régios se mencionem em 1236 e 1242 em
doações a favor de ordens militares. Entretanto, o Fuero
viejo de Castilla, redigido em meados do século XIV, mas
que transmite um texto do século anterior, mencionava como
direitos próprios do senhorio régio e inalienáveis a
justiça, a moeda, a fossadeira e «suos yantares». Todos
eles, como se sabe, haviam sido muitas vezes concedidos por
reis anteriores, inclusive a cunhagem de moeda. O texto
deve ser interpretado, portanto, como uma recomendação aos
reis para que nunca cedam estes direitos. Mais tarde ainda,
provavelmente a partir de Afonso III e com uma aplicação
mais sistemática por D. Dinis, generaliza-se a noção de que
o rei tem uma jurisdição própria sobre as terras ermas,
coisas abandonadas, minas, águas e caminhos.
A consciência de que o rei não pode ceder os seus iura
regalia exprime-se também em ocasiões especiais, como no
juramento de Paris de 1245, em que Afonso III promete
defender a Igreja e respeitar os costumes dos concelhos,
dos cavaleiros e do clero, mas salvaguarda o iure meo et
regniportugalensis. O mesmo declara, em termos
equivalentes, nas Cortes de Guimarães de 1250, em vários
forais a partir de 1254, assim como em leis gerais do
reino. A exaltação do poder régio recebeu então um forte
apoio da parte de textos jurídicos com afirmações
doutrinais muito vigorosas como o Fuero real e as Siete
partidas de Afonso X, que foram traduzidos em português.
Aquele utiliza, nomeadamente, a conhecida metáfora do corpo
humano e, ao mesmo tempo, do paralelismo entre Cristo como
cabeça do reino celeste e o rei como cabeça do reino
terrestre, o que eleva ao mais alto grau a dignidade do
soberano.
Estranhamente, as afirmações da superior dignidade do
rei parecem menos frequentes durante o reinado de D. Dinis,
mesmo em textos onde elas se esperariam, como os três
manifestos contra o infante D. Afonso durante a guerra
civil de 1319-1324. Perante o vigor do Fuero real, é fraca
a afirmação de que não pode deixar de se venerar o «corpo»
do rei e tudo o que diz respeito ao seu estado, honra e
justiça e de que a sua supremacia judicial é inalienável. A
supremacia da função régia também surge com grande clareza
na introdução aos estatutos da Universidade de Coimbra de
1309, em que se apresenta, como decorrente do dever de
cultivar a justiça, o de cuidar da reprodução das suas
sementes na terra; pressupõe-se, assim, que os Estudos
Gerais contribuirão especialmente para multiplicar a
justiça no reino.

Governo central

Se, como vimos, anteriormente, a monarquia portuguesa


tem um carácter feudal até Afonso III, apesar das inovações
de Afonso II, não admira que antes de c. 1250 não exista
propriamente aquilo a que chamamos o «governo central» do
País, mas uma corte constituída pelos vassalos do j séquito
real e pela criadagem de sua casa, entre os quais o rei
escolhe os que encarrega de exercer certas funções. Estas
surgem como extensões de cargos domésticos. Apesar da sua
aparente modéstia, alcançam o âmbito dos vastos domínios da
coroa e prolongam a supremacia sobre os senhores locais que
dela dependem. A organização estatal do governo, em alguns
pontos preparada por Afonso II, só se inicia propriamente
com Afonso III. Mantém algumas características feudais até
ao fim do século XIV.
Os seus principais membros são o mordomo, o alferes e o
chanceler, que desempenham respectivamente funções
administrativas, militares e burocráticas. Não se vejam
estes oficiais, porém, à imagem e semelhança de ministros
das finanças, da guerra e do interior. O mordomo
superintende na administração dos domínios régios porque
tem de garantir o abastecimento da corte; o alferes
desempenha a função simbólica de ostentar as insígnias
régias; e o chanceler toma conta de tudo o que diz respeito

227
à escrita. Têm os seus auxiliares, como o dapífero, ou
vedor, mais directamente encarregado dos abastecimentos, ou
os escribas e clérigos da chancelaria, conhecedores do
direito canónico e civil, e capazes de aconselhar o rei nas
suas relações com o clero e orientar o formalismo e a
racionalidade das decisões.
Afonso II, porém, acentua os aspectos burocráticos e
multiplica os oficiais inferiores: manda fazer um registo
dos documentos da chancelaria e livros «de recabedo» para
cada um dos oficiais mais importantes da cúria. Os
documentos do seu tempo mencionam oficiais menores, que
talvez já existissem antes, mas que agora provavelmente
adquirem responsabilidades maiores, como o reposteiro, o
porteiro, o uchão, o copeiro ou escanção, o saquiteiro, o
cevadeiro, o estrebeiro, o alfaiate, o forneiro, o
barbeiro, o falcoeiro. Alguns deles recebem do rei doações
importantes. Por outro lado, aparecem também oficiais
relacionados com o recebimento e a guarda de rendas e
impostos, como o tesoureiro, o almoxarife e o recebedor, o
que anuncia o aperfeiçoamento da organização financeira.
Apesar das perturbações da época de Sancho II, este
modelo não se deve ter alterado muito nos anos seguintes.
Só voltamos, porém, a ter uma imagem um pouco mais concreta
da corte a partir de 1258, quando Afonso III publica o
primeiro regimento da casa real. É um documento muito
elementar, mas que regista uma enumeração dos cargos
domésticos e curiais. A exiguidade dos efectivos sugere que
o rei tenha reduzido o seu número para limitar as despesas.
Aumentaram, decerto, com D. Dinis, embora não tenhamos
qualquer documento que permita averiguá-lo com rigor.
As funções estatais da corte desenvolvem-se por uma via
dupla: pelo papel que no governo régio assume o chanceler e
pela importância crescente do tribunal régio. Por um lado,
verifica-se a permanência no cargo de indivíduos que
provavelmente inspiraram as principais decisões políticas
do rei, como mestre Alberto (1142-1169), mestre Julião Pais
(1183-1215), Gonçalo Mendes (1215-1228), mestre Vicente
(1224-1236?) e Estêvão Anes (1245-1279); sabemos que a
maioria deles se rodeou de especialistas em direito e de
auxiliares que asseguravam o controlo de todas as operações
escritas: os clérigos d’el-rei. Por outro lado, surgiu a
necessidade de organizar um tribunal, cada vez mais
solicitado a intervir em processos complicados e com uma
componente técnica cada vez maior.
De facto, sabe-se que já Afonso II recrutou numerosos
juristas formados em Bolonha. Os «clérigos d’el-rei»
tornaram-se então os auxiliares indispensáveis dos serviços
técnicos, como o que guardava os dinheiros no tempo de
Afonso III, ou os que registavam as entregas e
levantamentos de rendas e dinheiro do tesouro régio, sob a
vigilância do mordomo e do chanceler, ou ainda os que
serviam no tribunal às ordens dos sobrejuízes. Note-se,
porém, que a figura do chanceler, primordial até ao fim do
reinado de Afonso III, começou a apagar-se durante o de D.
Dinis, devido ao relevo que ele então deu ao escrivão da
câmara, Estêvão da Guarda, que se tornou o seu
braço-direito para muitas decisões.
Quanto ao tribunal régio, que durante o século XII
provavelmente só serve para julgar os casos surgidos entre
os nobres ou entre estes e eclesiásticos e para punir os
oficiais régios que não cumpriram devidamente as suas
funções, torna-se mais técnico desde o princípio do século
XIII, como mostra o aparecimento do sobrejuiz (1205),
encarregado de instruir e preparar os julgamentos e de
aconselhar a sentença; este cargo, que só se torna
permanente com Afonso II, desdobra-se depois, quando surgem
dois ou mesmo três sobrejuízes, nó reinado seguinte. Nessa
altura é já seguro que o tribunal régio funciona como
instância de apelo de sentenças dadas pelos juízes dos
concelhos e começa a reservar para si as sentenças de
morte. Além disso, o rei promulga numerosas instruções de
carácter processual e regulamenta os casos em que se pode
recorrer do sobrejuiz para ele próprio, sob a forma de
«recurso de suplicação», ou «agravo». Daí o aparecimento
dos «ouvidores da suplicação», que com D. Dinis começam a
confirmar as sentenças dos «ouvidores da corte».
Afonso III também reorganiza as finanças régias.
Provavelmente os rendimentos em moeda, procedentes de
rendas, de impostos e dos tribunais, eram guardados pelos
almoxarifes e outros recebedores; os rendimentos em géneros
eram depositados nos diversos celeiros dos domínios régios,
para consumo directo da corte. Os primeiros entravam nos
vários depósitos do tesouro, por exemplo em Santa Cruz de
Coimbra, à guarda do reposteiro-mor e do almoxarife de
Coimbra, donde podiam ser levantados pelo clérigo guardador

228
dos dinheiros do rei ou pelo copeiro. Durante o reinado de
D. Dinis, o reposteiro continua a desempenhar um papel
fundamental, como superintendente dos diversos
almoxarifados do reino.
A corte funciona também como assembleia consultiva do
rei. Os seus membros têm o dever de o aconselhar, como seu
senhor, por obrigação decorrente da homenagem feudal. Estas
assembleias revestem por vezes grande solenidade, quando
reúnem os ricos-homens e os prelados do reino, além dos
vassalos da corte. Neste caso costumam chamar-se «cortes»;
mas durante a época feudal só há notícia concreta daquelas
cujas deliberações se conhecem, como a de Coimbra de 1211
ou a de Guimarães de 1250. A partir da de Leiria de 1254,
provavelmente, incluem também representantes dos concelhos,
que eram vassalos colectivos do rei. Desde aí as suas
deliberações orientam-se para questões pragmáticas e
económicas, como a quebra da moeda ou lançamento de
contribuições extraordinárias, que necessitam do
consentimento de todos aqueles que de alguma maneira
participam no Poder. Não são ainda, é claro, assembleias
representativas dos diversos «estados» do reino, como se
tornarão bastante mais tarde. Eis uma lista das anteriores
a 1325 (ver quadro abaixo).

1211 - Coimbra: leis gerais.


1250 - Guimarães: reclamações do clero.
1254 - Leiria: quebra da moeda.
1261 - Coimbra: quebra da moeda; meirinhos-mores.
1273 - Santarém: reclamações do clero.
1280 - Évora: questões com o clero.
1285 - Lisboa: inquirições gerais.
1288 - Guimarães: inquirições gerais.
1289 - Lugar desconhecido: questões com o clero.
1291 - Coimbra: reclamações da nobreza; lei sobre heranças.
1305 - Lisboa: lei sobre tabeliães e selos dos concelhos.
1323 - Lisboa: conflito com o infante D. Afonso.

Entretanto, delineava-se de maneira improvisada e pouco


estável aquilo a que podemos já chamar o «conselho régio»,
mas que é ainda apenas um grupo informal de conselheiros;
não formam um corpo político nem uma entidade governativa
antes do fim do século XIV. A sua primeira expressão
encontra-se em documentos de Afonso III, em que o rei
menciona indivíduos «do meu conselho», que podem ser
cavaleiros, ricos-homens ou clérigos. Em certos casos o seu
conjunto aparece até com relevo maior do que o resto da
cúria, como acontece, por exemplo, em 1254,1311 ou 1318; no
primeiro destes casos os conselheiros são na sua maioria
legistas; nos dois seguintes, cavaleiros e legistas.
Lembremos, por último, que a corte, além de ser uma
instância de governo, é também uma sociedade que funciona
segundo regras de comportamento especiais. É, ao mesmo
tempo, pólo da sociedade civil e completamente diferente
dela. O facto de estar ao serviço pessoal do rei e de este
ser o maior distribuidor de dons e de poder de toda a
sociedade civil torna a corte um lugar de submissão e de
luta, onde as regras do jogo de ascensão e de queda são
extremamente subtis, porque em grande parte baseadas no
domínio da palavra ou de processos simbólicos, como o
vestuário, as boas maneiras ou aquilo que desde meados do
século XIII se chama a «cortesia». Também neste sentido se
dá uma transformação essencial a partir do reinado de
Afonso III. O culto da vassalidade e das regras de cortesia

229
surge nesta época. Suscita o aparecimento de histórias
exemplares, como a que relata o feito de Egas Moniz, modelo
heróico do vassalo, criada, decerto, por seu descendente
João Soares Coelho. Inspira a maioria das cantigas de
escárnio, que se tornam, elas próprias, poderoso
instrumento de intriga e, em última análise, de arma na
luta pelos melhores lugares junto do rei. E nesta
conjuntura que a criação de títulos de concessão régia,
como os novos condados outorgados por D. Dinis a partir de
1298, se torna um factor importante. Deveria servir para
recompensar os melhores vassalos e para assegurar a sua
fidelidade. Mas não dá o resultado esperado: os condes de
Barcelos nem sempre se consideraram suficientemente
devedores do rei para se sujeitarem a ele. Como vimos já, e
voltaremos ainda a ver, as tradições feudais do Ocidente
peninsular não conseguem fortalecer o vínculo entre senhor
e vassalo. Favorecem a sua independência ou a sua servidão.
Seriam precisos ainda séculos de aperfeiçoamento até a
sociedade de corte se tornar um instrumento dócil da
vontade régia.

Governo regional e local

[Legenda de figura.]
Terras e julgados a norte do Douro em 1220.
1. Termo de Guimarães; 2. Terra de Penafiel de Bastuço;
3. Terra de Prado; 4. Terra do juiz de Bouro; 5. Terra de
Penela; 6. Terra de Neiva; 7. Terra de Faria; 8. Terra de
Anóbrega; 9. Terra de Panóias; 10. Terra de Aguiar de Pena;
11. Terra de Aguiar de Riba Lima; 12. Terra de Ponte (de
Lima); 13. Teira de Santo Estêvão; 14. Terra de Monte
Longo; 15. Terra de Celorico; 16. Terra (ou termo) de
Lanhoso; 17. Termo de Vieira; 18. Penafiel de Soaz; 19.
Termo de S. João de Rei; 20. Julgado de Pedralvar; 21.
Julgado de Travassos; 22. Santa Cruz de Sousa; 23. Terra de
Santa Maria de Gestaço; 24. Terra de Vermoim; 25. Termo do
Couto de Braga; 26. Termo do Castelo de Refojos; 27. Termo
de Ferreira; 28. Termo de Aguiar de Sousa; 29. Termo de
Felgueiras; 30. Termo de Lousada.

Durante o período que agora consideramos, a autoridade


do rei evolui de uma supervisão muito ténue sobre o reino
até uma intervenção minuciosa, mas desigual, conforme a
jurisdição predominante em cada lugar. As situações são
sempre diferentes, apesar de se poderem distinguir áreas
mais vastas, onde predomina um determinado tipo de relação
com o rei. De qualquer maneira, é difícil reconstituir a
forma como em concreto se relacionavam entre si as diversas
instâncias do Poder. Por isso, o quadro que a seguir
traçamos tem muito de hipotético.
Antes de mais, recordemos que, durante a fase de
implantação do regime senhorial, os senho-:es tinham
adquirido poderes públicos não só sobre os seus domínios
patrimoniais, mas também sobre as regiões envolventes, e

230
que, em certos casos, foram reconhecidos como
representantes do poder régio a partir do reinado de
Fernando, o Magno. Estes casos parecem ser mais frequentes
em Entre Douro e Minho, mas o sistema tende a alastrar para
leste e para sul. A situação mantém-se na época do Condado
Portucalense. Cada governador ostenta o título de potestas,
sénior, domines terrae, princeps, tenens ou imperador
terrae.
Não se pense, porém, que as «terras» se mantinham com
uma estabilidade inalterável. Até meados do século XII,
pelo menos, verificam-se subdivisões de terras e uma ou
outra anexação. As «tenências», como este mesmo nome diz,
implicavam uma relação feudal com os condes e depois com os
reis de Portugal. Mas a análise da sequência dos
respectivos detentores mostra que a maioria deles
transmitia o cargo a um membro da mesma família, embora não
necessariamente a um filho, o que aproxima a sucessão da
hereditariedade. Nas restantes terras, situadas normal,
mente na periferia de Entre Douro e Minho ou em zonas mais
próximas da fronteira (Lafões, Viseu, Trancoso, Gouveia,
Guarda, Covilhã, Seia), os seus governadores exerciam o
cargo durante períodos relativamente curtos e mudavam
facilmente de tenência, o que mostra que eram nomeados ad
nutum regis.
Durante o século XII, surge para estes governadores de
terras a denominação de «ricos-homens». Apesar de o regime
senhorial se ir consolidando progressivamente, é provável
que a sua autoridade fora dos respectivos domínios
patrimoniais fosse bastante relativa; sabemos, no entanto,
que intervinham na administração da justiça, pessoalmente
ou por intermédio de um meirinho; este assistia aos
julgamentos dos juízes locais e recebia a parte das coimas
que pertenciam ao senhor cia terra. Esses meirinhos
parecem, por vezes, dotados de prestamos, o que implica
provavelmente uma relação de carácter feudal com o senhor.
Além disso, o rico-homem tinha também a incumbência de
zelar pela paz e pela justiça e de recrutar o exército,
sempre que fosse necessário.

[Legenda de figura.]
Terras e julgados a norte do Douro em 1258.
1. Prado; 2. Neiva; 3. Aguiar; 4. Geraz; 5. S. Martinho
e Ponte de Lima; 6. Correlhã; 7. S. Estêvão; 8. Souto e
Rebordões; 9. Caminha; 10. Cerveira; 11. Fraião; 12. Pena
da Rainha; 13. Valadares; 14. Valdevez; 15. Penela; 16.
Anóbrega; 17. Bouro; 18. Entre Homem e Cávado; 19.
Regalados; 20. Lalim; 21. Vila Chã; 22. Bouças; 23. Maia;
24. Gondomar; 25. Refojos; 26. Lousada; 27. Felgueiras; 28.
Aguiar de Sousa; 29. Penafiel; 30. Portocarreiro; 31. Santa
Cruz; 32. Montelongo; 33. Travassos; 34. Vermoim; 35.
Melres; 36. Amarante; 37. Celorico de Basto; 38. Cabeceiras
de Basto; 39. Freitas; 40. Vila Nova de Guilhofrei; 41.
Guimarães; 42. Benviver; 43. Canaveses; 44. Soalhães; 45.
Baião e Penaguião; 46. Barqueiros; 47. Mesão Frio; 48.
Penaguião; 49. Panóias; 50. Miranda e Ledra; 51. Ansiães;
52. Vilarinho; 53. Valariça; 54. Mós; 55. Urros; 56. Freixo
de Espada à Cinta; 57. Mogadouro; 58. Penarroia; 59.
Ulgoso; 60. Bragança; 61. Jales; 62. Murça; 63. Alijó; 64.
Abreiro; 65. Lamas de Orelhão; 66. Vinhais; 67. Rio Livre;
68. Montenegro; 69. Aguiar de Pena; 70. Faria; 71. Penafiel
de Bastuço; 72. Couto de Braga; 73. Lanhoso; 74. S. João de
Rei; 75. Penafiel de Soaz; 76. Vieira; 77. Barroso.

231
Existem grandes dúvidas quanto à sua relação com os
juizes dos julgados, que, por vários indícios, sabemos
serem independentes dos governadores das terras. É
possível, até, que em alguns casos as áreas dos julgados
não coincidissem com as das terras. Nas inquirições de 1220
ainda aparecem circunscrições com denominações diferentes
(«tetras», «julgados» e «termos»), o que indica,
provavelmente, processos diferentes de formação dos
respectivos poderes. Em algumas zonas, sobretudo na
periferia das áreas mais senhorializadas, e provável que os
juízes fossem eleitos, mas passaram certamente a ser
nomeados pelo rei, pelo menos a partir de Afonso III.
Afonso II, apesar de ter aperfeiçoado a administração
dos domínios régios, provavelmente não alterou a
organização das terras e dos julgados. Durante o reinado de
Sancho II, verifica-se, porém, o inesperado aparecimento de
tenências muito vastas (Ribaminho ou de Lima ao Minho, do
Douro ao Lima, e Beira), o que pode significar a
apropriação de poderes de supervisão sobre os senhores das
terras tradicionais por parte de um pequeno grupo de
ricos-homens, decerto em virtude do quase vazio de poder
que se verificou nessa época. Este sistema, porém,
desapareceu desde o princípio do reinado de Afonso III.
Com efeito, este rei reduziu decisivamente os poderes
dos ricos-homens, tornando as suas funções quase
honoríficas. De facto, deve ter reforçado os poderes dos
juízes dos julgados, incumbindo-os de zelarem pelos seus
direitos em todas as terras da coroa. Ora, como o processo
de senhorialização régia o levou a estender a sua
jurisdição senhorial sobre as terras de homens livres, isto
significa que o exercia por intermédio dos juízes,
subtraindo os herdadores (outrora livres) ao poder dos
ricos-homens. Estes provavelmente só mantiveram alguma
importância nas zonas da fronteira galega e leonesa, onde
permanecia uma certa necessidade de manter a vigilância do
exército. Este esvaziamento da autoridade dos ricos-homens
foi decerto mais fácil nas terras onde não se tinha
implantado a sucessão quase hereditária das tenências. Os
títulos, porém, mantêm-se em toda a parte e implicam um
grande prestígio social. O rei continua a investir os seus
detentores pela entrega do pendão e da caldeira e não
hesita em nomear nobres de segunda categoria, com escândalo
da nobreza tradicional.
A maior responsabilização dos juízes leva a
atribuir-lhes funções de carácter senhorial, isto é, de
vigilância contra a sonegação de direitos régios, de
cobrança de rendas e de aforamento e emprazamento de terras
que ficavam sem cultivadores. Como Afonso III encarrega
então os almoxarifes de cobrarem as rendas recolhidas pelos
mordomos locais nos celeiros régios (como se deduz das
contas prestadas pelo almoxarife de Guimarães no período de
1251-1273), os juízes passam provavelmente a responder
perante eles. Têm também de dar contas aos meirinhos
regionais, aos porteiros e mesmo aos sobrejuízes, que
vigiam as suas funções judiciais e a cobrança das coimas
pertencentes ao rei. Conhecemos mal os pormenores da acção
e dos limites jurisdicionais dos meirinhos regionais, mas é
provável que fossem instituídos logo.no princípio do
reinado. Em 1261, provavelmente, o rei criou um
meirinho-mor, cujas funções definiu por meio de um
regimento, confiando o cargo a Nuno Martins de Chacim.
Segundo parece, a sua jurisdição estendeu-se a todo o
reino, mas actuou sobretudo em Entre Douro e Minho, para
reprimir os abusos detectados durante as inquirições de
1258. De facto, pensa-se que tenha sido instituído nas
Cortes de 1261. Não se sabe se tinha um carácter permanente
ou se era designado paia executar comissões
extraordinárias, mas não há dúvida de que a criação do
cargo alterou profundamente o sistema administrativo e
judicial. Enfim, durante o reinado de D. Dinis aparecem
oficiais régios especialmente encarregados de reprimir
abusos locais ou regionais, com o nome de «corregedores»,
actuando talvez sob as ordens dos meirinhos, mas o cargo só
se torna permanente a partir do reinado de Afonso IV.
O que vimos até aqui aplica-se sobretudo à área de
regime senhorial, isto é, a terras a norte da Beira. Nas
regiões de regime concelhio raramente se encontram
ricos-homens. Nos casos em que eles estão documentados, em
Lisboa, Évora ou Santarém (só no século XII), parecem ser
mais «fronteiras» do que governadores ordinários. Mais
tarde desaparecem completamente da área concelhia. Aqui a
autoridade régia passa a ser sempre representada pelos
alcaides, que iião parecem ser coordenados por nenhuma
instância regional. Os alcaides tinham como função
ordinária prender os criminosos, vigiar as actividades

232
judiciais do concelho e cobrar as multas pertencentes ao
rei. Talvez inicialmente também controlassem as actividades
dos mordomos dos domínios régios situados dentro da área do
respectivo concelho, mas esta responsabilidade, se existiu,
devia ter desaparecido com a instituição dos almoxarifes,
dos meirinhos-mores e dos escrivães das vilas, que
asseguravam o controlo dos mordomos régios em todo o País.
A importância dos escrivães aumentou ainda mais durante o
reinado de D. Dinis e reforçou-se com a criação do
guardador de selos, já mencionada noutro lugar.
Note-se bem que nenhuma das medidas mencionadas até
aqui se destinava a pôr em causa a autonomia dos senhores
nos seus coutos e honras, nem a dos concelhos nos seus
territórios. A política centralizadora de Afonso III e de
D. Dinis respeita, em princípio, a independência das
jurisdições senhorial e concelhia, quando as consideram
legítimas. Independência, porém, não implica
arbitrariedade. Manifesta-se nesta época o direito de
intervenção do rei, desde o momento em que ele considera o
seu poder como supletivo e corrector dos poderes locais
autónomos e como fonte e justificação de toda a autoridade.
Assim se vão criando as bases sobre as quais haveria de se
edificar o Estado moderno, algumas décadas mais tarde.

A centralização

Por «centralização» entende-se geralmente o processo de


concentração da autoridade política num pólo único, com
exclusão de outras instâncias de poder dentro do território
nacional. Como processo que é, tem antecedentes, fases,
graus e uma trajectória. Pelo que diz respeito ao período
de 1096-1325, não parte do zero e fica muito longe de
alcançar a sua plenitude. Esta só desponta com a edificação
completa do Estado moderno, no século XIX. O grande
protagonista desse processo é, obviamente, a monarquia. Os
seus concorrentes são, como vimos já repetidamente, os
outros detentores do poder público que o exercem com alguma
autonomia: os senhores leigos e eclesiásticos e os
concelhos. A história que vamos contar é justamente a da
limitação dos poderes senhoriais e concelhios e da
correspondente concentração de prerrogativas da monarquia.
Apesar de o processo estar apenas no começo, há uma grande
diferença entre a situação de que se parte, em 1096, e
aquela a que se chega em 1325: da monarquia feudal leonesa
(representada pelo conde D. Henrique), que não só tolera os
poderes senhoriais e concelhios, mas até colabora na sua
consolidação, a uma monarquia ainda feudal, mas já soberana
e suficientemente poderosa para ver reconhecido o seu
direito a intervir nos senhorios e concelhos e para ser
capaz de controlar o exercício dos seus poderes. Vejamos os
factos mais de perto.

O rei e os senhores

Falámos propriamente de poderes políticos, não de


conflitos de classes. Mas ao tratar da centralização
monárquica não se deve esquecer a relação do rei com o
conjunto dos detentores do Poder, que o reivindicam como
prerrogativa de classe. Entre os conflitos daí decorrentes
sobressai o do maior dos senhores, o rei, com outros
senhores poderosos. De certa maneira, trata-se de um
conflito no interior da classe dominante, visto que o rei
é, deste ponto de vista, um primus inter pares. Para manter
a sua posição superior e a consolidar, procura os seus
aliados, luta com os seus concorrentes, explora as
rivalidades que existem à sua volta. Não é possível expor
aqui os pormenores destes acontecimentos. Basta referir que
tanto os condes portucalenses com os reis procuraram
normalmente, até c. 1250, recrutar para o seu serviço
jovens de famílias galegas que procuravam Portugal para
aqui tentarem conquistar fortuna; de facto, ajudaram vários
deles a obter domínios mais ou menos vastos (Barbosas,
Soverosas, Nóvoas). Por vezes promoveram a ascensão social
de nobres de categoria inferior (Riba de Vizela), mas esta
estratégia foi utilizada sobretudo por Afonso III e D.
Dinis (Nóbregas, Briteiros, Coelhos, Vasconcelos). Estes
usaram também o processo de ajudar uma ou outra linhagem a
recuperar a supremacia perdida (Baiões) e de criar novas
famílias, dotando principescamente os seus bastardos ou
casando-os com as herdeiras de grandes casas (Sousas,
Albuquerques).
O principal meio de que se serviram os reis para se
elevarem muito acima dos outros senhores foi o da conquista
de novos territórios por meio da guerra externa. O poder
assim obtido colocou-os, de facto, numa indiscutível

233
posição de supremacia. Foi sobretudo o que fizeram Afonso
Henriques e Sancho I. Por isso os conflitos que tiveram com
os nobres podem-se considerar casos pontuais: não
representam uma tensão entre o rei e a classe senhorial.
Consequentemente, nem um nem outro deixaram de conceder
domínios e imunidades a nobres e sobretudo a eclesiásticos.
Foi certamente durante a sua época e a dos condes
portucalenses que se consolidou a convicção de que os
nobres exerciam por direito próprio poderes estatais
(senhoriais) nas suas honras ou domínios patrimoniais.
Inversamente, os dois primeiros reis portugueses
empreenderam a conquista do território com as suas próprias
forças e muito pouca colaboração das grandes linhagens.
Para isso usaram apenas os serviços da nobreza inferior.
Contribuíram, assim, para fortalecer muitas famílias de
cavaleiros, mas não lhes atribuíram honras no território
conquistado, salvo em casos excepcionais.
Tudo isto pôs à prova a capacidade estratégica do
soberano. Não há dúvida de que todos os reis portugueses
souberam tirar proveito das divisões da nobreza e de
circunstâncias mais ou menos fortuitas para manterem ou
melhorarem a sua posição num nível incomparavelmente
superior ao de qualquer linhagem. Até aqui, porém, estamos
no plano da história social. Demonstra-se a habilidade da
monarquia para tirar partido das divisões internas da
nobreza. Do ponto de vista da história política, porém,
interessa mais ainda verificar a evolução institucional.
Neste, a estratégia do rei consiste, por um lado, em manter
na estrita fidelidade uma nobreza de serviço a ele ligada
pelos laços feudais, por outro, em conquistar o direito de
controlar o exercício dos privilégios senhoriais por parte
da restante nobreza. Aqui já não se pode considerar um
primas inter pares: exerce uma verdadeira soberania.
Não podemos apresentar aqui uma análise detalhada da
maneira como a monarquia utilizou as instituições feudais
para se fortalecer. Digamos apenas que, apesar da fluidez
do feudalismo português, se encontram testemunhos
abundantes do carácter feudal dos vínculos que ligavam ao
rei três categorias de nobres: os cavaleiros e vassalos da
corte, alguns dos quais aparentados com a mais alta
nobreza, os ricos-homens, a quem ele concedia ou confirmava
tenências com governadores de terras, e os alcaides, que em
seu nome comandavam séquitos armados e guardavam os
castelos dos concelhos. A relação feudal e o sentido da
fidelidade exigida à nobreza de serviço que vivia na corte
foi-se consolidando, não tanto em virtude do
aperfeiçoamento do código feudal, mas sobretudo do
desenvolvimento das relações de corte; por outras palavras,
o conjunto dos vassalos da casa real manteve sempre um
carácter de séquito quase doméstico: perdeu a dominante
guerreira que tinha até ao princípio do século XIII, mas
revestiu a partir daí o manto da cortesia.
Pelo contrário, o vínculo feudal que ligava os ricos-
homens ao rei, em vez de se acentuar, atenuou-se. Com o
esvaziamento das suas funções, desde c. 1250, deixou de se
justificar a sua relação pessoal com o rei. Afonso III
continua a manter a ficção, chamando-lhes os «seus»
ricos-homens. Mas eles provavelmente màl sentem a obrigação
de fidelidade. Como o ritual de homenagem se reduzia ao
beija-mão ou era apenas implícito, esquecia-se facilmente o
elo feudal criado pela concessão da tenência.
Inversamente, a homenagem dos alcaides ganhou relevo e
as suas consequências foram expressamente lembradas em
muitas ocasiões, nomeadamente durante e depois das guerras
civis de 1245-1248 e de 1319-1324. Afonso III passou a
exigir-lhes que lha prestassem directamente e não por
intermédio do rico-homem, como se diz nos forais de
Melgaço, Montalegre e Monforte e em vários outros
documentos. O costume de exigir a sua renovação expressa
quando a um rei se sucedia outro, atestado na segunda
metade do século xiv, podia ter começado mais cedo. De
qualquer maneira, o rei tem o cuidado de não nomear como
alcaides nobres de categorias superiores. Garante assim
melhor a sua fidelidade e vai mantendo nas áreas concelhias
uma nobreza modesta e submissa, onde recruta alguns dos
seus melhores auxiliares.
Assim, em vez de utilizarem as instituições vassálicas
para se tornarem suseranos da grande nobreza senhorial,
como fizeram os Capetíngios em França, os reis portugueses
usaram a estratégia de impedir que os seus poderes
aumentassem. A efectiva superioridade de recursos da
monarquia permitia-lhe fazê-lo sem grandes riscos. Mesmo no
momento em que se revelou a sua fraqueza, durante o reinado
de Sancho II, as contradições internas no seio da nobreza
impediram a constituição de casas senhoriais
suficientemente fortes para que o seu sucessor tivesse de
pactuar com qualquer delas. O rei pôde, assim, reivindicar

234
muito cedo a soberania absoluta em todo o reino e foi
demonstrando concretamente a sua supremacia política em
questões essenciais.
De facto, já Afonso II afirmou, embora decerto mais em
termos teóricos do que na prática, a supremacia do seu
poder judicial em todo o reino, e concretamente o direito
de intervenção da sua justiça nos casos de homizio, quando
requerido por uma das partes, como protector dos homens
livres e como garante da integridade da casa e das igrejas
e mosteiros. A prática de confirmar cartas de imunidade
concedidas pelos seus antecessores pressupunha,
provavelmente, a ideia da precaridade das respectivas
concessões e o princípio de que só a coroa, como fonte de
todo o direito público, podia garantir a sua legitimidade.
As inquirições de 1220 destinavam-se fundamentalmente a
impedir a extensão abusiva dos direitos senhoriais, mas
tinham também implícito o princípio de que só o rei podia
exercer autoridade sobre homens livres.
Nem Afonso II nem nenhum dos seus sucessores puseram em
causa o princípio do livre exercício dos direitos
senhoriais quando legitimamente adquiridos. Afonso III,
porém, soube tirar todas as consequências práticas das
ideias expostas por seu pai em 1211. Em 1280, responde a
protestos do bispo do Porto, afirmando que os seus
delegados intervieram legitimamente no couto daquela
cidade, porque reparavam a negligência do juiz do bispo ou
por terem sido requeridos em virtude do direito de
apelação. Todavia, a intervenção régia em territórios
senhoriais devia ser rara. O mesmo rei contenta-se em
afirmar, numa lei sem data, que a única autoridade que pode
averiguar da legalidade da justiça senhorial num
determinado couto é a de quem o concedeu, isto é, o rei.
Por isso, talvez, é que os juízes de um senhorio, como o do
Hospital, em Amarante, juraram cumprir os seus deveres
perante o tabelião régio. Mesmo D. Dinis, que afirma em
1317 que «em todalas doações que os reis fazem a alguus,
sempre fica aguardado pêra os reis as apelações e a jostiça
maior e outras coisas muitas que sempre ficam aos reis, em
sinal e em conhecimento de maior senhorio», reconhece
também a legitimidade do exercício da justiça senhorial. Em
1324 declara que o porteiro do rei tem o direito de entrar
nas honras para «chamar» e «constranger» os criminosos e
malfeitores que nelas se acolhem, da mesma maneira que o
juiz o pode fazer para os habitantes do seu julgado.
Todavia, não justifica as inquirições de 1290 em virtude da
soberania régia, mas com o pretexto de que pretende impedir
que os senhorios particulares sejam invadidos por outros
nobres. A lei de 1311, que proíbe aos fidalgos adquirirem
terras em honras alheias, apresenta-se também como uma
forma de proteger os direitos senhoriais dos nobres menos
poderosos. E na lei de 1291, confirmada em 1309,
apresenta-se como o defensor dos direitos dos nobres contra
a extensão abusiva das terras eclesiásticas, para que eles
possam desempenhar devidamente a função militar, como
«defensores» que são do reino.
Enfim, quando, em 1305, promulga a lei que proíbe aos
senhores armarem vilãos como cavaleiros, pretende, antes de
mais, impedir que os concelhos a que eles pertencem sejam
prejudicados. Está, portanto, a lutar para não perder os
seus próprios súbditos. Mas nem por isso deixa de se
afirmar como senhor e juiz do acesso à classe nobre e,
consequentemente, como seu senhor: «De direito antigo e das
leis dos emperadores que entre nós forem nenhuu homem de
concelho nom pode seer cavaleiro nem haver honra de
cavalaria senom per seu rei ou per seu filho que há-de
peitar per seu mandado d’el rei.»
Este texto mostra bem o caminho percorrido desde o
princípio do século XII até à época de D. Dinis.

O trono e o altar

Embora a centralização régia à custa dos poderes


eclesiásticos seja, em alguns aspectos, análoga à que
limitou os poderes senhoriais dos leigos, verificamos que
as formas de actuação foram bastante diferentes num caso e
no outro. De facto, não se tratava apenas de limitar a
arbitrariedade de poderes senhoriais exercidos por
instituições eclesiásticas, mas sobretudo de demarcar a
competência da esfera temporal e da esfera espiritual em
matérias muitas vezes comuns, o que colocava em campos
concorrentes duas forças de natureza e com recursos muito
diferentes uma da outra. Com efeito, o âmbito supranacionai
da organização eclesiástica, dotada de uma poderosa
capacidade de intervenção e de racionalização, o carácter
sagrado, portanto superior, da sua autoridade e o facto de
o clero dispor de um código jurídico lógico, complexo e
baseado em princípios universais (o Decretum de Graciano),
tudo isto transferia as questões entre o rei e os bispos do

235
plano da luta entre o poder local e o poder central para o
plano da concorrência entre uma força nacional, temporal e
baseada nas armas e uma força internacional, sagrada e
baseada na razão. Também aqui se verificam importantes
mutações. De uma situação caracterizada pela confusão de
poderes, pelo temor reverencial do rei perante o sagrado e
por uma reduzida intervenção do papado, passa-se, primeiro,
para uma tentativa de delimitação de campos, depois, para
uma luta generalizada e violenta, e, finalmente, para o
entendimento global à custa de uma efectiva sujeição do
episcopado. Tal como nos parágrafos anteriores, pomos o
acento sobre os aspectos institucionais, remetendo para o
capítulo sobre os eventos políticos a reconstituição
sumária das vicissitudes factuais.
Durante os reinados de Afonso Henriques e de Sancho I,
a confusão de poderes é realmente manifesta. Eis alguns
exemplos: o primeiro concede os direitos «eclesiásticos» de
Leiria a Santa Cruz de Coimbra e os de Santarém aos
Templários, nomeia os bispos de Lisboa, Lamego e Viseu sem
consultar a Santa Sé e divide as paróquias de Coimbra; o
segundo confirma os privilégios eclesiásticos de Santa
Cruz, dá à Sé de Coimbra as igrejas construída e a
construir no termo da Covilhã, confirma a redução do número
de prebendas da Sé de Coimbra e a divisão dos rendimentos
da colegiada de Santarém, impõe aos bispos uma contribuição
para a diocese de Silves, intervém nas questões entre os
cónegos do Porto e o seu bispo, preside a uma contenda
entre o bispo de Coimbra e o Mosteiro de Santa Cruz, impede
os bispos das dioceses sufragâneas de Compostela de
prestarem obediência ao seu metropolita. A tal ponto que
algumas destas intervenções são declaradas abusivas pelos
papas, nomeadamente por Inocêncio III.
Afonso II, porém, com o seu habitual respeito pelo
direito, procura definir os campos, proclamando, como
vimos, a autonomia paralela dos dois poderes, cada um na
sua esfera. Em termos práticos, isenta os clérigos dos
tribunais civis, do pagamento de certas colheitas e da
prestação pessoal de anúduvas, da obrigação de darem
pousadia a oficiais régios e de pagarem tributos e foros ao
rei; reconhece que os clérigos devem ser julgados no
tribunal eclesiástico, decide apresentar os curas das
igrejas do seu padroado aos bispos das respectivas dioceses
para eles os ordenarem e promete solenemente pagar o dízimo
de todos os bens régios aos bispos das dioceses onde estão
situados. Mas também proíbe as igrejas e mosteiros de
comprarem bens fundiários, condena violentamente a
confiscação dos bens dos hereges em favor da Igreja
proposta por frei Soeiro Gomes, resiste energicamente à
transferência de poderes senhoriais para as infantas,
apesar de estas recorrerem à Santa Sé e de terem a
protecção dos Templários e Espatários.
Durante esta época, houve vários conflitos dos reis com
os bispos, mas tiveram geralmente um carácter pontual ou
fortuito. Não implicaram uma contestação mútua dos direitos
régios ou dos privilégios eclesiásticos em si mesmos.
Apesar da violência de algumas acusações de Inocêncio III
contra Sancho I e Afonso II, e sobretudo das de Honório
III, Gregório IX e Inocêncio IV contra Sancho II, não
parece verificar-se propriamente um conflito institucional
entre o rei e o clero. O aperfeiçoamento do direito
canónico e sobretudo a criação de um numeroso corpo de
magistrados locais imbuídos também de conceitos jurídicos
desde o princípio do reinado de Afonso III veio, porém,
alterar a situação.
Com efeito, a dificuldade de conciliação da jurisdição
régia com a eclesiástica mostrou-se realmente grave, devido
à irresistível tendência dos bispos para interpretarem da
maneira mais lata possível os seus privilégios e à sempre
renovada tentação dos magistrados civis para usarem a força
e a violência. A Igreja tendia a alargar a competência dos
tribunais eclesiásticos não só sobre o procedimento
religioso e moral dos clérigos, mas também sobre matéria
criminal civil, tanto sobre casos de heresia, juramento
falso, legados pios e causas matrimoniais, como sobre toda
a espécie de testamentos (sob o pretexto de que todo o
cristão devia deixar alguma coisa à Igreja) e sobre tudo o
que dissesse respeito a bens eclesiásticos. Na
interpretação dos privilégios clericais, pretendia não só a
isenção do fisco e do serviço militar dos clérigos, mas
também dos colonos deles dependentes, e com esse pretexto
recusava o pagamento de anúduvas, colheitas e contribuições
para a construção de pontes e caminhos. O direito de asilo
dos perseguidos pela justiça nos recintos sagrados irritava
os meirinhos e alcaides, que viam assim escapar-lhes não só
os criminosos de delito comum, mas também os refractários à
justiça. Pelo contrário, no processo de generalização dos
dízimos, que se arrasta longamente desde meados do século
XII até ao princípio do século XIV e que provoca grandes
resistências na população concelhia, os magistrados régios

236
põem-se muitas vezes ao lado dos recalcitrantes, protegendo
excomungados e impedindo os efeitos da suspensão ou do
interdito.
Para complicar as coisas, é preciso ter em conta que o
clero, apesar da sua disciplina, não age como um todo. Há
nele numerosas fracturas e rivalidades; consequentemente,
os conflitos entre ele e a autoridade régia ou os concelhos
complicam-se, em virtude do apoio ou da conivência de
alguns dos seus sectores. Por outro lado, é preciso ter em
conta que o recurso a Roma nem sempre parte dos sectores
maioritários do clero e que as razões invocadas nas bulas
da Santa Sé representam a argumentação dos que a ela
recorrem, ou seja, de uma das partes interessadas.
Dada a abundância dedocumentação, tudo isto poderia ser
tratado em pormenor. Não entraremos, porém, em detalhes.
Também não tentaremos a enumeração das numerosas e
complicadas questões em que se traduziu a luta do rei para
conseguir fazer prevalecer a sua autoridade, evitando,
assim, que ela fosse esvaziada pela forma como os bispos
pretendiam aplicar os privilégios, que, aliás, como vimos,
lhes tinham reconhecido sem dificuldade. Qualquer
enumeração teria de ser demasiado extensa e a selecção de
alguns pormenores mais significativos seria necessariamente
arbitrária. O que interessa, de facto, é o debate
institucional. Neste sentido, as principais e mais graves
controvérsias datam do reinado de Afonso III.
Este facto paradoxal, pois foi o único rei português
que devia a sua autoridade à Santa Sé, resulta,
evidentemente, de Afonso III ter criado um sistema
administrativo muito mais exigente e eficaz do que o
anterior. Os seus agentes eram, portanto, capazes de
responder às tentativas de extensão dos privilégios do
clero. Por isso, a luta decorrente de questões concretas
generaliza-se e torna-se mais renhida. Provoca a
intervenção dos tribunais civis e diocesanos, desencadeia o
recurso a toda a panóplia de armas, censuras e represálias
legais e ilegais.
No início, porém, é evidente o esforço dos diversos
sectores do clero no sentido de fortalecerem a autoridade
do conde de Bolonha: de facto, a Igreja era talvez a maior
vítima da desordem social que caracterizou o reinado de
Sancho II e que deixava as igrejas e mosteiros indefesos
perante as violências dos nobres e malfeitores. Mas em
1250, pouco mais de dois anos depois do fim da guerra civil
e da aclamação de Afonso, já os bispos do Porto, Braga,
Coimbra e Guarda se queixavam de violências praticadas
pelos agentes régios nessas dioceses. Podemos talvez supor
que a maioria das queixas se devesse ao facto de ninguém
estar já habituado à actuação firme e severa dos oficiais
régios. Em certos casos, porém, sobretudo no Porto,
manifesta-se um desacordo institucional: o bispo
queixava-se de que os oficiais do rei tinham entrado no
couto da cidade e desautorizado os juízes locais; o rei
respondia que o tinham feito para suprir a negligência dos
magistrados do couto ou para responderem ao apelo dos réus.
Divergências como estas, porém, parecem ter cessado,
pelo menos até o rei ter começado a tomar medidas para
fazer frente aos abusos verificados durante as inquirições
de 1258. O pedido feito pelos bispos portugueses ao papa em
1262 para legitimar o casamento do rei com D. Beatriz de
Castela mostra que a maioria dos bispos mantinha nessa
altura boas relações com ele. De facto, nem todas as
resoluções régias decorrentes das inquirições prejudicavam
o clero: pelo contrário, serviam para o defender dos abusos
e violências praticados pelos nobres em geral e pelos
padroeiros das igrejas e mosteiros em particular.
A verdade é que o conflito surge em 1266 de maneira
repentina e envolvendo todos os bispos portugueses,
incluindo aqueles que tinham sido eleitos por pressão ou a
pedido do rei (os de Viseu, Lamego, Porto, Lisboa e Évora).
Outro aspecto inédito em relação a questões anteriores
decorre de os bispos se congregarem em Roma para aí
redigirem um enorme requisitório de 48 artigos, dos quais
43 acerca das liberdades eclesiásticas e 5 acerca de abusos
no foro civil. Não se sabe como foi preparada esta
actuação, mas o facto de os bispos estarem de acordo entre
si, mesmo os antigos protegidos do rei (só Mateus de Lisboa
contesta algumas das decisões), mostra só por si a
gravidade do conflito. Surpreende, todavia, a falta de
vestígios de questões anteriores, que só se pode explicar,
em parte, pelo medo do rei, de que existem manifestações
evidentes, entre elas a de os bispos não se atreverem a
regressar a Portugal, com receio das represálias.
Por outro lado, é difícil distinguir, entre as inúmeras
acusações feitas ao rei, aquelas que tinham maior
fundamento: muitas deviam basear-se em casos esporádicos,
que os acusadores generalizavam, para mais facilmente
desacreditarem o seu adversário. Assim deve ter pensado
também o próprio papa Clemente V, que, em vez de proceder
imediatamente contra o rei, como havia feito a maioria dos

237
seus antecessores, mandou primeiro examinar as acusações,
suspendeu a excomunhão rei decretada pelo arcebispo de
Braga, estabeleceu prazos para ele se poder defender e
enviou i legado a Portugal para verificar a situação in
loco. De facto, Afonso III, como vimos, aproveitou
astuciosamente esta prudência e outras circunstâncias
fortuitas para dilatar a solução do problema até à data da
sua morte, em 1279.
De qualquer maneira, podemos agrupar as acusações em
quatro matérias principais: a primeira sobre conflitos de
jurisdição, agravados por os juízes e meirinhos régios se
sentirem detentores um poder seguro e não se deixarem
impressionar pelas censuras espirituais lançadas pelos
bispos e pelos seus delegados; a segunda relaciona-se com o
processo de implantação do pagamento dos dízimos, pois as
resistências dos fiéis eram apoiadas pelos concelhos e,
decerto, por íitos oficiais régios; a terceira diz respeito
a conflitos resultantes do processo de senhorialização
régia de terras foreiras, com a consequente apropriação
pelo rei do padroado de igrejas e a exigência de exacções
régias sobre a propriedade eclesiástica adquirida nessas
zonas, para as quais o clero pretendia a isenção fiscal; a
última engloba os problemas relacionados com as liberdades
e privilégios eclesiásticos que indicámos mais acima, e que
os oficiais régios reduziam zelosamente mínimo.
A historiografia tradicional opõe a impiedade de Afonso
III, que por pouco não morreu excomungado, à prudência e à
equidade de D. Dinis, baseada no facto de ele ter chegado a
acordos sucessivos com os bispos entre 1289 e 1309. A
verdade, porém, é que D. Dinis não foi muito mais aleável
do que seu pai. As negociações foram demoradas e os acordos
difíceis. Foi preciso vencer obstáculos graves. Vimos já,
no capítulo II, que a primeira concordata só foi assinada
ao cabo de dez anos de morosas controvérsias. O papa exigiu
garantias e os motivos de conflito não desapareceram por
completo, embora a concordata cobrisse praticamente todos
os pontos mencionados no libelo de 1268. Surgiram protestos
dos bispos do Porto, Guarda, Lamego e Viseu e depois do
bispo de Lisboa, que deram origem a novos acordos em 1292 e
1309. Houve questões com o bispo de Viseu, que o levaram a
redigir a sua já mencionada obra De libertate ecclesiae. Um
conflito grave com frei Estêvão, bispo de Lisboa, e com seu
sobrinho, bispo do Porto, levou-os ao exílio.
O que importa, porém, é que acabou por se alcançar uma
efectiva pacificação das relações entre a coroa e o clero.
Esta deveu-se, em primeiro lugar, à aplicação de normas de
delimitação das jurisdições eclesiásticas e civil: o
tribunal da coroa procurou na própria legislação canónica
os fundamentos das soluções aceitáveis por ambas as partes,
compilou essas regras e deve tê-las difundido largamente
pelos tribunais locais, para serem efectivamente aplicadas;
manteve-se, em todo o caso, o princípio de reprimir a
extensão abusiva da jurisdição eclesiástica. Em segundo
lugar, o rei deve ter acabado por desistir de incitar as
resistências à implantação dos dízimos; há numerosos
indícios de ele mandar pagar cuidadosamente os que eram
devidos pela propriedade régia. A Igreja, por seu lado,
deve ter aceitado como facto consumado a inclusão no
padroado régio das igrejas que antes de Afonso III não
tinham nenhum senhor e não protestou contra as leis de
desamortização, que D. Dinis promulgou em 1286 e depois
regulamentou em várias ocasiões. Finalmente, D. Dinis
continuou a estratégia de favorecer a eleição episcopal de
clérigos da sua confiança, e até de clérigos da cúria, o
que tornou o episcopado mais dócil e mesmo francamente
colaborante com a política régia; o enfraquecimento da
teocracia papal, impressionantemente demonstrado durante o
conflito entre Filipe, o Belo, e Bonifácio VIII, tornou
inoperante o recurso a Roma.
O último capítulo da domesticação do poder sagrado e da
aliança entre o trono e o altar consiste naquilo a que se
pode chamar a «nacionalização das ordens militares». Já
vimos os factos no capítulo sobre os sucessos políticos.
Bastará agora recordar que este objectivo foi considerado
extremamente importante. D. Dinis despendeu os maiores
esforços nesse sentido, sobretudo no caso da Ordem de
Sant’Iago, por ser aquela que tinha domínios territoriais
mais vastos e que, por estar sujeita a um mestre
castelhano, podia criar dificuldades politicas no caso de
um conflito com Castela. A tendência para a secularização
das ordens militares, que se iniciou já nesta época, mas se
arrastaria durante todo o século XIV, foi, porém, rompendo
os laços que as uniam à igreja hierárquica, impedindo-as,
portanto, de cumprirem a função de instrumentos do poder
sagrado que, até certo ponto, tinham desempenhado até
meados do século XIII.

238
Resta fazer uma breve alusão às relações dos reis de
Portugal com a Santa Sé. O problema coloca-se a partir do
momento em que Afonso Henriques se tornou cavaleiro de S.
Pedro, isto é, vassalo do papa, em 1143. Esta ligação
institucional, no entanto, teve poucas consequências
práticas, além do pagamento de um censo em ouro pelos reis
portugueses: as contrapartidas concretas por parte da Santa
Sé foram escassas: traduziram-se nas bulas de protecção
emitidas em favor de vários reis; o próprio reconhecimento
da dignidade régia a Afonso Henriques foi difícil, pois só
se conseguiu ao cabo de 36 anos de insistências. É verdade
que o censo foi pago irregularmente, o que suscitou várias
reclamações papais; parece ter caído em desuso depois da
morte de Afonso II. A própria cúria deixou de o exigir,
decerto por ter criado durante o século XIII um eficaz
sistema de fiscalidade pontifícia, que tornava as
contribuições dos reis menos necessárias. Mesmo assim,
quase todos os reis portugueses, incluindo Afonso III e D.
Dinis, deixaram nos seus testamentos importantes somas de
dinheiro para o papa e exprimiram neles a sua devoção
pessoal para com o sucessor de S. Pedro. O reconhecimento
da vassalagem foi feito por todos até Sancho II, e o
próprio Afonso III pediu ao papa que confirmasse o seu
testamento, «como senhor do meu corpo e da minha alma».
De facto, o rei não podia prescindir do sancionamento
sagrado do seu poder, não já em virtude de um carisma
pessoal, mas graças à instituição divina da função. Embora
reivindicasse a autonomia face ao poder espiritual e
exigisse a submissão civil do clero, sempre esperou dele o
apoio religioso de que necessitava para exercer eficazmente
a sua soberania.

O rei e os concelhos

Tendo-se tornado, não apenas na teoria, mas também na


prática, o juiz e senhor dos nobres, e renovada a noção do
Poder como sagrado, restava ao rei, para concentrar em si
todas as forças políticas, definir os limites da autonomia
dos concelhos. Foi certamente o ponto mais fácil do
programa de centralização. O próprio reconhecimento da
independência administrativa de cada concelho por meio do
respectivo foral implicava, como contrapartida, a sujeição
e a obediência. De resto, a possibilidade de resistência
era limitada. Mas a sujeição não significava
necessariamente passividade.
De facto, não há revoltas abertas. Os próprios
concelhos mais fechados e coesos, como os da Beira
interior, aceitam a representação régia por meio de
alcaides, a administração dos reguengos pelos mordomos e as
cobranças fiscais pelos almoxarifes. Mas também não se
submetem passivamente ao seu livre arbítrio. Encontram-se
facilmente protestos e reclamações contra eles, sobretudo a
partir de 1250, quando as suas exigências se tornam mais
prementes e a sua actuação mais cerrada. De facto, já
Sancho II ordenava em 1227 aos alcaides e outros oficiais
seus que não interferissem na actividade judicial dos
alvazis de Lisboa. Mas as primeiras reclamações de que há
notícia detalhada, que provavelmente datam de 1250,
devem-se ao facto de Afonso III não ter respeitado o
direito de o concelho de Coimbra eleger os seus alvazis, de
ter confiscado pauis do concelho de Montemor-o-Velho, de
abusar na exigência de anúduvas em Marvão, de os seus
alcaides e ricos-homens desrespeitarem a isenção concelhia
de pousada, de os alcaides abusarem na prisão de réus e nos
tributos do açougue.
Neste momento, porém, os concelhos esperavam
provavelmente que Afonso III cerceasse excessos praticados
pelos alcaides por sua conta e risco; é provável que o rei
procurasse reprimir os seus abusos. Mas as reclamações
contra mordomos, porteiros e almoxarifes não podiam ser bem
recebidas. Pelo contrário, o rei só pode apoiar a sua
severa exigência de tributos e o seu zelo na detecção de
manobras dos cidadãos para escaparem ao fisco, só pode
incitar à minúcia com que reclamam o pagamento de portagens
e açougagens sobre produtos novos e pequenas coisas, só
pode exortar ao rigor com que arrebanham gente para reparar
muralhas, abrir caminhos e construir pontes. De facto, os
agentes de centralização não são os alcaides, mas os
porteiros, meirinhos e almoxarifes.
Com D. Dinis acentua-se a tendência para julgar em
tribunal os protestos dos concelhos. Na época anterior tudo
se resolvia casuisticamente e esperava-se o favor ou a
clemência do rei; agora impõem-se as regras gerais. Em vez
do respeito pelos privilégios antigos, prevalece a
invocação de práticas uniformes. Os concelhos, por seu
lado, organizam-se para defender os seus direitos. Surgem
nesta altura os seus procuradores permanentes junto da
corte, sujeitos, segundo parece, a confirmação régia.

239
Em Beja eram eleitos pelo alcaide, alvazis e homens-bons.
Mas nem neste caso o rei deixa de se intrometer. Um
documento de Évora de 1293 refere a sua protecção a dois
procuradores de que o concelho se queixa. Noutros casos, e
isto já desde a época de Afonso III, o rei apodera-se de
matas e baldios dos concelhos, manda entregar terras
sesmeiras a privilegiados, apesar dos protestos comuns,
intervém na distribuição das presúrias.
Estas tensões mostram os avanços da centralização régia
e a debilidade das resistências concelhias. A integração
das comunidades municipais no vasto organismo político,
coordenado por um governo único, não resulta apenas da
progressiva intromissão dos funcionários régios nos campos
fiscal e judicial, mas também de uma estratégia política,
que consiste em apertar os laços senhoriais que unem os
concelhos ao rei, como seus vassalos colectivos. De facto,
tudo indica que eles prestassem uma homenagem expressa de
fidelidade, renovada, talvez, no princípio de cada reinado
e quando o rei visitava pessoalmente a localidade. Sabemos
que a cerimónia incluía o beija-mão e a prostração em
terra.
Um documento de D. Dinis alude expressamente à
homenagem dos concelhos, mas refere-se também à fidelidade
«natural» ao rei, isto é, não apenas do município como
colectividade e em virtude da homenagem, mas também de cada
um dos seus membros, em virtude da qualidade de súbditos.
Esta noção encontra-se já, provavelmente, no testamento de
D. Dinis de 1299 e na lei de 1305, que proíbe aos nobres
armarem cavaleiros entre os vilãos dos concelhos.
A emergência da noção de «natureza» aplicada aos
súbditos está relacionada com as primeiras proclamações
públicas da ideologia monárquica. Aparecem em 1305, num
discurso feito pelo meirinho-mor João Simão, em Santarém,
para reclamar a restituição ao rei de várias lezírias, em
que ele apresenta as acções dos primeiros reis de Portugal
como aquelas que haviam instaurado a ordem justa de todas
as coisas. A resposta do concelho manifesta um
correspondente reconhecimento da soberania régia.
A especial relação de D. Dinis com os concelhos
manifesta-se ainda pelo facto de ele se apresentar como seu
especial protector. Na verdade, declara-se defensor dos
seus interesses, ao proibir os nobres de armarem cavaleiros
os seus cidadãos, censura as pousadias de ricos-homens,
infanções e cavaleiros em terras municipais, protege-os
contra abusivas sentenças de excomunhão, restringe os
privilégios dos clérigos de ordens menores casados para não
prejudicarem a fiscalidade concelhia. Mais ainda: no seu
testamento de 1299 instituiu um conselho de regência para
assistir a rainha enquanto o herdeiro fosse menor, do qual
deveriam fazer parte cinco eclesiásticos, um nobre e seis
homens-bons eleitos pelos concelhos das principais cidades
do reino. Estes viveriam na casa do príncipe herdeiro e
teriam os ofícios que a rainha lhes confiasse. Este
conselho nunca funcionou, mas a sua composição mostra bem
que D. Dinis tinha mais confiança na fidelidade dos
concelhos que na dos nobres. Foi neles e nas suas tropas
que depois procurou apoio, durante a guerra civil de
1319-1324.
A sua confiança, porém, talvez fosse excessiva. Não
obteve toda a força de que necessitava, ao menos a julgar
pelos relatos da Crónica de 1344. De facto, é provável que
a lealdade concelhia fosse menor do que imaginava.
Confundia, decerto, a benevolência dos mercadores e
homens-bons que frequentavam a corte com o sentir comum dos
vilão. Estes não podiam esquecer facilmente a actuação
minuciosa e implacável dos almoxarifes, a apropriação de
matas e baldios, os favores a fidalgos à sua custa, o
desprezo pelas sentenças dos alvazis ignorantes do direito
romano, os frequentes atentados contra a autonomia das suas
instituições. Além disso, D. Dinis exige a autenticação dos
documentos municipais com o seu próprio selo e confia-o a
funcionários seus e não aos magistrados locais ou aos
tabeliães, obriga os juízes eleitos a apresentarem-se à sua
confirmação, julga contra os concelhos inúmeros processos
em que eles reclamam contra os seus oficiais, não regista
por escrito os capítulos do terceiro estado apresentados em
cortes.
Assim, o favor do rei não compensa a perda de
autonomia. Tanto mais que dispõe dos concelhos como de
terra de seu pleno e total senhorio: cede-os, «com todos
seus direitos e com o senhorio deles», a donatários da
família real, sobretudo a rainhas, infantes e bastardos,
que passam a receber os respectivos direitos, a nomear os
oficiais que os representam e a julgar em primeira
instância os recursos contra as sentenças dos tribunais
locais. Preparava, assim, o caminho para as benesses a
privados da casa real com bens dos concelhos, que se
tornariam uma prática corrente durante o século XIV.

240
Nem tudo, portanto, é indício de «modernidade» no
capítulo da centralização política à custa dos concelhos.
Não se pode negar, porém, que ela os obriga a abandonarem o
antigo sistema de resolverem sozinhos os seus problemas,
com inteiro desprezo pelos dos outros. Ao integrá-los num
corpo político de dimensões nacionais e ao submetê-los às
mesmas regras administrativas e jurídicas, convida-os
implicitamente a coordenarem entre si a luta pelos seus
interesses comuns. A centralização política reforça, assim,
os laços materiais, que, por seu lado, o desenvolvimento da
economia de mercado estendia cada vez mais entre as cidades
e daí se prolongava por todo o território nacional, até às
fronteiras do reino.

Regnum

Portugal, como vimos inicialmente, é constituído por


uma série de unidades tendencialmente autónomas, os
senhorios e os concelhos. Sobrepõe-se-lhes um poder
político de conjunto, a monarquia, ao princípio com uma
influência superficial sobre elas e depois com poderes de
intervenção cada vez maiores: o rei tende a estender sobre
todo o território o tipo de autoridade que exerce sobre os
seus domínios patrimoniais. Trata-se, agora, de averiguar
até que ponto o vínculo imposto de cima pelo rei vai ao
encontro de forças profundas e espontâneas, que tendem de
per se a associar num conjunto mais vasto os elementos
iniciais, e, em segundo lugar, de descobrir quando e como
começa a emergir a noção de identidade nacional.

Coesão

Vimos inicialmente como o Norte de Portugal se opõe ao


Sul, o litoral ao interior e a área senhorial à concelhia.
As diferenças são tão profundas que a primeira surpresa
resulta de, apesar disso, se ter edificado com elas um
país. Que formas de associação das unidades de base se
encontram em Portugal para além da sujeição ao mesmo rei?
Podem-se descobrir os seus antecedentes nas
circunscrições administrativas da época romana. Estas, por
sua vez, correspondiam de algum modo a conjuntos étnicos,
que até agora não foram ainda suficientemente estudados. De
toda a maneira, podemos tentar uma aproximação deste nível
da realidade a partir do Parochiale suevo do século VI e da
enumeração das dioceses do século VII. Vários estudos
posteriores a 1950 mostraram que um certo número de
paróquias suevas persistiram até à plena Idade Média, sob a
forma de arcediagados eclesiásticos ou de julgados e terras
civis. Cada um destes territórios abrangia vários senhorios
ou concelhos, o que significa que o agrupamento regional
das unidades de base se manteve com uma certa estabilidade
durante muitos séculos, apesar da debilidade dos vínculos
administrativos ou da sua ausência entre o século viu e o
século IX: sinal de que tais divisões correspondiam
aproximadamente a regiões geográficas «naturais». Deve-se
notar, no entanto, que a sua permanência é mais evidente em
áreas pouco povoadas do que nas de maior densidade
populacional. Nestas, a pressão demográfica parece obrigar
a alterar os quadros anteriores. Constituem o terreno
privilegiado onde se podem captar os recursos que fazem de
certas cidades os pólos fundamentais de uma organização
territorial mais vasta e que lhes conferem a possibilidade
de exercer um papel hegemónico em relação a regiões mais
extensas. Convém, portanto, não exagerar o significado da
permanência dos conjuntos territoriais com raízes na época
sueva: é maior nas regiões «passivas» do que nas «activas».
Não existe qualquer documento equivalente ao Parochiale
para o território a sul do Mondego. Pensa-se, porém, que a
rede das antigas civitates governadas por duques ou condes
na época visigótica se manteve aproximadamente através das
kuwar (plural de kura) da época califal e que estas se
dividiam em iklims. No território português, aquelas
correspondiam, aproximadamente, às dioceses; é possível que
estas equivalessem às paróquias. Conhecemos a rede das
primeiras no século x e a sua evolução posterior, em
virtude de algumas alterações devidas a transferências de
comandos militares e judiciais. Das segundas pouco se sabe.
A função administrativa das cidades vem igualmente da
época romana. É também através da organização eclesiástica
que melhor conhecemos a evolução da estrutura territorial
urbana desde a Antiguidade até à Idade Média. Aqui, temos
dois níveis: o das dioceses e o das províncias

241
[legenda de figura.]
Rede viária medieval (segundo Júlia Galego, João C.
Garcia e M. F. Alegria), A reconstituição das principais
vias medievais aqui apresentada é feita pelos seus autores
a partir dos itinerários de D. Dinis. Representa bastante
bem, decerto, os principais caminhos do Centro e do Sul,
mas deve-se considerar incompleto para o Norte do Douro e o
Algarve (que o rei frequentou menos vezes).

242
Eclesiásticas ou metrópoles. Estas correspondem exactamente
às províncias civis da reorganização de Diocleciano.
Verificada a impressionante permanência das dioceses,
apesar do atrofiamento urbano da Alta Idade Média, não só
no Norte cristão, mas também no Sul muçulmano, temos de
reconhecer o vigor da sua base «natural». As alterações à
configuração dessa rede são todas posteriores ao fim da
Idade Média. Sinal de que as funções administrativas
atribuídas às cidades episcopais durante os séculos XII e
XIII não fizeram mais do que confirmar uma influência
territorial que elas exerceram permanentemente, não só no
campo religioso, mas também no económico e no militar. Não,
porém, no civil, por razões nem sempre fáceis de explicar,
mas que se prendem, grosso modo, com a estratégia da
monarquia de se relacionar directamente com as unidades
humanas de base — senhorios e concelhos —, evitando sempre,
até à época moderna, criar um patamar intermediário entre
elas e o poder central e desprezando, portanto, a
possibilidade de utilizar as unidades regionais como
escalões administrativos.
A associação de dioceses em províncias eclesiásticas
prende-se já com forças de grau equivalente ao nível
nacional. Dá lugar a ásperas controvérsias, que se arrastam
desde o fim do século xi até ao fim da Idade Média. Estas
são extremamente interessantes, porque iluminam o terreno
em que se digladiam os poderes supra-regionais políticos ou
eclesiásticos, as tradições administrativas antigas e os
factores que vão alterando os seus fundamentos, isto é, a
demografia e a economia. Em termos muito genéricos,
assiste-se, por um lado, à tentativa de traduzir no plano
eclesiástico as ambições hegemónicas galegas e
castelhano-leonesas, centradas em Compostela ou em Toledo,
e, por outro, ao esforço de introduzir num novo ordenamento
as alterações decorrentes das mutações demográficas,
económicas e políticas. Estas exprimem-se através do
crescente protagonismo português, concorrente do galego e
do castelhano-leonês. Do ponto de vista eclesiástico,
parece estar centrado em Braga e traduzir a restauração de
direitos antigos. Na realidade, exprime antes a emergência
sucessiva do Porto, Coimbra e Lisboa. A abundante
documentação diocesana e pontifícia ilumina os pormenores
desta luta e permite ir verificando o progressivo
esquecimento de importantes fronteiras antigas e o
aparecimento de novas associações territoriais. A solução
de compromisso finalmente decretada por Roma prolonga
soluções arcaicas, mas esvaziadas do seu significado, como
acontece quando atribui a Braga, metrópole da Galécia, a
jurisdição sobre a maioria das dioceses galegas e a
Compostela sobre a maioria das dioceses da antiga
Lusitânia. Mas a realidade política não deixa de
influenciar também esta solução, enquanto mantém sob a
jurisdição de Braga as dioceses de Coimbra, Viseu e Lamego,
outrora da Lusitânia, invocando como antecedente a sua
dependência de Braga nos séculos VI e VII.
O que importa aqui não é tanto a solução descoberta
pelos tribunais eclesiásticos, mas o facto de ela traduzir
indirectamente o poder hegemónico da área portucalense,
escondido por detrás do reconhecimento dos direitos
bracarenses. Este poder revela-se também em indícios muito
diferentes, como, por exemplo, nas referências a «terras» e
territórios mencionados em documentos dos séculos XI e XII.
Aqui, com efeito, além de se mencionarem terras menores
(algumas delas correspondentes a antigas paróquias suevas),
refere-se muitas vezes o «território portucalense», que
coincide aproximadamente com a diocese do Porto, mas a
excede em vários pontos, mesmo antes de 1096. Este facto, e
o nome dado ao Condado Portucalense, mostra que a concessão
de Afonso VI não é resultado de uma decisão arbitrária:
corresponde à capacidade expansiva do seu território,
concretamente à sua grande densidade demográfica e ao
movimento emigratório da sua população para as áreas
circundantes. Embora o Porto seja um centro urbano era
crescimento desde a época sueva, o protagonismo
portucalense não se baseia tanto na sua influência urbana,
mas na expansividade demográfica da sua área rural.
Este último fenómeno explica que se tenha podido mudar
facilmente a residência do príncipe Afonso Henriques de
Guimarães para Coimbra pouco depois de 1130, continuando
ele a intitular-se totius Portugalensisprovinde princeps e
depois Portugalensium rex, e que os seus súbditos se chamam
«Portucalenses», mesmo quando vêm de Coimbra ou de Viseu.
Pressupõe-se, portanto, que o poder do rei lhe vem da sua
autoridade sobre Portucale. O uso da chancelaria pode mesmo
justificar-se por os seus principais auxiliares serem gente
do Norte. De qualquer modo, a linguagem revela também aqui
a capacidade expansiva do além-Douro.
Sendo assim, não admira que a antiga prevalência do
Douro como divisória fundamental entre as antigas
províncias romanas da Galécia e da Lusitânia, que os
clérigos de Braga, Coimbra e Lisboa não esquecem até

243
quase ao fim do século XII, tenha persistido menos
longamente na chancelaria régia e nos documentos civis,
donde desaparece algumas dezenas de anos antes.
Assim, apesar da superficialidade do vínculo que
sujeita os senhorios e concelhos ao rei de Portugal, tem de
se reconhecer que a sua autoridade política se baseia
igualmente na supremacia demográfica de Portucale e na sua
capacidade de dominar uma área bem mais vasta do que a
diocese do Porto. Esta supremacia tem antecedentes na época
sueva, mas vence com dificuldade a antiga tradição da
oposição entre a Galécia e a Lusitânia. Agora, a partir do
momento em que o centro do Poder se situa em Coimbra e não
já no Norte e em que a autoridade monárquica se estende não
só à cidade do Porto, mas também às de Braga, Coimbra,
Viseu e Lamego, podemos pensar que a autoridade régia tende
a fortalecer a influência que cada uma destas cidades
exerce sobre o respectivo território, criando-se, assim,
uma relação mútua entre o vínculo político que associa
essas cidades entre si e o vínculo económico-administrativo
que elas exercem sobre as suas respectivas circunscrições.
De facto, as cidades têm uma influência determinante na
estruturação do espaço nacional. São elas os verdadeiros
centros ordenadores do território. A sua aglutinação sob um
poder único uniformiza também a sua acção sobre o espaço
nacional.

[legenda de figura.]
Número de visitas de D. Dinis às diversas localidades
do reino e duração média das estadas de D. Dinis os mesmos
lugares. Estes dois mapas, desenhados também sobre os de
Júlia Galego, João C. Garcia e M. F. Jegria, pretendem
representar graficamente os lugares do reino mais vezes
visitados por D. Dinis e, por outro ido, aqueles em que ele
permaneceu durante mais tempo. Embora as áreas visitadas
coincidam, grosso modo, om aquelas em que ele ficou mais
tempo, pode-se notar facilmente que o número de lugares em
que o rei stava mais de 15 dias é relativamente reduzido.

244
Todos os reis portugueses o compreenderam
perfeitamente: Afonso Henriques, que teve como objectivo
prioritário a conquista das cidades de Santarém, Lisboa e
Évora e quis apoderar-se de Badajoz; Sancho I, que tentou
conquistar Silves e conseguiu resistir a Yusuf I,
defendendo Santarém; Afonso II, que residiu muito tempo em
Lisboa e Santarém; Afonso III, que baseou o enriquecimento
da coroa na economia citadina e a reorganização
administrativa na rede urbana; D. Dinis, que continuou a
obra de seu pai e deu especial atenção às cidades de
fronteira.
De facto, foi através do domínio efectivo de uma rede
de cidades que o poder régio se consolidou. A política de
centralização a que nos referimos e que fez do rei o senhor
dos senhores e o vencedor da teocracia episcopal teria sido
impossível se não se baseasse sobre o domínio efectivo das
cidades, beneficiando, assim, da sua natural capacidade de
aglutinarem os seus respectivos territórios. O poder
monárquico tornou-se dominante pelo facto de associar entre
si os fulcros e eixos de um território constituído por
unidades muito diferentes umas das outras e de contribuir,
assim, não só para fortalecer o vínculo de cada uma delas
com o seu termo, mas também para que se estabelecessem
entre si circuitos económicos, políticos e culturais, que,
afinal, contribuíram também para activar o seu papel
urbano. As profundas diferenças dos territórios que delas
depen-diafti acabaram por deixar de ser um factor de
divisão, para dinamizarem as trocas, visto que os recursos
eram variados e as carências de umas podiam ser colmatadas
pela produção das outras. As cidades episcopais, centro de
regiões com certas afinidades, não exercem, porém, um papel
administrativo especial: do ponto de vista do rei, não se
distinguem de concelhos menores, cuja influência
territorial era bem mais reduzida.
Podemos ter uma imagem da utilização dos circuitos
urbanos e da intensidade das relações que ligavam entre si
os respectivos centros através dos itinerários régios e da
sua evolução no tempo. Eles mostram com bastante precisão a
rede viária nacional e, até certo ponto, a intensidade dos
fluxos que ligavam esses centros entre si. Verificamos,
assim, a precocidade de um fenómeno que ainda hoje se
manifesta com toda a intensidade no nosso país, a saber, a
hegemonia da fieira de cidades do litoral sobre o resto do
território e tendência para a marginalização do interior.
Assim, as diferenças regionais não desaparecem, mas
surgem como expressão de conjuntos naturais. É o que se
verifica numa das primeiras manifestações da futura divisão
provincial portuguesa, no testamento de D. Dinis de 1299,
onde distingue os concelhos de Entre Tejo e Guadiana, da
Estremadura, de Entre Douro e Mondego, da Beira e de Entre
Douro e Minho. Este agrupamento de concelhos parece
corresponder às comarcas dos corregedores do século XIV. De
facto, esvaziada a antiga divisão em «terras» que, de
resto, só existia propriamente no Norte, só volta a
encontrar-se alguma coisa de equivalente com a criação das
comarcas judiciais da época moderna.
Estas regiões estão em contacto umas com as outras por
intermédio do rei e dos funcionários régios que as visitam,
mas também pelas deslocações dos mercadores e almocreves,
dos procuradores dos concelhos, almoxarifes, meirinhos e
corregedores, e ainda dos emigrantes, que abandonam as suas
terras demasiado povoadas para tentarem a sorte noutro
lugar. Como se sabe, a corrente migratória sempre foi
dominada pela orientação norte-sul. Alimentou
constantemente a miscigenação e favoreceu as trocas não só
económicas mas também culturais. Neste sentido, foi um dos
grandes factores da unidade nacional. A zona de trocas mais
intensas foi a Estremadura, centro de atracção de todo o
País, pela prosperidade das cidades de Lisboa, Santarém e
Coimbra e pelo facto de aí ter sido possível aumentar
consideravelmente a ocupação do solo por meio do povoamento
do hinterland. Não admira que o rei estabelecesse aí o
centro do poder político e daí dominasse todo o seu reino.

Identidade

Vimos que na segunda metade do século XII ainda havia


clérigos que continuavam a considerar Portucale uma unidade
distinta de Coimbra, embora outros em 1098 chamassem já
«Portucale» ao conjunto dos dois condados. Esta designação
acaba por prevalecer devido à capacidade expansiva do
Norte. Há, portanto, um fenómeno objectivo na base da
formação da identidade política portuguesa. Não basta isto,
porém, para se poder concluir daí que a respectiva
população adquirisse desde logo a consciência de formar uma
comunidade humana autónoma. Muito menos, como é óbvio, para
admitir qualquer espécie de manifestação de uma consciência
nacional, fenómeno que só se encontra propriamente no

245
século XIX. Trata-se aqui de tentar averiguar como se vai
criando nos Portugueses o sentimento de pertencerem a uma
nação diferente de qualquer outra da Hispânia e da
Cristandade. Como é evidente, as manifestações deste
sentimento dependem enormemente do nível e dos padrões
culturais do grupo humano que o exprime. É preciso,
portanto, distinguir os clérigos dos nobres e ambos dos
camponeses e vilãos dos concelhos. Entre os primeiros, os
da corte ocupam um papel fundamental, devido à função
ideológica que desempenham e aos meios de difusão das suas
ideias de que dispõe a monarquia.
O pensamento dos clérigos da chancelaria exprime-se de
duas maneiras logo no princípio do governo afonsino: nas
fórmulas de intitulação dos condes e do rei, que se referem
constantemente a Portugal ou aos Portucalenses (em
contraste com as de D. Henrique e de D. Teresa, que
mencionavam quase só o grau hierárquico e o parentesco com
o rei de Leão), e nos desenhos que servem je sinais de
validação, que, também por oposição aos anteriores,
ostentam o nome de «Portugal»; este nome aparece sozinho de
1128 até 1142, e depois, até 1150-1160, juntamente com o do
rei. Estes usos da chancelaria mostram que os notários
consideravam a independência alcançada por Afonso Henriques
como o resultado de um esforço comum e não tanto do seu
mérito pessoal. Esta convicção parece dominar até o seu
carisma pessoal vir a absorvê-la durante a década de 1150,
isto é, depois da conquista de Lisboa. Fenómeno que de
alguma maneira se pode também considerar expresso na Gesta
de Afonso Henriques, na qual se atribui a vitória da
Batalha de São Mamede à ajuda prestada por Soeiro Mendes ao
infante D. Afonso.
A partir da década de 1150 prevalecem os indícios do
reconhecimento da personalidade do rei, mas a sua
vinculação com os seus dependentes transparece da constante
intitulação rex portucalensium. Por outro lado, em data
desconhecida, mas provavelmente para o fim do mesmo
reinado, parece ter-se começado a representar o escudo
régio nos selos dos documentos solenes; o seu uso torna-se
cada vez mais frequente com Sancho I, sobretudo depois da
conquista de Silves. Dada a provável relação deste escudo
com a Batalha de Ourique e com o pavês de Afonso Henriques,
não pode deixar de se relacionar este símbolo da autoridade
com as suas conquistas. O escudo recorda, portanto,
implicitamente, a participação colectiva do exército nas
empresas do seu rei. Lembra o mesmo que o título rex
portucalensium. Trata-se de um símbolo pessoal, mas
transmissível tos herdeiros do trono; envolve
automaticamente todos os membros da sua casa e todos os
seus vassalos, os seus domínios e os homens que neles
habitam. Os vassalos devem ver no escudo o sinal do vínculo
a que se sujeitaram pelo juramento de homenagem e os
dependentes dos domínios considerá-lo como o símbolo do
senhorio a que têm de obedecer. Assim, tanto o título de
rex portucalensium como o escudo real devem ser
interpretados em função do contexto feudal predominante até
à época de D. Dinis, embora a política centralizadora deste
rei e de seu pai, ao procurarem equiparar a sua autoridade
sobre o reino à que exerciam sobre os domínios patrimoniais
da coroa, os levasse a envolver na mesma noção de
«portugueses» não só os seus vassalos e dependentes, mas
todos os habitantes do reino.
A própria alteração das armas régias exprime esta mesma
evolução. Com efeito, inspirada, segundo parece, pela
própria configuração do escudo como arma de defesa ou como
pavês, tinha, ao princípio, um aspecto predominantemente
militar. Estilizadas, em seguida, pela redução e disposição
dos escudetes e pela redução dos besantes em cada um deles,
tornam-se uma representação heráldica identificadora da
soberania régia, da força no combate com os inimigos e da
autoridade senhorial. Com Afonso III, porém, enriquecidos
com a bordadura de castelos, exprimem não só a descendência
castelhana do rei pelo lado materno, mas também a sua
autoridade sobre numerosas vilas e fortalezas. Com efeito,
estas tinham o castelo ou as muralhas como símbolo; a
partir da mesma época, começam a representá-las encimadas
pelo escudo régio. Há, portanto, uma relação recíproca
entre os novos selos e bandeiras dos concelhos e o novo
brasão do rei. O juramento de homenagem que, segundo vimos,
os concelhos lhe prestavam confere a este facto um
significado muito preciso. Enfim, a Gesta de Afonso
Henriques, por sua vez, ao classificar os súbditos do
príncipe em duas categorias fundamentais, os fidalgos e os
concelhos, e ao definir a relação recíproca que os une como
decorrente do dever de justiça-fidelidade, confirma também
o significado feudal que aqui atribuímos ao escudo régio.
Entretanto, a evolução do conceito de regnum contribui
também para consolidar a extensão da noção de fidelidade.
De facto, já no relato sobre os milagres de S. Vicente o
chantre Estêvão de Lisboa usa a palavra com o sentido de

246
território sujeito ao rei, embora profundamente vinculado à
sua pessoa. De facto, a fórmula possessiva usada pela
maioria dos reis portugueses, sobretudo nos seus
testamentos, deve-se associar à predominância da noção
feudal. Afonso II, porém, usa já a palavra em sentido
absoluto («todalas partes do reino», quae debueris habere
regnum), e não apenas com um possessivo. O mesmo acontece
em muitas leis de Afonso III e no testamento de D. Dinis.
Nestes textos, «Portugal» aparece já como uma entidade
definida por si mesma, independentemente de qualquer
relação pessoal com o soberano, como nas expressões «regnar
em Portugal», «cativos de Portugal», «regnos de Portugal e
do Algarve». Aqui, como é evidente, a noção predominante é
a do território. Um território obviamente definido pelas
fronteiras que paxá o mesmo D. Dinis mereceram uma atenção
tão grande.
Todos os textos a que aqui aludimos, excepto os
Milagres de S. Vicente e a Gesta de Afonso, Henriques,
procedem da corte ou mesmo da chancelaria régia. Exprimem,
portanto, a ideologia do meio mais interessado em exaltar e
estender a autoridade monárquica. Causa, por isso, uma
certa surpresa verificar que na corte não se produz
qualquer escrito historiográfico para perpetuar a memória
das acções régias antes da segunda metade do século XIV, ou
seja, antes da pequena Crónica breve do Arquivo Nacional.
Os escritos anteriores em que se referem as acções dos reis
de Portugal procedem primeiro de Santa Cruz de Coimbra,
depois de cortes senhoriais, como a do conde D. Pedro de
Barcelos. Mesmo a perdida Crónica galego-portuguesa de
Espanha e de Portugal, que deu origem à IV Crónica breve de
Santa Cruz de Coimbra, parece nascer numa corte senhorial.
Assim, depois de o Mosteiro de Santa Cruz ter desempenhado
uma função ideológica tão importante para exaltar a memória
de Afonso Henriques nos Annales domni Alfonsi
portugallensium regis, onde.o equipara aos reis de outras
nações da Cristandade, a corte não recorreu à forma mais
elementar da elaboração ideológica, que é a historiografia,
para reforçar o seu programa de centralização política. A
única manifestação do apelo à memória dos reis anteriores
que encontrei antes da morte de D. Dinis foi o breve resumo
do discurso do meirinho-mor João Simão perante o concelho
de Santarém em 1305, a que me referi anteriormente.
Dir-se-ia que a eficácia conseguida por Afonso III e D.
Dinis na concentração de poder e os bons serviços que os
legistas e escrivães lhes prestaram dispensavam a
colaboração dos outros letrados. Os nobres, com a sua
cuidadosa preservação da memória genealógica, estavam bem
mais interessados nela.
Todavia, não foram só os clérigos da chancelaria que
contribuíram para difundir as primeiras expressões, ainda
tão rudimentares e tão ligadas às ideias feudais, da
incipiente consciência de nacionalidade. Outros clérigos,
como o chantre de Lisboa e o cónego regrante que redige os
Annales domni Alfonsi, mostram, como vimos, uma clara noção
de «reino». O segundo fala mesmo dos exteros natione para
se referir aos galegos expulsos por Afonso Henriques de
Portugal em 1128 e equipara-o a vários reis da Hispânia e
da Cristandade. Um clérigo de Braga, que em 1217 apresenta
vários argumentos para rejeitar a jurisdição de Toledo,
também equipara o reino de Portugal aos restantes da
Hispânia e considera um scandalum a pretensão que o de
Castelã tem de submeter os outros. Por meados do século
XIII, mestre João de Deus regista com ênfase a sua origem
numa das suas obras, dizendo-se nascido na «pátria pia
Portugalensis» e, noutra, «oriundo do reino de Portugal». O
decretista Pedro Hispano, homónimo de Pedro Julião, declara
a sua naturalidade pelos adjectivos «hispano» e
«portucalense», enquanto outros letrados portugueses
preferem identificar-se apenas como «hispanos», como mestre
Vicente, Pedro Julião e até o próprio João de Deus noutras
das suas obras. Dir-se-ia, portanto, que muitos clérigos
têm uma noção mais nítida da pátria e do reino a que
pertencem do que os próprios membros da corte.
É bem mais difícil averiguar o que se passava com os
nobres. Que ideia faziam da sua qualidade de portugueses?
Poucas bases temos para o averiguar antes de meados do
século XIV. As cantigas dos trovadores falam com
naturalidade de Portugal como de um espaço geográfico ou um
reino oposto a outros da Península Ibérica, mas não é fácil
encontrar neles o qualificativo «português» aplicado a
pessoas ou a coisas. A Gesta de Afonso Henriques fala de
«portugueses», mas não sabemos se neste ponto a versão que
temos, do século XIV, é fiel ao original. A facilidade» com
que os fidalgos se põem ao serviço de outros reis e com que
os Galegos passam a fronteira, assim como o ideal da
unidade das nobrezas peninsulares, tão evidente no Livro de
linhagens do conde D. Pedro, são dois indícios de que a
aristocracia senhorial, geralmente com uma noção muito viva
dos deveres de fidelidade pessoal, devia adaptar-se com

247
dificuldade à ideia de um vínculo com a pátria
automaticamente decorrente do nascimento em território
português. Para ela a fidelidade era sempre condicional:
implicava o cumprimento dos deveres feudais por parte do
senhor.
Essa ideia parece resultar da extensão a todos os
habitantes do reino da noção de «natureza», que na sua
origem está também intimamente ligada com a de «fidelidade
feudal». Já falámos dela a propósito da relação dos
concelhos para com o rei, para mostrar que quem primeiro a
invoca é D. Dinis. O assunto está ainda por estudar, mas,
no estado actual dos nossos conhecimentos, parece que a
noção de «natureza» se aplica em primeiro lugar aos
súbditos dos concelhos, vassalos directos do rei, e só
depois aos restantes habitantes do reino. Os nobres deviam
ter maior dificuldade em aceitá-la. De qualquer maneira,
mesmo sob a forma rudimentar de sentimento do dever
decorrente da «natureza», isto é, do nascimento numa terra
do reino, o que nesta época provavelmente existe é ainda o
correspondente dever de fidelidade para com o respectivo
soberano, e não tanto para com uma entidade abstracta a que
hoje chamamos «nação». Este tipo de dever refere-se então,
em princípio, a uma comunidade humana restrita — o concelho
— como a uma espécie de extensão da família. Faltava ainda
muito para que a pátria se identificasse com o reino. Esta
noção podia existir talvez em alguns raros letrados, como
mestre João de Deus, mas dificilmente se podia presumir na
maioria dos portugueses desta época.

Bibliografia

Fontes

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1325-1480

ARMINDO DE SOUSA

CONDICIONAMENTOS BÁSICOS

O espaço geográfico, os homens, os princípios e as


técnicas que os civilizam — o espaço e os espaços, os
indivíduos e os grupos, as relações entre pessoas e coisas
— constituíram e constituem sempre os condicionamentos
básicos das realidades e realizações de que se fala em
História. São os supostos materiais e formais dos países,
nações e pátrias. As circunstâncias que lhes possibilitaram
e possibilitam erigir-se com distinção, identidades
específicas. Por conseguinte, território, população, ordem,
técnica.

O território

O território, primeiro. Primeiro, porque é forçoso


começar por um lado; e não porque este seja o mais
importante dos quatro. De resto, a questão da importância
relativa entre eles não parece ter sentido. São elementos
duma estrutura, ainda por cima só revelável por abordagem
diacrónica. Exacto seria falar deles — do território, da
população, da ordem e da técnica — em sinfonia, como fazem
os músicos; que tal modo, se proporcionasse entendimentos
objectivos, havia de ser o modo do historiador.

O território é palco e personagem, condição e


possibilidade, promessa e desafio.
Região natural ou tecido de regiões, o território não
determina só por si o aparecimento de países; nem, nos
habitantes, perfis psicológicos caracterizados por virtudes
e aptidões peculiares e constantes. A teoria determinista
do ambiente geográfico, que fez moda entre historiadores e
geógrafos e ainda fascina a psicologia do senso comum,
carece de fundamento científico objectivamente instaurado.
Dizer, por exemplo, que Portugal se formou por imposição da
Natureza ou que o génio grego é fruto da luminosidade do
Egeu ou então que o Minhoto, homem de vales fundos e
húmidos, é obtuso e ingénuo ao passo que o Transmontano,
por força de circunstâncias opostas, é vivo e ágil — dizer
isto ou coisas tais não passa de exercício fantasioso
cientificamente improvado.(1)
A geografia não determina. «Mas ajuda a compreender;
porque o território é uma base e contém em si as
virtualidades de um destino» (O. Ribeiro, 1977, p. 45). O
que quer dizer que o espaço geográfico é uma condicionante
limitativa em muitos casos e uma promessa de realizações em
muitos outros. Em todos, um desafio. E, sempre, um
interlocutor. De modo que escrever a história de um povo
exige o conhecimento da terra, das suas regiões e
paisagens, solos e subsolos, recursos.

Regiões e sub-regiões do País

O conceito de região não é unívoco. Há regiões


naturais, regiões administrativas, regiões econó- Regiões
micas, regiões políticas e muitas outras. Todas se reclamam
de geográficas. Todas exponenciam e sub-regiões formas
específicas, cada qual a sua, de encarar o território. E
todas são objecto de polémica (2).
As regiões naturais são aparentemente as mais
objectivas e, por essa razão, as mais credíveis. Dir-se-ia
as que mais afoitamente parecem conseguir suportar os
efeitos da história, logo as mais estáveis. É que elas se
baseiam na verificação das paisagens, isto é, na observação
da «natureza por excelência, a do mundo físico, um céu, uma
topografia, uma vegetação» (M. Roncayolo, 1986, p. 163). E
lá dizia o geógrafo do Principezinho de Saint-Exupéry: «É
raro que uma montanha mude de sítio.» Só que...

264
Só que a vegetação muda. Mudando, altera os solos. Com
os solos, a paisagem. Atrás irá o céu. E tudo isto
sobretudo porque os homens estão lá, no mundo físico,
actuando, interferindo, domesticando. De sorte que região
natural é tema que pertence à história. Quer-se um exemplo
português? Vá-se ao Alto Douro, contemplem-se os geios. E
saiba-se que se está a contemplar «uma das mais prodigiosas
obras de engenharia rural que o homem construiu» (O.
Ribeiro, 1977, p. 38). Em suma:

«Se a acção da Natureza conferiu a algumas partes da


Terra configurações de carácter local que, com maior ou
menor espontaneidade, nos levam a falai de regiões; é
certo, todavia, que em boa parte se deve atribuir à acção
do homem a criação e constituição no tempo, na história, de
paisagens dotadas de características tais que permitem
falar de regiões.» (M. Roncayolo, 1986, p. 189.)

Aplicando a Portugal: as regiões naturais que hoje


podemos divisar e descrever são em boa parte criação da
história. Mas a sua criação não teria sido possível se as
condições geográficas não houvessem oferecido a
viabilidade. E assim se regressa ao dito há pouco; o
território é palco e personagem, condição e possibilidade,
desafio e promessa. De um lado, as capacidades técnicas dos
homens; e do outro, as potencialidades naturais dos lugares
— relevo, solos, água, clima, vegetação e fauna. Um
diálogo.
Seria exercício instrutivo e agradável apreender como
nos diversos espaços e através dos tempos o diálogo se foi
tendo. Designadamente nos séculos XIV e XV — os tempos
deste discurso. Era assim: consultava-se uma boa história
rural portuguesa — que não há a não ser para duas ou três
regiões (3). Lia-se uma história do urbanismo português —
que só há alguns anos começou a fazer-se com rigor
metodológico e tem vindo a escrever-se aos poucos (4). E,
finalmente, compulsava-se uma história da pastorícia em
Portugal — que não ultrapassou ainda o estádio infantil das
articulações balbuciantes (5).
Os campos, o ager e o saltus, os povoados, as estradas
e os caminhos, as sequelas e efeitos do armentio — eis o
que é preciso estudar, interpretando vestígios e memórias,
a fim de se conseguir apreender aquele diálogo, o dos
homens com o território.
Certo que as paisagens mudam. O Minho e o Algarve que
hoje se contemplam são muito diferentes daquilo que há 600
anos se mostravam. E assim também as demais províncias
todas. Outro manto vegetal, outra distribuição agrícola,
outro arranjo urbano e rústico, outra cartografia da
cultura. Daí, outras cores, outros sons, outras imagens,
outras sensações.

Unidades de paisagem: 1. Entre Douro e Minho; 2. Montanha


do Minho; 3. Montanhas do Norte da Beira e do Douro; 4.
Terras de média altitude da Beira Litoral; 5. Planaltos da
Beira Alta; 6. Beira Litoral; 7. Cordilheira central; 8.
Planaltos e montanhas de Trás-os-Montes; 9. Planaltos e
montanhas da Beira transmontana; 10. Alto Douro e
depressões anexas; 11. Baixo Mondego; 12. Estremadura
setentrional, geralmente baixa; 13. Maciços calcários da
Estremadura e Arrábida; 14. Depressões e colinas entre 7 e
13; 15. Estremadura meridional, geralmente acidentada; 16.
Beira Baixa; 17. Ribatejo; 18. Alentejo de planície com
raras elevações isoladas; 19. Alto Alentejo; 20. Alentejo
litoral com elevações; 21. Depressão do Sado; 22. Serra
algarvia; 23. Algarve litoral ou Baixo Algarve. (Extraído
de Orlando Ribeiro, 1987.)

265
Mas houve coisas que persistiram, essas que a
civilização não pôde até agora alterar: os recortes
orográficos, as latitudes e longitudes e altitudes dos
lugares, os grandes determinadores dos quadros
meteorológicos sazonais. Por conseguinte, é legítimo supor
que as regiões naturais do País se mantiveram
relativamente; que, apesar de alterações fisionómicas
verificadas a nível global, as distinções recíprocas, por
isso que subsidiárias daquelas alterações, conservaram a
individualidade. Quer dizer que, não obstante as paisagens
serem objecto da história — da história da longa duração
até este século —, o mapa das regiões naturais não sofreu
significativas modificações de traçado no decurso de
milénios. Então, as especificidades distintivas das áreas
regionais são categorias meta-históricas. E com este
fundamento torna-se legítimo adoptar como mapa das regiões
naturais de Portugal na Idade Média aquilo que os geógrafos
actuais sobre tal matéria hoje cartografam.
Orlando Ribeiro divide Portugal em duas grandes zonas e
três amplas regiões. Norte e Sul, as zonas; Norte
atlântico, Norte transmontano e Sul mediterrânico, as
regiões. Depois disto, porque a diversidade do território
pede compartimentações mais individualizadas, Orlando
Ribeiro desce à procura de sub-regiões e anota 23 (V. mapa
da página 264). Os critérios identificativos são
fundamentalmente geológicos, orográficos e climatológicos —
esses que melhor aguentam a marcha do tempo.
O Norte é demarcado do Sul por uma linha que pega no
cabo Mondego, vai daí até Coimbra e, inflectindo para o
meio-dia em ângulo quase recto, atinge o rio Zêzere no
paralelo de Tomar. Depois ruma à Espanha, descrevendo um
vasto «S» reclinado ao longo do Tejo, pelos sopés
meridionais das serras de Alvelos, Gardunha e Malcata.
Portugal fica assim repartido em dois: o Norte montanhoso e
granítico, de clima preponderantemente atlântico; e o Sul
plano e calcário, de clima mediterrânico. São duas grandes
zonas naturais acentuadamente distintas, muito embora os
caracteres climáticos atlânticos e mediterrânicos estejam
por todo o lado presentes, predominando uns aqui, outros
além. E é afinal essa mistura, enriquecida no Interior com
tonalidades continentais, que confere ao País uma
personalidade climatérica própria, diferente da do resto da
Europa.
O Norte, contrariamente ao Sul, apresenta contrastes
muito marcados. É evidente para qualquer observador, mesmo
leigo, que ele é duas regiões amplas e inconfundíveis: uma
fachada oceânica temperada e húmida; e um interior
geralmente planáltico, seco, de temperaturas anuais
extremas. Norte atlântico e Norte transmontano. O primeiro
compreende o Minho, o Douro Litoral, a Beira-Mar e grande
extensão da Beira Alta; o segundo, Trás-os-Montes, o Alto
Douro e a Beira transmontana. A linha demarcatória vai de
serra em serra, unindo cumes: Gerês, Cabreira, Barroso,
Alvão, Marão, Leomil, Lapa, flanco nordeste da Estrela e
falda sul da Malcata. Num, o feminino mistério das brumas
fecundantes; noutro, a luminosa virilidade dos rigores
continentais.
Acidentadíssimo, o Norte. A gente investe qualquer rio
acima e não vê lezírias, largos céus, vastidões. Vê é
serras, píncaros, socalcos, outeiros atrás de outeiros,
barrocais. E até à linha transmontana, tudo em verde, os
verdes todos. O Norte não se avista, descobre-se.
Nomeadamente o Entre Douro e Minho, essa oficina gentium.
O Sul aparenta monotonia. Isso deve-se, sem dúvida, às
características do seu relevo. «É a região das planuras e
dos planaltos médios, de extensas bacias fluviais
deprimidas e ttrrenos molemente dobrados, com raros
retalhos montanhosos e apenas uma serra que culmina a mais
de mil metros» (O. Ribeiro, 1987, p. 41). Horizontes
largos, luz intensa, poucas chuvas. O oposto perfeito do
Norte atlântico.
Apesar, porém, do seu perfil monótono, o Sul é cheio de
contrastes. Não podendo, embora, desdobrar-se, como sucede
no Norte, em regiões bem personalizadas, os geógrafos
divisam nele, mesmo assim, 13 tipos de paisagens ou
sub-regiões: Baixo Mondego, Estremadura setentrional,
maciços calcários da Estremadura e da Arrábida, depressões
e colinas situadas entre a cordilheira central e uma linha
que vai de Condeixa-a-Nova à serra de Aire, Estremadura
meridional, Beira Baixa, Ribatejo, Alentejo, Alto Alentejo,
Alentejo litoral, depressão do rio Sado, serra algarvia e,
por último, o Algarve litoral. Notável. No variegadíssimo
Norte as sub-regiões ou unidades paisagísticas não passam
de 10, segundo os mesmos geógrafos. Estas: Entre Douro e
Minho, montanha do Minho, montanhas do norte da Beira e do
Douro, terras de média altitude da Beira Litoral,
cordilheira central, planaltos e montanhas de
Trás-os-Montes, planaltos e montanhas da Beira transmontana
e, finalmente, o Alto Douro, com as depressões anexas.

266
E aí temos o quadro. As zonas e regiões e sub-regiões
geográficas de Portugal continental. São 23 unidades
naturais. Para rectângulo tão pequeno, o mosaico é vistoso.
O que nos leva espontaneamente a concluir que Portugal é
detentor de um território dotado de muitas condições e de
muitas possibilidades. Pois é.

Portugal terra pobre

Só que «muitas condições» e «muitas possibilidades» não


se traduzem necessariamente por terra pobre riqueza
efectiva, prosperidade fácil e boa vida.
Portugal é terra pobre. Desafio e não oferta; trabalho.
Só com muito trabalhar dá o bastante para subsistir — «quem
não trabuca não manduca», voz do povo. E aquele que
ambiciona mais do que subsistir tem uma solução, emigrar. O
Português emigra há séculos. Não por castigo de crimes nem
para escapar de perseguições políticas e religiosas, mas
por compulsão da miséria, ir por fortuna e voltar. É
fadário mediterrânico. Fatalidade histórica, uma desgraça.
Mas uma desgraça de efeitos paradoxais, já que acabou por
resultar em facto civilizacional espantoso, o de levar o
Mediterrâneo e a Europa a todo o mundo, implantando-os como
cultura em meia América e muita Africa. O mare nostrum dos
Latinos transferiu-se para o Atlântico.
«Portugal, país pobre» é uma verdade repetida por
geógrafos, agrónomos e geólogos. Um veredicto. Em que se
funda? No estudo da natureza dos solos e na observação das
camadas litológicas. Os solos revelam-se magros ou muito
ácidos ou excessivamente básicos ou «podzolizados» por
acentuada lavagem (P. Birot, pp. 34-35). As camadas
litológicas, por seu turno, à parte o seu préstimo para a
construção civil e a cerâmica, mostram-se pouco mais que
imprestáveis, devido à escassez em minérios susceptíveis de
exploração lucrativa. Donde: pobreza agro-florestal e
pobreza metal ífera.
As rochas-mães dos solos portugueses são
fundamentalmente de quatro tipos: rochas calcárias; rochas
cristalinas; areias e grés: e xistos pouco ou nada
cristalinos (cf. mapa, em baixo).
As rochas calcárias geram e suportam solos
agrologicamente bons, excepto nos maciços montanhosos, onde
a escorrência e o pastoreio impedem a fixação do húmus. São
terrenos mais básicos do que ácidos, leves e azotados; e
firmes, onde o clima é temperado. «Os solos de rocha-mãe
calcária são de cor mais escura e de teor em matéria
orgânica geralmente mais elevado que os solos de outra
matriz em idênticas condições climáticas» (J. Pouquet,
1966, p. 153). As margas e os grés de cimento calcário têm
as mesmas características. Estes bons terrenos não são
muitos em Portugal. Apenas uma faixa significativa, situada
na Estremadura, entre o paralelo da Batalha e o de Lisboa.
É uma faixa muito estreita, porque, como se disse, os
maciços montanhosos não contam. Depois, sempre na zona sul
do País, alguns focos dispersos e reduzidos, como os
calcários lacustres terciários de Ervidel-Moura e os
primários de Elvas-Estremoz. Na zona norte estes solos só
figuram em breves manchas localizadas entre Anadia e
Cantanhede.
As rochas cristalinas, nomeadamente os granitos, os
dioritos e os xistos metamórficos, dominam a carta
petrográfica de Portuga). Os solos que originam divergem
muito em valor agrológico consoante as altitudes, os
declives e o clima. Pode-se, todavia, dizer, como regra
geral, que os melhores terrenos do País têm por subsolo as
rochas-mães deste tipo. Com efeito, São rochas de fácil
desagregação superficial, acumulando-se os detritos em
bacias e depressões, onde formam solos profundos, de acidez
moderada, muito permeáveis uns — os do Norte chuvoso — e

[Figura: Mapa litológico (extraído de Pierre Birrot)]

267
pouco permeáveis outros — os do Sul mediterrânico. A
superfície de erosão destas rochas é extensíssima no Norte,
devido à orografia. É que todo o Norte atlântico, com
efeito, está inscrito na área destas rochas, à excepção de
algumas parcelas pouco significativas e do triângulo
Espinho-Coimbra-cabo Mondego. Porém, apesar da enorme massa
de rochas cristalinas existente nessa zona, os solos
férteis são poucos: algumas estreitas planícies litorais,
os vales maduros dos rios, rechãs de média altitude e
socalcos — milhares e milhares de socalcos, informes,
minúsculos, dificilmente acessíveis. É o território do boi
de trabalho e do seu carro robusto. E do arado com sega, o
quadrangular, esse que rasga as vessadas (6). No Sul do
País, os solos deste tipo provêm de dioritos e xistos
metamórficos. Existem na área de Portalegre, na de Évora e
na de Beja. Especialmente na de Beja, onde se situam os
solos mais ricos de Portugal, os célebres «barros». Terra
de trigo, celeiro nacional. Infelizmente, estes solos não
representam senão 15% da superfície do Baixo Alentejo. O
resto são «terras galegas» (7).
As areias e os grés, rochas detríticas siliciosas,
ocupam grandes superfícies do País, localizadas quase todas
na zona sul. No Norte, com efeito, estas rochas só
apresentam uma extensão significativa no triângulo da
Beira-Mar. O valor agrológico das terras com este subsolo é
muito baixo, quase nulo. Não por carência de humidade, mas
por falta de sais nutritivos. Assim, os solos desta
categoria são habitados por pinheiros ou simplesmente
cobertos por matagais. É o caso do Noroeste da Estremadura,
Sudeste da Beira Baixa, Ribatejo, península de Setúbal e
bacia do Sado. Isto não quer dizer que nestas terras
sáfaras os homens não consigam impor lavouras. Conseguem
até fazer milagres de policulturas fertilíssimas. Exemplos
acham-se por essas sub-regiões que nomeámos, mas devem-se
todos a um extremo esforço de «jardinagem», que consiste em
cavar, estrumar, regar e abrigar. Então as areias, os grés
e os calhaus, aqui e além, tornam-se hortas, vinhas e
pomares. O caso mais famoso existente em Portugal desta
agricultura-desafio do homem contra a Natureza regista-se
no Norte, nos «campos em masseira» abertos nas dunas, que
se estendem desde a Póvoa de Varzim até à Apúlia.
Em quarto lugar, as rochas xistentas não cristalinas.
São as mães dos solos mais tristes: esqueléticos,
impermeáveis, paupérrimos. E há imensos por todo o País —
em Trás-os-Montes, no Alto Douro, nas três Beiras, no
Alentejo e no Algarve. Mas foi em solos deste tipo, no Alto
Douro, que o português lavrador soube substituir-se ao
poder da criação e inventar uma terra e um produto. A terra
inventou-a esmoendo xistos; que adubou e reteve em
socalcos, os quais socalcos — chamados «geios» — foi
dependurando pelos despenhadeiros vertiginosos do rio
Douro. O produto é um vinho único, o «porto». Um néctar que
nenhum deus mediterrânico antigo teve o ensejo de provar.
«Vinde à Terra do Vinho, deuses novos.» (Miguel Torga.)
Enfim:

«O solo pobre da faixa portuguesa é, efectivamente, o


que seria de esperar da dissemetria litológica da
Península: no Ocidente, predomínio de camadas secundárias e
terciárias mais ou menos margosas e calcárias; no Oriente,
predomínio do soco antigo.» (P. Birot, p. 41.)

Por outras palavras: pedologicamente Portugal é pobre.


E mineralogicamente também.
É certo que o subsolo português tem ouro, prata, ferro,
estanho, cobre, chumbo e outros metais — outros que hoje
são valiosos, mas que na Idade Média se ignoravam. A lista
é boa. É certo também que a fama mineira do território foi
grande ao longo de séculos em toda a bacia do Mediterrâneo,
tendo atraído fenícios, gregos, cartagineses e romanos. É
provável mesmo que as explorações e transformações
metalúrgicas hajam tido início na Idade do Bronze ou até na
do Cobre. E nunca pararam até hoje. Então, concluir-se-á, o
subsolo português é rico.
Não haja optimismos. Soares Carneiro, um conhecedor e
optimista, escrevia em 1959 que a posição mineralífera
nacional, embora modesta à escala do Mundo, era relevante
na Europa Ocidental, onde «somos o maior produtor de
volfrâmio e estanho e dos maiores de urânio, tântalo-nióbio
e berílio» (F. Soares Carneiro, 1959, p. 12). Pois. Só que
o valor dos minérios, exceptuando os metais nobres, é
extremamente oscilante em função das conjunturas. Tanto
atingem cotações muito elevadas, como de repente vêem
fechar-se os horizontes das aplicações. A consequência é

268
o abandono das minas. E isso tanto mais quanto é certo que
as lavras portuguesas têm andado, por tradição, em mãos
estrangeiras, as quais controlam os preços e procedem, lá
fora e lá longe, às lucrativas operações transformadoras.
Portugal parece ter estado sempre à margem dos centros que
comandam o negócio dos minérios. Olhe-se, por exemplo, a
história recente da ascensão e queda do volfrâmio; ou a do
rádio, história mais antiga mas igualmente esclarecedora. E
quem garante que o mesmo não venha a suceder com o urânio?
E que isso não aconteça também aos outros metais em que o
território é bom?
Quer dizer: a abundância metalífera do País, que em
espécies é um facto, não se tem traduzido nem se traduz
necessariamente em riqueza da nação. Faltam as condições de
rendibilidade: capitais internos ou nacionalmente geridos;
sistema de transportes fáceis desde as lavras até aos
centros transformadores; centros transformadores nacionais
distribuídos racionalmente; capacidade de afirmação junto
dos mercados internacionais. Tudo isto falta e tem faltado
ao longo da história. Nem se vê como não havia de faltar,
dadas as, características geográficas do País, a escassez
energética, a eterna penúria monetária, a localização
periférica e, vae stultis, a inépcia em aproveitar
económica e financeiramente as oportunidades do império. O
senso empresarial dos Portugueses tem sido ao longo dos
séculos esse que há 50 anos caracterizou os «volframistas»:
gastar a riqueza em excentricidades sumptuárias e idiotas,
de preferência a investi-la em empreendimentos lucrativos e
duradouros. «Dinheiro mal ganho água o deu, água o levou»,
justifica-se o Português. Até parece que só se entende como
dinheiro bem ganho o salário de fome suado no sol a sol.
Enfim, «a difícil situação de Portugal é a de todos os
pequenos países [...]: não podem procurar divisas
especializando-se na produção mais favorecida pelas
condições naturais, porque não mais encontrarão a
possibilidade de escoar para o exterior as mercadorias num
mundo compartimentado pelas autarcias» (P. Birot, p. 229).
Há, porém, metais que sobrelevam as conjunturas e as
políticas. São os assim ditos metais nobres — o ouro, a
prata e a platina, por exemplo. Estes três ocorrem no
subsolo português. Só que os jazigos rendivelmente
exploráveis acham-se praticamente exaustos desde há muitos
séculos, como é o caso de Jales, em Vila Pouca de Aguiar.
Por isso, nunca as minas de ouro e prata nacionais foram
capazes, desde a fundação da nacionalidade, de satisfazer
ou até minorar a fome crónica do País por esses metais. Na
história de Portugal, sempre que se fala em minas de ouro e
prata está-se a pensar no Brasil.
Em resumo, no território português há metais preciosos,
que, dadas as circunstâncias de jazida, não emprestam à
nação grande riqueza. O que equivale a dizer que o subsolo
do País em termos de prestabilidade económica é pobre, não
importando que de um ponto de vista comparativo
estritamente geológico possa afirmar-se que é dos mais
ricos da Europa Ocidental.

Recursos florestais espontâneos

Quando se fala de território em termos de


condicionamento básico de realidades e realizações
históricas de uma nação é-se levado a distinguir regiões,
sub-regiões, categorias de solos e riqueza mineralógica.
Foi o que se fez. Mas não fica tudo dito, muito longe
disso. Há pelo menos mais um tema que não pode ficar
esquecido: o dos recursos florestais espontâneos. O coberto
vegetal inculto oferecido gratuitamente pela Natureza às
necessidades dos homens e dos animais. É o lado mais
evidente das paisagens e o mais sintomático dos solos e
climas.
Pierre Birot, geógrafo francês estudioso de Portugal,
que temos vindo a seguir, escreveu o seguinte:

«As florestas primitivas [portuguesas] quase


desapareceram totalmente. As montanhas do Norte sofreram
uma das mais longas explorações pastoris que a documentação
histórica e arqueológica permite reconstituir, enquanto as
regiões mais altas das montanhas, incluídas entre as que
mais chuvas recebem na Europa, são também as mais
desnudadas. Por toda a parte, os incêndios provocados pelos
pastores, a exploração mineira bastante activa no tempo dos
Romanos e principalmente a construção da frota que sulcou
tantos novos caminhos marítimos arruinaram também as
florestas. Assim, torna-se necessário procurar restos da
vegetação primitiva nalgumas vertentes mais abruptas e
fazer-se o estudo do sub-bosque. Poderemos então ter uma
ideia aproximada das áreas de vegetação natural.» (P.
Birot, pp. 31-32.)

269
Deixando de parte as razões alegadas para explicar o
desflorestamento e a modificação do manto vegetal — que não
são exaustivas nem, porventura, as de mais peso — colhamos
o juízo global e o método preconizado para uma recomposição
mental das áreas de vegetação natural. E, posto isto,
continuemos com o mesmo autor (ver mapa nesta página).
Em todo o território português há seis áreas de
vegetação natural: uma área de floresta caducifólia própria
de clima temperado frio; uma área de floresta mista,
caducifólias mais folhas perenes, com predomínio das
primeiras, correspondente, na generalidade, ao Noroeste
atlântico; outra área de floresta mista, mas com predomínio
das folhagens perenes sobre as caducas, situada em
Trás-os-Montes, Alto Douro, Beiras Transmontana e Baixa e
Estremadura; uma área de floresta mediterrânica pura em que
predomina o sobreiro e que se estende ininterruptamente, em
forma de quarto minguante, desde a Beira Baixa até Vila
Real de Santo António; uma área de floresta mediterrânica
com predomínio da azinheira localizada a leste da área
anterior; e, finalmente, a área da floresta mediterrânica
da alfarrobeira, no Algarve litoral, entre o cabo São
Vicente e Tavira, coincidente mais ou menos com a
superfície do «barrocal» (8).
As duas primeiras e as três últimas destas seis áreas
ocupam respectivamente o Norte atlântico e o Sul
mediterrânico. A terceira área espalha-se pelo Norte e pelo
Sul, desde Trás-os-Montes até Lisboa, e exprime o
compromisso oceanidade-continentalidade-mediterranidade,
com as consequentes manifestações fitológicas —
atlântico-continentais, atlântico-mediterrânicas e
mediterrânico-continentais. O carvalho negral e o carvalho
lusitânico são dois bons exemplos desse compromisso.
Para além das seis áreas descritas, verificam-se
inúmeras bolsas por todo o lado, formando microzonas
«rebeldes» com associações fitológicas originais, como é o
caso da serra de Sintra, da de Monchique e da de São
Mamede. No Alto Douro e na Terra Quente de Trás-os-Montes
verifica-se o mesmo fenómeno, só que aqui a «rebeldia» é
efeito da acção humana. Em todos os casos, essas microzonas
florísticas são excepções à regra geral.

[Figura] - Mapa da vegetação natural de Portugal: 1. Zona


temperada fria (floresta de folhagem caduca); 2. Zona mista
(árvores de folhagem caduca e árvores mediterrânicas de
folhagem persistente, com predomínio das primeiras); 3.
Zona mista (com predomínio das árvores mediterrânicas sobre
as de folhagem caduca e integrando carvalhos lusitânicos);
4. Floresta mediterrânica pura, com predomínio do sobreiro;
5. Floresta mediterrânica, com predomínio da azinheira; 6.
Floresta mediterrânica de alfarrobeira. (Extraído de P.
Birot).

Dado o exposto, é fácil imaginar a paisagem florestal


do País, do país aonde homens não tivessem chegado: um
Norte de soutos e carvalhais, tojos, silvados e muitas
heras; e, em menor quantidade, aveleiras, negrilhos,
choupos, armeiros, freixos, plátanos bastardos e teixos.
Nos cumes e encostas elevadas, matagais impenetráveis de
tojos, que nos declives mais húmidos e protegidos se
misturavam com urzes, giestas e fetos. Pinheiros, havia
poucos ou nenhuns, a não ser os de uma espécie geresiana, o
Pinus sylvestris; se outros existiam, havia que procurá-los
nos terrenos siliciosos do litoral (9). De modo que o
Norte, especialmente o atlântico, era uma coisa
extremamente verde no Verão, castanha-fulva no Outono e
parda-escura no Inverno. Na Primavera estaria muito próxima
das descrições bucólicas do locus amoenus.
O Sul era diferente. Aí predominavam as brenhas de
urzes, giestas, medronheiros e estevas. E, em largos
tratos, os bosques de sobreiros, azinheiras, zambujeiros,
loendros e pinheiros-mansos. Figueiras-bravas também,
especialmente no Algarve, onde os ciprestes e os loureiros

270
acusavam a sua devoção mediterrânica. Nos terrenos secos,
onde outras plantas maiores não gostam de estar, via-se
alecrim, alfazema, rosmaninho e tomilho.
Enfim, o Norte era cor e o Sul perfume. Deseja-se fazer
uma ideia mais sentida desta recomposição imaginária?
Visite-se a serra do Gerês e logo, logo, a da Arrábida. São
dois dos poucos sítios que restam; melhor dito, dois sítios
que ainda guardam vestígios autênticos da floresta
primitiva.

Nos séculos XIV e XV

E nos séculos XIV e XV? Como era tudo?


Em primeiro lugar, e ideia geral a reter, o aspecto do
território, isso que os sentidos captam, era muito
diferente de hoje. É uma ideia geral que convém mesmo reter
e ir recordando ao longo de todo este discurso. Ela nos
precaverá contra anacronismos insidiosos, esses que se
anicham discreta e fatalmente na imaginação criadora de
quem escreve e de quem lê. Ora, quando alguém se propõe
fazer viagem ao passado distante, é-lhe absolutamente
necessário, a fim de evitar distorções de conhecimento e
apreciação, descentrar-se, isto é, alertar-se continuamente
de que se propõe assimilar diferenças. De resto, esta ideia
geral e consequente atitude têm validade tanto na abordagem
do território como na de qualquer outro assunto,
socialidade, política, cultura, etc. Por exemplo:
O leitor, em Julho, vá ao Minho. A Ponte de Lima, se
quiser. Verá oliveiras, laranjais, campos e campos de
milhão, batatais, ramadas de vinho verde, camélias e
buganvílias, eucaliptos, pinheiros. Pinheiros sobretudo.
Imensos pinheiros-bravos — nos baixos incultos, nas
encostas e corcovas dos outeiros, pelas montanhas acima.
Se, estando aí, o leitor fosse transportado de repente 600
anos atrás, nada disso havia de contemplar. Rigorosamente
nada. Ver-se-ia, com certeza, num Minho muito verde. Mas
tudo era diferente: outra vegetação-clímax, outros campos,
outras vinhas, outros verdes, outra luz. E outra fauna
também. Só a linha dos horizontes, perfil das serras, havia
de ser reconhecida. Mas sem árvores, essa linha. Não.
Também não estaria a ver uma paisagem atlântica pura,
soutos, carvalhais e o resto que atrás se imaginou. Porque
os homens já andavam por aí há milénios. Fazendo
civilização.
Nos séculos XIV e XV a paisagem do País era outra. Nos
campos, nas cidades, nas montanhas e nos bosques. Os solos
eram diferentes e o clima, em termos de pluviosidade e
temperatura e humidade médias anuais — independentemente
das oscilações seculares que a geografia histórica admite
para a Europa Ocidental. É que os solos, a vegetação e o
clima funcionam como um sistema.
Essas diferenças, porém, não implicaram nenhuma
revolução no quadro das regiões e sub-regiões do território
nacional. Conforme se disse há pouco, as distinções
recíprocas entre as regiões naturais manliveram-se, apesar
das inevitáveis alterações fisionómicas globais. E isso
porque, repita-se, as grandes condicionantes das regiões,
geológicas, orográficas e meteorológicas, assim como o
posicionamento do território em relação ao Atlântico, ao
Mediterrâneo, ao Norte de Africa e ao pólo setentrional
persistiram. E, com tudo isso, o anticiclone dos Açores —
esse grande obreiro da individualização do clima português
entre todos os climas mediterrânicos.
Gostaria decerto o leitor que se lhe dissesse
concretamente os modos da diferença, o aspecto exacto do
território português nos séculos XIV e XV, região por
região. É impossível. Mesmo um mapa aproximado é
extremamente difícil de traçar, dadas as lacunas do estado
actual dos nossos conhecimentos. Faltam estudos
especializados e exaustivos, paleobotânicos sobretudo. O
que há são ensaios de historiadores; e de geógrafos que têm
trabalhado à maneira do historiador — sobre documentos
escritos. E muito pouco. Até porque, em matéria de flora,
os documentos escritos comportam-se como em matéria
sociológica: só registam aquilo que os seus autores
entenderam importante, do sen ponto de observação
narcisista, registar. De modo que não dispomos de
objectivas descrições de paisagens, dos bosques, florestas,
matas, montes, serras, prados e pantanais. As descrições de
tudo isso e do resto são invariavelmente subjectivas — por
interesse, propaganda ou retórica literária (10). Que
árvores, que arbustos, que ervagens? Onde as espessuras, as
clareiras, os escalvados? Quais os tons e os perfumes das
regiões e dos sítios? Quais as Primaveras e Verões e
Outonos e Invernos dos olhares? Quase nada disto se sabe. E
isso constituiu, afinal, o cenário das vidas que buscamos.

271
Fosse como fosse, parece seguro assentar em duas
afirmações:
1.ª Nos começos do século XVI o coberto vegetal do País
achava-se já degradado;
2.ª Fomentava-se a reflorestação.

Degradação do coberto vegetal

A degradação do coberto vegetal do País deveu-se ao


desflorestamento e ao pastoreio e verificou-se por todo o
lado. No Sul, Alentejo e Algarve, o fenómeno é atribuível
aos Árabes, os quais são apontados como responsáveis pela
destruição dos pinheiros-mansos de Alcácer do Sal e pela
desertificação arbórea dos arredores de Mértola, serras
algarvias, do Cercal e de Grândola. Teriam sido eles também
os iniciadores da transformação das florestas de sobreiros
e azinheiras em montados, assim como os causadores da
substituição das matas por brenhas, estevais e charnecas
(N. Devy-Vareta, 1985, pp. 52-53). Todo este processo
degradativo das paisagens naturais antigas, obviamente
anterior ao século XIV, prosseguiu depois, conduzido pelas
ordens militares, pelo poder régio e pelas autoridades
concelhias. Na Estremadura litorânica, os mesmos ou outros
agentes teriam arruinado, talvez mais cedo, as florestas de
pinheiros-mansos e carvalhos lusitânicos, a tal ponto que o
fenómeno de desertificação ameaçava invadir o interior. A
fundação do Mosteiro de Alcobaça por monges lavradores
cistercienses foi, sem dúvida, uma medida apropriada para
combater o perigo, repovoando os ermos, e a plantação de
pinheiros-bravos entre Leiria e o mar, lendariamente
atribuída a D. Dinis, teve o mesmo objectivo (11). Saúde-se
este acto como o primeiro gesto conhecido em Portugal de
fomento florestal em larga escala com uma espécie vegetal
aí adequada, embora provavelmente forânea.
No Entre Douro e Minho, processo idêntico de
desflorestamento se verificou. Carlos Alberto Ferreira de
Almeida, que estudou o assunto em livro pioneiro,
sintetizou-o assim: «Assistiu-se, nesta região, durante a
Idade Média, a um período, séculos IX-X, de
floresta-algo-inimiga, das sombras, dos medos e ladrões, ao
qual sucedeu uma época de floresta-parcelada-possuída, nos
séculos XI-XII, vindo depois o período da
floresta-defendida-fomentada» (CA. Ferreira de Almeida,
1978, p. 80). Defendida e fomentada porque, conforme prova
o autor, a sobreexploração das matas conduziu à penúria.
Desse modo, todos os espaços de Entre Douro e Minho
passaram a ficar domesticados, definidos, nomeados: são
agerou saltusou mons; «campo», «souto» e «monte», cada qual
com a sua função específica na economia rural. A floresta
ignota e sagrada desapareceu. Ou só de noite recupera os
seus primitivos mistérios — quando o «tardo» esbraveja e as
bruxas dançam (12).
Em Trás-os-Montes e nas Beiras, zonas de pastorícia, a
degradação florestal deve ter tido igual avanço. Sabe-se,
por exemplo, a paleobotânica no-lo diz, que o pinheiro
geresiano, denominado Pinus sylvestris, habitou a serra da
Estrela (M. de L. Serpa Carvalho, 1989, p. 70). Nenhum
documento se lhe refere nem hoje lá cresce espontâneo. O
que por lá hoje se vê, nos sítios onde o seu porte altivo
de 40 m de altura dominou, é um primo anão, o zimbro
rasteiro. Não se sabe quando nem como essa árvore foi
riscada da Estrela; mas tendo em mente que o seu habitat
natural se situa acima dos 1000 m de altitude e que tem a
tendência para formar bosques cerrados, não custa atribuir
o acto aos pastores.
Que razões teriam ditado o desflorestamento do País nos
séculos anteriores ao XIV?
Como vimos atrás, Pierre Birot dá três: a actividade
mineira dos Romanos, a fome dos rebanhos e os incêndios dos
pastores. A quarta, construção naval durante e após o
período dos Descobrimentos, visto que se verificou depois
do século XIV, não vem ao caso. Estas razões, dissemo-lo
já, não são exaustivas. Faltaram, a nosso ver, as mais
importantes: os arroteamentos e o consumo avassalador dos
recursos florestais.
Os primeiros anos do século XIV assinalaram o ponto
mais alto do crescimento demográfico que se registou na
Europa Ocidental em toda a Idade Média. A arrancada
verificou-se logo a seguir ao ano Mil e nunca mais parou.
Foram três séculos de expansão e progresso, XI, XII e XIII,
os tempos das luzes medievais — desenvolvimento urbano,
desenvolvimento mercantil, desenvolvimento agrícola,
desenvolvimento económico, desenvolvimento cultural. As
universidades, os cavaleiros, os burgueses, as corporações
de mesteres, os legistas e os grandes teorizadores da
moral, da religião e do Estado apareceram nesse período
histórico. O valor do tempo, a dignidade do trabalho e a

272
capacidade reprodutiva do dinheiro ocuparam os espíritos e
tiveram soluções fecundas. Infância da Europa.
É claro que a Natureza, como sempre sucede, teve de
pagar todos esses desenvolvimentos. Mais gente, mais
necessidades básicas: alimento, vestuário, habitação.
Depois, complexificação das relações e hierarquias sociais.
Donde, multiplicação de necessidades secundárias — de
conforto, distinção e prestígio. Ao necessário
acrescenta-se o sumptuário — que a Natureza, ou os recursos
do território, em última análise e mediante o suor dos
mantenedores, haverá de custear.
De modo que os séculos XII e XIII foram tempos de
grandes arroteamentos em toda a Europa. Em Portugal também,
primeiro conduzidos por particulares e depois, asseguradas
as fronteiras definitivas, incentivados pelos monarcas como
tarefa nacional. Constroem-se «vilas novas», secam-se
pauis, fundam-se casais, edificam-se mosteiros e alarga-se
a área de exploração periférica de cidades e povoações. As
searas, as vinhas e os olivais expandem-se para novos
espaços; os rebanhos aumentam e os linhares desatam à
conquista dos lameiros permanentes (13). É que sem pão,
vinho, azeite, burel, linho e estopa não se concebia viver.
Ora, tudo isso implicou uma investida contra as matas e
florestas. A expansão do ager redundou em contracção do
mons e reorganização do saltus. O Entre Douro e Minho é a
este respeito muito elucidativo — não sendo, porventura,
absolutamente necessário procurar na «revolução do milho
maís», século XVI, a causa originária dos caracteres
paisagísticos do minifúndio da região (14).

Contracção das matas e florestas devido aos novos


arroteamentos. Portanto, degradação do coberto vegetal do
País no que toca à extensão territorial das espécies
espontâneas. Mas deu-se outro tipo de degradação, agora de
natureza mais grave e decerto com sequelas ecológicas
irreparáveis. Deveu-se à sobreexploração dos recursos
florestais, ao consumo exorbitante de madeira. É óbvio que
esse facto e perigo teve relação directa também com o
crescimento demográfico dos séculos XI a XIV. Para
compreendermos bem o fenómeno, atendamos às palavras de
Carlos Alberto Ferreira de Almeida:

«A civilização material medieval fazia larguíssimo uso


da madeira. Em todas as construções de então ela é,
dominantemente, essencial. Nas casas, travejamentos,
tectos, soalhos, divisões; nos móveis e utensílios
domésticos, nos estábulos, nas adegas, espigueiros, e
moinhos, nos aprestos agrícolas, desde forquilhas ao carro
e ao arado, quase tudo procede da árvore. Poderíamos dizer
que na civilização rural medieval é de madeira tudo quanto
nela pode ser.» (15)
E, acrescentamos nós, podia ser quase tudo.
Fixemos também o que a este respeito escreve Iria
Gonçalves:

«A floresta [...] revestia enorme importância, hoje


dificilmente calculável. Além de grandes, eram inumeráveis
os recursos que se lhe pediam e que ela fornecia: as suas
árvores eram material de construção de casas, barcos,
instrumentos agrícolas, vasilhame diverso, objectos de uso
comum; eram combustível; eram estacaria para amparar
culturas ou fazer vedações; eram fertilizantes do solo,
quer sob a forma de folhagens apodrecidas quer de cinzas,
que traziam também, ao vidro e ao sabão, uma parte dos seus
componentes; as suas cascas eram indispensáveis na
preparação dos coutos e algumas delas — com especial
destaque para a cortiça — entravam na fabricação dos mais
diversos utensílios.» (I. Gonçalves, 1989, p. 261.)

A somar a todos esses préstimos das matas e florestas,


lembrem-se só mais dois — sem falar da caça e da
apicultura, que não vêm para aqui: a lenha e as camas dos
gados. Sobretudo a lenha. Constituiu na altura, e quase até
aos nossos tempos, o único combustível existente em
Portugal. Sem lenha não havia pão, alimentos cozinhados,
calor e conforto nos Invernos, azeite, medicamentos
essenciais, higiene mínima, produção industrial. Em suma,
não havia civilização, porque de pouco serviria o fogo.
Agora, imagine o leitor a quantidade de lenha necessária
para satisfazer as exigências diárias de 1 500 000 pessoas
— que tal é o número possível de habitantes do País nos
começos do séculos XIV. E saiba que, por exemplo, o
esquentamento condigno de um forno de pão do Barroso

273
demanda para cima de um carro de bois pejado (16).
Compreenderá então a importância folclórica do lenhador e
do carvoeiro — profissões masculinas; o perigo, igualmente
folclórico, das matas e florestas para as mulheres; a
preocupação dos senhores em defender as suas lenhas; o
cuidado dos documentos emprazatórios em estipular as posses
«de monte em fonte, cultos e incultos»; a luta dos
concelhos em prol da inalienação dos seus maninhos; e a
razão pela qual matas e florestas periféricas de cidades —
como os pinhais do Montijo — cedo desapareceram
(N. Devy-Vareta, 1985, pp. 56-57).

O pinheiro-bravo é um excelente combustível. Tudo nele


serve de lenha: a folha — que se conserva por muito tempo
sem apodrecer —, a casca e a madeira. Por outro lado,
desenvolve-se depressa, muito mais depressa do que o
carvalho ou o sobreiro ou a azinheira ou o castanheiro,
agarra-se aos solos pobres e aos ricos, sobe até boas
altitudes e permite no seu sub-bosque, ao contrário do
carvalho, associações de ericáceas e leguminosas,
nomeadamente urzes e tojos, muito úteis para camas de gado.
Além disso, dá razoável tabuado e abundância de pez. Esta
árvore tem o seu habitat privilegiado, e segundo alguns
botânicos a sua origem, nos terrenos siliciosos do litoral
a norte do Mondego (M. da L. Afonso, 1982, p. 285). Foi
utilizada, como vimos, para reflorestar a área oeste de
Leiria no século XIII. No século XIV começava a invadir os
outeiros e montes no interior norte e hoje faz parte da
maioria das paisagens portuguesas inferiores a 1000 m de
altitude, ao norte e ao sul, com excepção do Baixo
Alentejo. É opinião generalizada que o sucesso invasivo do
pinheiro-bravo foi o responsável pela destruição da
floresta caducifólia no Norte atlântico. Terá sido assim?
Não terá sido antes difundido e fomentado precisamente
porque os soutos e carvalhais se achavam degradados e
rarefeitos? Não se compreende muito bem como é que os
pinheiros jovens haviam de conseguir sobreviver e
desenvolver-se no sub-bosque umbroso dessas fagáceas — aí
onde nem os tojos-anões fazem vida. Nem serve de prova da
omnipresença dos carvalhos e castanheiros nessa região, na
Baixa Idade Média e Época Moderna, a enorme quantidade de
topónimos com os seus nomes e derivados: 650 no Norte
atlântico contra 89 no Norte transmontano e 95 no Sul
mediterrânico (17). Isso é capaz de provar precisamente o
contrário, pois um topónimo tem por função individualizar e
ninguém individualiza um sítio exprimindo uma nota que
afinal é mais que comum e não própria. O tema da heurística
geográfico-histórica da fitotoponímia merece reflexão e
cautelas.
De modo que a expansão dos pinheirais no Norte
atlântico no século xm e no XIV deve ter sido resultado de
uma «política» de reflorestação determinada pela urgência e
na qual se deve incluir a plantação ou intensificação do
pinhal de Leiria, precisamente pelas mesmas razões. A lenda
segundo a qual foi D. Dinis o fomentador desta política não
encontra ecos na documentação, mas não repugna. Esse pinhal
inscrevia-se na «coutada velha» da coroa e ficou na memória
escrita como «pinhal del-rei», certamente por estar
plantado aí e ser pertença do monarca, de D. Dinis e dos
outros (18). Seja como for, nada obriga a contrariar a
lenda, que, exactamente por ser lenda, autoriza que se
realce o impacte social e o apreço popular daquela
«política». «Ai flores, ai flores do verde pino» — o
arroubo poético do Rei Lavrador.
A reflorestação por pinheiros das áreas degradadas de
caducifólias, a nosso ver fruto da urgência, foi uma
operação que modificou definitivamente a fisionomia
paisagística do Norte atlântico. E não só. Alterou os
microclimas e a longo prazo os solos. Agradou decerto aos
populares e aos lavradores em especial, já se disse, até
porque contribuiu para minorar a praga dos javalis. Mas
mais tarde cobrou juros. É que conduziu àquela deterioração
pedológica que os especialistas designam como
«podzolização»; por outras palavras, os solos tornaram-se
magros, cinzentos, pobres em húmus, excessivamente lavados.
Jean Pouquet, especialista, explica:

«As folhas das florestas de caducifólias são mais ricas


em minerais e carbonatos do que as agulhas de florestas de
coníferas. Se estas florestas sucedem àquelas, os
constituintes dos solos vão modificar-se muito rapidamente,
dando origem a uma nova orientação pedológica. Imaginemos
um solo castanho coberto por folhosas e que, por acção
natural ou artificial, coníferas o ocupam, substituindo as
referidas folhosas numa maior ou menor proporção. Dentro de
um espaço de tempo, que será longo ou curto consoante o
tipo climático, a evolução pedológica acabará por resultar
na formação de solos mais lavados e até em solos
podzólicos.» (J. Pouquet, 1966, p. 103.)

274
E, mais abaixo, resumindo conclusões de experiências
realizadas no terreno:

«As folhosas fornecem duas vezes mais azoto, três vezes


mais magnésio e cinco vezes mais cálcio do que as
coníferas. Compreende-se assim melhor que as espécies de
folhas caducas favoreçam a formação de solos de estrutura
friável, grumosa moderadamente ácidos (a decomposição das
folhas gera um húmus doce). Ao contrário, as coníferas
elaboram um húmus ácido de oxidação mais lenta, facilmente
dispensável — porque, de estrutura fibrosa ou lamelar, esse
húmus sobrepõe-se ao solo sem se misturar nele, o que
favorece a dispersão.» (J. Pouquet, 1966, p. 104.)

De tudo isto uma conclusão: o repovoamento por meio de


pinheiros das áreas anteriormente ocupadas por soutos e
carvalhais foi um erro em termos de preservação e,
afortiori, de beneficiação dos solos. Esse erro teve
necessariamente efeitos, no futuro, ao nível da
produtividade agrícola. Por isso, não são de considerar
inteiramente retóricas, laudatio temporis acti, os lamentos
de cortes do século XV de que a terra antigamente produzia
muito mais.

Outro fenómeno que determinou a deterioração das


paisagens naturais, a contracção das matas e florestas e,
consequentemente, a degradação dos solos, foi, como é
sabido e assiduamente lembrado, o pastoreio. O pastoreio em
larga escala — nos montes e serras, na periferia das
povoações e nas planuras. Só nos campos em pousio a
actividade foi benéfica, mais do que as queimadas, mas
apenas, como é óbvio, para o enriquecimento bioquímico dos
solos.
Não tem interesse demorarmo-nos neste assunto, tão
conhecido ele é (19). Lembre-se apenas que os efeitos
nefastos do armentio não decorriam somente do hábito
pastoril muito arreigado de incendiar as terras para obter
pastos tenros e afugentar as alimárias. É evidente que esse
hábito contribuiu fortemente para escalavrar as montanhas.
Todavia, a acção dos animais, ovelhas e cabras sobretudo,
foi factor não menos poderoso para a destruição dos
ecossistemas. Comendo uns vegetais e repudiando outros,
determinaram o desaparecimento das associações fitológicas
espontâneas. Segundo os geógrafos, a brenha alentejana com
esteva como espécie climática — notável degradação
florística — tem por razão explicativa as preferências
alimentares dos gados (O. Ribeiro, 1987, p. 49). Os
rebanhos não gostam das estevas perfumantes. E, tal como
sucede com esta espécie, com outras acontecerá o mesmo. De
modo que o pastoreio contínuo e excessivo foi e é uma
actividade devastadora do equilíbrio ecológico em qualquer
sistema natural. Só hoje se vai compreendendo que os seus
benefícios económicos se calhar não compensam as agressões
desferidas contra o património ambiental (J. Pinto Peixoto,
1987).

Conclusão

As necessidades vitais de uma população em franco


crescimento, reduzida decerto em números actuais, mas a
atingir o ponto de saturação face aos recursos naturais e
capacidades tecnológicas da época, fizeram com que,
sobrevindo o século XIV, o território português se achasse
já degradado. Os matagais, as brenhas e as charnecas haviam
substituído muito daquilo que três ou quatro séculos antes
eram soutos atlânticos e bosques mediterrânicos. Do facto
tiveram consciência os poderes. E tentaram esforços de
solução. Poderíamos acrescentar ao que já se disse toda uma
série de medidas no sentido do reflorestamento do País,
oriundas tanto dos poderes senhoriais e autárquicos como do
poder central. Umas foram de carácter preventivo,
instituindo penas contra incendiários, impondo rotas e
superfícies aos rebanhos, obrigando ao plantio de árvores
contra solifluxões, disciplinando a exploração das
espécies, criando guardas monteiros; outras foram
prospectivas, reflorestando ermos e arborizando pauis e
pantanais (20). Destas medidas, se algumas foram correctas
e eficazes, outras revelaram-se inadequadas ou efémeras.
Contas feitas, os esforços não travaram a marcha da
degradação — certamente porque foram incapazes de mudar
mentalidades e dar alternativa viável às necessidades que
moviam os agentes desertificadores. Em suma, a degradação
florestal prosseguiu porque a incultura, a rotina e a
necessidade eram mais fortes do que a razão e o medo.
E assim foi que, na época dos Descobrimentos e do
império, exactamente quando o País mais precisou da
floresta, teve de se recorrer às florestas dos outros e
importar, da Flandres, por exemplo, tabuado e mastros para
os arsenais. De produtor excedentário, em dois séculos

275
Portugal tornou-se dependente (N. Devy-Vareta, 1986, p.
11). Isso apesar da política florestal de D. Dinis — «o
plantador de naus a haver», segundo Fernando Pessoa.
Em síntese: os portugueses do século XIV herdaram dos
seus pais um território nacional estável, com fronteiras
definidas e pacíficas. Em toda a Europa ninguém se ufanaria
do mesmo. Um «Portugal, mediterrâneo e atlântico», doce,
variado e belo. Mas, supomos tê-lo mostrado, um país
agrologicamente pobre, fitologicamente delapidado e
mineralogicamente exausto. Que história fazer com ele?
Ir-se-á descobrindo, pouco a pouco, muito naturalmente,
que havia o mar.

A população

«O cômputo da população do País é o primeiro encargo do


escritor da história social. A população mede a força e a
riqueza das nações.» Isto foi afirmado em 1903 por um
historiador do Quatrocentos português, ainda muito
visitado, e mantém actualidade, se for tomado com algumas
moderadoras reservas.
Há aí duas ideias: a da necessidade de quantificar para
entender — nisto o autor foi pioneiro —; e a da razão de
proporcionalidade directa entre quantitativo populacional e
nível de vida — e nisto o autor, como é sabido,
equivocou-se.
A primeira ideia, de inspiração positivista, abriu a
história à demografia e à estatística, revolucionando
perspectivas e modos de abordar o passado. Isso começou a
verificar-se no segundo quartel deste século e atingiu o
apogeu na primeira década do terceiro. A partir dos anos 60
a moda quantitativista perdeu terreno, porque se percebeu
que «entender» fica para lá do número; que a explicação dos
comportamentos colectivos, que não se pode reduzir
exclusivamente ao económico nem a outra qualquer dimensão
isolada, passa pelo número, mas não se detém satisfeita
nele. Aliás, já antes, noutros corredores das ciências
humanas, nomeadamente na antropologia cultural e
filosófica, cada vez mais se vinha dando conta de que o
nosso jeito ocidental de fazer ideias mediante números era
bem capaz de ser isso mesmo, um jeito, um traço de
mentalidade — nem geográfica nem cronologicamente
universal. E foi devido a essa tomada de consciência que
alguns historiadores, designadamente investigadores de
períodos históricos anteriores à era estatística, puseram a
questão de saber se era adequado ou não utilizar nas suas
pesquisas os modelos e métodos dessa ciência matemática. Os
demógrafos diziam que não, que não era possível fazer
demografia histórica «antes da aparição dos recenseamentos
e da organização regular dos registos do estado civil» (V.
Rau, 1985, p. 99). Então, estabele-ceu-se entre os
historiadores um consenso, aquele que hoje vigora. Este:
que dadas as mentalidades caracteristicamente qualitativas
das sociedades anteriores aos séculos XVII-XVIII; que dada
a natureza das informações quantitativas propinadas pelas
fontes disponíveis — locuções adjectivas e algarismos
soltos; que dadas as dificuldades em interpretar esses
algarismos, mesmo quando aparecem em séries e
«numeramentos»; não é epistemologicamente adequado utilizar
modelos e métodos estatísticos nas pesquisas, a não ser
para descobrir e realçar «ordens de grandeza e noções de
conjunto» (Ph. Wolff, 1961, p. 863).
E fica assim declarada uma primeira «reserva
moderadora» acerca da imprescindibilidade — «primeiro
encargo» — do estabelecimento de um «cômputo da população»
portuguesa dos séculos XIV e XV, condição sine qua non da
exequibilidade da «história social» desse período. Ir-se-á
tentar o cômputo, mas há-de ser lido como uma verosímil
«noção de conjunto».
Quanto à relação de proporcionalidade directa
população-do-país/riqueza-da-nação, afirmada
categoricamente como o faz Costa Lobo, é evidente que não
traduz a realidade (21). Há vários anos que a consciência
mundial sabe que não e que os países mais populosos do
Globo tentam controlar as taxas de nascimentos. A geografia
humana e a ecologia ensinam que a partir de um valor,
variável em função do tempo e do lugar, o movimento
populacional desencadeia uma situação de crise — que tanto
pode ser uma crise por defeito como por excesso. Lembre-se
a propósito, e por exemplo, que é muito provável ter-se
verificado uma crise de excesso populacional no Ocidente
precisamente a partir da segunda metade do século XIII. De
resto, desde a publicação do Ensaio sobre o princípio da
população, de Thomas Robert Malthus (falecido em 1834),

276
sabia-se que o crescimento populacional indisciplinado,
progressão geométrica, face ao crescimento dos recursos
alimentares, progressão aritmética, não só não podia
conduzir as nações à prosperidade como, pelo contrário, as
arrastava fatalmente para a desgraça.
E esta é a segunda «reserva moderadora».
Trata-se, porém, de uma reserva meramente teórica. É
que no período histórico estudado por Costa Lobo, século
XV, que é também a maior parte do nosso, que começa em
1325, a questão que se punha não era de como diminuir mas
de como aumentar a população. Uma questão que, pela
assiduidade com que é lembrada nas cortes do século XV até
1460 mais ou menos, mostra bem quanto preocupava a nação.
Um dos argumentos apresentados pelo partido antimarroquino
contra a expedição a Tânger de 1437 foi esse precisamente,
o da penúria demográfica do reino (22). E ainda em 1475 se
vituperava a venda de escravos para o estrangeiro,
alegando, entre outras razões, que eles eram absolutamente
necessários em Portugal para desenvolver a agricultura
carecida de braços. De modo que nos séculos do nosso estudo
ninguém duvidaria da justeza absoluta daquele dito
sentencioso de Costa Lobo — «a população mede a força e a
riqueza das nações». Quanta mais população, mais autonomia
e riqueza para o país. Naturalmente população produtiva,
lavradores acima de tudo. «A necessidade e míngua que
geralmente se vê [é] por haver poucos lavradores na terra»
— D. Afonso V, 1455 (23). É uma ideia antiga,
inquestionada, lugar-comum que nunca falta nas descrições
das bondades e nobreza, das cidades e nações. Ideia que,
reportando-se inicialmente à população do sector primário
da economia, irá subentender depois a do sector secundário
e, a seguir, a do terciário. Mas isso acontecerá mais
tarde, já depois da Idade Média. Na Idade Média, a classe
produtiva por excelência é a dos lavradores: «Senhor, bem
sabe a vossa mercê [dizem os parlamentares ao rei em 1433]
como toda a vossa terra se mantém pelo trabalho dos
lavradores.» E o infante D. Pedro no Livro dos Ofícios: «A
agricultura, antre todalas outras obras que se obram, é [a]
mais de louvar.»
Falar da população enquanto condicionamento básico das
realidades e realizações históricas de uma nação não
consiste em dizer números apenas. É muito mais do que isso.
Porque uma população, para além de ser conjunto numérico, é
também «genealogia, geografia humana, campo, cidade,
território, mercado, numa “marginalidade” heterogénea em
movimento de outros estados, tão reais quanto flutuantes na
definição, modos de ser anárquicos de populações que
ultrapassam a elite e o institucional: densa realidade
estatística de carne para as galés das aventuras coloniais,
exército mercenário das aventuras dos reis, exército de
reserva da paz dos ricos, canaille e populace da revolta,
das revoluções, dos reaccionarismos, malditos da Terra de
todos os tempos. [...] Vagabundos, mendigos, bandidos,
pícaros, desempregados, deserdados, doentes, famintos, etc,
itinerários da pègre e da peste» (R. Davico, 1986, p. 237).
Como seria interessante ver tudo isto a funcionar no
terreno, filme sonoro e a cores, acção em tempo real, 160
anos a fio! Sem dúvida. Mas isso era documentário e não
história.
Vamos tentar, com modéstia, mente resignada a ideias
esquemáticas da realidade inferida, apresentar números
possíveis, a evolução plausível dos desenvolvimentos, a
verosímil distribuição das pessoas, as gerações e suas
implicâncias.
E isso em discurso condicional, problemático.

Números e conjecturas

Adivinha-se a partir do que se disse atrás que as


fontes de informação de que dispomos não permitem traçar um
quadro da população portuguesa nos séculos XIV e XV dotado
de rigor quantitativo seguro. São tempos muito anteriores
aos da era estatística, essa em que os poderes se dão conta
de que os recenseamentos gerais dos súbditos têm a
virtualidade de funcionar como mecanismos de controlo
político. O primeiro recenseamento digno deste nome
efectuado em Portugal data de 1864. Antes disso, o que se
fez foram cômputos de «fogos», «moradores», «vizinhos»,
«besteiros», pagadores de impostos civis e eclesiásticos,
«vassalos» do rei e «privilegiados» da coroa. Muitos róis e
«numeramentos». Uns foram gerais, extensivos a todo o
território, e outros parcelares ou regionais. Todos visaram
objectivos específicos, geralmente militares e fiscais, e
nenhum teve por finalidade o levantamento exaustivo da
população. De modo que se torna praticamente impossível a
sua utilização em termos estatísticos. De resto,
desapareceram quase todos — uns porque foram sendo

277
sistematicamente destruídos à medida que iam perdendo
actualidade e interesse, caso dos contribuintes para os
«pedidos» régios, e outros porque a voragem do tempo os
levou. Para lá da inexistência nas pessoas e nos poderes da
preocupação de preservar memórias do efémero, acrescia o
facto de esses cômputos, vistos os seus critérios e
finalidades, serem de molde a prejudicar infalivelmente os
interesses de alguém — arrolados, seus herdeiros,
municípios, fidalgos, cleros, funcionários e até
«arquivistas» (24). Porém, a causa principal das perdas
há-de procurar-se nesse velho anexim do pragmatismo romano
inutilia truncat — eliminem-se as coisas inúteis.
O que ficou de toda uma massa informativa, que,
tendo-se preservado, seria imensa, é muito pouco: um rol de
besteiros do conto de todo o País datável do primeiro
quartel do século XV e uma dezena de listas, quase tudo
inquirições, todas elas relativas a parcelas do território
e cronologicamente situadas entre 1335 e 1385. Para o
período do nosso estudo é isto. Não persistiu, tanto quanto
se sabe, nenhuma lista de contribuintes dos impostos gerais
extraordinários aprovados em cortes nos séculos XIV e XV; e
foram feitas dezenas e dezenas delas em todos os concelhos
de Portugal e das ilhas atlânticas ao longo desses dois
séculos, com uma assiduidade notavelmente repetida.
Constituiriam um farto manancial de informações.
Em 1475 pensou-se fazer um levantamento geral dos
habitantes do reino. D. Afonso V preparava-se para intervir
nos negócios da coroa de Castela em defesa dos direitos
sucessórios da princesa Joana Beltraneja, sua noiva, e
antes disso — que implicava o desencadeamento da guerra,
como, de facto, implicou — terá manifestado o desejo de
conhecer o mais detalhadamente possível, em números, o
estado demográfico do País. Conhece-se o parecer escrito
dado a esse intento pelo bispo de Évora, o prior do Crato e
o fidalgo Lopo de Albuquerque. Parecer negativo. Porquê?
Por duas razões: «o grande rumor e atroamento que seria, de
se enquirir e escrever e saber por mandado (e)
constrangimento del-rei»; «e assi mesmo, por a incertidão
que dela ficaria por os casos de mortes, pestelenças,
desterros e homísios que cada dia sobrevêm» (Álvaro Lopes
de Chaves, 1983, p. 54). Estas razões são interessantes e
elucidativas.
Em primeiro lugar, mostra-no-lo a segunda razão mais do
que a outra, o que se pretendia era mesmo um recenseamento
geral dos habitantes e não um «numeramento» fiscal ou
militar, visto que o parecer vai no sentido da inutilidade
da operação face ao objectivo, inutilidade motivada por
factores de mobilidade demográfica. Ora estes factores,
perfeitamente normais os alegados, nunca foram impeditivos
de outros levantamentos. Não teria sentido argumentar
nesses termos se a operação desejada fosse semelhante às
que se faziam por todo o lado a cada passo. E isto levanos
a concluir o seguinte: em 1475 o poder político central é
sensível ao papel dos censos enquanto instrumentos de
controlo social. Essa sensibilidade é sintoma de
mentalidade moderna e de vontade política absolutista. Não
estranharíamos que o mentor da ideia tivesse sido o
príncipe D. João e não o pai. Afinal, esse recenseamento
iria ajudá-lo a ele, logo em Maio desse ano de 1475,
quando, ido o progenitor para a guerra, ficasse por regente
do reino. E viu-se bem o seu empenhamento na acção
governativa e as novidades político-institucionais que
tentou impor (A. de Sousa, 1989a e 1989b).
Não se sabe se o recenseamento sugerido foi ou não
realizado. É provável que não — aliás, ouvir-se-iam ecos
dele na chancelaria e nas crónicas da época. O que não
sucede. A ter-se realizado, haveria constituído ao tempo
uma novidade chocante. Não é verdade que a Bíblia associava
aos recenseamentos a falta de confiança em Deus por parte
de quem os mandava fazer? E não é verdade ainda que,
segundo também a Bíblia, a punição de actos de
recenseamentos gerais sem ordem divina expressa era a fome,
a peste e a guerra, a trilogia da ira (Samuel II, c. 24;
Êxodo, c. 30)? Não nos espanta que por detrás da primeira
razão alegada no parecer negativo contra o censo de 1475
estejam mentalidades formadas na frequência bíblica, as
quais projectam no povo os seus fantasmas. Projecção
expressa no vaticínio do «grande rumor e atroamento que
seria», isto é, na convicção do desencadeamento de acções
de rua contra um acto obviamente sacrílego — precisamente
por ser imposto pela autoridade civil, «por mandado (e)
constrangimento del-rei». Esta interpretação está correcta?
Face ao texto é legítima; e mais: não eram clérigos de alta
fila dois dos três autores do parecer?
Face ao número reduzido de fontes quantitativas para o
estudo da população portuguesa no período que nos ocupa, os
historiadores botam mão a tudo o que possa ajudar. Ajudar a

278
estabelecer e testar cifras absolutas e a descobrir as
evoluções. Ora, aquilo que tem prestado ajuda são
documentos que podemos tipificar em três alíneas:
a) Fontes de dados numéricos de pessoas, de âmbito
nacional, datadas de antes e depois do período histórico do
nosso estudo;
b) Fontes em tudo semelhantes às da alínea anterior,
mas que, em vez de pessoas, registam coisas denunciadoras
de pessoas;
c) Fontes que revelam números soltos de pessoas a
respeito de regiões e lugares ou que contêm informações de
natureza adjectiva, impressões, sobre o estado demográfico
do País ou parcelas dele — tudo isso situável no período
histórico que nos interessa.
Na primeira alínea arrumamos cinco documentos, datados
entre 1287 e 1300, de cuja leitura se extrai uma lista de
tabeliães espalhados por todo o País com excepção do
Algarve, e também o famoso «numeramento» de 1527. Na
segunda inserimos o igualmente famoso «rol das igrejas» de
1320-1321. Na terceira alínea pomos um vasto conjunto de
fontes que, exactamente por ser vasto, iremos
individualizando ao passo que for preciso fazê-lo (25).
Do conjunto de fontes que dissemos, e atentas as
dificuldades conclusórias igualmente lembradas, pode-se
assentir no seguinte:

«Haveria tanta gente no Portugal de 1347 como em


começos da centúria de Quinhentos, ou seja, à volta de
1 500 000 indivíduos no máximo, menos de 17 habitantes/km2»
(Oliveira Marques, 1986, p. 16).
Este cálculo marca o estado actual dos conhecimentos
sobre a matéria e é, de todos os propostos, aquele que tem
por base critérios mais sólidos. Verifica-se, por outro
lado, que ele revela uma taxa de densidade populacional
média muito semelhante àquela que tem sido apontada para o
reino de Castela no mesmo período histórico e superior às
sugeridas para os outros territórios da Península Ibérica.
A ordem seria a seguinte: Castela, 18 habitantes/km2;
Portugal, 17/km2; Catalunha, mais ou menos 14/km2;
Valência, 13/km2; Navarra, 7/km2 e Aragão 5/km2. A população
conjunta destes seis reinos ascenderia, nos finais do
século XIII, a uns 7 milhões — nível próximo do
sobrepovoamento (Garcia de Cortázar, 1980, p. 381).
É claro que estes números são conjecturas mais ou menos
verosímeis. Os autores lembram-no continuamente. Todavia,
fixemos esse valor absoluto de 1 500 000 portugueses nos
princípios do século XIV como uma plataforma de referência
e fixemos sobretudo que passados sensivelmente 200 anos o
valor era o mesmo. Quer isso dizer que a população se
manteve estacionária? (26) Não. Quer dizer que esses dois
séculos foram tempos caracterizados por uma crise geral
gravíssima, de vários contornos, demográfica também,
obviamente. Aí por 1325 já a crise se havia instalado por
todo o Ocidente; em 1348 a depressão demográfica dispara em
flecha; depois, com ritmos diferentes, conforme as
conjunturas e os lugares, vai-se arrastando até mais ou
menos 1460; finalmente, começam a verificar-se sinais de
recuperação definitiva.

A evolução e os ritmos

A evolução e os ritmos do movimento demográfico em


Portugal nos séculos XIV e XV não são ainda, no estado
actual da nossa historiografia, susceptíveis de serem
traçados sem reservas. Por falta de estudos regionais e
locais exaustivos e cientificamente orientados. É que, e
isto é opinião generalizada, será em estudos desta ordem
que irão apoiar-se todas as sínteses possíveis de âmbito
nacional. Porque tais estudos põem em correlação toda a
espécie de fontes, não só aquelas que recordámos atrás,
como outras que não mencionámos, tais como «prazos» e
instrumentos jurídicos reveladores da mobilidade fundiária.
E isso referido a espaços controláveis — pelo menos mais
controláveis do que a vastidão do País inteiro.
Neste momento, dispomos de oito ou nove trabalhos dessa
natureza e utilidade, uns sobre cidades e vilas, outros
sobre regiões (27). É-nos permitido, com base neles e
recorrendo a fontes, sugerir hipóteses sobre a evolução e
ritmos da população nos séculos XIV e XV.
Mantidas todas as cautelas, parece poder aceitar-se o
gráfico (cf. a seguir) — que será olhado tão-só como
tentativa de visualização cómoda de informações
maioritariamente qualitativas e extremamente dispersas.

279

[legenda de figura.]
Evolução demográfica em Portugal nos séculos XIV e XV
(conjuntura)

A curva demográfica

Temos, então, que a curva demográfica, descendente


desde o século XIII, se mantém em valores muito elevados
para a época até 1347-1348, altura em que traduz, como
vimos, um volume populacional de 1 500 000 habitantes. Aí,
cai bruscamente, em espaço de meses, para níveis de
1 000 000 e não pára de descer, embora com mais lentidão,
até 1364. Neste ano, mais ou menos, desenha-se um esboço de
recuperação, que é, todavia, logo anulado, prosseguindo o
movimento de descida. Aí por 1390, novos indícios de
recuperação. Depois, entre 1410 e 1439, uma caminhada
hesitantemente derrapante na linha do milhão de habitantes.
Segue-se uma guinada descendente, acentuada, que só pára na
década de 1450, a década mais despovoada da história de
Portugal — menos de 900 000 pessoas, cerca de 10
habitantes/km2. É a década de todos os lamentos (28). Mas,
aí por 1460, outra vez a recuperação. Que será definitiva e
rápida. De tal forma rápida que os povos rejubilam em
cortes, em 1472, dando-se conta da excelência do fenómeno
(29). Abrandamento do ritmo em 1480-1490, logo interpretado
como mau agouro. Mas não. A dinâmica era mesmo de superação
da crise. Os primeiros anos do século XVI repõem os valores
populacionais de 200 anos atrás.
Este quadro, repetimos, funda-se sobretudo em números
dispersos, isolados, em informações «impressionistas» de
variada procedência — capítulos de cortes, lamentos de
municípios e notas sobre despovoamentos e «mortórios» de
propriedades e aldeias — e em alguns preciosos estudos
sobre mobilidade fundiária e sobre contracção-expansão das
áreas de vinha e olival, nomeadamente na região do Baixo
Mondego. Quadro conjectural, sem dúvida — que o terreno das
conjecturas é o nosso forçoso recreio. Mas inteiramente
verosímil, o quadro.
Pelo menos duas coisas são certas: primeira, não houve,
ao contrário do que alguns historiadores defenderam, um
estacionamento da população nos valores existentes nos
primórdios do século XIV, ou seja, uma estagnação
demográfica de 200 anos. Não. A crise foi bem mais grave —
de perda e aos tropeções. Segunda, a recuperação, também ao
contrário do pensar de historiadores conceituados como
Costa Lobo, não se verificou de modo definitivo nos
princípios do século XV, mas muito mais tarde, aí por 1460.
Foi precisamente nos meados da centúria de Quatrocentos que
ocorreram os níveis mais baixos da penúria demográfica.
Note-se que o exposto não foi fenómeno exclusivo de
Portugal. Verificou-se por todo o Ocidente cristão. No Sul
da França, por exemplo, a depressão parece ter sido muito
mais grave e muito mais tardia a recuperação. A cidade de
Toulouse, que tinha em 1347 cerca de 30 000 habitantes,
contava 26 000 em 1385, 24 000 em 1398, 22 500 em 1405 e
menos de 20 000 por volta de 1450 — e isso apesar dos
constantes afluxos imigratórios. A Inglaterra, outro
exemplo, viu baixar a sua população de 3 757 500 pessoas em
1348 para 2 100 000 em1430 e não repôs o primeiro número

280
senão nos últimos anos do século XVI. Enfim, o mesmo se
verificou na Alemanha, na Itália, na Suíça e nos Países
Baixos (G. Fourquin, 1969, pp. 322-325).

Limites da estrutura produtiva

Uma pergunta ocorre, neste momento, quase espontânea:


como explicar o fenómeno? Que circunstâncias desencadearam
a crise?
Parece hoje pacífico admitir que a causa inicial da
recessão demográfica do século XIV foi outra crise de sinal
oposto: os exagerados níveis populacionais atingidos no
Ocidente no último quartel do século anterior, o XIII (30).
As técnicas agrícolas e os conhecimentos agrológicos,
apesar dos desenvolvimentos conseguidos na décima primeira
e décima segunda centúrias, não teriam acompanhado o
aumento das necessidades do consumo. A explosão urbana não
teve resposta numa correlativa e equilibradora explosão de
recursos naturais. O modo de produção era arcaico, os solos
férteis sobreexplorados, os novos arroteamentos
imprestáveis para dar pão e os hábitos alimentares
irredutivelmente entrincheirados nos cereais e na carne. Os
solos, especialmente os do Sul da Europa, erodidos e
cansados. «Calcula-se que para uma pequena população de
3000 pessoas eram precisos, em pleno século XVIII, cerca de
3000 ha, os quais produzissem 1000 t de cereal» (G.
Fourquin, 1969, p. 209). Tornou-se, portanto, fatal a alta
dos preços. A documentação inglesa mostra que desde 1150
até 1315 a subida dos preços dos cereais nunca parou e que
entre 1175 e 1225 eles provavelmente triplicaram — «foi o
mais violento movimento de preços da história inglesa» (G.
Fourquin, p. 212). Em Paris, de 1229 a 1280 o preço do pão
quadruplicou (ibid., p. 214). É claro que a alta dos preços
se ficou a dever não só à escassez ditada pela
insuficiência da produção como sobretudo aos jogos de um
capitalismo mercantil, incipiente e ingénuo é certo, se
calhar nem merecedor desse nome, mas em todo o caso
actuante e controlador das regras do mercado. O século XIII
assinala o aparecimento da burguesia e entre os primeiros
burgueses, porque os mais ricos da classe, acham-se os
comerciantes de géneros alimentares, quer os de grosso
trato quer os retalhistas. Não foi por acaso que as
primeiras associações profissionais urbanas e as mais
poderosas surgiram impulsionadas por esses homens,
nomeadamente por carniceiros (ibid., p. 209). É natural que
tudo isso levasse a que os ricos se tornassem cada vez mais
ricos e os pobres cada vez mais pobres, com todas as
consequências sociais sabidas. Teológicas e místicas, até.
O que é S. Francisco de Assis, revoltado filho de mercador
e profeta dos pobres, senão uma consciência lúcida mas
politicamente perversa? Consequências sanitárias, também:
uma população subalimentada e enfraquecida aí estava,
acotovelando-se, à espera de qualquer epidemia. Que havia
de chegar, viu-se depois.
Eis o quadro dos primórdios de Trezentos. É um quadro
breve, esquemático, esboçado para sugerir a inevitabilidade
da crise. Crise que, só por si, poderia ser contida
naturalmente em limites afastados da catástrofe. Mas não
foi. E não foi porque circunstâncias incontroladas e
incontroláveis se deram. Chamemos-lhes «circunstâncias
exógenas». Umas serão aceleradores da crise; outras,
disparadores da tragédia.
Entre as primeiras situe-se a provável deterioração
climática registada na Europa Ocidental a partir dos
princípios do século XIII (31). Deterioração climática,
neste caso, significa emergência de condicionalismos
prejudiciais às culturas cerealíferas dominantes na
panificação, culturas de Inverno, o trigo e o centeio — que
não suportam grande pluviosidade entre Novembro e Março e
no princípio do Verão. O milho miúdo, cereal de Primavera,
muito cultivado no Norte atlântico português, era espécie
que não podia servir de alternativa, visto demandar muita
mão-de-obra e não se dar em sequeiro. E, lembre-se — o
leitor desculpe lembrá-lo — o mais e a batata, grandes
matadores de fomes futuras, amadureciam na América, à
espera do século XVI. De modo que um ano mau de trigo e
centeio era na Idade Média o abrir das portas à fome. Ora,
o primeiro quartel de Trezentos é marcado por anos
sucessivos de penúria em toda a Europa, sendo
particularmente graves os 15 que decorreram entre 1309 e
1324. No segundo quartel, foram de escassez aqui e além no
Ocidente os anos de 1326 a 1329, 1331 a 1333, 1336,1339,
1344, 1346 e 1347 (Oliveira Marques, 1986, pp. 30-32).
Contas arredondadas, foram cinquenta anos de fome. E de
peste — essa «afeiçoada e permanente companheira da
281
miséria, da fome e da suja promiscuidade» (M. Roque, 1979,
p. 70).
Vejamos agora o que se passava em Portugal.
Entre 1280 e 1325, reinado do Lavrador, verifica-se um
afrouxamento «do esforço da criação de estruturas
produtivas por parte das maiores empresas eclesiásticas»,
sucedendo o contrário nos domínios régios (J. Mattoso,
1985, II, p. 46). A dissimetria deveu-se, sem dúvida, ao
facto de aquelas «empresas» já se acharem há muito
constituídas e organizadas, caso de antigos mosteiros e
ordens militares, ao passo que o monarca tratava de
estruturar as suas propriedades em ordem a transformá-las
em potência económica. A preocupação das inquirições, a
crescente ingerência nos destinos das ordens militares, a
atracção de mercadores estrangeiros, a criação de uma
armada nacional utilizável em operações de transporte de
mercadorias régias, além de medidas de povoamento em vilas
novas e de recuperação para a agricultura de pauis e
pântanos — tudo isso concorreu para tornar o domínio do rei
«uma grande empresa do tipo pré-capitalista» (Mattoso,
1985, II, pp. 45-46).
Todavia, não é a esse esforço do poder central nem ao
seu sucesso que devemos ir buscar argumentos contra a
crise. Aliás, a preocupação de centralizar a economia
nacional no senhorio régio fomentando a produção e
insistindo no controlo do mercado pode ler-se como indício
do contrário. Como indício de um alerta contra a crise. Mas
também, por outro lado, tudo isso pode ser interpretado
como imperativo de um programa decididamente político. Por
conseguinte, afigura-se prudente uma suspensão de juízo.
É noutros lados que devemos procurar os sinais e
argumentos da depressão que nos começos do século XIV,
vimo-lo, já se afirmava pela Europa. E esses outros lados
serão, em matéria de indícios económicos, precisamente as
tais «empresas eclesiásticas», que entraram em 1300 já
devidamente estruturadas.
Caso do Mosteiro de Alcobaça.
«O século XIV veio encontrar o Mosteiro de Alcobaça
senhor de um extenso domínio, multifacetado para
corresponder a todas as necessidades experimentadas por uma
vasta comunidade medieval, bem organizado, porque o já
longo período de tempo que mediara entre o estabelecimento
dos primeiros monges [...] e o início de Trezentos fora em
grande parte utilizado para organizar uma racional ocupação
das terras e o estabelecimento de um sistema administrativo
que, com ligeiras adaptações, se tornasse funcional [...]»
(I. Gonçalves, 1989, p. 19). Em poucas palavras, Alcobaça

[Legenda de figura.]
Aquisição de aquisição
282
era uma empresa bem organizada e bem gerida. Verdadeiro
potentado agrícola, senhoreava, absolutamente nuns sítios e
maioritariamente noutros, o vasto território estremenho que
vai de Pombal a Lisboa e do Tejo até ao mar. O que possa
dizer-nos é, evidentemente, significativo.
Ora, uma coisa que nos diz é que, entre 1300 e 1330, a
sua capacidade aquisitiva de bens imóveis baixou de 32 ou
33 pontos para 0. A maior quebra de toda a sua história
medieval (v. gráfico, na página anterior). Isto, sem
dúvida, é sintomático. Falta, porém, saber de quê. De crise
demográfica em movimento de recessão? É o que procuramos
descobrir, mas não nos parece fácil. Com efeito, 50% das
aquisições da abadia nesse período fizeram-se por modo de
doações — modo, aliás, que preponderou sobre qualquer outro
nos anos seguintes até 1475, afora brevíssimas e
insignificantes excepções. Por seu lado, os doadores,
quando metiam motivações económicas no gesto, faziam-no
esmagadoramente por necessidade de dinheiro, alimento e
libertação de dívidas (I. Gonçalves, 1989, p. 44). Então,
entre 1300 e 1330, admitindo que a situação social e
económica foi de crise, as doações deviam ter aumentado e
não diminuído. A não ser que...
A não ser que se tenha verificado este processo,
igualmente inteligível: a crise de excesso populacional
levou à fome e à doença; a fome e a doença à recessão
demográfica; o abaixamento a uma reposição do equilíbrio
gente/recursos; este equilíbrio à desnecessidade de vender
ou doar para subsistir. Enfim, é a leitura do gráfico às
avessas. O gráfico ficaria explicado e nós tiraríamos uma
conclusão: os primeiros decénios de Trezentos não devem
considerar-se de crise, mas de equilibração demográfica.
Correcto. Só que o equilíbrio demográfico, neste caso,
seria um presente envenenado oferecido às populações,
maneira de almoço à lista a um condenado à fome. É que a
dinâmica de derrapagem depressa desceria abaixo das
fronteiras do equilíbrio. E então aqueles números são
indício de uma crise que se instalou. É esta a
interpretação que propomos. Mas note-se que esta
interpretação só é válida para uma situação demográfica
saída de uma crise de excesso.
Para além de Alcobaça, não conhecemos mais nenhuma
empresa agrícola que tenha sido pormenorizadamente estudada
no período histórico que nos importa. Mas conhecemos o que
se passou em toda uma região: o Baixo Mondego (M. H.
Coelho, 1983). E o que sabemos confirma inteiramente o que
atrás se disse sobre o panorama europeu: preocupação dos
senhores em incentivar a cultura de cereais panificáveis,
más colheitas, pestes e guerras. Mas há um dado que
aparentemente não funciona: o significativo surto de
arroteamentos que arranca em 1300 e só diminui de
intensidade em 1325, descendo a partir daí para níveis
incaracterísticos. Trata-se do movimento desbravador mais
intenso desde 1200, e que só será superado entre 1400 e
1420 — se é que neste último período não se tratou de
rearroteamentos (cf. gráfico, em cima).
Dá a impressão de que aí por 1325, na região do Baixo
Mondego, ninguém vende, nem compra, nem escamba —
arroteia-se. Ora, isto costuma ser indício de aumento da
procura de géneros e, logo, de expansão demográfica: «a
procura excederia a oferta e os homens tentavam aumentar as
colheitas, estendendo as terras cultivadas» (M. H. Coelho,
1983, p. 18). Por outro lado, nos finais de Duzentos, o
Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, com os da Seiça e
Lorvão, queixava-se contra a penúria (ibid.). Mais tarde,
nas cortes de 1331, são os deputados do povo que criticam
as autorizações régias de exportação de cereais, alegando
que tais concessões empurravam o povo para a fome e que
essa política podia tomar-se «em dano dos ricos e dos
pobres» (capítulos gerais, n.º 47). Finalmente, a «lei
pragmática» de 1340 tem por objectivo combater o luxo e
fixar os preços, indiciando que da parte do Poder se vinha
a tomar consciência de sinais de tempos ruins, até porque
se assistia em Portugal ao «início do proletariado urbano e
ao incremento da mendicidade nos burgos» (Oliveira Marques,
1980, p. 106). Harmonizando tudo isto, e não esquecendo que
no período em causa houve guerras civis no reino, como
interpretar aquele surto de arroteamentos na região de
Coimbra? Reflexos locais da política dionisiana de fomento
agrícola nas terras dele e da coroa? A enorme vastidão de
propriedades régias na área e o que se disse atrás a

283
respeito das preocupações agro-comerciais do monarca
justificam a pergunta. Se a resposta puder ser positiva — o
estudo de que nos servimos não permite decidir — torna-se
desde logo evidente que aquele movimento colonizador não
serve de sinal nem de argumento contra a crise, mas de uma
medida integrada num amplo programa de economia política —
o de produzir para exportar. Não foi afinal essa política
zurzida em cortes pelos deputados do povo?
Enfim, tudo induz e nada se opõe a que admitamos o
início da grande crise geral dos séculos XIV e XV datado de
finais do século XIII e princípios do imediato. A
explicação malthusiana parece válida enquanto mecanismo
desencadeador. Pelo menos para a Europa tomada no seu
conjunto. Portugal não teria feito excepção.
Houve depois aceleradores da crise, conforme já se
mostrou. Uns inteiramente acidentais, como a deterioração
climática a que já nos referimos, e outros conexos com a
causa primeira e esses aceleradores acidentais, as grandes
fomes, as pestes endógenas, a evasão dos campos, a
proletarização das cidades, a multiplicação dos mendigos e
o aumento da criminalidade. A par de tudo isto, a subida do
custo de vida, a afirmação da moeda, o incremento das leis
do mercado, a irrupção da burguesia, o empobrecimento das
camadas baixas da nobreza, a desautorização dos monges e do
clero secular em benefício dos mendicantes e de pregadores
da rua. Em suma, insegurança e desordem social. A estufa
das guerras civis. Que as houve.

A peste negra

Continuando. Em 1348 chega ao reino a peste negra.


Viajava desde o Oriente nas pulgas dos ratos e dos homens
em caravanas e navios (M. Roque, 1979). Originária do
Extremo Oriente, onde se situam os seus viveiros naturais,
ou da região curdo-cáspia, conforme mais recentemente se
crê, o flagelo atinge as margens do mar Negro e do
Mediterrâneo Oriental em 1347. Em Outubro desse ano fustiga
a Sicília. Daí, como também directamente de Constantinopla,
invade o Sul da Europa durante o ano de 1348. Entre esse
ano e 1352 espalha-se pela Europa toda, desde a Islândia à
Rússia e da Suécia às ilhas Baleares, e pelo Norte de
África, do Egipto até Marrocos. Pandemia extremamente
mortífera, a peste negra resultou na maior catástrofe
demográfica de que o Ocidente tem memória. Caindo de
repente sobre uma população sem defesas orgânicas nem
higiénicas nem alimentares, sobre sociedades destituídas de
conhecimentos científicos e clínicos adequados e de
instituições ou organizações profilácticas mínimas, sobre
multidões mentalmente predispostas à superstição e ao
fanatismo e ao pânico — a peste negra cifrou-se não só em
catástrofe demográfica, como se disse, mas também em
tragédia social e cataclismo dos valores (32). Por todo o
lado, na Itália, na França, na Alemanha, os homens mais
responsáveis e os marginais mais anónimos parecem irmanados
num instinto selvagem de subsistir. Subsistir primeiro e,
sendo possível, lucrar. Emparedam-se em nome da lei casas e
bairros com mortos, moribundos e sãos; enviam-se para os
monturos e valas comuns, pais a filhos e vice-versa,
doentes ainda vivos; lincham-se peregrinos e viandantes;
queimam-se judeus; fabrica-se com o pus dos bubões e banha
de enforcados venenos para matar e roubar; usam-se
cadáveres de pestosos como balas biológicas no assalto de
cidades; organizam-se cortejos de autoflagelantes possuídos
da mais paroxística histeria; realizam-se orgias; chama-se
o Diabo; invectiva-se Deus (M. Roque, 1979, pp. 103-112).
Enfim, em casos de situação-limite, a alma humana é um
abismo de soluções. É claro que também se verificaram
comportamentos de abnegação, piedade e altruísmo — mas o
facto de aparecerem registados como heróicos prova que não
foram comuns.
Os efeitos demográficos da epidemia é o que aqui mais
nos interessa lembrar. «Calamitosos», «trágicos»,
«catastróficos», são os adjectivos que os historiadores
costumam escrever. É certo que esses efeitos não foram por
todo o lado uniformes. Morreu-se mais nas cidades do que
nos campos, mais nas residências comunitárias do que nas
casas de família, mais nos centros de vida social intensa
do que nos sítios pacatos. E isto tanto em termos absolutos
como provavelmente em números relativos.
É que a peste negra — «grande pestilência», «grande
mortandade» e «morte negra» (os nomes da época) -
caracterizou-se como um quadro nosológico de três formas
clínicas: a peste bubónica, a peste pulmonar e a peste
septicémica. A primeira forma foi transmitida por pulgas
dos ratos e dos homens e degenerou, em larga escala, na

284
segunda e, menos frequentemente, na terceira. Se bem que a
peste bubónica conduzisse à morte, no espaço de 5 a 10 dias
após o período de incubação, 60% a 90% das pessoas
atingidas e a septicémica fosse absolutamente letal ao fim
de três ou quatro horas depois da inoculação, a forma mais
grave do ponto de vista social foi a segunda, a peste
pulmonar — devido à sua altíssima contagiosidade. Ao passo
que a peste bubónica, por causa da natureza dos seus
vectores, alastrava, digamos assim, numa progressão
aritmética, a pulmonar disseminava-se num crescendo de
progressão geométrica, visto que o contágio era transmitido
através do ar. Dado o contágio, seguia-se um período de um
a dois dias de incubação, findos os quais, diagnosticada a
doença, o veredicto era a morte certa daí a um espaço de 48
a 72 horas (M. Roque, 1979, p. 23). Foi esta, a peste
pulmonar, a grande responsável pela catástrofe demográfica
de 1347-1352.
Houve oscilações de mortalidade de lugar para lugar,
como lembrámos, e de região para região tanto como de país
para país. Conforme o clima, a higiene, o nível alimentar,
os hábitos sociais e o deflagrar precoce ou tardio da
doença, assim se morreu em maior ou menor intensidade.
Admite-se, por exemplo, que em Navarra o número de mortos
atingiu a cifra de 60% em algumas comarcas, que na
Catalunha terá ficado nos 40% e em Maiorca na marca dos 25
pontos percentuais (Garcia de Cortázar, 1980, p. 386). Para
o resto da Europa aduzem-se números igualmente oscilantes
(G. Fourquin, 1969, p. 322). Uma coisa parece adquirida: a
população do Ocidente europeu experimentou uma quebra da
ordem dos 33,3%. O que é um valor de verdadeira tragédia —
tanto mais impressionante quanto é sabido que isso se
processou, em cada país, no ápice de poucos meses. Os
registos que ficaram da hecatombe sofrida acusam
aturdimento, assombro, impotência; falam de números
inacreditáveis de mortos — 2/3 e até 9/10 da população.
Exagero compreensível (Oliveira Marques, 1986, p. 20).
De modo que homens aturdidos, assombrados, doentes e
apáticos foi o que restou. E mais: aldeias e vilas
despovoadíssimas ou desertas, algumas varridas dos mapas;
instituições em desordem; centros administrativos no caos;
terras sem dono; populações em fuga; órfãos ao acaso da
sorte; pilhagens e exacções (33). E a certeza de pestes
futuras. E o contínuo diminuir das gentes, anos e anos e
anos a fio.
Com efeito, a peste negra funcionou, no caminho da
evolução depressionária que se vinha verificando desde os
finais do século XIII, como um mecanismo verdadeiramente
disparador. Disparador de velocidades e ritmos. Fez em
cinco anos um trabalho cujos efeitos e sequelas só passado
um centénio darão mostras de começar definitivamente a
desaparecer.
Voltemos a Portugal.
Conforme se disse atrás, a peste chegou ao reino em
1348, no Outono (M. Roque, pp. 117-136). Não se sabe bem
onde começou nem os caminhos que trouxe. Mas sabe-se que
antes de Janeiro de 1349 havia atingido e feito devastações
no território inteiro. Em Lisboa, Coimbra, Braga, enfim,
por todo o lado, os efeitos foram devastadores (34). E não
só em termos demográficos. Também nos outros, sociais e
morais, de que acima falámos. Fenómenos de mobilidade
social e económica, alta de preços, abandono dos campos,
aumento da mendicidade, incremento da vadiagem e,
naturalmente, desenvoltura do crime são testemunhados numa
circular régia enviada a todos os concelhos do reino logo
no Verão de 1349 (Gama Barros, vol. II, p. 32). São medidas
tendentes a reorganizar o caos. Em todo o País. Porque em
todo o País o caos havia-se instalado. A verdade, porém, é
que a desordem teimou em persistir. As cortes reunidas em
Lisboa no ano de 1352 tiveram como objectivo prioritário
pôr-lhe cobro. Os capítulos que delas ficaram, tanto os
gerais como os especiais (de Lamego), assim como uma carta
régia escrita na altura sobre a moralidade dos clérigos,
mostram bem a que ponto havia chegado o estado de
degradação social e moral. Enfim: efeitos e sequelas desse
grande cataclismo demográfico de 1348 que dizimou entre
nós, calcula-se, de um terço a metade da população
(Oliveira Marques, 1986, p. 21).
Mas a peste bubónica veio para ficar. Antes dela, os
textos já falavam de «pestilências». Todavia, é de crer que
o termo não significasse senão epidemias gerais e locais de
periculosidade muito mais atenuada, febres, gripes e outras
endemias, pois a última peste bubónica e pulmonar anterior
a 1347-1352 havia-se registado na Europa, com carácter
igualmente pandémico, 700 anos atrás (M. Roque, p. 75).
285
Fosse porque se formassem no território focos de peste
silvática, fosse porque a doença se tenha introduzido de
fora, a verdade é que a partir de 1348 em diante nunca mais
os surtos pararam. Uns localizados, outros gerais. Todos
mortíferos. É suposto que nenhum deles teve depois o
carácter espectacular da peste negra nem efeitos tão
desastrosos. Ao menos no que toca à memória que deles
ficou. Maiores cuidados profilácticos, nomeadamente
policiais, melhores conhecimentos empíricos da doença, mais
resistências orgânicas contra a pneumopeste, crescimento
relativo dos recursos alimentares — tudo isso pôde ter
contribuído para que as mortandades não tenham parecido tão
medonhas. Ou então a rotina, a familiaridade com a morte.
Que terá levado as pessoas a não se espantarem nem
atribuírem dimensão de tragédia a uma coisa que se tinha
transformado em experiência repetida em qualquer geração.
Nos séculos XIV e XV qualquer homem que atingisse a idade
madura havia escapado mais de uma vez a um surto de peste.
Vejamos a lista dos anos pestosos documentados em Portugal:
1356, 1361-1363, 1374, 1383-1385, 1389, 1400,1414-1416,
1423, 1429, 1432, 1433, 1437-1441, 1448-1453, 1456-1458,
1464, 1472, 1477-1497 (35).
A lista é tão densa que poderíamos dizer, como disseram
os deputados às Cortes de 1433 (Leiria-Santarém), terem
constituído as pestes um traço habitual do perfil
nosológico do reino — «vossos regnos [lembra-se ao rei] são
muito despovorados por as pestelências contínuas que
padecem» (capítulos gerais, n.º 131).
Nem todas essas pestes, repetimos, foram gerais. Nem
todas, decerto, se manifestaram segundo o quadro clínico de
1348, com complicações pulmonares e septicémicas. Portanto,
mesmo sendo bubónicas, não tiveram a mesma periculosidade
para os doentes nem o mesmo grau de contagiosidade. Mas
todas elas, precisamente por receberem o nome de
«pestilência», foram endémicas e letais.
E voltemos ao gráfico da p. 281, a fim de apreendermos
a evolução e os ritmos da depressão demográfica após 1348.
Para mais facilmente o conseguirmos fazer e mais
rapidamente concluir este tema, atentemos em mais duas
listas, as quais comportam dados cronológicos sobre guerras
e fomes documentadas. As fomes, as pestes e as guerras
foram, com efeito, na época histórica do nosso estudo, os
grandes factores das oscilações demográficas.

Fomes e guerras

As fomes. É preciso cuidado na interpretação do sentido


epocal de «fome». Há um tipo de fome que podemos designar
de biológica — e só esta é que mata — e outro tipo,
chamemos-lhe «cultural», que significa falta dos alimentos
preferidos pelos hábitos alimentares. Já se disse atrás que
na Idade Média europeia os hábitos alimentares andaram
prisioneiros do consumo de pão e de carne. Logo, faltando
pão, havia fome. Isto era assim ainda há 40 anos atrás nos
meios rurais portugueses. De modo que, quando a
documentação medieval fala em «anos de fome», não se infira
daí a inexistência total de alimentos. Havia o recurso à
caça, ao peixe, aos legumes, aos frutos cultivados e
silvestres. Só que os homens consideravam que isso era
«conduto» de pão, que isso, nomeadamente os legumes, sem
pão era dieta de bestas (Magalhães Godinho, 1983, p. 17).
Antes da peste negra, poder-se-á admitir que houve em
Portugal «fome biológica» — embora não se conheçam provas
evidentes. Depois dessa calamidade, e devido à expansão da
floresta e dos incultos e da caça, não é de crer. É
evidente que a falta e carestia de alimentos culturalmente
consagrados conduziu à desnutrição das gentes e a um estado
geral de angústia, pois não se muda de mentalidade
colectiva de um dia para o outro. Ora, é essa debilitação
física e psíquica que há-de ter-se em consideração quando
se fala do factor «fome» como agente da evolução
demográfica. Foi-o, de facto, mas como indutor de doenças e
como redutor de resistências. Não é de presumir que alguma
vez tenham existido em Portugal, no nosso período
histórico, quadros humanos de inanição como os da Somália
dos nossos dias.
O exposto não nega, antes acentua, que a fome tenha
sido um fantasma para o homem medieval — um dos três
látegos maiores da ira divina. A fame, peste et bello
libera nos Domine, rogava-se nas procissões.
E eis a lista das fomes: 1355-1356, 1364-1366,
1371-1372, 1374-1376, 1384-1387, 1391-1392, 1394,
1397-1400, 1403, 1412-1414, 1418, 1422-1427, 1436-1441,
1445-1446, 1452-1455, 1459-1461, 1467-1468, 1472-1473,
1475-1478, 1484-1488, 1490-1491 e 1494-1496 (Oliveira
Marques, 1978, pp. 257-280).

286
Tudo isto são anos em que se verificaram, à escala
geral ou regional do País, crises cerealíferas de
subprodução. Estas crises eram logo designadas, em cortes,
por exemplo, como carestias e fomes.
A lista das guerras, civis e contra Castela, desferidas
a partir de 1348 são as seguintes, em termos cronológicos
da sua ocorrência: 1355, 1369-1370, 1372-1373, 1381-1382,
1383-1385, 1438-1441, 1449 e 1475-1477. Isto sem falar de
escaramuças de fronteira, designadamente entre 1385 e 1396,
e das expedições marroquinas de 1415, 1437 e 1458 (36).
Harmonizando os dados acerca da ocorrência das fomes,
das pestes e das guerras, talvez não seja muito difícil
compreender a trajectória evolutiva do perfil demográfico
do País expresso no gráfico 1. Isso em linhas globais,
obviamente. Mas não fica explicado o comportamento da curva
entre 1440 e 1500. Nem a quebra verificada nesse primeiro
ano nem a velocidade de recuperação depois de 1455, mais ou
menos. Será que a peste de 1437-1441 foi especialmente
mortífera? É possível. Demais, foram anos também de fome e
de guerra. Fossem quais tivessem sido as causas imediatas,
sabemos que a evolução foi de descida e o ritmo
relativamente acelerado. As informações que temos são de
natureza qualitativa, tanto para o País inteiro como para
regiões, e datam dos anos próximos dos meados da centúria.
Capítulos gerais e especiais de cortes, nomeadamente. Os
queixumes a respeito da penúria demográfica intensificam-se
significativamente a partir de 1439, só vindo a atenuar-se
depois de 1465. Em 1472 os queixumes cedem lugar ao
regozijo, face ao aumento já notório da densidade
populacional. No Entre Douro e Minho e em Trás-os-Montes a
depressão demográfica é particularmente sentida nos anos 40
e 50 do século (37).
Braga, que é centro da região tradicionalmente
considerada como a mais populosa do reino, passou nessas
duas décadas por uma verdadeira penúria. São os
procuradores bracarenses às cortes desse período os que
mais insistentemente falam da depressão; e entre as suas
falas há esta notícia interessante, dada em 1451: que nesse
ano o número dos moradores tinha baixado um terço
relativamente ao de 1439 e que o de 1439 tinha baixado um
sexto em relação ao que havia quando o conto dos besteiros
era de 17 (A. de Sousa, 1990).
Em 1451 o conto dos besteiros de Braga era de 35,
estabelecido em 1442 por redução ao rol de 1422, que
impunha 50. Antes deste, o número era de 25. E em que época
vigorou o de 17 que é alegado? Trata-se de um quantitativo
extremamente baixo para a categoria de Braga, se atendermos
aos números conhecidos que vigoravam em 1385 (Oliveira
Marques, 1986, p. 24). Aliás, a tendência foi sempre a de
diminuir os efectivos e não aumentá-los. Braga teria andado
ao contrário: 17, 25, 50. Como explicar isto?
Cremos que a explicação é esta: antes de 1402, sendo a
cidade e seu concelho da jurisdição do arcebispo, era a
ele, e não ao rei, que competia acontiar. Acontiou em 17.
Passada a jurisdição para a coroa, nesse ano de 1402, o
monarca subiu para 25, acréscimo substancial. Depois, em
1422, quando se elaborou a reforma do rol nacional, que
terá baixado geralmente os efectivos, o número de Braga
teve de subir, por uma questão de justiça distributiva. E
ficou em 50. Só depois é que passou a poder baixar
consoante a população ia diminuindo e o rei concordando,
tal como foi sucedendo com outros concelhos do País. E
então o número desce para 35 (1442) e para 25 (1462) (38).
Por consequência, se os deputados bracarenses falaram
verdade em 1439 e em 1451 e a nossa suposição está certa,
segue-se isto: entre 1402 e 1439 a população minhota —
Braga é o coração do Minho — caiu um sexto; e entre 1439 e
1451 caiu um terço. Por outras palavras, nos primeiros 39
anos do século XV houve uma perda demográfica de 16,6%; e
nos doze posteriores outra de 33,3%. O que quer dizer que a
seguir a 1439 o ritmo da depressão duplicou de velocidade.
Estes dados numéricos, obviamente indiciários,
confirmam a convicção dos historiadores recentes de que a
população portuguesa veio sempre diminuindo na primeira
metade do século XV. A novidade está no ritmo. Que,
diga-se, não nos surpreende minimamente, ouvidos os
lamentos das cortes. Aliás, a diminuição substancial feita
nos números de besteiros de vários concelhos do reino, que
não só de Braga, em 1439-1445 e 1458-1468 vai no mesmo
significado (Oliveira Marques, 1986, pp. 24-25).
E voltemos à pergunta inicial: qual o motivo da quebra
de ritmo demográfico, significativamente depressionária,
depois de 1439? A peste (39)?

287
A partir de 1460 o ritmo aumenta novamente, mas desta
vez em sentido ascensional. Depois da década mais dura, a
situada entre 1445 e 1455, a recuperação toma figura.
Lentamente primeiro: depois quase num disparo. Em 1472 o
fenómeno era já bem notório. Diziam os deputados do povo
nas Cortes de Coimbra-Évora, dirigindo-se a D. Afonso V: «A
Deus louvores pela gente crescer em vossos regnos»
(capítulos gerais, n.º 32). E os de Silves, nessas mesmas
cortes, depois de atribuírem a uma maldição antiga a causa
de todas as desgraças da sua cidade: «E ora, Senhor, em
vosso tempo, depois que com a graça de Deus reinais — e
temos que é feito em vossa virtude — a igreja é feita,
ponte acabada, muitas casas em ela [cidade] de novo feitas
e outras repairadas, mulheres viúvas outra vez casadas e os
pais terem netos de seus filhos e o lugar se povoa muito,
assim dentro do lugar como de seus termos» (Coimbra, BGUC,
ms. 700, pp. 380-381). É a alegria de quem vê surgir a
esperança.
Palavras como as citadas e inúmeros sinais condizentes
vão repetir-se. A recuperação da longa crise arrancou
definitivamente. E é difícil aduzir uma explicação
adequada. Com efeito, as pestes continuaram, as crises
cerealíferas também e as guerras igualmente. Tanto em
Portugal, como no resto da Europa. E, todavia, por todo o
lado a recuperação ia-se fazendo. Por conseguinte, a
explicação do fenómeno não pode ser buscada em
circunstâncias conjunturais deste ou daquele país.

A distribuição da população
Este tema da distribuição relativa da população
portuguesa pelo tenitório nacional nos séculos XIV e XV
está pormenorizadamente estudado (Oliveira Marques, 1986,
pp. 16-19). O estado actual do conhecimento de fontes não
permite ir mais além. Por esta razão, daremos aqui as
conclusões e passamos adiante.
Como sempre, as informações documentais que se possuem
são indirectas. Dizem igrejas, dizem besteiros, dizem
tabeliães, dizem fogos — mas não dizem número de pessoas.
Toda a questão radica em converter essas entidades em
número de habitantes. O que nuns casos é impossível —
igrejas e tabeliães; e noutros problemático — fogos e
besteiros do conto. Em todo o caso, essas informações
possibilitam fazer uma ideia das manchas de povoamento e
até comparar regiões com regiões e daí extrair diferenças
relativamente ao que hoje se observa. Mas tudo isso não o
traduzamos em números.
As fontes fundamentais são as seguintes, dispostas
cronologicamente:
a) Rol dos tabeliães — 1287-1290;
b) Rol das igrejas — 1320-1321;
c) Rol dos besteiros — 1422 (40).
A primeira destas fontes está fora, como é evidente,
dos séculos do nosso estudo. Funciona como ponto de
partida.
Além destas fontes, dispõe-se ainda de um extenso
acervo de notícias, cada dia mais vasto, quantitativas
umas, qualitativas outras, da mais variada índole e
procedência. Foram estas notícias, em geral publicadas em
artigos especializados e histórias regionais e locais, que
possibilitaram cartografar as áreas dos fogos-mortos
tardimedievais (Oliveira Marques, 1986, pp. 29-30).

Distribuição geográfica

Comparando os três mapas das páginas 289,290 e 291 — e


não esquecendo que o dos tabeliães omite todo o Algarve e
cidades e vilas de jurisdição privada, tais como o Porto,
Braga, Setúbal, etc. — podem-se tirar as seguintes
conclusões: (41)

a) A população distribui-se pelo território segundo


critérios de preferência relativamente inalterados. As
manchas são semelhantes na sua geometria e equiparáveis em
densidade. No «numeramento» de 1527-1531 a mesma impressão
geral se experimenta. Isto quer dizer que não se deram
alterações notórias nos motivos socioeconómicos e
psicológicos da escolha do habitat entre os Portugueses ao
longo de dois séculos e meio. E, consequentemente, que a
288
fixação à terra foi ditada pela tradição de modos de vida
rigidamente estáveis — económico-culturais.
b) Mantêm-se os tipos de povoamento dentro das
categorias e fronteiras que, grosso modo, permaneceram até
ao século XX. Um Norte atlântico de povoamento disperso e
vida urbana pouco significativa: um Norte transmontano de
povoamento aglomerado, rarefeito e urbanamente rudimentar:
e um Sul mediterrânico com manchas povoadas extremamente
descontínuas, enormes extensões incultas, povoamento
concentrado e urbano. Deste conspecto geral faz excepção,
no Norte transmontano, a Beira interior, que parece ter
desfrutado de um bom índice de civilização urbana, com
apreciáveis centros, como a Guarda, a Covilhã e Trancoso.
No Sul, devemo-nos acautelar a respeito do Algarve por duas
razões: a primeira, já dita, é a falta de dados sobre os
tabeliães; a segunda radica no facto de a região ter
entrado mais tardiamente no senhorio de Portugal, o que faz
com que o número de igrejas possa não traduzir nem a
densidade populacional nem o tipo de cultura dos
habitantes.
c) As densidades relativas das populações de região
para região apresentam-se também constantes nos três mapas.
Por ordem decrescente:
O Entre Douro e Minho é a zona mais populosa tanto no
litoral como no interior, nos vales como nos outeiros, até
altitudes não superiores a 600-700 m. Os concelhos de
Guimarães e de Braga parecem ter sido os mais habitados do
País.
As áreas ribeirinhas do Alto Douro até à foz do rio
Tâmega e a Beira transmontana vêm a seguir, embora a
aparente distância. Isto em 1290 e em 1321. Em 1422 já não
é assim, porque a Beira, nomeadamente o aro da Guarda,
acusa um esvaziamento. Em benefício de Viseu? De Lamego?
A Beira atlântica mostra-se sempre muito desigual. Tem
zonas bem povoadas — como Viseu e Coimbra e o vale do Vouga
a montante de S. Pedro do Sul; zonas razoáveis — como o
Baixo Mondego; e zonas praticamente desertas — como o
triângulo da Beira-Mar, as serras todas e o vale do Vouga,
a jusante do seu curso médio.
A Estremadura é Sul mediterrânico. Tem centros urbanos
com áreas periféricas densamente povoadas — Lisboa e
Santarém por exemplo; tem vilas dispersas de população
média; e tem amplas áreas que são ermos — como todo o
litoral do paralelo de Leiria para norte.
Trás-os-Montes tem mais núcleos populacionais do que a
Estremadura, mas não apresenta centros urbanos
significativos. Possui Bragança, Chaves, Moncorvo, uma Vila
Real recentemente fundada, algumas praças-fortes mal
povoadas e minúsculas aldeias dispersas.
O Alto Alentejo e a região de Évora: inúmeras vilas
consideráveis e uma grande cidade, mas tudo isso num
infindável mapa de charnecas.
O Algarve é duas zonas: uma, litorânica, provavelmente
de população densa; outra, interior e serrana, praticamente
deserta.
O Baixo Alentejo, se se lhe tirasse Beja, Serpa, Moura
e pouco mais, ficava sem ninguém.
A península de Setúbal parece ter tido o seu
desenvolvimento depois da peste negra. É omitida no rol dos
tabeliães, o que quer dizer que não registava em 1290
nenhum povoado importante além de Palmela, Setúbal e
Sesimbra — não indicados por serem de jurisdição privada.
No rol de 1321 apenas se anotam 10 igrejas. Em
contrapartida, no ano de 1422 o número de besteiros é muito
considerável.
Finalmente, o Ribatejo e o litoral alentejano são as
regiões mais despovoadas do País. Ermas, praticamente.
d) Outra conclusão que se tira do confronto dos três
mapas é a de que os Portugueses fugiam do litoral, embora
gostassem de ter acesso a ele. Não há nenhuma grande cidade
em cima das ondas (42). Lisboa, Coimbra, Porto e Silves
eram cidades fluviais; Santarém, que para cidade só lhe
faltou ter bispo, estava nas mesmas condições. As outras,
Braga, Lamego, Guarda, Viseu e Évora, nem rio tinham. Com
excepção da linha de costa do Noroeste, desde Caminha até
Aveiro, e da costa algarvia, tudo o mais eram praias e
arribas desertas, afora desgarradas aldeolas de pescadores,
aqui e além, sem interesse económico para o País.
e) A ordem hierárquica das localidades portuguesas
deduzida da densidade das respectivas populações é a
seguinte em 1290: Lisboa, Santarém, Bragança, Guimarães,
Évora, Coimbra, Guarda, Covilhã, Chaves, Leiria, Trancoso,
Estremoz, Ponte de Lima, Elvas, Torres Vedras, Lamego.
Pinhel, Abrantes e Mirandela. Isto segundo o rol dos
tabeliães, onde faltam, conforme dissemos, localidades tão
importantes como Braga, Porto e Silves. É óbvio que esta
seriação atentas as características da fonte informativa,
deve ter-se como muito hipotética.

289
[Legenda de figura.]
O povoamento em 1320-21 (segundo o rol das igrejas, da
mesma data). Cada ponto indica uma ou mais igrejas,
conforme indicado (extraído de Oliveira Marques, 1986, p.
17).

290
[Legenda de figura.]
O povoamento em 1422 (segundo o rol dos besteiros do
conto da mesma data). Cada círculo indica o número de
besteiros assignado (extraído de Oliveira Marques, 1986. p.
26).

291
[Legenda de figura.]
Localidades mencionadas na lei de 1290 sobre os
tabeliães (extraído de José Mattoso, 1985).

292
Em 1321, apoiados agora no rol das igrejas, seria
assim: Lisboa, Santarém, Covilhã, Trancoso Guarda, Pinhel e
Coimbra, Portalegre, Montemor-o-Velho e Sabugal, etc. Neste
etc, nono lugar uma quantidade enorme de tetras com cinco
igrejas onde acamaradam cidades e vilas, como, por exemplo,
Évora e Braga com Castelo de Vide e Tomar. O Porto, assim
como Lamego, Silves e Viseu são pontinhos minúsculos,
imperceptíveis. Não se nos afigura que esta seriação, tal
como a anterior, traduza importância demográfica ou
política ou económica. Nem mesmo religiosa — o que parece
ser líquido, apesar de o critério serem igrejas. Já se
reparou que as sedes diocesanas, afora Lisboa, não aparecem
ou, se aparecem, Coimbra e Guarda somente, é em
secundaríssimo lugar? É que, tudo o indica, impunha-se aos
bispos defender as suas catedrais de concorrências
desagradáveis, como, por exemplo, aquelas concorrências que
os «pregadores» e os «mendicantes» desencadeavam.
E agora 1422: o rol dos besteiros do conto. Tem servido
este rol, a partir do historiador oitocentista Rebelo da
Silva, para, de uma forma crítica, se estabelecer o cômputo
absoluto da população. É esta, por conseguinte, a melhor
fonte para o propósito que perseguimos, o de fixar a
hierarquia relativa das cidades e vilas portuguesas. Em
1422, obviamente. Fica a lista desta maneira: Lisboa,
Évora, Santarém, Coimbra e Guimarães ex aequo; Braga,
Guarda, Torres Vedras, Almada, Setúbal, Elvas e Beja, todas
ex aequo também; a seguir, uma vasta cópia de terras. O
Porto, Lamego, Viseu e Silves ficariam de novo no escalão
das terras menores. Não; esta lista também não traduz a
verdade. Sabemo-lo dos cronistas e de muitas outras fontes,
tantas que se torna preciosismo indicar uma.
Enfim, não cremos que seja possível responder a esta
alínea de modo claro com base naqueles três mapas. Se foram
úteis para as outras questões, para esta não o são tanto.
Gama Barros, no volume quinto da sua História da
administração pública em Portugal nos séculos XII a XV, a
pp. 110 e seguintes, insere uma rubrica intitulada «As
povoações mais importantes no fim do século XIII». Apoia-se
em documentação diferente daquela que estamos a seguir. Não
faz, porém, uma lista ordenada. Indica as localidades mais
importantes de cada comarca, com excepção de
Trás-os-Montes, as quais seriam as seguintes: no Algarve,
Silves; no Alentejo, Évora e Beja; na Estremadura, Lisboa e
Santarém; na Beira, Coimbra, Viseu, Guarda e Lamego; e no
Entre Douro e Minho, Porto, Guimarães e Braga. Para o
autor, o critério da importância relativa é
económico-social.
Cremos que a melhor fonte para se decidir esta questão
são as notícias dos assentamentos em cortes. Como se sabe,
as cortes tiveram o seu início em meados do século XIII,
sendo as precedências dos deputados consideradas matéria de
distinção. Primeiro as cidades, depois as vilas, segundo
uma ordem rigorosa em cada bancada. Só Santarém furou este
método, sentando-se entre cidades. Por causa da sua
excelência económica e social, decerto, mas também por ser
vila que os reis acotiavam.
Chegou até hoje uma planta fidedigna dos assentamentos
referidos. Data de 1481-1482. Trata-se, evidentemente, de
uma data tardia. Porém, tal como explicámos noutro livro, a
ordem dos assentamentos traduz mais a realidade do século
XIV do que a do século XV (A. de Sousa, 1990, vol. I, p.
194). Porquê? Porque, à medida que umas cidades
ultrapassavam outras em riqueza e projecção, iam exigindo
subir de lugar — o que não conseguiram senão no século XVI.
Foi o que sucedeu com Évora relativamente a Coimbra e com o
Porto relativamente a Santarém (ibid., pp. 132-134 e 152).
Veja-se, então, a ordem: Lisboa, Coimbra, Évora,
Santarém, Porto, Braga, Lamego, Viseu, Silves, Guarda,
Elvas, Guimarães, Beja, Tavira, Leiria, etc. Esta a ordem
que podemos considerar exacta para meados do século XIV,
exceptuando Braga — que só deu entrada no Parlamento em
1402 — e Silves — que ficou à frente de vilas mais
importantes do que ela por deter estatuto de cidade sede de
bispado.
Em meados do século XV, Évora e o Porto reivindicam ser
promovidas a lugares mais cimeiros. Achavam que devia ser:
Lisboa, Évora, Coimbra, Porto, Santarém, etc. Em 1535, os
assentos da primeira bancada foram ocupados por esta ordem:
Lisboa, Évora, Porto, Coimbra e Santarém (ibid., p. 192).

293
[Legenda de Figura.]
O espaço: as cidades
Braga. Planta de 1594 – a qual dá o espaço da cidade no
século XV. Note-se a sé «templum maximum», colocada,
incorrecta mas bem simbolicamente, no centro da figura. À
sua frente, menos impressiva, mas ainda assim imponente, a
«domus civica» ou paço municipal. A norte da sé, no meio
dum vasto território, pertencente ao arcebispo, está o
palácio-fortaleza que D.Fernando da Guerra, primaz das
Espanhas entre 1417 e 1467, mandou erguer. Observem-se os
muros e suas torres. Orgulhosos deles, diziam os
bracarenses ao rei em 1451: «Senhor, a vossa mercê o poderá
saber, em vossos reinos não há cidade melhor corregida que
esta.» [Cap. 1.º dos esps. De Braga das cortes de 1451
(Santarém)]

Em conclusão, cremos que aqueles três mapas, lidos


sinopticamente, e os assentamentos das cortes nos darão uma
ideia da importância relativa das diversas cidades e vilas
portuguesas ao longo dos séculos XIV e XV, desde que
tenhamos o cuidado de nos interrogarmos sobre que tipo de
importância se trata — económica, militar, demográfica,
religiosa, política. A importância absoluta será, em cada
caso e época, uma resultante da soma desses tipos. A qual,
pensamos, é melhor significado nos assentamentos de cortes
do que nas outras fontes informativas.
f) Última consideração: a direcção do progresso é de
face voltada ao mar. Entre 1290 e 1321 conjecturava-se o
contrário ou havia hesitação. Mas entre 1321 e 1422 a
decisão foi tomada. Bragança, Guarda, Covilhã, Sabugal e
toda a linha raiana, nomeadamente a beirã e alto
alentejana, diminuem de população e importância. Santarém,
até, desiste de competir com Lisboa. A zona tagana da
península de Setúbal arrancou da sua insignificância. No
Algarve, Lagos e Faro desenvolvem-se às custas de uma
Silves assoreada. No Noroeste vai-se verificando o mesmo
fenómeno entre Viana e Ponte de Lima. Vila do Conde com
Azurara decretam a extinção de Rates. Enfim, o Porto. O
Porto é paradigmático. Enquanto Braga se ufana dos seus
muros e Évora dos seus campos, o Porto declara-se uma fraga
e gaba-se da sua foz. E do comércio marítimo (43).

294
Com esta consideração não se contradiz a outra que se
fez na alínea d). Porque uma coisa é gostar de residir em
cima do mar e outra ter de enfrentá-lo para poder
progredir. A vocação marítima de Portugal foi uma invenção
da necessidade e da crise.

Distribuição étnica

Acabámos de falar da distribuição geográfica da


população. Há outros tipos. A distribuição étnica,
estatutária, profissional, etária, sexual, etc. São
aspectos extremamente difíceis de medir na Idade Média,
época, recordemo-lo, pré-estatística.
De todos estes tipos de distribuição demográfica,
aquele que se encontra estudado em Portugal, designadamente
nos séculos XIV e XV, é o da distribuição étnica,
especialmente os judeus (M. J. Feiro Tavares). É evidente
que tomamos aqui a palavra «étnico» em sentido estritamente
cultural, sócio-religioso, e não em sentido rácico. Até
porque «a antropologia não reconhece as assim chamadas
“raças” ariana, latina ou semítica, que considera, de
preferência, como grupos linguísticos; Maometanos, Hindus
ou Judeus, que, quase sempre se referem a adeptos de
determinadas religiões» (M. Titiev, 1972, p. 74). Por
conseguinte, não tem qualquer interesse histórico nem, ao
que parece, antropológico interrogarmo-nos acerca de
índices de miscigenação rácica eventualmente provocada por
contactos sexuais entre cristãos, judeus e mouros. Que
existiram obviamente, com tanta maior frequência,
historicamente inócua, quanta maior a convivialidade e a
tolerância entre os grupos (M. J. Ferro Tavares, 1982, pp.
397-447).
Os judeus chegaram ao território português e
instalaram-se muito antes da fundação da nacionalidade e
até antes de existir o nome «Portugal». Isto é seguro. Não
se sabe é números. Nos séculos XVII e XVIII espalhavam-se
por todo o País, em comunidades mais ou menos numerosas,
preferentemente ao longo da raia seca e em cidades e vilas
do litoral. Dedicaram-se maioritariamente ao sector
secundário e terciário da economia, muito embora houvesse
entre eles lavradores. Daí preferirem os centros urbanos.
D. Dinis protegeu-os e legislou de modo a dotar as
comunidades de órgãos administrativos e judiciais paralelos
aos da sociedade cristã. Chamava-lhes «meus judeus», coisas
do rei, para acentuar, por um lado, que eles não tinham em
Portugal nem podiam ter outro senhor e, por outro lado, que
a segurança deles assim como a prosperidade dependiam do
seu beneplácito. Todos os outros reis até D. João II
procederam da mesma forma.
É provável que depois da peste negra, devido ao surto
de perseguições fanáticas verificadas em toda a Europa,
Espanha incluída, as comunidades judaicas portuguesas
tenham engrossado substancialmente. Não se conhecem casos
de pogroms sistemáticos no País por essa altura; nem mesmo
perseguições localizadas — se bem que a determinação de D.
Afonso IV de tornar obrigatória a fixação de residência em
bairros próprios, as judiarias, com horas de recolher
imperativo e acesso fechado, possa interpretar-se como uma
medida de protecção contra ódios cristãos. Fosse esse o
motivo ou outro qualquer — como, por exemplo, a pressão do
episcopado para que tal se fizesse, dando-se cumprimento a
directivas papais — a verdade é que a documentação que nos
chegou não regista violências colectivas anormais. Pelo
que, pode dizer-se, não só nessa altura da grande peste
como posteriormente, até 1496, os judeus encontraram em
Portugal um refúgio eficaz. Por isso as comunidades, ditas
«comunas», foram-se multiplicando, as judiarias crescendo
em população e espaço dentro de cada comuna e os judeus
progredindo em riqueza, importância sociopolítica e
cultural. As perseguições que se verificaram aqui e além,
sempre fenómenos localizados e rapidamente combatidos pelo
Poder, tiveram geralmente como desencadeadores a inveja e a
rapina, mais do que razões ideológicas — que, é certo, não
deixaram de se invocar.
Houve em Portugal, no século XIV, 32 comunas, metade
das quais na raia seca, desde Chaves a Serpa; a outra
metade distribuiu-se pela raia molhada, Porto, Atouguia,
Lisboa, Setúbal, litoral algarvio, e por cidades e grandes
vilas do interior, Braga, Viseu, Coimbra, Trancoso, Évora,
Beja, Santarém, etc. Este número de comunidades judaicas
sobe para 139 no século XV, cobrindo literalmente o País
inteiro, com especial incidência nas zonas fronteiriças da
Beira e do Alentejo (v. mapa na página 296). Tal expansão
deveu-se sobretudo à protecção dos nossos reis,
contrastante com a política anti-semita da época, e, sem
dúvida, à maior capacidade de tolerância dos Portugueses em
comparação com a dos Castelhanos. Todavia, apesar do enorme
afluxo judaico verificado após as expulsões dos Reis

295
Católicos, nunca a população israelita atingiu, no volume
dos habitantes do reino, proporções significativas.
Calcula-se que o seu valor percentual dificilmente tenha
ultrapassado o ponto quatro nos anos de maior densidade,
como esses que antecederam a data da proscrição manuelina,
1496 (M. J. Ferro Tavares, 1982, p. 74). Os judeus foram
sempre, portanto, uma minoria étnica, tanto à escala do
País, como de qualquer localidade ou região.
Uma minoria, pois. Mas minoria extremamente activa,
económica e culturalmente muito acima da média. É sabido
que se encontravam no meio das fileiras judaicas os homens
mais instruídos e avançados do século XV português,
médicos, cirurgiões, economistas, técnicos e artífices. A
imprensa, por exemplo, tal como, muito antes, o papel, foi
introduzida por eles. De modo que as perseguições iniciadas
no princípio do reinado de D. Manuel — conversão forçada ou
exílio e expropriação oficial dos filhos menores —
causadoras de tantas desgraças e vergonhas futuras, devem
ser recordadas como um dos maiores erros políticos da nossa
história.
Outra minoria étnico-religiosa foi a dos mouros.
Descendentes dos antigos possuidores do território, foram
permanecendo em Portugal após a Reconquista, numa posição
estatutária de vencidos — uns, escravos, pouco a pouco
forros, e outros livres; todos política e socialmente
diminuídos. Espalhavam-se pelos campos ou congregavam-se
nos centros urbanos em bairros próprios designados
«mourarias», «aljamas» e «arrabaldes» (44). Esta última
palavra irá evoluir para significados que perderão o
sentido inicial, indiciando a assimilação dos mouros pela
maioria cristã. A mouraria situada mais ao norte, de todas
as que se conhecem, foi identificada em Leiria (Saul A.
Gomes, 1991). Depois, ainda na Estremadura, Santarém,
Alenquer, Sintra e Lisboa. No Alentejo sabe-se de catorze e
no Algarve de quatro, ou seja, tantas quantos os grandes
centros populacionais das duas províncias (v. mapa).
Compreende-se perfeitamente esta distribuição e densidade.
Os mouros, ainda muito numerosos no Algarve em meados
do século XIV, foram diminuindo rapidamente. Não sabemos
números, é certo, mas vemos ir desaparecendo
progressivamente as referências documentais à sua presença,
sinal de evaporação socioeconómica. Isto é-nos testemunhado
de modo significativo nos capítulos de cortes — em que, no
século XIV, os mouros aparecem ao lado dos judeus como
termo de um binómio inseparável, deixando pouco a pouco de
aparecer ao longo do século XV. Em 1472, por exemplo,
quando as cortes falam de mouros, muitas vezes querem
significar tão-somente os escravos trazidos do Norte de
África, «mouros brancos e negros», tanto os prisioneiros
das campanhas marroquinas como os pretos das expedições
esclavagistas (cap. gerais, n.º 6). Cremos que as
referências a mouros, enquanto escravos, feitas a partir do
segundo quartel de Quatrocentos dizem respeito a essa
categoria de pessoas e não aos descendentes dos mouros
autóctones. Estes já estariam muito diluídos na massa da
população cristã, se bem que em 1451 os deputados dos
concelhos requeiram em cortes uma lei pragmática contra o
luxo de alguns (cap. gerais, n.º 12) e em 1456 os prelados
exijam do rei medidas contra o embelezamento de mesquitas
(cap. do clero, n.º 12). Enfim, na última década do século
XV as perseguições religiosas não deixarão a respeito dos
mouros ecos assinaláveis. E o contrário teria sucedido se
essa minoria houvesse conservado um mínimo de peso
demográfico e sócio-religioso.
Uma outra minoria étnica, esta sim caracteristicamente
rácica, é a dos escravos negros subsarianos. A primeira
aportação está bem datada e dramaticamente descrita por
Zurara: sucedeu em Lagos, no ano de 1441. Depois deste
primeiro «grande sucesso» dos descobrimentos henriquinos
África abaixo — o primeiro e porventura único para as
mentes mercantis contemporâneas — outros se seguiram em
repetição dele, numa verdadeira corrida ao homem africano —
esse que haverá de colorir a América, a Europa e o Mundo
com os seus tons e os seus ritmos. Entre 1441 e 1448,
entradas de escravos, mais de 1000; entre 1450 e 1460,
acima de 7000 metidos na Europa através do Algarve e Lisboa
(Oliveira Marques, 1986, pp. 39-40). Nos anos seguintes, o
crescendo do comércio tornado negócio do Estado. Em 1472 os
concelhos pedem a D. Afonso V que ele nem outros vendam
escravos para fora do reino e o rei indefere o pedido,
alegando que, «segundo a multidão dos ditos escravos mais
proveito se segue serem levados e vendidos fora do reino
por causa dos mores preços que se por eles dão» (cap.
gerais, n.º 50). E faz questão de dizer que tais
exportações estão sob seu controlo, controlo que acautela o
interesse seu e do País, de tal modo que proíbe a leva dos
escravos directamente das terras de origem até aos mercados
estrangeiros consumidores sem passarem pelo reino.

296
[Legenda de figura.]
Comunas de jedeus e mouros (extraído de Ferro Tavares,
1982, p. 83)

297
Quer ele dizer que o negócio é florescente, altamente
lucrativo nas praças europeias, rentável enquanto comércio
externo. E isto ensina-nos que os escravos negros da Guiné
contribuíram mais para aumento de divisas do que para
aumento da população. Pelo menos no século XV (45).
Enfim, sobre o número, distribuição geográfica e
consequências sociais desencadeadas pelo afluxo de escravos
negros ao País, nada se pode dizer. Sabe-se que a razão
jurídica do reino passa a ocupar-se deles a partir de 1457
e que o Parlamento faz o mesmo passados onze anos — o que
indicia que se tornavam uma presença cada vez mais notória,
a exigir até mexidas no statu quo (46). Porém, os grandes
impactes sociodemográficos da escravatura negra são
posteriores ao período medieval da nossa história.

Os judeus, os mouros e os escravos, que acabámos de


considerar, foram tidos como pessoas «naturais», ou
«naturalizadas». Gente do reino, como a maioria cristã.
Súbditos d’el-rei. Ora, além de todos estes, frequentou o
território mais ou menos demoradamente uma população
estranha, variável conforme os anos, os tempos e as
estações. Foram os «estrangeirados». Uns transitavam sem se
estabelecerem, outros estabeleciam-se mantendo-se
independentes da nação, outros, enfim, integravam-se no
corpo nacional. Mercadores, feirantes, almocreves,
carreteiros, marinheiros, pastores, peregrinos, pedintes,
colectores de esmolas e tributos, frades, pregadores
ambulantes, embaixadores, correios, cavaleiros andantes,
asilados, vagabundos, saltimbancos e criminosos em fuga —
de tudo houve (47). É que a vigilância das fronteiras
preocupou-se, nos séculos XIV e XV, com mercadorias e não
com pessoas. As pessoas beneficiavam de livre trânsito, só
restringido em tempo de guerra e, mesmo assim, apenas
extensivo aos naturais de países em confronto. De resto, a
indefinição das linhas demarcatórias dos países e a
insuficiência do policiamento, mais fiscal do que militar,
não obstaram a que, fosse a situação de guerra ou paz, as
travessias se fizessem. E não se esqueça que o homem
medieval era de sua natureza inclinado a viajar.
De todos os estrangeiros, foram os mercadores que
mereceram a maior atenção dos documentos. Os outros
aparecem, mas acidentalmente, quando se fala de justiça,
política e economia, administração e fiscalidade. De um
ponto de vista estritamente demográfico, só os mercadores,
e, de entre eles, os «estantes», interessaria considerar.
Mas eles não foram população portuguesa, por muita
importância que tenham tido no desenvolvimento económico do
País. Não podendo nós concordar com os parlamentares de
1481-1482, que afirmavam serem os «estantes» e mercadores
estrangeiros destruidores da terra, damos razão aos de 1455
no ponto em que dizem estarem esses mercadores vazios de
dedicação ao rei e à nação (48). Tinha-se consciência de
que os estrangeiros estagiavam em Portugal por seu
exclusivo interesse ou por interesse dos seus países,
países a que regressariam na primeira oportunidade,
locupletados na espionagem e no contrabando.
Em suma, entendemos que não devem ser contemplados
nestas considerações sobre população portuguesa dos séculos
XIV e XV os naturais de outras nações. O seu lugar será
adiante, noutros capítulos.

Distribuição estatutária

A distribuição estatutária dos habitantes, ou seja, a


repartição dos indivíduos pelos três grandes grupos que
compunham a sociedade, clero, nobreza e povo, eis aí uma
questão demográfica interessante. Para já, apenas nos
interessa conhecer números: quantos clérigos, quantos
nobres, quanto povo. E novamente nos achamos perante a
dificuldade, já tantas vezes repetida, de querermos coisas
que os documentos não dão. O que quer dizer que não podemos
sair ainda do recreio das conjecturas.
Oliveira Marques, baseado no rol das igrejas de 1321,
no cômputo das colegiadas e em diversos estudos de
dioceses, propõe números e percentagens de clérigos para o
período imediatamente anterior à peste negra e para os
meados do século XV. São cálculos prudentes, que, se pecam,
é por defeito, mas que, por outro lado, parecem condizentes
com o panorama europeu (Oliveira Marques, 1986, pp.
221-226) (ver quadro que se segue).

298

Os efectivos do clero nos séculos XIV e XV

Antes de 1348
Valores absolutos:
Clero secular ± 4200
Clero regular ± 4300
Totais - 8500
Antes de 1348
Valores percentuais:
- Clero secular ± 0,280
- Clero regular ± 0,286
Totais - 0,566

± 1450
Valores absolutos:
- Clero secular ± 4 200
- Clero regular ± 3 800
Totais - 7000

Valores percentuais:
- Clero secular ± 0,466
- Clero regular ± 0,422
Totais - 0,777

Nota — Os valores percentuais são estimados por


referência à população global do País (1 500 000 habitantes
antes de 1348 e 900 000 em meados do século XV). Os valores
absolutos, conforme se diz no texto, são inteiramente
conjecturais.

Vê-se que o número de clérigos em relação ao dos


habitantes nunca chegou a 1%. À primeira vista, estes dados
conjecturais contradizem a imagem que se tem da
omnipresença clerical na Baixa Idade Média. Mas é só à
primeira vista. Com efeito, a quase totalidade desses
números concentrava-se nas cidades e nas vilas, deixando os
campos praticamente no zero — excepto numa ou noutra
localidade onde se erguia um qualquer mosteiro. Por
conseguinte, a paisagem «clericizada» da época medieval
afigura-se objectiva. Só que se trata de uma paisagem
urbana.
É de notar que não entra nos cálculos uma categoria
clerical muito numerosa, a dos clérigos meramente
tonsurados e de ordens menores, inclusive casados. Esta
categoria de cidadãos, estatutariamente muito ambígua,
criou problemas contínuos à administração civil central e
local. Eram homens que reivindicavam as isenções e
privilégios forenses e fiscais do estado eclesiástico, com
graves prejuízos dos municípios e enormes complicações para
as forças policiais, os corregedores e os juízes. Há toda
uma série de medidas régias, ao longo do século XV, para
aniquilar esta categoria clerical. D. Afonso V chegou mesmo
a obter de Roma legislação concreta para isso (49).
Todavia, conforme sabemos por diversos capítulos de cortes,
os prelados, tanto seculares como religiosos, não estavam
minimamente interessados em colaborar com o poder civil — e
as «ordenações especiais» e quase clandestinas nunca
deixaram de fazer-se e de multiplicar clérigos. Como, por
exemplo, essas ordenações especiais efectuadas no dia 5 de
Novembro de 1480 na câmara da residência do bispo
ordenante, em Sines, de onde saíram 16 clérigos de prima
tonsura, entre os quais os quatro irmãos do famoso Vasco da
Gama, o do caminho da índia, e ele também (50). A recepção
de ordens menores parece ter sido um modo corrente de
promoção estatutária entre os nobres dos últimos escalões e
os burgueses. Não interessava a estas franjas da sociedade
nem aos bispos e priores pôr cobro a isso.

Os efectivos da nobreza nos séculos XIV e XV

Antes de 1348
Valores absolutos:
- Grande nobreza – ± 500
- Média e pequena nobreza – ± 4500
- Totais – 5000

Antes de 1348
Valores percentuais:
- Grande nobreza – ± 0,033
- Média e pequena nobreza – ± 0,300
- Totais – 0,333

± 1450
Valores absolutos:
- Grande nobreza – ± 475
- Média e pequena nobreza – ± 4275
- Totais – 4750

Valores percentuais:
- Grande nobreza – ± 0,052
- Média e pequena nobreza – ± 0,475
- Totais – 0,527

Nota — Os valores percentuais são estimados por


referência à população global do País (1 500 000 habitantes
antes de 1348 e 900 000 em meados do século XV). Os valores
absolutos, conforme se diz no texto, são inteiramente
conjecturais.

299
E os efectivos da nobreza? Mais difíceis ainda de
especificar. Sirvamo-nos outra vez dos cálculos de Oliveira
Marques (1986, pp. 241-242). Conjecturais, insista-se. Mas
utilíssimos. Utilíssimos porque nos possibilitam uma imagem
do panorama social e demográfico do País, nos séculos XIV e
XV, dotado de credibilidade, já que se funda em análise
crítica de fontes e na comparação dos resultados com as
conclusões a que tem chegado a historiografia europeia.
Veja-se então o quadro anterior, elaborado a partir dos
cálculos do referido historiador, e tenha-se sempre
presente que ele, Oliveira Marques, adopta o critério de, a
errar, ser por defeito.
Tira-se do quadro que a grande nobreza foi sempre,
tanto no século XIV como no seguinte, uma minoria. Poderosa
e muito rica. Demograficamente insignificante, económica,
política e socialmente senhoreou o País. Não já assim a
média e pequena nobreza, se bem que o seu número, valor
percentual baixíssimo se confrontado com o do clero e o do
povo, possa inculcar também poderio e riqueza. Mas não:
como veremos, entre a grande nobreza e a pequena ia um
abismo. Podemos mesmo aceitar, como regra geral, que, ao
menos no século XV, era maior o poder detido pelos
burgueses das grandes cidades do que aquele de que dispunha
a maioria dos cavaleiros e a totalidade dos escudeiros, ou
seja, a maioria da média nobreza e a totalidade da pequena.
Quanto aos efectivos do terceiro grande grupo social da
nação, eles deduzem-se dos dois quadros anteriores. Mais de
98% da população era povo, terceiro estado ou ordem, a
massa que produzia — e também, às malvas as teorizações
ideológicas, a que rezava e defendia o território, a nação
e a pátria. É certo que se tratava de um grupo muito
dividido, muito heteróclito, muito diversificado —
comportando gente que acotiava com a fome e a sujeição e
gente que lidava no meio do fausto, do luxo e do poder.
Adiante se verá como era.

Outras distribuições

Dissemos alguma coisa sobre distribuição demográfica


por regiões, por grupos étnicos, por ordens societárias.
Tudo conjectural, se bem que verosímil. Os estudos modernos
de demografia pedem mais, muito mais: distribuições por
sexos, profissões, idades, etc. E tudo isto tem sido
tentado em trabalhos de historiografia medieval. Só que, no
caso português e dado o estado actual da investigação, até
as conjecturas se tornam ociosas — quanto mais se desce ao
pormenor tanto mais inconsistentes e vazios se afiguram os
números e as percentagens. Monografias, fazer monografias
científicas devia ser a palavra de ordem dos profissionais
da história em Portugal.

As gerações

«Estudar os índices de natalidade e mortalidade seria


uma das primeiras tarefas do historiador para explicar não
só as variações de povoamento como também as condições de
vida» (U. Heers, 1965, p. 227). Mas, como sempre na Idade
Média, faltam informações precisas. Onde elas existem, como
na Inglaterra, os números são impressionantes a respeito
das taxas de mortalidade. Por exemplo, numa população de
1700 lavradores foreiros da Abadia de Westminster ocorreu,
entre 1292 e 1347, uma média de 90 mortes por ano, ou seja,
uma taxa de mortalidade da população activa da ordem dos
52,9% (ibid., p. 228). Note-se: trata-se de mortes de
adultos cabeças-de-casal ou titulares de emprazamentos
rústicos. Crianças, mulheres e velhos não entram no
cômputo. Isto mostra que, na Inglaterra, nesses anos, a
taxa de mortalidade bruta devia ultrapassar, nos campos, a
cifra dos 30% anuais — cálculo extremamente optimista, pois
nada repugnaria que os valores das mortes de crianças,
sozinhos, atingissem o índice de 25% (ainda há poucos anos
alguns países da América Latina registavam uma taxa de
mortalidade infantil da ordem dos 248 por mil nascimentos)
(M. Derruau, 1977, vol. I, p. 57).
Estas e outras considerações levaram o historiador
Jacques Heers a escrever: «As condições de vida (eram)
muito precárias, desastrosas do ponto de vista biológico.
Nos fins da Idade Média, a mortalidade na Europa Ocidental
era a de um povo subalimentado, exposto a todos os açoites,
sujeito a condições duríssimas» (J. Heers, 1968, p. 228).
Valeram os índices de natalidade, que forçosamente tiveram
de ser altíssimos. Mesmo assim, em muitos anos dos séculos
XIV e XV a generosidade procriadora não foi suficiente para
suster, como vimos, a marcha descendente da curva
demográfica. O que quer dizer que as forças da morte
conseguiram muitas vezes prevalecer sobre as forças da
vida.

300

As idades segundo D. Duarte

0-7 anos – 1.ªdade - 1.ª dentição - Infância


7-14 anos – 2.ª idade - Maturação sexual - Puerícia
14-21 anos - 3.ª idade - Conclusão do crescimento -
Adolescência
21-28 anos - 4.ª idade - Maturidade física - Mancebia
28-35 anos - 5.ªidade - Maturidade intelectual - Mancebia
35-42 anos 6.ª idade - Início da decadência - Mancebia
42-49 anos 7.ª idade – Decadência - Mancebia
49-56 anos 8.ºidade - Início da decrepitude - Velhice

Não possuímos dados para calcular os índices de


natalidade nem os de mortalidade em Portugal no período do
nosso estudo. É pacífico que tiveram de ser muito elevados.
Até porque a população adulta, de um ponto de vista
estritamente biológico-genesíaco, era jovem. Admite-se, com
efeito, que a média de vida, ou esperança de vida após a
puberdade, se situava entre os trinta e cinco e os quarenta
anos. As mulheres e os homens mantinham-se teoricamente
fecundos até à morte e a idade núbil era muito baixa: 12
anos para as raparigas e 14 para os rapazes. Às vezes, a
maturação sexual autorizava mesmo casamentos mais precoces
— como sucedeu, por exemplo, com a princesa D. Beatriz,
filha de D. Fernando, que foi considerada apta para
consumar matrimónio com dez aninhos apenas (S. D. Arnaut,
1960, doc. 29). Em contrapartida, tinha-se por regra que
depois dos quarenta os homens já não pensavam em casar. Com
cinquenta anos era-se velho (51).
É curiosa a teoria dos patamares evolutivos proposta
por D. Duarte (Leal Conselheiro, cap. I). Trata-se de uma
teoria psicofisiológica segundo a qual de sete em sete anos
há pausas no desenvolvimento, seguidas de mudanças físicas
e mentais (ver quadro anterior).
Entendia-se que aos 70 anos se era extremamente velho
no «que devemos fazer fim de nossos dias para os feitos da
presente vida». Esse quadro, que D. Duarte diz extraído da
observação das vidas, mostra-nos que um homem saudável,
saído da «puerícia», admitia como normal falecer pelos
cinquenta anos e só excepcionalmente atingir os setenta. E
mais: que a partir dos trinta e cinco anos de idade
começava a desinteressar-se por projectos de futuro. Ou se
achava realizado económica, cultural e socialmente ou
entrava no desengano de o conseguir. É um quadro pessimista
a respeito do empenhamento da população activa madura na
dinâmica da inovação e do progresso. Deve ter tido custos
socioeconómicos importantes. Note-se, todavia, que este
espírito «precoce» de demissão, que é da primeira metade do
século XV, deve ter vigorado praticamente até aos nossos
dias nas comunidades rurais portuguesas, predispondo
certamente à rotina e ao conservadorismo, tão
característicos dos campos. Não é verdade que ainda há bem
poucos anos corria o ditado «quem aos trinta não é e aos
quarenta não tem nunca será ninguém»?

Idade e médias de vida

Anos vividos – sexo masculino – sexo femenino - Total


10-19 – 2 – 0 - 2
20-29 – 0 – 3 - 3
30-39 – 2 – 6 – 8
40-49 – 9 – 1 - 10
50-59 – 3 – 2 - 5
60-69 – 4 – 3 - 7
70-79 – 1 – 1 - 2
80-89 – 1 – 0 - 1

Totais: - 22 – 16 - 38

Média de vida: - 49,5 anos - 44,3 anos


301
Da teoria das idades de D. Duarte, assim como de
inúmeras notícias dispersas, tira-se esta conclusão: a
média de vida da população portuguesa dos séculos XIV e XV,
mesmo não contando as crianças menores de dez anos, era
muito baixa. Fizemos um levantamento para os reis, rainhas
e filhos, cujas datas de nascimento e óbito ocorrem no
Dicionário de História de Portugal de Joel Serrão,
verificados entre 1300 e 1500. Os resultados são os
seguintes (ver quadro na página anterior).
Vê-se no quadro que a maioria dos homens faleceu antes
dos 50 anos e as mulheres antes dos 40. Vê-se ainda que os
primeiros propendiam para falecer na casa dos 40 e elas na
dos 30. Se abstraíssemos os três casos de excepcional
longevidade, maiores de 70 anos, teríamos para os
masculinos a média de vida de 46,6 anos e para os femininos
42,2. Ora isto sucedeu num grupo social privilegiadíssimo.
Que dizer da grande massa do povo, gente assolada por
carências alimentares e doenças de toda a espécie? Para
esses, D. Duarte teria decididamente de traçar outro
quadro, no qual baixasse, pelo menos de cinco anos, as
etapas da decadência, da velhice e da morte. Não nos
admiraria que a ideia generalizada de que uma geração
corresponde a três décadas tenha mais a ver com a secular
experiência da fragilidade das populações do que com a
duração terrena de Jesus Cristo.
Vidas precárias. Sentimento de finitude. Com homens e
mulheres assim, novos e, todavia, exaustos, fez-se a
agricultura dos emprazamentos efémeros, a indústria dos
mestres contra-relógio e o comércio dos burgueses
impacientes. Esta gente pensou, sem dúvida, a vida e o
tempo segundo esquemas muito diferentes dos nossos. E
deixou obra perene de cultura e civilização. Talvez por
isso.

Conclusão

Falou-se de quantitativos populacionais nos séculos XIV


e XV. Da evolução e ritmos da curva demográfica. Da
distribuição geográfica, étnica, estatutária. E aludiu-se à
mortalidade, à média de vida e às gerações. Tudo muito
fluido e problemático — porque mais não permite a
documentação disponível nem o estado actual das
investigações historiográficas em Portugal no nosso
período. Cremos, porém, que ficou bem vincada uma ideia: a
de que os nossos avós de há 600-500 anos viveram dias
amargos, porventura os mais difíceis que portugueses já
experimentaram. Epidemias, fomes, guerras, austeridade e
morte precoce — o salário do tempo que Deus lhes deu. E,
todavia, foram estes homens e mulheres que teceram para nós
a teia da identidade que temos e nos legaram os porquês do
nosso patriótico orgulho.

A ordem

Uma população num território não compõe necessariamente


um país. Muito menos uma nação. É preciso que a população e
o território, entidades que diríamos materiais, sejam
informados por crenças e valores e percorridos por
vivências colectivas criadoras de identidade. Crenças,
valores e vivências de que resulte uma consciência comum de
posse e pertença, de solidariedade num destino, enfim, de
especificidade cultural. Um modo de percepcionar e de
percepcionar-se — que ao mesmo tempo há-de ser memória,
vontade, sentimento e projecto. Mas tudo situado no solo.
Para que o país seja nação e a nação se faça pátria.
De modo que as crenças, os valores e as vivências
perfazem os pré-requisitos da realidade histórica
povo-nação-agrupamento-humano inserido num território
dotado de história. São a ordem, ou seja, as forças que
redimem do caos as populações e os territórios. A ordem,
com efeito, é certeza do sentido, eficácia do controlo e
sacramento da unidade.

A certeza do sentido

Há algum sentido no poder, na submissão, na diferença e


na desigualdade? Se em todas as sociedades, desde as mais
elementares às mais complexas, isso se verifica, como
explicar, primeiro, que há um sentido aí, segundo, que o
sentido está certo? Como se sabe, estas interrogações
remetem para o problema da razoabilidade da dominação e da
legitimidade do Estado e subjazem a todos os considerandos
acerca da validade de quaisquer soluções de ordem. De ordem
social e política, obviamente. As respostas têm sido
diversas ao longo dos tempos históricos. Qual foi a
portuguesa nos séculos XIV e XV?

302
[Legenda de figura.]
Planta do Mosteiro da Batalha espaço de Deus, memorial
de reis. D. João I, na hora de Aljubarrota, fez voto a
Nossa Senhora de mosteiro sumptuoso por ali, se houvesse a
graça da vitória. Houve e portanto cumpriu. O mosteiro
fez-se perto do sítio do «milagre» e chamou-se de Santa
Maria da Vitória — da Batalha com maiúscula, essa, a de
Aljubarrota, a vitória emblemática de todas as batalhas
portuguesas. O mosteiro, efectivamente faustoso, foi
entregue a dominicanos e ficou como panteão da monarquia
até D. Manuel I. Cuidaram dele o fundador, o filho D.
Duarte, o neto Afonso V e D. João II o bisneto. Toda a
ínclita Geração repousa lá. Memorial de reis e príncipes,
portanto. Mas também, e mais até, memorial da dinastia de
Avis, a do nosso contentamento. A da «boa memória» de
Portugal nosso, aqui e pelo mundo, que denodadamente, não
nos cansamos de comemorar (Virgílio Correia, O Mosteiro da
Batalha, Lisboa, 1929).

«Quando Nosso Senhor Deus fez as criaturas, assim


razoáveis como aquelas que carecem de razão, não quis que
todas fossem iguais; mas estabeleceu e ordenou cada uma em
sua virtude e poderio departidas, segundo o grau em que as
pôs. Bem assim os reis, que em logo de Deus na terra são
postos para reger e governar o povo, nas obras que hão-de
fazer, assi da justiça como de graças ou mercês, devem
seguir o exemplo daquilo que Ele fez e ordenou — dando e
destribuindo, não a todos por uma guisa, mas a cada um
apartadamente, segundo o grau e condição e estado de que
for.» Este texto é das Ordenações afonsinas, de origem
jurídica portanto, e datado do segundo quartel do século
XV. Está no Livro II e serve de considerando teórico ao
título 40.º, «De como as rainhas e os infantes hão-de usar
das jurisdições.» Exara doutrina pacificamente aceite desde
mais de 500 anos atrás, afora a novidade de apropriar aos
reis aquilo que tradicionalmente era exclusivo dos
imperadores. Em síntese, o texto proclama o seguinte:
a) A desigualdade natural das criaturas, tanto
racionais como irracionais;
b) A origem divina, e logo inquestionável, da
desigualdade social;
c) Uma desigualdade de méritos, a qual postula
necessariamente uma desigualdade política — pois a
«virtude», raiz do «poderio», é atributo do «grau» a que se
pertence na hierarquia social;
d) Os méritos individuais podem ser alegados para
efeito de promoção política — mas tão-só dentro de cada
«grau», ou «estado»; nunca para transgredir a ordem
estatutária estabelecida in illo tempore, «quando Nosso
Senhor Deus fez as criaturas» e, com elas, fundou a
sociedade;
e) Os reis, lugares-tenentes de Deus, têm a obrigação
de actuar em conformidade com esse modelo divino da
desigualdade necessária, de modo a preservá-lo e
promovê-lo;
f) A «justiça social» só relativamente se entende
distributiva, ou seja, é distributiva segundo os méritos e
as capacidades dos indivíduos estatutariamente
emparceirados;
g) A reivindicação social, quando exercida em
transgressão da hierarquia dos estados, é subversão da
ordem, desmesura, arrogância e pecado.
Enfim, estes princípios, que poderíamos desenvolver
mais, mostram bem quanto os juristas responsáveis pela
compilação das leis do reino estavam, em 1447, possuídos de
atitudes conservadoras. Eles e os seus colegas que
assessoravam o Poder. Ideólogos por profissão. Veremos que
a perfeita arquitectura dessa ordem proclamada não seguia à
prova de críticas.
E, agora, outro texto da mesma época: «Defensores são
uns dos três estados que Deus quis per que se mantivesse o
Mundo — ca bem assim como aos que rogam pelo povo chamam
oradores e aos que lavram a terra, per que os homens hão-de

303

viver e se mantêem, são ditos mantenedores; e os que hão-de


defender são chamados defensores.» (Ordenações afonsinas,
liv. I, tít. 63).
Eis aí os três estados, ou ordens, ou — como a partir
de 1477 se lhes chamará também — os «três braços da
sociedade»: oradores, defensores e mantenedores; clero,
nobreza e povo (Álvaro de Chaves, p. 270). É impressionante
a fixidez deste modelo. Surgido na época de Carlos Magno
como justificativo da ordem feudal, vigorará durante 1000
anos, até à Revolução Francesa. Constituiu o fundamento
ideológico do Antigo Regime.
É sabido que nos séculos XIV e XV, dadas as grandes
transformações sociais e económicas e culturais e políticas
verificadas a partir da décima e décima primeira centúrias
no Ocidente, este modelo trinitário e trifuncional já não
traduzia bem os factos. Era mais um referencial cómodo de
juristas e teóricos do que uma grelha exacta em que a
sociedade se revisse. Mas as grandes linhas eram essas:
três ordens, a que estavam distribuídas três funções. E, se
é verdade que as ordens já não eram mais estanques nem as
funções exclusivas, também é verdade que nos areópagos do
confronto sociopolítico — no Parlamento, por exemplo —
nunca se deixou, quando conveio, de apelar para a
genuinidade da teoria.

[Legenda de figura.]
O espaço: os edifícios.
Planta da Catedral de Lisboa espaço de Deus. Construída
e reconstruída diversas vezes por reis; D. Dinis, D. Afonso
IV, D. João I, por exemplo. Era ainda o espaço do patrono
da cidade, S. Vicente, cujo corpo trazido miraculosamente,
cria-se, desde o inóspito cabo do seu nome, lá se diz
repousar. A catedral primitiva, românica, do século XII —
profundamente alterada na cabeceira por D. Afonso IV, é
considerada «a mais bela e mais harmónica das catedrais
portuguesas» (M. Chicó, 1968, p. 131). É claro que tal
apreciação é de especialistas para especialistas. Porque a
catedral de hoje, bela e robusta sem dúvida, é efeito de
muitas intervenções a que os tempos e os cataclismos
forçaram. (Matos Sequeira e Nogueira de Brito, A Sé de
Lisboa, Lisboa, 1930).

304
Que argumentos alegam os burgueses contra a ingerência dos
nobres no mundo do trabalho? E contra a multiplicação dos
fidalgos e vassalos por decreto ou usurpação? E contra a
proliferação de clérigos que não desejavam ordens sacras?
Argumentos retirados daquele modelo. Sempre. Argumentações
perversas, é certo, pois que só usadas quando convinha e
apenas aplicadas a situações selectivas, contra os outros.
Nem o «trabalho» nem a «nobreza» nem a oposição
«leigo-clérigo» eram já a mesma coisa. Em muitos lados a
própria estratificação social parecia mais de configuração
vertical, em pilares, do que horizontal, em pirâmide (52).
Mas, na ordem do conhecimento e da argumentação teórica, ou
seja, quando se tornava útil um apelo ao sentido do social,
o velho modelo surgia como o ideal da ordem. E todos
concordavam que o apelo tinha força persuasiva.
Havia então um sentido na ordem social hierárquica?
Havia. Um sentido ancorado no mistério, inexplicável, sem
dúvida, tal como o pecado original ou a cadeia dos seres.
E, todavia, certo. Como inquestionavelmente certa e justa é
a vontade divina e a ordem da Natureza. Logo, uma ordem
justa até na sua evidente injustiça. É o paradoxo da
«dívida do sentido». Assim: «Toda a sociedade está
destinada a decifrar-se em qualquer coisa que existe para
ela, mas que não é dela, a indicar para lá do seu espaço
próprio um lugar onde é um outro que a ordena e a pensa e
um outro a quem ela deve o seu poder próprio de se ordenar
e de se pensar; ela pensa-se pensando que um outro a pensa»
(M. Gauchet, 1980, p. 75). Esse outro é «Nosso Senhor
Deus». Logo, o rei. Logo, os legistas. A partir do momento
em que o direito romano é descoberto, os legistas, que até
são clérigos, substituem junto dos reis a antiga função dos
«pontífices», esses que faziam a ponte entre os desígnios
de Deus no céu e a missão ordenadora do imperador na terra.
Agora, nos séculos XIV e XV, eram os juristas que
«pontificavam». «O fundamento do Estado é igual ao da
religião» (ibid., p. 69).
A apropriação pelos legistas ou juristas da função de
interpretar a ordem, se, por um lado, os transformou num
grupo privilegiado e quase mágico, por outro, dessacralizou
o seu discurso (53). Não é mais um discurso profético ou
carismático, mas técnico, racional e dedutivo. Se invocam a
palavra de Deus — e invocam constantemente — usam-na como
premissa maior. A sua autoridade não advém de serem
ungidos, mas instruídos; nem a sua sapiência vem do
Espírito Santo mediante a ordenação sagrada, mas da razão
cultivada na frequência dos livros. Por isso, eles serão os
longínquos pioneiros dos Estados laicos, cujos primeiros
indícios se verificam precisamente na época histórica do
nosso estudo. Sendo, embora, verdade que «o fundamento do
Estado é igual ao da religião», o «pontificado» dos
legistas na justificação da ordem irá fazer que, cada vez
mais, o Estado e a ordem se tornem matéria de discussão
aberta a profanos. E então não se estranhe que deputados
parlamentares do povo opinem sobre isso. Nem se deve
estranhar que às «certezas do sentido do social», atrás
enunciadas, venham juntar-se outras, agora alegadas como
códigos de valores da acção política — sem explicitação de
crenças, de legisladores nem de súbditos. Pragmáticas e
universais, estribam-se na nacionalidade de um «direito
comum». É um código mínimo em seus grandes valores: serviço
de Deus, interesse do reino, conveniência da razão e
submissão às leis gerais. É nesta plataforma de valores que
os deputados de cortes, por exemplo — exemplo
propositadamente escolhido, porque altamente sintomático —
se encontram com o monarca face a face, quando admoestam,
recriminam, exortam e reivindicam; é aí que todo o aparato
argumentativo dos seus discursos vai buscar autoridade; e é
aí também que os reis se refugiam para negar deferimentos e
para decidirem a favor de um estado contra outro. Vê-se que
as antigas «certezas do sentido» da sociedade, se bem que
mantidas e lembradas como referencial ad propositum, eram
preteridas no discurso político a outras mais adequadas aos
tempos, embora porventura menos dogmaticamente protegidas.
Em qualquer caso, fundamentações do sentido social.
Justificações do injusto.

Os instrumentos do controlo social

Em todas as sociedades houve e há desviacionistas. Ou


seja, indivíduos que, com razão ou sem ela, conscientemente
ou não, infringem as normas. Do ponto de vista da coesão e
da segurança, é muito importante que tal não aconteça. Por
isso, todas as sociedades inventam mecanismos e
instrumentos destinados a prevenir os desvios ou a puni-los
após a sua eclosão; e ainda incentivam e custeiam

305
instituições cuja finalidade é socializar ou domesticar os
seus membros, de modo que eles executem com espontaneidade
os comportamentos prescritos e com a mesma espontaneidade
evitem os proibidos. Em poucas palavras: regras, rituais e
sanções.
Em sentido amplo, são «instrumentos de controlo social»
todos os modos e meios que visam aculturar as pessoas
segundo os padrões aceites pelas maiorias. Os sistemas
educativos, desde os mais institucionalizados até aos mais
fluidos, cabem aí. Família, escola, igreja, oficina; e
também procissões, vestuário, hábitos alimentares, opinião
pública, gestos e provérbios (K. Mannheim, 1974, pp.
41-54). Tudo isso existe para condicionar o enquadramento
dos indivíduos dentro de uma «aura de comunidade», para
robustecer a coesão e manter a identidade do grupo. São
modos e meios conservadores por natureza. Condicionam para
a normalidade, elogiando o conformismo e desconfiando das
novidades. Na Idade Média era assim. Como ainda hoje nas
sociedades arcaicas e isoladas.
Mas quando se fala em instrumentos de controlo social
está-se a pensar, antes de tudo, em regras coercitivas e
sanções. Em corpos de leis e de penas, bem como nas
instituições encarregadas de as fazer aplicar.
Vê-se, por conseguinte, que o «controlo social»,
enquanto garantia da ordem, é tema extremamente vasto.
Repare-se no alcance desta pergunta: quais os instrumentos
de controlo social utilizados no nosso país nos séculos XIV
e XV? É evidente que teríamos de dizer os tribunais, os
juízes, os corregedores, os alcaides, os meirinhos, as
execuções de sentenças, as declarações de infâmia, as
pregações penitenciais, as peregrinações por culpas, as
excomunhões, os cortejos, as procissões, os símbolos de
etnia e crime, os poderes municipais, as assembleias, etc.
Enfim, teríamos de falar, afinal — pois controlo também é
prevenção —, de tudo o que é matéria de uma história social
e política.
Falemos, então, e apenas, das leis. O resto irá sendo
abordado ao passo que se tornar oportuno nas páginas que
temos à frente.
Portanto, o direito.
Não vem para aqui dissertar sobre a origem ou natureza
ou necessidade do direito nem das relações «ordem
social/ordem jurídica». Nem mesmo cabe aqui traçar uma
história do direito em Portugal nos séculos XIV e XV (54).
O que nos interessa neste momento é encarar o direito como
instrumento ordenador do País.
Quando entramos em 1325, verificamos que já muito tinha
sido feito nesta matéria. Havia um território bem
demarcado, praticamente o mesmo de hoje, e uma população
que, embora a custo, se ia habituando a deixar-se dirigir
por leis emanadas da coroa. Uma hábil aliança de reis com
legistas vinha possibilitando erguer o Estado. Clero,
nobreza e concelhos sentiam que os caminhos da
centralização do Poder nas mãos do monarca eram
definitivos. D. Afonso IV podia sentar-se em seu trono
monárquico e recordar com satisfação a memória do pai e do
avô. Efectivamente, foram eles, D. Dinis e D. Afonso III,
os grandes cabouqueiros e primeiros artífices do Estado
português (55).
É evidente que esses reis só puderam levar a cabo o seu
trabalho centralizador porque tinham a apoiá-los uma elite
de «intelectuais» imbuídos de ideias cesaristas. Não
fizeram senão aproveitar a «onda do tempo», que ia contra
particularismos autarcistas e divisionismos feudais. Essa
elite foi a dos legistas e a onda do tempo o renascimento
do direito romano.
O direito romano, ou justinianeu, foi redescoberto na
Itália por juristas empenhados na luta do império contra o
sacerdócio. A Universidade de Bolonha constituiu o centro
de pesquisa, de estudo e de divulgação. Nomes famosíssimos
trabalharam aí: Irnério (entre 1111 e 1125), Acúrsio (entre
1220 e 1234), Bártolo (segundo quartel do século XIV) e
Baldo (último quartel do mesmo século). Dos trabalhos de
Irnério resultou o Corpus Júris Civilis, uma obra em 63
livros, constituída pelo Código, o Digesto e as Institutas.
Esta imensa mole de material jurídico respeitabilíssimo foi
analisada, actualizada aos tempos, dissecada em «glosas» e
«comentários». De Bolonha saltou para o mundo cristão.
Chegou a Portugal ainda no século XII. E quando a
Universidade de Lisboa é fundada, aí por 1289, um dos
motivos da sua criação foi a necessidade de se estudar esse
direito, o direito civil (56).
É a partir de Afonso III que a recepção do direito
romano se começa a processar com carácter de ininterrupta
continuidade» (N. E. Gomes da Silva, 1985, p. 158). Isso
deveu-se não tanto ao conhecimento do Corpus em si mesmo,

306
como sobretudo à aceitação, enquanto fontes subsidiárias da
dogmática jurídica portuguesa, de obras castelhanas, mais
acessíveis, as quais estavam impregnadas da letra e do
espírito do direito romano. Tais foram, por exemplo, as
obras de Jácome Ruiz e de Afonso X. nomeadamente, as Flores
de las Leyes, o Fuero Real e as Siete Partidas.
Paralelamente ao direito civil funcionou em Portugal o
direito canónico, ou direito da Igreja. Nem podia deixar de
ser de outro modo. Aliás, nem foi «paralelamente», mas
«hegemonicamente». O Corpus Juris Canonici foi a designação
atribuída, já em vigor no ano de 1441, ao conjunto de
legislação eclesiástica pontifícia compilada desde 1234,
primeiro por Gregório IX, depois, em 1298, por Bonifácio
VIII, seguidamente, em 1313, por Clemente V, e ao conjunto
de leis canónicas harmonizadas e codificadas entre 1140 e
1142 pelo monge e teólogo bolonhês Graciano. O primeiro
conjunto chamou-se Decretais e o segundo Decreto (Decreto
de Graciano). Em 1500, o Decreto, as Decretais dos papas
referidos e outras compilações posteriores a 1313, ditas
Extravagantes, as de João XXII, por exemplo, foram
agrupados num só volume, designado pelo nome já mencionado
de Corpus Juris Canonici.
Portanto, no período do nosso estudo, há dois direitos
na Cristandade: o direito civil romano e o direito canónico
ou da Igreja. Os especialistas do primeiro são os legistas
(magistri, doctores, scholares legum) e os do segundo são
os canonistas (decretistas ou decretalistas, conforme a sua
especialização no Decreto de Graciano ou nas Decretais dos
papas; magistri, doctores ou scholares canonum). Os peritos
nos dois direitos são designados doctores ou magistri in
utroque (jure).
O trabalho de D. Afonso III e de D. Dinis consistiu em
travar a preponderância do direito canónico sobre o direito
civil. Para isso foi necessária muita prudência, muita
habilidade e grandes apoios por parte de legistas. E também
apoio de canonistas, os tais do utroque jure. Assim, por
exemplo, entre 1248 e 1279, D. Afonso III publicou para
cima de 200 leis — 200 são as que se conhecem — as quais
acusam inspiração romano-canónica (M. Caetano, 1981, p.
344). D. Dinis, D. Afonso IV, D. Pedro, D. Fernando, D.
João I, D. Duarte, D. Afonso V e D. João II prosseguiram o
afã legislativo, promulgando «leis», «decretos» ou
«degredos», «posturas», «ordenações» e «decisões sobre
capítulos de cortes». Ia-se assim formando um acervo de
«leis régias» nacionais, que, juntamente com os «forais»,
os «costumes» e as «concórdias» estabelecidos com o clero
compunham um todo disperso e nem sempre harmonizável. A par
de privilégios e particularismos de regiões ou grupos,
tentava-se construir uma ordem jurídica nacional dirigida e
tutelada pelo rei, cada vez mais universal. A tendência era
no sentido de, à maneira do que tinham feito os papas na
Cristandade, impor no reino um direito comum. De resto,
esse direito que se desejava comum, inspirado no romano,
era desígnio de todos os países europeus. As relações
internacionais, designadamente as de ordem comercial,
exigiam-no. Os séculos XIV e XV marcam o declínio dos
«direitos próprios». E isso tanto no interior dos países
como no plano internacional. Nas cortes do século XV é
constante o apelo dos povos a que os comportamentos sociais
do clero e da nobreza sejam regidos pelo direito comum.
Como, por outro lado, as respostas dos reis, a capítulos
eclesiásticos, por exemplo, igualmente remetem na mesma
direcção. Só que nem sempre é fácil decifrar que direito é
esse. Na boca dos clérigos trata-se do direito canónico —
comum a toda a igreja; na dos povos, umas vezes trata-se da
legislação geral do reino, contida nas Ordenações Afonsinas
depois de 1447, outras vezes de leis seguidas na Europa,
designadamente em matéria comercial e financeira; na boca
dos reis, conforme os destinatários, esse direito comum
pode ser as três coisas. A classe nobre prefere, de modo
geral, apelar aos seus antigos costumes, honras e
privilégios: o direito próprio acima de tudo.
Enfim, de um estado de particularismos jurisdicionais e
de caos jurídico, pouco a pouco, os reis, apoiados no
princípio romanista de que os monarcas são imperadores nos
seus reinos, irão impondo a unidade e a centralização e a
ordem. Contra o clero, contra a nobreza e contra os
municípios. Mecanismos judiciais, administrativos,
militares e fiscais ajudarão à tarefa. E por detrás de
tudo, como suporte racional e justo, o espírito do direito
romano, finalmente direito comum — conforme
doutrinariamente se verifica nas Ordenações afonsinas,
primeira compilação oficial das leis portuguesas, e
pragmaticamente na actuação de D. Duarte, seguida, após
interregno do filho, pela governação decidida do neto,
el-rei D. João II.
O direito e a sua aplicação em nome dos reis
constituíram os grandes instrumentos do controlo da ordem.
Ordem sobre a população e o território.

307
Os vectores da unidade

Os vectores ou «sacramentos», causas-efeitos, da


unidade do País e da Nação foram fundamentalmente três: a
língua, a terra e o rei.

A língua

A língua é sociabilidade, idiossincrasia, prisma do


Mundo, unificação de sentimentos e de esforços. O laço mais
eficaz de uma identidade. Quando os homens, na sua insânia,
quiseram escalar o céu e, porventura, substituir-se aos
deuses, diz o mito que só houve um meio de os fazer parar:
confundir-lhes a língua. Foi o que fez Javé (Génesis, XI,
7). E Babel ficou desde isso como sítio da dispersão, do
desentendimento, das lutas e das guerras; e como berço das
nações. Na raiz da concórdia e da solidariedade está o
verbo. E, então, as realizações nacionais são os resíduos
das ambições pré-babélicas. Não mais escalar os céus;
civilizar as terras, em pequenino, isso sim. Babel é um
memento homo (que o homem de hoje, século XX, 1992,
paradoxalmente acata e contesta).
Em 1325 a língua portuguesa estava praticamente feita.
Não são precisos conhecimentos excepcionais para se
entender a mensagem dos cancioneiros e das crónicas e das
leis. Actualizando a ortografia e a pontuação dos textos e
munindo-nos de um dicionário mínimo — que em geral
consistirá em traduzir o popular de Entre Douro e Minho e
Galiza de hoje para o dizer erudito —, tudo se entende.
Bem, desde que nos coloquemos, obviamente, no contexto
sociocognitivo dos enunciados. Como em tudo o que é
discurso. As outras línguas novilatinas, comparadas com as
suas formas actuais, estavam muito mais atrasadas.
O português é essencialmente galego-português
enriquecido de vocabulário e fonética moçárabes (57).
Expandiu-se conforme as linhas quase rigorosas da
Reconquista (v. mapa da página seguinte). Excluindo a
reduzida área do mirandês, ocupou todo o território,
polifacetando-se numa riqueza dialectal notória — o berço
galego-portucalense, Coimbra, Viseu, Lisboa, Alentejo e
Algarve. Depois as ilhas atlânticas; depois o Brasil;
depois a África; e Timor; e o Mundo. A língua portuguesa e
as beldades mulatas são, se calhar, as definitivas vitórias
da colonização lusitana.
No período do nosso estudo, o português é a língua do
quotidiano, a língua das leis, a língua da escrita, a
língua dos tratados, da literatura e da poesia (58). Com D.
Duarte é introspecção e com Fernão Lopes é movimento e
vida. Nas cortes é denúncia, reivindicação, arguição
política. Nos cancioneiros é sarcasmo e lirismo. Enfim, uma
língua madura. Em 1500 a sua fisionomia, escreveu António
José Saraiva (1982, p. 51), está fixada.

A terra

Depois da língua, a terra. Outro vector da unidade


nacional. Os naturais da terra eram os «nossos», por
oposição aos estrangeiros. De «naturais» far-se-á a ideia
de «nação» e daí a de «pátria». Isto pode ilustrar-se com
Fernão Lopes: «Grande licença deu a afeiçom a muitos que
teverom cárrego d’ordenar estórias, mormente dos senhores
em cuja mercê e terra viviam e hu forom nados seus antigos
avós, sendo-lhes muito favoráveis no recontamento de seus
feitos; e tal favoreza como esta nasce de mundanal afeiçom,
a qual nom é salvo conformidade dalg a cousa ao
entendimento do homem. Assi que a terra em que os homens
per longo costume e tempo forom criados gera h a tal
conformidade antre o seu entendimento e ela que, havendo de
julgar alg a sua cousa assi em louvor como per contrairo,
nunca per eles é dereitamente remontada. Porque louvando-a
dizem sempre mais daquelo que é; e, se doutro modo, nom
escrevem suas perdas tão minguadamente como aconteceram»
(Crónica de D. João I, parte 1.ª, p. 12).
Por detrás destas palavras anda nitidamente a ideia de
pátria. Isto é, a ideia de terra dos antepassados, terra
que eles, os «antigos avós», moldaram e transmitiram aos
netos impregnada de sentimento (59). De sentimento,
precisamente. Fortíssimo. Tão forte que, assevera o
cronista logo a seguir ao passo transcrito, «o juizo do
homem acerca de tal terra ou pessoas, recontando seus
feitos, sempre sopega». Sentimento que cega a razão; lógica
passional. E porquê? Fernão Lopes não sabe. Diz que deve
ser efeito de qualquer coisa misteriosa — «conformidade de
alg a cousa ao entendimento do homem». Qualquer laço

308
telúrico; qualquer coisa excessivamente vital. Geografia,
não. Nem espaço entre fronteiras. Isso contará, mas não
chega porque não basta para explicar o patriotismo a
terra-solo nem a terra-história. É preciso mais.
Terra-seio, terra-sangue, terra-alma, terra-nós: «h a parte
de nós tem a terra e outra os parentes», diz o cronista,
perfilhando Cícero. E diz mais: «o pregoeiro da vida, que é
a fame, recebendo refeiçom pêra o corpo (faz com que) o
sangue e spritus gerados de tais viandas (tenham) h a tal
semelhança antre si que causa esta conformidade» — a tal
conformidade ou irresistível tendência para a parcialidade
em matéria de pátria.

[Legenda de figura.]
Fronteiras linguísticas (extraído de L. F. Lindley Cintra,
1983).

309
Enfim, tudo se passa como se o cronista, dando-se conta de
um sentimento que emergia, o de pátria, tentasse encontrar
para ele uma explicação razoável. Chama a esse sentimento
«mundanal afeiçom» e «natural inclinaçom» e tenta
explicá-lo primeiro pela «psicologia médica» de tradição
hipocrática e depois pela teoria biocultural ciceroniana.
Mas não se decide. E não se decide porque, dizemos nós,
esse sentimento era novo, insusceptível de ser vertido em
odres velhos. Fica-se então no mistério, essa «alg a
cousa».
Toda a Crónica de D. João I respira esse sentimento
emergente. E vê-se que é um sentimento eminentemente
popular, ou seja, gerado e desenvolvido no meio do terceiro
estado. O clero, «classe supranacional» pelos seus altos
representantes, e a nobreza, tradicionalmente
internacionalizada por casamentos e «dívidos», não estariam
psicologicamente preparados para se deixarem invadir por
sentimentos de puro patriotismo. Com o povo — e pode-se
meter com ele as franjas inferiores das outras duas classes
— era diferente. É que o sentimento de nacionalidade e de
patriotismo é gerado por efeito de oposição a um
estrangeiro, naturalmente quando guerras e invasões põem em
perigo a «nossa» terra, a «nossa gente», a «nossa»
história. A identidade nasce do confronto; o «nós», tal
como o «eu», introjecta-se a partir da experiência do
«outro». O patriotismo francês, por exemplo, condensado em
la douce France, emergiu devido a tal mecanismo,
precisamente durante a Guerra dos Cem Anos (60).
E quando é que se detecta em Portugal esse sentimento?
Já se viu que está em Fernão Lopes e que Fernão Lopes o
atribui ao povo que fez a revolução de 1383-1385. Logo,
terá surgido durante as guerras da independência,
Aljubarrota seria o grande momento, ou então anos antes,
durante as guerras fernandinas. Conclusão que parece óbvia.
Só que não podemos deixar de admitir que o cronista poderia
ter projectado na época e homens de quem escrevia os
sentimentos que ele e os seus contemporâneos experimentavam
(J. Gouveia Monteiro, 1988). Nomeadamente, o que todos
experimentaram na «revolução» de 1439, altura em que outra
vez o povo, notoriamente o de Lisboa, teve de intervir na
política para apoiar um herói e preservar a nação de
perigos estrangeiros. Sabe-se que a confusão dos cenários —
1383-1385 e 1438-1440 — é bem provável que se verifique no
discurso de Fernão Lopes. Cenários; ou atmosferas, se se
preferir.
O sentimento patriótico busca suportes em símbolos: a
bandeira, o hino, a imagem gráfica do território, o
presidente ou o rei. Na Idade Média, afora o rei, foi
diferente. Os suportes simbólicos certamente muito mais
fluidos e escassos. Esse poderoso catalisador de
patriotismo, que é a imagem-mapa do País, não existia; como
também não existia bandeira ou hino nacional. Só a figura e
o nome do monarca reinante; e mais o nome do que a figura.
E os súbditos percepcionados como uma comunidade solidária
(61). Enfim, os suportes do sentimento patriótico estavam
reduzidos a palavras, vocábulos, abstracções. Nomes
escritos ou pronunciados. «Portugueses», «Portugal»,
«el-rei».
«Portugueses» e «Portugal» parecem ter constituído
palavras-símbolos da unidade nacional sentida, finalmente
tornada consciente. E traduzem ambas a «terra» de que
falávamos atrás, a «terra-nós». Nomes-sacramentos de
identidade patriótica. «El-rei», também, conforme veremos
já.
O nome «Portugueses», como designativo comum dos
habitantes de Portugal e do Algarve ou das diversas
cidades, vilas e lugares dos dois reinos, não ocorre com
muita frequência, a não ser nas crónicas de Fernão Lopes.
Os textos preferem dizer «naturais», «moradores»,
«pobradores», englobando na compreensão destes conceitos
todos os habitantes não estrangeiros, sejam eles do clero,
da nobreza ou do povo e de não importa que região
geográfica ou reino. Sempre que o designativo «Portugueses»
aparece, engloba um conteúdo semântico especial, que,
incluindo a nota de «naturais», ou naturalizados, a
transcende. Em 1384, por exemplo, «Portugueses» tem
conotação de oposição a Castelhanos e correlaciona-se com
«bons e verdadeiros naturais» e «fiéis naturais», esses que
tinham aderido ao Mestre de Avis e se opunham ao rei de
Castela (62). Em 1385, no preâmbulo da carta de capítulos
especiais de Lisboa das Cortes de Coimbra desse ano,
aparece a expressão «maus portugueses», em dois passos,
designando em ambos os naturais de Portugal e do Algarve
que se haviam passado para o inimigo castelhano contra
«razom e natureza e fé» (63). Em 1439, capítulo 15 dos
gerais dos concelhos das Cortes desse ano em Lisboa,
ocorre, na resposta do infante D. Pedro, a expressão
«portugueses cristãos» — modo de apartar os mouros e os

310
judeus naturais, implicitamente também portugueses, e os
estrangeiros estantes ou passantes, obviamente não
portugueses. De resto, no capítulo 28 destas mesmas Cortes
de 1439, essas distinções estão expressamente
estabelecidas: «Parece cousa desonesta os estrangeiros
haverem ofícios e poderio sobre os naturais do regno e
verdadeiros portugueses [...]; ofícios nenhuns [...] sejam
dados salvo a lindos [isto é, a legítimos] portugueses.» E
o infante, em sua resposta: «Determinamos que estrangeiros
nom hajam tais ofícios, salvo se os nós, per nossas cartas,
houvermos por portugueses.» Há estrangeiros; há
«verdadeiros» e «lídimos portugueses»; e há «naturais do
reino», ou portugueses de segunda — os mouros e judeus, com
certeza. Isto no dizer dos povos. Para o infante D. Pedro,
há estrangeiros e portugueses, sem mais, podendo os
primeiros tornar-se nos segundos, se requererem e obtiverem
carta de naturalização. Em 1451, os deputados do Algarve
dizem esta coisa interessante: «El-rei D. João, de Boa
Memória, [...] foi padre dos portugueses, que os livrou dos
seus I (ni)migos assi como fez Cristo aos santos padres.»
Finalmente, no capítulo 57 dos gerais dos povos das Cortes
de 1472-1473 (Coimbra-Évora), aplica-se o designativo
«português» aos clérigos que estavam em Roma idos de cá:
«Já foi tempo que português não sabia o caminho para a
corte [do papa] e ora já (n)a maior parte [do caminho] não
fica taverna nem estau, daqui até lá, que tudo não saibam.»
Destas referências a «portugueses», quase todas
retiradas de capítulos de cortes — as únicas referências em
mais de 1500 capítulos — extrai-se o seguinte:
a) A expressão «portugueses» aparece durante o período
das guerras contra Castela, pelo menos no Parlamento;
b) Essa expressão foi usada para distinguir os naturais
de Portugal dos inimigos castelhanos. Significou os
«nossos», por oposição aos «outros», os adversários;
c) É um designativo eminentemente conotado; impregnado
de significações histórico-culturais e
político-geográficas. Compreende, com efeito, pessoas
necessariamente radicadas no território, súbditas do mesmo
rei, co-responsáveis na mesma história, empenhadas no mesmo
destino, falantes da mesma língua e comprometidas na
salvaguarda da mesma identidade — se bem que pessoas
diferentes do ponto de vista étnico, religioso, social,
económico e geográfico;
d) O nome «português» funcionou como um estereótipo e
um preconceito. Como imagem-feita do «cidadão» exacto e
como sinal desencadeador de juízos pendulares — português
bom, português mau; português lídimo, português avulso;
português fiel, português falso; e, no limite, português,
não português (64). Como sempre sucede quando a sociedade
se deixa arrastar por estereótipos e preconceitos, sob a
cobertura de «português» ou «não português» ocorreram
desmandos e injustiças e estimulou-se a xenofobia; entre os
burgueses, por exemplo (A. de Sousa, 1889a, pp. 256-259).
Ora, a xenofobia e desmandos correlativos não são senão
excessos irracionais do sentimento patriótico e
nacionalístico. Nada como eles para provar a consciência de
nação e de pátria.
Em 1325 «a nação existe, tem já a sua coerência e a sua
autonomia, os seus caracteres próprios, a sua capacidade de
resistência; mas a consciência deste facto enoontra-se
apenas na mente de uma minoria, geralmente próxima do poder
político, a partir do qual ela se difunde com lentidão» (J.
Mattoso, 1985,11, p. 211). Quer dizer, no começo da época
do nosso estudo há um corpo-nação, mas não há nacionalismo
ou consciência colectiva de uma identidade nacional. Há um
território que define e demarca os «naturais» relativamente
aos estrangeiros, ou seja, um espaço comum e uma incipiente
percepção de que ele, o espaço geográfico, pois que encerra
uma unidade política e cultural, está determinando uma
comunidade de referência e pertença. Está, em génese, a
consciência colectiva de nação e de pátria.
Pois bem. Entre 1325 e 1385 qualquer coisa se passou,
visto que a consciência de nacionalidade parece nesse
segundo ano adquirida. Como vimos, a expressão
«portugueses», com as implicações que dissemos, era
utilizada ao tempo em que o Mestre de Avis é escolhido como
rei, nas Cortes de 1385 (Coimbra).
Em conclusão, cremos que o vocábulo «portugueses»,
dadas as circunstâncias do seu aparecimento e do seu uso,
pode e deve ser contemplado como ideia-símbolo de
sentimento patriótico e, logo, como conceito cristalizado
de unidade nacional perfeitamente advertida.
E o mesmo se pode dizer da expressão «Portugal».
Idêntico uso e igual carga semântica. Terra nostra.

311
Como é sabido, a palavra é muito antiga. Não vem para
aqui traçar a sua história. Desde os primórdios da
monarquia portuguesa entrou na titulatura dos reis. Quando
atingimos o período cronológico do nosso estudo, com D.
Afonso IV, os monarcas dizem-se «reis de Portugal e do
Algarve». O reino do Algarve foi insígnia da titulatura dos
reis de Castela até Afonso X. Cedido a D. Dinis, entra
definitiva e pacificamente na monarquia «lusitana»,
mantendo-se nela como reino teoricamente autónomo, situação
que os títulos régios perpetuam. Após a tomada de Ceuta, em
1415, Os nossos monarcas são «reis» e «senhores», reis de
Portugal e do Algarve e senhores de Ceuta. O «senhorio»
africano dilata-se com as conquistas de D. Afonso V, o
qual, após a ocupação de Tânger, em 1471, resolve erigir
esse senhorio em reino, ou melhor, em extensão ultramarina
do reino do Algarve, passando a intitular-se «Dom Afonso,
per graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves daquém e
dalém-mar em Africa» (R. de Pina, Crónica de D. Afonso V,
c. 167). Posteriormente, com D. João II e com D. Manuel, o
senhorio regressará à titulatura ao passo e à medida da
expansão e do império — «da Guiné, da Conquista, da
Navegação e do Comércio».
De modo que a prosápia real sempre gostou, tal como
sucedia em Castela, de distinguir e somar reinos. Portugal
e Algarve distintos. Todavia, a consciência nacional remava
noutra direcção.
Tal como sucedeu com a expressão «português», que, como
vimos, passou a designar todos os «naturais» dos dois
reinos da coroa, assim também «Portugal» passou a designar
todo o território, desde o Minho ao litoral algarvio.
Marrocos, apesar de ser extensão «oficial» do Algarve,
nunca foi sentido como «Portugal». Já, por exemplo, o
arquipélago da Madeira, sim. E bem cedo. Diziam os
deputados do Algarve em 1451: «[...] as Ilhas da Madeira
que podemos chamar Portugal-o-Novo.» Note-se: são algarvios
que falam. Obviamente sentindo-se naturais de
«Portugal-o-Velho».
Na primeira parte da crónica de Fernão Lopes o nome
«Portugal» ocorre cerca de 130 vezes (mais do que
«portugueses», que ocorre 92), e quase sempre designando o
território nacional inteiro. Todavia, nos textos não
cronísticos as ocorrências não abundam. Nos documentos
parlamentares, por exemplo — e de novo chamamos a atenção
para a peculiar importância destas fontes a respeito deste
tema — o nome praticamente só ocorre na titulatura dos
reis. Os deputados preferem dizer «reino», «reinos»,
«terra», «senhorio» e locuções sinónimas. Não obstante,
podemos indicar passos em que «Portugal» aparece no sentido
de nação.
Assim, em 1371, no capítulo 74 das Cortes de Lisboa
desse ano, ao pedir-se a D. Fernando que não coloque como
alcaides de castelos fidalgos estrangeiros, castelhanos,
argumentasse: «porque som da terra doutro uso» e os
portugueses «muitas cousas sofreriam ao natural de Portugal
que nom querem fazer a eles». O capítulo II de 1459
(Lisboa), que se insurge contra serenatas e folias
nocturnas praticadas por fidalgos, conclui nestes termos:
«Senhor, se quiserdes correger os males, não hajais dó das
penas e dai [a elas] execuçom; senão, dai ao demo a terra e
leixai tudo ir como vai — que eu [fala o redactor pelos
deputados] acho que a das principais cousas que dana
Portugal assi é per afeições e per peitas.» Em 1451, outra
referência; aquela que chama à Madeira «Portugal-o-Novo».
Depois, só em 1481, nas primeiras cortes do reinado de D.
João II, em que há três ocorrências noutros tantos
capítulos gerais: o 47, o 121 e o 145. Nos três casos,
«Portugal» é o território continental inteiro, terra-nação,
conforme muito nitidamente se lê sobretudo no primeiro
caso, onde se alude aos «homens de Portugal». No capítulo
121, a referência aparece na resposta do rei e é
significativa, visto que as ilhas atlânticas do senhorio do
rei português são designadas não desta maneira, mas como
«ilhas sobjeitas a Portugal».
De modo que «Portugal» tem sentido e alcance similares
aos que verificámos em «portugueses». Ambos podem e devem,
como dissemos do segundo, ser contemplados como
ideias-símbolos de sentimento patriótico, como conceitos
cristalizados da consciência de nacionalidade.

O rei

E, finalmente, o rei — o terceiro e o mais importante


vector da unidade da nação e da ordem. Talvez o único que
persiste, metamorfoseado embora, no imaginário nacionalista
e patriótico de hoje. E quando dizemos o único, não negamos
que os outros não continuem, mas que cederam vigor

312
apelativo a modalidades audiovisuais inexistentes há 500
anos atrás. «El-rei», a palavra-figura-símbolo.
Omnipresente. Omnipresente nos textos legislativos, nas
actas tabeliónicas, nas sentenças dos tribunais, nos
acordos de cortes; na viva voz dos oficiais da justiça e do
fisco, na das massas ovacionantes e na dos guerreiros a
caminho da morte; nos «apelidos» de ajuda e alerta, de dia
ou de noite, onde quer que o crime estalasse; no mar e em
terra, pelos caminhos do mundo, garantindo salvos-condutos
e cartas de segurança ou credenciando embaixadas; enfim,
nas arcas das câmaras, nos tesouros do clero e nos cofres
dos fidalgos — voz disponível — ou ao vento, nas praças,
nas ruas, nos pelourinhos, nos paços da justiça, nas
igrejas e nos patíbulos — voz actuante. E ainda nas moedas,
a lembrar a fidúcia das trocas. E até nos lombos dos
cavalos e das éguas em «R» indelével de «acontiamento»
militar, espécie de matrícula contra indevidos empregos e
coitos ilícitos. E também nas armas dos «acontiados» nelas,
recolhidas domesticamente em lanceiros e «armários»,
conforme, e sempre à espera de um «alardo» ou
«apercebimento». E ainda... Etc. «El-rei» era ubíquo.
Primus inter pares até D. Afonso II, timidamente
imperator, com este monarca, imbecilis com Sancho II,
domines e rex com Afonso III, «cabeça e começamento do povo
todo» com D. Dinis, o rei purga-se de peias feudais e
impõe-se como chefe de Estado. O que sucedeu precisamente
durante o governo dionisino (J. Mattoso, 1985, vol. II). A
partir daí cada vez mais o monarca é uma instituição que
resume o País. Não mais será o insigne companheiro dos
nobres nem o equivalente temporal do papa e dos bispos. Mas
antes, conforme haverá de afirmar D. Duarte em 1438, a
cabeça e o senhor da nação e dos seus habitantes, clero,
nobreza e povo (R. de Pina, Crónica de D. Duarte, c. 39).
Ou seja, a palavra-figura polarizadora da unidade e da
ordem.
De modo que ao chegarmos a 1325 a nação pode não ter
despertado ainda para uma consciência clara de si, mas a
igreja, os nobres e os municípios sabiam que havia um poder
central, um Estado cujo vértice e denominador era o rei. D.
Afonso IV e seus sucessores não fizeram senão acentuar ou
manter essa convicção.
Com efeito, a centralização prosseguiu e com ela a
afirmação do rei como figura e símbolo da nação. Houve, é
certo, hesitações e até recuos. Pontuais e conjunturais.
Mas a armadura teórica político-jurídica, cesarista, que
vinha a construir-se desde Afonso II, como se recordou,
nunca esmoreceu de fortalecimento depois de D. Dinis, de
tal modo que qualquer prática de condescendência feudal,
como sucedeu com D. Fernando e D. Afonso V, jamais deixou
de ser vista como tal — como condescendência e fraqueza. Os
povos, atentos, não temeram causticar esses reis e essa
prática, tanto no Parlamento, transformado em seu areópago
— onde às cadências de «pedidos» se contrapunham
reivindicações político-sociais —, como no meio da rua, em
revoltas e «oniões». A partir de 1371 até 1482 o grande
baluarte do poder cesáreo dos reis assentou no Parlamento
e, dentro dele, na voz ousada dos povos. É claro que o
sentir do Parlamento traduzia a convicção generalizada das
forças municipais, isto é, das camadas superiores do povo,
por sua vez representativas — de facto representativas — da
maioria esmagadora da nação. Reis inteligentes e hábeis,
como D. Duarte e D. João II, viram-no bem. E se o primeiro,
por razões demasiado sabidas, entre as quais a sua morte
prematura, não teve ensejo de se tornar um césar, já o
segundo teve; e fê-lo. O modo como usou o Parlamento e os
povos para atingir os seus objectivos centralistas,
absolutistas mesmo, é a todos os títulos notável. De tal
modo que um dos problemas que se põe aos historiadores é o
de saber como e onde D. João II, 26 anos quando se torna
rei, aprendeu tanta determinação, tanta prudência e tanta
manha (65). Conselheiros lúcidos e «progressistas» peados
por Afonso V? Que no moço príncipe encontraram o pupilo
certo? Sem dúvida — porque «el-rei» era uma instituição e
uma pessoa colectiva. Mas também era indivíduo, «o pupilo
certo», um carácter. D. João II e todos os outros. Por isso
cada reinado tem uma personalidade irrepetida.
Quando atrás se disse que após D. Dinis houve
hesitações e recuos no processo de centralização, de modo
algum se quis significar ter o rei regredido a uma posição
de primus inter pares no contexto senhorial do reino. A
partir de D. Afonso III isso tornou-se completamente
impossível. Afortiori a partir do neto, Afonso IV. Porquê?
Porque entretanto o poder monárquico beneficiou, na teoria
e na prática, de uma valorização revolucionária. O rei
passa a ser imperator no seu território. Nenhum nobre se
lhe equipara. Isto segundo a teoria romanista, conforme
vimos atrás. Ao mesmo tempo, na prática, a administração
seguiu a teoria. Centralizar, palavra de ordem. Pôr olhos,
ouvidos e mãos do rei em todo o lado. Exemplos:

313
Inquirições — levadas a efeito, no nosso período, por
D. Afonso IV, D. Fernando e D. João I, nos anos de 1335 (em
Trás-os-Montes), 1343 (no Entre Douro e Minho), 1339-1348
(no Porto), 1373 (no Alto Alentejo) e 1395 (na região da
Beira transmontana). Reactivadas com D. João II;
Juízes de fora — instituídos entre 1327 e 1331 e
incentivados depois da peste negra;
Corregedores — regulamentados em 1332 e em 1340 e cada
vez mais actuantes junto dos municípios e das populações em
geral, inclusive junto dos senhorios privados, aonde passam
a ter acesso, velho sonho dos povos em cortes, no reinado
de D. João II;
Tabeliães — vindos de trás, omnipresentes no reino
conforme se viu a propósito do cômputo da população,
agentes da memória escrita oficial e vigilantes dos
«estados das terras»;
Besteiros do conto — corpo militar permanente ordenado
a partir de 1331, cada vez mais submetidos ao controlo do
poder central mediante uma cadeia de comando que termina no
«anadel-mor», posicionado junto do rei (66);
Apelações — mecanismo destinado a possibilitar o
recurso de sentenças junto do tribunal régio, em matéria de
foro civil, não importando a jurisdição da primeira ou
segunda instância (1359);
Beneplácito régio — outro mecanismo, criado por D.
Pedro I, destinado a controlar a ingerência dos papas e do
grão-mestre de Rodes no território nacional (67).

Enfim, muitos outros mecanismos, instituições e leis,


que não cabe aqui nomear, concorreram para que os monarcas
se vissem e fossem vistos, em todo o período do nosso
estudo, como símbolos e figuras de um poder que se
sobrepunha a todos os outros. Não mais um rei, por muito
«imbecil» que fosse, se equipararia a um qualquer senhor
feudal, como «primeiro entre iguais». Porque com D. Dinis e
D. Afonso IV o titular da monarquia tornou-se,
definitivamente, «cabeça e senhor» do reino. E
simultaneamente o referencial da ordem do País e da unidade
da Nação. O rei não poderá afirmar, evidentemente, «o
Estado sou eu»; mas poderá, sem dúvida, dizer «Estado, logo
eu». E a inversa também (68).

Nos séculos XIV e XV Portugal é um «território»


definitivo e uma «população» ontogonicamente Conclusão
definitiva também. As alterações e apartamentos
posteriores, numa e noutra dessas vertentes, não passarão
de circunstanciais. As grandes matrizes geográficas e
étnicas ficaram resolvidas. E houve também uma «ordem» que
civilizou o meio e as gentes. Será nesta vertente, a da
ordem, que a história vai fazer efeito. Porque, realmente,
não é no sangue nem na terra que nós, portugueses de hoje,
nos distanciamos dos nossos pais medievos; é na cultura e
na mentalidade.
Nesses dois séculos, a sociedade conformou-se à
pregnância do ser. Valia quem era. Quem era por nascimento
ou segregação imposta por ritos sagrados, aqueles que
produziam clérigos e cavaleiros. Portanto: clero, nobreza e
povo.
Mas a moeda irrompera. E com ela o quantitativo, a
distinção apostada no ter. Que irá, lenta, insidiosa e
inelutavelmente, com essa paciência que o tempo longo
reclama, subverter tudo e gerar outra ordem. Só que isso
eclodirá em modelo muito para aquém da Idade Média, em
épocas mais nossas — e noutros volumes desta História.
Diga-se, porém, que essa outra ordem a haver anuncia-se já
no século XV, na desactualização da ideologia trinitária e
trifuncional da sociedade e nas contradições das diversas
listas interpretadoras dos estatutos socioprofissionais. O
burguês, o nobre de toga e o fidalgo mercador aí estão como
entidades denunciadoras de uma estrutura em viragem,
primícias dessa ordem outra em que a mobilidade estatutária
é função do engenho. Que viva pois o individualismo
moderno; e descanse em paz a teoria fixista da desigualdade
necessária exigida por Deus.
Portanto, população ordenada, mas em mutação
irreprimível. O território, observado como expressão
sociopolítica, também. Reguengos, coutos, honras, alódios
concelhios — um mosaico que os reis, estribados num direito
ressuscitado para os servir, irão domesticando e pouco a
pouco gerindo. Uns no plano económico, outros no financeiro
e todos no judicial e político. E foi veloz esta acção. Em
200 anos, um heptaneto de Afonso III, D. João II, pôde
enviar os seus corregedores a todas as terras do País,
obrigar os maiores senhores a jurá-lo como se fossem
alcaides e proclamar, no Parlamento, que ele, tal um
imperador, não tem de jurar manter os foros e usos e
costumes e privilégios adquiridos pelos seus súbditos nos
reinados anteriores ao seu. Porque, disse, um rei só se

314
compromete perante Deus e a sua consciência. O ano disto:
1481. Mensagem: o feudalismo acabou.

A técnica

Falámos até aqui de território, população e ordem


enquanto condicionamentos básicos de uma nação. Mas não há
ordem de uma população sobre um território sem tecnologia.
Por outras palavras, qualquer cultura ou civilização é
efeito e condição do homo technicus. A técnica assegura e
exprime a socialização, o esforço colectivo das nações para
se constituírem, fortalecerem e perpetuarem. É por isso que
a cultura, a civilização e a técnica, olhadas como objectos
antropológicos, não passam, afinal, de nomes diferentes da
mesma coisa (69). Admitindo até que haja razão e fundamento
no entender a cultura segundo uma dimensão eminentemente
espiritual e a civilização pelo contrário, ambas exprimirão
sempre realizações humanizadoras — sobre a pessoa ou sobre
o mundo — impossíveis sem uma técnica qualquer. Porque
arte, teoria e técnica reclamam-se permanentemente. Como
acertadamente o intuiu, há 600 anos, um Pierre de
Montreuil, pedreiro-arquitecto, que se auto-intitulou
«doutor em pedras» (J. Gimpel, 1976, p. 119).
É difícil classificar as técnicas, afirmam os
etnólogos. E com efeito: trata-se, afinal, de tipificar
exaustivamente os modos e os meios por que se revela a
eficácia dos comportamentos humanos. Esse universo imenso
que se estende desde a formulação de um raciocínio ou a
comunicação de um sentimento até ao agarrar de uma enxada
para abrir um sulco no chão; desde a retórica de qualquer
sedutor — padre, político ou amante — à publicidade do
cangalheiro; desde a cabeça de um fósforo às ogivas
nucleares de uma guerra-a-última.
De modo que não é exequível falar da tecnologia dos
séculos XIV e XV sem restringir horizontes. A tanto obrigam
o tempo e o espaço deste discurso. Optemos então pelas
técnicas económicas, deixando outras áreas e expressões
para quando for oportuno. Será assim, consoante os
sectores:

a) Técnicas agrícolas, pesqueiras e venatórias;


b) Técnicas industriais, mineiras e energéticas;
c) Técnicas comerciais, de transportes e de serviços.

Há-de-se concordar que, compendiados nestas três


alíneas, se encontrarão decerto os mais decisivos
instrumentos que possibilitaram aos Portugueses construir
Portugal. E afirmar a sua especificidade enquanto nação.
Isto não implica que haja de pressupor-se na tecnologia
portuguesa dos séculos XIV e XV originalidade de meios e de
aplicações. O que se quer dizer é que as soluções
encontradas, fossem ou não originais, acabaram por formar
um corpus cultural coeso, testado pela experiência e
cristalizado em mentalidade. Uma espécie de núcleo de
crenças e valores a respeito da realidade e do diálogo do
homem com ela. Núcleo feito repertório a transmitir e
transmitido. Escreveu Leroi-Gourhan (1964,1 p. 208): «Dizer
que as instituições sociais são estreitamente solidárias do
dispositivo técnico-económico é uma afirmação
constantemente verificada nos factos.» Ninguém é
impunemente lavrador ou marinheiro.

Técnicas agrícolas pesqueiras e venatórias

As técnicas agrícolas utilizadas podem dividir-se em


dois grandes grupos: agrológicas e instrumentais. Entre as
primeiras devem citar-se os afolhamentos, rotação,
naturalidade das sementes e fertilizantes; entre as
segundas, os utensílios, os instrumentos e as máquinas (M.
Mauss, 1972, p. 36). Aquelas procuram assegurar o máximo de
produção num mínimo de desgaste das potencialidades
pedológicas; estas, o máximo de eficácia num mínimo de
esforço e de tempo.
É difícil distinguir nos textos a técnica da rotação da
do afolhamento. As duas costumam ser tomadas como
sinónimas, é certo. Mas cremos que devem ser discernidas.
Por rotação entender-se-á a sucessão cultivo pleno/pousio
pleno, alternadamente ou não. Por afolhamento, divisão em
folhas de uma área cultivável, de tal modo que nela sempre
haja cultivo, duas ou três partes geralmente, afolhamento
bienal ou trienal. Sabe-se que a técnica do afolhamento
significou um enorme avanço relativamente à da rotação.
Sendo ambas bienais, o avanço cifrou-se em termos de

315
continuidade de colheitas. Sendo aquele trienal, o
progresso foi também de ordem quantitativa: dois terços a
mais sobre a rotação bienal e três quartos acima da
trienal. E isso sem que a terra se ressentisse
substancialmente do esforço, pois que a alternância cereais
de Inverno e cereais de Primavera e pousio — com os
necessários alqueives e estrumação de pastantes —
recompunham-na suficientemente. Vê-se, pois, que a técnica
do afolhamento, designadamente o trienal, constituiu uma
grande invenção (70). Foi praticada em toda a Europa nas
«empresas» mais progressivas, nomeadamente as
cistercienses, esses alfobres da tecnologia agrária
medieval (J. Gimpel, 1976, pp. 42-43 e 60-64). Em Portugal,
também, tanto nos domínios de Alcobaça, mosteiro
cisterciense como se sabe, como no Baixo Mondego e,
provavelmente, noutras áreas do País (71).
Outra técnica teve a ver com a escolha das sementes,
isto é, com a utilização num terreno de sementes
originárias de outro diferente. Walter de Henley, século
XIII, justamente considerado «o pioneiro dos métodos
experimentais em agricultura», aconselhava: «Por S. Miguel
procurai sementes de outro sítio para fazer a vossa
sementeira habitual do ano; a vossa colheita achar-se-á
enriquecida por essas sementes nascidas no terreno de
outrem (J. Gimpel, 1976, pp. 59-63). É sabido pelos
lavradores que esta técnica tem por objectivo evitar a
degenerescência das espécies a semear. Alcobaça parece ter
conhecido e praticado este processo (I. Gonçalves, 1989, p.
227).
A adubagem dos solos foi procurada assiduamente e de
muitos modos: estrumação, queimadas, soterramento de
ervagens e folhas secas, emprego de moliço e sargaços,
plantação de tremoço e outras leguminosas, etc. O
lançamento de rebanhos em terras de pousio visou também
esta finalidade. Enfim, utilizaram-se todos os meios
conhecidos no tempo para restituir à terra os nutrientes de
que as culturas precisavam. Meios que excluíam, obviamente,
os adubos químicos, ainda não inventados. Mas conhecia-se
já a importância do carbonato de cálcio, como «amaciador»
dos solos ácidos, o qual era usado no processo de margagem,
processo, aliás, já praticado na Antiguidade (J. Gimpel,
1976, pp. 64-65). Não sabemos se a margagem foi ou não
conhecida em Portugal. Os estrumes provenientes de
estábulos, escassos em geral, eram reservados aos solos de
culturas intensivas, almuinhas e cortinhais, onde tinha
lugar uma agricultura de «jardinagem», extremamente
exigitiva de cuidados e por isso praticada em solos férteis
ao pé da porta. Apesar de todos os aproveitamentos, pode
dizer-se que a adubagem, quase exclusivamente representada
por matérias orgânicas, foi deficiente na Idade Média,
tanto em Portugal como em toda a Europa. Por isso não havia
outra solução senão recorrer às técnicas da rotação e
afolhamentos nos solos destinados ao centeio e ao trigo.
Ainda dentro da matéria que nos ocupa, a das técnicas
agrológicas, há que citar a lavra e a rega, afinal as mais
importantes. Diversos tipos de lavra se praticaram —
conforme os solos, o clima, a dimensão dos campos e as
espécies florísticas a cultivar. Com charrua, arado,
enxada, conforme. Conforme se trabalhasse no Norte
atlântico, Norte transmontano ou Sul mediterrânico.
Conforme se semeasse linho, aveia, milho, centeio ou trigo.
No Norte atlântico, solos profundos e ácidos, reclamava-se
a charrua — o vessadoiro — puxada por duas e três ou mais
juntas de bois. Em Trás-os-Montes e no Sul o arado
esgadanhante chegava. E nas margens arborizadas das
devesas, grandes ou pequenas, assim como nas leiras
liliputianas, não havia outro remédio: era o enxadão de
ferro, agarrado a cuspo, sobe e desce, volve e revolve,
castigo de Adão.
O regadio não foi invenção dos séculos XVI-XVII em
corolário da «revolução do milho», como pode inculcar uma
rápida leitura de Orlando Ribeiro (72) (A. Ferreira de
Almeida, 1988, pp. 65-70). Praticou-se desde sempre onde
quer que lameiros ou prados, linhais e culturas de
Primavera foram explorados. Afortiori, nas almuinhas e
cortinhais. Fontes, minas, presas, regos, canais, açudes de
rega, poços, noras, cegonhas e outros engenhos de captação,
armazenamento, elevação e conduto de águas percorrem os
documentos. «De monte em fonte» é expressão consagrada para
designar direitos de propriedade fundiária. A própria
quantidade de termos relacionados com o uso agrícola da
água mostra o apreço que se lhe tinha e a importância que
ela representava. Um documento do Mosteiro de Santo Tirso,
distrito do Porto, datado do século XV, estipula o percurso
que umas águas desviadas do rio Leça deviam seguir, por
montes e pomares e caminhos públicos, viagem de
quilómetros, até ao rio Ave (73). É certo que essas águas
são referidas a propósito de uma azenha; mas as zonas do
percurso, pomares e logo hortas, prescritivas, denunciam o
seu aproveitamento no regadio. Enfim, a revolução do milho
mais não fez senão intensificar, até à exaustão ousar-se-ia
dizer, a exploração das técnicas hídricas herdadas da Idade

316
Média. Mas não se pode afirmar que tenha inventado técnicas
novas. Só neste século, e há poucos anos, isso veio a
suceder em Portugal.
E agora as técnicas instrumentais: utensílios,
instrumentos e máquinas. Já dissemos atrás que o homem
medieval sobreutilizou a madeira. Quase tudo era de pau. Os
aprestos agrícolas não fugiram à regra. De um ramo seco e
calcinado de carvalho fazia-se uma forquilha ou um ancinho
ou um cambão ou um fueiro ou a peça de um mangual ou até
mesmo um arado — tudo dependia da forma e espessura do
ramo. Que dissemos de carvalho; mas também podia ser de
azinho ou sobro, consoante a região do País. É ainda dos
nossos dias a utilização de «escachas» de qualquer dessas
espécies para zorras-trenós do transporte da pedra —
utensílios que dispensam à vontade todo o tipo de
pregadura. Mas a eficácia da técnica agrícola não esteve
aí, na matéria-prima dos utensílios. Nem mesmo na dos
instrumentos, embora a aplicação do ferro tenha
representado nestes um salto qualitativo muito notável
(74). As máquinas e a rentabilização da energia, isso sim,
é que marcaram os progressos. Ou seja: a charrua — arado
quadrangular provido de sega e aiveca, com ou sem carreta,
não interessa, o vessadoiro dos nossos documentos; a grade,
para desterroar e submergir a semente, máquina poupadora de
muitas enxadas; e a atrelagem em fila, sistema de
multiplicar forças. Da charrua diz Gimpel: «A invenção que
mais marcou a agricultura medieval [...]; muito mais rica
em consequências do que a utilização da energia hípica (que
duplica o rendimento da energia bovina); [...] alfaia
notável, provida de um ferro que penetra verticalmente no
solo, de uma relha que quebra os caules e sobretudo de uma
aiveca recurvada, que atira a terra para o lado depois de a
ter fendido profundamente» (J. Gimpel 1976, pp. 61-62).
Melhor: provida de uma aiveca móvel que dobra a gleba
sempre para o mesmo lado, soterrando as ervagens, e isso
independentemente do sentido da lavra, possibilitando ao
mesmo tempo recompor o declive dos terrenos quando eles têm
perfil inclinado — o que sucede geralmente no Norte
atlântico, que é precisamente o território do vessadoiro.
«Vessadoiro», justo nome. De versare, dobrar; dobrar a
gleba. Máquina insuperada até hoje — porque anda aí, nos
campos do mundo, tirada por potentes tractores. O princípio
funcional, inventado na Idade Média, é o mesmo: rasgar,
dobrar, compor. E com isso oxigenar e reconstituir.

Técnicas pesqueiras e venatórias

Técnicas pesqueiras. Há a distinguir a pesca do mar da


da água doce e aquela que se fazia para autoconsumo ou para
venda. E ainda a costeira da longínqua. As técnicas
utilizadas foram aquelas que chegaram praticamente aos
nossos dias, conforme as espécies capturadas, desde os
sáveis e muges dos rios até à sardinha, o atum e a baleia.
Utilizaram-se caneiros, covões, estacadas e açudes — muito
contestados todos por prejudicarem a navegação fluvial; e
diversos tipos de redes, armadilhas e venenos. Nos rios
empregavam-se nassas, santelos, armuzelos, tesões,
tarrafas, redes-pés, canas, malhadas, tresmalhes e
troviscadas; no mar fizeram sucesso os acedares pela cópia
de sardinha que capturavam, possibilitando a generalização
desta espécie na dieta dos Portugueses — fresca e salgada
(75). O peixe não consumido imediatamente a seguir à
captura era conservado por salga, fumo e secagem e expedido
para o interior do País e o estrangeiro.
Sobre técnicas venatórias, distinga-se a «caça
desportiva», aristocrática, e a «económica», plebeia (M. H.
Coelho e C. Riley, 1988). A primeira, muitas vezes
actividade paramilitar, é aquela de que falam os tratados
técnicos da época, o de D. João I, o do mestre Giraldo e o
de Pêro Menino; é também aquela em que logo se pensa quando
se ouve dizer «caça medieval». Mas «essa ideia não deixa de
ser redutora [pois que], tendo em consideração a
diversidade de aspectos que conheceu a actividade
cinegética na Idade Média, podemos mesmo dizer que ela
constitui a ponta de um iceberg» (M. H. Coelho e C. Riley,
1988, p. 228). Aqui interessa-nos preferencialmente a caça
económica. Tanto pela incidência social da sua prática como
pelo objectivo que visava. Foi modo de vida, fonte
suplementar de recursos alimentares, forma de proteger as
culturas e os gados. Coutados os ursos, os javalis e os
veados, ficavam aos caçadores plebeus, e mesmo assim com
restrições de tempos e lugares, as lebres e os coelhos, de
que se aproveitavam as carnes e as peles; e ainda os lobos,
as raposas e outras alimárias daninhas, perseguidos muitas
vezes em batidas comunitárias, por desinço e preço das
pelagens. Análogos objectivos no que toca a espécies

317
voláteis — a carne e a desinfestação; ou as duas coisas ao
mesmo tempo. Perseguiram-se codornizes, rolas,
pombos-bravos, tordos, pegas, pardais, águias, milhafres,
etc. Perdizes também — mas clandestinamente porque era
espécie destinada ao desenfado dos senhores(76). As
técnicas venatórias utilizadas na caça económica foram
pautadas, ao contrário das da caça desportiva, pelo
pragmatismo dos seus fins — a máxima eficácia no mínimo de
esforços, despesas e riscos: profusão de armadilhas,
varapaus, redes, lanças, arcos, bestas e fundas; isso
coadjuvado por cães e furões amestrados. Descontando a
besta, era tudo arcaico.
Enfim, de todas as técnicas económicas do sector
primário, foram as agrícolas as mais importantes. Tanto no
que diz respeito à qualidade dos inventos quanto no que se
refere aos seus efeitos em termos de civilização e
mentalidades. Isso, sem dúvida, porque a sociedade era
essencialmente agrária. A pesca e a caça foram,
evidentemente, actividades muito importantes do ponto de
vista económico e alimentar. As suas técnicas, porém, não
tiveram o mesmo alcance civilizacional das outras —
excepção feita apenas no que tange às técnicas de navegação
marítima, barca e caravela, com seus lemes e velames, que
houveram de possibilitar, evoluindo sempre, a descoberta do
Globo. Mas isto tem mais a ver com o sector terciário do
que com este.

Técnicas industriais, mineiras e energéticas

Comecemos pelas últimas. E destas consideremos duas: as


técnicas de aproveitamento da energia hidráulica e as de
aproveitamento da energia eólica. As do aproveitamento da
energia animal ficam para a alínea dos transportes.
A energia hidráulica e a eólica não são outra coisa
senão o aproveitamento e transformação do ímpeto das
correntes hídricas e atmosféricas em trabalho; por outras
palavras, a transformação de um movimento rectilíneo em
circular. Desde a Antiguidade conheciam-se os processos e
fizeram-se demonstrações e engenhos. Foi, porém, na Idade
Média que esses conhecimentos e experiências foram
aplicados de forma sistemática ao mundo laboral. E isso
porque houve um enorme salto qualitativo na apreciação do
trabalhador, escravo ou livre; tanto quanto uma imperiosa
necessidade de aumentar os ritmos de produção. Factores
sociais, económicos e mentais estão na base da revolução
energética dos séculos XI e XII em toda a Europa. E devem
citar-se os monges, sobretudo os cistercienses, como os
grandes incentivadores dessa revolução. A energia e o
movimento apaixonaram grandes espíritos. De tal modo que um
dos problemas maiores do século XIII, quase obsessão dos
grandes «engenheiros» da época — como a da pedra filosofal
para os «químicos» seus contemporâneos — foi o da
descoberta dos autómatos, o da solução prática do movimento
perpétuo (J. Gimpel, 1976, pp. 125-131). Nunca a
encontraram, como é sabido; mas conseguiram descobrir essa
máquina importantíssima, símbolo ainda hoje da perfeição
técnica, que é o relógio mecânico.
A tecnologia energética medieval consistiu, como
dissemos, em transformar a força de torrentes em movimento
circular contínuo. Numa palavra, consistiu em mover
moinhos. Moinhos de água, moinhos de marés, moinhos de
vento. Pôr uma roda, vertical ou horizontal, e uma vela
giratória a funcionar e daí um sistema terminal que
permanentemente esmague, triture, martele, serre e misture.
E isso a altas ou baixas velocidades, conforme a maior ou
menor urgência da produção e a natureza das coisas a
trabalhar. Para tal foram necessários instrumentos, obras e
cálculos especiais. Por exemplo, o conhecimento e aplicação
do sistema biela-manivela, a invenção do veio de
excêntricos, sistemas de engrenagens multiplicadores e
desmultiplicadores, barragens, estudo de caudais, comportas
automáticas para a retenção das águas após a preia-mar,
telhado giratório para os moinhos de vento, balancim, etc.
Tudo isto foram meios sem os quais a energia não pudera ser
domesticada; ou seja, pré-requisitos da tecnologia
energética. A aplicação criou as máquinas, as técnicas
industriais, de que já falaremos.

Ano - Moinhos

526 - flutuantes no rio Tibre


987/96 - para cerveja
1008 - moinho-pisão
1010 - para ferro
1038 - para casca de carvalho (curtumes)
1040 - para cânhamo
1166 - para cana-de-açúcar
1195 - para aguçar
1238 - para papel
1251 - para mostarda
1272 - para torcer a seda
1321 - para cimento

318
Note-se: todos os progressos medievais no aproveitamento da
energia hidráulica e eólica de nada serviram para os
transportes terrestres. Estes continuaram a depender da
energia animal. Os tão procurados autómatos, recorde-se,
nunca foram achados.
Podemos agora lançar os olhos sobre as técnicas
industriais. Que em assunto de maquinaria avançada se
baseavam em moinhos. Atente-se na cronologia (J. Gimpel,
1976, pp. 253-259), da página anterior.
Esta lista mostra bem a efervescência industrial dos
séculos XI a XIII. Neste período multiplicaram-se os
inventos para aplicação generalizada da força motriz
captada por rodízios — por moinhos. Note-se que a palavra
«moinho», inicialmente máquina destinada a fazer girar mós,
foi alargando o seu significado para máquina susceptível de
gerar e manter um movimento rotativo de utilidade
industrial — um motor. As diversas aplicações a esse motor
é que fizeram dele uma máquina de moagem, de compressão, de
estiramento de metais, um lagar de azeite, um fole de
ferreiro, um martelo-pilão, uma serra de madeira, um
engenho de açúcar, um pisão, uma calandra para tecidos ou
metais ou papel, etc. Os séculos XIV e XV pouco mais
conseguiram do que expandir e aperfeiçoar todos esses
inventos. Tudo isto nos leva a compreender porque é que só
ultimamente os centros industriais tendem a emancipar-se
dos rios. É que, em última análise, os rios eram a força
motriz. Onde houvesse rio de bom caudal, de fluxo
permanente, de margens suficientemente acessíveis e em zona
demograficamente densa, aí o deus das indústrias assentava
arraiais — e os caminhos enchiam-se de vozes, ruídos e
cheiros. Moleiros, pisoeiros, tecelões, curtidores,
lagareiros, serradores, ferreiros, enfim, a tropa fandanga
dos filhos de Prometeu. É ver a história do vale do Ave,
por exemplo.
Em Portugal, afora os moinhos de cereais movidos a
água, que são muito antigos e omnipresentes, os outros
documentam-se tardiamente. No século XV quase todos. É o
caso dos moinhos eólicos, apesar de duas referências
anteriores; dos lagares de azeite; das serras de água; dos
engenhos de açúcar; dos moinhos de papel; do torno
hidráulico (Oliveira Marques, 1986, p. 49). Já, porém, os
pisões de tosar registam-se no século XIV em Coimbra (M. H.
Coelho, 1983, vol. I, p. 228). Em contrapartida, não se tem
conhecimento da utilização de moinhos de marés nem da
existência de foles accionados por energia hídrica,
indispensáveis na tecnologia dos altos fornos. É de crer,
todavia, que muitas das nossas incertezas e ignorâncias se
devam à falta de uma história das técnicas em Portugal, a
qual, para ser feita, terá de subtrair ao silêncio dos
arquivos, possivelmente, fontes que hoje são ignoradas e ao
mutismo das ruínas testemunhos materiais ainda
provavelmente remanescentes. Aguarde-se, portanto, para se
saber. Para se saber não só a gama de produtos industriais
fabricados em Portugal, como sobretudo as técnicas de
fabrico. Dos tecidos, do sabão, do vidro, da cerâmica, do
vestuário, da habitação, etc. Enfim, tanto as «técnicas
gerais para usos gerais», físico-químicas e mecânicas, como
as «especiais para usos gerais», artes e ofícios, até às
«especializadas para usos especiais», as indústrias
propriamente ditas em seu vastíssimo leque, desde as
alimentares às médico-farmacêuticas (M. Mauss, 1972, p.
38). Eis aí todo um mundo à espera de investigação
sistemática.

Técnicas comerciais, de transportes e de serviços

«Do ano 1000 ao século XIII, o sector primário foi o


motor da economia; nos séculos XIV e XV, a hierarquia
modificou-se e coube ao sector terciário esse papel» (G.
Fourquin, 1969, p. 380). Isto foi afirmado para o Ocidente
medieval e não precisamente para o nosso país. De qualquer
modo, o fenómeno verificou-se também entre nós, pelo menos
em algumas cidades e vilas, tendo-se reflectido mesmo no
interior de grandes instituições políticas — como, por
exemplo, nas cortes. O comércio internacional e os
transportes marítimos marcam o sentido do progresso. Lisboa
e o Porto anunciam-se como os dois grandes centros do
futuro português; e a burguesia opulenta dessas duas
cidades cada vez mais se reivindica de porta-voz da sua
classe e até do terceiro estado inteiro. Isto é revelado
nas crónicas e inteiramente verificado nos textos saídos do
Parlamento. Mas é evidente que em Portugal tudo se passou
em medida pequena, comparação feita com o sucedido na
Itália, na França, nos Países Baixos e na Alemanha. A
Itália foi pioneira e durante séculos vanguarda. Entre as
técnicas financeiras surgidas com a explosão urbana dos
séculos XII e XIII e pouco a pouco instauradas em todo o
Ocidente contam-se a escrita ou contabilidade comercial

319
sistemática, o câmbio e a banca e o papel-moeda, sob as
formas de cheque e letra (77). As cartas de negócios
trocadas entre grandes mercadores e seus correspondentes
espalhados pelas mais diversas e distantes praças, assim
como a prática de espionagem comercial e prospecção de
mercados por emissários «estantes», tornam-se correntes.
Infelizmente, para o caso português não podemos formular
senão suspeitas sobre a prática de tais técnicas — e isso
porque não chegaram até nós, tanto quanto se sabe, nenhuns
arquivos privados de mercadores e banqueiros (78). Sabemos,
porém, que os estrangeiros, os referidos «estantes»,
nomeadamente italianos, actuaram entre nós intensamente
durante o século XV, sobretudo depois da descoberta e
aproveitamento das ilhas atlânticas, conseguindo fundar
monopólios de alguns produtos e controlar os preços das
exportações de outros (A. de Sousa, 1989a, p. 258, e 1989b,
pp. 149, 160.) A sua ingerência nos negócios nacionais
atingiu tal peso durante o reinado de D. Afonso V, por
exemplo, que os deputados parlamentares, porta-vozes de
burgueses, se viram obrigados a questionar o poder régio
sobre tal política (79). E as suas palavras foram
desassombradas. Com D. João II, os interesses nacionais —
ou, por outra, os interesses dos nacionais — parecem ter
sido minimamente salvaguardados. Pelo menos no que toca a
monopólios e incursões comerciais na África e nas ilhas.
Outras técnicas ligadas ao grande comércio, mas já na
categoria dos serviços, revelaram-se na constituição de
sociedades, seguros marítimos, bolsas de socorros mútuos e
sistemas de fretagem (80). Isto é, naquilo que hoje se
distribui pelas companhias seguradoras, bolsas de comércio,
agências de importação-exportação e companhias de
transportes marítimos, aéreos e terrestres. É claro que na
Idade Média todas essas actividades e operações andavam
misturadas. Mas existiam e são originárias desse período
histórico.
Em Portugal, as sociedades comerciais nunca atingiram a
opulência das hanseáticas e italianas. Porém, apareceram
cedo. Em 1293, a primeira (Gama Barros, IX, pp. 357-360).
Os sócios, importadores e exportadores com interesses na
Flandres, Inglaterra, Normandia, Bretanha e La Rochelle
comprometiam-se a quotizar-se com uma verba, variável em
função da tonelagem dos navios, para uma bolsa de socorros
mútuos a instalar parte no País e parte na Flandres.
Depois, aí por 1377, agora por iniciativa régia, é criada
uma bolsa de seguros marítimos em Lisboa e no Porto. Em
1397 são os burgueses portuenses que, dada a decadência da
instituição verificada a partir de 1385, pedem e obtêm do
monarca medidas reactivadoras (81). Entretanto, num texto
de 1395, também de cortes, das de 1394 (Coimbra), solicita-
se autorização régia para a institucionalização de uma
bolsa em Honfleur, bolsa que vinha, aliás, funcionando já
por decisão espontânea dos mercadores e destinada a custear
as despesas da obtenção de «privilégios e franquezas em
todo o regno de França» (cap. 33 dos gerais). Uma notícia
de 1459 dá a entender que a bolsa portuguesa sediada em
Bruges, provavelmente a instituída em 1293, continuava
actuante e em expansão (Doe. publ. por Silva Marques, I, p.
555).
É certo que todos os casos referidos são mais
associações de entreajuda do que sociedades comerciais
propriamente ditas. Nesta classe poder-se-ia incluir a
designada «companhia de Lagos», de meados do século XV, e
outras semelhantes da mesma época; só que, realmente, essas
iniciativas não assumiram perfil de verdadeiras «companhias
comerciais», no sentido rigoroso da expressão (J. Borges de
Macedo, 1963).
Na tecnologia dos transportes, duas grandes áreas a
considerar: a dos terrestres e a dos marítimos. A primeira
não beneficiou de progressos assinaláveis nos séculos XIV e
XV; a segunda é nesses dois séculos, especialmente no
último, que experimenta a sua revolução (P. Chaunu, 1969,
p. 272).
Com efeito, as grandes inovações verificadas nos
transportes terrestres são anteriores ao século XIV. E não
se contam muitas. Verdade se diga que foram definitivas até
à invenção da máquina a vapor. E extremamente importantes,
pois contribuíram «de uma maneira decisiva para a grande
mutação técnica da Idade Média, para o take off dos séculos
XI e XII» (P. Chaunu, 1969, p. 270). Essas inovações
contam-se pelos dedos da mão: o peitoral rígido dos cavalos
de tiro, as ferraduras cravadas, a atrelagem em fila e, os
carros de quatro rodas (J. Gimpel, 1976, pp. 53-55). Tudo
isso fez que se tirasse o máximo partido da força muscular
dos equídeos e se pudesse multiplicar, multiplicando os
animais atrelados, o volume das coisas deslocadas e a
rapidez das deslocações. O cavalo de tiro é tão forte como
o boi, mas, como se desloca uma vez e meia mais depressa,
produz uma potência superior de uma terça parte.
Convencionando o rendimento de um cavalo como igual a 100,

320
teríamos, por ordem decrescente: o boi, 66; o macho, 50; o
burro, 25; o homem, dando à bomba, 0,07; e ainda o homem,
accionando uma manivela, 0,1 (J. Gimpel, 1976, p. 56). No
Ocidente europeu, onde não havia camelos nem dromedários
nem elefantes, o cavalo constituiu o paradigma da potência
e do rendimento. Por isso é que os motores de combustão
interna, quando forem inventados, e hão-de sê-lo no
Ocidente, terão a sua potência medida em cavalos.
Dir-se-á: então, desde que esses inventos foram achados
e expandidos, o cavalo substituiu o boi. Não foi assim.
Pelo menos na Europa mediterrânica. E porquê? Por razões
económicas, mentais e corográficas. Económicas, porque o
cavalo é de mantença muito mais cara do que o boi, o macho
ou o burro; mentais, porque ele, o cavalo, andava associado
à ideia da guerra e da nobreza — e logo alongado das lides
laborais, aviltantes; corográficas, porque os seus
jarretes, finos e delicados, não se dão bem com trilhos
acidentados e pedregosos — como são em geral os da Europa
mediterrânica e, em Portugal, os do Norte atlântico. Foi
por isso que, nas zonas mediterrânicas, o boi, o macho e o
burro sempre foram preferidos na lavoura e no tiro. Por
isso também é que os almocreves, que eram obrigados a
recorrer terras do demo, preferiam os machos a quaisquer
outros equídeos. Foi ainda por todas essas razões,
especialmente as corográficas, que no Norte atlântico
pontificou o carro de duas rodas e eixo móvel — o carro de
bois robusto, ferrado, lento e adaptado a todos os
caminhos. Que tanto carrega feno como penedos. Uma máquina
para todos os usos. E sempre na mesma cadência: compassada;
ruminante.
A tecnologia dos transportes terrestres, como se disse,
pouco progrediu entre o século XIV e o século XVIII. E isso
tanto no que se refere aos meios de locomoção como às
infra-estruturas viárias. Estas, aliás, desde os grandes
construtores romanos não conheceram, fora dos povoados,
inovações revolucionárias senão na Inglaterra, a partir de
1750, com Metcalf, Thomas Telford e sobretudo John Macadam
(1756-1836) (T. S. Ashton, 1971, pp. 108-109). As estradas
de macadame, como é sabido, ainda hoje prestam serviços.
Ora, tal como na tecnologia, verificou-se a mesma
estagnação no que se refere a velocidades médias nas
deslocações. Uma comitiva montada, desejosa de poupar tempo
e bestas, podia fazer 60 km num dia — 420 km numa semana
(82). Um homem a pé percorreria cerca de 45 km diários (I.
Gonçalves, 1988, p. 94). Um carro de bois pejado de
mercadoria com certeza havia de ser muito mais lento. Por
aqui já se pode fazer uma ideia das dificuldades que
acometiam o comércio nos tempos do Antigo Regime. E, se à
lentidão das deslocações, mediocridade das estalagens e
perigos das intempéries acrescentarmos o flagelo dos
salteadores, então compreenderemos porque é que um deputado
do Porto de finais do século XV fez testamento antes de
partir para as cortes, em Lisboa (83). E compreenderemos
também porque é que as viagens por rios e mares eram tidas
por mais seguras e baratas.
Escreve Pierre Chaunu (1969, pp. 272-273): «A grande
revolução dos transportes terrestres ficou concluída quando
se iniciou a mutação dos transportes marítimos.» E mais
adiante: «Uma espantosa estabilidade de estruturas [que]
impregna os transportes terrestres [...] contrasta com as
técnicas do mar.» Aos espantosos avanços da tecnologia
náutica verificados nos séculos XIII, XIV e XV chama o
autor citado «a revolução do mar». E com efeito: a essa
revolução deveu-se a descoberta do Globo e a definitiva
revogação do saber geográfico antigo e medieval.
Três grandes problemas se punham, nos dois últimos
séculos medievos, aos homens apostados no mar: «o aumento
da tonelagem do navio, necessitado pelo desenvolvimento da
produção e das trocas internacionais; a modificação das
formas e do aparelho, em vista à melhoria da manobra; e o
da posição em viagens de mar alto e longe das costas» (J.
Cortesão, 1990, I, p. 219). Problemas levantados pela
guerra, pelo comércio e, sobretudo, pelos desafios da
navegação oceânica — obrigatória, a navegação oceânica,
para os interesses dos mercadores mediterrânicos após a
eclosão da Guerra dos Cem Anos e a decadência das feiras de
Champagne. Coube aos povos ibéricos, designadamente aos
Portugueses, dar solução àqueles problemas. Ao primeiro
tenta dar resposta a legislação fernandina de 1377,
anterior de um século a análogas determinações de Itália,
Espanha e França, quando estipula prémios para os armadores
de naus com capacidade superior a 100 tonéis (J. Cortesão,
1990, I, p. 219). Ao segundo problema respondeu a invenção
da caravela, «caravela de Portugal», uma máquina perfeita
para a tarefa dos descobrimentos marítimos, especialmente
para as viagens de retorno das costas africanas de

321
além-Bojador: navio latino, leve e muito manobrável, capaz
de singrar contra o vento ziguezagueando à bolina (84).
Finalmente, o terceiro problema, que consistiu em assegurar
a direcção das rotas e determinar a posição exacta dos
navios em viagem de mar alto pelo achamento das latitudes e
longitudes, foi resolvido ao longo de séculos graças a
inventos e inovações de diversos povos e muitas
experiências marinheiras, desde o leme central aguentado
num cadaste de popa à bússola, ao astrolábio, ao quadrante,
às cartas de marear, à conjugação de velas latinas com
redondas, etc. (P. Chaunu, 1969, pp. 268-302). É sabido que
em tudo isto os Portugueses foram mestres e pioneiros, os
maiores nautas de Quatrocentos e Quinhentos — tanto que um
rei, D. João II, ciente de que as caravelas de Portugal
eram máquinas que mais ninguém possuía e desejando
dissuadir investidas estrangeiras na Mina, não hesitou em
propalar pelo mundo que navios redondos não conseguiam
fazer torna-viagem de lá, da Mina, por causa das grandes
correntes (Resende, Crónica de D. João II, c. 25).
Enfim, no que toca a tecnologia naval, matéria
vastíssima e altamente especializada, fiquemos com isto que
se acaba de dizer. Sirva de apontamento panorâmico.
Antes de concluirmos, gostaríamos de referir duas
inovações técnicas medievais importantíssimas: o relógio e
os algarismos. A primeira significará uma apropriação
humana do tempo, uma libertação do homem relativamente aos
ritmos da Natureza, uma divisão das cadências
trabalho/repouso manipulável, uma distinção tripartida em
tempo de igreja, tempo do lavrador e tempo do homem de
negócios e do mesteiral, e uma acentuação do binómio
cidade-campo, binómio cada vez mais significativo de dois
mundos divergentes, mental e socialmente distintos. Os
algarismos haverão de favorecer uma revolução dos sistemas
contabilísticos e técnico-científicos; farão disparar as
matemáticas para mundos imprevistos; e tornarão as quatro
operações elementares do cálculo tão fáceis e rápidas como
nunca sonharam os especializados manobradores do ábaco —
esse «computador» imprescindível para o dois mais dois
quatro dos tempos da numeração romana.
O relógio mecânico, accionado por pesos e com mostrador
das horas, surgiu, talvez na Itália, entre 1277 e 1300 e
logo passados mais ou menos 20 anos entra na grande
literatura europeia, através da pena de Dante no «Canto do
quarto céu» da Divina comédia. Instrumento de mercadores
para quem «o tempo é dinheiro», que, portanto, deve ser bem
medido e administrado, o relógio instala-se em torres pelas
cidades. Escreveu Mumford: «A máquina chave da era
industrial moderna não é a máquina a vapor; é o relógio»
(J. Gimpel, p. 145). O relógio omnipresente, o do pulso de
cada um e o do stress de todos nós, foi o primeiro invento
decididamente moderno. «A voga dos relógios astronómicos
nas grandes cidades da Europa contribuiu para criar a nossa
maneira de pensar ocidental» (J. Gimpel, p. 161).
A Portugal, os relógios mecânicos chegaram ainda no
século XIV e multiplicaram-se durante o século seguinte.
Regra geral, foram instalados em torres — de sés, igrejas e
muros. O primeiro foi posto na Sé de Lisboa, provavelmente
em 1377; o segundo, na Sé do Porto, antes ainda do século
XV; depois, Viseu, Coimbra, Guimarães, Évora e Santarém, na
primeira metade de Quatrocentos; seguidamente, Braga, Ponte
de Lima e Batalha (85). E muitos outros terá havido. No fim
do século XV, um franciscano do Convento da Conceição, de
Leça da Palmeira, Matosinhos, fabricava relógios uns a
seguir aos outros, 12 pelo menos. E relógios móveis, de
reduzidas dimensões, também se documentam: pelo menos um em
1416 (Oliveira Marques, 1986, p. 67). Dá a impressão de que
esta máquina de medir o tempo, útil sobremaneira, depressa
assumiu a função de símbolo prestigiante.
Quanto aos algarismos — ou numeração árabe — pouco há a
dizer. E pouco há a dizer porque a sua teoria e prática
entre nós são posteriores ao período do nosso estudo. Com
efeito, embora a utilização de notações numéricas com
algarismos date de princípios do século XV, a verdade é que
não se tratou senão de notações cómodas, nada indicando que
se conhecessem e praticassem operações de cálculo que essa
notação facilitava. Sabe-se, isso sim, que no reinado de D.
Manuel «a arte nova de algarismo» suscitava curiosidade e
congressava entendidos sob o patrocínio do rei e que o
primeiro texto divulgador, da autoria de um Simão Fernandes
de Tavira, texto em verso, manual confuso, data dos
princípios do século XVI, provavelmente antes de 1523 (I.
Carneiro de Sousa, 1989). Dado o exposto, diríamos que os
algarismos, enquanto instrumentos de uma revolucionária
técnica intelectual só surtiram efeitos no nosso país a
partir da centúria de Quinhentos.

322
Conclusão

Lançamos um olhar sobre a bagagem tecnológica dos


portugueses nos séculos XIV e XV. Que dizer? O balanço
final parece mostrar, relativamente à Europa do tempo,
áreas de paralelismo, áreas de atraso e áreas de avanço. O
que quer dizer, feitas as contas, que Portugal não só
acompanhou a marcha do progresso como até soube adiantar-se
a ele em sectores de grande modernidade.
Nas tecnologias económicas do sector primário, os
Portugueses caminharam a par dos seus parceiros ocidentais
na agricultura e na caça. Na pesca e na salinicultura
parecem ter estado à frente — porque se afirmaram como
exportadores bem aceites — se bem que o avanço se deva mais
à prodigalidade da Natureza do que ao engenho das técnicas
utilizadas. No sector secundário, tirando a metalurgia e os
têxteis de luxo, tudo up date. O sector terciário é que
constituiu a área das nossas contradições. Porque mete
aventura e gabinete; emoção e nacionalidade. Lembremos,
porque vem mesmo a propósito, o belo estudo de Jorge Dias
apresentado no I Colóquio Internacional de Estudos
Luso-Brasileiros, realizado em Washington no ano de 1950,
intitulado Os elementos fundamentais da cultura portuguesa,
e retenhamos esta passagem, que é pitoresca e ilustra o que
queremos dizer: «O Português, muito intimamente, é incapaz
de ambicionar para a sua pátria o bem-estar e a
prosperidade que, por exemplo, o Suíço conseguiu pelo
esforço pertinaz e constante. É certo que o Português se
envergonha perante um suíço, pelo elevado nível de vida que
aquele soube conquistar, mas se fosse ele o suíço,
envergonhar-se-ia da mesma maneira, por ter conseguido um
bem-estar sem glória» (J. Dias, 1986, p. 56). Poderá isto
explicar porque é que os Portugueses foram, no século XV,
tão bons nas técnicas do mar e tão atrasados nas
comerciais? Tão avançados nas tecnologias da aventura e tão
sumidos no aproveitamento das suas riquezas? Talvez não.
Porque essas palavras de Jorge Dias não foram escritas para
explicar. São o ponto de chegada de constatações. Às
tantas, até são capazes de traduzir uma inferioridade
atávica do nosso génio — génio mediterrânico, ciclotímico,
inconstante. Assim, conforme os dizeres do mesmo autor: «[O
Português] é um povo paradoxal e difícil de governar. Os
seus defeitos podem ser as suas virtudes e as suas virtudes
os seus defeitos, conforme a égide do momento» (Ibid).

Conclusão geral

Território, população, ordem e tecnologia. Os


pressupostos de uma cultura-civilização, ou seja, os
elementos materiais e formais de um país. Que integrados, e
advertidos em sua integração, desabrocham em entidade
nacional. Ou consciência colectiva de comunidade distinta,
herdeira de uma história e responsável por um projecto. No
nosso caso, Portugal e os Portugueses. Patrioticamente.
Em 1325 o território está definido e a população,
apesar de separada por vedações estatutárias e fossos
étnicos, compõe uma nação. A língua, o rei e toda uma teia
de costumes e normas estabelecem os laços da identidade.
Mas não há ainda consciência generalizada dela, da
identidade. É coisa que está a cimentar-se. Na
solidariedade, na emulação e no perigo. Na solidariedade de
vizinhos e comarcãos em seus interesses na emulação dos
interesses de outros vizinhos e de outros comarcãos,
conforme nitidamente se revela em 1352, 1361 e 1371 (A. de
Sousa, 1990a, I, p. 490). Mas essas emulações, enquanto
indícios de autarcia arcaizante, depressa cederão passo a
uma solidariedade mais ampla, de âmbito nacional — pelo
menos entre os deputados do povo. Deputados, sim. Porque é
nas cortes que isto melhor se revela. E não tenhamos
dúvidas: as cortes, juntando a partir de 1331 todas as
delegações municipais em um grupo de trabalho,
contribuíram, como nenhuma outra instituição, para gerar
aquela solidariedade nacional ao nível do terceiro estado.
Tendo que se debruçar atentamente sobre os róis de
agravamentos e reivindicações provenientes de todo o País e
a partir deles construir capítulos gerais, os deputados
concelhios tomam consciência do mapa social do reino, das
dissemetrias regionais, dos rumos que importava trilhar,
dos obstáculos a vencer e das forças político-sociais que
se lhes opunham. Todo este trabalho, mesmo que realizado
por comissões, conduziu ao estabelecimento entre os
deputados de interacções verbais e não verbais, à produção
de redes afectivas entre delegações municipais
geograficamente distantes, à formação de um ethos de
classe, à emergência de estereótipos comuns, à partilha de
um inconsciente colectivo próprio do terceiro estado e ao
fortalecimento de solidariedades. Depois, esses deputados,
que de parlamento para parlamento se renovam, irão nas
assembleias das suas cidades e vilas ser notícia da

323
experiência vivida e veículos de preocupações nacionais.
Serão «começo de fama de boca do povo» — os reis sabiam
disso (86).
Obliteradas as rivalidades autárcicas, a emulação
assume-se como sentimento patriótico. Porque experimentou o
cadinho do perigo, a situação limite da guerra — essa
situação que radicaliza diferenças e identidades, inimigos
e amigos, «Nós» e os «Outros». O patriotismo é filho da
morte. E viu-se: os «Portugueses» nasceram do perigo dos
«Castelhanos». Foram povo, nobreza e clero de «Portugal».
De modo que, no período do nosso estudo, herdado um
País, inventou-se Nação e concebeu-se uma Pátria. Pôde-se,
por conseguinte, sonhar um império. Por outras palavras,
recebeu-se D. Dinis, construiu-se D. João I e mereceu-se o
Príncipe Perfeito. A terra, a pátria e o mar.

Notas

N. B. As citações reportadas a capítulos gerais dos


povos das cortes celebradas entre 1385 e 1495 referirão
apenas as cortes em causa e o número do capítulo, sem
indicar os documentos e arquivos em que se encontram
transcritos. O leitor interessado em saber as fontes poderá
identificá-las facilmente consultando Armindo de Sousa,
1990a, vol. II, pp. 223-499.
(1) V. Oliveira Martins, 1977, pp. 43-55; D. Peres,
1970, pp. 19-39; O. Ribeiro, 1977, p. 45.
(2) V. M. Roncayolo, 1986, pp. 161-189.
(3) M. H. Coelho, 1983; I. Gonçalves, 1989; J. Marques,
1988 (que, não sendo uma história da ruralidade, a ela
dedica contínua atenção). Cumpre lembrar ainda Oliveira
Marques, 1978.
(4) V. Atlas de cidades medievais portuguesas, 1990, e
respectiva bibliografia.
(5) M. J. Trindade, «A vida pastoril», in Estudos,
1981, pp. 1-95.
(6) J. Dias, 1982, pp. 14-16, 80-84, 98-106, 116-123 e
177-201; C. A. Ferreira de Almeida, 1988, p. 69.
(7) P. Birot, p. 132; A. Silbert, 1978, vol. I, pp.
90-91
(8) P. Birot, pp. 32-38; J. Malato Beliz, 1986.
(9) O. Ribeiro, 1957, p. 103; sobre o pinus sylvestris
da serra do Gerês, v. M. G. L. Serra e M. de L. Serpa
Carvalho, 1989, p. 70.
(10) V. M. A. Arala Chaves, 1969; J. Romero de
Magalhães, 1980.
(11) O. Ribeiro, 1971, p. 474; A. de Castro, 1969.
(12) Sobre a distinção ager-saltus-mons, v. C. A.
Ferreira de Almeida, 1981; id., 1978, vol. I, p. 32. O
«tardo», tal como era recordado há 40 anos pelas avós de
Paços de Ferreira e Lousada, distrito do Porto, é um
demónio destruidor que actua nas orlas dos bosques logo a
seguir ao toque das trindades, quando a noite cai.
(13) V. J. Mattoso, 1985, vol. II, pp. 15-47; M. H.
Coelho, 103, vol. I; I. Gonçalves, 1989, pp. 19-28.
(14) V. O. Ribeiro, 1968; id., 1987,pp. 115-122; C. A.
Ferreira de Almeida, 1978, vol. I, pp. 34-51 e 112-119;
id., 1988.
(15) C. A. Ferreira de Almeida, 1978, pp. 78-79. Sobre
o uso universal da madeira e sua qualidade e rareza na
Idade Média europeia, v. J. Le Goff, 1977, pp. 258-259.
(16) Sobre os efeitos devastadores dos cortes de lenha
na Europa medieval, v. J. Gimpel, 1976, pp. 80-84, onde se
afirma, por exemplo, que a obtenção de 50 kg de ferro
consumia 25 m2 de lenha, que uma só produtora de carvão
desflorestava em 40 dias uma área de 2 km de diâmetro, que
um forno de cal inglês queimou no ano de 1255 250 carvalhos
e que o Castelo de Windsor gastou na sua construção (em
meados do século XIV) 3944 árvores.
(17) Estes números foram estabelecidos a partir de um
levantamento de fitotopónimos do Dicionário corográfico de
A. C. Amaral Frazão, na secção destinada ao continente.
Contaram-se os topónimos desde «Carvalha» a «Carvalho
verde», desde «Castanhal» a «Castanhos» e desde
«Soutelinho» a «Soutulho».
(18) V. n.º 11 e J. Veríssimo Serrão, 1977, vol. I, p.
253.
(19) V. O. Ribeiro, 1968, pp. 121-140; id., 1987, pp.
17-19 e 88-92.
(20) V. N. Devy-Vareta, 1986, pp. 5-21. Sobre o papel
do Mosteiro de Alcobaça nesta matéria, v. I. Gonçalves,
1989, pp. 261-270, e Fortunato de S. Boaventura, 1827, pp.
45 e segs. Sobre monteiros, v. Ordenações afonsinas, liv.
I, tít. 67.
(21) A. Costa Lobo, 1979, p. 9.
(22) É o que se infere dos pareceres do infante D.
Pedro e do conde de Arraiolos. V. Livro dos conselhos de
el-rei D. Duarte, p. 62, e D. M. Gomes dos Santos, 1960,
doe. 5.
(23) Cap. 5.º dos gerais das Cortes de 1455/Lisboa —
Lisboa, ANTT, Cortes, m. 2, n.º 14, fs. 12-22.
(24) O cap. 33 dos gerais das Cortes de 1433
(Leiria-Santarém) pede ao rei autorização para serem
queimados os livros dos procuradores e tesoureiros dos
concelhos após a aprovação das contas pelos corregedores.
D. Duarte indefere o pedido. Sobre a conservação dos livros
dos notários e tabeliães, v. Gama Barros, vol. VIII, pp.
399-400. Sobre a destruição de documentos da chancelaria
régia, v. Chancelaria de D. Pedro I, 1984, p. 3.

324
(25) A lista dos tabeliães foi publicada e
minuciosamente estudada por Oliveira Marques. 1980, pp.
51-92. O numeramento de 1527, aliás de 1527-1532, foi
publicado por Braancamp Freire (y., na bibliografia.
Álvares, Nuno. Fernandez. Jorge, Seixas. Nicolau de, e Vaz,
Álvaro). O rol das igrejas foi publicado por F. de Almeida,
vol. IV, pp. 90-144.
(26) A tese de que a população portuguesa posterior à
peste negra se manteve estacionária até ao século XVI não é
hoje admitida, v. J. Marques. 1988, pp. 267 e segs.
(27) V. as notas n.ºs 3 e 4 desta 1 parte.
(28) V. capítulos gerais e especiais das cortes
celebradas entre 1441 e 1451 (indicados em A. de Sousa,
1990a, vol. II, pp. 20-23 e 122-129. A respeito de Braga.
v. A. de Sousa. 1990b.
(29) «A Deus louvores pela gente crescer em vossos
regnos»: cap. 32 dos gerais (18 da Justiça) das Cortes de
1472-1473 (Coimbra-Évora). A última vez que no Parlamento
se faz menção explícita da falta de população, em capítulos
gerais dos povos, é em 1455, nas Cortes de Lisboa desse
ano, no art. 5. A partir daí, multiplicam-se os indícios de
recuperação demográfica. Por exemplo: caps. 49 de 1459
(Lisboa), 32 e 114 de 1472-1473 (Coimbra-Évora). 20 de 1475
(Évora), 14 de 1477 (Montemor-o-Novo), 160 de 1481-1482
(Évora-Viana) e 30 e 34 de 1490 (Évora).
(30) J. A. García de Cortázar, 1980, p. 382; J. Gimpel,
1976, p. 195; M. Pacaut, 1969, p. 292; G. Fourquin, 1969,
pp. 316-322.
(31) Oliveira Marques, 1978, pp. 33-46; G. Duby, 1962,
vol. II, pp. 547-549.
(32) Todos os historiadores que se têm ocupado da peste
negra concordam com o que dizemos. Sugere-se a leitura do
Decameron de Boccacio, «Int. à primeira jornada», em que o
autor dá uma imagem patética do que sucedeu em Florença
durante a epidemia.
(33) G. Fourquin, 1969, pp. 322-325; G. Duby, 1976, pp.
223-226; F. Rapp, 1971, pp. 146-155; J. Heers, 1968, pp.
55-70.
(34) J. Marques, 1988, pp. 269-271; Oliveira Marques,
1978, pp. 50-60; V. Rau, 1985, pp. 128-131; I. Gonçalves e
outros, 1963; M. H. Coelho, 1990, vol. I, pp. 60-77.
(35) Oliveira Marques, 1986, p. 21. Acrescentem-se a
esta lista os anos de 1440, 1453, 1482 e 1488-1497, com
base nas seguintes fontes: R. de Pina, Crónica de D. Afonso
V, caps. 71 e 208; id., Crónica de D. João II, caps. 27,
38,44 e 47; Resende, Crónica de D. João II, caps. 67, 82 e
172; Álvaro de Chaves, p. 203; Porto, AHM, Vereações de
1488 e segs., fols. 19v.º-20 e 29-29v.º, 1488-1489; Lisboa,
AHM, Provimento de saúde, liv. I (sumariado em Documentos
do Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Lisboa — Livros
de reis, vol. III, pp. 146 e segs., 1493; Lisboa, AHCM,
Códice 29, foi. 9, doe. 9, 1496; Lisboa, ANTT, Chancelaria
de D. Afonso V, liv. 4, foi. 56v.º, 1453. Além dos anos
indicados, houve outros em que a epidemia, se não grassava
em Portugal, estava às portas. Assim, em 1441-1442 ou
1442-1443 chegavam a morrer em Fez e Arzila 400 a 500
pessoas por dia (frei João Alvares, cap. 31); e em
1466-1467 a doença matava na Galiza (J. I. Gutiérrez Nieto,
1975, p. 321). Sobre a peste bubónica em geral e as suas
recorrências na Europa depois de 1348 até ao século XVIII,
leia-se R. Delort, 1984 (com bibliografia especializada).
(36) Joel Serrão, 1971, pp. 45-68; Oliveira Marques,
1986, p. 32.
(37) V. as notas n.ºs 26 e 27.
(38) Em 1442 o número baixou para 35, mas só por 5 anos
(ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, liv. 23, foi. 54). Sobre
a redução de 1462, v. J. Marques, 1983, p. 52.
(39) Fica no ar a pergunta. Mas não deixa de ser muito
interessante verificar que o ano de 1439 assinalou
movimentos sociais e políticos verdadeiramente
revolucionários, tais como se não tinham visto em Portugal
desde 1383-1385.
(40) V. a nota n.º 23. O rol dos besteiros de 1422 está
publicado nas Ordenações afonsinas, liv. I, tít. 69.
(41) As povoações omitidas são 42. V. Oliveira Marques,
1980, pp. 91-92.
(42) Sobre «O litoral português e sua ocupação durante
a Idade Média», descrito por J. Cortesão, 1974, pp. 58-100,
em capítulo assim intitulado, descrição que parece infirmar
o que dizemos, v. O. Ribeiro, 1977, pp. 55-117.
(43) A. de Sousa, 1990b, p. 601. O tópico «Porto, lugar
estéril», arguido como emblema pelos burgueses, data de
1368, pelo menos, e percorre os textos até ao fim da Idade
Média, mais ou menos com os seguintes dizeres: «que a dita
cidade nem fora edificada em tal lugar stéril e maninho que
de seu género nem pode fructificar azeites nem pão nem
vinho nem cousa per que se sustenha e os moradores possam
repairar suas vidas salvo per tráfego das mercadorias que
se apanham antre Douro e Minho e Estremadura e Beira e
Trás-os-Montes (Porto, AHM, Livro A, foi. 87v.º).
(44) 01iveira Marques, 1986, pp. 32-35: M. J. Ferro
Tavares, 1982b.
(45) Foi essa também a impressão com que ficou, em
1467, a comitiva do barão de Rosmital, a crer no relato da
viagem (trad. e parcialmente publ. por Camilo Castelo
Branco, Cousas leves e pesadas, Lisboa, 1971, pp. 59-93,
especialmente p. 77).
(46) V. Ordenações afonsinas, liv. 4, tít. 51 (sobre
escravos que se tornam cristãos, sendo os seus donos
judeus, 1457); ibid., liv. 2, tít. 114 (sobre os que
aconselham ou ajudam escravos a fugir, 1459); Cones de 1468
(Santarém), cap. 10 dos gerais (sobre o uso e porte de

325
armas por escravos); Cortes de 1472-1473 (Coimbra-Évora).
cap. 163 (122 dos «místicos») (sobre julgamento de escravos
arguidos de roubos); Cortes de 1475 (Évora), cap. I dos
povos (6 do Algarve) (sobre furtos cometidos por escravos);
etc.
(47) A lista é levantada com base nos 1248 capítulos
gerais de cortes (1385-1490) que estudámos minuciosamente
em 1990a (v. bibliografia).
(48) Em 1481-1482 os deputados dos povos pedem a
expulsão do país de todos os mercadores estrangeiros
«estantes», porque «são praga viva com que se destrue a
terra», só interessados em seus proveitos — os ingleses,
nos produtos agrícolas; os italianos, no ouro e na prata e
segredos das descobertas; os castelhanos, em sobreviver na
qualidade de hereges [cap. 125 dos gerais das Cortes de
1481-1482 (Évora-Viana) e cap. 20 dos gerais das Cortes de
1455 (Lisboa)].
(49) Ao longo dos séculos XIV e XV há dezenas e dezenas
de referências a clérigos minoristas e casados,
provenientes somente de cortes. Tantas, que não tem sentido
citar provas. A legislação, ou norma, adquirida por D.
Afonso V do papa Pio II em 1401, bula Ad hoc nos, pode
ler-se, por exemplo, no AHM do Porto, Livro 4 de
pergaminhos, fols. 78-81. Sobre esta matéria, v. J.
Marques, 1988, pp. 993-995.
(50) Évora, Arquivo do Cabido da Sé, CEC 5-II, fols.
52v.º-53.
(51) Os tabeliães deviam, por lei, ser homens casados,
a menos que acedessem ao ofício com mais de 40 anos;
Ordenações afonsinas, liv. I, tít. 2, § 12. Com 50 anos
era-se velho: «Velhos de cinquenta anos pêra cima» [cap. 9
dos gerais das Cortes de 1408 (Évora)]; «grandes hidades
assi como de cincoenta anos» (Ordenações afonsinas, liv. I,
tít. 68, § 8, de 1410); «ca molher tam velha como eu [...]
dezia a Rainha [D. Filipa de Lencastre], porque ela era
entom de hidade de cinquoenta e três anos» (Zurara, Crónica
da tomada de Ceuta, cap. 38); os mamposteiros dos dinheiros
para a redenção dos cativos, homens prudentes e velhos,
tinham de ser maiores de 50 anos [cap. 14 dos gerais das
Cortes de 1459 (Lisboa)]; «que homens velhos, que
escassamente podem cavalgar [...], [quando] suas idades
achegarem a cinquenta anos possam andar nas ditas bestas
muares [...], porque da dita idade pêra cima já som tais
que nem poderão cavalgar em cavalos» [cap. 42 dos gerais
das Cortes de 1490 (Évora)].
(52) A estruturação da sociedade em pilares, e não
tanto em estratos, verificou-se, por exemplo, nos concelhos
do Algarve: A. de Sousa, 1991.
(53) V., por exemplo, o discurso do Doutor João das
Regras nas Cortes de 1385 ou do Doutor Vasco Fernandes de
Lucena nas de 1481-1482 (Évora-Viana), respectivamente em
Fernão Lopes, Crónica de D. João I, caps. 183-187, e Álvaro
de Chaves, pp. 62-68. Consulte-se ainda A. M. Hespanha,
1982, pp. 418-421.
(54) V. M.Caetano, 1981; N. E. Gomes da Silva, 1985.
(55) J. Mattoso, 1985, vol. II, pp. 133-176; M. H.
Coelho, 1988.
(56) M. Caetano, 1981, pp. 333-358; N. E. Gomes da
Silva, 1985, pp. 140-181.
(57) Oliveira Marques, 1986, p. 400 (com bibliografia);
J. J. Nunes, 1929; M. Rodrigues Lapa, 1977; J. P. Machado,
1968.
(58) A «oficialização» do português como língua de
chancelaria em substituição do latim foi estabelecida por
D. Dinis, conforme é comummente sabido.
(59) A. de Sousa, 1984, pp. 438-440 (em nota); A. J.
Saraiva, 1988, pp. 173-175.
(60) v. Ph. Wolff, 1981; C. Allmand, 1989, pp. 187-204.
A expressão «doce França» era conhecida em Portugal no
século XV (Zurara, Crónica da tomada de Ceuta, cap. 100; R.
de Pina, Crónica de D. Afonso V, cap. 194).
(61) Dizia D. Duarte nas Cortes de 1438 (Leiria) às
três ordens aí reunidas: «eram membros do coipo de que ele
era cabeça e senhor» (R. de Pina, Crónica de D. Duarte,
cap. 39).
(62) Documento publicado por V. Viegas, 1985, p. 217.
(63) Documento publicado por M. Caetano, 1985, p. 189.
(64) Sobre «preconceitos» e «estereótipos sociais», v.
H. Mendras, 1975, pp. 40 e 80-81.
(65) A tentativa mais recente para resolver esta
questão deve-se a M. Mendonça, 1991, pp. 63-86. Não nos
parece, porém, que a tentativa tenha resultado
satisfatoriamente.
(66) G. de Melo de Matos, 1963. Completar e corrigir
com Oliveira Marques, 1956, pp. 344-345.
(67) M. A. Soares de Azevedo, 1963. Para todos os temas
anteriormente referidos, v. ainda Oliveira Marques, 1986,
pp. 491-564.
(68) «Eu sou a mesma justiça», disse de si D. João II
(Resende, Crónica de D. João II, cap. 97).
(69) A bibliografia sobre «cultura» e «civilização» em
que se analisa a história destes conceitos, seus campos de
aplicação, acepções e teorias, é vastíssima, como se sabe.
Estamos a optar, obviamente, pela acepção etnológica,
segundo a qual «cultura» e «civilização» se confundem. V.
E. Leach, 1985, pp. 67-101 e 102-135.
(70) F. Sigaut, 1976, discorda da opinião geral de que
o afolhamento trienal implica um aumento de produtividade.
Seguimos a opinião geral.
(71) I. Gonçalves, 1989, pp. 215-229; M. H. Coelho,
1983, vol. I, pp. 201-214.
(72) C. A. Ferreira de Almeida, 1978, vol. I, pp.
111-112; id., 1988, p. 69; M. H. Coelho. 1983, vol. I, p.
208.
(73) Porto, AD, Mosteiro de Santo Tirso, cód. 149,
fols. 138v.º-139.
(74) A divulgação dos utensílios de ferro em Évora,
pelo ano de 1379, pode ver-se nas «posturas que pertencem
aos mesteirais», títulos dos alfagemes, dos ferreiros, das
enxadas novas, dos ferradores e dos judeus ferreiros e das
pregaduras, in Documentos históricos da Cidade de Évora, I.
parte, pp. 143 e 146-149. Sobre o Norte de Portugal, v. M.
Barroca. 1988.

326
(75) V. cap. 150 dos gerais das Cortes de 1433
(Leiria-Santarém). publ. por A. de Sousa, 1982, p. 154;
cap. 3 dos gerais das Cortes de 1439 (Lisboa); cap. 12 dos
gerais das Cortes de 1455 (Lisboa); e caps. 113 e 114 dos
gerais das Cortes de 1481-1482 (Évora-Viana), publ. pelo
visconde de Santarém, pp. 199-202. V. ainda Gama Barros,
vol. IX, pp. 271-291, e V. Magalhães Godinho, 1981-1983,
vol. IV, pp. 119-137.
(76) Em 1451 pediam os povos que as perdizes fossem
descoutadas ao menos nos lugares onde não era possível
fazer caça de falcoaria. O pedido foi indeferido (cap. II
dos gerais das Cortes de Santarém).
(77) G. Fourquin, 1969, pp. 385-391; J. Le Goff, 1980,
pp. 9-41.
(78) Oliveira Marques. 1986, p. 74. Sobre mercadores
«estantes», espionagem económica e prospecção de mercados,
v. n.º 46.
(79) V. cap. 35 dos gerais das Cortes de 1459 (Lisboa) e
caps. 51, 52 e 151 dos gerais das Cortes de 1472-1473
(Coimbra-Evora) (resumidos em A. de Sousa, 1990a, vol. II,
pp. 366, 399 e 421).
(80) V. n.º 75 e G. Fourquin, 1969, pp. 391-401.
(81) Livro 2 das Vereaçõesdo Porto, fol. 41-41v.º, ed.
por A. Pinto Ferreira, pp. 88-89. A crer no texto da acta
da vereação da Câmara do Porto, ibid., fol. 40, parece que
a reactivação da bolsa apenas se verificou em 24 de Janeiro
de 1402.
(82) P. Chaunu, 1969, p. 273, n.º 2; I. Gonçalves,
1988, p. 163.
(83) Porto, AD, Originais do Cabido, cód. 1682, fol.
42.
(84) P. Chaunu, 1969, pp. 284-288; Q. da Fonseca, 1958,
pp. 41 e segs.
(85) Oliveira Marques, 1986, pp. 66-67. Sobre o relógio
de Ponte de Lima, v. M. dos Reis Roque, 1938, p. 62.
(86) A. de Sousa, 1990a, vol. I, p. 263; Livro dos
conselhos de el-rei D. Duarte, p. 80.

A SOCIALIDADE
(ESTRUTURAS, GRUPOS E MOTIVAÇÕES)

Buscamos conhecer Portugal e os portugueses dos séculos


XIV e XV. Quer dizer, rastos de homens que sejam História,
a nossa. Ou de grupos humanos que, solidários ou não,
cônscios e inconscientes, moldaram Nação construindo País.
Porque a consciência de nacionalidade portuguesa foi
emergindo ao compasso do estabelecimento das fronteiras
políticas. Por outras palavras, inventou-se a Nação pari
passu com a identificação do País.
Invenção lenta, realização de séculos. Que indo tomando
forma acabou por trasmudar-se em cumprimento de um secreto
desígnio ou calado projecto. Assim foi que no século XIV a
verificação da realidade «Portugal», País-Nação,
interpretava-se já como imagem da concretização de um
destino. Sofisma de fatalistas, sem dúvida: o que é teve de
ser. E sacrifício da história também, anulação do humano e
contingente em benefício de coacções necessárias ou
providenciais, por isso mesmo inelutáveis — geográficas,
étnicas, rácicas, divinas.
Mas essa interpretação viciosa, fundadora de um
imaginário político que vai ser ideia-força em épocas de
perigo nacional — útil portanto — revela
inquestionavelmente que ao País e à Nação se vinha
juntando, no século XIV também, uma nova dimensão: a de
Pátria. O lado afectivo da consciência de pertença.
Novidade assinalável.
A qual surge após as guerras fernandinas ou durante as
da independência logo a seguir e se condensa nessa
expressão «os portugueses» — designativo de comunidade
nacional solidária que engloba todos os naturais do País,
não importando que sejam aborígenes do Norte ou do Sul, do
Reino de Portugal ou do Algarve.
Nos finais de Trezentos a palavra «Portugal» designa
uma entidade geopolítica madura: Pátria-Nação-País. Já o
vimos.
E quem fez isso?
Os homens, os grupos, os perigos. As conflitualidades e
os consensos. A vida. Vida de mil fios tecida no quotidiano
mesquinho, mas que qualquer coisa faz comum e
transcendente.
As permanências e as mudanças verificadas na área da
socialidade entre 1325 e 1484 são o tema deste capítulo.
Tentaremos abordá-las e, se possível, esclarecê-las em três
vertentes que parecem definitórias: a da composição da
sociedade ou a das categorias sociais; a da dinâmica social
ou dos factores de equilíbrio e consenso versus os de
instabilidade e conflito; e a dos ritmos ou da diacronia
dos indícios de mudanças. A primeira vertente releva das
estruturas e as outras duas dos movimentos conjunturais.
Desceremos, por conseguinte, aos séculos XIV e xv no
intuito de contemplar o herdado e assumido, bem como o
inovado e específico da socialidade. Espectadores de um
drama, ensaiemos distinguir actores, seguir a acção e
anotar os actos. Atentos, porém, ao colectivo — que os
intervenientes no drama foram grupos, multidões.

A distribuição dos actores

A população portuguesa do período deste estudo, vimo-lo


já, oscilou entre um milhão quinhentos mil e oitocentos
milhares de almas. A média dá um milhão. Que se distribuiu
de Norte a Sul e do Litoral ao Interior, por cidades e
vilas e terras chãs, segundo os modos variados e as

328
densidades irregulares que tivemos oportunidade de ver
acima, no capítulo anterior. Vimos também que desses
valores o clero ocupou um por cento e a nobreza pouco mais
de meio. O povo, com os seus noventa e oito vírgula xis
percentuais, dominou num absoluto esmagador. Mas absoluto
matemático somente. Na realidade, ele foi a massa dominada
por aquelas duas espantosas minorias. Os privilégios, a
riqueza e o prestígio — e logo o peso político - tendiam
(naturalmente tendem sempre) para atracar a muito poucos,
fugir à razão directa dos números. É a lei matemática das
elites. Lei que na Idade Média se formulava assim: sanior
pars maior pars — um quase manifesto antinúmero. A
qualidade, e não a quantidade, é que dirigia o cálculo das
razões e das vontades. De modo que bispos e cavaleiros à
frente; para trás a densa chusma dos peões. Lógica do
feudalismo. E como é que tal lógica logrou vigorar durante
tantos séculos, tão incontestada quanto iníqua? Pergunta
óbvia. Que é nossa, de hoje. Feita naquele tempo —
«hereges» fizeram-na a sério e «políticos» em tom retórico
— a resposta era sabida: a ordem, o pecado de Adão, a
Natureza decaída (1). Ou também: o mundo angélico, a
«evidente» homologia das igrejas triunfante e militante, a
misteriosa, inquestionável e imprescindível hierarquia.
Eram as respostas que séculos de inculcação
político-religiosa haviam transformado em estereótipo
mental (2). Vontade de Deus, tudo dito.
É claro que os sociólogos e os antropólogos,
desfolhando o catálogo das organizações societais e suas
justificações, treinados naquela indiferença valorativa que
a atitude científica requer, colocam-se atrás das respostas
culturais relativas e constatam e inferem. Constatam, por
exemplo, que «não há sociedades sem poder político nem há
poder sem hierarquias e sem relações desiguais instauradas
entre os indivíduos e os grupos sociais» (Balandier, 1980,
p. 85). Por outras palavras, desigualdade e sociedade
implicam-se absolutamente. Tanto como superior e inferior,
dominador e dominado, chefe e súbdito. Constatam ainda que
o grande «desígnio» das sociedades e dos grupos é manter,
solidificar e perpetuar coesão, mediante o estabelecimento
de redes e mecanismos que fomentem solidariedades e
dependências recíprocas tanto quanto desmotivem
desviacionismos ou impeçam a emergência de situações de
anemia. Mas tudo sem abolir a fundamental desigualdade;
antes, tentando inculcar a impensabilidade da sua
contestação. E verificado isso, além de muito mais que
seria redundante trazer aqui, inferem: «É evidente que na
vida social deve haver uniformidades e regularidades e que
uma sociedade deve ter um determinado tipo de ordem»
(Évans-Pritchard, 1985, p. 26). Ordem que há-de ser
extremamente durável, estrutura feita de instituições
permanentes, ensinadas de fora, divinas. Que obrigue as
pessoas a acatá-la e a sofrê-la, à ordem, como a uma dívida
primordial e fundadora — «a dívida do sentido» (Gauchet,
1980, pp. 51-89). E dado isso, pronto. Ficam as almas
abertas à docilidade e à alienação. Reduzirão as suas
ambições e capacidades sociopolíticas a «votos de
deferência» (Fitzhenry, 1974, p. 431), assumindo «como um
dado que os membros do grupo mais elevado têm o direito de
definir como são as coisas na realidade» (Becker, 1970, p.
207). E não importa quais sejam esses membros do grupo mais
elevado. Em Portugal, nos séculos XIV e XV, foram os
clérigos, os letrados e todos os agentes da propaganda
monárquica feudal. Já o vimos no capítulo precedente. E aí
lembrámos a apetência do religioso que se verifica no
político. Religião e política «não passam de duas
manifestações diferentes da mesma disposição» (Bourdieu,
1979, p. 514).
Falando em «distribuição dos actores», ocorreu-nos
espontaneamente a arrumação clássica: clero, nobreza e
povo. Ou seja, a arrumação da sociedade em ordens. É o que
sempre se verifica quando se discursa a respeito do Antigo
Regime. Todavia, a classificação merece debate. Que pode
centrar-se na seguinte interrogação: qual o modelo que mais
adequadamente exprime a realidade social portuguesa dos
séculos XIV e XV? Ou, por outras palavras, que categorias
sociológicas deverão com propriedade utilizar-se para
traduzir essa realidade? «Ordens»? «Estados»? «Classes»? A
resposta certa terá por efeito a revelação da estrutura
social da época.

Ordens

A palavra «ordem» aparece muitas vezes nos textos do


nosso período, nas crónicas, em capítulos de cortes, em
livros didácticos e moralísticos, em documentos jurídicos e
judiciais e em escritos poéticos. Aparece a palavra nessa
forma simples e mais vezes ainda em formas derivadas:
ordenar, ordenança, ordenação, desordem, desordenança, etc.
Os significados são múltiplos: «mandado», «disciplina»,
«regulamento», «equilíbrio», «coerência» (3). O sentido que
nos interessa, esse de coerência orgânica da sociedade

329
global ou de parcelas integrantes dela, ocorre muito pouco.
Mas ocorre. Por exemplo, em «ordem militar», no Cancioneiro
geral de Resende em contexto que impõe o significado de
«nobreza» (v. III, p. 128). Em contexto que. Realmente, a
categoria social e sociológica que a palavra «ordem»
consagra, enquanto termo técnico oposto a «estado» e
«classe», não pode procurar-se inventariando étimos, mas
pesquisando contextos. Não se revelará em exercícios
gramaticais, mas em ensaios hermenêuticos, em leituras
circulares, das partes para o todo e do todo para as
partes; do texto para o contexto, de tudo para o autor,
deles para os leitores previstos, desses leitores para nós
— e sempre circularmente. De modo que principiemos por uma
descrição operatória do género «sociedade de ordens é».
A sociedade de ordens é um tipo de agrupamento societal
global, diferente de País ou Nação ou Pátria, em que os
membros se repartem por categorias hierarquizadas
estanques, definidas segundo critérios ideológicos
miticamente protegidos, a que se tem acesso por nascimento
ou por rituais de sagração. Trata-se de um tipo de
sociedade pluripartida, cabendo a cada parte uma função
específica, tantas partes quantas as funções,
estabelecendo-se para cada uma um grau hierárquico de
importância relativa consoante os referentes míticos
justificadores. É de admitir que seja estritamente
funcional a razão última deste modelo de sociedade. Mas
logo essa razão última teve de ser sublimada em ideologia,
não só para se tornar convincente e humana ou cultural,
como também para se traduzir em efeitos perenes e poder
transmitir-se de pais a filhos e netos como indispensável
matéria de inculcação. Por isso, o modelo societário de
ordens inscreve-se na esfera do jurídico-sagrado (Le Goff,
1983, p. 105). E, porque aí se inscreve, agarra-se ao tempo
de modo tenaz, persistindo nas mentes apesar dos factos,
sistema teórico, confortável visão.
A descrição que aí fica é operatória, dissemos. Mas não
é arbitrária. Infere-se de estudos notáveis sobre o
Ocidente medieval e de leituras de antropologia política
(4). Sabemos que traduz adequadamente experiências
societais que vigoraram pelo mundo, em todos os
continentes. Algumas vigoram ainda.
Já atrás dissemos e agora lembramos: nos séculos XIV e
XV a sociedade portuguesa era pensada em termos de
sociedade de ordens, trinitária e trifuncional, clero,
nobreza e povo. Mas pensada só; vivida, não. Modelo ideal,
figura cómoda para juristas e «políticos», quadro retórico
— só isso. Ou, talvez melhor, quadro mental. Refúgio
argumentativo contra inovações prejudiciais, a que todos os
prejudicados recorriam quando convinha com igual convicção
— cleros contra povos, povos contra cleros, nobres contra
os dois e estes últimos vice-versa. Mas precisamente porque
todos invocam o modelo quando discursam e todos o desacatam
quando vivem a vida, ele revela-se como um resíduo
ideológico, recorrente porque insubstituído, descasado,
meramente mental. Pouco mais que um topos, espécie de
laudatio temporis acti. Venerável, porém; e útil para
classificar e distinguir operações tão caras às mentes
medievais.
Não admira, considerado o exposto, que o tema da
sociedade trinitária e trifuncional seja tão invocado nos
séculos XIV e XV. Não se lhe chama, já o dissemos,
«sociedade de ordens», nem isso interessa substancialmente.
Prefere-se dizer «estados». Mas também não será a
ocorrência deste vocábulo que nos guiará no levantamento
das alusões — até porque, vê-lo-emos, a polissemia desta
palavra é tão ampla como a de «ordem». Fiar-nos-emos de
contextos.

Testemunhos

Registámos entre 1325 e 1484 duas dezenas e meia de


alusões à sociedade de ordens como sendo aquela que
vigorava ou devia vigorar (5).0 levantamento não foi
sistemático, mas serve de amostragem e basta para corrigir
uma opinião insigne, segundo a qual a expressão «três
estados» só começou a escrever-se a partir de 1455, e com
muito pouca frequência. Ora, achamo-la pelo menos em 1432 e
proferida em circunstâncias que denotara uso corrente (6).
A ideia, de resto, é pelo menos tão familiar e tão antiga
quanto as assembleias dos estados, que, iniciadas em 1254
ou antes, foram estruturadas em conformidade com o modelo
trinitário da sociedade e sempre como tal convocadas e
reunidas. É bem possível que a composição tripartida da
instituição, por isso que situação de discurso dos
parlamentares, tenha contribuído também, e fortemente, para
a evocação aí, nos textos de cortes, do modelo ideal das
ordens. Os procuradores dos concelhos, que só
excepcionalmente integravam clérigos e altos letrados,

330
mostram-se muito familiarizados com a teoria trifuncional,
tanto quanto reis e infantes, cronistas e homens de leis.
Isso faz pressupor que a teoria fazia parte do saber comum,
popular até, inculcado tradicionalmente pelas mais variadas
formas e processos — pregação, tratamento, relações
interpessoais quotidianas, procissões, serviço militar,
entradas régias, teatro de rua, folclore, cumprimento das
banalidades, etc. Esta pressuposição não nos parece de
estranhar; de estranhar seria tornar-se possível
contrariá-la com factos. Aliás, ela faz sentido com o que
dissemos há pouco: nos séculos XIV e XV o modelo de
sociedade em ordens havia-se tornado referência ideológica,
estereótipo mental. E repetimos: que só poderá explicar-se
como efeito de inculcação social generalizada.
Vejamos alguns textos.
Primeiro, textos dos povos, produzidos em cortes:
«Os lavradores per seus trabalhos mantêm os oradores e
defensores e são trilhados e [...] agravados em muitas
cousas» (Cortes de 1418, cap. 29).
«O auto da mercadoria pertence somente aos mercadores,
pelos quais a terra é rica, e ora todolos mercadores são
proves porque os defensores da terra são mercadores, assi
infantes como fidalgos [...] a que não pertence tal auto»
(Cortes de 1433, cap. 122).
«[Intrometerem-se os siseiros em matéria de
almotaçaria] é fora do bom juizo e contra regimento antigo,
per que se o mundo rege e governa, [...] e contra o
princípio que diz que o mundo se há-de reger per razão e
medida; e tanta virtude foi achada a este santo regimento
que foi terminado por todos os estados que a jurisdição
dele fosse do estado defensório» (Cortes de 1455, cap. 21).
«[Os fidalgos têm do rei] terra ou tença ou tudo, per
muitos anos, pêra [o] servir ao tempo do mester; e eles
metem-se em tantas despesas baldias, que trazem, que a sua
despesa é maior quatro vezes que a recepta; e quando não
fazem defensão» (Cortes de 1459, cap. 34).
«[Devido às doações à Igreja] de jurisdições, reguengos
e direitos reais [...] são contorvados os estados [e o rei
perde] as rendas que deve [...] destrebuir per o estado dos
defensores [...] e é causa de dar [...] mais trabalho aos
povos e esses oradores tirar [...] de seu propósito,
especialmente pelas jurisdições assi em cível como em crime
[...] per que se tornam de seu ofício e principal intento»
(Cortes de 1472-1473, cap. 17).
Vejam-se de seguida alguns textos produzidos pela
chancelaria régia:
«Os três estados destes regnos, scilicet, dos prelados,
arcebispos, bispos, mestres, priores, abades, cabidos; e
dos duques, condes, barões, ricos homens, fidalgos,
cavaleiros e outros vassalos; e das cidades, vilas,
castelos e outros lugares chãos (7)» (1476).
«Determinou [o Príncipe] de a estas Cortes serem
chamados todos três estados do reino, scilicet, o estado
eclesiástico per cartas aos prelados [...] e outrossi aos
cabidos [...]; o estado da cavalaria [...] per cartas
particulares a todos os grandes do reino e assi a todolos
fidalgos assentados no livro del-rei [...]; e o estado do
povo» (Álvaro de Chaves, 1983, p. 103).
Um texto assinado pela nobreza:
«[Eles, fidalgos,] são uma principal parte dos três
estados, defensores da terra e mais amigos e fiéis ao seu
rei e a seu estado» (Cortes de 1472-1473, cap. 31 da
nobreza).
Finalmente, alguns textos de autor:
«E assi, senhor, em este conselho como na vossa relação
me parece que devíeis ter homens de todolos estados de
vossa terra, assi de clerezia como de fidalgos e do povo»
(Infante D. Pedro, 1426, Livro dos conselhos de D. Duarte,
pp. 37-38).
«Nosso Senhor Deus ordenou três estados em este mundo,
pelos quais quis ser servido, scilicet, oradores,
lavradores, defensores, apartando a cada um seu mester
[...]; e se assi é que lavrador sem lavrar e orador sem
ordens ou benefício não podem bem viver, assi a fama dos
defensores sem direita guerra nem pode muito durar»
(Infante D. João, 1432 ou 1433, ibid, p. 46).
«De tal guisa que seu arreai não parecia hoste de
guerreiros, mas honesta religião de defensores» (F. Lopes,
Crónica de D. João I, I, cap. 193.)
«O estado militar não é por outra cousa tanto louvado
antre cristãos como por guerrearem os infiéis» (Zurara,
CróniCa da tomada de Ceuta, c. 11).
«Três estados [...]: primeiramente, o estado espiritual
e os reis e príncipes [...]; e o estado comum [...]; ca,
como sejam membros de estado real, não podem os grandes e
nobres possuir honra de que a eles [povos] não venha sua
parte, pois todos juntamente fazem corpo» (Zurara, Crónica
de D. Pedro de Meneses, cap. 1).

331
«Vede, senhor [Infante D. Henrique], como sois per Deus
chamado ao estado dos defensores e recebestes regimento e
governança da gente de Nosso Senhor Jesus Cristo, que por
vós não duvidou de receber morte sobre o tormento da cruz»
(Frei João Alvares, Tratado da vida do infante D. Fernando,
cap. 47).
A concluir, vejam-se os versos de Álvaro de Brito
Pestana, poeta do Cancioneiro geral de Resende (vol. I, p.
232), ao lado.
Enfim, esta longa lista de citações, enfadonha
certamente, vem aqui para mostrar que no século XV a
sociedade era imaginada por todos como dividida em três
ordens. Por todos — deputados populares às cortes, oficiais
da chancelaria, fidalgos em geral, infantes, cronistas e
poetas. Não apenas por juristas e compiladores de leis —
conforme observámos no capítulo precedente deste estudo.
Mas por toda a gente. Estereótipo mental, lugar-comum. E
nisto está a razão de dar a lista.
Esquema ideológico extremamente conservador, clero e
nobreza e povo, três estados, ou três ordens, ou três
braços, oradores e defensores e mantenedores, eclesiásticos
e militares e lavradores — os nomes interessam pouco (8). O
que conta é a ideia de tripartição conexa com a de
trifuncionalidade e ambas com a de hierarquia ou
desigualdade necessária, e tudo com a de
mando-sujeição-destino. Tudo ideias confortáveis,
situadoras de discursos — mas ideias. Ideias descasadas, se
verá.

Por trajos demasiados, em que todos são confusos os


três estados; danados, alterados, mesteirais em seus usos.

Não devemos ser comuns senão para Deus amarmos e


servirmos; não sejamos todos uns em ricamente calçarmos e
vestirmos.

Hierarquias

É interessante verificar como no século XV o


pressuposto da desigualdade hierárquica, sociopolítica,
co-natural à imagem da sociedade de ordens, se estendeu
para o interior de cada uma delas. Melhor dito, se estendeu
para o interior da terceira e se intensificou no da
segunda. Pois no interior da primeira, do clero, existiu
sempre, não fosse ela a «ordem» ou «hierarquia» por
antonomásia. E dizemos «no século XV», tão-só porque nele
nos vimos a situar, aceitando sem embargo que o fenómeno
vinha de trás, desde Duzentos pelo menos. Ou seja, desde
que o rei deixa de ser primus inter pares e o povo definido
como laborator, lavrador. Por outras palavras, à medida que
as ordens se desfasam da realidade, e foi em divisionismos
internos que isso começou por verificar-se, a superstrutura
ideológica que as informava, pois que era isso mesmo,
manteve-se e passou a aplicar-se, perversamente sem dúvida,
ao interior de cada uma, sempre na sua função de justificar
injustiças, explicar desigualdades, manter o statu quo —
esse statu que era grato às elites. Por isso é que elas, as
elites de cada ordem, se entendem quando declaram
princípios de socialidade. É ver as cortes; é rever a lista
de textos atrás exarada. E, concordantes as elites, as
massas votavam por deferência. De modo que a teoria da
sociedade pluripartida e plurifuncional, hierárquica e
conservadora, foi doutrina aceite e padrão mental. Senão...
Senão leia-se isto, que é «filosofia» das elites
municipais de 1481-1482:
a) Quanto mais entre os virtuosos é reprovado o
seguimento da cegueira afeiçoada, tanto mais é tido por bom
o temperado, virtuoso, e honesto viver;
b) Nenhum modo de viver pode chamar-se virtuoso sem
sabedoria e discrição;
c) A sabedoria e a discrição estão geralmente nos
grandes;
d) O bom regimento e governança convêm de reluzir nos
maiores;
e) Nobre deve ser chamado todo o principado (ou poder)
que é regido e governado e aproveitado segundo sabedoria e
prudência e discrição;
f) Os grandes devem ser antepostos aos meãos e os meãos
aos baixos; e assim como na «república» os maiores devem
reger e governar e os meãos obedecer e ajudar, os mais
baixos devem trabalhar e servir;

332
g) Segundo tal ordem, hierárquica, deve toda a «cidade
política» ser regida e governada. Aliás, assim é:
1.º Com os animais — as azémolas e os asnos trabalham,
entanto que os cavalos se mantêm do trabalho deles:
2.º Com a terra, que não tem sensibilidade — os campos
(que estão em baixo) são lavrados e trabalhados, ao passo
que as serras (que estão em cirna) não o são;
3.º Com as construções dos homens — as fortalezas, que
enobrecem os reinos e os amparam, estão situadas nas
alturas;
h) Os plebeus e homens de baixa-mão não devem ser
regedores onde houver nobres e sabedores, mas só estes —
pois seria injúria dos nobres serem por esses governados,
além de que de tal governo se seguiriam desobediências e
escândalos;
i) É contra a natureza o inferior mandar no maior;
j) Quem não sabe governar-se a si próprio não pode
gerir o bem comum e político;
l) Os plebeus não sabem que cousa é «polícia» ou honra
nem quanto deve a honra preceder o proveito e ignoram
totalmente as virtudes morais, pois são inconstantes e
emotivos;
m) Os «bons antigos cidadãos» não devem andar
submetidos à populaça dos mesteres, gente reles, minguada e
néscia;
n) Por costume antigo o governo das cidades e vilas é
dos «bons».
Arrazoado exemplar. Extractumo-lo, quase só com
alterações ortográficas, do cap. 103 dos gerais do povo
apresentados nas Cortes de 1481-1482, Évora-Viana. São
considerandos ou argumentos destinados a dar força ao
seguinte pedido: que os dos mesteres não estejam nas
câmaras das cidades e vilas, mas apenas «os bons e nobres»,
isto é, os burgueses, os das elites locais.
Poderíamos apresentar mais exemplos semelhantes, mas
não vale a pena, este é cabalmente ilustrativo. Quem fala é
povo. E veja-se como se utiliza a ideia de ordem social
hierárquica, e de tudo o que ela implica, para combater
«inovações subversivas», temidas «desordens», não já na
sociedade global, mas no interior de um estado,
sintomaticamente o terceiro. É claro que se ouviriam
discursos análogos no seio da nobreza e do clero se os
factos ocorressem de modo a perturbar as cúpulas. Mas não
ocorreram, pelo menos tão evidentemente, e isso porque
nessas duas ordens as cúpulas estavam protegidas por modos
e mecanismos previstos e controláveis. Que não na ordem do
povo — onde a mola da promoção, o dinheiro, eslava
teoricamente ao alcance de todos e praticamente sempre ao
de alguns. O dinheiro foi o grande devastador das ordens e
continua a ser o desestabilizador dos status. Os burgueses
sentiram-no, mas não o entenderam. Daí todo aquele discurso
— um discurso perverso e fora de tempo. Conforme escrevemos
noutro estudo, não estranharíamos que os «homens-bons» dos
concelhos, importantes construtores do individualismo
moderno, tenham assistido à «modernidade» de costas viradas
para ela (Armindo de Sousa, 1989 b, p. 163).
Resumindo:
Sociedade portuguesa nos séculos XIV e XV, uma
sociedade de ordens? Em termos globais, sem dúvida que não.
Mas uma sociedade que se comprazia em pensar-se segundo
esse modelo. Digamos assim: uma mentalidade colectiva que
propendia para ver ordens onde realmente funcionavam
estados. Pelo menos nas cidades.

Estados Pressupostos

Com efeito, uma sociedade de estados não é a mesma


coisa que uma sociedade de ordens. «Ordens» evoca o
sagrado, sábia arquitectura divina, disposição de in illo
tempere. E naturalmente são três. «Três, a conta que Deus
fez» — assevera o povo. E não só por considerações
teológicas sobre o mistério cristão da Trindade, sublimação
de outras trindades, como Júpiter-Marte-Quirino dos Latinos
ou Odin-Tyr-Thor dos Escandinavos; nem só também por
considerações cosmológicas, céu-terra-mar e
sol-lua-estrelas; nem ainda tão-somente por considerações
sobre tríades psíquicas, éticas, matemáticas e lógicas —
que em todos estes territórios o número três é símbolo de
perfeição. Até na divisão dum discurso que se deseja
exaustivo e convincente e no estabelecimento àoquantum
satis gerador de plural colectivo — tresfaciunt collegium —
até aí, realmente, a ideia de trindade impera. Mas a magia
do número três, e logo a sua aura sagrada, é provavelmente
anterior a tudo isso — até porque tudo isso, afinal, são

333
classificações que a supõem, ditos para entender. Decerto
isso tudo contribuiu, efeito de feed-back, para inculcar a
justeza e a conveniência do modelo enquanto esquema que
possibilitou decifrar a inteligência do Universo, as
correspondências harmónicas entre planos, áreas e escalas
da realidade total — divino-angélico-humano,
físico-biológico-psíquico, macrocosmos-microcosmos
(Lallemand, 1978, pp. 25-42). A tripartição trifuncional da
sociedade foi, por conseguinte, no Ocidente, a solução
óbvia do esforço de entender a ordem. Há quem diga que essa
tipificação não respondeu senão a uma exigência universal
do progresso da cultura, «uma etapa necessária da evolução
de toda a ideologia humana» (v. Abaev cit. por Le Goff,
1977, p. 321). Talvez haja etnocentrismo nesta tese; além
de sabida incontinência conclusiva. Porque, com efeito, o
que é válido para a interpretação da história social e
política da Europa e do Ocidente não deve nem pode tomar-se
como princípio de explicação universal — o contrário seria
atitude «iluminista» há muito ultrapassada; e, depois, está
averiguada a existência em todo o mundo de sociedades de
ordens, contemporâneas e históricas, regidas por outros
modelos, dualistas, por exemplo (Levi-Strauss, 1974, pp.
147-180). Nem se diga que tais sociedades são primitivas ou
arcaicas, porque se responderá que se argumenta outra vez
segundo pressupostos etnocentristas e de falso
evolucionismo.
Uma coisa é certa: onde quer que haja sociedades de
ordens, trinitárias ou não, a sua explicação assenta na
vontade de Deus e no mito. Ideologia dos detentores do
poder religioso e mágico, ou seja, dos oratores, desses que
sabem falar, fazer classificações, pôr nomes, ligar pessoas
a palavras. «Poder das chaves», das chaves do sentido de
tudo (9).
E é precisamente aqui que radica a diferença entre
sociedade de ordens e sociedade de estados. Sacral e
hierarquizada verticalmente a primeira; profana e com
hierarquia horizontal a segunda (Le Goff, 1983, p. 166). Os
estados surgem na Europa aí por 1200, enquanto designativo
de grupos sociais, significando o seu aparecimento a
inadequação do conceito de «ordem» em exprimir a realidade
sociológica, designadamente a popular e urbana. «Estado»
tem conotação socioprofissional, é invenção do homem. Ou do
Diabo, conforme se garante num sermão inglês do século XIV:
«Deus fez os clérigos, os cavaleiros e os lavradores; o
Demónio fez os burgueses e os usurários» (Le Goff, 1977, p.
326). Conhecem-se as circunstâncias e os factores éticos,
religiosos e culturais que estão na base da divisão
societária em estados — o renascimento urbano, a divisão e
especialização das actividades produtivas, a nobilitação
franciscana do trabalho manual, a afirmação da burguesia
comercial, a transferência mental da ideia de pauper do
sentido de inerme para o de despojado de dinheiro, a
assimilação das artes mecânicas às liberais e vice-versa
(veja-se a razão «profissional» da instituição das
universidades), a subjectivação da noção de culpa e pecado
(que obriga a pesar a desobediência às normas e o desprezo
das virtudes em função do estado do penitente), a
necessidade de listas de pecados consoante as pessoas para
uso dos confessores (pois a confissão anual torna-se
obrigatória para todo o cristão em 1215), os sermões ad
status e secundem officia, etc. (Le Goff, 1983, pp.
167-160). Quer dizer, agora é a Igreja que se adapta à
sociedade, que vai atrás dela para a dirigir, tentando
dominá-la, não mediante a imposição de modelos, mas através
da orientação das consciências. A tentação ideológica cede
ao pragmatismo dos tempos, investe no sublunar, e continua,
continuará durante séculos e séculos, a ser o estigma dos
oratores — esse grupo que nunca deixará de ser uma ordem, a
ordem por excelência. Aliás, o discurso sobre o social, que
eles, oratores, continuarão a proferir, apesar de ser feito
em termos de estados, terá sempre como referente nostálgico
ou esquema arquetípico a velha ordem. Foi o que se
verificou no subcapítulo anterior a este. E daí os
equívocos historiográficos quando se escreve sobre grupos
sociológicos de Portugal nos séculos XIV e XV. Quantos
realmente? Três, quatro, mais?
É que não vale inferir linearmente número de grupos
sociológicos a partir da enunciação epocal de
grupos-estados. Por outras palavras, de estados para ordens
não colhe a ilação. Se se pretende caracterizar a sociedade
segundo categorias estratificantes, «estados» tout court
não serve de indicador. Porque a palavra era extremamente
polissémica. Por exemplo: no primeiro capítulo dos gerais
dos povos apresentados nas Cortes de 1385 diz-se
textualmente que o «estado é partido em estas partes,
prelados, fidalgos, letrados e cidadãos». Face a este
dizer, os historiadores têm concluído unanimemente que
nessa altura a sociedade portuguesa se entendia
quadripartida. Cremos que o contexto não permite tal
conclusão. Primeiro, porque «estado» no sentido de corpo
social e político da nação era conceito desconhecido e,
depois, porque o macrotema do capítulo é capacidade de
aconselhar e não estruturação societária. Donde uma
quadripartição social de conselheiros a assistir ao rei,

334
e não uma quadripartição da sociedade global. Por
conseguinte, ilegítima qualquer interpretação desse passo
em termos de estrutura social de ordens; legítima, mas
restritiva, em termos de «estados»: exacta, em termos de
ordens, estados e classes capazes de consilium. E por aqui
se vê quanto é lábil uma leitura linear das fontes e quanto
é esquiva uma abordagem hermenêutica. Intérpretes falíveis,
eis a nossa condição.
Testemunhos e sua interpretação

A palavra «estados» é, com efeito, empregada, no


período do nosso estudo, em diferentes acepções. Pode
significar categoria social semelhante à de «ordem»,
segundo os contornos rigorosos definidos pela antropologia
e que atrás lembrámos; pode também simultaneamente ou
segundo os contextos indigitar gradações de prestígio,
estatutos de honorabilidade, escalas de hetero-estima e
hetero-imagem; pode ainda designar ofício, ocupação ou
profissão, de modo absoluto ou em conjunção com o
significado anterior; pode referir graus de disponibilidade
económica, grupos de maior ou menor riqueza, apreensíveis
tanto por critérios salariais como por estilos de vida
ostentosos ou sumptuários; pode significar escalão
hierárquico nas classificações de natureza militar,
nobiliárquica ou clerical; pode ainda exprimir «situação
real de», da justiça, da administração, da criminalidade —
como, por exemplo, na frequentíssima expressão «estados da
terra». Etc. Etc, porque outras acepções se poderão achar
depois de um estudo sistemático e exaustivo que vareje
crónicas, cartas, diplomas, capítulos, livros e poemas da
época. Poderá até confirmar-se a acepção de «concelhos ou
circunscrições regionais» que parece implícita num texto de
1451, o qual, por ser singular e estranho, prudentemente
reputamos de ferido por um lapsus calami: «[Senhor] teendes
sismeiros per vossas cartas em os estados e villas deste
regno [do Algarve] (10)». Insólitos estes «estados».
Tira-se, realmente, do exposto que «estados» e «estado»
eram, nos séculos XIV e XV, palavras muito ambíguas. Mais
do que «ordem» e «ordens». Anotámos seis acepções, todas
elas reportadas à área da socialidade. As quais fixemos,
listando-as:

a) Estados-ordens;
b) Estados-estatutos;
c) Estados-ofícios ou profissões;
d) Estados-riqueza;
e) Estados-graus (de um cursus — judicial,
eclesiástico, militar ou honorífico);
f) Estados-situações (ou imagens de realidade
veiculadas por um relatório).

Todas estas acepções ocorrem, umas mais, outras menos,


nos textos dos dois últimos séculos medievais (11). Por
regra, são os contextos que revelam os exactos sentidos e
dissipam o nevoeiro das ambiguidades. Mas algumas vezes
sucede que, apesar de todo o esforço hermenêutico, as
ambiguidades persistem, podendo o mesmo texto ser
interpretado com igual rigor segundo duas ou três daquelas
alíneas. Por exemplo, um enunciado sobre corregedores pode
exibir a palavra «estado» e as diversas contextualidades
recusarem-se a esclarecer, salvaguardada, embora, a
coerência discursiva e a plausibilidade histórica, se se
trata de «estatuto», «ofício» ou «grau» do
cursus.judiciário. Claro que, neste exemplo, visto qualquer
dessas acepções saber-se epocalmente pertinente, em nada
pecaria a livre opção nem até o registo das três
descodificações.
Tem-nos ensinado a experiência das fontes que a acepção
a), estados-ordens, se verifica sempre na expressão «três
estados» e nas locuções «estado eclesiástico» e «estado
defensório», mas não em todas aquelas em que o termo
adjectivo é sinónimo. Não necessariamente, por exemplo, em
enunciados como «estado nobre», «estado dos povos» ou
«estado da cavalaria», a menos que apareçam como apostos de
«três estados» ou em oposição a «estado eclesiástico» e
«estado defensório». Igualmente nos tem ensinado a
experiência que, sempre que se referem quatro, cinco ou
mais «estados», é possível correctamente atribuir à palavra
outro significado diferente de «ordens». E é isso o que
temos feito. Quer dizer, só se deve interpretar «estados»
no sentido sociológico de «ordens» quando outra
interpretação não puder ter lugar. E porquê? Porque as
circunstâncias económicas, políticas e culturais dos
séculos XIV e XV, tanto quanto as conhecemos, postulam uma

335
estrutura social diferente da de «ordens», pelo menos ao
nível do povo, e é de presumir que os contemporâneos
tivessem disso uma advertência ao menos difusa. E não se
veja nestas nossas cautelas uma falácia de petição de
princípio ou um forçar de conclusões preestabelecidas,
maneira de lógica emotiva. Não porque aquilo que estamos a
tentar descobrir na socialidade de Trezentos e Quatrocentos
são categorias grupais mais ou menos advertidas e não
categorias formais; divisões societárias reais, ou seja
objectivamente existentes e subjectivamente assumidas, e
não divisões meramente sociológicas. Por conseguinte, a
pesquisa terá de esclarecer fundamentalmente a existência
ou ausência da assumpção, mesmo inconsciente. E, no caso de
existência, o grau de intensidade.
De modo que é pertinente e instrutivo responder às
seguintes perguntas: daquelas acepções de «estados», quais
são as mais frequentes nas fontes? Será possível
escaloná-las segundo uma ordem de prioridades? Sem dúvida
que sim. Só que o levantamento exaustivo ainda não se fez
e, a fazer-se, terá de distinguir espécies documentais:
crónicas, leis, capítulos de cortes, obras de autor, etc.
(12) Por aquilo que sabemos, afigura-se-nos inteiramente
credível o seguinte escalonamento, que vai, obviamente, sem
números nem percentagens:

1.º — b) Estados-estatutos;
2.º — c) Estados-ofícios ou profissões;
3.º — d) Estados-riqueza;
4.º — a) Estados-ordens;
5.º — f) Estados-situações.
6.º — e) Estados-graus.

Este escalonamento estriba-se fundamentalmente nos


capítulos gerais do clero, da nobreza e do povo
apresentados em cortes, os quais conhecemos exaustivamente;
e secundariamente nas crónicas, livros
didáctico-moralísticos, corpos legislativos e «colecções de
memórias» do nosso período, de que fizemos leituras menos
atentas, ou seja, levantamentos menos sistemáticos.
Trata-se, portanto, de uma seriação adequada em termos de
testemunhos parlamentares; e plausível, proposta credível,
em termos de fontes historiográficas gerais. É, pois, uma
proposta de análise, válida enquanto amostragem subsumida
nos textos, mas a desenvolver e a aparelhar com dados
estatísticos. Não obstante, cremos ser desde já seguro
assentar nas seguintes considerações.

Estados-estatutos

Nos séculos XIV e XV, mais no segundo do que no


primeiro, a palavra «estados» denota prioritariamente
estatutos sociais, graus de prestígio, condições de
distinção. Estatutos entendidos como expectativas de
papéis. Traduzem-se, consequentemente, em vocábulos
adjectivos — «bons», «grandes», «honrados», nobres»; ou
«vis», «pequenos», «menores», «somenos», «meãos», «baixos»
e «comunais» (13). São classificativos «gramaticais»,
qualificações, que só secundariamente e por imperativo de
evidência contextual podem designar grupos sociológicos,
como elites, não elites e antielites, no seio das ordens,
estados e classes. E isto porque remetem para papéis, estes
sim substantivos, aptos para denunciar grupos e condições
sociais «ex-sistentes». Os estatutos, na medida em que
impõem uma hierarquização horizontal a despeito das ordens,
actuam como mecanismo de dissolução das mesmas, agrupando
lado a lado membros de cada uma delas e, por esse efeito,
situando indivíduos da terceira acima de indivíduos da
segunda e da primeira; tanto como dos da segunda acima dos
desta. O que faz surgir hierarquizações sociais de
configurações em pilares e não já absolutamente em
estratos. Encontramos configurações desse tipo, por
exemplo, em sociedades concelhias do século XV. E acerca de
estatutos diga-se mais: sempre que uma sociedade os
considera e acata a despeito das ordens (ou dos estados ou
das classes), ou seja, sempre que uma sociedade os respeita
e venera não obstante eles questionarem a ordem recebida e
considerada ortodoxa, isso significa que a realidade não se
revê mais nessa ordem dita «ortodoxa», que a expressão
dessa ordem virou ideologia e que há consciência social e
política, clara ou difusa, dessa viragem. E o mais
importante está aí: há consciência. Porque, havendo
consciência, embora não dita, mudou a realidade social e a

336
maneira epocal de a apreender. Mudou o suficiente para
poder falar-se de um modelo outro da sociedade em questão.
Ora, foi isso o que se verificou nos séculos XIV e XV em
Portugal: uma alteração dos fundamentos infra-estruturais
do sistema social significado no conceito de «ordens» —
alteração lenta, que já vinha de trás; e uma tomada de
consciência colectiva dessa alteração — revelada, sem
dúvida, nessa tendência para qualificar as pessoas por
estados-estatutos. Qualificação que é, antes de mais, um
comportamento.

Estados-ofícios ou profissões

Os ofícios e profissões, divisão e especialização do


trabalho, significam a desintegração da ordem dos
laboratores. A unidade e coesão desse grupo imenso, 98% da
população, cuja função social era laborare — pode-se
traduzir para «lavrar» — explodiram com a explosão das
cidades. Nos séculos XII e XIII. Cidade tornou-se
«indústria», distribuição e serviços, especializadamente,
concorrencialmente; ao contrário do campo, onde todos
continuarão a ser tudo, em concórdia e reciprocidade, por
amor da fecundidade da terra, aliada ou não à do mar. Nas
cidades até o tempo virou outro, desnaturado e mecânico,
venal. Lembra-se o leitor do que dissemos no capítulo
anterior sobre relógios? Pois: dessacralização do tempo, da
natural cadência trabalho-descanso, dos ritmos que Deus
criou — sol para presidir ao dia, lua para mandar de noite,
é da Bíblia, está no Génesis. E a diferença das estações,
coisa que Deus também quis? A cidade tudo anulou. E por
causa dum trabalho que agora, abyssus abyssum, é dinheiro,
maldita mamona — Lucas, XVI, 13. A cidade, que fora reduto
da fé, catedral dos bispos, entrou em aviltamento e dava
aulas de laicismo com exercícios de imoralidade. Camponesa
que lá entrasse, e só por dinheiro lá ia, era sabido, vinha
adúltera, com «uma companha de cornos que leva a seu marido
à lavra» (Cortes de 1446, cap. 2). Enfim, cidade era
ofícios, mesteres, profissões. Coisas que, já o vimos, não
foi Deus que inventou. Deus quis «ordens» e não «estados».
Nos séculos XIV e XV, a sociedade rural e a sociedade
urbana revelam-se estruturalmente diferentes. Devido, em
última análise, às transformações verificadas no mundo do
trabalho.
No campo, o trabalho faz-se e pensa-se agricultura.
Afora alguns ferreiros, pedreiros e carpinteiros — poucos e
porventura itinerantes — não há profissões especializadas.
Quem quer fazia o preciso para manter a «fazenda» de pé —
desde a casa da família e das alfaias laborais à roupa de
cada um, tudo com materiais à mão, da fauna e da flora da
aldeia. Depois, os artefactos mais difíceis, ia-se à feira
e compravam-se. Porque a feira tinha essa função, a de
misturar os mundos, as economias e as culturas; trocar.
É claro que havia campo e campo. Campo de povoamento
disperso e campo de povoamento concentrado. Campo de
Trás-os-Montes e do Minho, da Estremadura e das Beiras, do
Alentejo e do Algarve. Campo de ao pé do mar e de rios
navegáveis e campo do interior, serrano ou planáltico.
Campo vizinho de vilas e cidades e campo esparso por ermos.
Campo ao lado de estradas obrigatórias e campo ínvio de
raros almocreves. O que vale por dizer que houve sociedades
e sociedades rurais, umas puramente agrícolas e outras
contaminadas por modos de vida pastoris, piscatórios,
salineiros, «industriais» e de serviços. Daí que seja
porventura mais exacto falar, não de socialida-de rural,
mas de socialidades rurais. As investigações antropológicas
da escola de Jorge Dias mostram-no eloquentemente. E não se
afigura ousadia projectar à distância da Idade Média
portuguesa a lição ministrada.
Apesar, porém, das contaminações referidas — umas
ancestrais, outras impostas pelas novidades urbanas —, a
verdade é que a sociedade rural se caracterizou pelo
monolitismo das actividades produtivas e, logo, pelo
imobilismo das inovações laborais. Nos campos o tempo era
cíclico como numa liturgia. Tradicionalismo era a regra, a
regra da Natureza. E, então, a especialização laboral
inexistente — ou ditada por ela, a Natureza, o que vem a
dar no mesmo. Todos eram tudo, consoante «os trabalhos e os
dias» que, há cerca de 2100 anos, o mediterrânico Hesíodo
cantou.
De modo que no campo há uma profissão, a de lavrador, e
uma infinidade de tarefas, que ele executa. Lavra, semeia,
monda, ceifa, malha, mói e panifica; poda, cava, mergulha,
enxerta, empa, vindima, pisa, encuba, transfega e acarreta;
planta, roça, lenha, carvoeja, serra e carpinteiro; cria,
mata, pastoreia, queija e curte; etc, etc. Tarefas
recorrentes, uma só profissão. Bem diziam os deputados às

337
Cortes de 1459 (Lisboa): «Assi como a sovereira não tem
cousa que não preste, assi não tem o lavrador uso que não
seja prestadio» (Cap. 6). Profissão polivalente, trabalho
humano por antonomásia, alegoria da ordem. E outra vez os
deputados do povo, agora os de 1433 (Leiria-Santarém): «O
estado dos lavradores é a governança da terra, assi no
temporal como no espiritual, e, como [assim], deve de ser
guardado» (Cap. 119). Ordem? Estado? A diferenciação não é
clara. E não é porque o campo movia-se, nos séculos XIV e
XV, e continuará a mover-se nos próximos séculos futuros,
sobre rolamentos de fabrico feudal.
Não assim a cidade. Que, já se disse, descolou do
ruralismo nos séculos XII e XIII. Aí, tarefa é profissão.
Que assume a primigénia indiferença em rituais cíclicos de
renovação e lembrança. Rituais tipicamente urbanos,
reactualizações de uma perfeição social e política que se
não vê no dia-a-dia — hierarquia, concórdia, reciprocidade.
As procissões do Corpus Christi são o caso mais sabido.
Nelas desfilavam as «ordens» e os «estados-profissões»
hierarquicamente, por ofícios e categorias, como numa pauta
de precedências. Era o corpus das diferenças. Dezenas e
dezenas de ofícios (14). Outros tantos «estados». Que devem
traduzir-se por «profissões». Por «classes», não.

Estados-riqueza

Seria de esperar que o conceito de «estados-riqueza»


andasse conexo com o de «estados-estatutos» e o de
«estados-ofícios/profissões». Isso sucede, com efeito. Mas
não com aquela necessidade que hoje se impõe. É ver, por
exemplo, as leis pragmáticas que desde 1340 se foram
produzindo, paradoxalmente a rogo dos deputados do povo:
gastasse quem era na proporção do que fosse
independentemente do que tinha e fulgisse a diferença (15).
Mandamento feudal. Que em 1473 um D. Afonso V, até ele,
considera arcaísmo: «Responde el-rei que a todalas
particularidades em este capítulo apontadas [proposta de
pragmática sobre vestuário dos moradores da corte] não se
pode como dante dar provisão» (Cortes de 1472-1473, cap.
5). É bem conhecida, até das cantigas de escárnio e
maldizer, a desconformidade «status-fortuna» das camadas
inferiores da fidalguia. E casos como o de um Afonso Eanes,
«prove e doente», que em 1402 recebia da Câmara do Porto
uma esmola estipulada por ser criado d’el-rei, eram
frequentes (Vereações de 1401-1449, f. 113). Como eram
frequentes os merceeiras e merceeiros, pobreza envergonhada
(M. T. C. Rodrigues, 1968, p. 72). Estes exemplos
paradigmáticos mostram as contradições sociais e
societárias dos finais da Idade Média: uma sociedade que
não é já de «ordens» nem quer ser, mas tem pena, pensa
nelas; e, por corolário, uma sociedade para o dinheiro, mas
que recusa, procurando-o sempre, classificar-se em termos
dele. Todos o buscam, desde o rei ao serviçal, nos mesteres
e mercancia (que eram o que estava a dar) mas todos aceitam
que essa busca era desmesura cobiçosa de uns, ganância
aviltante de outros, «des-ordem» da sociedade ideal.
Ouçamos os deputados populares das Cortes de 1433
(Leiria-Santarém): «O auto da mercadoria pertence somente
aos mercadores pelos quais a terra é rica; e ora todolos
mercadores são proves, porque os defensores da terra são
mercadores — assi infantes como fidalgos e outros fora de
caso» (Cap. 122). Aí está: defensores e outros fora de
caso. O apelo à «ordem», essa precisamente, essa em que os
mercadores, os do negócio, homens do non labor nec otium,
não estavam previstos. E são eles que apelam. Apelam contra
a ganância aviltante dos defensores — o que, esquecida a
radical incompetência opinativa, está certo, é da «ordem».
E apelam também contra «outros fora de caso», mesteirais e
lavradores que lhes invadiam o nec-otium, conforme no-lo
mostram outras suas reclamações parlamentares. E nisto
foram perversos, identificaram «ordens» com «estados-
profissões». Contradição. Como também há contradição nas
mentes dos poetas do «maldizer» que mofam dos escudeiros
presumidos e pobretões. Mofam em nome de quê? Da
desconformidade ser/ter, status/riqueza. Pois, subordinam a
honra ao proveito.
Do exposto se tira que a riqueza dava estatuto. Chegou
a comprar fidalguia (Cortes de 1481-1482, caps. 66 e 67).
Não admira, por conseguinte, que no período do nosso estudo
«estados» signifique riqueza. Veja-se o seguinte texto, que
é das Cortes de 1433 (Leiria-Santarém): «Senhor, alguns
destes vossos oficiais são pobres e querem trazer maiores
estados que os que lhes cumpre e convém; e, por soportarem
esto, é per força que excedam o modo em aquelo que com
razão se não deve fazer [...]. E estes, antes que vieram

338
aos ofícios, não têm um moço que os sirva; e, tanto que
cobram os ofícios, logo alcalçam [sic] baixelas e roupas
empenadas e homens de bestas — e esto depois que são
oficiais há poucos anos» (Cap. 3 dos gerais dos povos).
Este texto é elucidativo de uma mentalidade burguesa.
Não se devem ostentar «maiores estados» do que os
permitidos pelas posses, eis o princípio. Um princípio que
achamos continuamente nos discursos parlamentares dos
concelhos e que é enunciado tanto contra oficiais régios
como contra mesteirais e gente do campo (16). Chega-se a
sugerir nas cortes que os vilãos sejam proibidos de vestir
como vestem os das vilas e cidades (1481-1482, cap. 131).
São apelos de morigeração do luxo, como aqueles que
motivaram as leis pragmáticas. Os burgueses adiantam-nas e
aplaudem-nas porque entendem que elas, ao nível do terceiro
estado, irão consagrar a distinção que vem da riqueza, a
discriminação vil/honrado, segundo um critério plutocrático
(Cortes de 1385, cap. 14). Não era esse afinal o critério
da constituição das oligarquias municipais? Rico,
afazendado, «manteúdo», bom do lugar, honrado do povo, tudo
sinónimos, são as «qualidades» exigidas para se ter nome
nos pelouros. Entre o povo, ter estado é ter bens. E não se
entende abusivo socialmente estadear riqueza, se
efectivamente riqueza se possuir. O contrário é que seria
grave. As críticas assíduas proferidas no Parlamento contra
fidalgos pobretes e gastadores são indício dessa
mentalidade burguesa. Que, sinal dos tempos, é perfilhada,
aqui e além, por poetas do Cancioneiro de Resende. Uma
mentalidade formada no apego à sociedade de ordens,
mentalidade fidalga, tomaria aquele princípio exactamente
ao contrário: cada um deve mostrar o estado a que pertence,
a honra que tem, apesar da riqueza — riqueza que compete ao
rei assegurar, mediante ofícios, doações, prestamos, tenças
e casamentos. Duas mentalidades opostas. Que no século XV
colidem abertamente, conforme se pode ler nos textos de
cortes, designadamente em 1433, 1459, 1472-1473 e
1481-1482.
Enfim, cremos ter mostrado que a palavra «estados»,
para além de significar, nos séculos XIV e XV, «estatutos»
e «ofícios/profissões», significou também «riqueza»,
«ostentação plutocrática». De passo, evidenciámos como esta
terceira acepção denuncia mentalidades diferentes a
respeito de ordem social e dinheiro — burgueses versus
nobres — e como as diferenças de mentalidades
proporcionaram contradições de atitudes e arrazoados
perversos, especialmente nas elites urbanas do grupo
popular. Com efeito, crê-se e deseja-se que se não devem
usar «estados» ou modos exteriores de riqueza superiores às
posses; mas, quando convém, apela-se para o «mandamento
feudal», que atrás exprimimos, gastasse quem era na
proporção do que fosse independentemente do que tinha e
fulgisse a diferença. Não nos admira essa capacidade
burguesa de utilizar raciocínios ad occasionem, políticos.
Nem nos admiraria até que, embora contraditórios, fossem
utilizados com inteira convicção.

Estados-ordens, Estados-situações e Estados-graus

Sobre a acepção de «estados» como «ordens», já dissemos


até aqui o suficiente: quando aparece e em que contextos
deve entender-se. E provável que ocorra, de forma
explícita, nos séculos XIV e XV, mais frequentemente do que
a acepção anterior, a de riqueza. Mas, de forma implícita,
não. E é por esta razão que situamos estados-ordens em
quarto lugar.
«Estados» no sentido de «situações» significa, conforme
dissemos, «resenha», «memorando», «descrição», relato do
panorama judicial, administrativo, económico e criminal de
uma terra ou região. Aparece muitas vezes nas fontes, tanto
na expressão «estados da terra» como na de «estados»
somente, como até na de «estados gerais» (17). Visto que
esta acepção tem muito pouco a ver com o ordenamento social
e rigorosamente nada com ideologias ou utopias societárias,
pomo-la em quinto lugar.
Estados-graus de um cursus — judicial, eclesiástico,
militar ou honorífico. Por outras palavras, graus de uma
carreira hierarquizada. Sabe-se que existiram. No estado
eclesiástico, sem dúvida; no dos letrados, também; e no
militar, muito provavelmente. Terá havido uma carreira
judiciária? Até 1433 diz-se que não (A. Carvalho Homem,
1990, pp. 190-194). Depois, não está averiguado.
Sabemos que «estados-graus» ocorre nos manuais de
confessores. Aí os agentes da justiça são distinguidos
conforme a sua posição jurisdicional, tal como os bispos,
presbíteros e minoristas.

339
E sabemos que isso sucede devido a gradações de
responsabilidade moral ditadas por correspondentes
gradações de responsabilidade social. Apesar, porém, desta
correspondência e fundamento, os «estados» dos confessores
definem-se por critérios diferentes daqueles que estamos a
seguir, sociológicos e não éticos.
Porque não encontrámos testemunhos textuais de
«estados-graus» inequivocamente sociológicos, pomos esta
categoria em último lugar (18).

Em conclusão

A palavra buscada e querida para traduzir, no período


do nosso estudo, realidades sociais atinentes a distinções
de grupos e de pessoas é «estado» e «estados». Muito mais
que «ordem», «ordens» ou outra qualquer. Só que essa
palavra, no singular e plural, é extremamente polissémica e
fluida. Tentámos repartir, com base nos textos e
respectivos contextos, as diversas acepções em categorias
distintas. E achámos seis. Seis de que quatro são
sociologicamente muito pertinentes e historiograficamente
muito reveladoras. Estas: estados-estatutos,
estados-ofícios/profissões, estados-riqueza/ostentação e
estados-ordens. Apesar de estas categorias terem sido
inferidas fundamentalmente de discursos parlamentares dos
deputados do povo, cremos que traduzem esquemas perceptivos
da «razão sociológica» da época. Comuns a todos os
contemporâneos. Até por terem sido enunciados em assembleia
de toda a Nação. Por isso, iremos utilizá-los, os esquemas
e logo as categorias, no esboço de sistematização da
sociedade trecentista e quatrocentista que adiante se verá
(cf. quadro na página seguinte).

[O quadro referido no textos págs. 340 – 341 não se


apresenta nesta versão difgitalizada, dada a sua
complexidade.]

O horizonte teórico

Classes

Abrir um subcapítulo designado «Classes» a respeito da


sociedade portuguesa dos séculos XIV e xv afigurar-se-á
cometimento, senão ignaro, pelo menos diletante; ou
académico. Precisamente porque se crê ser a palavra
assumida em seu rigor sociológico — o que é verdade,
queremos isso. Mas então não está perfeitamente arrumado
que só há «classes» «nas sociedades globais
industrializadas, onde os modelos técnicos e as funções
económicas são particularmente acentuados» (Gurvitch, 1977,
vol. I, pp. 259-282)? Não é doutrina assente desde as
controvérsias Mousnier-Porchnev e Mousnier-Labrousse que a
ociedade de classes sucedeu à de estados e que a sucessão
ocorreu geralmente no século XVIII (P. Guiral, 1971, pp.
134-155)? Não é exacto que uma estratificação social em
classes — ou uma divisão da sociedade em horizontes
sobrepostos, hierarquizados em função dos factores de
produção e, logo, do lucro, da renda e do trabalho, não em
complementaridade harmónica, mas em necessário conflito —,
não é exacto que uma tal estratificação é historicamente
recente? Que supõe uma sociedade global bem diferenciada do
ponto de vista dos sectores primário e secundário,
terciário até, da economia? Mais: que supõe, da parte dos
agentes económicos — para lá da sua distinção real no
sistema produtivo, «classes em si» — a consciência da sua
classificação diferenciada, «classes para si», e nos
explorados a auto-advertência de alienados, de desapossados
da «mais-valia», e, por efeito, a auto-imposição da luta
contra os exploradores, «luta de classes», sentido da
história (Fitzhenry, 1974, pp. 407-416)? Não é verdade que
tudo isto é inconcebível numa sociedade coiporativista,
feudal, de mentalidade qualitativa e reconhecidamente
organizada em estados?
Estas interrogações remetem para um horizonte teórico
dos anos 60 do nosso século. Os anos em que Mousnier,
Porchney e Labrousse discutiam. Foram anos que assistiram
ao apogeu das pugnas marxistas-antimarxistas. E também os
anos de todas as desmitificações e desencantos. De modo que
— tu quoque fili mei Brute — os intelectuais passaram a
rever a ortodoxia das con-ceptualizações sociológicas,
cépticos, descomprometidos, indiferentes. E a ideia de
«classe social» alterou-se. Alterou-se profundamente.
Leia-se, por exemplo, Gurvitch (1958) e, logo a seguir,
Fitzhenry (1970). Ver-se-á como já se torna decente falar
de «classes sociais» na Idade Média sem necessariamente se
ter sido catecúmeno do Manifesto do Partido Comunista de
Marx-Engels. Mas pode-se ir mais longe do que Fitzhenry.
Com Pierre Bourdieu, por exemplo, percorrendo capítulo VI

340
Ordens, estados e classes sociais (séculos XIV e XV)

341
Nota: Fontes referidas no texto. Sinais: X-sim;
?-duvidosos; xa-ofícios; xb-profissões; xab-ofícios e/ou
profissões.

342
(«Espaço social e génese das “classes”, 1984) do seu livro
O poder simbólico. Com ele iremos. Encorajados, diga-se,
pelos antropólogos sociais, esses grandes destruidores de
esquematizações dogmáticas e universais da socialidade tout
court.
Tudo parte, não podia deixar de ser, da resposta a esta
pergunta: o que é a sociedade? Soma de pessoas organizadas
ou campo de forças? Agentes e interacções de agentes ou
espaço de relações? Dir-se-á que é as duas coisas, que as
alternativas formuladas não passam de perspectivas da mesma
e única entidade. E está certo — num entendimento que
diríamos «ontológico». Mas em termos «epistemológicos» — e
a «razão epistemológica» é que decide sobre a veracidade da
investigação e dos seus resultados — as duas alternativas
não são a mesma coisa nem, por conseguinte, é
cientificamente indiferente optar por uma ou por outra.
Se encararmos a sociedade como um espaço de relações,
estaremos desde logo a optar por um modelo de análise que,
recusando privilegiar o substancialismo, o economicismo e o
objectivismo, rompe com o modelo marxista. Com efeito, a
análise social preocupar-se-á com muito mais do que
descrever grupos existentes, seus membros, seu número, suas
características distintivas; desconfiará das definições de
«classe», demasiadamente intelectualistas, «pensam-se logo
existem». Verá no económico uma dimensão entre muitas
outras, importante sem dúvida, indiciária mesmo, mas não
exclusiva como factor de posição no tabuleiro social.
Finalmente, dará estatuto de objecto de inquérito aos
valores simbólicos, imaginário social, essas forças que,
afinal, legitimam as hierarquias humanas. Em suma, uma
abordagem da sociedade enquanto espaço de relações é
multidimensional, releva da teoria dos jogos e da teoria da
linguagem, dá ênfase ao raciocínio homológico na
aproximação ou afastamento de grupos mobilizados, discerne
particularismos geográficos de económico-culturais e,
corolário de tudo, alarga o horizonte semântico de
conceitos como «classe social», «luta de classes», «motor
da história», etc. Mais: demonstra, na medida em que se
afirma como abordagem mais completa e adequada da
socialidade, que os antigos conceitos são instrumentos
obsoletos e inutilizáveis, seja qual for a época histórica
em exame (19).
E eis porque meter neste nosso estudo da sociedade dos
séculos XIV e XV um subcapítulo intitulado «Classes» não é
cometimento ignaro, diletante nem académico. É tentar
averiguar se nesse período o espaço ou espaços sociais
portugueses, para além de revelarem, conforme vimos,
posições traduzíveis em «ordens» e «estados», admitiram ou
não outras formas, irredutíveis a essas, as quais devamos
exprimir como «posições de classe».
Antes, porém, esclareça-se o que entende por «classe» a
«teoria do espaço social». Teoria construída, obviamente,
como todas as teorias; mas aquela que nos parece, de entre
todas — repita-se — a menos reducionista e a mais aberta à
complexidade do real. E diga-se, advertência sem dúvida
redundante, que a noção adoptada de «classe» é a de
sociólogos actuais que estudam sociedades de hoje; que a
inferiram das sociedades estudadas, como quem constrói um
instrumento susceptível de as estudar melhor. Círculo
vicioso, tautologia, petição de princípio? Não. Condição
insuperável da investigação científica. Portanto, noção de
classe para agora e aqui. Não será então anacronismo
utilizá-la para 600, 500 anos atrás? Cremos ser óbvia a
negativa. Porque, instrumento ou modelo construído a partir
de relações societais estruturadas, será válido para
exprimir essas relações, desde que existam, não importando
tempos e lugares. Como todos os instrumentos científicos,
terá de possuir virtualidades heurísticas, sob pena de se
autocontradizer. De resto, não são posteriores às coisas e
aos tempos as palavras e os discursos que no-los revelam?
E aí vai a nossa ideia de «classe social», que é a de
Pierre Bourdieu: «Conjunto de agentes sociais que estão
colocados em condições de existência homogéneas, isto é, em
condições de existência que impõem condicionamentos
homogéneos e produzem sistemas de disposições homogéneos,
uns e outros geradores de práticas semelhantes; os quais
agentes possuem propriedades comuns, umas “objectivadas”,
inclusive garantidas juridicamente (posse de bens e ou de
poderes), outras “incorporadas”, como os habitus de classe
(e, particularmente, os sistemas de categorias
classificatórias).» (Bourdieu, 1979, p. 112.)
Desta noção resulta que um grupo social será tido por
«classe social» se:
a) Os seus membros partilharem idênticas ou análogas
condições de vida, as quais lhes imponham comportamentos
psicossociais semelhantes;
b) Os ditos membros detiverem, cada um, uma soma de
capital reconhecida por todos como dentro da média
necessária — «capital objectivo» ou económico (terras,
meios de produção, rendas ou dinheiro), e, simultaneamente,

343
«capital incorporado» ou cultural (político, social,
simbólico).
Note-se que, face ao exposto, fica claro que uma classe
social existe mesmo sem ser «classe mobilizada», não
obstante deter capital político — o que quer dizer que a
ideia marxista de que uma «classe em si» só é classe
histórica se o for «para si» não passa, afinal, de um
sofisma. O sofisma que consiste em identificar «tomada de
consciência de uma pertença» com «tomada de conhecimento de
uma noção» (Bourdieu, 1979, p. 113; 1989, p. 138). Aliás, a
própria tomada de consciência de pertença — utilíssima para
o historiador quando os textos a revelam — não é condição
sine qua non das classes reais. Porque há um inconsciente
de classe — este, sim, entrincheirado contra todas as
hipocrisias, simulações e oportunismos. O qual agarra as
pessoas e as força a ser suas — na mentalidade, no
comportamento, no habitus — sem que elas geralmente saibam
a importância que isso tem e o nome a dar àquilo que estão
a ser. Quando o descobrem, alguém lho disse — um político,
um padre ou um sociólogo.
E é tempo e preparo de irmos aos séculos XIV e XV. Com
esta interrogação: houve ou não nessa época classes sociais
objectivas?

Testemunhos

Veja-se o quadro da página 340.


Este quadro regista 69 designações conotadas com
estrutura social. São designações da época, utilizadas
pelos cronistas, pelos deputados parlamentares, pela
chancelaria régia e por autores individualizados, como D.
Duarte, o infante D. Pedro, etc. Do cronista Fernão Lopes
está tudo (A. Beirante, 1984); das cortes, também, no que
diz respeito a textos produzidos nelas; das outras
procedências, estão amostras. O âmbito cronológico
abrangido é o que vai de 1325 a 1490.
Esse quadro confirma o que temos vindo a dizer sobre
«ordens» e «estados» no período do nosso estudo:
pervivências, arcaísmos, ambiguidades, contradições —
sociedade em mudança. Voltaremos a isto. Para já, ou seja,
para respondermos à interrogação feita — houve ou não
classes sociais? — fixem-se as designações relativas às
modalidades exclusivamente populares. Porque nas outras,
clericais, nobiliárquicas e étnicas, não achámos quaisquer
indícios dignos de nota, quaisquer fundamentos de uma
pesquisa procedente. Mas do povo vemos quatro: «burgueses»
e «homens-bons»; «mesteirais» e «oficiais mecânicos». As
quais designações rotulam dois grupos reais: aristocracia
urbana ou concelhia e gente dos mesteres, urbana e
concelhia também. O primeiro grupo é «classe social»; o
segundo, depende. Examinemo-los em separado.

Burgueses

A palavra «burgueses» — que costumamos preferir às


expressões «homens-bons», «oligarcas locais» e
«aristocratas concelhios» ou «aristocratas urbanos» — é
raríssima nas fontes que temos estudado. Rigorosamente só
aparece uma vez: em Fernão Lopes, na Crónica de D. João I,
2.ª parte, cap. 96, significativamente atribuída a cidadãos
do Porto. No contexto, a palavra refere habitantes do burgo
representativos e notáveis, elite local distinguida pela
riqueza, prestígio e exercício do poder municipal.
Continuaremos a preferir este termo a outros quaisquer, mas
sempre neste significado epocal de, repita-se, homens do
burgo (da parte nobre da cidade ou vila), livres de
submissões prelatícias ou fidalgas (submissões económicas,
que não honoríficas), os mais ricos do lugar (não
importando quantitativos absolutos nem proveniência ou
natureza dos bens), os mais prestigiados e, por isso,
detentores, efectivos ou reconhecidamente efectiváveis, da
governança municipal. Como se vê, burgueses não são apenas
mercadores nem são indivíduos exclusivamente acantonados em
cidades e vilas predominantemente mercantis — como Lisboa,
Porto, Guimarães, etc. Em suma, burguês não é grupo
profissional determinado. É, antes de tudo, riqueza.
Conjunto de abastados ou «manteúdos»; e, logo, os «bons»,
os «maiores», os «honrados», os «nobres» dos lugares.
Então, dir-se-á, existiram tantos grupos de burgueses
quantas as cidades e vilas, tantos quantas as diversidades
geográficas e económicas do País. Se o fundamento

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distintivo é a riqueza, que houve de comparável entre um
cidadão rico de Braga e um outro de Lisboa? Entre um do
Porto e um de Vila Real ou de Beja? Um de Faro e um de
Leiria? A resposta é esta: a riqueza que fazia grupos
burgueses no Norte, Centro, Sul, Litoral ou Interior não se
media em cifrões, número de cabeças de gado ou hectares de
terra, uniformes e estandardizados. Em cada localidade,
talvez isso funcionasse; empiricamente, já se vê. Em termos
de grupo à distância, macrogrupo nacional, não. Contava a
riqueza que proporcionasse, isso sim, liberdade,
independência, disponibilidade política, statu. Quer dizer,
o macrogrupo «burguesia» foi integrado, nos séculos XIV e
XV, por subgrupos diferentes em razão do capital
objectivado ou material, função da geografia económica, mas
análogos em termos de capital político, social e simbólico.
São, pois, os critérios superstruturais que justificam
falar-se, efeito do raciocínio homológico, de classe social
burguesa na Idade Média. «Classe», pois.
Os burgueses não são «ordem» — porque a sua função
social, derivada do non labor nec otium, não cabe no
esquema trinitário autêntico da arrumação dos homens — os
do labor-dolor, trabalho-dor de produzir mantimentos, os do
labor-militiae, trabalho-esforço da defesa de todos, e os
do otium-contemplatio, oradores, gente da Igreja e das
escolas. Os burgueses não são nada disso. São uma espécie
de gente que vem de Babel, da humana porfia de desafiar
Deus, criar cidades e socialidades impensáveis. Mesmo que
muitos sejam lavradores e criadores de gado, não é por o
serem que se definem como tais onde quer que vivam — mas
por disporem de otium, esse tal que não é preenchido na
oração e no estudo, nec-otium evidentemente.
Os burgueses também não são um
«estado-ofício/profissão». Entre eles há mercadores,
cambistas, armadores, funcionários públicos superiores,
lavradores proprietários, criadores de gado e até
mesteirais enriquecidos, como ourives, moedeiros onde os
havia, peliqueiros e outros. Burguês implica estatuto, mas
não estatuto vinculado a uma profissão ou ofício
específico. É um estatuto que advém da posição no campo
social. O estatuto de um espaço ocupado, um espaço de
relações multidimensionais — económicas, culturais,
simbólicas — o qual espaço é de domínio e de posse e de
autoridade para representar os outros espaços, de
interpretar os seus sentidos e de lhes dar nomes ou impor
classificações. E tudo isto assim, apesar das geografias e
particularismos autárcicos. Por isso...
Por isso, burgueses são uma «classe». No sentido
rigoroso que a sociologia valoriza. Uma «classe social».

A identidade burguesa

Nada falta, com efeito:

a) Identidade de condições de vida geradora de


comportamentos análogos. Isto verifica-se no interior de
cada grupo burguês local, conforme se tem concluído em
estudos monográficos publicados e se pode adivinhar
compulsando as fontes de outros que poderão escrever-se.
Verifica-se, por exemplo, no seio da burguesia do Porto, de
Braga, de Ponte de Lima, de Guimarães, de Santarém, de
Évora e da Guarda (20). E adivinha-se que poderá
verificar-se em Lisboa, Coimbra, Loulé, Lamego, Viseu,
Torre de Moncorvo, etc. A nível supralocal, constata-se a
mesma coisa. Por exemplo, no Algarve, de que há estudos
reveladores (A. Iria, 1956; A. de Sousa, 1992). E a nível
nacional, mutatis mutandis, isto é, mudando a palavra
«identidade» para a de «equivalência», tira-se a mesma
lição. Di-no-lo o estudo que fizemos sobre os grupos
sociais que foram representantes dos povos nas cortes
celebradas entre 1385 e 1490 (Armindo de Sousa, 1990a, vol.
I, pp. 181-241).
Donde se pode concluir que os burgueses tout court
foram no século XIV e sobretudo no século XV uma classe
urbana de abrangência nacional, multifacetada sem dúvida,
mas coerente e mobilizada como um bloco. Os 1248 capítulos
gerais apresentados pelos povos — ou seja, pelos burgueses
— nos parlamentos do período há pouco indicado
mostram-no-lo exuberantemente. E nem se diga que estamos a
confundir classe social com classe política — porque
mostrámos nesse mesmo estudo, especialmente nas páginas em
que abordámos as delegações municipais paralelas, que grupo
social e grupo político autárquico foram uma e a mesma
coisa. Sobre identidade de valores e coesão mobilizadora
dessa classe, a dos burgueses, veja-se ou recorde-se o que
escrevemos atrás, na parte final do subcapítulo «Ordens». A
força mobilizadora dessa classe, conforme, aliás, será seu

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timbre tempos fora, assentou no egoísmo e egotismo dela,
classe, e revela-se no seu léxico, especialmente o da moral
(Bourdieu, 1979, p. 485). Paralelamente, as projecções dos
seus medos — e, logo, a identificação do seu inimicus homo
e bode expiatório — fazem-se nos mesteirais, nos ricos dos
arrabaldes e nos lavradores de extramuros. Muito mais
veementemente do que nos fidalgos, clérigos ou gente miúda.
E porquê? Porque aqueles detêm posições vizinhas e fortes
no tabuleiro comum do xadrez que se está jogando, no
«espaço social», espaço até geográfico. É numa estratégia
de jogo — de classe, porque não? — que devem ler-se as
diatribes dos burgueses contra os seus próximos vizinhos,
assim como as suas ocasionais simpatias e vozes de
protecção a favor de escudeiros fidalgos. Estes, com
efeito, não constituíam ameaça para o seu poder e
prestígio. Como a ralé também não.
Do exposto se deduz que os burgueses — burgueses no
exacto sentido em que os definimos atrás — eram animados
por um «inconsciente de classe» e actuavam, nas localidades
e nos parlamentos, em conformidade com isso. Uma classe
mobilizada, real, e não somente uma «classe no papel».

Capital social da burguesia

b) Também não faltaram aos burgueses as outras


propriedades, as de capital, que se exigem a um grupo, em
conexão com a de identidade de modos de vida e de
comportamentos, para ser uma classe social. Já o temos dito
por alto, convindo agora especificar.
Capital objectivado ou económico. Sobre isto basta o
que temos vindo a afirmar, que é reconhecidamente aceite
tanto pelos contemporâneos quanto pelos historiadores: os
burgueses, ou «homens-bons» das cidades e vilas, eram os
moradores mais ricos e abastados, tirante clérigos e
fidalgos ou judeus onde os houvesse. Mas a riqueza variava
de localidade para localidade, conforme lembrámos, quer em
montante médio quer em qualidade. Assim, o perfil económico
do burguês foi flutuante tanto como o perfil
socioprofissional. Donde resultaram assimetrias enormes no
seio da «classe». Um grande de Braga seria meão no Porto.
Mais: um homem-bom bracarense poderia mesmo ser vil
mesteiral entre os tripeiros (Armindo de Sousa, 1990b).
Donde se depreende que o capital económico e o capital
social dos burgueses é função da geografia humana concreta
— uma propriedade a avaliar dentro de parâmetros subsumidos
em malhas de relações bem situadas. Essas assimetrias de
capital socioeconómico da burguesia olhada como classe de
âmbito nacional explicam, por exemplo, frequentes
dissonâncias de discurso, do discurso colectivo proferido
no Parlamento. Há, com efeito, aqui e além, capítulos onde
se defendem os pequenos proprietários e os pequenos
comerciantes, apesar de, em geral, estes grupos serem
ignorados ou combatidos. Cedências tácticas dos deputados
de Lisboa, Porto, Santarém, Coimbra e Évora, burgueses do
primeiro banco parlamentar e os mais falantes?
Provavelmente. Todos partilham de um léxico idêntico e de
um universo de valores semelhantes, só que na aplicação
desse léxico e desses valores ao concreto social vivido
distanciam-se, sem que de tal se apercebam. É que se trata
de palavras, classificações e qualificativos essencialmente
conotativos: «maior», «meão», «menor» e «somenos»,
«homens-bons», «honrados» e «nobres»; «povo miúdo»,
«rústicos» e «vilões»; «abastado», «manteúdo» e «pobre»;
«lídimo», «autêntico» e «refece»; etc. São classificações e
qualitativos que todos proferem e todos entendem e com isso
se sentem «nós», irmanados nessa aura de classe que se
designa em sociologia como «poder de nomeação». Nisso se
irmanam; que não necessariamente nos conteúdos referenciais
objectivos das coisas e pessoas nomeadas. Salva-se,
portanto, a unanimidade homológica. A menos que as
classificações vão acompanhadas de apostos quantificantes,
que então as dissonâncias revelam-se e a unanimidade
estala. Isso sucedeu às vezes, especialmente quando a
«classe», repartida em subgrupos regionais e locais,
apresentou discursos independentes, ou seja, capítulos
especiais por cidades e vilas. Foi o que se verificou, por
exemplo, em 1433, quando os burgueses do Porto quiseram e
conseguiram limitar o direito de exportação pela barra do
Douro a pequenos mercadores, «carniceiro ou vendeiro ou
outro qualquer mesteiral [...] que, [...] com quatro pães e
uma cabaça de vinho ou [...] quase nem migalha [de
mercadoria], logo passa o mar». Este modo de dizer e
qualificar não buliria com a tranquilidade dos exportadores
de Guimarães, Lamego, Vila Real ou outros, pois não se
sentiriam atingidos e eram até capazes de subscrever o
texto. Mas, na resposta dada, D. Duarte pôs números. E
então aqueles exportadores aperceberam-se de que, afinal,

346
eram eles os visados. E protestaram nas cortes seguintes,
as de 1436, agora em capítulo geral. O artigo do Porto foi
abolido (Armindo de Sousa. 1982, pp. 162-164). Casos como
este foram muitos: burgueses de Ponte de Lima contra os de
Viana, os do Porto contra os de Aveiro e do Algarve, etc.
Outras vezes, como aconteceu em 1352, 1361 e 1371, Santarém
e o Porto dessolidarizam-se de todos os seus camaradas
(Armindo de Sousa, 1990a, vol. I, p. 490).
Em suma, os burgueses detiveram capital económico e
social, sem dúvida; mas segundo quantitativos e
especificidades variáveis de cidade para cidade e de vila
para vila. Em todo o caso, o que os distingue e aproxima é
essa consciência de apropriação material, o serem os
melhores, os mais ricos e os mais honrados dos lugares.
Característica que até estava institucionalmente
objectivada nas cortes e nas câmaras municipais. O que quer
dizer que o seu capital económico e social era acompanhado
por capital político. Um capital precioso.
Capital que eles não largam. Aliás, todos os mecanismos
de acesso ao poder local foram concebidos e postos a
funcionar em benefício deles, para os perpetuar à frente
dos concelhos e das instituições dependentes das câmaras. É
a célebre lei dos pelouros e outras atinentes a hospitais e
albergarias, besteiros, escrivães, mercados, impostos e
órfãos. Para já não se falar da representação nacional em
cortes. A história do poder municipal nos séculos XIV e XV
é a história da aliança ou divórcio monarcas/burgueses.
Mais aliança do que divórcio. O que significou degradação
das autonomias locais e cerceamento da promoção política do
comum dos moradores (M. H. Coelho, 1990). Contra este
segundo efeito há vozes. Só que essas vozes vêm de
excluídos do Poder, mesteirais e lavradores marginalizados,
conforme, de resto, seria de esperar. Os burgueses autarcas
nunca reclamam, por exemplo, contra a lei dos pelouros;
reclamam, isso sim, a favor do seu cumprimento genuíno —
contra fidalgos e oficiais régios metediços e contra
mesteirais e lavradores, que qualificam de incompetentes,
ignorantes, cúpidos e economicamente irresponsáveis. Enfim,
capital económico, capital social e capital político
constituíram os três grandes esteios da classe burguesa
medieval. A relação entre esses esteios é estrutural, de
mútua detenninação, como numa configuração triangular. Mas
é de crer que o lado político tenha sido o mais distintivo,
aquele que a nível nacional, e graças à função
pedagógico-política das cortes, mais tenha contribuído para
a emergência e manutenção de uma identidade classista,
apesar das enormes diferenças económicas relativas. E isso
porque foi graças ao capital político, o qual supõe sempre
competência legitimada de classificar o social, que os
homens-bons, ou burgueses, estabeleceram e impuseram nomes
às coisas e às pessoas e aos comportamentos, declarando
eficazmente hierarquias e distinções — categorias, graus de
importância, penalidades, emblemas e símbolos. Em última
análise, representações eficazes do campo social. E,
obviamente, do campo social que eles se representavam e
desejavam peipetuar. O capital simbólico da burguesia, que
dimana dos outros três capitais e se acumula de geração em
geração — coisa que as fontes traduzem por honradez,
nobreza e linhagem (burguesas, evidentemente) — constituiu
uma propriedade de classe, não menos definitória dela do
que a riqueza ou o Poder (21). Por isso não faltam casos em
que o grupo tenta salvar em membros seus, a todo o custo,
esse tal capital simbólico, destituídos, embora, esses
membros, por culpa ou desgraça, de todas as outras formas
de capital (22). Realmente, a perda de capital simbólico,
mais difusivo do individual para o colectivo em termos de
opinião pública, implicava o encaminhar da classe para a
autodestruição. Não é sem razão que em toda a luta
sociopolítica o pendão que vai à frente é o do prestígio,
honorabilidade e alto nome dos actores.
Em conclusão: face ao exposto, não nos parece exagerado
nem anacrónico caracterizar o grupo dos homens-bons, ou
burgueses, dos séculos XIV e XV portugueses como um grupo
classista, uma «classe social» em sentido rigoroso. Os do
século XV, sem dúvida, e os do século XIV muito
provavelmente.

Os mesteirais

E agora voltemo-nos para os mesteirais, ou escalão


médio dos moradores urbanos. Classe social também ou gente
aglomerada em estados-profissões?
É o que vamos tentar discernir.

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Para começar, torna-se importante distinguir
perspectivas de análise a respeito desse grupo, grupo
urbano que ocupava no campo social posição intermédia
relativamente aos burgueses e aos braceiros e serviçais
(23). Essas perspectivas seriam, em princípio, três: eles,
mesteirais, vistos por si mesmos; eles vistos pelos
burgueses; eles vistos por nós à luz daquelas noções
sociológicas que atrás dissemos.
Vistos por si mesmos, os mesteirais revelam-se
extremamente cinzentos. Melhor dito, revelam-se muitíssimo
mal. Porquê? Porque, contrariamente aos burgueses, ao clero
e à nobreza, praticamente não falam de si. Quer dizer, não
deixaram memórias de que sejam autores. Eles pertencem,
enquanto grupo social, àquela multidão imensa — 97%? Mais?
— que não teve acesso à escrita nem ao direito de dizer-se
para nós por palavras suas. Essa mole imensa — o povo —
passou pela história e construiu tempo no meio da noite.
Que é do seu pensar? E do seu sentir? Auto-imagem onde?
Silêncio. Mas não percorrem os textos? Claro que sim. Os
textos de toda a espécie e de todas as origens: económicos,
fiscais, administrativos, judiciários, jurídicos,
militares, moralísticos, religiosos, parlamentares, etc.
Tudo isso está cheio de povo. Povo-argumento. Povo-objecto.
Povo-sombra chinesa, voz e gesto emprestados, actor que
outros fizeram.
De modo que «mesteirais vistos por si» é intento de
pouco efeito. Realmente, só conhecemos sete textos em que
eles fazem discurso na primeira pessoa (24). Todos de
cortes, que, para o nosso objectivo, são os escritos mais
fecundos. Mas sete é pouco, irrisório, ao pé das muitas
centenas produzidas pelos burgueses. E, pior, desses sete
só um é assumidamente de mesteirais — uns capítulos de
Santarém levados às Cortes de 1459 (Lisboa). Donde, saber o
que pensavam de si, enquanto grupo social, os mesteirais do
País no período do nosso estudo é tema historiográfico
destituído de fontes. Um tema insusceptível de conclusões
seguras, exaustivas, interessantes. Mas abordável.
Abordável apesar de todas as limitações. Podemos dizer,
por exemplo, que os mesteirais de Santarém e de Évora,
provavelmente também os de Coimbra, se imaginavam melhores
defensores do povo do que os respectivos oligarcas
«homens-bons». Os de Évora são explícitos: «Senhor, vos
pedimos de mercê, pois esta vossa e leal cidade de Évora é
a segunda de vossos regnos, e em ela há muitos e bons
mesteirais de todolos mesteres, que a vossa senhoria mande
dar lugar aos ditos mesteirais ou aos procuradores do povo
que estêm na câmara em vereação com os oficiais do concelho
pêra refertarem alguma cousa que for contra vosso serviço
ou damno do povo» (cit. por M. J. Ferro, 1978, p. 382). Os
de Coimbra, se bem que não provadamente mesteirais, vão no
mesmo: «Saberemos as cousas como andam e os dinheiros do
concelho como se despendem e a vós [el-rei] noteficaremos
os males e danificamento da terra per onde vem e por quem
procede e ainda procuraremos pelos lavradores» (cit. por
Costa Lobo, 1979, p. 578). Por seu turno, os de Santarém
identificam-se como «bons», em oposição aos burgueses, como
homens que «amam vosso serviço e prol comunal», dizem ao
rei, insinuando, obviamente, que os outros, os burgueses,
só amam o próprio interesse. Coisa que os de Ponte de Lima,
neste caso lavradores, afirmam sem rebuço. Todos estes
opositores do statu quo municipal, mesteirais e não
mesteirais, falam em 1459. Em 1462, 1465 e 1468 ouvir-se-ão
vozes semelhantes, de Braga, Guarda e Estremoz. Opositores?
Certamente. Mas não no sentido de desejarem substituír-se
no Poder às oligarquias burguesas. Porque aquilo que
realmente pretendem é ser nas câmaras municipais olhos,
ouvidos e voz dos miúdos, dos excluídos e dos
marginalizados. Fiscais da «república», dizem (25). Ou,
quando muito, parceiros — como reivindicam os de Ponte de
Lima, e só eles (26). Portanto, auto-estima politicamente
mínima, feita da convicção de que figuram, no xadrez social
dos concelhos, as pessoas mais idóneas para entender o povo
simples pagante e zelar pelos seus interesses. E, logo, os
do reino e do rei. Como? Vigiando a governança e
denunciando os abusos aos agentes da monarquia, os
corregedores. Vê-se quanto é tímida a sua ambição de poder.
Que, aliás, condiz com a forma como se autoqualificam: «por
nossa simpreza e pouco valor nos não seja feita cousa não
devida», afirmam os da Guarda (cap. 3); e «nós outros, os
pequenos», confessam-se os de Ponte de Lima (cap. 1).
Estratégia do louva-a-deus? Táctica da humildade?
Poder-se-ia realmente dizer que sim, vistos o destinatário
dos discursos e a oportunidade da sua prolação, em cortes,
embaixadas paralelas, não chamadas. Em todo o caso,
auto-imagem inferiorizante e, por conseguinte,
politicamente inadequada. A estratégia do louva-a-deus dá
para as necessidade da fome e não para publicitar

348
capacidades de poder. Em política, quem se humilha ou
aceita humilhação dificilmente é exaltado. Por isso,
parece-nos mais correcto deduzir que os mesteirais daqueles
discursos, assim como os seus colegas discursantes, eram
conscientes do seu baixo capital político, face àquele que
detinham os homens-bons, ou burgueses.
Enfim, os poucos textos de que dispomos não permitem
dar uma resposta satisfatória à pergunta «Que pensavam os
mesteirais de si mesmos como grupo sociopolítico?». Mas há
outras fontes e sinais, replicará o leitor. Há. Só que nos
levam para as outras duas perspectivas da análise, a dos
mesteirais vistos pelos burgueses e a dos mesmos vistos por
nós.

Os mesteirais vistos pelos burgueses.


Quem percorre os capítulos gerais dos povos
apresentados nas cortes medievais dá-se facilmente conta de
que o assunto «mesteirais» tem uma trajectória precisa.
Aparece em 1331, ou seja, na primeira assembleia que tais
capítulos produziu, retoma-se em 1389 e segue depois assim:
1391, 1408, 1433, 1439, 1455, 1459, 1468, 1472-1473,
1481-1482 e 1490 (27). Isto mostra que o assunto
verdadeiramente só se torna parlamentar no século XV. Por
outras palavras, pois os mesteirais aparecem sempre
hostilizados, é na centúria de Quatrocentos que eles
preocupam os burgueses. Isso pode significar duas coisas:
que houve modificação das elites concelhias a partir dos
finais do século XIV; ou que por essa mesma altura se
verificou nas cidades e vilas uma afirmação social dos
mecânicos, a qual levasse os clãs das autarquias a
temerem-nos. Provavelmente, as duas coisas ao mesmo tempo.
Que houve uma alteração do perfil socioeconómico das
elites concelhias ressalta da leitura das temáticas
parlamentares. Em 1331, por exemplo, mercadores e
mesteirais são postos lado a lado como categoria de gente
cúpida, prejudicial a todo o reino; e o mesmo se diz das
fangas — odiosas aos concelhos (caps. 18, 47, 48, 56 e 63).
Dinheiro não é riqueza a não ser entesourado, assim como a
prata e o ouro, e bem guardado no País. Negócio de
exportação é actividade de «alguns que não catam outra prol
senão a sua» (cap. 48). Enfim, falam mentalidades rurais,
proprietários de terras, homens que identificam autarquia
com autarcia. Os lavradores são os bons, os outros são
rapinantes. Este modo de ver o mundo e os homens mantém-se
em 1352, continua por 1361 e não dá sinais de mudança senão
em 1389, ano em que se regista, nas Cortes de Lisboa, o
primeiro requerimento dos concelhos decididamente favorável
aos mercadores: que o rei tenha por seguros todos os
mercadores que vierem ao reino a comprar e vender, mesmo os
naturais de terras inimigas de Portugal (cap. 43).
Sintomática a argumentação: que o monarca bem sabe «que
este regno se mantém per mercadorias que vêm de fora dos
regnos» de que, ele, monarca, recebe «grande serviço e o
[...] povo muito abastamento» (cap. 43). A partir daqui,
este é o tom; tom que irá sempre em crescendo a favor da
mercancia e dos homens que a asseguram, contrariamente
àquele que se usa para com os mesteirais. É evidente que os
líderes das cortes são outros, diferentes dos de 1331, e
que, por corolário, as elites concelhias, ao menos as das
cidades e grandes vilas, mudaram também e muito, em 50
anos. Mudaram, porque nesse espaço, tanto no País como na
Europa, muito mudou. O comércio tornou-se actividade de
ponta, tanto que foi necessário proibi-lo, nas Cortes de
1371 (Lisboa), ao clero, à nobreza e aos corregedores
(caps. 13 e 44). Por seu turno, Lisboa e Porto afirmam-se
como cidades mercantis, conforme se vê pelas crónicas de
Fernão Lopes, em arrancada que será nítida já ao tempo da
crise dinástica de 1383-1385. O Portugal afonsino e rural
virou para o Portugal marítimo e urbano, comercial e
expansionista, da dinastia de Avis. Como não podia deixar
de ser, as elites municipais, nomeadamente as das cidades e
vilas litorâneas, acompanharam a viragem (J. Mattoso,
1986). Ao mesmo tempo, e por idênticas razões, o trabalho
alterou-se nos centros urbanos. De trabalho ligado à terra
desliza lenta mas imparavelmente para trabalho de mester.
As oficinas e as tendas multiplicam-se, as ruas tomam nomes
de especializações laborais, a paisagem física e humana
distancia-se da ruralidade, as imigrações urbanas
sucedem-se, afligindo os poderes, e uma classe intermédia
ao mercador e ao braceiro ganha força em número e
importância social (28). Isso verifica-se, pelo século XV
adiante, em Lisboa, Évora, Porto, Santarém, Coimbra,
Guarda, Guimarães, Ponte de Lima, Viseu, Tomar, Leiria,
etc. E é sabido que a força dos mesteirais vem já do século
XIV em algumas dessas cidades e vilas. Recorde-se a
revolução de 1383 (M. J. Ferro, 1978; Oliveira Marques,
1987, pp. 115-118).

349
Antagonismos

Os mesteirais aparecem sempre hostilizados nos


discursos concelhios. Hostilização moderada em 1331 e
extremamente agonística em 1481 e 1490. Já tivemos
oportunidade de o mostrar diversas vezes nas páginas que
estão acima. Parece-nos, todavia, que a hostilização
contínua e crescente teve motivos diferentes. No Portugal
afonsino e rural os mesteirais foram malquistes pela sua
cupidez material, por serem raça urbana porventura conotada
com os mouros e judeus, por seduzirem e distraírem da terra
lavradores e serviçais, por subverterem a honestidade dos
preços das coisas e da mão-de-obra, por gerarem
instabilidade social nas cidades e nas vilas. Depois, já no
Portugal de Avis urbano, eles, mesteirais — protagonistas
primigénios, embora, da invenção da dinastia — passam a ser
vistos pelos poderes municipais instalados como rivais
presumíveis, como classe donde podem surgir a cada momento
caudilhos e novos ricos, isto é, homens dotados de todas as
capacidades para destronar as oligarquias — que agora são,
nas grandes cidades, constituídas por mercadores,
cambistas, altos funcionários civis, homens de negócio,
enfim, filhos e netos de antigos mesteirais. Os clãs
camarários do século XV combatem os mesteirais por medo.
Que não é senão medo de perder o monopólio do poder o
profundo motivo que ditou o capítulo 103 das Cortes de
1481-1482 (Évora-Viana) e o capítulo 12 de 1490 (Évora),
dois exemplares magníficos do ódio burguês contra os
mesteirais (Armindo de Sousa, 1989 b). Ódio filho do medo.
Da horda que renega a origem. E, paradoxalmente, se reclama
de linhagem — essa que, afinal, estigmatiza. Já em 1433 os
mesteirais de Lisboa, em representação sua a D. Duarte,
buliam nessa ferida burguesa: que aqueles que governavam a
cidade e se lhes opunham a eles, mesteirais, não eram senão
netos de mesteirais, homens renegados das suas origens,
indignos de seus avós (M. T. C. Rodrigues, 1968, p. 11).
De modo que, dois períodos, diferentes os actores, mas
sempre a mesma atitude face aos mesteirais: hostilidade
(29). Hostilidade dos «homens-bons». É o que se tira dos
discursos levados às cortes e «pronunciados» em nome
colectivo. Em nome da classe burguesa.
É claro que a hostilidade dos burgueses para com os
mesteirais teve da parte destes sentimentos correlativos.
Vimo-lo atrás, nos parcos textos da sua autoria. E tivemos
oportunidade de o verificar, no Porto, em meados do século
XV, quando os da câmara andam em conflito com o bispo e têm
de lutar sozinhos. Os mesteirais, como, aliás, a grande
massa dos tripeiros, puseram-se à margem do conflito, não
valendo de nada determinações municipais tendentes a
mobilizá-los (Armindo de Sousa, 1983). Não são conhecidas,
no Porto nem noutro sítio, movimentações espontâneas dos
dos mesteres em prol de burgueses. Em prol do reino e das
cidades ou vilas, sim. Quando entendem que a «república» e
os interesses deles estão em causa — como foi o caso das
revoltas e uniões em tempo de D. Fernando, durante a
regência de Leonor Teles e do Mestre de Avis e, em 1439,
nas acções de apoio ao infante D. Pedro contra a viúva de
D. Duarte e asseclas; e ainda, por exemplo, agora em
dimensão mais restrita, no Porto, quando foi preciso
expulsar fidalgos e queimar-lhes casas (30). Mas não se
precipitem conclusões: a história dos conflitos urbanos na
Idade Média portuguesa, designadamente os conflitos no
interior do terceiro estado, está por escrever. E
recorde-se: o perfil de burguês, ou «homem-bom», em termos
socioprofissionais, não foi em toda a parte o mesmo. Em
Braga, já o dissemos, a elite municipal é integrada por
homens que em Lisboa ou no Porto não passariam de
mesteirais. Razão pela qual aí os dos mesteres não são
hostilizados; até são protegidos (Cortes de 1446, cap. 5
dos especiais). Nada nos impede de pensar que modelos como
o de Braga tenham sido muito mais frequentes, em Trezentos
e Quatrocentos, do que modelos iguais aos de Lisboa ou do
Porto. A classe burguesa, insista-se, define-se segundo
critérios mais sociopolíticos do que socioprofissionais.
Capital económico, mais capital político, mais capital
social, mais capital simbólico — a isto regressamos.
Fixemo-lo.
Fixemo-lo para podermos responder à questão que nos
ocupa: os mesteirais foram ou não vistos como classe social
pelos burgueses?

A visão burguesa dos mesteirais

É evidente que a questão centra-se, em última análise,


na existência ou não de uma hetero-imagem burguesa do
mesteiral, mesteiral-grupo. Questão, dir-se-á, académica:
pois não é verdade que à história interessam as realidades
e não as imagens que delas se teve? Não; não é verdade. Nem

350
à história económica — que é porventura a mais positiva das
especializações historiográficas (Duby, 1973). História é
sociologia e antropologia no passado, inquérito e
compreensão das inter-relações situadas de pessoas e de
grupos. Realidades, sim; mas realidades comportamentais,
filtradas e dirigidas por representações, imagens — imagens
dos agentes e dos relatores dos actos. Porque tudo radica
nisto: não modifica o passado a nossa opinião acerca dele;
mas com certeza teve efeito a opinião das pessoas que o
viveram e fizeram. Então, a nossa opinião só é real ou
adequada — e, logo, compreensiva — se for capaz de ter em
conta as imagens dos coevos. Vindo ao caso: a nossa imagem
de mesteiral será historicamente real se, construída embora
e decerto por conceitos científicos de hoje, se ativer aos
factos, que são teias de relações apreendidas na sua
epocalidade, inconscientemente por norma. Poderá haver
muitas formas a priori da razão historial; mas por muitas
que elas sejam, alma-transubjectividade está lá. É por isso
que prestamos muita atenção às auto e hetero-imagens
epocais.
Para os burgueses os mesteirais foram classe. Pelo
menos na segunda metade do século XV. Uma ciasse in
pectore, odiada porque temida, fantasma. Um fantasma real
como os papões das crianças — definido, actuante, motor de
comportamentos. Desde logo, comportamentos verbais.
Pelos comportamentos verbais, exarados em discursos de
cortes, os burgueses imaginam o grupo dos dos mesteres como
uma classe de pessoas heterogéneas do ponto de vista
profissional, mas homogéneas socioculturalmente. Grupo
urbano, aberto, produtor de artefactos e serviços e
fundamental alimentador em gente e bens dos encargos
municipais — tanto os encargos que os municípios impunham
para seu proveito como aqueles que se destinavam ao rei e
ao reino mediante a administração, vigilância e
responsabilidade deles, municípios. Encargos militares,
policiais, judiciários e fiscais. Efectivamente, era sobre
esse grupo intermédio, situado societariamente entre os
homens-bons e os serviçais, que recaía o peso das talhas,
fintas, roídas, velas, bestaria do conto, aposentadorias,
transporte de presos e dinheiros, ida aos enforcamentos «ou
outra qualquer justiça», tutorias e curadorias de órfãos,
etc. (31). Era esta classe que suportava literalmente,
dentro das cidades e vilas, o lado mau da autonomia
municipal. Os burgueses eximiam-se quanto podiam — obtendo
cartas de privilégios, fazendo-se vassalos do rei,
acostando-se a fidalgos e prelados ou simplesmente
controlando as câmaras; e os menores, serviçais e
braseiros, devido à sua insuficiência económica, eram gente
de pouco préstimo. De modo que ficavam os mesteirais e os
pequenos lavradores de cingel. Que urgia manter disponíveis
e obrigados, a fim de que a máquina municipal funcionasse.
É dentro deste contexto que devem interpretar-se as
reclamações burguesas de cortes contra a inflação de
privilégios e inscrições dados pelos reis e pelos senhores
aos mesteirais e «meãos», assim como as suas críticas
constantes à outorga do título de vassalos do rei a homens
dessa classe social (32). Alegavam que os privilégios e
títulos se aviltavam nessa gente, no que tinham razão
decerto, assueta vilescunt — mormente tratando-se de
capital simbólico. Mas, para lá disso, pensavam no seu
interesse e proveito, na preservação da classe mesteiral
como reserva disponível de pagantes e serventes.
Classe «fiscal» a preservar; grupo bem definido. Logo
sociologicamente qualificado. «Classe social» para os
burgueses. De quem eles, burgueses, falam sempre
depreciativamente desde 1331, ano do seu primeiro discurso
colectivo e «nacional» pronunciado em cortes (cap. 63 dos
gerais do povo). Comportamento verbal depreciativo sempre.
Mas revelador de violência só depois de 1433. É a partir
deste ano que os burgueses denotam ver nos mesteirais o seu
inimicus homo. Após isso, sempre em crescendo, atingem o
apogeu da fúria — fúria-medo, conforme já dissemos — em
1481-1482 e 1490. Quem se der ao cuidado de ler as duas
dúzias de capítulos antimesteirais produzidos em 1433
(caps. 21, 34, 90, 142 e 151), 1439 (caps. 8 e 13), 1455
(cap. 6), 1459 (cap. 6), 1468 (cap. 4), 1472-1473 (cap. 5),
1481-1482 (caps. 68, 78, 99, 100, 103, 104, 107, 131 e 138)
e 1490 (caps. 8, 12, 15 e 25), não ficará com mais dúvidas:
para os burgueses o grupo urbano dos dos mesteres foi mesmo
uma classe social — em ascensão económica, social e
política. Odiada e temida, porque vizinha e rival. A
hetero-imagem burguesa de mesteiral, carregada de
estereótipos e, por isso, fortemente interiorizada,
colhe-se desses capítulos de cortes. Discursos da classe
burguesa reunida em assembleia nacional. Por esta razão,
tenha-se o cuidado de ser prudente em concluir. É que nada
impede de pensar que aquela hetero-imagem se calhar só foi
pertença dos homens-bons dos concelhos que se sentavam no
primeiro banco do Parlamento — esses que monopolizavam as
falas — nomeadamente Lisboa, Porto, Évora, Coimbra e
Santarém.

351
Em conclusão: para os burgueses «homens-bons», ao menos
os das cidades e vilas mercantis, os mesteirais foram
ciasse social. Porque, segundo eles, detinham capital
económico e capital social e lutavam por obter capital
político. Atrás viria o simbólico. Ora, é precisamente para
evitar que isso suceda — que o capital político deles
cresça e se institucionalize e que o capital simbólico se
distinga e enalteça — que os burgueses multiplicam os
discursos junto do rei depois da morte de D. João I. Isto
é, depois da morte desse monarca que, grato aos mesteirais
de Lisboa, havia prometido sob juramento protegê-los. O que
fez (Cortes de 1389, cap. 2; de 1391, cap. 2).

Classificações

Os mesteirais vistos por nós.


Vistos por nós, os mesteirais afiguram-se um grupo
muito heterogéneo e difuso. Não é fácil arranjar um
critério classificativo suficientemente claro e distinto
que os arrume, independentemente das circunstâncias
geo-económicas e jurídicas dos espaços em que viviam. Até
mesmo das circunstâncias étnico-religiosas. Há, com efeito,
mesteirais cristãos, mouros e judeus; independentes ou
adstritos ao rei, aos senhores, aos prelados, a fidalgos,
aos municípios, às igrejas e aos mosteiros; ligados à
indústria, ao comércio e aos transportes; arraigados e
itinerantes; nacionais e estrangeiros. Até mesmo clérigos,
vassalos e nobres.
Quando ouvimos falar os burgueses, conforme escutámos
atrás, a classificação parece fácil: são mesteirais os
moradores do terceiro estado das cidades e vilas que não
são «homens-bons» ou «cidadãos honrados» nem lavradores nem
serviçais. O critério é económico-laboral e político. Mas
essa classificação deduz-se de capítulos de cortes, ou
seja, de textos proferidos em situação de inculcação
estatutária, actos de linguagem de denúncia e
reivindicação, discursos de luta e não de serena exposição.
Essa arrumação dos mesteirais é, por conseguinte e
conforme, aliás, já mostrámos, um efeito da competência
classificatória, espécie de capital político,
auto-atribuída pelos burgueses; dão-se os mesteirais não em
si mesmos nem para si mesmos, mas para o «nós» dos
homens-bons. Comparados com esses discursos de cortes, os
outros textos de que dispomos, mesmo os de origem
municipal, primam pela confusão.
Assim, por exemplo, «os dos mesteres» que em 1475 foram
no Porto «ordenados pera procuradores pera virem à rolaçom»
integram cidadãos burgueses, como os mercadores Afonso de
Coiros e Pedro de Leça, ao lado de ourives, marinheiros,
cordoeiros, sapateiros, alfaiates, tanoeiros, barbeiros,
bainheiros, ferreiros, picheleiros e albardeiros — tal e
qual, por essa ordem. (Vereações, livro 4, f. 14). Quer
dizer, profissionais da indústria e de serviços,
independentemente dos seus status político-administrativos.
Entretanto, nessa mesma altura e no Porto também, em texto
do mesmo escrivão, afirma-se taxativamente a diferença
entre burgueses e mesteirais: «Ordenarem de se escolherem
certos homens-bons cidadãos e outros dos mesteres.» (Ibid.,
f. II v.). Este, de resto, é o estilo das «actas de
vereações» portuenses: distinguir as duas categorias, mesmo
que na segunda fiquem arrumados mesteirais socialmente
influentes, ricos e até «vizinhos» da cidade (Vereações, 1.
3, f. 28). Logo, capital económico e capital social não
foram base de distinção. Nem mesmo capital incorporado,
simbólico. Se não, veja-se: houve em 1472 muitos amieiros,
barbeiros e outros mesteirais de profissões atinentes a
armas — em Lisboa, todos — que estavam isentos de sisa «Por
terem liberdade de fidalgos e vassalos e homens de armas»
(Cortes de 1472-1473, cap. 105); em 1442 afirma-se que
ourives é mester, se bem que nobre e honroso (cap. 2); as
Ordenações afonsinas, por seu turno, esclarecem que a
honradez e a não honradez existem em alfaiates, candeeiros,
etc, sendo discriminadas e medidas conforme a riqueza de
cada um (livro 5, tít. 20 § 14); enfim, muitos homens dos
mais humildes ofícios, ofícios vis se dizia, conseguiam
adquirir o título prestigiado de vassalos d’el-rei.
Para aumentar a confusão, saiba-se que em 1452 uma
carta régia exarava: «[...] muitos lavradores, peões,
besteiros e oficiais [subentenda-se mecânicos] e gente
outra miúda que vassalos nem escudeiros não são (33)».
Leia-se: os mesteirais eram todos gente miúda, a menos que
houvessem adquirido títulos nobilitantes. E pois que aquela
carta diz respeito a homens que foram vencidos na Batalha
de Alfarrobeira de 1449, é fácil saber as profissões:
alfaiates, almocreves, barbeiros, carpinteiros, cirieiros,

352
cordoeiros. cozinheiros, banqueiros, ferradores, ferreiros,
lavradores, magarefes, mercadores, ourives, padeiros,
pasteleiros, pescadores, sapateiros, seleiros, soqueiros,
tanoeiros e tosquiadores (34). Tirando os lavradores, os
mercadores e os pescadores, assim como, provavelmente, os
cozinheiros e os tosquiadores, todos são mesteirais. E,
todavia, há aí ourives e barbeiros, profissões que vimos
serem qualificadas de nobres e honrosas.
Confusão há ainda na classificação hierárquica dos
grupos sociais da sociedade global proposta por D. Duarte
no capítulo IV do seu Leal conselheiro. Cinco «estados»,
diz ele: oradores, defensores, lavradores e pescadores,
oficiais e, quinto, homens de artes aprovadas e de
mesteres. Os dois primeiros grupos são ordens; os três
restantes são estados-ordens e estados-ofícios/profissões.
Só o último grupo é especificamente urbano: «[...] dos que
usam dalgumas artes aprovadas e mesteres, como físicos,
cirurgiões, mareantes, tangedores, armeiros, ourives, e
assim dos outros que são por tantas maneiras que não se
poderiam brevemente recontar» (Leal conselheiro, pp.
42-44). Faltam os assoldadados rurais e os braceiros e
serviçais urbanos; além de que fica sem se saber onde
arrumar os regatões, os mercadores e os cambistas. Apesar,
porém, de todas as incoerências classificativas e da falta
de exaustividade dos classificandos, uma coisa parece
certa: os mesteirais distinguem-se de lavradores e
pescadores por serem gente que não trabalha na terra nem no
mar; e distinguem-se também dos profissionais de
actividades liberais, como os «técnicos» da saúde, do
direito (advogados), do ensino privado ou municipal
(gramáticos), das artes cénicas e musicais e, enfim, dos
pilotos, arrais, mestres e outros profissionais da marinha
mercante. Resulta, por exclusão, que os mesteirais são
gente «mecânica», homens que transformam ma-térias-primas
em artefactos e os vendem — na oficina, em tendas ou nas
feiras. E, então, os barbeiros? Depende: se produzem os
instrumentos do seu ofício são mesteirais, como os
armeiros, conforme vimos atrás relativamente aos de Lisboa
de 1472; se apenas se dedicam à arte de tonsurar e fazer
cirurgia — como é normal nos barbeiros das sociedades
arcaicas — serão homens das tais «artes aprovadas» de que
fala D. Duarte. É óbvio que gostariam de ser classificados
numa categoria ou noutra, sendo as duas, conforme as
vantagens socioeconómicas e jurídicas que lhes fossem
proporcionadas nos tempos e lugares. Quanto aos almocreves
e recoveiros, a classificação é mais complicada. De resto,
a profissão também o é. Podem ser alugadores de bestas à
jorna, bestas que eles acompanham e tangem; podem ser
arrematadores de transportes; e podem ser regatões
ambulantes, como o Malhadinhas de Aquilino Ribeiro. São
três modalidades distintas. É claro que, atentas as
prerrogativas forenses, militares e fiscais que, em geral,
os almocreves, por assim se chamarem, obtinham — adiamento
de citações judiciárias, facilidades nos alardos, licença
de uso e porte de armas, fácil obtenção do estatuto de
«vizinhos», acesso à criação e comércio de gado muar —,
atentas estas prerrogativas, é legítimo supor que todo o
que vivesse do rendimento de transportes em bestas se
dissesse almocreve. Almocreve é um mester no sentido de
ofício ou modo de vida e um mester que tem sempre por
referência uma cidade ou uma vila enquanto origem de
abastecimento e sítio de distribuição. Chamar-lhe mesteiral
deverá ter sucedido por razão analógica, tal como atribuir
a mesma classificação aos mercantes.
O que se disse de barbeiros e almocreves valerá com
certeza para outros profissionais. Até porque na Idade
Média, tal como ainda hoje sucede em vilas e cidades
rurais, muitos homens houveram de desempenhar, sem dúvida,
mais que uma profissão ao mesmo tempo. O que torna
extremamente difícil falar de classes sociais tendo por
base um critério económico-laboral e redes socio-afectivas
profissionalmente conotadas. Veja-se a fluidez da
consciência de classe dos operários de Entre Douro e Minho
neste século XX — pois se eles nunca deixaram de ser
lavradores e até proprietários de prédios rústicos...

Interpretação histórica

E com isto voltamos ao nosso ponto de interrogação:


foram ou não os mesteirais uma classe social?
A nossa opinião é assim:
a) Em termos nacionais, e até regionais, nada prova que
o tenham sido realmente. Consideran-do-os, em sintonia com
D. Duarte, como grupo socioeconómico urbano
prioritariamente adstrito ao sector secundário da economia,

353
vemo-los demasiadamente circunscritos aos seus estreitos
espaços geográficos, neles se definindo e em função deles
actuando. Mesmo em 1383-1385 e 1439, quando assumiram
atitudes revolucionárias de impacte nacional, convergentes
e consonantes. Como assim, também na onda de contestação
antiburguesa verificada, por exemplo, em 1459 (35).
Dir-se-á: então, se houve convergência e consonância de
atitudes e comportamentos e visto que os sujeitos eram
todos mesteirais, estamos perante uma classe real, tanto
mais que até se revela mobilizada. Não é líquido. E não é
líquido porque o pressuposto está viciado. É que de todas
essas vezes, 1383-1385, 1439 e 1459, nem só mesteirais
convergiram e foram consonantes. Também legistas, clérigos,
fidalgos, burgueses e lavradores. De modo que não se pode
tirar desses casos, aparentemente conclusivos, fundamentos
sequer indiciários da existência in re de uma classe
trabalhadora urbana dita «de mesteirais» (36). Aliás,
faltaria ainda averiguar a homogeneidade a nível nacional
do quantum de capital material e incorporado dessa
hipotética classe trabalhadora enquanto classe. E o que é
que se veria? Assimetrias. Extremas assimetrias. Norte,
Centro e Sul; Litoral, Interior; regiões de grandes vias e
sertões. Mas isso também sucedeu com a classe burguesa,
objectar-se-á. Não. Na classe burguesa o capital económico
foi, de facto, assimétrico, mas o capital incorporado —
social, político e simbólico — não foi. E, depois, a classe
burguesa teve modos de se relacionar nacionalmente — modos
institucionais, recorde-se — sorte que não calhou aos
mesteirais. Os mesteirais nunca puderam, a nível nacional,
reconhecer-se como «nós». Ao contrário dos burgueses. Por
isso, fale-se deles como classe, Mas avise-se que é «uma
classe no papel».
b) E agora os mesteirais no âmbito das suas cidades e
vilas. Nas suas cidades e vilas perspectivados em relação
com os respectivos «homens-bons», como não podia deixar de
ser. Posta a questão nestes termos, que são os termos das
socialidades urbanas vividas concretamente, seríamos
levados a responder com toda a espontaneidade: os
mesteirais foram e não foram classe, depende. Depende dos
perfis socioeconómicos e político-demográficos das diversas
vilas e cidades. Em Lisboa e no Porto, por exemplo, a
afirmativa não repugnaria, como não repugnaria a inversa
aplicada a Braga, Vila Real, Monsanto, Pombal ou Beja. Tais
respostas fluiriam do que dissemos atrás sobre a
auto-imagem burguesa de mesteiral e ainda do conhecimento
das lutas perseguidas pelos dos mesteres no sentido de
lucrarem presença e voz nas vereações municipais, lutas
coroadas de êxito em Lisboa (1384), Santarém (1436), Tavira
(1446), Évora (1459) e Porto (1475) (M. T. C. Rodrigues,
1968, p. 64). Não repugnaria, em princípio, que nestas
localidades os mesteirais, grupo obviamente mobilizado,
tenham constituído no século XV uma classe social análoga e
paralela à dos respectivos burgueses. Não repugnaria, mas
não é líquido. É que os mesteirais não constituíram, no
País e em cada localidade, um agrupamento homogéneo em
termos de capital material e de capital incorporado. Houve
enormes diferenças de profissão para profissão, de oficina
para oficina, de trabalhador para trabalhador dentro de
cada oficina ou tenda. De um alfaiate ou um pedreiro a um
correeiro ia uma grande distância e maior ainda iria de um
mestre a um assalariado e deste a um aprendiz (37). Ora,
tais desigualdades, económicas, sociais e estatutárias,
devem ter actuado no seio do grupo como factores
impeditivos da formação de uma homogeneidade de ethos e
habitus entre eles, mesteirais, ethos e habitus comuns,
específicos e distintivos — condição necessária para que
grupos de natureza socioprofissional sejam classe.
Recorde-se que esta condição esteve presente nos burgueses,
apesar, todavia, das diferenças económicas relativas de
lugar para lugar e região para região. Pomos, por
conseguinte, sérias dúvidas à ideia de uma classe social de
mesteirais nos séculos xiv e XV.
E a opinião dos «homens-bons» contemporâneos? —
perguntar-se-á. A tal auto-imagem burguesa? Cremos que essa
auto-imagem foi isso mesmo, uma imagem, uma projecção. Os
burgueses formaram-na por necessidade de defesa e de
identidade. Confundiram elites de mesteirais com mesteirais
simplesmente. Por táctica ou efeito de metonímia. Porque
era realmente a essas elites e só a elas que os burgueses
temiam. E isso por razões que têm mais a ver com a
«dinâmica dos grupos primários» do que com a teoria
sociológica das classes, sem embargo de o imaginário
patente deles, burgueses, apontar para uma visão dos
mesteirais como se de verdadeira classe se tratasse. Mas
classe real, não. Não, em última análise, que é nossa.
Posto que sim in pectore, imaginada, proferida.
354
Conclusão

Após este longo excurso sobre a «distribuição dos


actores» da história portuguesa dos séculos XIV e XV em
ordens, estados e classes, é tempo de concluir. Desejou-se
clarificar e distinguir conceitos classificatórios da
socialidade da época, por forma a congraçar o rigor
terminológico com a pertinência histórica. Por isso
demorámos algum tempo.
A nossa conclusão, formulada globalmente, não foge
muito do que se sabe: a sociedade baixo-medieval portuguesa
foi uma sociedade de estados, hierarquizada;
estados-estatutos, estados-profissões, estados-ordens e
estados-riqueza. Tudo estados: e, então, nada de novo. Mas
estados-pluralidade-de-sentidos — e aqui busca razão o
nosso modo de caracterizar a repartição grupai da sociedade
em estudo. Queremos que o critério seja de plurivisão e não
reducionista: militar, económico, político, fiscal,
jurídico ou administrativo; não um acima dos outros, muito
menos diversos confusos, mas todos ao mesmo tempo. Ou, por
outras palavras, um critério que compendie e resuma
parâmetros classificativos epocais. Privilegiado de
nascimento, privilegiado de função, privilegiado de
outorgamento e não privilegiado — critério sociojurídico
epocal — é reducionismo que não serve. O mesmo se diga, a
respeito da classificação do estamento popular, das
categorias «cavaleiro», «peão» e «assalariado» — porque
agora hegemonizou-se o critério militar, pressupondo-o de
económico. Ou ainda, para os meios rurais, «jugadeiro»,
«não jugadeiro» e «cabaneiro» — porque se mistura o
critério fiscal com o dos meios de produção e o do regime
de exploração fundiária. Com efeito...
Com efeito, é muito difícil classificar de modo
exaustivo e coerente os actores de sociedades sujeitas a
transformações qualitativas aceleradas, porque essas
transformações, conforme sucedeu no século XV português, se
revelam, precisamente por serem qualitativas, ao nível dos
valores que distinguem e arrumam as pessoas e os grupos.
Efectivamente, assiste-se, já no século XIV, mas mais
visivelmente no XV, à insinuação do valor riqueza-móvel,
dinheiro, enquanto motivo de distinção estatutária. Ele
assume cada vez mais o papel de instrumento dissolutivo das
barreiras sociais centradas no nascimento. O proveito, o
lucro, o negócio ainda se opõem à honra e à virtude, é das
crónicas (38). Mas só no papel. Na prática, a onda do
quantitativo, apelo do século, a todos atrai: reis,
fidalgos, clérigos, burgueses e mesteirais. Todos apostam
no monetário para ser e para subir; mas todos, pensando-se,
o sentenciam de aviltante. Mentes cindidas, atitudes
ambivalentes. Contradição.
Contradição particularmente flagrante nas mentalidades
burguesas. É ver: eles, os burgueses, elites do povo, que o
são pelo dinheiro, eles que reivindicam ao clero e à
nobreza a propriedade exclusiva do mundo dos negócios como
coisa do povo, recriminam os mesteirais, tão povo como
eles, de quererem o mesmo e, ao passo que o fazem, forcejam
por entrar no escalão da nobreza ou dele aproximar-se,
tornando-se cavaleiros, escudeiros e vassalos do rei; e,
ainda do mesmo passo, vituperam os mesteirais que tal
estatuto alcançam ou desejam alcançar (Cortes de 1481-1482,
cap. 104). E que dizer dos fidalgos de benfeitoria, dos de
toga e dos usurpadores de fidalguia, todos eles povo que
enriqueceu, que na riqueza se esteia e que dela cora e se
purga? «Gente limpa», diziam-se. Hipocrisia? Cinismo?
Perversão do juízo? Contradição simplesmente. Contradição
de uma socialidade que muda e não sabe ainda assimilar as
diferenças. Vinho novo em odres velhos ou, então, novos
fundamentos de um prestígio que ainda não inventou os
símbolos apropriados.
Nos séculos XIV e XV, mais neste do que naquele, a
sociedade portuguesa apresenta-se à razão sociológica como
uma confusão. Rigorosamente, é ordens, estados e classes.
Mais correctamente, é estados-ordens,
estados-ofícios/profissões e uma classe, incipiente mas
nítida, a dos burgueses. Para se pôr uma arrumação nisto,
comecemos por distinguir meios urbanos de meios rurais. E
contemplar em cada um a tal plurivisão de critérios de que
falámos acima. Será assim: a sociedade rural dos séculos
XIV e XV portugueses é uma sociedade conservadora, ainda
tripartida, arcaica, de ordens: clero, nobreza, lavradores
e pescadores. Ao nível do clero e da nobreza não parece
haver dúvidas. O clero continua a ser a ordem dos oratores,
dos que rezam e dos que sabem falar, interpretar e dirigir
— padres-bruxos-xamãs —, sejam eles pobres curas ou monges
aristocratas. A nobreza rural, abastada ou pelintra, vive a
correnteza dos dias na soberba do seu sangue, que, em nome
de prosápias mais ou menos antigas e históricas, exige
preitos e serviços dos lavradores seus vassalos. O povo,
lavrador e pescador, trabalha sem cuidar de especialização,
nem de golpes de fortuna. Mantém para se manter, sol a sol,

355
vidas que em viver se bastam, suor bíblico. Ambições? Sim.
Para os filhos. Nas cidades ou nos paços. Uma ambição que
se vai legando geração a geração nos séculos XIV e XV (39).
E, entretanto, como horizonte imediato e sempre diferido, a
oração que Nosso Senhor ensinou — «o pão nosso de cada dia
nos dai hoje». Revoluções, sempre. Aquelas que o ano impõe
e os provérbios lembram: as dos trabalhos e dos dias;
Primavera, Verão, Outono e Inverno — atentamente,
submissamente. Como desde Hesíodo, há mais de 20 séculos.
Nas cidades foi diferente. Em todas houve clero,
regular e secular, rivalizante, entendido como ordem. Nas
grandes vilas foi o mesmo. Porque os clérigos acudiam aos
centros urbanos — nomeadamente os mendicantes, urbanos por
vocação e modo de subsistência. E, porque aí acudiam, é
normal supor que se deixaram contaminar pelos valores do
meio, os sociais e económicos. Clérigos administradores,
comerciantes, regatões, ensinantes de letras, ganhões de
trintários, misseiros, benzedores e charlatães — de tudo
houve. Beneficiados e não beneficiados, vagabundos e
ladrões — houve de tudo. Desde os simples tonsurados até
aos arcebispos e bispos das urbes suas sedes ou vilas suas
estâncias (40). Uns eram pobretanas e néscios, casados até
e proletários, outros senhores poderosíssimos, com lugar
cativo nas cortes e no conselho do rei. Enfim, uma chusma
heteróclita de machos, sumamente hierarquizados, díssonos
no prestígio, riqueza, influência e modos de viver e
parecer, mas todos irmanados nessa coisa extremamente
importante que era a da transnacionalidade jurídica e,
logo, a do privilégio forense e fiscal. Estado acima do
Estado e dentro dele. Busílis do cesarismo. Dir-se-ia que
este clero urbano estava muito longe de ser a ordem pregada
pelos bispos carolíngios e pelos abades de Cluny. E é
verdade. Mas mesmo assim desconjuntado, derruído das suas
funções ideais, era ordem, a restante. A possível. E todos
como tal a viam.
Da nobreza, mutatis mutandis, pode dizer-se a mesma
coisa: ordem. Ordem dos defensores. Análoga hierarquia e
análogas dissimetrias internas. Mesmo, perversas funções;
essas que uma economia pré-capitalista, urbana, vai
propondo e instalando, apesar dos apelos à honra proferidos
pelos burgueses e dos recados no mesmo sentido feitos por
reis e moralistas. Mas que importava a distracção das
funções? Não estava ali, desde Ceuta, o assíduo Marrocos? O
Marrocos de todas as justificações nobiliárquicas?
Na grande categoria do povo é que se verificaram as
maiores e mais profundas transformações. Nos séculos XIV e
XV o povo urbano não é mais uma ordem. É um aglomerado de
estados-ofícios/profissões que critérios de
riqueza-prestígio-poder, formalmente idênticos mas
objectivamente diferentes conforme os lugares, dividem em
grupos mais ou menos demarcados: os «homens-bons», ou
burgueses — uma classe; os mesteirais — um estado
socioprofissional; e os braceiros e serviçais — ralé
sociologicamente indefinível. Esta enorme massa de
moradores urbanos só teoricamente revela unidade — quando
contraposta ao clero e à nobreza. O que acontece nos
dispositivos jurídico-administrativos e nos rituais, como o
das procissões do Corpus Christi, rituais tipicamente
urbanos e, pour cause, rememorativos da ordem. Na prática,
ou seja, no quotidiano vivido, impera a indefinição dos
limites, com clérigos e nobres abaixo de burgueses e
mesteirais a confundir-se com todos — conforme já tivemos
por diversas vezes oportunidade de mencionar. Só estudos
monográficos de cidades e vilas, minuciosos a respeito das
suas socialidades, poderão revelar-nos com pormenor os
quadros reais relativos; e daí, por ingerência, as
soluções-tipo verificadas no País inteiro ao longo do
período do nosso estudo. Até lá não nos resta senão
contentarmo-nos com panoramas gerais. Como o que acabámos
de esboçar.

As direcções e os sentidos da acção

Nas páginas anteriores procurámos discernir os actores


das realizações e realidades sociais portuguesas dos
séculos XIV e XV. Agora tentaremos vislumbrar direcções e
sentidos de acção, ou, mais concretamente, responder a esta
pergunta: que socialidade, de consenso ou de conflito? De
integração ou de luta?
É óbvio que esta questão liga-se estreitamente ao tema
do ordenamento social global, pelo que não será de
estranhar que regressemos, aqui e além, a ideias e dados já
vistos. Não se estranhe também que perspectivemos o social

356
por um ângulo estreito, um ângulo tanto quanto possível
demarcado do especificamente político, económico,
religioso, militar e fiscal. Procuraremos centrar-nos nos
modos de convivialidade inter e intragrupos.
O tema da socialidade baixo-medieval portuguesa tem
merecido a atenção dos historiadores ininterruptamente
desde há mais de um século. Mas não há ainda obra alguma de
síntese exclusivamente dedicada à perspectiva que nos
interessa, a das relações sociais encaradas na dupla
vertente consensualismo-conflitualidade (41). Vertente que,
atentamente estudada, permitirá formar ideias sobre os
modos e vias de eclosão e fortalecimento da consciência
colectiva da nacionalidade e patriotismo. Da identidade,
apesar das divergências e oposições. Já se vê que, à falta
de estudos sistemáticos e minuciosos, não podemos ir muito
longe neste ensaio. Lembre-se, por exemplo, que as fontes
mais fecundas para esta investigação, os capítulos
especiais apresentados em cortes e fora delas, nem sequer
foram ainda publicadas em quantidade minimamente prestável.
Elas possibilitarão traçar, analisadas no seu conjunto e
comparativamente, as isobáricas nacionais dos consensos e
das tensões. Entretanto, avancemos com o que há.
Nomeadamente com os capítulos gerais de cortes, que
conhecemos na íntegra, se bem que inéditos na sua
esmagadora maioria.
Portanto, solidariedades e conflitos nos séculos XIV e
XV. Inter e intragrupais, dissemos. Por conseguinte,
revistem-se os grupos, esses que encontrámos ao longo do
subcapítulo anterior.

Eclesiásticos

Como se viu, os eclesiásticos constituíram uma ordem


social, a dos «oradores». Uma ordem já desvirtuada, é
certo, da sua primordial função, pois contaminada pela
apropriação de funções nobiliárquicas e plebeias; mas,
apesar de tudo, uma ordem. Hierarquizada, antes de mais. E
hierarquizada plurivocamente: por efeito de sagração, de
dignidade, de jurisdição e de observância religiosa. Tudo
interpenetrado, formando uma rede extremamente complicada e
suscitando problemas que extravasavam para o mundo civil,
contínua e incomodamente. Os oficiais régios e concelhios
bem o sabiam.

Configuração social

Veja-se o quadro na página seguinte.


E explique-se.
Na primeira coluna pusemos categorias de clérigos,
quatro ao todo. À categoria A corresponde o alto clero, com
os cardeais à frente e os priores em último lugar. No
período do nosso estudo houve cinco cardeais portugueses:
D. João Afonso de Azambuja (nomeado em 1411), D. Pedro da
Fonseca (1412), D. Antão Martins de Chaves (1439), D. Jaime
de Portugal (1456) e D. Jorge da Costa (1476) (F. de
Almeida, 1967, vol. I, pp. 484-487). À excepção do último,
todos eles exerceram o seu prestígio e dignidade no
estrangeiro. Segundo os povos, Cortes de 1472-1473, a
grande ambição dos bispos e arcebispos era serem cardeais,
«haver aquele capelo de vento e de fumo de estado que às
suas almas pouco aproveita nem a vossos reinos [falam ao
rei] trazerá virtude; [antes] faz gastar muito ouro» (Cap.
61). E apontam nomes de prelados que arrecadaram ou
arrecadavam tesouros para «comprar» o tal capelo, tudo em
ouro e prata exportados indevidamente para Roma: D.
Fernando da Guerra, arcebispo de Braga; D. Luís Coutinho,
arcebispo de Lisboa; D. Álvaro Afonso, bispo de Évora —
estes três falecidos já sem terem obtido o cardinalato;
mais D. Jorge da Costa, arcebispo de Lisboa; D. João
Galvão, bispo de Coimbra; e D. Rodrigo de Noronha, bispo de
Lamego — que «tesouro fazem pêra este capelo». Enfim, a
ambição do mais alto clero, grupo transnacional, apontava
para Roma como meta sublime da carreira, ao passo que o
sentir do povo o estranhava. O estranhava por razões
nacionalistas, económico-financeiras, mas não só;
«Pedem-vos, senhor, vossos povos que não leixeis partir de
vossos regnos prelado algum, posto que vos licença peçam; e
se lhas dadas tendes que lhas revogueis, em especial ao
arcebispo de Lisboa e [ao] bispo de Coimbra, que são
letrados e nobres e os haveis mister pêra vosso conselho»

357
(Cap. 61). Vê-se que o acesso à dignidade cardinalícia
implicava, segundo a opinião geral, o abandono do País. E
efectivamente tal havia sucedido até esse ano em que os
povos falam. Apesar deste capítulo, que D. Afonso V acolheu
muito bem, o arcebispo de Lisboa, D. Jorge da Costa, será
feito cardeal quatro anos mais tarde, em 1476, conforme já
vimos. Mas ficará no reino, sempre na órbita da corte.
Quando houver de ausentar-se, o que vai suceder em 1479,
fá-lo-á por medo ao príncipe D. João.
Na categoria B estão vigários, arcediagos e cónegos.
São clérigos de alto nível sociocultural, muitos deles em
trânsito para o episcopado. Provêm de boas famílias e vivem
de pingues rendas.
Na categoria C amontoa-se o baixo clero e na D aquela
espécie equívoca de tonsurados por oportunismo, minoristas
casados das mais variadas profissões e modos de vida,
juntamente com candidatos às ordens sacras, provisoriamente
sitos nessa categoria transitória. Já voltaremos a eles.
Segunda coluna, «Hierarquia de prestígio». Poderíamos
também designar esta coluna como «escala das precedências».
Um desfile de clérigos, que porventura se realizasse no
século XV, levaria essa ordem colorida e vária. À frente,
os cardeais e na cauda o tonsurado mais bronco, casado,
carniceiro de profissão, ou jogral, ou truão; ou, se
calhasse, um qualquer salteador de estrada que um bispo
ordenou para que escapasse da forca. Bom, não seria bem
assim, porque tais tonsurados, por amor do prestígio,
seriam impedidos de se incorporarem na procissão. Mas que
tinham direito, tinham.
Esse escalonamento de precedências inferimo-lo de
muitas fontes. Desde a Primeira partida de Afonso X até
capítulos de cortes, passando pelos textos sinodais dos
séculos XIV e XV e pelas Ordenações afonsinas (42).
Trata-se, portanto, de um rol hierarquizado que
pacificamente foi aceite na época. Mas um rol mínimo, pois
muitas entradas podiam ser desdobradas; «cónegos», por
exemplo. Vejamos caso a caso.

[Legenda de figura.]
Nota — Este quadro foi inferido das fontes que iremos
citando em notas de pé de página e da História da igreja em
Portugal, de Fortunato de Almeida, nova edição dir. por
Damião Peres, vol. I, Porto, Portucalense Editora, 1967,
pp. 281-315.
358
Como de cardeais já falámos, passemos aos arcebispos e
diga-se que houve dois. O de Braga, também chamado primaz
das Espanhas, em rivalidade com Toledo e exasperação de
Compostela, e o de Lisboa. Se a origem do de Braga se perde
nas brumas do tempo, a do de Lisboa é datada: 10 de
Novembro de 1393; primeiro arcebispo, D. João Anes (F. de
Almeida, 1967, vol. I, pp. 283-284). E eis aí dois
metropolitas, designativo que não pusemos no quadro porque
o de arcebispos tanto basta. Mas diga-se que, em matéria de
precedências, primeiro e sempre Braga; só muito depois,
muito em prestígio que não em propinquidade, Lisboa. (A
primazia que hoje tem o arcebispado de Lisboa na opinião
pública portuguesa é filha da política, da distinção
cardinalícia e da ignorância canónica e histórica, porque
Braga é número um.)
Bispos houve muitos. Titulares de dioceses portuguesas
e de in partibus infidelium, estes ordenados para serem
auxiliares dos primeiros. Braga, por exemplo, além do
arcebispo D. Fernando da Guerra, teve mais três auxiliares
dele (J. Marques, 1988, pp. 390, 955 e 956). O mesmo se
deve ter verificado noutras dioceses do País. E, afinal,
por muito que se diga em contrário, eram os segundos, quase
anónimos, que asseguravam a administração eclesiástica e a
vida religiosa das dioceses. Actuavam em nome dos titulares
numa suposta concórdia caritativa, afinal seus criados, e,
por isso, não deixaram história. D. Frei António, D. Frei
Gomes da Rocha, D. Frei Gil — o trio que coadjuvou D.
Fernando da Guerra — que é da memória deles? Nomes de
arquivo. Como estes, outros. Realmente, quando se fala de
arcebispos e bispos, é assim: arcebispo de Braga, arcebispo
de Lisboa, bispo de Évora, bispo do Porto, bispo de
Coimbra, bispo de Viseu, bispo de Lamego, bispo da Guarda,
bispo de Silves; e pronto, em Portugal e Algarve não houve
mais. Depois de 1421 há bispo de Ceuta e em 1468 bispo de
Tânger (F. de Almeida, 1967, vol. I, pp. 287-288). Ao todo,
foram 11 dioceses.
Se bispos houve muitos, abades houve muitos mais.
Porque do Mondego para norte, não contando já Alcobaça,
poucas terras terão sabido existir sem a sombra de um
mosteiro. Especialmente no Entre Douro e Minho. Mosteiros
beneditinos, antes de mais; tanto os de observância
cluniacense como os da de Cister, logo seguidos pelos dos
Cónegos Regrantes de Santo Agostinho — tudo mosteiros.
Abades eram os superiores dos primeiros e priores os dos
segundos — razão pela qual os curas das paróquias situadas
a norte do Douro ainda hoje se chamam abades, os «senhores
abades», e os do Sul «senhores priores», ou «senhores
reitores». Designativos que perpetuam a memória dos
evangelizadores predominantes no Portugal medievo — porque
foi ao longo dos séculos XIV e XV que a maioria dos
mosteiros, por falta de monges, virou igrejas paroquiais.
Motivos? Demográficos, económicos e religiosos.
Especialmente os últimos, que têm a ver com o sucesso dos
mendicantes, gente urbana, em prejuízo das ordens antigas,
aristocráticas e rurais. S. Francisco e S. Domingos foram
preferidos a S. Bento e S. Bernardo nos finais da Idade
Média, assim como a pastoral foi preferida à vida
contemplativa. E, por efeito, os priores aos abades (43).
Só que os abades, peso da tradição e dos coutos,
manter-se-ão sempre à frente nas escalas do prestígio.
A seguir aos abades pusemos os mestres. Os mestres
antes dos priores, precedência que pode não ser pacífica.
Até porque o prior do Hospital (ou do Crato) era homólogo
dos mestres de Cristo, de Avis e de Santiago. Depois, eram
também priores os responsáveis pelas colegiadas e pelas
claustras dos Agostinhos e dos Beneditinos, além dos
superiores conventuais dominicanos e franciscanos.
Os vigários eram clérigos de ordens sacras adstritos à
administração eclesiástica das dioceses, colocados pelos
bispos e arcebispos em seu nome e com poderes delegados,
mais ou menos amplos, nas suas cúrias. Os mais importantes
eram os vigários gerais. Na documentação produzida em
cortes do nosso período estes clérigos são assiduamente
citados — e geralmente responsabilizados pelos abusos
jurisdicionais da Igreja. Vigários, subtilezas jurídicas,
manipulações tribunalícias, excesso de zelo na aplicação
dos cânones, abusos de excomunhões e interditos, cupidez e
arrogância face aos leigos — são ideias recorrentes e
solidárias. Os vigários aparecem aos olhos dos laicos como
figuras ubíquas e temerosas, os anjos executores das
arbitrariedades prelatícias. Prelatícias ou dos prelados. E
eis aí outra palavra continuamente utilizada. Entre 1385 e
1495 os concelhos dedicaram-lhes 24 capítulos gerais em 8
cortes distintas (Armindo de Sousa, 1990 a, vol. I, p.
521). Capítulos de queixa e denúncia. E quem são eles? Os
arcebispos e bispos, diz a Primeira partida de Afonso X
(Tít. 8, Preâmbulo e leis 1, 17, 18). Mas também os abades

359
beneditinos, os priores claustrais de S. Bento e Santo
Agostinho, os mestres das ordens militares e o prior do
Crato (44). Quer dizer, são prelados todos os detentores de
jurisdição eclesiástica sobre pessoas e territórios. Mas
jurisdição própria, não delegada. É por isso que os bispos
auxiliares, os vigários e os párocos não devem ser
incluídos na categoria de prelados.
Sobre arcediagos e cónegos nada de especial há a dizer.
Dos párocos, diga-se que também se chamavam «curas» e
«reitores» e que geralmente aparecem nos documentos sob o
designativo de «clérigos beneficiados», se bem que este
designativo tenha cabido a outras pessoas, tais como os
diversos tipos de cónegos catedralícios e professores
universitários. Beneficiado era o presbítero que usufruía
de um benefício em razão do qual era obrigado a certo
ofício e certas obrigações, como, por exemplo, dizer missa,
administrar sacramentos e rezar as horas (45). A
compreensão e extensão da palavra é muito ampla. Quando os
povos qualificam com ela determinado clérigo ou grupo de
clérigos, querem acentuar neles uma responsabilidade que
ultrapassa de muito a do clérigo sem mais. Responsabilidade
moral e canónica. Advirta-se que monges e frades, mesmo não
egressos, podiam ser párocos desde que autorizados pelos
respectivos prelados (Armindo de Sousa, 1981, pp. 108-109).
É evidente que, sendo párocos, esses religiosos subiam na
escala do prestígio social.
Finalmente, freires são os clérigos das ordens
militares; e os diáconos e subdiáconos são o segundo e o
primeiro graus da hierarquia das ordens maiores, geralmente
ignorados pelos textos civis, se bem que muito referidos
nos eclesiásticos, sinodais por exemplo. São categorias
destituídas de impacte social tanto como os minoristas em
trânsito para o presbiterado. Não assim os minoristas
estacionários, clérigos pelas mais variadas razões
oportunistas, dos quais já falámos algum tanto e de quem
voltaremos a falar.
E continuemos a explicar o quadro da hierarquia
eclesiástica.
Terceira coluna, «hierarquia de sagração». É a
hierarquia dos oito estádios que integram o sacramento
completo da ordem. De baixo para cima: ostiário, leitor,
exorcista e acólito — as ordens menores, geralmente
administradas numa só cerimónia ao mesmo candidato, quase
sempre imediatamente antecedidas nessa cerimónia pelo
ritual da tonsura. O tonsurado, mesmo que não minorista,
ficava clérigo. Por analogia, as monjas e freiras, que eram
submetidas aquando da tomada de hábito religioso a um
simulacro de tonsura, ficavam, elas também, equiparadas aos
clérigos em matéria de isenções e imunidades canónicas, se
bem que nunca tenham tido acesso a nenhum grau do
sacramento da ordem. Isto nos séculos XIV e XV. É ainda em
termos de analogia — no que ao sacramento toca — que se
devem entender as designações de «prelada» e «abadessa».
Aliás, sacramento e jurisdição são coisas distintas.
Perguntará o leitor: se as monjas, freiras, madres,
abadessas e preladas tinham estatuto análogo ao dos
clérigos, porque é que não aparecem na segunda coluna do
quadro? A razão é simples, e por via dela torneamos todas
as questões de natureza jurídico-canónica: não encontrámos
nos séculos XIV e XV nenhum documento em que o carácter
clerical ou não clerical delas seja determinante em termos
de socialidade. Nesses séculos elas são «donas». Donas com
estatuto especial, é certo; sagrado, protegido, poderoso,
tabu sexual. Violar os seus corpos, as suas casas e as suas
fazendas é crime agravado de sacrilégio. Gravíssimo, face
ao direito canónico e civil. Mas que estejam compreendidas
na noção epocal de clérigo, eclesiástico e clerezia não nos
parece. Pelo menos, nos textos que temos vindo a
privilegiar neste ensaio, os textos de cortes e dos
concelhos.
Completando o que estávamos a dizer sobre os graus
hierárquicos do sacramento da ordem: a seguir àqueles
quatro, ostiário, leitor, exorcista e acólito — os quatro
dos minoristas — seguiam-se outros quatro, ditos «ordens
maiores» ou «sacras». Os de subdiácono, diácono, presbítero
e bispo. Naquele tempo e desde o século XII; como hoje. E,
também como hoje, os diversos patamares tendiam para
estacionar no presbiterado. Os presbíteros são os clérigos
fundamentais do Cristianismo enquanto comunidade religiosa
que vive da penitência e da eucaristia. Os bispos também —
e mais até, do ponto de vista teológico-dogmático. Mas do
ponto de vista das exigências pastorais, não. Poucos bispos
chegam. De uma perspectiva meramente estatística, a
hierarquia sacerdotal cristã é esmagadoramente
presbiterial. Por isso, não é de admirar que os povos, em
cortes, tenham feito pressões no sentido de todos os
minoristas serem obrigados a ir até ao presbiterado, o
termo normal do cursus (46). Evidentemente. Evidentemente
que não o fizeram por razões exclusiva nem
preponderantemente teológicas. Mas é significativo que
nunca tenham criticado a atribuição inflacionária de ordens

360
maiores. Porque nunca se verificou? Provavelmente. O que
não deixa de continuar a ser, já noutra perspectiva,
significativo também. Significativo de que os homens, nos
séculos XIV e XV, procuravam ser clérigos por motivos
perversos. Não para servir, mas para se servirem. Ser
clérigo era isenção, estatuto, privilégio. O
anticlericalismo, se bem que aqui e além anunciado, será
fenómeno de séculos que hão-de vir. As sementes estão a ser
lançadas. Precisamente pelos bispos (47).
Quarta coluna. Aqui metemos dignidades eclesiásticas,
ou seja, classificativos clericais que são independentes da
sagração e da jurisdição, mas muito importantes na promoção
dentro da hierarquia do prestígio. Prestígio social,
económico, político, etc. Não metemos todos, obviamente.
Apenas os que designam posições estáveis, notórias para os
leigos e frequentemente referidas. Núncios, legados
apostólicos, protonotários, visitadores, prelados nullius e
tantos outros deixamo-los de fora. Não nos parece que
tenham merecido grande atenção por parte da sociedade leiga
— por muito que hajam preocupado os prelados e os reis.
Quinta coluna. É a lista ordenada dos clérigos
revestidos de jurisdição canónica — externa (arcebispos e
bispos) e interna (abades, mestres e priores). Como vimos
atrás, estes constituem o grupo dos prelados e são todos
número um nas suas respectivas áreas jurisdicionais. A
seguir estão os vigários, detentores de jurisdição
delegada, conforme inculca o próprio nome; deles já falámos
há pouco. Por fim, os párocos. Possuíam jurisdição
territorial circunscrita às freguesias de que eram curas.
Jurisdição delegada pelo arcebispo ou bispo ordinário do
lugar; ou pelo abade ou prior, no caso de paróquias isentas
de um mosteiro ou ordem. E isso independentemente de terem
obtido o benefício por rescrito papal ou por designação de
um padroeiro legítimo.
Note-se desde já: as críticas mais graves e mais
frequentes proferidas pelos deputados do povo em cortes
contra o clero visam precisamente os homens registados
nesta coluna — os prelados e os vigários. Os párocos nem
tanto, pelo menos nos capítulos gerais. É que os párocos
eram ensombrados pelos outros, nas cidades e vilas — e só
das cidades e vilas iam vozes ao Parlamento. Os párocos
rurais, muito próximos do povo em tudo e provavelmente
tiranetes conforme o estilo da época — quem podia abusava —
não tiveram acusadores que dispusessem de palco e escrita.
Ficaram embrulhados no silêncio dos campos. O mais das
coisas que deles se sabe infere-se de palavras dos seus
superiores, dos capítulos sinodais ou de ecos dispersos
registados nas câmaras concelhias, reflectidos nas
objurgatórias contra os prelados e vigários. Porque estes,
sim. Gente urbana e de muitos poderes, possuidores de
jurisdições que faziam fronteira polémica em demasiados
terrenos com o foro secular, homens acossados pelo estigma
do mando e da honra e do proveito, arranhavam os autarcas
em suas competências e atribuições. Os quais se doíam e
arranhavam também. Distinguindo, conforme fizeram os do
Porto: que ao seu bispo e pastor eram atentos e dedicados e
sempre seriam; mas ao prelado que os vexava, fosse embora a
mesma pessoa física, não (48).
Sexta e última coluna. Hierarquia existente nos
mosteiros e conventos: abades, priores claustrais e monges;
e priores e frades. Nas ordens militares: mestres e freires
ou prior (do Hospital ou do Crato) e freires. Isto muito
resumido e, porventura, muito simplista. Porque nos
mosteiros e conventos funcionou uma hierarquia mais
complicada e bastante diferente de regra para regra e de
casa para casa; e nas ordens militares a mesma coisa, com
governadores em vez de mestres a partir de certa altura,
com comendadores e comendadores-mores, com cavaleiros e não
cavaleiros, etc. Fiquemo-nos, porém, com a imagem
simplificada do quadro — que é suficiente para o objectivo
deste capítulo.
Antes de passarmos adiante, uma palavra sobre capelães.
Eram clérigos de ordens sacras, presbíteros certamente,
adstritos a um mosteiro, convento, corte, paço ou casa. Uma
espécie de criados de senhores eclesiásticos, de senhores
laicos e de instituições. Os seus serviços eram variados,
desde os de capelania — que lhes atribuíam o nome — até o
de escrivães particulares e confessores. Os reis tiveram
muitos, tantos que formavam uma categoria cortesã, os
clérigos d’el-rei, capelão-mor à frente, com ordenança e
regimento (Conselhos del-rei D. Duarte, pp. 209-217).
Alguns eram-no tão-só por título honorífico, vivendo longe
da corte, como, por exemplo, D. Soeiro Anes, abade de
Tibães e de Santo Tirso (Armindo de Sousa, 1981, pp.
141-144). Ser capelão d’el-rei era credencial para boa
carreira. O caso de D. Luís Pires é paradigmático: capelão
de D. Duarte, capelão de D. Afonso V, capelão-mor deste
mesmo rei, embaixador à cúria romana, protonotário

361
apostólico, bispo de Silves, embaixador do monarca em
Nápoles, bispo do Porto, bispo de Évora e arcebispo de
Braga. Notável. Como este, houve outros casos análogos.
Partir de ao pé do rei e da sua criação era augúrio de
carreira brilhante, certamente votada a filhos segundos de
nobres. E o mesmo se diga, variando a escala, dos capelães
das rainhas, príncipes, infantes, duques, condes,
marqueses, etc, sem esquecer os dos arcebispos, bispos,
abades e outros poderosos. Os capelães constituíram um
grupo de clérigos numeroso e privilegiado.

Configurações sociais

E fiquemo-nos por aqui no que diz respeito ao panorama


estrutural dos clérigos nos séculos XIV e XV. Foram muitos?
Foram poucos? A esta matéria já respondemos no I capítulo
deste estudo. Recordemos: tirando os minoristas e meros
tonsurados, não teriam atingido 1 % da população global,
coisa como 7000 ou 8000 homens nos meados do século XV
(Oliveira Marques, 1986, p. 226). Uma minoria, portanto.
Mas uma minoria que detinha a posse de cerca de 20% do
território nacional. E, sobretudo, uma minoria que
senhoreava o monopólio daquilo que hoje se designa como
mass media, nas praças, nos púlpitos, nos altares e nos
confessionários. Qual o grupo social que pôde ufanar-se de
possuir auditórios assíduos e silenciosos semana sobre
semana, ano após ano? Auditórios que o eram por respeito
sagrado. Os clérigos dominaram, praticamente sem
opositores, os meios de produção da opinião pública. E
mais, os meios de acesso às consciências, fossem elas de
reis ou do mais humilde trabalhador braçal. Não se esqueça
que a confissão anual obrigatória dos cristãos foi imposta
universalmente antes do nosso período histórico. E é sabida
a força psicológica que esse «mecanismo» contém em termos
de inculcação de valores, libertação de neuroses, redenção
da alma e de submissão do crente à dependência sacerdotal.
Leia-se Carl Gustav Jung (cf. J. Goldbrunner, 1961).
«Mecanismo» que liberta e humilha, dominador em extremo.
Mas contra o qual não se conhece uma única recriminação.
Como também não se conhece uma única recriminação contra as
funções e teores parenéticos dos clérigos (49). Apesar de,
tanto nos confessos como nas pregações, eles seguirem pesos
e medidas variáveis conforme os «estados» dos penitentes e
ouvintes, isto é, modos destinados a justificar e manter as
injustiças sociais, económicas e políticas. Modos sagrados
de proteger o statu quo, ideologia de quinta-essência,
pastoral de perversão. Não era assim, a Igreja não quis
isso — protestará o católico leitor. Pois não: a Igreja,
essa entidade mística. Mas os seus «funcionários», os
clérigos, talvez o tenham querido. E, depois, não é o
querer ou não querer advertido que está em causa. São os
processos, os modos, os meios e os seus efeitos
sociopsíquicos — teologicamente correctos e pastoralmente
bem-intencionados, concede-se. Mas modos e meios
objectivamente exalçadores do poder clerical e do seu
domínio sobre as consciências. E, se ao historiador é
permitido formular opiniões moralísticas, diríamos: ainda
bem. Ainda bem, porquê?
Não pelo conservadorismo político-ideológico que a
pastoral parenética e penitencial porventura favoreceu. Nem
por ter sido objectivamente um instrumento de dominação
clerical. Mas porque, apesar de todos os limites e desvios
perversos, serviu para educar as consciências no respeito
dos princípios. Ou ao menos no conhecimento deles. Porque
não haja dúvidas: o século XV foi moralista. Reis,
príncipes, cronistas e povos, todos revelam grande
apetência teórica pelos valores morais, não podendo de
forma alguma ser taxados a esse nível, o teórico, de
ignorantes, indiferentes ou laxistas. É ver a literatura da
época, desde o Livro de montaria de D. João I até ao
Cancioneiro geral de Garcia de Resende (Valle Cintra, 1960,
cap. 6). Cremos não haver dúvidas de que por detrás dessa
sobrevalorização da moral anda a catequese da Igreja; dos
clérigos, obviamente. Época do «bem prega frei Tomás, olhai
para o que ele diz, não olheis para o que ele faz»? Talvez.
Mas ao menos isto é certo: frei Tomás pregou.

A norma moral e a prática

Diz-se que os clérigos tiveram uma vida moral péssima


nos séculos XIV e XV. E tal parece ter sucedido. Pegando na
lista dos sete pecados capitais, diríamos que todos foram
bem cultivados, apesar dos assíduos discursos em defesa da
excelência das virtudes contrárias. «Sei o bem, mas faço o
362
mal», angústia da condição pecadora. Pior é não assumir-se
e arrogar-se de santo, fazer do erro virtude — que tal é
rir-se de Deus ou negá-lo simplesmente. Mas isto não se
verificou convictamente no período do nosso estudo.
Imoralidade, sim; ateísmo, não. Blasfémias, invectivas
contra Deus e os santos, práticas supersticiosas,
invocações do Diabo — são coisas de foro ético e mais
provam do que desmentem a fé no sobrenatural divino e
religioso. Só blasfema de Deus quem crê na sua existência;
como também só se acolhe ao Diabo quem o toma por rival de
Deus. O homem medieval, clérigos à frente, é
estruturalmente religioso. Há fiéis e infiéis, santos e
pecadores, bruxas e feiticeiros — mas ateus não há no
exacto sentido que a palavra tem. Nem sequer existia na
linguagem corrente palavra que dissesse ateísmo. «Incréu»
tinha, como ainda hoje tem, conotação ética e «ateu» era o
sequaz de Javé ou de Alá. De modo que, bem no interior de
cada homem medieval, clérigo ou não, cristão ou não,
alojava-se esta certeza inelutável, freio de muitos crimes:
toda a imoralidade será castigada. Por isso, a religião
cristã, ou muçulmana ou judaica, teve um papel
insubstituível enquanto mecanismo de controlo social. E os
respectivos cleros também, apesar de todos os seus vícios.
Mas que vícios?
Os da luxúria, antes de mais. Quando se fala de
imoralidade do clero, sejam quais forem os tempos, é nisso
que logo se pensa. Na luxúria — essa inclinação para o
deleite do tacto ou, na sua forma mais referida, esse
«fervente desejo de dormir com mulher, sobre modo e contra
razão» (Leal conselheiro, cap. 64). Vício corrente. No
clero, nobreza e povo, solteiros e casados, reis e bispos,
duques e escudeiros, monges e frades, burgueses e
lavradores, cristãos e não cristãos, na cidade e no campo,
em Portugal e no mundo. «Não desfalece exemplo», dizia D.
Duarte (Leal conselheiro, cap. 63). Nem é preciso pôr
provas, tantas elas são, dizemos nós. Vício da carne,
encarnado nos homens. Mas corruptor. Corruptor da ordem
social, antes de mais, naquilo que ela tem de fundamentos
mais necessários — a família, o parentesco, a linhagem, o
ordenamento grupal segundo a hereditariedade do sangue. Por
isso, nenhuma sociedade pode abster-se de controlar o uso
do sexo e o «comércio» das suas mulheres. O que faz
definindo as formas de incesto, as regras de casamento, os
tabus sexuais, e punindo os desviacionistas, tanto mediante
a aplicação judiciária de penas e multas, como mediante
mecanismos mais subtis como são os da opinião pública.
Cremos que no período do nosso estudo, apesar dos
tratados moralistas e de toda a preocupação teórica pela sã
moral, a que já fizemos referência — e à parte os assomos
puritanos ou neuróticos de D. Pedro I, aliás mais políticos
do que éticos — a repressão dos desmandos sexuais,
incluindo adultérios e sacrilégios, nunca foi levada a
efeito de modo convicto e persistente. Pelo contrário, a
sociedade afigura-se-nos extremamente permissiva. Nem
parece que o mecanismo da opinião pública condenatória haja
surtido efeitos morigeradores. Com efeito...
A prostituição. A prostituição de mulheres é vulgar e
aceite. Pode crer-se que floresceu, e não só nas cidades e
vilas, onde o «trabalho» estava regulado pelas câmaras e
pagava o soldo ao alcaide-mor (50). Também nas guarnições
militares, nas casas de nobres e até em mosteiros (51). É
célebre o caso do Mosteiro de Recião, perto de Lamego,
transformado em prostíbulo pela abadessa; e também é
conhecido o caso de Santo Tirso, virado «casino» e cotio de
mancebas pelo abade Soeiro Anes (52). Em 1389 os
homens-bons queixam-se em cortes de haver fidalgos que lhes
desviavam as filhas, pondo-as «em poder de quem se pagam,
per força» (cap. 7). Mas em 1436 são eles, homens-bons,
neste caso os de Évora, que pedem ao rei autorização para
que as prostitutas possam ir, sem penalidade, exercer às
estalagens, fora da mancebia — sempre que um «homem de
bem», obviamente muito discreto, aí lhes requeresse os seus
serviços: «capítulo que dá lugar às mulheres da mancebia
que, a chamado dalgum homem de bem, possam ir dormir com
ele às estalagens sem pena sua nem dos estalajadeiros»
(cap. 12 dos especiais de Évora). Deferido pelo moralista
D. Duarte. Mais tarde, em 1481, outra vez os homens-bons
levam o tema ao Parlamento. Em dois capítulos, o 31 e o 99.
Chamam-lhes muitos nomes feios a elas e à profissão. E que
é que desejam? Abolir esse ramo de comércio? Não. Querem
sossegar os ciúmes das suas legítimas esposas, proteger as
bolsas contra despesas sumptuárias que elas exigiam por
mera rivalidade com as madalenas e, muito importante,
acautelar os seus machos perfis de excrescências espúrias,
pois, conheciam-se casos, as mulheres são «fracas
especialmente em auto venéreo». Portanto, querem «que as
taes mulheres não vivam entre as mulheres casadas e
honestas de bom viver e lhes seja assinado lugar onde vivam
e as vão buscar [procurar] os que com elas quiserem fazer

363
cama», de modo que «não tenham razão de terem conversação
com as boas» (cap. 31). Quer dizer, arruamento próprio da
mancebia e vestuário adequado à profissão, tudo em «seu
ordem e bom regimento», conforme postula o «bem comum»
(cap. 99).
Enfim, verifica-se que a respeito das prostitutas,
tanto das que «faziam por homens» como das que residiam nas
mancebias, se usou de tolerância e até de boa compreensão,
apesar de serem consideradas, em princípio, as mais infames
mercenárias de entre todos os mercenários (53). No resto da
Europa passou-se o mesmo — havendo até um texto
curiosíssimo, escrito por um cónego parisiense autor de um
«manual de confissão», em que se pretende justificar o
salário das «loucas mulheres». Assim: «As prostitutas devem
ser contadas entre os mercenários. Com efeito, alugam o
corpo e fazem um trabalho [...]. Agem mal sendo
prostitutas, mas não agem mal recebendo o preço do trabalho
[...]. Todavia, se alugam o corpo para terem prazer, se se
prostituem por amor da lascívia, então não estão
rigorosamente a alugar-se e o dinheiro que recebem é tão
vergonhoso como o acto» (citado por Le Goff, 1983, p. 97).
E assim por diante, incluindo normas sobre a «honestidade»
da profissão, como o uso de perfumes e pinturas,
considerado pecaminoso com obrigação de reposição do preço,
se contribuir para enganar o cliente acerca do valor real
da coisa a alugar. Comércio tem suas leis.
A «barregania», outro caso. Fenómeno generalizado em
todos os grupos sociais, clero, nobreza e povo, e em todo o
período do nosso estudo. Aliás, vinha de antanho e
continuará séculos fora, apesar de todas as leis e
pregações. É luxo que exige posses. Na grande nobreza, a
começar pelos reis e infantes, foi coisa desculpada e
desculpável, modo de expandir sangue «virtuoso». No povo,
camadas superiores obviamente, que os pobres, por falta de
tempo e dinheiro, mulher uma e sabe Deus, no povo,
dizíamos, ter manceba por conta era concubinato, deveras
pecaminoso. «Barregueiros» se chamavam os ousados, fossem
casados ou solteiros. E pagavam por o ser: prisão e multas,
os primeiros; roubos impunes, os segundos (54). Em tempos
de D. João I, logo a seguir a Aljubarrota e por efeito de
mística, a Câmara de Lisboa decidiu purgar a cidade e fez
posturas em prol dos sãos costumes (55). Os barregueiros
foram logo atingidos. E devia haver muitos, pois que se
instituiu um juiz próprio para eles. Tratou-se de uma
magistratura considerada indesejável passados três anos
(56). E não se sabe bem porquê, se por falta de
feitos-réditos, se por incómodos emergentes do ofício ou se
por desinteresse dos homens-bons lisboetas em ocuparem um
cargo tão exigitivo de exemplar perfil. D. Duarte dirá
décadas mais tarde, elogiando o pai, que a boa moral
ter-se-á implantado em todo o reino nesse capítulo da
castidade dos casados, fidalgos, nomeadamente, os quais se
teriam abstido de «refiarias de freiras, de mouras e de
judias e doutras ruindades que em esta terra se usavam»
(Conselhos de el-rei D. Duarte, p. 238). Agora, não, graças
a Deus e ao bom exemplo do pai, continua o Eloquente: «Os
senhores e fidalgos são muito guardados e usam [isso sim]
de ouvirem missas, rezarem, jejuarem e se confessarem»
(ibid.). Bem; tópicos de um elogio fúnebre. Na realidade,
parece que não foi nada disso. O próprio D. Duarte teve a
sua banegã, solteiro embora, de quem houve o bastardo João
Manuel, que irá ser bispo. Aliás, seguindo o exemplo do
pai, que ele elogia, e o do avô D. Pedro I e o do trisavô
D. Dinis. O filho vai quebrar a tradição, mas o neto haverá
de retomá-la. E de rainhas e infantas também se podia falar
(58). De modo que, a respeito da nobreza, alta, média e
baixa, ela ouviria decerto muitas missas e o mais que D.
Duarte disse, mas ainda lhe sobrou na agenda espaço para
outros recreios. Nem sequer se pode afirmar que cuidou de
seguir essa regra do bom senso si non caste, tamen caute,
«se o és, não o pareças».
Com o clero passou-se exactamente a mesma coisa.
Arcebispos, bispos, abades, priores, mestres, cónegos,
curas, monges e frades. Eram homens do seu tempo, gente do
mesmo barro e, depois, o próprio S. Tomás de Aquino o
escreveu por suposição sem dúvida teórica, à face da Terra
não existe prazer maior. Além de que o instinto de ser pai
— Zurara já sabia que tal instinto mergulha no natural
desígnio de cada um se imortalizar na espécie — é muito
mais poderoso do que qualquer concílio de Elvira, do que
qualquer lei sobre o celibato dos padres.» A sublimação dos
instintos não se efectua por decreto. Especialmente quando
ser padre é compulsão de prestígio ou sentença de família
proferida sobre filhos segundos e bastardos. Como ser
freira, sobre filhas sobrantes. Que tal parece ter sido a
abadessa de Recião, de que falámos atrás. De modo que...

364
De modo que a mancebia dos clérigos do período do nosso
estudo precisa de ser entendida dentro das circunstâncias
totais da sociedade de então. Um sacrilégio. Um sacrilégio,
sem dúvida; crime religioso, canónico, pelo que à Igreja
competiria julgá-lo. Um escândalo. Um escândalo, pois; e,
logo, um problema social, socioculturalmente deletério,
pelo que às autoridades políticas competiria actuar.
Actuar, paradoxalmente, em nome da doutrina que os
prevaricadores ensinavam e não da prática que essas
autoridades seguiam. Por conseguinte, actuar
obrigatoriamente, por imperativo da ordem social
estabelecida, e, todavia, na mais hipócrita das convicções.
Aos bispos e aos padres, os «feiticeiros consentidos», a
sociedade exigiu o que não podia nem queria praticar. E
bem; é da antropologia religiosa. Para isso foram eles,
arcebispos, bispos, etc, ordenados, sagrados, destacados do
comum.
E esta parece-nos ser a razão profunda, antropológica,
das contínuas objurgatórias contra a incontinência do clero
de ordens sacras no período do nosso estudo. Objurgatórias
sobretudo dos homens-bons em cortes — esses ditos «homens
de bem», que, tal os de Évora, não desdenharam solicitar ao
rei o privilégio de rameira à lista e precatada.
É claro que a insistência do tema «incontinência dos
clérigos» sugere razões mais práticas, de defesa. Defesa
das mulheres e das filhas, do bom nome da família? Defesa
contra rivais insinuosos e insinuantes (59)? Defesa de
patrimónios a dividir por proles ilegítimas? Defesa dos
interesses financeiros das alcaldarias? Defesa contra a
proliferação de infames por nascimento? Seja pelo que tenha
sido, o tema da mancebia clerical percorre as cortes e os
textos (60). Ao contrário do que sucede com a mancebia
nobre e burguesa — que se conhece de insinuações e
inferências quase só. E esta é, afinal, não menos deletéria
da sociedade do que a outra. Até porque adúlteros e
adulterinos demandam preocupações de defesa tão graves ou
mais do que aquelas que exprimimos nessa série de
interrogações. Diga-o, por exemplo, a instituição da roda
dos enjeitados, que irá ser inventada, não directamente
para a boa consciência clerical, em século próximo futuro.
Enfim, não há dúvida nenhuma de que os clérigos de
ordens sacras do período deste estudo não podem ser ditos
como exemplares respeitadores do voto de castidade. Eles
como os monges e os frades. Pode-se até afirmar que a regra
geral da época era a de clérigo morto deixar filho, regra
das justiças régias, oficiais de órfãos nomeadamente
(cortes de 1455, cap. 13 do clero). Pode-se admitir ainda
que párocos como Lourenço Vasques, salteador e tudo, houve
alguns (Cortes de 1458, cap. 1 do Porto). Mas, contas
feitas, concluiríamos com Gama Barros: os clérigos
portugueses dos finais da Idade Média seguiram os costumes
do seu tempo e não foram piores do que os leigos (Gama
Banos, vol. I, p. 177).
Esta conclusão, que é válida para a moral do sexo,
aplica-se aos outros vícios; arrogância, cupidez,
ociosidade, etc. Enfim, os vícios dos poderosos. E, quanto
mais alto se sobe na hierarquia, mais eles, os vícios, são
evidentes. Porque os arcebispos, bispos, abades e priores,
afinal, não eram mais do que fidalgos que buscavam na
Igreja o prestígio e a riqueza que lhes minguavam no
século. Por isso, não admira que lhes tenham faltado, em
geral, aquelas virtudes que o seu estado requeria:
humildade, mansidão, piedade, diligência pastoral e zelo da
«Casa de Deus». A maior parte quer honrarias, civis e
eclesiásticas, transita de diocese para diocese como se a
sua função fosse uma carreira promocional, pratica o
nepotismo como se se tratasse de uma virtude natural e
dedica-se a actividades extra-eclesiásticas, abandonando as
suas obrigações mais prementes (Oliveira Marques, 1986, pp.
226-234). Apesar, porém, deste panorama negativo, a vida
religiosa funcionou e não faltaram prelados realmente
empenhados na reforma eclesiástica. Por exemplo, D.
Fernando da Guerra (J. Marques, 1988) e D. Luís Pires
(Armindo de Sousa, 1983, pp. 42-56). Acerca deste último,
permita-se-nos recordar o que escrevemos noutro estudo: «O
prestígio da Igreja, eis o objectivo superior dos
comportamentos de D. Luís Pires. O prestígio da Igreja [...
realizado] tanto no acrescentamento das suas isenções
territoriais e jurídicas, como na expansiva afirmação do
seu poder sobre as almas, como na salvaguarda do carácter
inviolado e inviolável dos seus dignitários, como no
aparato faustoso das celebrações litúrgicas [...]. Ele [D.
Luís] lutava-pela Igreja como o cavaleiro pela dama. Para a
enaltecer tudo empregava; até a truculência do seu
carácter» (ibid., p. 55). Enfim, os bons, honestos e
católicos bispos do período do nosso estudo, tais como D.
Luís Pires e D. Fernando da Guerra, não foram, decerto,
exemplos de humildade e mansidão. Cumpre, porém, perguntar:
até que ponto foram essas virtudes tidas em consideração
nos fins da Idade Média? Não teriam elas, praticadas por
senhores prelados, sido confundidas com a pura e simples

365
cobardia? É que, na época, a força da razão e a razão da
força entendiam-se numa relação biunívoca.
Chegados a este ponto, cremos que o grupo clerical fica
suficientemente perfilado. Conhecemos-lhe a hierarquia em
suas diversas vertentes e, com isso, os diferentes escalões
de poder, jurisdição, riqueza e prestígio social.
Conhecemos também, grosso modo, o quadro dos seus
comportamentos morais e a opinião que acerca deles corria,
tudo contrapesado nos critérios epocais e no panorama coevo
da moral pública, que vimos ser permissiva a respeito da
impudicícia, da cupidez, da agressividade e da tibieza
religiosa.

Convivialidade social

Vejamos agora os modos da convivialidade social dos


eclesiásticos, tanto no interior do grupo como
relativamente ao exterior, e interroguemo-nos sobre qual
foi a direcção e sentido do seu actuar enquanto parte da
nação e dos Portugueses. Modos de integração? Modos de
conflitualidade? Direcções e sentidos transnacionais?
Solidariedade nacional?
Vamos por partes.
Olhados em si mesmos, os clérigos dos séculos XIV e XV
revelam-se um grupo de muitos conflitos internos. Bispos
contra cabidos, uns e outros contra monges e frades,
regulares contra seculares, vice-versa, etc. Razões:
económicas, jurisdicionais, de prestígio (61). Sentenças
sobre sentenças, recursos, autos de execuções enxameiam
tombos de catedrais, de colegiadas, de mosteiros e de
conventos. São os ecos das conflitualidades que mereceram
arquivo e que foram consideradas excepcionalmente
importantes, tanto que conseguiram persistir até hoje,
apesar de todas as fogueiras da damnatio memoriae. Ecos,
muitos; mas monótonos; rixas por amor de bens e
competências, quase tudo. E guardados por quem tinha espaço
e tempo para documentos, clérigos privilegiados — nomes
efémeros, decerto, se considerados em si mesmos, mas
destinados a ser história, por corporizarem instituições
permanentes e poderosas. Por isso, as memórias que ficaram
dos conflitos intraclericais devem ser lidas como vestígios
seleccionados e mínimos. Quanto às pessoas e quanto aos
porquês. O médio e baixo clero, monges contra monges do
mesmo claustro, frades contra frades da mesma casa, curas
contra curas da mesma diocese, morrendo, calaram-se. Só
raramente acederam a ficar nos pergaminhos (Gama Barros,
vol. n, pp. 155-185). E o mesmo se diga dos porquês não
económicos nem jurisdicionais de muitos probabilíssimos
dissídios. Porque, com efeito, a imagem que se colhe da
leitura dos documentos a respeito das relações
interclericais nos séculos XIV e XV é de rivalidade e não
de concórdia. É ver, por exemplo, a concorrência
taumatúrgica de oragos e igrejas, santos a competir com
santos, orações com orações, mezinhas santas com santas
mezinhas — tudo, evidentemente, soprado por mentes
eclesiásticas apreciadoras de confrontos (62). Iniciativas
de «irmandade» entre clérigos seculares e regulares ou
regulares de diversas obediências, destinadas a ter efeito
no interior do grupo, não conhecemos nenhumas. Essa que
teve lugar entre abades bentos e priores agostinhos em 24
de Agosto de 1387 no Mosteiro de Pendorada, junto ao Douro,
congregou poucos sócios e circunscreveu-se tão-só a um
compromisso de mútuos sufrágios post mortem (J. P. Ribeiro,
1857, vol. II, p. 247). Foi uma «composição e irmandade»
para o outro mundo, maneira de acautelar os signatários e
seus súbditos contra estadas prolongadas no Purgatório,
comprometendo-se todos a sufragar gratuitamente cada um que
fosse morrendo. Trata-se, por conseguinte, de uma
iniciativa de alcance social limitado, apesar de
interessante enquanto sinal de solidariedade contra o medo.
O medo da justiça divina, porém.

Privilégios

E ainda o medo de perder privilégios. Ou a coesão de


grupo face ao rei e a outros grupos. Que nisto, sim, o
clero soube unir-se e funcionar concordemente. Estado que
era dentro do Estado, mostrou saber distinguir e separar
conflitualidades internas de questões pro domo sua. Nestas
a clerezia fez bloco. É ler os seus artigos aos reis. A
gente começa pelas «concordatas» do tempo de D. Dinis e vem

366
por aí acima até 1477 e a impressão é sempre a mesma:
prelados, cabidos e ordens sempre unidos, insistentes,
combativos. Fazem lembrar um qualquer nosso contemporâneo
partido político — dissensões internas, externa unanimidade
e força. Sempre os mesmos temas, sempre os mesmos
argumentos, sempre a mesma porfia.
Do período do nosso estudo, 1325 a 1484, conhecem-se
180 capítulos gerais da clerezia, apresentados em cortes
nos anos de 1361, 1390-1391, 1427, 1455, 1456e 1477 (63)
São seis importantes documentos, incorrectamente designados
de concordatas. Voz dos prelados, cabidos e ordens,
conforme se disse, ou seja, voz das cúpulas eclesiásticas
do País, estes textos revelam as tácticas e estratégias do
grupo face ao poder civil corporizado nos reis, tanto como
a auto-imagem clerical a respeito dos outros grupos sociais
e o horizonte teórico, ético-filosófico-jurídico, em que
eles, clérigos, se movimentam na reivindicação do seu statu
especial. Statu especial, sim. Estado dentro do Estado —
eis o sentido e a direcção dos discursos colectivos, desses
180 capítulos que dissemos. Estratégia de um grupo que se
sabe transnacional e a todo o custo quer manter-se como
isso, apesar dos ventos nacionalistas e cesáreos. A táctica
é nunca largar mão das isenções, das competências, dos
privilégios, das jurisdições; e, perdidos alguns ou
minguados outros, nunca abdicar deles nem deixar, por falta
de luta, que as perdas e diminuições se transformem em
direitos adquiridos do poder secular. E sempre em nome de
quê? Do bem comum, do serviço d’el-rei, do proveito da
terra? Não. Isso são motivos dos monarcas, dos povos e,
embora com menor insistência, dos fidalgos também. São
motivos nacionais. O clero move-se noutros parâmetros: o
bem da Igreja-Cristandade, o sentir do papa, o direito
canónico.
Vejam-se, por exemplo, os capítulos gerais levados às
Cortes de 1456 (Lisboa). São elucidativos e sintomáticos.
Doze ao todo. Os velhos temas, esses que corporizavam as
grandes áreas das reivindicações clericais desde D. Dinis e
D. Pedro I, estão aí quase todos: beneplácito régio,
padroados das igrejas, notários apostólicos, testamentos,
últimas vontades, hospitais, albergarias e gafarias,
tabeliães das audiências eclesiásticas, feitos de clérigos,
feitos de heresia, etc. Só faltam, porque foram resolvidos
convenientemente no ano anterior, os assuntos igualmente
sempre velhos e sempre novos das excomunhões, direito de
asilo e prisões de clérigos. A apoiar aqueles 12 capítulos
são mobilizados 25 argumentos. Que importa analisar.
Argumentos de natureza jurídica, 10; de natureza moral, 9;
de natureza político-religiosa, 5; e de natureza económica,
1. Os de natureza jurídica apelam invariavelmente para o
direito canónico, significativamente dito «comum» (comum da
Cristandade), e para decisões conciliares, igualmente
universais, ecuménicas e supranacionais. O direito pátrio,
que os povos desejam comum a todo o País, não só não é
invocado como até, vê-se nos temas, é combatido. E também o
direito romano, esteio do cesarismo monárquico. Aliás, o
desprezo, vide receio prelatício por esse direito, é
claramente afirmado nas Cortes de 1361 (cap. 24 do clero).
Para as mentes clericais, a ordem jurídica só pode ser uma
— a canónica, aquela que Roma dita. E rei que imponha o
contrário desmerece de católico e afasta-se, diz-se, da
«maneira que se tem em todolos outros regnos de cristãos»
(Cortes de 1456, cap. 10 do clero). Alegação falseada,
sabemo-lo. É proferida a propósito dos feitos de heresia,
os quais em toda a Cristandade eram usurpados, por razões
políticas, sociais e económicas, pelos príncipes. Pelos
príncipes a quem a Igreja vinha alcandorando desde há muito
a guardiões da fé, agentes da teocracia. Só que no período
do nosso estudo a teocracia é defunta. Os príncipes não são
mais luas submissas ao sol que o papa diz ser e ninguém
acredita — até porque o Grande Cisma e as teorias
conciliaristas pregam outra linguagem. A teocracia acabou e
o Imperium Christianum também. Por corolário, lógico e não
histórico, o direito canónico, instrumento tardio desse
Imperium, terá de competir com o romano. Mais: com o
direito romano pervertido, interpretado por legistas que
vêem imperatores em qualquer rei que sirvam. Os clérigos
raciocinam em termos internacionalistas ou, melhor, em
termos metanacionais — efeito de trajectória, de língua, de
obediência; e de interesse, está claro. Precisamente ao
tempo em que os modos de agir e pensar se dirigem para
Nação e Pátria. Ironia da história: foram reaccionários por
terem ideias que hoje, mutatis mutandis, a Europa diz
progressivas.
Os argumentos de natureza moral, nove no texto que
estamos a analisar, cifram-se nisto: a clerezia não pode
ser agravada e as excomunhões que propina haverão de ser
temidas. Quer dizer, é imperativo absoluto de reis e
senhores e povos proteger e respeitar os «ungidos de Deus».
O contrário será desprezo da fé. E o mesmo se tira das
argumentações político-religiosas, que podemos resumir

367
assim: a Igreja e o papa, as liberdades da primeira e a
fidelidade ao segundo, deverão ocupar o posto número um das
grandes motivações dos actos governativos dos reis. E vê-se
então como todo o sistema retórico dos capítulos clericais
dessas Cortes de 1456 (Lisboa) forma uma totalidade
coerente e coesa. O clero tem-se como um grupo especial de
portugueses, aliás pouco preocupado em dilucidar se é
português ou não. Pelo menos o clero que aí fala. Porque a
lição que acabamos de tirar desses capítulos de 1456 é
igual à que se extrai de todos os outros que chegaram até
nós e que atrás enumerámos. Isto não quer dizer que os
eclesiásticos se tenham posto à margem dos negócios
nacionais. De forma nenhuma. Sabe-se que em todas as
conjunturas políticas, dinásticas, sucessórias,
expansionistas e militares eles estão lá. Na eleição de D.
João I, em Aljubarrota, em Ceuta, em Tânger, na crise de
1438-1439, em Alfarrobeira, em Toro e nas conspirações
contra D. João II — em tudo eles estiveram. Como estiveram
nos conselhos régios, nos cargos palatinos, na educação dos
príncipes e nas embaixadas régias. Obviamente, como homens
de saber, de linhagem e de poder. Mas não estiveram em nada
disso segundo o modo de estar popular e burguês — por amor
da «república» e da nação. Evidentemente, dirá o leitor.
Outros interesses, outros modos — como a nobreza, decerto.
Então...
Então, quod erat demonstrandum: o sentido e a direcção
do actuar colectivo da clerezia verificaram-se segundo
motivações que não podiam originar consciência de nação e
sentimentos patrióticos. Por outras palavras, os modos e
vias da eclosão e fortalecimento da consciência colectiva
de nacionalidade e patriotismo devem procurar-se fora dos
territórios rigorosamente clericais. Esses que os discursos
do grupo eclesiástico permitem distinguir. Que é como quem
diz os discursos dos prelados, ordens e cabidos.
Mas então o médio e baixo clero? Os párocos, clérigos
de missa, frades e monges? Não é verdade que os vemos ao
lado do Mestre de Avis, por exemplo, pregando o «evangelho
português», conforme testemunha Fernão Lopes? É verdade. Só
que este clero mentalmente é povo. Não são dele as palavras
que se lêem nas «concordatas», concórdias e capítulos que
vimos atrás. Esse clero, multímodo, de direito, ética e
filosofia política sabia nada. Conhecia os seus privilégios
fiscais e forenses e sociais; e exigia o seu respeito. Mas
fazia-o pragmaticamente, sem a arrogância que assistia aos
prelados conhecedores dos porquês, com a espontaneidade de
quem defende direitos seus só por serem seus direitos —
como os almocreves, moedeiros, cidadãos e vassalos do rei.
Nessa socialidade caracterizada pela multiplicidade de
estatutos socioprofissionais e pessoais, o clérigo comum,
quase analfabeto e oriundo do povo, sabia-se distinto por
ordenação e função, por vínculo a um bispo ou igreja ou
mosteiro ou convento, tudo nacional e local; e não por
referência a um ímperium Christianum, a Roma ou ao papa.
Mentalmente era povo. A fortiori, os minoristas perpétuos,
casados, sem hábito, carniceiros, taberneiros, jograis,
bufões, mesteirais de «mesteres torpes»; bígamos, brigões,
falsários, usurários, proxenetas, ladrões, assassinos e
vagabundos (64). É óbvio que todos estes, feitos clérigos
por «desordenada cobiça» dos prelados, eram povo promíscuo,
mentes refeces. Gente, muita gente, subtraída ao foro
civil, que os reis e os burgueses, por motivos convergentes
e distintos, procuram a custo recuperar para a «república».
É uma luta porfiada, que vem desde antes de 1325 e
continuará para além do século XV (65). Uma luta que se
inscreve, aliás, nesse confronto mais amplo Estado versus
Igreja, a que já tivemos oportunidade de nos referir, o
qual é também anterior ao nosso período histórico e
persistirá depois dele. Com um breve interregno no reinado
de D. Afonso V, entre 1451 e 1477 — os anos que marcam o
apogeu das investidas neo-senhoriais em Portugal. O lado
eclesiástico dessas investidas é testemunhado
eloquentemente nos capítulos do clero de 1456, que acima
analisámos. Por isso os escolhemos, qualificando-os de
elucidativos e sintomáticos. Elucidativos da mentalidade
eclesiástica supranacionalista e apatriótica, conforme
mostrámos, e sintomáticos precisamente do neo-senhorialismo
quatrocentista e da imbecilitas do rei cavaleiro e africano
Afonso V. Nas Cortes de 1455 e nas de 1456, o monarca,
catolicamente entusiasmado contra o Turco, esquece as lutas
antieclesiásticas do pai e dos muitos avós e dá aos
quesitos dos prelados sins atrás de sins. Sobre notários
apostólicos, sim; sobre testamentos, últimas vontades,
hospitais, albergarias e gafarias, sim; sobre tabeliães das
audiências eclesiásticas, sim; sobre beneplácito régio,
sim, praticamente; sobre padroados das igrejas, sim; etc,
etc, doze sins, muitos deles «sem embargo de leis, artigos
e costumes que se atá ora usou» ou com revogação expressa
de quaisquer disposições em contrário feitas «atá aqui per
alguns reis». Os prelados jubilaram, como o fez D. Luís
Pires, bispo do Porto (Armindo de Sousa, 1983, p. 52). Mas

368
foi por poucos anos: com D. João II tudo voltará ao que
era, e com efeito compensado. Nem valerá aos prelados a sua
tradicional habilidade retórica: «Vossa Alteza saberá como
todos os sacerdotes são cavaleiros de cavalaria celestial
[...]; pedimos a Vossa Senhoria que ao menos eles hajam
aquelas liberdades que hão vossos vassalos [...], que não
paguem em os ditos pedidos, pois eles com seus bens são sob
a protecção da Igreja.» [Capítulo 7 dos gerais do clero das
Cortes de 1477 (Montemor-o-Novo).] Resposta do príncipe D.
João: indeferido — «Eles não deviam esto de requerer porque
sabem [...] que os vassalos são delo escusados porque são
obrigados a servir nas guerras.» Analogia improcedente,
requerimento sofismado, ponto final. Será este o estilo do
Príncipe Perfeito.

Conclusão

Em conclusão: o clero português dos séculos XIV e XV


afigura-se-nos um grupo social multifacetado e extremamente
desigual. Há o alto escol, constituído por prelados e
dignidades capitulares, arcebispos, bispos, abades,
mestres, priores e cónegos, gente instruída e poderosa,
rica e influente, supranacional de ideias e motivos,
incómoda para os reis e para as autoridades concelhias
(66). Esta gente viveu de honras e soberbas — ad maiorem
Dei gloriam, mecanismo de racionalização — alimentou entre
si conflitos e discórdias, mas, agredida ou contrariada do
exterior, soube formar ala coesa e ser estado dentro do
Estado, ad maiorem Dei gloriam sempre. Roma, o papa e os
cânones habitaram suas mentes, de modo que Portugal, o rei
e o direito pátrio não acharam nelas grande espaço. Nação e
Pátria não passaram por aí. A não ser esporádica e
perversamente, como em 1383-1385.
Depois o médio e baixo clero. Clérigos oriundos de toda
a espécie de povo actuaram e sentiram em conformidade com o
meio. Rurais entre os rurais e urbanos entre os urbanos,
guias e formadores de opinião muitos deles, esfumam-se na
história da noite. Foram povo.

Nobres

Honra e proveito definem os motivos da actuação da


nobreza. «Cobrar honra», a palavra de ordem. A qual honra,
assegura D. Duarte, «se percalça por fazer grandes feitos
de guerra e, na paz, vivendo virtuosamente com boas manhas
e saber; e, por termos grande estado, governando nossa casa
e fazenda bem e grandemente» {Leal conselheiro, cap. 9). Há
honra de guerra e honra de paz, ambas efeito de querer,
poder e saber, as três bases do siso. A honra é prémio do
siso. Da prudência, discrição e bom entendimento, partes
constituintes dele, do siso, segundo ainda D. Duarte. E
continuando com o Eloquente: «Honra é dada em esta vida per
duas guisas. A primeira por alcançarem bens de fortuna; a
segunda por serem virtuosos.» Por isso «se diz que honra é
avantagem ou reverença fecta [a] alguém em sinal de
preminência ou virtude» (Conselhos de el-rei D. Duarte, p.
226). E eis aí: honra e proveito. Sempre o binómio;
necessariamente. Como causa-efeito,
significado-significante, relação biunívoca. «Outros por
ganhar honra, outros com esperança de proveito — ainda que
cada uma destas duas cousas traga consigo ambas; e isto é
que, em servindo, aproveitavam em si e acrescentavam em sua
honra» (Zurara, Crónica da Guiné, cap. 17). A fazenda é
sinal e proporção do valor, da nobreza e da excelência. Por
isso é que «honra» é qualidade e é coisa, prosápia e
terras. Mas só entre nobres. Porque da recompensa material
do esforço mecânico e do engenho no comércio à recompensa
da virtude guerreira e da fidelidade ao rei ia um abismo —
conforme adverte o sentencioso Zurara: «O recompensamento
do ganho deve ser dado àquele que é mesteiroso e o
recompensamento da honra àquele que é muito nobre e
excelente» (Crónica de D. Pedro de Meneses, cap. 1). Lucro
avilta, honra não é lucro. Por isso o nobre não deve
negociar nem os reis deixarem de ser magnânimos para com
eles. Ser grande criador de fidalgos era emblema luzente de
monarcas e senhores poderosos.
Honra e proveito, nome e riqueza, reputação e segurança
— eis os motivos dos grandes feitos, razão do nobre viver.
Outros motivos, assim como o lucro ou pura ganância,
desonram quem os tem. A cupidez nua é estigma da vileza e
degrada as pessoas. Por isso é que a honra do mercador está
nas despesas que faz, a do sábio no desinteresse dos
estudos e lições, a da mulher na exposição graciosa da
beleza, a de todos no dar e manter dada a palavra (67).
Quer-se um retrato de fidalgo degenerado? Leia-se o

369
capítulo 16 dos gerais do povo de 1459 (Lisboa). Falam os
homens-bons dos concelhos. Assim: «[...] os fidalgos, que
têm de vós [el-rei], terra ou tença ou tudo per muitos anos
pêra vos haver de servir ao tempo do mester [...], metem-se
em tantas despesas baldias, que trazem, que a sua despesa é
maior quatro vezes que a recepta. E quando vêm ao mester
não têm tão-somente uma arma com que vos sirvam [...]. E
esto, senhor, [...] per míngua de boa ordenança que têm em
seu despender [...]. Comem e gastam nas ditas despesas
baldias, que não fazem defensão [o que os lavradores todos
os dias produzem em contínuo trabalho]. Pede vosso povo que
consireis esta sem-razão e deis ordem e modo como não
roubem o povo nem se sirvam do alheio como o fazem. Ca mais
rimaria ao fidalgo comprar dez gibanetes pêra quando
cumprisse que despender quanto há em louçainhas de que
pouco proveito nem honra procede». Fidalguia espúria, bem
se vê. Vazia das virtudes esperadas tanto quanto possuída
dos vícios opostos: gastadeira, glutona, desafecta ao
gládio, rapinante, efeminada, pervertida enfim. Fidalguia
rural, certamente, bazófia e pelintra. Que diferença desses
guerreiros que, em Marrocos, Zurara o diz, «nunca podiam
estudar em outra cousa senom em ganhar nome e honra
gastando e anojando seus contrairos» (Crónica de D. Duarte
de Meneses, cap. 75). Os guerreiros querem-se no ferro e
fogo dos prélios; na paz destoam e abusam — voz do povo a
que logo iremos.

Configuração social

Nos séculos XIV e XV os nobres são um grupo social tão


poderoso quanto reduzido. Menos de 1 % da população. Um
grupo, porém, extremamente heterogéneo. De modo que o
epíteto «poderoso» cabe somente a um reduzidíssimo escol —
o mesmo precisamente que atrás verificámos a respeito dos
clérigos. Atente-se no quadro na página seguinte.
Vê-se que a nobreza é um grupo a que se acede por
nascimento, por promoção e, contestada e indevidamente, por
auto-equiparação. No primeiro caso, o critério é de
parentesco, o sangue ou linhagem; no segundo, é
administrativo-político; e, no terceiro, é
sociopsicológico, de arrogaçao de um status entendido como
estilo de vida franqueado pelo capital económico e social.
E evidente que a nobreza da terceira origem, de «usurpação»
dissemos, «oficialmente» não o é. Só o rei ou quem ele
autorizasse podia fazer nobres. Mas o facto de haver nobres
«por decreto» significou desvirtuamento dessa ordem,
excepção à regra do sangue, desconsideração do sangue
afinal. Aliás, a usurpação de nobreza, cujos testemunhos
denunciadores explícitos datam das Cortes de 1472 (cap. 1),
e foi nestes testemunhos que nos fundamentámos ao elaborar
o quadro da página seguinte, é fenómeno de todos os tempos.
Não é verdade que os cavalarii do ano 1000, esses que
emergiram da vileza sobrepondo-se aos nobiles carolíngios,
foram eles também usurpadores, gente de desordenada
superbia? E os carolíngios relativamente aos seus
antecessores? É que, com efeito, o sangue nobre, entidade
biológica tida por distintiva, não passa nos vaivéns da
história de uma mitificada e mitificadora ficção. Em que as
pessoas acreditavam, porém. E nesse acreditar, que foi
social e político, se baseou a ordem, a inacessibilidade do
grupo, a sua coesão, a justificação dos seus privilégios e
a concórdia mais a estabilidade públicas. Como no jogo de
xadrez, são as posições que fazem a força das figuras e é
das regras que qualquer peão se pode converter em rainha,
bispo, cavalo ou torre. Na «conversão» surge o sangue, ou
seja, a virtus — que depois, efeito de sublimação, se
invoca, se explica e se pretende preservar. Fidalga é a
linhagem invocada e atribuída durante quatro gerações pelo
menos, dizem as Ordenações afonsinas (livro I, títs. 63, §
8). E para que o dizem? Para esconjurar usurpações e
denunciar usurpadores, certamente, pois, argumentasse, para
cima de bisavô poucos são os que podem guardar memória. Se
conseguirem guardada, escrita ou por outro modo, tanto mais
sobem de honra quanto em número de graus. De modo que a
nobreza de sangue é efeito de rememoração genealógica,
antiguidade proferida das raízes, escadaria de nomes noite
dentro até ao mito e à lenda, se porventura falhar a
história. Nobreza de sangue é menos biologia do que cultura
e civilização. Como o parentesco, de resto, mesmo o de
consanguinidade. E isto, por mais que se tenha dito o
contrário e se haja pretendido inculcar, no século XV
também, que o sangue nobre, derivado de imperadores e reis,
se caracterizava e distinguia por suas potencialidades
biológicas específicas veiculadoras de capacidades
psicológicas e aptidões morais superiores, específicas
pois, hereditárias, inatas. O elogio do inatismo, sabe-se
370
hoje, é o discurso ideológico pretensamente científico das
mentalidades conservadoras mais radicais. Afinal, é
estereótipo e preconceito. Atitude social. Por conseguinte:
Sejam quais forem os critérios de nobreza e nobilitação
— sangue, benfeitoria ou usurpação — de um ponto de vista
antropológico-histórico eles são perfeitamente iguais. Só
do ponto de vista político ou jurídico puderam ser
distinguidos. E então nobreza é uma ordem-estado
teoricamente aberta. Não é casta nem tem castas, apesar de
todos os apelos ao sangue. O rei pode nobilitar e nobilita
os que quer, «gente limpa», por benfeitoria graciosa. E os
que têm modo de estado cortesão, porque na corte moram e
com os nobres acotiam, podem, por efeito de trajectória,
usurpar nobreza que não possuem, dizendo-se fidalgos da
casa d’el-rei, cavaleiros ou escudeiros que não o são
apenas por não terem carta disso. E deste modo espúrio, a
ordem-estado nobre, só na teoria aberta, terá sido na
prática invadida. E também pelos fidalgos de benfeitoria,
posto que estes de modo recto, juridicamente exacto.

[Legenda de figura.]
Nota: Quadro elaborado fundamentalmente a partir de
Oliveira Marques, 1987, pp. 236-261, e Baquero Moreno,
1980, vol. II. A coluna que designa «origem de usurpação»
deve-se a informações colhidas em documentos que a seu
tempo serão citados.

Categorias

Os designativos dos nobres de linhagem foram muitos.


Nos séculos XIV e XV sobressaem os que pusemos no quadro:
ricos-homens, grandes, vassalos, barões, cavaleiros e
escudeiros fidalgos. Lembre-se, porém, que as duas últimas
categorias, essas em que se arrumavam os maiores efectivos,
podiam dever o seu estatuto mais às contias e criação do
que à linhagem. Crê-se que em meados do século XIV as
linhagens não ultrapassariam o número de 150 e que 100 anos
depois teriam descido para a casa de 130, o que daria, no
século XV, um total de 1000 famílias, 5000 a 6000 pessoas
(Oliveira Marques, 1986, pp. 241-242). Estas linhagens,
conforme se vê da diminuição do número nos dois séculos do
nosso estudo, andaram sujeitas aos reveses do tempo e da
história. Pestes, guerras, mudança dinástica, obediências e
traições, alianças matrimoniais, enfim, a roda da fortuna;
tudo isso foram causas e motores de grande mobilidade no
interior do grupo — estirpes a extinguirem-se, outras a
entrarem em cena, estas a subirem ao topo, aquelas a
recomporem-se, todas a voltearem. Contas feitas, durante os
100 anos que decorreram entre D. Pedro I e o bisneto D.
Afonso V, houve 19 linhagens que se afundaram e 22 que
emergiram. No quadro das linhagens ilustres apenas 7 se
mantiveram: Albuquerques, Azevedos, Cunhas, Pereiras,
Silvas, Sousas e Vasconcelos. Mas com mexidas importantes.
E todas atrás dos Braganças; sempre os Braganças à frente
desde a sua fundação, até que D. João II os decapitou em
Évora no mês de Junho de 1483. Nesses 100 anos, com efeito,
muito buliu a nobreza. Porque muito buliram os tempos e as

371
políticas. A tragédia da Inês linda, as três guerras de D.
Fernando, as lealdades a Beatriz e Leonor, a revolução de
1383-1385, a eclosão da dinastia de Avis, as longas
campanhas da independência, a expansão para Marrocos, a
sucessão de D. Duarte, D. Pedro e Alfarrobeira, as
cavalarias de D. Afonso V — tudo isso deu que pensar à
nobreza. Pensar, fazer cálculos e arriscar. Reptos atrás de
reptos. E não só esses, que se atêm ao político. Também os
de natureza económica, que muitos foram nesses anos de
crise e invenção. Ruralidade? Renda? Lucro? Terra?
Subsídio? Negócio? É ver as direcções do infante D.
Henrique e as do seu meio-irmão, o conde de Barcelos. Como
as dos Sás, por exemplo. Não foi fácil às estirpes
sobrenadar as vicissitudes várias do século. Ser linhagem
ilustre e manter-se demandou muita prudência, discrição e
táctica. Siso, disse D. Duarte. O siso que só uma escassa
meia dúzia soube ter. Onde estão nos fins do século XV os
soberbos Sousas afonsinos? Por aí, País inteiro,
esfrangalhados, escudeiros de Braganças por casamento com
obscuras Carvalhais. Irão redimir-se no ramo dos do Prado.
Mas agora, século XV, acolhem-se à sombra de outros e vão
comendo mosteiros (Armindo de Sousa, 1981, pp. 150-154). Os
Sousas são um monumento.

Ricos-homens

De todos aqueles designativos que enumerámos como


epocais para significar gente de nobre sangue, «ricos-
homens» merece atenção. É nome muito antigo, tanto como o
de «infanções» que, no nosso período, só ocorre em textos
jurídicos ou em referência a eles — precisamente porque
alguns privilégios e isenções dessa apagada categoria foram
atribuídos a homens do terceiro estado. D. João I, eis um
caso, concedeu em 1385 aos honrados cidadãos de Lisboa,
«oficiais nossos, ou que foram dos reis de ante nós, e
juízes e almotacés e corregedores e vereadores que forem da
dieta cidade nem seus filhos nem netos nem sejam metidos a
tormento, salvo naquele caso em que o deve[m] ser os
fidalgos, per a guisa que per eles é pedido». Por eles foi
pedido que houvessem «igual honra dos infanções da Terra de
Santa Maria» (68). Aliás, o pedido dos lisboetas não contém
inovação, mas, isso sim, reivindicação de um privilégio
antigo contemplado no «foro» da cidade, conforme
explicitamente se afirma. Um privilégio com certeza
desrespeitado nos reinados anteriores, mormente no de D.
Fernando, e que D. João I promete acatar. Mas só
parcialmente no que toca a beneficiários. Adiante.
«Ricos-homens» é uma designação de alta nobreza muito
corrente nos tempos anteriores ao século XIV. Foi o escalão
mais alto; mais alto do que o dos infanções. Persistiu sem
equivalentes referenciais até mais ou menos 1350. A partir
daí cai em desuso. Nas Cortes de 1331 (Santarém) e na
pragmática de 1340 aparece assiduamente; já, porém, nas
Cortes de 1361 (Elvas) a ocorrência esmorece. Passam a
preferir-se sinónimos como «vassalos», «grandes», «vassalos
grandes», «vassalos maiores», «poderosos», «grandes
senhores» e «barões». Todos «dom». Entretanto, vão-se
multiplicando os títulos nobiliárquicos. Primeiro, o de
«conde», muito antigo e dado esporadicamente a indivíduos,
sem carácter de transmissibilidade hereditária até meados
do século XIV. O primeiro conde português terá sido D.
Mendo de Sousa, no tempo de D. Sancho I; o segundo, D.
Gonçalo Garcia de Sousa, reinado de D. Afonso III; e o
terceiro, o de Barcelos, em 1298, o qual se tornará
transmissível na linhagem em meados de Trezentos, conforme
se disse. Os duques, marqueses, barões e viscondes serão
criados no século XV, assim por essa ordem, uns a seguir
aos outros. Ora, o uso daqueles sinónimos e a proliferação
dos títulos deverão interpretar-se como causa-efeito do
esvaziamento denotativo da expressão «ricos-homens». A qual
continuará, todavia, até ao século XVI, ou seja, até muito
depois de terminado o período do nosso estudo. Continuará.
Mas com profundas alterações de sentido. Daí, uma pergunta:
quando é que «ricos-homens» deixa de significar escol da
alta nobreza, «filhos de algo» opulentos, grupo de filiação
linhagística, homens poderosos por suas funções
político-administrativas e militares? Ao certo, data certa,
não se sabe. Trata-se, provavelmente, de um processo
derrapante, moroso e indatável em termos de cronologia
precisa. Processo que se averigua em 1361, como se disse, e
que parece ter produzido efeito completo antes de 1418.
Efectivamente. Em 1385 ainda se fala de «grandes e sesudos
ricos-homens, cavaleiros e dinidades — bispos e outros
prelados — e leterados do nosso conselho e outros muitos
cidadãos chamados em cortes» (cit. por M. Caetano, 1985, p.
189). A expressão designa aqui obviamente a alta nobreza —

372
«ricos-homens», ditos «grandes e sisudos», ao lado dos
«cavaleiros», nobreza média. Depois o clero e o terceiro
estado, precedidos dos letrados, ou assessores
técnico-jurídicos do rei. Isto é, estão aí os protagonistas
das cortes: o rei com os seus juristas, os fidalgos, a
clerezia e os concelhos. Em 1395, aliás nas Cortes de
1394-1395. o mesmo parece suceder: «prelados, ricos-homens,
cavaleiros, ricas-donas, donas, escudeiros e outras pessoas
poderosas»; e também «prelados, igrejas, mosteiros,
ricos-homens, ricas-donas, cavaleiros, donas, escudeiros e
outros poderosos» (caps. 17 e 18). O mesmo parece suceder,
dissemos, mas há diferenças. Em primeiro lugar, quem agora
fala são os procuradores dos concelhos e não já o rei ou
alguém por ele. Depois, procura-se fazer um rol de
«poderosos» devidamente hierarquizado e não uma lista de
intervenientes de cortes. Por último, inclui-se a categoria
feminina de «ricas-donas» homóloga dos «ricos-homens». De
tudo isto se tira:
a) Os «ricos-homens» são categoria social reconhecida,
tanto pelos reis como pelo povo, como escalão superior da
nobreza, ao qual se segue o escalão médio dos cavaleiros e
o baixo dos escudeiros;
b) Esse escalão superior, denominado «ricos-homens», é
de natureza sociológica e não já especificamente política
ou administrativa ou militar ou económica. É isso tudo
junto, indistintamente, enquanto penhor de prestígio e
privilégio, leia-se «de poder» — «poderosos» são chamados.
Mas poder que mulheres também detêm, suas esposas ou
viúvas, as «ricas-donas». E, logo, o poder que é outorgado
em razão do parentesco, da linhagem. Os «ricos-homens» são,
por conseguinte, ainda nos finais do século XIV, um «grupo
de filiação» exclusivamente integrado pelos membros da alta
nobreza. Mas o nome não designa senão isso, um estatuto de
prestígio. O que quer dizer que já está despido das antigas
denotações administrativas e militares.
Em 1418 os «ricos-homens» parece terem perdido a sua
tradicional coloração linhagística. Pelo menos alguns.
Porquê? Porque se detectam arrivistas. Criados por decisão
régia — como esse «Luís Gonçalves, que ao diante foi
rico-homem e vedor da Fazenda em Lisboa» (Zurara, Crónica
de D. Pedro de Meneses, cap. 73). «Rico-homem» vira título
honorífico, distinção. O efeito de derrapagem está acabado.
Até porque a distinção não parece excessivamente elevada.
Vejam-se as seguintes hierarquizações:
«Infantes, condes, fidalgos, ricos-homens e povo»
(1433);
«Duques, condes, ricos-homens e fidalgos» (1472);
«Duques, marqueses, condes, fidalgos, cavaleiros,
ricos-homens, escudeiros» (1475);
«Duques, condes, barões, ricos-homens, fidalgos,
cavaleiros e outros vassalos» (1476);
«Duques, condes e ricos-homens de meus regnos» (1476)
(69).
Vê-se bem quanto é fluida a posição dos ricos-homens
quatrocentistas no contexto da nobreza. Distinguem-se dos
fidalgos de título e vagueiam entre as categorias
restantes, atrás e à frente de «fidalgos» e «cavaleiros». É
de crer que, rigorosamente, se devam colocar a seguir aos
titulados, conforme inculca o penúltimo texto citado, o
primeiro de 1476, que é carta de nomeação de procuradores
para o auto de juramento e menagem ao príncipe D. Afonso,
filho de D. João II. Realmente, nessa carta, aliás
respeitando os pruridos da nobreza, a ordem de precedências
afigura-se observada: «Todos os estados destes regnos,
scilicet, dos prelados, arcebispos, bispos, mestres,
priores, abades, cabidos; e dos duques, condes, barões,
ricos-homens, fidalgos, cavaleiros e outros vassalos; e das
cidades, vilas, castelos e outros lugares chãos destes
sobredictos regnos.» Faltam alguns, mas os que se escrevem
estão ordenados, exceptuando evidentemente os «abades».
O que se acaba de dizer é confirmado quando procuramos
ricos-homens nos fidalgos identificados do século XV. Entre
as centenas que se conhecem só achamos, além do referido
Luís Gonçalves, quatro (70). Quatro nomes que ostentam essa
designação como quem ostenta um título: Álvaro Vasques de
Almada, Martim Afonso de Miranda, Diogo Fernandes de
Almeida e Nuno Martins da Silveira. Muito poucos, com
efeito. E nenhum deles pertencente a linhagem antiga e de
primeira. Antes, parecem ter subido por virtude de serviços
e funções —"capitania-mor do reino, alcaidaria-mor de
cidades e vilas, escrivaninha da puridade de infantes e
reis, vedoria da Fazenda, etc. Três deles são do conselho
régio. Dá a impressão de que se chamam «ricos-homens»,
designação honorífica, porque não podem chamar-se por
título nobiliárquico — duque, marquês, conde, visconde ou
barão. Estariam, portanto, situados, na ordenação
hierarquizada da nobreza, logo a seguir aos titulados e

373
antes dos fidalgos tout court. Na alta nobreza? Sim, por
isso que usam «dom» e integram, provavelmente todos, o
conselho d’el-rei. E aqui estaria a explicação de eles
serem muito poucos. Porque, note-se: se muitos houvesse e a
distinção fosse excelente, com certeza acharíamos mais do
que esses quatro entre os cerca de 200 fidalgos que sabemos
bem identificados. Não estranharíamos sequer que o «título»
de «rico-homem» se haja transformado entre 1395 e 1438 numa
espécie de emblema honorífico de conselheiros régios, como
tal escolhidos por razão de saber, experiência e lealdade
comprovada. A tal suposição nos induz a leitura do
Regimento do reino aprovado nas Cortes de Torres Novas de
1438, no ponto onde se diz que ficaria vedado ao conselho
aí instituído «fazer duque nem conde nem rico-homem»; que
isso havia de pertencer às cortes.
Enfim, o perfil do rico-homem quatrocentista nada tem a
ver com o do rico-homem de Duzentos. Não é efeito de
linhagem, mas de decisão honorificadora. Modo de o Poder
distinguir servidores excepcionais, puxando-os para
precedências a que por outras vias não podiam aceder. Eles
e suas famílias. Veja-se: «Por nós termos feito rico-homem
Nuno Martins da Silveira, do nosso conselho, escrivão da
nossa puridade, coudel-mor de nossos regnos, por seus bons
e grandes merecimentos, nos praz que Leonor Gonçalves de
Abreu, por ser sua mulher e dona de linhagem, e bem assi
suas filhas, Guiomar de Abreu, Leonor da Silveira e
Violante de Abreu, daqui em diante sejam chamadas e
nomeadas cada uma delas per dom.» Assinado por D. Afonso V
em 1 de Junho de 1451 (71).

Dado o exposto, voltemos ao quadro da página 370.


«Ricos-homens» são os grandes fidalgos de linhagem,
mesmo infantes ou titulados de conde, até meados do século
XIV e provavelmente até princípios do seguinte. A partir
daqui, mais ou menos 1415, não. O termo deixa de ter
significado de alta nobreza em geral e é reservado para
distinguir pessoas promovidas por benevolência régia; logo,
torna-se expressão de uma categoria de fidalgos criados ou
promovidos por acto de benfeitoria. E, como designação
honorífica que é, tudo persuade a crer que se extinguia com
a morte do beneficiário sem passar à descendência — a menos
que o monarca, novamente por benfeitoria, decidisse o
contrário, senão quanto ao «título», pelo menos em alguns
dos seus efeitos — como o privilégio de usar «dom». Vide as
filhas de Nuno Martins da Silveira.
Com «barões» sucedeu processo análogo. Só que o termo
se transformou em título nobiliárquico, que não apenas
honorífico. Isto sucedeu a primeira vez em 1475 e
contemplou o Dr. João Fernandes da Silveira, «barão de
Alvito» se chamando. O título seguirá na linhagem. A partir
daí, o nome, que ainda em 1472 era apelativo genérico da
grande nobreza, se bem que extremamente raro, passa a ter
essa denotação titulatória privativa (Cortes de 1472, cap.
21). Conforme vimos há pouco em texto de 1476.
«Vassalos», assim sem mais, é expressão muito ambígua.
Designa fidalgos de qualquer categoria e também gente do
povo, mesteirais inclusive, os ubíquos «vassalos d’el-rei»,
contra a proliferação e, logo, aviltamento, até os
parlamentares concelhios se insurgem uma, duas, muitas
vezes. O processo degradativo é fenómeno do século XV.

«Grandes»

Restam os «grandes» — pois que «poderosos», outrora


termo exclusivo dos «potentes» homens de armas, após os
finais do século XIV inclui os prelados também. «Grandes»
preencheu a função denotativa antigamente cumprida por
«ricos-homens». Em 1472 os deputados populares eram
explícitos: entendiam por «grandes» os infantes, duques e
condes (cap. 56). E, embora não o digam, também os
marqueses, que hierarquicamente eram mais «grandes» do que
os condes. Barões e viscondes ainda estavam pata vir. De
modo que aí onde se ler «grandes», «grandes senhores» ou
«grandes do reino», no século XV e em contexto de
referenciação social, entenda-se «alta nobreza» e
excluam-se, por conseguinte, os cavaleiros e escudeiros
fidalgos. Mas saiba-se que essa alta nobreza, quando de si
própria fala, não se diz por esse nome. Prefere
autodesignar-se por «fidalgos e vassalos», «vassalos e
fidalgos», «fidalgos e cavaleiros» e simplesmente
«fidalgos». Isto em 1398 e em 1472, 68 capítulos gerais

374
seus apresentados nas cortes desses dois anos (72).
«Grandes» só se dizem uma vez, no capítulo 13 de 1472. Em
contrapartida, é desse modo que os povos e os cronistas
gostam de os designar.
À cabeça dos «grandes» estão os infantes, como seria de
esperar. A partir de 1415 terão título: o de duque. Mas os
duques-infantes da ínclita Geração, quando assinam
documentos, preferem «infante» a «duque». Assim, D.
Henrique escreve «JDA» e D. Pedro «Jfant dom p.º» —
contrariamente aos outros titulados, que costumam assinar
«o conde», «o marquês», etc. Diga-se ainda que no século XV
os bastardos de reis parecem excluídos do direito de
chamar-se infantes. Não se chamaram assim nem por outros
foram chamados. Não o foram, com efeito, D. Afonso e D.
Beatriz, filhos de D. João I; D. João Manuel, apontado como
descendente de D. Duarte; e D. Jorge, bastardo de D. João
II. Este último é designado nas crónicas como «senhor D.
Jorge».
Os «grandes» foram sempre no período do nosso estudo um
grupo reduzido de pessoas. Cálculos feitos apontam para 500
a 600 indivíduos, mais ou menos 100 famílias, cerca de 20
linhagens, 10% dos nobres todos, 0,04% da população
portuguesa global média (v. quadro na página 298, em
baixo). Mas esta minoria espantosa senhoreou, juntamente
com o clero e à parte o rei, o território, a economia e o
poder político do País. Em 1481, pensando nisso, D. João II
subia ao trono e verificava: era rei, pois; mas das
estradas de Portugal. Duques, marqueses, condes, viscondes
e barões, 32 titulados em tão pequeno rectângulo, haviam
crescido como urtigas nos últimos 30 anos. Sobretudo a
norte do Tejo, no Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes e
Beira, 59% dos senhorios totais. Eles eram os rebentos da
dinastia, com os Braganças à frente, seguidos pelos Viseus
e os Bejas; e eles eram as grandes estirpes que a dinastia
manteve ou guindou. Eram os Albuquerques, os Almadas, os
Ataídes, os Castros, os Coutinhos, os Limas, os Meios, os
Meneses, os Noronhas, os Silveiras e os Vasconcelos. Os
quais, casando, puxaram para cima os Azevedos, os Cunhas,
os Mirandas, os Pereiras, os Pessanhas, os Silvas e os
Sousas. Gente de título, de terras, de jurisdições: de
poder. O qual poder, como é sabido, gera abusos. Vejam-se
os capítulos gerais e especiais dos concelhos apresentados
depois de 1451, sobretudo os das Cortes de 1459, de 1468 e
de 1472-1473. São balada de oprimidos, cortejo de
arrenegos, fita que lembra ofarwest. Nunca em todo o nosso
período se viu tamanha soltura da arrogância como nos anos
que vão de 1451 a 1477. São os anos neo-senhoriais. A que
D. Afonso V assiste magnânimo e ingénuo — sonhando
cruzadas, fazendo conquistas e marqueses e viscondes e
barões, sorrindo aos bispos e prelados, compungindo-se
perante os povos, ferindo guerra insensata. Um quarteirão
de anos lamentosos, povo o disse. Os quais anos explicarão
o invento de um Príncipe Perfeito e santo. S. D. João II,
milagres e tudo. Mas uma «canonização» demo-política, que
anos de neo-senhorialismo provocaram.

Cavaleiros

«Cavaleiros» é o nome da média nobreza. Os textos de


Trezentos dão-no-los a seguir aos «ricos-homens» nos passos
em que ambos os termos designam arrumação sociológica ou
escalão. Noutros contextos, ideológicos ou jurídicos,
«cavaleiros» são todos aqueles que acederam à ordem da
cavalaria, quer por acto solene, quer por decisão
administrativa ou por simples reconhecimento de pares. Que
tudo isso fez cavaleiros no período do nosso estudo. Depois
de 1415 era sabido: fidalgo ia a Marrocos, dava à espada
contra mouros e trazia o «diploma». Marrocos foi a escola
reconhecida, subterfúgio e cadinho. Nobrezas de muitas
nações, é Zurara quem o diz e D. João II confirma, iam lá
buscar a grande dignidade almejada. E autos de armar
cavaleiros foram espectáculos correntes desde a tomada de
Ceuta. Pequena escaramuça que houvesse, a qual nem feito
merecera chamar-se, era tida por vitória e concluída com
tais autos (Crónica de D. Pedro de Meneses, II, cap. 18;
Crónica de D. Duarte de Meneses, cap. 50). De modo que
muitos cavaleiros formalmente consagrados por D. Pedro de
Meneses e outros capitães de além-mar tiveram razão de
interrogar-se no segredo do seu íntimo: que fizeste? Que
africas? Que cavalarias? E responder-se: enfrentei o medo
das ondas. De tal modo o cadinho de Marrocos virou
subterfúgio de sonsos, que a própria nobreza não hesitou
dizer isto ao rei nas Cortes de 1472-1473: «Senhor, vossa
alteza vê quanto é dissoluta a cavalaria em vossa terra e
quanta despesa se vos delo segue [...]. Vossa mercê queira
em esto prover, mandando a vossos capitães e pondo por lei
que qualquer que fizer cavaleiro homem que não tenha
375
conhecidamente por hu [onde] manter o estado da cavalaria
que do seu lhe dê per onde a mantenha, porque o direito da
cavalaria assi o quer; não, porém, tirando fieldade a esses
capitães de poderem fazer cavaleiros alguns que tais e tão
evidentes feitos fizerem que per si a honra da cavalaria
mereçam» (cap. 12 da nobreza). Abaixo os sonsos, portanto —
esses fidalgos pobretões que viam em Marrocos um fácil
trampolim; e que vivessem os heróis, quaisquer que fossem
seus teres. Marrocos-escola, da cavalaria estágio sério,
desejava-se. O rei agradece e diz «Sim». Mas não fez coisa
nenhuma.
Vê-se do passo citado que o cavaleiro do século XV era
um escalão social e que muitos iam às praças marroquinas no
intuito de o atingir. E com isso obter a inscrição do nome
no livro dos cavaleiros que existia na corte e o acesso às
contias. Modo de promoção. Outro modo foi administrativo e
há-de ter contemplado letrados, funcionários régios e até
burgueses do comércio marítimo. Outro modo ainda terá sido
o reconhecimento tácito, conforme se disse; porventura o
mais corrente, filho que sucede a pai, por exemplo. Muitos
e distintos modos, já se vê. E, como assim, incontroláveis,
vê-se também. De modo que não se estranhará a categoria
«fidalgos de usurpação», cavaleiros e escudeiros, que os
povos afirmam existir na corte em 1472. Como também não se
estranhará essa suspeita das Cortes de 1465 sobre moços
fidalgos que verdadeiramente não o eram (determinação n.º
8). E posto tudo isto, compreender-se-á o asserto de D.
João II, em carta de 1482 enviada aos capitães de Marrocos
sobre o assunto que lemos acima e que o pai não resolveu:
«A mor parte da gente deste regnos são cavaleiros» (Álvaro
de Chaves, p. 170).
Tudo isso fez que os cavaleiros dos finais do século XV
fossem em número, perfil e obediência muito diferentes dos
dos princípios do século XIV. Em 1305, com efeito, ser
cavaleiro era uma alta distinção, que só o rei podia
conferir. E conferia-a mediante a cerimónia da investidura.
A proliferação e aviltamento da categoria, se bem que
iniciados no século de Trezentos com os cavaleiros vassalos
de senhores, acentuaram-se desmesuradamente na centúria
quatrocentista, conforme vimos, efeito de três factores:
conquistas do Norte de África, burocratização da
administração central e incremento do comércio marítimo. As
navegações atlânticas, que hão-de fazer das naus tablados
de bravura e promoção, contaram pouco no nosso período.
Enfim, os «cavaleiros», média nobreza, constituíram o
grupo mais numeroso dos fidalgos. É mesmo provável que para
o povo, fiamo-nos dos textos das cortes, eles tenham sido
os fidalgos sem mais. Grandes, poderosos e senhores eram os
outros, os de primeira, a alta nobreza. E os da ínfima
espécie são ditos «escudeiros», «acostados» e
«apaniguados», ou «homens de». Se bem que só «escudeiros»
(73), e não já os outros dizeres, se deva interpretar como
designativo de nobreza. E mesmo assim com cautelas. Porque,
com efeito, onde situar esses muitos escudeiros burgueses
do Porto que têm pelouros na câmara, votam nas vereações,
vão às cortes e dizem mal dos nobres? Homens do terceiro
estado recentemente promovidos? Então por que não se dizem
fidalgos, «escudeiros fidalgos», como alguns seus colegas
não se esquecem de assinalar? É que cavaleiros do terceiro
estado, burgueses ou não, houve muitos e toda a gente os
conhece: são os cavaleiros-vilãos. Escudeiros-vilãos,
todavia, soa a novidade, a solução social e política contra
a inflação dos «vassalos» nas baixas categorias do povo. É,
por outro lado, o continuar da inércia de derrapagem que já
vimos ter aviltado nobres étimos. Sociedade que muda puxa
atrás de si as palavras que a dizem.
Sobretudo quando as palavras implicam expectativas de
proventos. Ou, mais rigorosamente, quando as palavras
rotulam posições de honra e proveito e atribuí-las a alguém
é metê-lo nas posições rotuladas. Então, mudadas as
posições, o sentido das palavras altera-se. E a categoria
dos nomeados também. Ou a inversa. Ou tudo junto. E babel
instala-se — ou a «dissolução», como disseram os nobres em
1472 a respeito do «estado da cavalaria».

Vassalos

«Vassalo», por exemplo, havia significado «fiel do


rei», homem que o servia incondicionalmente na guerra com
coipo e haveres e que, por esse serviço, beneficiava de
contrapartidas objectivadas em mantimento e segurança. Por
isso, todos os nobres, de cavaleiro para cima, eram
vassalos e recebiam «contia» ou «tença». Seus filhos varões
também, desde logo o nascimento, porque se tratava de
guerreiros fiéis a haver. No reinado de D. Fernando, devido
às dificuldades financeiras da monarquia, as contias e

376
tenças são restringidas; excluem-se delas os filhos
segundos que não tenham atingido a idade militar. Depois,
por igual motivo, D. João I faz o mesmo aos primogénitos.
Entretanto, e desde os princípios do século XIV, admitem-se
escudeiros na categoria de vassalos, com direito,
obviamente, àquelas subvenções — o que significou um
primeiro passo para a erosão social da categoria (Oliveira
Marques, 1986, pp. 249-251). No século XV, ainda no reinado
do Mestre de Avis, «o estado dos vassalos» é invadido por
plebeus. De tal modo que plebeus vassalos, os burgueses,
não se sentem, eles próprios, honrados com a distinção e
pedem, nas Cortes de 1433 por exemplo, que o monarca
purifique a categoria, excluindo todos os refeces. Parece
que a invasão se deu depois da conquista de Ceuta. As
contias deixaram de pagar-se, até porque aos plebeus
bastavam os privilégios fiscais e as isenções de muitos
encargos concelhios que o estatuto outorgava — coisas que
não contavam para os vassalos fidalgos, que, por serem
fidalgos, já as tinham (74). De modo que ser «vassalo» no
século XV só interessou aos do povo. Compreende-se, assim,
que os nobres tenham deixado de se autodesignar dessa
maneira. Em 1398, conforme vimos, repetem como um
estribilho: «nós fidalgos e vassalos», «nós vassalos e
fidalgos»; em 1472, nem uma só vez assim se chamam. É certo
que nas crónicas e nos textos jurídicos ou cerimoniosos o
termo continua a dar-se-lhes. Mas não é mais uma
autodesignação; eles não se revêem no termo. A «dissolução»
estava feita.
Com ricos-homens e cavaleiros deu-se, conforme já
vimos, processo erosivo semelhante. Causas múltiplas, num
ponto ou noutro coincidentes, efeito análogo: esvaziamento
do sentido original das palavras e, logo, alteração do
perfil das coisas significadas, ou vice-versa, e sempre
degradação. Como assim, inventam-se modos de gratificar as
novas distinções, os «grandes», os «titulados», os
«cavaleiros» e os «escudeiros» merecedores. E então às
«contias» desvirtuadas sucedem-se os «assentamentos», as
«moradias» e os «casamentos». Tudo pago a nobres. As
tenças, que vimos antigas e paralelas das contias,
recompensas ad casum e não subvenções pro militiae,
continuarão com esse estatuto. Recebê-las-ão fidalgos e
plebeus, homens e mulheres, leigos e clérigos, escolares e
moços fidalgos (75). Sendo recompensas régias ad casum, ad
casum no que toca à natureza da concessão, havia-as
obrigatórias e por graça, vitalícias e temporárias. Cremos
que as obrigatórias eram tão-só, no século XV, aquelas que
eram dadas em vez de «moradias», as «moradias por tenças»,
e em vez de «casamentos», os «casamentos por tenças».
Estas, não sendo pagas ao beneficiário podiam ser por ele
transmitidas aos herdeiros, exigindo-se, todavia,
autorização régia para isso. As Cortes de Santarém de 1482
tiveram como agenda o lançamento de «pedidos», ou imposto
geral extraordinário, sobre o País para a obtenção de
dinheiros destinados a pagar as dívidas de D. Afonso V,
falecido no ano anterior. As tenças em atraso achavam-se
entre essas dívidas. As obrigatórias, evidentemente. Parece
certo que elas, as tenças, eram pagas também em rendas
régias ou direitos reais, «foros ou portagens ou mordomado
ou salaio e assim semelhantes», com grande vantagem para
beneficiários especuladores. Isto em 1472 (cap. 18 das
Cortes). Os povos estão contra. Acham, por exemplo, que os
fidalgos de benfeitoria, esses que o rei usa criar «em
sobeja e desordenada regra», são ruína do erário público,
por causa «das grandes e sobejas moradias e casamentos e
desordenadas tenças» (cap. 1 das Cortes). E apontam
reformas. Reformas tendentes a evitar que a soltura não
perverta as finanças do Estado nem, sobretudo, provoque a
alienação dos direitos reais. Assim:
a) Que todos aqueles que receberam «casamentos» e
depois receberam «tenças graciosas» sejam destituídos
delas;
b) Que aqueles que obtiveram tenças «a não descontar em
seus casamentos» continuem com elas, se ainda não as
receberam por inteiro — mas sejam-lhes depois descontadas
naqueles;
c) Que os que têm «tenças graciosas» por merecimento de
serviços recebam «soma certa de dinheiro» até serem pagos
delas;
d) Que os bispos e semelhantes pessoas, nacionais ou
estrangeiros, beneficiários de «tenças graciosas» sejam
delas destituídos;
e) Que no futuro não mais sejam atribuídas tenças a
ninguém. E que, em lugar delas, faça o rei «mercê de
dinheiro» ou de ofícios ou «outros favores» àqueles que
merecerem ou vierem a merecer recompensas suas,
entendendo-se como tais também os que servem o monarca e
ele haja de casar. Não tendo a coroa meio de pagar,
vendo-se por isso forçada a recorrer a tenças, sejam estas
concedidas como forma de pagamento em prestações, cessando
quando a paga ficar concluída.

377
A resposta de D. Afonso V é longa e elucidativa do caos
da matéria. Em princípio, concorda com os povos. Distingue
as «tenças obrigatórias» das «tenças graciosas» e dos
«contentamentos». As primeiras são aquilo que dissemos
acima: empréstimos anuais a fundo perdido compensadores da
não atribuição de casamentos e moradias. Diz o rei que vão
cessar, excepto se os beneficiários forem oficiais que
andem na corte e sirvam continuamente os respectivos
ofícios. As segundas serão revistas caso a caso, ficando,
porém, estabelecido de imediato que aquelas que eram dadas
a mulheres de religião terminavam, como também de imediato
entrava em vigor a proibição de transaccionar tenças e
assentamentos, mesmo a título de sucessão hereditária,
sendo cassadas todas as cartas e alvarás que o autorizavam.
Igual medida para as moradias. Afora o item dos bispos e
semelhantes, deve dizer-se que D. Afonso V aceita as
sugestões dos povos e as segue nas grandes linhas. Mas
introduz uma figura que vai minar tudo: os
«contentamentos». «Contentamentos» eram prendas, dádivas,
obséquios materiais. Sempre os houve. Onde então a
novidade, se sempre existiram? Nisto: em poderem ser dados
sob a forma de tenças, as graciosas, essas precisamente que
os povos pretendem abolir e que ele, Afonso V, diz que sim
senhor, que tudo fará para que a abolição se efectue. E
institui o «contentamento ou tença por ele»... Mais tarde
chamar-se-á a isto «graça por tença», designativo mais
digno de reis.
Sabe-se que D. Afonso V, apesar das promessas e do
expediente dos contentamentos, deixou correr tudo como até
aí. Aliás, promessas semelhantes e até mais solenes já
tinha formulado nas Cortes da Guarda de 1465 sobre a mesma
matéria (determinações 7 e 13). E não cumpriu, como é
óbvio. Porque nunca cumpriu, o assunto passou para o filho.
Nas Cortes de 1481-1482 é abordado em diversos capítulos —
os capítulos 50, 55, 56, 58, 59, 61, 62 e 63 dos gerais dos
povos. Ficamos a saber que as tradicionais tenças se
mantiveram em suas modalidades e que outras, por causa da
guerra com Castela, foram concedidas. Os povos repetem as
propostas de 1472, praticamente com os mesmos
considerandos, e alargam as suas críticas às novas
situações. D. João II, na sua conhecida frontalidade,
analisa os pedidos ou propostas e dá a cada um deles sem
rodeios a sua decisão. Outras vezes, na sua igualmente
conhecida astúcia, nega os pressupostos e passa à frente;
ou então remete para ordenação que diz feita ou a fazer.
Concretamente, assegura abolir as tenças graciosas; as que
foram concedidas por serviços na guerra de Castela; as
«graças por tenças», ou seja, os tais contentamentos pagos
a prestações; e as tenças atribuídas a freiras. Pela
primeira vez, tanto quanto sabemos, os povos rotulam as
tenças de usura, chamando-lhes «onzena», essas que eram
pagas por assentamentos, moradias e casamentos. No que
tinham certa razão, pois, conforme dissemos, não passavam
de empréstimos a fundo perdido, isto é, de altos juros
dados pelo rei como paga de manter em sua posse o valor
daqueles subsídios. Mas, sem embargo do rigor da
qualificação — «onzena», pecado mortal —, o Príncipe
Perfeito não se deixou demover. E as «tenças obrigatórias»
tanto quanto muitas das «de graça» continuaram e entrarão
pelo século XVI dentro. Razões? Económicas, financeiras,
políticas. Mas também ideológicas. O rei tinha a obrigação
de ser magnânimo, largo na dispensa de bens. Ora, as tenças
eram o modo de ele exercer e mostrar a sua magnanimidade
junto dos clérigos e dos povos. Inclusive dos concelhos.
Pois os subsídios restantes, «assentamentos», «moradias» e
«casamentos», eram específicos de nobres ou de moradores de
suas casas, como dos da corte do rei. Não admira, portanto,
que D. João II, um monarca tão atento à sua imagem, tenha
mantido essas despesas que o povo rotulava de sobejas,
desarrazoadas e até pecaminosas. O povo, vide os burgueses.
Os «assentamentos» eram pagos a nobres de título, a
começar pelos reis e príncipes e infantes ou infantas. Quer
dizer, eram pagos à alta nobreza, excluídos os
quatrocentistas ricos-homens. Trata-se de um subsídio
ordinário. Que se diz ter surgido em meados do século XV.
Cremos, porém que a origem é anterior, porventura datável
das Cortes de Évora de 1408, altura em que o País, através
dos seus representantes e por solicitações de D. João I,
decide atribuir a D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique, que
punham casa, o subsídio anual de «dezoito contos, scilicet,
na casa do infante Duarte oito contos e nas casas do
infante Dom Pedro e Dom Henrique dez contos, scilicet, a
cada um cinco — assi pêra manter as mesas dos dictos
infantes como pêra moradias e mantimentos e vestires seus e
de seus escudeiros e aguardadores e oficiais e outras
pessoas que com eles andarem e pêra despesas nom certas»
(L.º 3.º dos Pergaminhos do Porto, n.º 61). Se esta
suposição está correcta, e cremos que sim, os assentamentos
foram instituídos para que a mais alta nobreza, jovens que
se emancipavam, pudessem manter o seu estado. Isso vê-se no
texto de cima. Como também a diferença entre esse subsídio

378
e o de «moradia». Do assentamento, com efeito, pagavam-se
as moradias, além do mais que é especificado. E entre esse
mais embora não se diga, deviam estar os casamentos. A
estes subsídios, «moradias» e «casamentos» já iremos.
Face a esta interpretação, os assentamentos não foram
criados para substituir as contias. É que estas eram
concedidas por motivo militar e aqueles por motivo
sociopolítico ou de exigências de estatuto. Podem,
portanto, ter coexistido. As contias eram devidas a
vassalos, nobres ou plebeus, ao passo que os assentamentos
não. As primeiras entraram em desuso no primeiro quartel do
século XV, mas só porque os vassalos depois de Ceuta se
multiplicaram desmesuradamente — veja-se, a este respeito,
o capítulo 84 dos gerais dos povos de 1433
(Leiria-Santarém). Aliás, o desuso — ou negligência em
pagar — ainda nesse ano de 1433 penaliza a consciência de
D. Duarte, o qual promete «com boa vontade de lhas mandar
pagar [as contias] quando o ele puder fazer» (resposta ao
mencionado capítulo). A negligência, porém, havia-se
convertido em rotina, mais ou menos desculpada pelos
vassalos plebeus — outras «pagas» recebiam suficientemente
vantajosas de modo que o «quando» da promessa nunca
provavelmente chegou a acontecer antes de D. João II. Com
este monarca, sim. No seu afã de pôr as coisas em ordem,
estabeleceu um número certo de vassalos em todo o reino,
que rondaria os 2000, aos quais garante pagamento de
contias, 2500 reis a cada um (Álvaro de Chaves, p. 179).
Nesse número, porém, não entrariam fidalgos nem sequer
criados de grandes senhores. De modo que estes «vassalos»
do número nada têm a ver com os antigos. São um corpo
militar análogo ao dos besteiros, popular por condição e
caracterizado pela obrigação de ter cavalo e armas
adequadas à guerra de cavalaria. De resto, as próprias
contias não têm outro significado senão o de subsídio para
manter o cavalo. O que quer dizer que haviam perdido por
completo toda a antiga simbologia feudal, sendo vistas
muito pragmaticamente como isso: subsídio pecuniário do
Estado, sem outras cores nem enfeites ideológicos.
Correlativamente, vassalo é a mesma coisa: uma
especialidade da tropa. Cujos privilégios «civis», que
continua a deter, não devem ser entendidos senão como
contrapartidas dos custos. É claro que todo o processo
desmistificador não se realizou num instante. Vinha de
trás. Ouça-se o que diziam os povos nas Cortes de
Montemor-o-Novo de 1477, capítulo 4: «Senhor, que os
vassalos que não receberam nem receberem contias que não
sejam obrigados de servir per prema com cavalos, salvo com
suas armas — pois não recebem contias pêra os ter.»
Há, por conseguinte, uma grande diferença entre
assentamentos, contias e tenças. Diferença de natureza e de
modo. Os primeiros, iniciados em 1408, não vieram
substituir as segundas; tornaram-nas, isso sim,
dispensáveis — tanto mais que o significado delas se
aviltou depois do surto inflacionário de vassalos plebeus.
Depois da tomada de Ceuta, lembremos. «Assentamento», tendo
começado, como se viu, pelos infantes da ínclita,
correspondendo ao casamento que não matrimónio deles,
outorgado pelo reino na sua mais alta assembleia,
revestiu-se desde logo de um significado distintíssimo —
tanto mais que podia buscar fundamento na antiga e
prestigiada noção de vassalidade, a autêntica.
Constituiria, por conseguinte, uma inovação apenas quoad
nomen. Que ficará cativa da nobreza — afora raras
excepções, de modo algum aviltantes. É provável que depois
de 1408 tenham sido atribuídos assentamentos aos outros
filhos de D. João I e de D. Filipa de Lencastre — D. João,
nascido em 1400, e D. Fernando, em 1402. E não
estranharíamos que essa atribuição fosse acordada nas
Cortes de Estremoz de 1416, reunidas, segundo o monarca,
para «falarmos algumas coisas que cumprem a nosso serviço»
e nas quais foi concedido pelos povos um «emprestado»
pecuniário cuja finalidade não tem sido fácil descobrir
(Armindo de Sousa, 1990, I, p. 337). Em 1473 os
assentamentos exauriam 70% do orçamento do Estado e
contemplavam, além do rei, o príncipe herdeiro, D. João, a
sua mulher D. Leonor, a irmã D. Joana, os duques, os
condes, o condestável do reino, os capitães das praças
marroquinas, o bispo do Porto e diversos outros (Oliveira
Marques, 1986, p. 247).

Moradias e casamentos
As «moradias» eram subsídios concedidos por razão de
morada, tal como o nome soa. Pagavam-nas os reis e
pagavam-nas os senhores, conforme vimos atrás a respeito
dos assentamentos dos infantes. Quem trouxesse em sua casa
fidalgos, desde cavaleiros a moços, pagava-lhes esse

379
subsídio. Mas nem sempre teria sido assim. A primeira vez
que se fala em moradias é em 1402, segundo Fernão Lopes
(Crónica de D. João I, n, cap. 202). Em «moradias» na
acepção que nos interessa — pois alimentar e vestir os da
casa, fossem quem fossem, foi obrigação de sempre. O que em
1402 se refere, bem como posteriormente em 1408, são
pagamentos para lá daquela obrigação. Pagamentos extra,
que, com clareza se infere do texto de Fernão Lopes, haviam
sido instituídos antes de 1402, porventura muito antes,
pois nesse ano o que se decidiu foi minorá-los na corte do
rei. Tratava-se de despesas extremamente vultuosas — as das
«moradias» da corte, que só estas conhecemos. Está
calculado que entre 1462 e 1477 a coroa despendeu
mensalmente com estes subsídios uma média de 367 400 reais,
ou seja, 4 408 800 por ano (Oliveira Marques, 1986, pp.
252-253). Para se fazer uma ideia, saiba-se que no mesmo
período a receita média da Câmara do Porto andou pelos 75
milhares de reais, 1,7% do valor daquelas moradias (Iria
Gonçalves, 1987, p. 123). Tamanha despesa demandava
critério na sua gestão. E, com efeito, o rei usava
negociá-la com mercadores. Era o chamado «trauto das
moradias», a que se refere o capítulo 20 das Cortes de 1455
(Lisboa) e o 55 (14 dos místicos) de 1472-1473
(Coimbra-Évora), ambos gerais dos povos. O negócio
consistia em pagar aqueles subsídios em panos e arrematar
os panos necessários pelos preços mais baixos. O rei
comprava por grosso e «vendia» a retalho, economizando a
diferença, que devia ser grande. Lucrava ele e o mercador
arrematante ou fornecedor, não sendo prejudicados os
beneficiários das moradias, os quais, se preferissem, eram
pagos a dinheiro ou noutros géneros diferentes de panos.
Obviamente, só grandes mercadores entravam no negócio, dada
a soma de capital em jogo. Por isso, em 1455 são
estrangeiros «estantes» e em 1472-1473 dois judeus,
Abravanel e mestre Latão, quem detém, em regime de
monopólio, o «trauto das moradias». E o assunto vai ao
Parlamento porque os mercadores nacionais e cristãos
pretendem apoderar-se da operação, tornando-a livre, ou
seja, liberta do seu carácter monopolista. O que não
conseguem, precisamente porque derivava desse regime a
força negocial e consequente proveito económico da coroa.
De resto, nesse «trauto» deviam estar incluídas outras
compras da corte, assim como outros subsídios obrigatórios,
dados também em géneros, como era o caso dos «casamentos»,
cujo significado ainda não esclarecemos.
Os «casamentos» eram subsídios, em dinheiro ou em
géneros, pagos pela corte aos moradores dela e servidores
do rei, fossem fidalgos ou não. Era uma instituição
generalizada. Mesmo burgueses ricos, como o pai de Pêro Vaz
de Caminha, davam «casamentos» aos seus serviçais quando
eles fundavam casa própria por motivo de matrimónio
(Armindo de Sousa, 1983, p. 33). A homens e a mulheres.
Tratava-se de um acto de generosidade obrigatória, imposto
pela moral e pela honra — tão corrente e necessário que a
sua omissão encarregava a consciência. Velar pelos
servidores e servidoras, quando o serviço findava — por
mudança de estado deles ou por morte do «senhor» —, era um
imperativo primário. Maxime, dos reis.
As despesas com casamentos, dada a sua natureza e o
número de beneficiários, nunca atingiram os montantes das
moradias. Mas, apesar disso, foram despesas avultadas, as
quais todos os anos ocorriam, com maior ou menor
frequência. Por isso os povos se preocuparam com elas nas
Cortes de 1472-1473, quando foram convidados a propor
sugestões sobre o modo de minorar os custos da casa do rei.
Essas sugestões, ou propostas, ocupam os 14 primeiros
capítulos gerais dessas cortes, precisamente chamados
«capítulos da Fazenda». O tema dos casamentos está
explicitamente tratado nos capítulos 11, 13 e 14. Sugere-se
que sejam dados com parcimónia e discrição, apenas a
servidores efectivos, só na altura de casarem e em valores
diferentes conforme a categoria das pessoas. E pede-se,
capítulo 14, que o rei não tome para seus criados os
criados dos senhores e fidalgos e de outras pessoas — mas
apenas os filhos dos seus e outros que ainda não o foram de
ninguém —, a fim de que tenha a seu serviço as mesmas
pessoas durante muito tempo e não seja forçado a pagar
casamentos a que outros eram obrigados e de que ficavam
desincumbidos. Pede-se ainda (capítulo 13) que os moços da
casa do rei, fidalgos e até mecânicos, não sejam promovidos
a escudeiros antes do casamento e respectivo subsídio —
pois tais promoções implicavam aumento das pensões.
Em suma, os fidalgos, grandes e pequenos, da corte ou
de fora, constituíram para o rei e as finanças do Estado um
peso fortíssimo. Era a custa da criação e da fidelidade; o
penhor da magnanimidade, da mercê, da senhoria, da alteza e
da majestade. Por isso os reis eram tratados e reconhecidos
por esses nomes evocativos do «dom»: «vossa mercê», «vossa
senhoria», «poderoso senhor», «vossa alteza», «real

380
majestade». E lá tinha dito D. Pedro I: «Dia que o rei nom
dava, nom devia ser havido por rei.» Ser pródigo era
preciso. E todos o foram, uns mais, outros menos. Apesar
das vozes do povo, discordantes e mal ouvidas,
impertinentes até. Nem D. João II lhes apreciouo timbrado.
Povo pagante. O «mantenedor», afinal.
Antes de passarmos adiante, lembremos os números das
magnanimidades (v. quadro infra). Não é preciso fazer
comentários. Diga-se tão-só que o valor bruto dos
subsídios, perto de 37 milhões de reais, reporta-se a
1473-1474. Todavia, tratando-se de despesas ordinárias da
coroa, vale como indicador para a segunda metade do século
XV. Verba assombrosa. O montante do imposto extraordinário
de 1460, considerado exorbitante e por isso a custo
consentido pelos concelhos, não atingiu a soma de 35
milhões. Não nos admira, portanto, que os povos tenham
olhado para as generosidades régias, nomeadamente as de D.
Afonso V, como larguezas irresponsáveis e escandalosas.
Trinta e sete milhões. O camponês pagante, se tal ouvira,
ficava na mesma. É que a sua mente não abarcava, se calhar,
a exacta dimensão de tanto dinheiro. O Porto, com os seus
75000 reais de receita anual por essa altura, precisaria de
493 anos e uns meses para juntar igual riqueza. E com a
condição de não gastar um centavo. Por aqui se vê, na fria
demonstração dos números, quanto custava à nação, às forças
produtivas dela, a querida nobreza que a defendia. Querida
nobreza? Já vamos ver.

A auto-imagem dos nobres

Conhecidas as categorias dos nobres e respectivas


evoluções, os seus efectivos plausíveis de grandes, médios
e baixos, as diversas linhagens ou estirpes e seus volteios
na época, os encargos financeiros da coroa e dos povos que
eles, nobres, implicavam e ainda alguns traços das suas
motivações, tentemos perscrutar os sentidos e direcções do
seu agir como grupo, um grupo social distinto. Ou, por
outras palavras, os modos da convivialidade que
prosseguiram uns com os outros e com os de fora. Para
sabermos isso o melhor é perguntar-lhes a eles e aos
coevos. Ler os discursos colectivos que fizeram e os dos
outros grupos nos itens em que deles se fala.
Discursos de nobres no plural chegaram poucos. Sabemos
que foram oradores assíduos a respeito de tudo junto dos
reis, em conselhos e cortes, mas pouco ficou. Quatro, só
quatro textos: dois do século XIV e outros dois do século
XV. Todos de cortes, obviamente. Das de 1361 (Elvas), 1398
(Coimbra), 1408 (Évora) e 1472-1473 (Coimbra-Évora) (76).
Para lá disto, que são falas do grupo, há muita página,
muita frase, muitas palavras — mas tudo de autor, voz
subscrita. Que seria fonte informativa muito importante se
alguém a tivesse já filtrado em estudos pertinentes ao
nosso propósito. Como quem diz, em conclusões que
respigassem de modo sistemático e exaustivo os dados
indiciadores de posições e valores colectivos
especificamente fidalgos. O que ainda não sucedeu, nem
mesmo para os textos dos príncipes e infantes.

[Legenda de figura.]
Nota: Os elementos necessários para o levantamento
deste quadro foram recolhidos em Oliveira Marques, 1986, p.
236-261, e na bibliografia aí indicada para esta matéria.

381
Em 1361, os nobres reivindicam do rei «direito e
aguizado», respeito e modos, na forma de serem tratados.
Bem; reivindicam, não. Que o rei é D. Pedro I, o cru. Pedem
e reverentemente admoestam. Pedem que não sejam metidos a
tormento, eles, «os bons de Portugal», nem seus «dívidos»,
excepto nos casos tradicionalmente previstos — porque,
compreendesse o Justiceiro, era «vitupério grande». Nem
ainda fossem encerrados em cadeias «entre os vis e refeces
homens» por feitos de nada, desses que não implicam pena
corporal, tantas vezes improvados — porque, considerasse o
Justiceiro, era uma «vergonça». E admoestavam que lhes
fosse guardado seu direito, as honras e costumes de filhos
de algo e vassalos, sendo tratados como descendentes que
eram dos heróicos fundadores do reino e matadores de moiros
— porque, recordasse o Justiceiro, assim o pai dele os
tratara. Humildes e reverentes — que o rei tanto era homem
para mandar tirar corações pelos peitos e pelas costas como
para obrigar os súbditos a beijar os ossos da podre amante
— humildes e reverentes, pois, prudência é siso. Mas, ainda
assim, distintos, pergaminhos na mão — avoengas lembradas,
linhagens proferidas, filhos de algo e vassalos, «bons de
Portugal», merecedores de «mais honras que outros nenhuns».
Sentem-se escol.
Em 1398 o discurso dos nobres traduz receio. Não já o
receio que a figura do rei inspirasse, mas aquele que
advinha da leitura dos tempos. A guerra acabara
praticamente, apesar de ser muito precária a paz que se
vivia, feita de tréguas atrás de tréguas, e então os
fidalgos, regressados às terras, dão-se conta de muitas
mudanças processadas por todo o lado desde 1383-1385, já lá
iam 15 anos. Umas reais, outras imaginárias. Reais eram,
por exemplo, diversas medidas de natureza fiscal, como as
sisas que sobre toda a gente pesavam desde as Cortes de
Braga de 1387; também o valor da moeda, que uma inflação
galopante consumia, envilecendo as rendas e os tributos em
numerário, ao mesmo tempo que tornava insuportáveis os
custos dos géneros e da mão-de-obra; ainda todo um panorama
social a bem dizer novo, quer porque efeito das guerras e
das suas perversões, quer porque o povo das grandes cidades
e muitas vilas, afinal o grande despoletador da dinastia,
obtivera regalias e mente que conflituavam com os
privilégios e atitudes deles, os nobres. De modo que os
nobres receavam. E, receando, imaginavam-se perseguidos,
cerceados nos bons e antigos foros, usos e costumes do seu
estado. Nas jurisdições e competências, nomeadamente.
«Mudanças-inovações», diziam. Mas, neste campo, tratava-se
de mudanças imaginárias. Porque, com efeito, o grande
pacote legislativo sobre jurisdições e direitos de
«tomadia» atinentes a eles, tudo restringindo abusos e
exacções, datava do tempo de D. Fernando (77).
É uma nobreza orgulhosa e exigente, apesar de receosa,
essa que fala em 1398. Reivindica em todas as direcções, no
económico, no político-administrativo, no fiscal, no
jurisdicional, etc. Exige actualização das rendas de
dinheiro, liberdade de exportação de vinhos, isenção de
sisas e portagens, pagamento atempado e íntegro das
«contias», acesso franco à aquisição de herdades em todas
as cidades e vilas do reino, posse garantida das terras
detidas em reguengos (sem embargo das inquirições devassas
mandadas tirar havia pouco pelo rei), fruição plena do
privilégio de aposentadoria e comedoria e coutamento de
bairros, isenção jurisdicional completa nas suas terras e
lugares coutados face às justiças régias e concelhias,
representação paritária com os povos nos juizados
municipais, dispensa para si e seus dívidos, seus
servidores e seus caseiros de toda a espécie de encargos e
imposições camarárias. Reivindicam contra os concelhos, os
oficiais régios e a clerezia; enfim, contra o próprio rei.
E em nome de quê? Do «seu» direito, dos «seus» privilégios,
dos «seus» foros antigos e imemoriais costumes. Coisas que,
dizem, de memória restritiva o dizem, todos os reis
respeitaram. E se todos respeitaram — «ca os fidalgos nunca
souberam peitar, salvo os corpos a seu rei» (cap. 3) —
quanto mais o deverá fazer ele, D. João I. «Bem sabedes
[lembram no cap. 30] em como no cerco de Lisboa lhes
prometestes de guardar todos seus foros e costumes que
haviam e que ainda lhes enaderíades mais, antes que minguar
em eles; e esso mesmo lhes jurastes e prometestes em esta
cidade de Coimbra quando fostes rei.» Aí está o in illo
tempore fundador das suas exigências e imagem: 1383-1385. A
dinastia, criaram-na. Que admira sentirem-se uma nobreza
restaurada? Há leis e ordenações que ignoram no tecer do
seu discurso? Há exigências há muito caducadas e
impossíveis? Contra os forais concelhios e os progressos
políticos e sociais da monarquia e da história? Pois há.
Porque houve cerco de Lisboa, Cortes de Coimbra, Batalha de
Aljubarrota, campanhas atrás de campanhas, anos e anos de
fidelidade e sangue. Ela, a nobreza que fala, sente-se
ressarcida das suas origens bastardas, secundogénitas e
apagadas — que tais eram as origens dos nomes mais altos, a
começar no rei — e discursa ao modo das mais ilustres

382
estirpes. Com arrogância, requer distinção. E pódio em que
a distinção se cumpra acima de todos: protegida do rei. «Ca
bem sabedes vós, senhor, que os prelados dos vossos regnos
e esso medes os povos e os letrados e os privados todos som
contra eles» (cap. 31). Evidentemente. É a contrapartida
que paga quem se arroga de excepção nacional e usurpa
méritos pertencentes a todos. E que diz o rei? Respeitosa e
atentamente — que a guerra ainda não acabou —, explica, dá
razões, lembra leis, repõe factos, evoca juramentos, emite
promessas e... mantém os fidalgos em seu equitativo lugar,
ao lado do clero e do povo. Notáveis as respostas de D.
João I a esses 35 capítulos da nobreza de 1398. Por isso,
ficarão para a história, elas e os capítulos, nas
Ordenações afonsinas, publicadas mais de meio século depois
(livro 5, títs. 87, 94 e livro 2, tít. 59).
Em suma, os capítulos da nobreza de 1398 podem dizer-se
portadores de duas lições a respeito dos falantes: uma de
receio; outra de arrogância. Receio dos tempos e do seu
devir, que, apontando para a paz, auguram perda de peso
social e político para os senhores da guerra — porventura,
arrumar da casa por parte do rei, o que quer dizer
afirmação do poder monárquico, das leis e dos funcionários
da administração central. E, sabia-se, isso significava
domesticação dos poderosos. Que, aliás, já começara — vê-se
nos capítulos. A outra lição, da arrogância, não é de
estranhar; nem faz mister muita psicologia para a
compreender. É o «saiba vossa excelência com quem está a
falar».
Estavam a falar com um rei que, passados 13 anos de
exercício, dava mostras de ter aprendido a função. O que se
nota. E nota-se também em 1408.
Nas Cortes de Évora de 1408, os fidalgos voltaram a
fazer discurso. Nove capítulos chegaram até nós, registados
ainda nas Ordenações afonsinas (livro 2, tít. 59, §§
36-44). É pena não ter ficado, desta vez, o teor original
dos fidalgos, mas resumos da chancelaria. Esta
circunstância impede-nos de tirar ilações sobre a aura dos
falantes, seus modos e razões, imagem de si. Sabemos que se
sentiam agravados dos corregedores, do rei e de diversos
funcionários da monarquia. Quer dizer, dez anos sobre 1398,
os receios nobiliárquicos estão confirmados e a sua
arrogância provavelmente submetida. Tanto que aquilo que se
pede é praticamente o devido. E só em matéria de
jurisdições. O próprio rei — que mudou de estilo — aparece
agora a moderar o ímpeto zeloso dos seus oficiais. Que não
excedam os seus regimentos e competências, ordena; que
respeitem os direitos e privilégios dos fidalgos, manda;
que, actuando como não devem, «ele tornará a elo, fazendo
pagar as custas às partes e a injúria aos senhores», ameaça
(cap. 3). É o Estado a frear já os seus próprios
mecanismos.
Depois disto, só voltamos a ouvir a voz colectiva dos
nobres em 1472-1473 (Coimbra-Évora). Muita coisa sucedeu
entretanto: tomada de Ceuta, desastre de Tânger, histeria
de Alfarrobeira, o Algarve em Africa; e as navegações, a
Madeira, os Açores, Cabo Verde, a Guiné; e o começo da
recuperação demográfica, o alargar da economia, a afirmação
da classe burguesa, a multiplicação dos mesteirais, o apelo
das cidades; e o prestígio das cortes, a estruturação do
poder autárquico, a modificação das leis, a burocratização
do Estado; e, enfim, a complexificação da estrutura
nobiliárquica, efeito do vaivém político, militar e
linhagístico — nobres de título, nobres de sangue, nobres
de benfeitoria, nobres de usurpação. E tentando interpretar
e ordenar tudo isso, um paradoxal neo-senhorialismo. Em
1472-1473 vive-se em Portugal o apogeu do
neo-senhorialismo. Senhorialismo outoniço, que Afonso V,
rei outonal, nolens volens, deixa andar.
Trinta e três capítulos apresentaram os nobres nessas
Cortes de 1472-1473. Os duques, condes, ricos-homens e
fidalgos, diz-se. Ou seja, a alta e a média nobreza, uns em
pessoa e outros por procuradores. Estão aí nomes famosos,
como os Braganças e os Viseus, além de condes, muitos
condes, o de Faro, o de Vila Real, o de Penela, o de
Monsanto, o de Atouguia, o de Marialva, o de Penamacor, o
de Abrantes, o de Olivença, o de Abranches, etc. (Armindo
de Sousa, 1990a, vol. I, pp. 186-187). Nobreza luzida e
farta, tal como em Portugal nunca houvera. Que o príncipe
D. João, 17 anos de idade, contempla, sabe-se lá pensando o
quê.
Não há arrogância nem medo nesses 33 capítulos dos
nobres. Mas regalada segurança. Tranquilidade. E
indisfarçada complacência no tocante ao rei e aos tempos.
As cortes visavam reformas, que tal a convocatória dizia,
mas não se vê que os fidalgos tenham tomado isso a sério
(Armindo de Sousa, ibid., pp. 395-400). Pensam sobretudo em
si, nos privilégios do seu grupo. Entretanto, posto que D.
Afonso V o merecia, escrevem 10 propostas sobre a agenda,
10 ideias reformadoras da Justiça e da Fazenda, notas que

383
bem se podem chamar medíocres e dispensáveis. O rei
convocara-os assim: «Consirando nós o que todo rei ou
príncipe é obrigado fazer por o público geral e comum bem
de seus regnos e súbditos e naturais deles [...],
detriminamos fazer ora umas [cortes] gerais em a nossa
cidade de Coimbra por reformação e corregimento de muitas
cousas que per necessidade e bem e proveito destes regnos»
se requer (78). Depois, na sessão inaugural da assembleia,
pela voz do orador oficial, indicou o esquema de trabalho:
analisar a situação do País e propor medidas de reformas
segundo duas grandes áreas — a da Fazenda e a da Justiça.
Tudo deveria ser passado em revista: despesas públicas,
defesa, administração central. Os povos, visivelmente
interessados, cumpriram com zelo e, surpresa do monarca,
deram em cerca de um mês de trabalho um rol com 203
capítulos, 14 atinentes à Fazenda, 27 à justiça e 162 sobre
matérias diversas, «místicos» portanto. O clero, porventura
remetendo-se ao seu estatuto de grupo supranacional, não
fez nada. É a nobreza — nacionalista, é certo, ma non tropo
— deu 33 capítulos, conforme dissemos, uns a seguir aos
outros, indiferenciadamente, dos quais apenas 10%, conforme
também já dissemos, realmente são enquadráveis naquilo que
o rei pedira. Dez capítulos, por favor. Displicentemente.
Com argumentos de bem comum, serviço de Deus e do monarca,
proveito da terra e utilidade do povo — perfeito, fraseado
convencional, igual ao do rei e dos concelhos. E, logo,
abrangente, nacionalista. Mas a cada passo traído por
conotações interesseiras. Assim sucede, por exemplo, nos
capítulos sobre despesas da corte, fazer de cavaleiros,
oficiais da Fazenda e da justiça, comerciantes e rendeiros,
criação de mais dois tribunais de última instância,
celeridade dos processos, etc. Vendo bem, os nobres não
querem reformas estruturais, ao contrário do que desejam os
deputados concelhios. Querem privilégios, acrescentamento
dos que têm e recuperação de perdidos: exclusivo de
familiaridade com o rei, tenças e assentamentos em direitos
reais, aposentadorias gratuitas, total isenção em suas
terras relativamente aos corregedores, abolição da lei
sobre «avotação nas mortes», acompanhamento das inquirições
que lhes digam respeito, controlo das cartas de segurança
dadas pelo rei a moradores das suas terras, acesso a casas
e herdades em todas as cidades e vilas, etc. E mais,
audaciosamente mais: abolição da Lei Mental; presença nos
pelouros das câmaras municipais; revogação de todos os
capítulos de cortes feitos sobre eles de que eles não
tiveram prévio conhecimento; imprescindibilidade de serem
ouvidos antes de qualquer acto legislativo a seu respeito,
seja de quem for a iniciativa ou proposta; autorização de
promoverem espontaneamente, sempre que atacados, expedições
punitivas contra Castela, etc. Razões para isto tudo:
antiquíssimos foros e costumes, a honra, o proveito, o
prestígio. Navegantes contra a história, ei-los. Convictos?
Não parece. E D. Afonso V? Cordatamente ouve, cortezmente
responde. Lembra leis, pareceres de letrados, obrigações de
consciência-a-sua, justiça distributiva, a voz do povo,
Deus — e vai dizendo geralmente que não. Mas promete.
Promete sempre qualquer coisa, por muito marginal que seja.
E assim é que nos anos do neo-senhorialismo estamos
perante uma nobreza confiante e audaz, dando de si uma
imagem de autocomplacência e força. Mas atenta. Atenta
contra intrusos sem perfil e contra parceiros
desviacionistas, que tais são os nóveis cavaleiros do
trampolim marroquino e os novíssimos corregedores fidalgos
ditos «adiantados» e «regedores da justiça». Intrusos são
ainda os oficiais da corte, funcionários de estatuto
duvidoso, enobrecidos por recompensa ou usurpação, os
quais, luzindo com a proximidade do rei, tomavam o fulgor e
o espaço que eram devidos a eles, fidalgos lídimos e seus
filhos. Preciso acautelar-se desses todos. Manter a imagem
e as devidas distinções. É nesse sentido que se avançam os
capítulos 11, 12, 16 e 21. Que o rei defere.

Antagonismos internos

Grupo coeso e harmonioso, o dos nobres? Quem ouve os


seus discursos colectivos, esses quatro que temos — 1361,
1398, 1408 e 1472-1473 —, diria que sim e talvez. Sim, para
os três primeiros e talvez tocante ao último. É que no
discurso de 1472-1473 figura um capítulo, o 15, que, lido
com atenção, revela antagonismos crónicos no seio da
fidalguia. Por causa de um défice de fidelidade nos criados
e escudeiros e correlativo défice de lealdade nos senhores,
uns relativamente aos outros. Coisas graves num grupo que
tradicionalmente se revia nessas virtudes — as grandes

384
virtudes do cavalheirismo. O texto começa assim: «Senhor,
muitas vezes se segue escândalos entre fidalgos por
filharem uns aos outros os criados e chegados.» E mais à
frente faz-se alusão a escudeiros beneficiários de mercês
que trocam de senhor sempre que lhes apetece, ao arrepio de
toda a fidelidade e gratidão. Onde os antigos costumes?
Escândalos. Diz-se que se seguem «escândalos». Quer dizer:
conflitos, alterações da ordem e da paz, vias de facto —
que tal é o significado daquele termo no contexto tanto do
capítulo como em geral nos escritos sobre socíalidade da
época. Só esta leitura justifica a apresentação do caso ao
rei em cortes e a importância que a resposta régia lhe
atribui. Devia ser caso corrente e motivador de altercações
e vindictas — por isso justificador do apelo ao rei; ao
rei-árbitro dos dissídios entre fidalgos. O que nos leva a
pensar que, por debaixo da tona de água calma e límpida,
harmoniosa e consensual, dos discursos nobiliárquicos em
cortes — imagem que era preciso dar — se escondia todo um
fervilhar de invejas e rancores, desaguisados e forças,
orgulhos e desmesuras, rivalidades e ódios;
conflitualidades, enfim. O que está de acordo com o que se
sabe de outras fontes — dos capítulos dos concelhos às
crónicas, de sentenças régias ao Cancioneiro de Resende. A
convivialidade da nobreza, com efeito, parece ter
discorrido sob o signo da discórdia. Gente do poder e da
força, à razão da força se apegou; gente da guerra e da
honra, shame-culture, preferiu o gladíolo ao crisântemo
(79). É ver as guerras, as vindictas, as intrigas e as
traições. É ler as crónicas de D. Fernando, D. João I, D.
Pedro de Meneses, D. Duarte de Meneses, D. Afonso V e D.
João II. É percorrer a ascensão e queda dos Braganças. É
visitar os passos, via-crucis, do senhor infante D. Pedro
desde o «Domingo de Ramos» das Cortes de Lisboa de 1446 até
ao «Gólgota» de Alfarrobeira. Intrigas, invejas,
espionagem, ódios, interesses e traições (80). Que, apesar
de tudo, se revestem nas ditas crónicas de colorido épico,
memória para vindouros. Que dizer das arrogâncias
provincianas e mesquinhas? Dessas que fidalgos brutos
geriam entre si? Que dizer da convivialidade desses
senhores que se jactanciavam de que «nem conhecem outro rey
em sua terra senom sy»? (Cortes de 1459, cap. 9 dos gerais
dos povos.) Disso não ficaram crónicas. Mas ficaram gritos.
Gritos do povo.

Credibilidade social

Querida nobreza defensora do povo, como a via o povo?


Mal. «A nobreza de Portugal nunca teve o condão de se
fazer amar dos seus súbditos», escreveu Costa Lobo (p.
215). O que nós corrigiríamos assim: a nobreza de Portugal,
nos finais da Idade Média, foi um grupo detestado pelo
povo. Pelo povo dotado de voz, o das cidades e vilas com
assento em cortes, e muito provavelmente pelo povo da
noite, o das aldeias e dos sertões, sacrificados rústicos.
Aliás, ela, a nobreza, tinha consciência disso e afirmou-o
expressamente mais de uma vez, por exemplo em 1398,
conforme já vimos. Assim como a rainha D. Filipa de
Lencastre, indirectamente, nas vésperas da morte: «Per
enformações falsas e requerimentos sobejos dos povos, os
reis fazem contra eles [fidalgos] o que nom devem.»
(Zurara, Crónica da tomada de Ceuta, cap. 41.) E Zurara,
panegirista da nobreza e seu advogado para a história, em
maré de descuido por estar a escrever sobre mouros, explica
o porquê de algumas cidades e vilas mercantis não admitirem
fidalgos no seu meio: não receberem «nojo assi nas mulheres
como nas fazendas» (Crónica de D. Pedro de Meneses, vol. I,
cap. 15). Sabe-se que foi sempre este o grande argumento do
Porto contra a residência intramuros dos fidalgos.
Violadores e ladrões, os fidalgos — eis a força do
argumento. Ou, no mínimo, sedutores infrenes e abusadores
de vezo. Virtudes? Os povos não as vêem; mas apontam as
desejáveis — cortesia e mesura, o oposto do que são (81).
Em todo o período do nosso estudo, 1325 a 1484, a
imagem dos povos a respeito dos nobres não pára de
enegrecer. Ano após ano. São às centenas as queixas que
pudemos inventariar nos capítulos das cortes celebradas
nesses 160 anos. E só nos capítulos gerais, que mostram as
queixas do País em bloco. Porque se acrescentássemos os
especiais das cidades e vilas, o cômputo far-se-ia por
milhares.
Poderíamos apresentar uma lista, ordenada
alfabeticamente por temas, em que os povos alinham as suas
grandes recriminações contra a nobreza. Era assim:
aposentadorias, bairros coutados, clientes e serventuários,
comércio, concelhos, contrabando, coutadas e honras,
dívidas e empréstimos forçados, impostos e tributos

385
privados, lavradores e pescadores, malfeitores protegidos,
mulheres (casamentos forçados e abusos sexuais), portagens
e passagens, preços de géneros desrespeitados, tomadias e
usurpações de toda a espécie. E, acima de tudo, abusos da
força e das jurisdições. Pormenorizar cada item seria um
nunca mais acabar. Veja-se, por exemplo, o assunto das
tomadias, que bem documenta a impune rapacidade dos nobres:
tomavam, leia-se extorquiam, azémolas, mulas, cavalos e
bois; galinhas, patos, ovos, porcos, carneiros, cabritos,
peixe e caça; palhas, cevada, vinho e pão; roupas, armas,
taças, ouro e dinheiro; órfãos e filhos de lavradores e
mesteirais. Tudo está profusamente documentado para o
período que vai de 1361 a 1482. E de nada valeram as
medidas régias constantemente publicadas nem a sua
consagração nas Ordenações afonsinas. Em suas terras e
pelos caminhos, o fidalgo abusava — ele pessoalmente e a
cáfila que o seguia, escudeiros boçais e até assassinos,
assassinos a monte que ele arregimentava e sustinha como
guarda-costas e testas-de-ferro. Cáfila de ociosos e
bmtalhões, que da impunidade deduzia a natureza da coragem
e somava desmandos atrás de desmandos. Não faltam exemplos
em todo o País, nomeadamente no Entre Douro e Minho e nas
Beiras, regiões cheias de fidalgos e afastadas do rei. Em
1481, D. Afonso V referia-se às aventuras do filho do
marechal D. Fernando Coutinho, perpetradas na vila e alfoz
de Pinhel, nestes termos textuais: «Inauditas hostilidades,
roubos e tiranias» (82). O mesmo podia ser dito das
façanhas de outros Coutinhos, no terceiro quartel do século
XV, em terras da Maia, de que eram senhores (83). E dos
Limas, e dos Meios, etc. (84) A soltura fidalguesca atingiu
tais cúmulos que os povos não duvidaram solicitar ao rei
duas coisas excessivas: primeira, utilizar a mobilização
das populações quando fosse preciso ir às terras deles,
fidalgos, obrigá-los a cumprir as leis [cap. 1 de 1442
(Évora)]; segunda, que as pessoas, de dentro de suas casas,
pudessem «sem coima» atirar à besta sobre os homens dos
fidalgos publicamente reconhecidos como assaltantes e
violadores [cap. 11 de 1459 (Lisboa)]. À primeira, o rei,
aliás o infante D. Pedro, disse que sim — desde que as
populações fossem mobilizadas e dirigidas pelos
corregedores e justiças municipais; à segunda, D. Afonso V
disse nada, respondeu pela evasiva.
Enfim, em todos aqueles itens que enumerámos, os
fidalgos são acusados de enormes abusos. Os cometidos por
via das aposentadorias, usurpações, empréstimos forçados,
extorsões, protecção de malfeitores, sedução das mulheres e
compras de bens por preços arbitrários foram certamente os
abusos mais sentidos pelos pobres. E por isso os pobres
temeram e odiaram os fidalgos. Mas houve os outros, os
abusos sobre a propriedade, as portagens e passagens, a
apropriação de coutadas de pesca e caça, as intromissões na
administração autárquica, o contrabando de gado, a
exportação abusiva de cereais, a invasão dos tratos
marítimos e terrestres, a retenção em seu proveito da seda,
da grã e das peles dos seus domínios, o monopólio das
saboarias e das espécies piscícolas mais rentáveis, o
costume ilegal de se apoderarem tanto por tanto dos
recursos negociáveis dos seus senhorios, a rigidez na
defesa das suas coutadas de pasto e soltura na invasão de
campos privados e maninhos comunais, a arrematação de
rendas por meios concorrencialmente condenáveis, etc, etc,
mais os modos escusos como exigiam a aplicação do direito
de relego e o à-vontade com que fugiam ao fisco — tudo isso
atraiu contra os fidalgos a má vontade das camadas
superiores do povo, lavradores, ganadeiros, mercadores e
comerciantes. Ou seja, as elites municipais. Em terceiro
lugar, os abusos jurisdicionais, militares, policiais e
administrativos — reizetes em suas terras, já o vimos,
insolentes e arbitrários, apoderando-se da soberania que o
direito reservava aos reis. Que tal era o poder de lançar
impostos, tributos e empréstimos públicos, assim como o de
decidir sobre apelações reservadas ao supremo e o de impor
os seus nomes nos brados de apelido, «aqui de Melo» ou
«aqui de Lima» em vez do soberano «aqui d’el-rei». E nisto
os fidalgos aborreceram os magistrados e funcionalismo
monárquicos. Monárquicos, municipais e prelatícios. Não
admira, portanto, que eles tenham confessado nas Cortes de
1398, conforme vimos, «que os prelados [...] e esso medes
os povos e os leterados e os privados todos som contra
eles» (cap. 31). E se isso constataram nesse ano, o que não
terão sentido depois de 1451 até 1482, os trinta anos dos
mais desenfreados abusos — se é verdade o que se disse nas
cortes.
Quem lê os textos, capítulos de cortes e sentenças
régias sobretudo, fica com a impressão de que no período do
nosso estudo — especialmente depois da conquista de Ceuta e
especialissimamente no reinado de D. Afonso V — os fidalgos
se comportaram pelo País como tiranetes de um qualquer
farwest. Exagero? Não cremos. Apesar da opinião ingénua de
D. Filipa de Lencastre. É que são demasiadas as fontes

386
informativas e entrecruzadas as suas origens. Porque tantas
são, abstemo-nos de as apontar.
Enfim, para o povo o fidalgo só é bom para uma coisa —
a guerra. Porque, de sua condição é agressivo e belicoso
(Cortes de 1385, cap. 12 e de 1472-1473. cap. 1). Na paz
não presta: é ignorante, parcial, abusador, vaidoso e
arrogante. Opressor por natureza, mesmo. Ser senhor é
subjugar, viver «do suor do povo», do sangue dos lavradores
(Cortes de 1433, cap. 44, de 1472-1473. cap. 1). Negra
imagem. Excessiva, decerto.
Não compete ao historiador fazer moral nem. por
conseguinte, culpar ou absolver alguém. Nem ainda tomar
partido por opiniões nem imagens. Por isso diremos só: a
nobreza foi como foi porque pôde sê-lo. Porque teve na mão
muito poder. E não se esqueça o que escrevemos atrás a
respeito dos eclesiásticos: estamos a visitar tempos em que
poder e abuso corriam numa razão directamente proporcional.
Relação só a custo alterada pela religião e o medo. E viva
a memória dos reis. Pois se desgarram da paisagem humana da
época como figuras verdadeiramente superiores.
De modo que concluímos assim:
Os fidalgos portugueses dos séculos XIV e XV foram um
grupo sociológico heterogéneo, minoritário, muito rico e
instável. Altos, médios e baixos, três escalões percorridos
de cima para o fundo e do fundo para cima segundo golpes de
sorte e azar — políticos, militares, económicos,
matrimoniais, culturais e de ofício. Linhagem e lealdade
aos reinantes foi o segredo do êxito, o que exigiu saber
perscrutar os tempos e os partidos, jogar no seguro, ser
prudente. Erros de cálculo houve que se cifraram em exílio
e má morte. Como a inversa também se deu e com ela, por
fortuna, a dinastia do nosso contentamento, o cais das
nossas partidas e o ancoradouro das grandes comemorações.
Heróis e santos, aventureiros e sábios, reis de «boa
memória» e «venturosos», um «príncipe perfeito», oceanos,
mundos, literatura e arte — está lá tudo. Mas inventar essa
dinastia e mantê-la não foi tarefa leveira. Ser fidalgo não
foi fácil.
Grupo rico, o da nobreza — pusemos. Entenda-se, porém,
relativamente. A alta, sim. Em terras, rendas, direitos,
investimentos, exclusivos, tenças e assentamentos. A média,
mais ou menos. E a baixa, pobre na sua generalidade,
dependente das outras duas e de prelados, alienada de
posses e vontade, foi escudeiros. Muitos dos quais,
pergaminhos rotos e prosápias extintas, se misturavam aos
assassinos que os amos acolheram e cumpriam trotes mandados
ou sugeridos em missões punitivas, extorsionárias,
dissuasoras ou de mero espavento. Eram os proletários da
fidalguia. Esses que os poetas do escárnio ridicularizavam
e a quem, mais que nenhuns, o povo temia. E odiava.
A honra e o proveito

Grupo heterogéneo, pois, o da nobreza. Integrado por


infantes, duques, marqueses, condes e por aí abaixo até aos
pelintras de espada à cinta. Irmanava-os uma ideia: a de
serem superiores ao comum dos Portugueses. E uma vontade: a
da honra e do proveito. Mas a honra tinha muitas leituras e
o proveito disparatados modos e meios. Por isso D. Duarte,
no seu Leal conselheiro, livro para nobres, não se poupou a
ginásticas para ensinar o exacto sentido daquela expressão.
Chamando ao caso a razão, a fé e a experiência. E o
cronista Zurara, no seu jeito sabido de puxar ao
pedagógico, fez o mesmo, entrecortando as suas narrativas
de parênteses e parênteses recheados de lições de idêntico
propósito. Diz por exemplo: o proveito não se entende no
lucro da mercancia, que isso é povo {Crónica de D. Pedro de
Meneses, vol. I, cap. 1). D. Duarte também o diz. E de nada
valeu a lição. E que pensar dos processos rentistas? E do
contrabando de gado? E das extorsões de dinheiro? E das
tomadias de géneros? E da sonegação das sisas e dízimas? E
da corrida aos escravos negros? Tudo proveito sem honra,
lucro sem espargimento de sangue, se bem que o mesmo
Zurara, e em certa medida os burgueses, se esforce por
entender as caçadas esclavagísticas da Guiné como
cavalarias de guerra (Cortes de 1472-1473, cap. 50). Mas
era comércio, puro comércio rentável, conforme não deixa de
significar, sem o querer, o próprio rei Aionso V (resposta
ao mesmo capítulo). Enfim, para a nobreza do século XV, o
proveito cifra-se nisso: dinheiro. Preparam-se os tempos do
fidalgo-mercadore são precisamente os mais altos, reis à

387
frente, que os estão a preparar. Porque às censuras
burguesas da mercancia por nobres D. Afonso V e D. João II
já não respondem como em 1371 (caps. 13 e 44) e 1372 (cap.
13) o rei D. Fernando: «Contra direito é de tais pessoas de
usar de mercadorias e usarem de tais autos a eles nem
cumpre.» Não. Agora, na segunda metade do século XV, o
ideário é outro: a mercancia não avilta, o que avilta são
os modos. Ideia que traduz uma grande transfomiação da
ideologia dos três estados/três funções. Essa ideologia já
não move comportamentos, é defunta. Persiste apenas nos
livros, como fóssil venerável, ou então na retórica
interesseira dos parlamentares burgueses, nítida em 1433
(cap. 122), já difusa em 1439 (cap. 18). E mais, não. D.
Duarte, aliás, conservador quando moralista, conforme
dissemos, como rei foi pragmático. Vê-se da resposta que
deu ao capítulo 122 que os burgueses lhe apresentaram nas
Cortes de Leiria-Santarém: os fidalgos podiam usar de
comércio, no País ou no estrangeiro, relativamente aos
produtos das suas terras, designadamente novidades e
coutos; não podiam era comprar para vender, impedir os
negócios dos mercadores e exigir preferência nos tratos a
tanto por tanto.
Passará a ser esta a moral das operações. Que os
fidalgos não cumprirão, conforme claramente se lê nos
capítulos do povo das Cortes de 1455 (Lisboa) (3),
1472-1473 (Coimbra-Évora) (56 e 100) e 1481-1482
(Évora-Viana) (5, 7, 8, 98 e 134). Por estes textos se
observa que acorrida ao lucro proporcionado pelo comércio
havia entusiasmado a nobreza, a qual na compita se
desenhava segundo os seus modos de sempre, subjugando,
oprimindo, coutando. Em 1472 a grã, a cortiça, a seda e até
o mel e a cera que cresciam nos vastos territórios dos
nobres, nos cultos e nos incultos, estavam cativos deles. O
rei, o príncipe, a infanta D. Beatriz, os duques, os condes
e todos os fidalgos com terras, dizem os textos, tomavam
essas riquezas como seu exclusivo comercial. Coisas
espontâneas que eram, defendia a tradição e a moral que
pertencessem a todos — tal a chuva, o sol, o ar, os rios
«cabedais» e os produtos do mar. Significativo: é este
agora o argumento contra os nobres — o direito de
apropriação das coisas e não a incompatibilidade do estado
deles com os autos comerciais. Não se lhes questiona o
negócio: critica-se-lhes a cupidez, essa pecaminosa
insolência de se apoderarem em exclusivo das «cousas que
Deus dá de graça». E exige-se do monarca que de seu
«próprio moto» e de seu «poder absoluto», sem esperar
sequer que os povos lho requeiram, emende tão grande
desconcerto — «que todos os agravos de vossos povos, e
trabalhos seus e danos, [concluem], devem carregar sobre os
vossos ombros, que muito obriga vossa consciência a os em
breve deverdes fazer emendar» (Cortes de 1472-1475, cap.
56).
Mas D. Afonso V mitiga a raiz da fundamentação, aquela
premissa maior «cousas que Deus dá de graça». Subtilmente.
Assim: «Responde el-rei que visto o que per seus povos lhe
é apontado e alegado acerca da grã, seda e outras cousas
que a naturaleza ajuntada com a boa indústria dos homens
cria para bem comum, há por bem que nenhuma das ditas
cousas per ele nem per o príncipe seu filho nem per pessoa
outra alguma não seja tomada coutada; nem em particular [a]
algum apropriada [...]» (Ibid.) O «distinguo» está ali,
«naturaleza ajuntada com a boa indústria dos homens»,
dissimulado e perverso. Fica em paz para o que houver de
acontecer a boa consciência do rei. E os burgueses, se
leram com atenção a resposta, deveram concluir que afinal
era muito mais confortável a boa moral antiga, a das
ordens. E era. Porque, vendo bem, essa da espontaneidade
das coisas enquanto justificação de devassa, devassa de que
eles lucrassem, não passava em sua boca de um sofisma. Jogo
de palavras, mais nada. Pense-se, por exemplo, nas
madeiras, nas lenhas, nos matos, nas mães-de-água, nos
juncais — coisas precisamente espontâneas, mas que a
civilização subtraiu ao comum. É que a civilização vai
subtraindo ao comum os dons da Natureza ou de Deus, um a
um, agora e logo, consoante... Consoante a indústria dos
homens — que ela é que dita o preço e valor. E sucede que,
no processo, a civilização, leia-se «Estado», arranja
sempre um parágrafo que lhe sossegue a consciência. A
seguir forja o direito — que, bem dizia Fernão Lopes, tem
nascimento no facto (Crónica de D. João I, vol. II, cap.
155). Melhor iria aos burgueses argumentarem com a razão da
precedência: fomos nós que descobrimos o valor da grã e da
cortiça; que valorizámos com o nosso ofício a produção da
seda, mel, cera, etc; chegámos primeiro; o rei nos proteja.
Seriam sinceros. Mas de nada valeria, que o Estado só ouve
duas espécies de argumentos: o jurídico e o fiscal. Se
possível colorados de social e político. Faltando esses
dois suportes, usem-se as cores. E foi o que se fez em
1481-1482 (cap. 134 dos povos). De pouco valendo. De pouco
valendo porque nas Cortes de Évora de 1490, no capítulo 18,
volta-se à carga: que sejam abolidos os exclusivos de
exportação, designadamente o da cortiça, e eles, burgueses,

388
possam livremente usar das mercadorias, exportando-as para
onde desejarem. Só que agora estava-se pior do que nunca: o
exclusivo era do rei, por efeito da extinção dos Braganças
e Viseus. E, pior ainda, o rei era D. João II. Que
estudaria o assunto mais tarde, mas bem lhe parecia que o
melhor para o País era tudo continuar como estava — disse.
Do exposto se segue que o «proveito fidalgo» virou
burguês. Dinheiro. A antiga noção, «proveito-terras-
jurisdições», continua ainda, sem dúvida. E com grande
ênfase. É prestígio, honra palpável. Mas com o cesarismo
monárquico, a burocratização da justiça e da administração,
a grande mobilidade social e geográfica, a transferência da
qualidade de vida para as cidades, a afirmação de uma
mentalidade quantitativa que hegemoniza o ter sobre o ser,
o apreço cada vez maior do luxo e sumptuosidade no comer,
no vestir e no habitar, a compulsão para ter escravos, o
pré-capitalismo enfim — tudo isso e muito mais virou a
cabeça dos nobres. Uns acompanham a história e revêem os
tradicionais valores; outros enquistam, ruralizam-se cada
vez mais, e dos seus bisonhos solares, catões aposentados,
contemplam as novidades dos séculos com o desdém dos
virtuosos. No século XVI já havia muitos. Todos fidalgos de
segunda. Que remiram a honra em africas que os avós
cumpriram e na arrogância que dedicam aos criados e
caseiros. Ficarão pelo Minho e pelas Beiras, sempre iguais,
quase até aos nossos dias.
Do apego-obsessão honra-proveito e suas metamorfoses
seguiram-se as relações dos nobres entre si e relativamente
aos de fora. Auto-apreço e interesse, diz o binómio. Logo,
preocupação individualista, familiar, linhagística. Que
partia de dentro, sentimento, e se realizava no exterior,
no solar, nas terras, nos dependentes. «Acrescentar» é um
verbo que utilizam, nesta forma ou derivadas, os fidalgos
que vão à guerra, juram fidelidade, cumprem ordens do seu
rei ou simplesmente atraiçoam. É das crónicas. De todas.
Ora «acrescentar», tanto em fama como em terra, supõe
rivalidade, concorrência, inveja e mesmo invasão. Não
admira, portanto, que a convivialidade fidalga se nos
revele mais de conflito do que de consensualismo. Vimo-lo.
Mesmo nas cortes, estratégia errada. E até na guerra,
cronistas o dizem.
De modo que não surpreende o esforço levado a cabo
pelos reis para se imporem como árbitros dos dissídios
entre nobres e avocarem ao seu tribunal, também para se
sobreporem a eles, todos os casos de vindicta privada. O
cavalheiresco Afonso V, criador e amigo de fidalgos, foi
até mais longe do que os seus antecessores: nobre que
matasse nobre perdia os seus bens para a coroa (cap. 17 da
nobreza nas Cortes de 1472-1473). Motivo da lei: «por causa
das muitas mortes de propósito que em seus regnos mais que
nos tempos passados se cometem», palavras do próprio
monarca. Vindictas, certamente. Não nos admiraria que
muitas delas fossem desencadeadas por questões de
obediência de escudeiros e disputa de criados e clientes,
pois, conforme vimos, este assunto mereceu honras de
parlamento. E havia ainda a lei do morgadio, raiz de muitas
tensões, e a consequente angústia dos filhos segundos,
belicosos mais que nenhuns, diziam os povos em 1472,
afirmação que a psicologia persuade a acreditar (cap. 1). O
irmão mais velho cedo ou tarde virava pai, o bem da fazenda
acima do da irmandade — outra vez a honra-coisa. Onde o
mérito e a culpa? — interrogar-se-ia o filho segundo.
Veja-se D. Duarte: se fosse homem da têmpera de D. João II,
seu neto, mais rezaria pela morte do irmão do que pelo
irmão que morreu. Foi rei porque a morte quis. Quantas
mortes não terão sido desejadas...
Se relativamente aos do grupo os nobres se revelaram
conflituantes, relativamente aos de fora também. Agora por
cupidez, presunção e arrogância. A respeito do povo já o
vimos, pois que a imagem popular de fidalgo, extremamente
negativa, foi construída por efeito de reciprocidade.
Sabe-se, de resto, o que pensava do povo o bondoso D.
Duarte, que até se esforçava por ser justo; e o sentencioso
Gomes Eanes de Zurara. Sabemos também a opinião dos
parlamentares fidalgos a respeito dos deputados populares.
Exprimiram-na eloquentemente assim: «Do seu querer ou não
querer não fazemos principal fundamento» (Álvaro Chaves, p.
261). Por outras palavras: a vontade do povo não contava
para eles. E não contando a vontade, também não contavam os
sentimentos, os desejos e os sonhos. Nem a dor.
Relativamente ao clero, há a distinguir. O alto e o
baixo. Para com o alto, as conflitualidades, que as houve,
foram da natureza das conflitualidades internas. Mas com
prudência, porque os prelados detinham saber, prestígio e
força, que transcendiam fronteiras, e, depois, possuíam uma
arma extremamente incómoda e vezeira, a excomunhão. E se
esta não impusesse respeito, recorriam a outra
verdadeiramente temível e definitiva: o interdito. De modo
que era conveniente ter com os prelados atilada cautela.

389
Não assim tanto com os mosteiros e as igrejas de que eram
patronos e de que se julgavam senhores, mormente nos
períodos de vacatura. As grandes queixas eclesiásticas
reportam-se a esse quadro e aos abusos cometidos a
propósito das aposentadorias (85).

Em conclusão: o patriotismo

E temos descritos os sentidos e direcções do actuar dos


nobres ao longo dos séculos XIV e XV. Para finalizar, uma
pergunta: qual o papel dos fidalgos na construção do
nacionalismo português e do sentimento patriótico?
É extremamente difícil responder a esta questão. Se
tomamos nacionalismo e patriotismo como sentimentos
experimentados, achamos mais indicadores de ausência do que
de presença. Na alta nobreza, advirta-se. Com muita
facilidade os nobres passavam ao estrangeiro, ou ameaçavam
passar, os de Portugal para fora e os de fora para
Portugal, sempre por motivos de honra e proveito. Que isto
parece ter sido realmente o motor dos comportamentos, e não
a pátria. Ufanam-se, de resto, das suas ligações
internacionais, confiando sempre nelas para o caso de más
apostas políticas. Por outro lado, contudo, os seus títulos
agarram-nos às terras, ao solo português. E na guerra ou em
justas e torneios dizem-se portugueses, comparam-se com
parceiros de fora, castelhanos ou ingleses, e julgam-se
maiores, nobreza de Portugal (86). Falta definir a exacta
ressonância da expressão. Terra-mãe ou designativo de
origem e de grupo?
Vendo, porém, as coisas objectivamente, a nobreza dos
séculos XIV e XV teve papel decisivo na construção da
Pátria e da Nação portuguesas. Quanto mais não fosse,
porque consolidou as fronteiras, assegurou a independência,
definiu inimigos, conduziu o fervor guerreiro das
populações e criou símbolos — gestas, heróis e monumentos —
definitivamente portugueses. Amarras da nossa memória. Sem
isso poderíamos pensar-nos Nação. Mas Pátria não o
seríamos.
Povos

De todos os grupos sociais de Portugal nos séculos XIV


e XV, o dos povos foi o mais heterogéneo. É extremamente
difícil estabelecer-lhe os contornos e limites. Invadiu
franjas dos clérigos através dos tonsurados e minoristas
casados — que vimos serem disputados pelo poder civil e
pelo poder eclesiástico — e invadiu escaninhos da nobreza
mediante os vassalos d’el-rei e a fidalguia de usurpação,
para não falarmos já dos escudeiros e cavaleiros burgueses,
títulos destituídos de conotação militar, além dos amos e
colaços de fidalgos, parentela extralinhagística cumulada
de distinção e privilégios. Os povos desafiam a nossa
inteligência como uma nebulosa. Até porque, tomando-os como
ocupantes do espaço nacional correlativos dos eclesiásticos
e dos nobres, há que meter no seu seio os judeus, os
mouros, os estrangeiros e os escravos. É muita gente e
extremamente vária — mais de 98% da população integral.
Como ordená-la?

Configuração social

Atrás distribuímos os povos sociologicamente em duas


grandes categorias: estados-profissões e classes.
Procurávamos arrumar actores da história. Mas agora, que
buscamos sentidos e direcções da acção, modos de
convivialidade social, essa arrumação afigura-se demasiado
genérica. É certo que, generalizando, fomos descrevendo e
especificando. Falamos de burgueses, de mesteirais, de
lavradores, de funcionários administrativos e das suas auto
e hetero-imagens. Teve de ser, para se descobrir espécies e
graus de capitais objectivos e incorporados. Isso, e o que
fomos dizendo ao tratar do clero e da nobreza,
permitir-nos-á agora andar depressa.
Com efeito, o povo pode ser contemplado e descrito
tomando perspectivas distintas, tais como laboral,
económica, militar, política, fiscal, plutocrática,
residencial, geográfica, religiosa, estatutária
(dependência, não-dependência pessoal), etc. Falaríamos
então de mercadores, funcionários, agentes liberais,
ourives, moedeiros, cambistas, regatões, prestamistas,
mesteirais, almocreves, carreteiros, lavradores,
pescadores, ganadeiros, pastores, jornaleiros, serviçais,
mendigos, vagabundos, marginais e muitos outros. Ou então

390
por sectores: primário, secundário e terciário. Ou ainda
cavaleiros e peões ou aquantiados em cavalos, aquantiados
em armas e não aquantiados. E mais: honrados, meãos e
baixos; jugadeiros e nãojugadeiros: afazendados, remediados
e pobres; urbanos e rurais ou de intramuros, arrabaldinos e
aldeões; do litoral e do sertão, ribeirinhos e montanheses,
da serra e da planície, galegos (ou nortenhos) e comarcãos
(de Trás-os-Montes. Beira, etc); cristãos e de nação;
cidadãos, vizinhos, gente de sobre si, caseiros, serviçais,
criados, homens de outrem e escravos. E poderíamos ainda
falar de muitas outras maneiras: adventícios e arraigados;
elegíveis e não elegíveis nos pelouros; de linhagem e sem
ela; letrados, oficiais de pena tratantes, turgimões,
jograis, prestidigitadores, saltimbancos, alveitares,
curandeiros (ou homens de virtude) e «trabalhadores»;
estantes, ambulantes e formigueiros; etc, etc. Vasto mundo,
colorida gente. Que ri, que canta, que chora, que reza, que
grita, que implora, que ama, que odeia, que rouba, que
blasfema, que acusa, que mata, que beija, que dorme, que
mente, que come, que... Nasce, cresce, procria e morre. A
vida. Esse fio de mil nós. Que gostaríamos de agarrar e
percorrer, labirinto da história dentro, deslaçando a
noite.
Para a nossa intenção de momento bastaria desvendar
dois tipos de socialidade: a urbana e a camponesa. Se
possível perscrutá-las. Mas desde logo se vê que isso é
trabalho insano. Porque não houve uma socialidade rural
face a outra citadina. Houve muitas. Porto e Braga, por
exemplo, tão próximas na geografia, ambas cidades bispais,
ambas senhorios eclesiásticos que D. João I, negociando,
«libertou», quão diferentes! E quão divergente percurso!
Porquê? O mar? Mas mar há muito, desde Caminha a Castro
Marim, insinuando-se até Ponte de Lima, Coimbra, Santarém,
Alcácer do Sal e Mértola. E depois houve Guimarães, Viseu e
Évora, terras que se afirmaram sem pedir licença ao mar.
Não, não há linearismos explicativos. Desafios e respostas?
Talvez. Mas com uma condição: que nuns e noutros se meta
tudo, a Natureza e a história. E cá voltamos de novo às
inevitáveis perspectivas estruturais, ainda por cima
diacronicamente prospectadas. Em que se meta tudo,
repetimos. O económico, o político, o geográfico e o resto
que enumerámos atrás.
Ora, no estado actual dos nossos conhecimentos estamos
quase de mãos vazias. Há alguns e óptimos estudos
monográficos rurais e urbanos e um completo ideário para se
prosseguir com outros. Mas são ainda insuficientes; raras
quadrículas do vasto território. E faltam de todo estudos
comparativos. Que este nosso ensaio não pode de modo algum
remediar. Contentemo-nos, portanto, com ideias gerais.

Tentando descobrir as raízes diferenciais das


especificidades sociológicas do clero, da nobreza e do povo
na Idade Média, começaríamos por afirmar o seguinte: o
clero distinguiu-se como grupo de autoridade; a nobreza
como grupo de poder; e o povo como grupo de trabalho. Isto
pode parecer simplista; e é. Pode também parecer uma
evocação da teoria trifuncionalista da sociedade; e de
certo modo sim. Mas ressumbra dos textos. As atitudes e
motivações argumentativas do clero e da nobreza entroncam
aí como num último porquê. Vimo-lo atrás.
Os prelados erguem-se e são olhados como detentores do
verbo, do saber, da doutrina, da verdade sagrada e dos
ritos. Quando daí não extravasam são louvados. Os seus
conselhos nunca deixam de ser ouvidos, em público e em
privado, e, através dos seus representantes, os
eclesiásticos em geral, instruem, orientam, consagram,
perdoam e punem. Ligam e desligam, sempre por meio da
palavra e em nome da Igreja e de Deus — que estão acima dos
reis e das nações. A autoridade que detêm é para lá das
suas pessoas, revela-se simbolicamente — nas vestes, nos
gestos, no latim, nos cerimoniais e na arte — e insinua-se
sem equívocos nem contestação. Ministros de Deus. É claro
que abusam. Mas até a razão dos abusos está aí, no uso
perverso do «mana». E então, só então, são criticados e
tantas vezes temerariamente perseguidos. Pelo povo, pelos
nobres, pelos reis, uns aos outros. Todavia, tal como os do
Porto confessaram nunca confundir o pastor a quem
respeitavam com o abusador que combatiam, assim também
todos os outros que levantaram voz ou mão contra os
prelados (Armindo de Sousa, 1985). E ver as cautelas
justificativas do poder civil nos diplomas que memoram as
lutas Igreja-Estado. Foram lutas de definição de
territórios — autoridade versus poder, entidades
inconfundíveis, posto que geralmente misturadas e sempre
propensas a misturar-se. Di-no-lo a antropologia política e
a psicologia histórica. E então a autoridade, que é
vantagem reconhecida do espírito, veste-se de atributos do
Poder — força, domínio, coerção, senhorio, luxo e dinheiro.

391
Sobretudo quando se substancia numa instituição oficial.
Os nobres, donde se destacaram os reis como emanações
sublimadas, caracterizaram-se, enquanto grupo, por
referência ao Poder e aos seus atributos distintivos —
esses que enunciámos há pouco. Foram gládio e não verbo.
Poderosos e iletrados. Em 1331 os povos eram categóricos:
poderosos são os que têm força de armas, os meirinhos,
alcaides, comendadores, cavaleiros e outros semelhantes
(cap. 49). Tal denotação, embora ligeiramente alterada,
persistirá pelo século XV adiante. Senhor da força, o nobre
será temido e, como tal, deterá os ofícios da defesa e
submissão — a guerra, as frontarias, o corso, as alcaidias.
Daí lhe vieram os títulos, inventados no tempo em que as
palavras reproduziam coisas. E aí radicavam os motivos
«honra e proveito» da sua excelência. E daí derivavam
também, efeito de desmesura, os vícios próprios da espécie,
esses que os povos duramente causticaram: insolência,
arrogância, cupidez, apropriação e violência. É que a força
engendra a força. E mete-se onde não devia: «Quanto a
pessoa é mais nobre tanto mais deve entender e amar o bem
comum.» Argumento dos fidalgos de 1472 para obterem acesso
ao governo das autarquias (cap. 5 da nobreza). E correcto,
assim, fora do contexto, verbo dever no optativo. Empregue,
porém, como está (que eles, nobres, por o serem, entendem e
amam mais que ninguém o bem comum) é sofisma: vontade de
invadir o poder municipal. Ambição de dominar.

O trabalho

O grupo do povo define-se pelo trabalho. Que foi dor e


ainda é, labor-dolor, castigo do homem comedor da maçã.
«Trabalhar-se» ou «ser trabalhado» em todo o século XV é
sofrer. Mas o suor-labor dos campos, aquele que puniu Adão,
passou para as cidades e mudou. Fez-se indústria, serviço e
negócio. E relutou de chamar-se «pão». É dinheiro ou
riqueza, emblema e chave de poder. Por via dele os povos
entram nas cúrias régias e são inventadas as cortes. Por
causa dele se vai esfacelar a teoria das ordens e a dos
estados. Por ele, o monolitismo fixista dos «mantenedores»
soçobrou. Ele foi a razão e o medo dos burgueses e a
esperança dos mesteirais. Foi a oportunidade de os
concelhos falarem alto aos reis. Foi capelo de cardeais,
proveito-lucro de nobres, mola real das guerras, segredo
das navegações, meio de escapar ao inferno. Tudo isto
ressalta dos textos — que poucos textos haverá, nos séculos
XIV e XV, que não falem de dinheiro. Maldito no discursar
abstracto, todos o veneram em vivendo. É a ambiguidade dos
símbolos.
Não queremos com o exposto afirmar que o dinheiro seja
a explicação de tudo no período que nos ocupa. Mas não
podemos deixar de advertir que, aí onde houve explicações a
dar, ele lá esteve, insinuoso, ora causa, logo meio, muitas
vezes conclusão. E, como cada vez mais foi produto do
trabalho, o trabalho virou direito do povo. Que o povo
reivindica. Especialmente o trabalho dito «negócio», que
era o mais lucrativo. Poderão os burgueses alegar, conforme
vimos atrás, que a reivindicação se baseia na defesa da
ortodoxa doutrina dos estados-funções. Isso não convencerá
ninguém, muito menos sendo eles a lembrá-lo. Porém, a ideia
de trabalho, enquanto direito do trabalhador, ficou. E foi
destinada a um auspicioso porvir. Diga-se, de passagem, que
a palavra «trabalhador», em acepção positiva, se detecta no
nosso período, em capítulos parlamentares dos povos (Cortes
de 1430, cap. 22, e de 1481-1482, cap. 29).
Significativamente proferida por homens de cidades e vilas.
Mas os trabalhadores de que se fala são os rurais e não os
urbanos. Quer dizer que o trabalho que se dignifica é o do
campo.
A dignificação das actividades laborais tem seu início
no Ocidente durante o século XII. Tratou-se, porém, de
dignificação na teoria e foi empreendida por mendicantes,
clérigos citadinos, missionários dos pobres e
contempladores sensíveis da condição humana de Jesus
Cristo, o carpinteiro. Lançaram-se então os fundamentos
hesitantes de uma corrente teológica que só muito
modernamente — graças aos desafios de Marx — desabrochou em
sistema. Essa teologia foi pensada nas cidades e para
servir a Cidade. Como é que as suas lições são remetidas
para o campo?
«Trabalho não é vileza, vileza é não trabalhar.» Isto é
de Hesíodo, poeta grego do século VIII a.C., educador da
Grécia como Homero. Só que a.aretê hesiódica, ou seja, o
ideal de homem rural, foi submergida na onda do ideal
aristocrático da scholê, a ociosidade para o estudo, cujo
paladino famoso foi Platão, o idealista. Mas todos os

392
outros filósofos, mesmo os materialistas, gregos e do
helenismo, deram por certo o princípio: «trabalho apouca o
homem»; é de escravos. E Hesíodo perdeu-se. Depois aparece
o Cristianismo, filho do Oriente, em que todo o «doutor»
trabalhava — o «universitário» S. Paulo vivia de fazer
tendas — e adapta-se: trabalho é de servos, arranje-se um
mandamento para poder-se rezar. E ele aí está: «Abster-se
de trabalhos servis em domingos e festas de guarda.»
Mandamento humaníssimo, creia-se. Mas desmerecedor do
trabalho. Porque, se Hesíodo foi obliterado e Prometeu não
vingou, isso deveu-se a um pensamento pragmático mais do
que ideológico: havia escravos, inelutavelmente os havia,
domésticos e de todas as lavras, eles produzissem, que ao
produzir deviam o muito obrigado por viver. Nem por amor
deles era humano aplicar inventos à indústria, pois isso
seria o mesmo que torná-los imprestáveis, aos escravos, e
condená-los à morte. Esta convicção só as necessidades da
história acabarão por alterar. E sabe-se que foram os
monges a fazê-lo. Mas os monges, para o fazer, tiveram de
socorrer-se, eles também, do pragmatismo: o imperativo da
subsistência. Está na regra de S. Bento: que os monges não
se entristeçam se a necessidade do lugar ou a pobreza
exigirem que se ocupem por si mesmos das colheitas. «Não se
entristeçam», ouça-se. Porque trabalho é anátema, o castigo
da maçã e o óbice da meditação. E eis aí como o mito
bíblico da explicação do trabalho — pecado — e a
mitificação grega da actividade especulativa do homem se
conjugaram — perversamente, diga-se para denegrir a
actividade laboral dos homens, do homo faber, o homem. A
ideologia e o preconceito sobrepuseram-se aos cristos do
Ocidente — o grego Prometeu e o nazareno Jesus. Ambos
deuses da indústria. Mas o trabalho cristão, apesar dos
Franciscanos, começou por digni-ficar-se nos campos. E
voltemos à pergunta: porque é que as lições dos
Franciscanos são remetidas pelos burgueses para o campo?
Cremos que por duas razões, pelo menos. A primeira,
porque trabalho por excelência, esse que mais aproxima o
homem da Natureza e de Deus, criação à vista, pão nosso de
cada dia, é o da agricultura — cultura, veja-se. A segunda
razão é «ídolo de tribo», repúdio dos mesteirais. Lembra-se
o leitor do ódio-medo burguês ao mesteiral? Ouça o que
eles, burgueses, escreveram em 1433 a respeito dos
lavradores: «O estado dos lavradores é a governança da
terra assi no temporal como no espiritual» (cap. 119). Sabe
o que é que eles querem dizer com isto? Que os lavradores
são o esteio da sociedade civil e religiosa. Que são eles
os pagadores dos impostos do Estado e dos dízimos da
Igreja. Que eles é que são os verdadeiros trabalhadores, os
tais da acepção positiva. Podíamos multiplicar as provas.
É de crer que esta atribuição de sentido dignificante à
lavoura tenha tido consequências na socialidade rural. Por
outras palavras, é de suspeitar que a excelência do rústico
tenha transitado da posse da terra para o engenho de saber
aproveitá-la. Ou seja, do domínio real para o domínio útil.
Tudo vai nesse sentido, conforme se tira do exposto, e
todos lucrariam com isso — senhores, caseiros e burgueses
rentistas. Aliás, a afirmação dos contratos enfitêuticos
data do nosso período.
Conforme dissemos lá atrás a respeito de classes, fora
das cidades e vilas era o mundo dos lavradores. É claro que
urgirá temperar o dito, mas mantenhamo-lo provisoriamente.
E digamos que o mundo dos lavradores se caracterizou pelo
monolitismo profissional, muitas tarefas e uma só
profissão. Distinguiam-se uns dos outros, certamente. E
cremos que a distinção, mais do que assente na propriedade
ou não propriedade da terra, se baseou na extensão e
qualidade dos espaços aproveitados, ou seja, na soma de
mantimentos produzidos e riqueza apropriada. O que
distinguia um lavrador era, como continuou a ser até há
pouco tempo, a terra que ele «fazia». Por isso, pôde o dono
de uma propriedade fundiária ser menos na escala social
aldeã do que o foreiro de uma grande quinta. Ter terra
própria não significou necessariamente ser bom lavrador ou
homem mais livre. Até porque os contratos enfitêuticos, em
três vidas geralmente, outorgavam ao foreiro suficiente
autonomia e segurança.
Eram as terras que se «faziam», próprias ou alugadas,
que ditavam a medida da importância social relativa dos
lavradores. Dos caseiros encabeçados de que fala o
Elucidário de Viterbo, por exemplo. Cremos que a
identificação dos homens das áreas rurais por nome próprio
mais o da quinta, correntíssima no século XV, teve a função
secundária de distinção exalçadora na respectiva
micro-sociedade. João do Penedo, Afonso da Velha, Gonçalo
de Cominhães, servirão de exemplo. Dezenas de outros
ocorrem nas centenas de prazos celebrados pelo Mosteiro de
Santo Tirso entre 1432 e 1500, os quais tivemos
oportunidade de ver um por um (87). É certo que nas cidades
se verifica fenómeno análogo. No Porto há Aveledas,

393
Caminhas, Agrelas, etc. Mas aí, nas cidades, a
interpretação pode ser outra: prosápia de linhagem burguesa
ou indicativo de origem de um novo-rico.
A distinção dos lavradores pela riqueza de usufruto
predial era contemplada pelo fisco, pela organização
militar e pelo sistema político-judicial. A propriedade de
bois de trabalho e seu número — critério laboral — decidia
sobre escalões fiscais, sobre a obrigatoriedade de ter
cavalos de guerra e éguas de marca e de ir ou não na hoste
e com que arma; e ainda sobre posicionamento objectivo face
ao direito penal, aposentadorias passivas e obtenção de
coutadas de pasto (88). O critério de ter ou não ter bois
de trabalho acabou por ser o melhor distintivo da
«profissão», muito mais, repetimos, do que lavrar terra
própria ou alheia. Assim, afirma-se em 1455 (cap. 5) e
repete-se em 1459 (cap. 1) que há duas categorias de
lavradores: os que têm pelo menos um cingel de bois e com
ele laboram a maior parte do ano por si ou por seus homens
e mancebos; e aqueles que não têm nenhum e trabalham com
gado emprestado ou simplesmente com a força dos braços.
Exclui-se, obviamente, da categoria o indivíduo que possui
bois de trabalho só para alugar e o criador de manadas.
Segue-se do exposto que fora das cidades e das vilas
não houve especialização laboral, que todos viviam da terra
e para a terra e que, excluídos os senhores, as distinções
estatutárias assentavam na quantidade e qualidade das
lavras? Advirta-se: a resposta afirmativa é válida para as
regiões do País eminentemente agrícolas e de preferência
caracterizadas pelo povoamento disperso. Para as outras
zonas há que estabelecer matizes. O Entre Douro e Minho, a
Estremadura e a Beira atlântica caberiam no quadro;
Trás-os-Montes, Beira transmontana e Alentejo provavelmente
não; o Algarve litoral talvez sim, contrariamente ao
Algarve da serra. Numa palavra, para a compreensão das
socialidades rurais há que contar com diversas variáveis,
em que figuram como determinantes as seguintes:
agricultura, pesca, pastoreio, agricultura-pesca,
agricultura-pastoreio, povoamento disperso, povoamento
concentrado, pastos-prados, pastos-campos e pastos-serras.
A diferença agricultura versus pastoreio desde logo implica
diferença de necessidade de mão-de-obra, com todos os seus
corolários, inclusive em termos de família e parentesco e
de valorização ou desvalorização do trabalho feminino, do
saltus ou do ager, etc. Por seu turno, a diferença
povoamento disperso versus concentrado, seja qual for a
actividade económica prevalecente, irá originar esquemas de
relações vicinais distintos, com efeitos importantes na
convivialidade global. A consideração destas diferenças — e
de outras que se podiam enunciar — tem grande razão de ser
quando pretendemos analisar, por exemplo, a legislação
laboral. Ou melhor, as questões de trabalho atinentes à
ruralidade. Tema importantíssimo, entre todos os que
integram a área social.
Ter ou não braços coadjuvantes, eis a questão. Questão
momentosa para os lavradores, tanto mais premente quanto a
extensão e qualidade das lavras. A qual se procurava
resolver por modos diferenciados: filhos, parentes,
criados, jornaleiros e reciprocidades comunitárias.
É bom de ver que só o modo da parentela era seguro e
barato — o modo da família alargada, que compreendia
consanguíneos, afins, criadagem e tutelados de menoridade.
O das soldadas andou muito dispendioso nos séculos XIV e
XV, devido à crise demográfica posterior à peste negra e à
fuga dos trabalhadores para as cidades, atraídos pelos
mesteres. Por seu turno, o processo das reciprocidades
comunitárias não passava de paliativo, do ut des,
insusceptível de satisfazer ambições pessoais. A família é
que dava efeito, pois «uma boca tem dois braços», afirmava
o Minhoto ainda há poucos anos. Daí a disputa de órfãos —
que a legislação municipal e central teve de morigerar,
especialmente no século XV, conforme ilustram assiduamente
os textos parlamentares; daí também a procura matrimonial
de viúvas com filhos menores — expediente que teve de ser
vigiado pelas justiças com um rigor que nos espanta; daí
ainda o costume de explorar a força de trabalho dos filhos,
dando-os a quem mais desse; daí também a existência de
agenciadores de mão-de-obra de aluguer, pseudolavradores
que as justiças tentam debalde controlar e punir; daí
ainda, reverso do exposto, regulamentos perversos, tais
como esses que retiravam aos pais moribundos a capacidade
de decidir sobre o destino dos filhos menores e às mães
viúvas a tutela dos seus órfãos; daí, enfim — e só para
terminar — a ruína completa de bons lavradores a quem
mortes repentinas, pestes decerto, arrebataram os
familiares (89). O leitor percorra, por exemplo, os
capítulos gerais do povo levados às cortes do nosso
período: verá provas e provas do que está dito e de muito

394
mais que, por brevidade, omitimos. Ficará com três ideias
nítidas: primeira, a imprescindibilidade de vasta
mão-de-obra para us fainas agrícolas: segunda, a carência e
carestia dela depois da peste negra de 1348 (a Lei das
Sesmarias de D. Fernando mete-se aqui): terceiro, o
vale-tudo para a sua obtenção.
Ora foi precisamente para resolver a carência, temperar
a carestia e pôr ordem naquele vale-tudo que se produziu
uma vasta soma de textos legislativos atinentes ao
trabalho. Quase todos da iniciativa imediata ou mediata das
cortes. Dos deputados do povo, recorde-se.
Quatro parâmetros foram contemplados pela legislação
laboral, os quais Oliveira Marques (1986. pp. 273-274)
define assim: «Fixação do assoldadado e seus filhos à
profissão e ao primitivo local de trabalho: tabelamento de
soldadas; prazos mínimos de adscrição doméstica; restrição
do livre trânsito e da mendicidade.» Tudo isto se poderá
resumir em dois itens: fomento da mão-de-obra agrícola e
sua subordinação aos patrões. Com o tempo, segunda metade
do século XV, veio acrescentar-se um terceiro: controlo do
proletariado urbano, ou contenção das clientelas de
mesteirais. Trata-se de toda uma política repressiva da
mobilidade socioprofissional estatutária e geográfica,
inspirada, primeiro, pela aristocracia rural e, depois,
pelos aristocratas urbanos. A qual, se bem que encabeçada
sempre pelas elites municipais, encontra sem dificuldade o
apoio dos fidalgos, do clero e dos reis. Excepto o de D.
João II — que, contra as expectativas burguesas, defendeu o
direito das pessoas à livre escolha da profissão e da
promoção social, designadamente dos mesteirais (Armindo de
Sousa, 1989b). É provável que o liberalismo do Príncipe
Perfeito se explique mais pela conjuntura demográfica,
económica e política — recuperação populacional, recursos
das ilhas e da Mina, domesticação do poder local concelhio
— do que por qualquer vertente filantrópica do seu
espírito. Mas que nisso se mostrou um rei moderno, pronto a
romper com demónios feudais, é um facto.
A legislação laboral portuguesa é posterior à tragédia
da peste negra de 1348. Estamos a pensar, evidentemente, na
legislação geral, nessa que o Poder produziu, em cortes ou
de moto-próprio, e não nas posturas municipais — que estas
houve-as sempre, exigidas pelo próprio funcionamento das
almotaçarias e dos almotacés, sobre preços, salários, pesos
e medidas, qualidade dos produtos e horários de trabalho.
Os livros de vereações que restam estão cheios de
legislação sobre isso (90).
A primeira lei geral conhecida que realmente se debruça
sobre questões laborais data de 1349, menos de um ano após
o surto da grande peste (Livro das leis e posturas, pp.
448-452). E aponta logo aqueles quatro parâmetros que acima
evocámos. A partir daí, segue-se uma procissão de textos,
podendo-se afirmar que praticamente não houve cortes de que
ficassem capítulos em que a matéria «trabalho» não fosse
abordada: 1352 (Lisboa), 1361 (Elvas), 1371 (Lisboa), 1389
(Lisboa), 1390 (Coimbra), 1391 (Viseu), 1394 (Coimbra),
1398 (Coimbra), 1400 (Coimbra), 1401 (Guimarães), 1408
(Évora), 1410 (Lisboa), 1418 (Santarém), 1427 (Lisboa),
1430 (Santarém), 1433 (Leiria-Santarém), 1436 (Évora), 1439
(Lisboa), 1444 (Évora), 1451 (Santarém), 1455 (Lisboa),
1456 (Lisboa), 1459 (Lisboa), 1460 (Évora), 1465 (Guarda),
1468 (Santarém), 1472-1473 (Coimbra-Évora), 1475 (Évora),
1481-1482 (Évora-Viana) e 1490 (Évora) (91). Enfadonha
lista. Que seria maior se a ela acrescentássemos as leis
produzidas fora do Parlamento — como essa de 1375, famosa,
sempre lembrada, a Lei das Sesmarias, de D. Fernando. São
97 os capítulos atinentes ao trabalho, que respigámos nas
cortes listadas. Nem todos se reportam ao trabalho do
campo. Há aí matéria de mesteirais, mercadores, ourives,
pastores, açacais, alfeloeiros e serviçais das cidades e
vilas. Todavia, o tema «lavradores e assalariados rurais» é
o mais assíduo, figurando quase sempre, desde 1352 até
1490. E facilmente o leitor se aperceberá de que tão
assídua recorrência denota duas coisas: primeira, que a
questão foi tida por muito importante pelos homens da
governação concelhia; e segunda, que o mundo do trabalho
porfiava em fugir às orientações que eles impunham, ou
seja, à política substanciada naqueles quatro parâmetros
que dissemos: fixação dos trabalhadores ao modo de vida dos
pais; submissão a salários estabelecidos
administrativamente; sujeição absoluta a tempos de serviço
mínimos às ordens do mesmo patrão; e interdição de
transitar de localidade para localidade.
Podemos afirmar que os monarcas mais liberais para com
os trabalhadores foram D. Duarte eD.J oao II. Como também
podemos afirmar que os maiores «inimigos» do trabalhador
rural e urbano — com excepção do ourives e do mercador —
foram os aristocratas municipais. O que vem inteiramente
confirmar o que dissemos lá atrás a respeito das «classes».

395
E, enfim, uma conclusão geral podemos pôr aqui: nos séculos
XIV e XV ninguém gostou do trabalho nem do trabalhador —
apesar das frases retóricas encomiásticas da lavoura e das
lições franciscanas sobre a imagem e semelhança do operário
com o Deus criador. Oiça-se esta consideração dos povos, a
qual, lá bem no fundo, esconde semente de subversão: «Se o
trabalho fosse dado temperadamente a cada um, não
duvidariam de o suportar os que o houvessem de sofrer»
(Cortes de 1459, cap. 17).

Contradições

Tira-se do exposto — daquilo que acabámos de dizer e do


que escrevemos lá mais atrás a respeito das ordens, estados
e classes — que o grupo popular, em termos de
conflitualidades internas e de relacionamento com os nobres
e os clérigos, seguiu a regra geral: divisão,
efervescência, salve-se quem puder. Na cidade e no campo.
Burgueses contra mesteirais, estes contra aqueles, os de
intramuros contra os dos arrabaldes, vice-versa também,
todos contra os aldeãos e os aldeãos a suportá-los na
desconfiança e na inveja, só porque precisavam de
subsistir. Uma socialidade de atritos. Que só duas forças
parecem manter em equilíbrio instável: a necessidade e o
medo. Necessidade uns dos outros e medo das justiças; mais
das humanas do que das divinas. O nível de sensibilidade
moral acha-se no estádio da heteronomia. Podendo-se,
abusava-se; o que dissuadia era o castigo. Leiam-se, mais
uma vez, os capítulos parlamentares do povo, e não se
estranhe por ele, o povo, ser tão fácil em pedir penas para
tudo. Penas geralmente excessivas. Por exemplo, veja-se só:
tabelião que andasse pelas aldeias fazendo escrituras, pena
de morte! (Cortes de 1459, cap. 29.) Se os reis tivessem
homologado as propostas penais indigitadas pelo povo —
multas, açoites, confiscos, prisões, exílios e mortes —
muitos de nós não existiríamos, pois no vórtice do exagero
teriam sido eliminados não raros avós dos nossos avós. Só
que os reis — e viva outra vez a sua memória — a essas
propostas disseram habitualmente nada. É: no meio de tudo e
apesar de todos os reparos possíveis, os reis parecem ter
sido as pessoas mais circunspectas e justas. Aliás, para
isso eram «treinados» e assistidos.
A necessidade e o medo — motivos sedimentados por
séculos e séculos de trabalho e obediência, por pregações e
propagandas, por rituais de dependência e por espectáculos
de atemorização. Fomes, pestes, guerras, cataclismos,
sinais do céu, bruxas, almas penadas, demónios, Deus,
bispos e seus vigários, senhores, patrões, juízes,
meirinhos, alcaides, corregedores e o próprio rei. Depois o
pecado inevitável, a ameaça dos «novíssimos», o Inferno
adiado. E, omnipresentemente, uma denúncia anónima, uma
citação sem porquê, o nome nos «estados da terra», o corpo
no pelourinho, o futuro na cadeia. E, sucedia também, uma
tranquibémia, um furto, um homicídio entre dois copos — e
era a cabeça na forca. Medo, viver no meio do medo. Daí os
exageros místicos dos flagelados e nus, os excessos dos
beguinos e ichacorvos, a evasão das feiras e peregrinações,
a fome das maravilhas, a sorte das prostitutas e o
amorar-se quando vinha o corregedor. Porém...
Porém, quando a necessidade virava raiva ou o medo
quebrava os grilhões, a violência explodia. E era uma lava.
De heroísmo ou vilanagem — conforme. Conforme os alvos da
fúria e os resultados da insurreição. Isso sucedeu muitas
vezes, ao longo do nosso período, por toda a Europa e
Portugal. Revoltas de camponeses, revoltas de mesteirais,
as duas em simultâneo, ciompi florentinos, jacques
franceses, labourers da Inglaterra, da Flandres e da
Alemanha (92). Mortes, saques, pogroms. Em Portugal, as
insurreições verificaram-se pela mesma altura, ou seja,
durante o reinado de D. Fernando, e são aproveitadas, em
1383-1385, para pôr termo a uma dinastia e colocar outra no
trono. A propaganda oficial pela pena de Fernão Lopes
chamar-lhes-á «evangelho português», heroísmo patriótico,
parturição da «sétima idade». Mas os poderes apeados
chamar-lhes-iam massacre, e os judeus, esses, alvos
inevitáveis de todas as rebeliões contra o medo, falariam
de ódio fanático, rapina e perseguição. Os judeus, nossos
convivas tolerados, habitualmente bem consentidos, não
escaparam, apesar disso, entre nós, à sua social função de
reserva humana para a ceva das fúrias recalcadas. Diga-se,
porém, que isso aconteceu raramente e que os motivos
despoletadores foram mais de natureza económica e social do
que de natureza religiosa (M. J. Tavares, 1982 e 1984). De

396
resto, os judeus partilharam das dores e alegrias
nacionais. As judiarias de Coimbra e Évora, por exemplo,
foram destruídas durante as guerras fernandinas pelo
invasor castelhano, o inimigo comum; e sempre os israelitas
portugueses, naturais como os cristãos, combateram por
Portugal, que era seu, cavaleiros e peões como todos os
outros do povo, no continente e além-mar ou nas rotas dos
oceanos novos, sofrendo na mesma língua e servindo aos
mesmos reis. É de crer que o ódio ao judeu só foi crónico,
no período do nosso estudo, entre os clérigos e os
burgueses. Nos primeiros, porque tal desejavam os cânones e
o credo e, nos segundos, por invejas e rivalidades
administrativas e económico-financeiras.
De modo que as direcções e sentidos da actuação popular
nos séculos XIV e XV tiveram por razão o trabalho e a
segurança. Que nas camadas mais baixas se bastavam no pão
nosso de cada dia, subsistir: e nas mais altas se
sublimavam no lucro, no prestígio e no poder. Mentalidades
pequeninas, as primeiras, tão breves como os horizontes dos
seus burgos e aldeias; mentalidades abrangentes, as
segundas, abertas à largueza do País e ao confronto com o
mundo — bem do reino, honra do rei, serviço da «república»
são os seus valores proferidos. As primeiras são autárcicas
e bairristas; só as segundas são realmente nacionais. Mas
quando há perigos externos, inimigos invasores ou
estrangeiros arrogantes, todos se unem na defesa das searas
e das vinhas, das casas e dos currais, das oficinas e dos
armazéns, das mulheres e dos filhos, das igrejas e dos
castelos, de Portugal e do rei. Que tal se fez: durante as
loucas guerras fernandinas, nas lutas da independência e em
torno do regente D. Pedro, quando os infantes de Aragão
ameaçaram de ferro e fogo o território nacional. Foi então,
na solidariedade activa contra o medo, contra o perigo —
contra o Outro — que o patriotismo nasceu.

Conclusão

Dissemos no princípio deste capítulo que iríanios


tentar descobrir, para além dos agentes sociais de Portugal
nos séculos XIV e XV, os sentidos e direcções do seu
actuar. Ou seja, responder a estas questões: Que
socialidade? De consenso ou de conflito? De integração ou
de luta? Depois de termos passado em revista os nobres, os
eclesiásticos e os povos, tentando perscrutar-lhes as
atitudes e as imagens, os modos de convivialidade e o
relacionamento de uns com os outros, parece-nos poder
responder assim: a socialidade dos Portugueses naqueles
dois séculos caracterizou-se pelo conflito e a luta. Isso
tanto no interior dos grupos como nos grupos entre si. São
séculos de crise e de rápida transformação. Guerras,
pestes, fomes, centralização monárquica e «taras» de
reconquista, tudo isso aliado a uma contiguidade
territorial com Castela portadora de ameaças e tentações,
fez com que o clero, a nobreza e o povo geralmente andassem
desavindos e usassem uns contra os outros as armas que
possuíam. Claro que os mais pobres ou inermes foram os mais
atingidos — que é como quem diz, o povo. Nomeadamente esse
povo que vivia submetido a senhores, laicos e
eclesiásticos, ou labutava em regiões de poder concelhio
frágil e displicente. A clerezia tinha prestígio,
autoridade, privilégios e anátemas; a nobreza tinha armas,
riqueza, regalias e poder; o povo tinha o trabalho e o
medo, ou então, aristocracia mínima, o dinheiro, as
cidades, a força da denúncia e a capacidade de se impor a
todos sobre matéria fiscal e financeira. Os mesteirais, e
quase só os de Lisboa, depois de efémeras conquistas em
1383-1385, tiveram de se acomodar à sua condição de
proletários submetidos e vigiados. De modo que só um grupo
parece ter conseguido superar as conílitualidades internas,
unir-se nacionalmente e formar classe de facto — actuando
politicamente de modo consensual e eficaz. Foi o grupo dos
burgueses. Lembre-se, porém, que este grupo-classe — o
«povo» das cortes e os «bons» dos concelhos — data do
último quartel do século XIV, nada tendo a ver com os
cavaleiros concelhios anteriores à peste negra, os de 1331,
por exemplo, que deram início aos discursos colectivos das
cortes. Os burgueses do século XV são homens ligados ao
comércio, ou pessoas com eles identificadas quando se
arrogam de protectores e intéipretes do povo. Vimo-lo.
Serão eles os principais geradores da ideologia não
guerreira do interesse e valor nacionais. Logo, do
sentimento de patriotismo para uso quotidiano.
Mas não fica tudo dito. É que essa socialidade geral de
luta e divisão conheceu parênteses. Aqueles que as guerras
abriram e fecharam. Pois nessas alturas, apartados os
Portugueses em dois grupos, amigos e traidores — rei,
território e língua como símbolos —, os cleros, as nobrezas
e os povos formaram bloco coeso, feito de consensualidades
essenciais. Essenciais porque mínimas, porque de

397
sobrevivência colectiva e porque, enfim, reificadoras da
comunidade nacional. É que nessas alturas quebraram-se as
barreiras das ordens e dos estados. Leia-se Fernão Lopes.

Conclusão geral

Procurámos estudar as estruturas, os grupos e as


motivações sociais em Portugal nos séculos XIV e XV.
Trabalho árduo e de abordagem difícil — tanto mais que a
maioria das fontes em que nos baseámos são inéditas. Daí a
multiplicidade de notas que foi necessário acrescentar ao
texto. Não nos guiou uma preocupação de linearidade
discursiva, fácil de seguir e categórica no dizer, mas
antes o propósito de atacar problemas, dilucidar questões,
ordenar ideias — enfim, reflectir, interpretar. O que, em
matéria de socialidade, seja qual for a época em análise, é
sempre um risco. O risco de cair no minucioso, ou seja, o
risco de se tomar enfadonho, só porque se deseja esconjurar
simplismos.
Com efeito, a socialidade portuguesa dos finais da
Idade Média não foi simples. Como, aliás, a de todo o
Ocidente da mesma época. A gente procura perscrutar-lhe as
estruturas, as direcções e os sentidos e vê-se a cada passo
desprovida de instrumentos conceptuais adequados. Ordens?
Estados? Classes? E depois: qual o sentido exacto de cada
uma destas categorias sociológicas?
Tendo-nos proposto discutir e, se possível, aportar
alguma luz ao tema das estruturas sociais, forçoso se
tornou responder àquelas perguntas, a começar, logicamente,
pela última. É que o tema é historiologicamente
fundamental. De pouco serve arrazoar sobre grupos e seus
membros, sobre comportamentos e motivações de uns e outros,
sobre relações inter e intragrupais, se não soubermos como
é que tudo isso se enquadra num sistema — qual a estrutura
de que isso é ao mesmo tempo função, elemento e
sobredeterminação. O «trabalho», por exemplo, tem sentido
diferente conforme a sociedade está estruturada em ordens,
estados ou classes. Sentido diferente para os coevos e,
logo, para o historiador. Assim como também, outro exemplo,
a «rapacidade» do nobre e a «cupidez» do prelado — vícios
que o serão ou não, aspas postas ou tiradas, conforme a
imagem consentida da sociedade em questão. E já se vê
quanto isto é importante para ler e fazer história. É que
cada vez mais nos vamos.capacitando de que é impossível
entender «história» se não formos capazes de descobrir como
é que «a história vivida» se pensou.
A sociedade portuguesa dos séculos XIV e XV já não é de
ordens. Mas gosta de pensar-se como tal. O velho modelo da
tripartição trifuncional virou topos retórico que toda a
gente utiliza — cronistas, deputados, moralistas, etc. Não
passa, porém, de um referencial irrealista; nem ideológico
já. Mesmo nas cortes, cujos membros parecem distribuir-se
segundo o modelo, não há ordens, mas estados ou braços. E
ver como as respectivas funções se misturam e todos
discutem tudo, os «mantenedores» à frente, sem distinção de
atribuições nem inculpação de orgulho, arrogância ou
presunção. De resto, o próprio Parlamento, que só o é
depois da entrada do povo, constitui sinal eloquente do
fracasso e superação do modelo social das ordens. E não se
esqueça que a instituição parlamentar portuguesa é das mais
antigas da Europa, dos meados do século XIII, anterior à
homóloga e mitificada experiência inglesa.
Ora, não sendo sociedade de ordens, não tem interesse
falar-se de tripartição ou quatripartição social nos
séculos XIV e XV nem atribuir importância a isso. Tal
consistiria em meter na noção de «estados» propriedades que
eles não têm; ou então em mudar palavras inadequadas,
insistindo em manter os conteúdos. De modo que as
expressões «clero», «nobreza» e «povo» não passam de
categorias lógicas, classificações sociologicamente muito
ambíguas — se bem que extremamente cómodas para arrumar
discursos de primeiras abordagens. Usem-se para este fim.
Precisamente como fazem os naturalistas quando falam dos
três reinos da Natureza, animal, vegetal e mineral.
Nos finais da Idade Média a sociedade portuguesa
distribuiu-se por «estados». Mas estados-estatutos e
estados-ofícios-profissões. O saber e a riqueza, ou o
sucesso pessoal e de família, insinuam-se cada vez mais
como verdadeiros motores da mobilidade social, invadindo
atribuições anteriormente exclusivas do parentesco de
filiação. A técnica rivaliza com o sangue. E assim vimos
que filhos do povo, graças aos estudos, se tornam técnicos
das leis, dos cânones, dos dois direitos, da medicina, da
teologia e chegam a cónegos, a bispos, a ricos-homens. E
vimos também mesteirais que, dominando a técnica da
escrita, se fizeram tabeliães, escrivães das inúmeras
escrivaninhas que havia, porventura funcionários superiores

398
das inúmeras «repartições» que havia também. E pense-se
noutras técnicas promovedoras, desde a da contabilidade
comercial até às dos mestres de oficina, passando pelas dos
ourives, pintores e músicos. É a excelência do trabalho,
intelectual e manual, a fazer estalar as fronteiras da
sagração e do sangue. O trabalho a enobrecer o trabalhador?
Não própria nem imediatamente. Porque imediata e
propriamente foi o prestígio do saber e o lucro do fazer,
ambos traduzidos em riqueza, que fez o enobrecimento. Ou a
subida de estado-estatuto. Em duas palavras: premeia-se o
ter metamorfoseando-o de ser. Premeia-se o estado-riqueza
pintando-o de estado-ordem. Mas há um grupo que escapa a
isto: o dos burgueses.
Burgueses, recorde-se, homens de burgos, cidades e
vilas, livres de submissões directas económicas, senhores
de seus corpos e seu tempo, os mais ricos dos lugares,
detentores actuais, ou à espera, do poder das autarquias,
intérpretes oficiais do povo e vozes reconhecidas junto de
todos os outros poderes. Estes homens distribuíram-se por
muitos ofícios e profissões, mas são homólogos quanto ao
estado-estatuto. Que não é clerical nem fidalgo, nem
popular simplesmente. É estatuto de «homem-bom», «honrado
da terra», «nobre do lugar» — burguês, enfim. Estes homens,
se bem que procurem incorporar no seu perfil emblemas de
distinção nobiliárquica e intelectual, como grupo
diferenciam-se radicalmente de nobres e clérigos até
porque, no xadrez social, se distinguem por oposição a
eles, oposição desejada e advertida. Não rejeitam a
excelência do ter. E se aborrecem e temem os mesteirais,
fazem-no precisamente por isso, porque sabem que o dinheiro
é razão de poder e prestígio. Compreende-se assim,
perfeitamente, que, ao contrário de outros grupos, eles não
tenham complexo em dizer-se tanto «bons» como
«afazendados», tanto «ricos» como «honrados». Ora isto é
específico dos burgueses — não importando o local onde
residem, cidade ou vila mercantil ou rural, nem a geografia
da residência, litoral ou interior, Norte ou Sul, nem o
modo de vida profissional predominante de localidade para
localidade. Os burgueses formaram verdadeiramente uma
«classe». A única de âmbito nacional nos séculos XIV e XV.
Porque assim foi, não estranhamos que tenham sido eles
os reais catalisadores de sentimentos também nacionais —
esses que cristalizam em «patriotismo». Reais
catalisadores, dizemos, porque só eles entre os do povo
beneficiaram de redes de comunicação à distância. Só eles
puderam reunir com povo de todo o País, de modo assíduo, e
tratando questões do reino todo. Em cortes, obviamente. E
sabe-se que uma das funções dessas assembleias, função
latente e secundária, consistiu na formação
político-pedagógica dos deputados e, através deles, dos
seus grupos de pertença e referência. Patriotismo é
sentimento que pode nascer no bairro, mas tem de o
transcender. Ser levado até aos limites do território e das
fronteiras da língua e corporizar-se em símbolos que
irmanem a população que aí está e assim fala, herdeira da
mesma história, empenhada no mesmo presente e apostada no
mesmo futuro. E quem pôde fazer esse trabalho? Alguém que
se sentisse intérprete do povo, que pudesse dizer
«Portugal» e «Portugueses» com conhecimento da inteireza do
País e do mapa dos seus problemas e ansiedades, tanto os de
natureza intestina como os desencadeados por inimigos
externos. Alguém que fosse capaz de fazer a síntese
local-regional-nacional e visse nessa síntese uma «ideia»
diferente de estrangeiro ou inimigo, «coisa nossa». É
evidente que só um grupo podia ter feito isso. Que grupo?
Os burgueses, os clérigos, os nobres? Vimos que foram os
burgueses.
Os clérigos, ditos assim, altos, médios e baixos, não.
Não os altos, que eram gente de motivações supranacionais,
com seu direito, suas obediências e sua sensibilidade acima
de Pátria. Se alguma vez consentiram a Nação, isso deveu-se
a razões de obediência Avinhão versus Roma ou a
oportunismos senhoriais e de família — razões que,
aceite-se, nada respeitam à ideia de real patriotismo.
Compagnons de wute, quando muito. Faça-se, porém, a
excepção dos mestres das ordens militares e priores do
Hospital. Só que estes homens eram nobres e como nobres
pensavam e agiam. Cabem na categoria daqueles que actuavam
por amor da «honra e proveito». O médio e o baixo clero, no
que toca a este assunto, foram povo. E como tal hão-de ser
«responsabilizados», não lhes valendo as ordens. É que,
tendo actuado por imperativo de valores nacionais e
pátrios, subalternizaram, querendo ou não, o ideal de
imperium christianum, de que o direito canónico, seu
direito, era a expressão reificadora.
Os nobres, por outros motivos, correram parelhas com os
clérigos. Não já em nome de um direito ou de uma obediência
supranacionais, mas em nome de uma ética que não conhecia
fronteiras: «a honra e o proveito». Foi a honra e o

399
proveito que atraiu fidalgos franceses, ingleses,
castelhanos e outros a Ceuta e todo o Marrocos, como também
foi o mesmo motivo que levou portugueses aos reinos dá
Cristandade. A honra e o proveito foram a pátria da
nobreza. E só quando o proveito vira lucro burguês é que
vemos os nobres atentos ao território, às ilhas e às
navegações. Viragem que, aliás, os burgueses recriminam
como uma grande desordem. «Desordem», precisamente —
argumento arcaico e excessivamente perverso. De modo que os
nobres fizeram a Pátria, sem dúvida. Mas sem sentir o que
faziam. Mesmo que por fidelidade o tenham feito, tratou-se
de fidelidade jurada a homens, sempre susceptível de se
anular, ditassem-no as conjunturas. Ora, o patriotismo não
se compadece de conjunturas nem se fixa em indivíduos. Para
o patriotismo os indivíduos são símbolos, ou seja, não são
indivíduos. Aos olhos de muitos nobres, os mais honestos, a
rainha D. Leonor Teles, por exemplo, foi indivíduo a quem
juraram — e não símbolo. Pois, para o povo revoltado, ela
não foi senão um indivíduo indigno de ser tomado por
símbolo. Como D. Fernando, em certa altura e para muitos.
Já o infante D. João, filho de Inês de Castro, mereceu ser
visto inversamente. E também o Mestre de Avis, literalmente
empurrado para ser herói. A genuína mentalidade
nobiliárquica, votando sempre na honra e proveito,
considerava os sinais dos tempos e jogava no oportuno. Ao
contrário, a mentalidade patriótica, ancorada em valores
considerados absolutos, desprendia-se de oportunismos e
jogava no risco. Compreende-se assim que o patriotismo
habite de preferência em homens e grupos que têm menos a
perder. Esta lição é dita por Fernão Lopes.
Poder-se-á crer então que o sentimento patriótico
eclodiu entre o desespero e a raiva? Só em momentos de
crise? E só no ínfimo povo? Lendo Fernão Lopes, poder-se-á
dizer que sim. Mas há que saber interpretar o cronista. Se
ele viu patriotismo nas revoltas dos mesteirais de
1383-1384, ele que escreve por alturas da «revolução» de
1439, então o patriotismo é dele. É uma experiência que ele
retroprojecta nos primórdios da dinastia para branquear
modos e mitificar efeitos. Uma experiência que ele bebe,
não em comportamentos do ínfimo povo, mas em actuações de
burgueses — precisamente aqueles que meteram o infante D.
Pedro no governo do País. Certo: como todo o historiador,
Fernão Lopes interpreta, presente no passado, o sentir
popular de 1383. E chama-lhe «patriotismo». E foi, lendo a
história da frente para trás. Mas não teria sido mais
patriótico o discurso dos burgueses nas Cortes de 1385?
Exactamente aí, em que eles, interesses nacionais e mapa do
País nos olhos, apontam medidas, recriminam processos
oportunistas — dos mesteirais, precisamente —, oferecem
dinheiro e acautelam a ordem da revolução e o futuro da
dinastia? São eles, burgueses, que transformam as emoções
caóticas dos refeces em força eficaz contra os invasores de
Portugal. Porque, com efeito, em 1385 a revolução não é
mais «liderada» pela arraia-miúda. Isso infere-se
clarissimamente dos capítulos gerais e especiais dos povos
apresentados nas Cortes de Coimbra desse ano. E foi depois
dessas cortes que nasceu a dinastia de Avis e se fez
Aljubarrota. Os movimentos emotivos e «de bairro» não se
identificam necessariamente com patriotismo. Podem ser o
explodir de uma retaliação, tal como todo o comportamento
de Álvaro Pais pôde ter sido efeito de um impulso
vindicativo. Nesses casos, o patriotismo está na
objectividade dos factos e não na intenção dos agentes. Um
patriotismo que outros dirão, outros que haverão de falar
mais tarde, instalados confortável e decididamente no êxito
das coisas. Mas dizê-lo é projectar sentimentos. E, então,
o patriotismo dos mesteirais e arraia-miúda, gente
demasiado atracada à sua terrinha e respectivos horizontes,
é análogo, por paradoxal que pareça, ao dos prelados e dos
fidalgos. Rigorosamente nenhum.
O patriotismo é sentimento popular, sim. Mas burguês.
Marx disse isto, mas, caro leitor, não se chame Marx aqui.
Porque o burguês dele é muito diferente do nosso. E,
depois, não nos traz a esta conclusão nenhuma espécie de
internacionalismo utópico. Traz-nos a análise dos textos
que nos assistem. Nomeadamente os das cortes, de todas as
cortes ocorridas entre 1325 e 1484. E nesses textos, não
propriamente os assuntos versados, mas o aparato
argumentativo de cada um deles — honra de Deus, serviço do
rei, bem da «república», proveito da terra e interesse do
povo. Motivos retóricos? Obviamente. Mas proferidos,
hasteados como supremas razões — e isto é que importa,
porque são razões advertidas centradas num consenso: o
consenso da indiscutibilidade dos valores «pátria» e
«nação». Dos quais Deus era o garante e o rei o símbolo.
Ora esta ideologia não a achamos nos clérigos nem
geralmente nos fidalgos. É burguesa.

400
Diversas outras coisas fomos concluindo ao longo de
todo este capítulo. Sobre os grupos e suas motivações:
hierarquias, mentalidades, consensualismos,
conflitualidades, comportamentos típicos, etc. Tudo isso,
que o leitor já viu, não vamos agora repetir. Nem resumir.
Porque resumido já ficou.

Notas

(1) V. ecos disto em Zurara, Crónica de D. Duarte de


Meneses, caps. 43 e 144; Ordenações afonsinas, liv. I, tít.
63; Cortes de 1433, Cap. 136 dos gerais.
(2) V. Zurara, Crónica da tomada de Ceuta, cap. 71.
Sobre «inculcação político-religiosa», leia-se Bourdieu,
1979, p. 514
(3) V., por exemplo, Cortes de 1459, caps. 24 e 27, de
1472-1473, cap. 190, entre muitos outros.
(4) Duby, 1978; Le Goff, 1977; Balandier, 1980, pp.
85-103.
(5) Cortes de 1418, cap. 29; Conselhos de D. Duarte,
1432, pp. 38, 227 e 236; «Regimento do reino de 1438», in
Monumento henricina, vol. VI, pp. 272-273; Cortes de 1455,
cap. 21; Auto do juramento de D. João I, 1455; Cortes de
1459, cap. 34; Cortes de 1472-1473, caps. 17 dos povos e 31
da nobreza; ANTT, Cortes, ms. 2, n. 18, fols. 4v.º e 5,
1476; BGU, Coimbra, ms. 697, pp. 532-533, e Álvaro de
Chaves, 1477, p. 103; AHCM Lisboa, Códice 5, fol. 119,
1477; ibid, fols. 120-122, 1478; Cortes de 1481-1482,
prólogo dos capítulos gerais dos povos. E ainda F. Lopes,
Crónica de D. João I, I, cap. 193; Zurara, Crónica de D.
Pedro de Meneses, cap. 1; Crónica da tomada de Ceuta, cap.
11; J. Álvares, Tratado da vida do infante D. Fernando,
cap. 47; Resende, Cancioneiro, vol. I, p. 232.
(6) Gama Barros, vol. III, p. 127, que afirma ser a
expressão «três estados» posterior a 1455. O infante D.
João utilizou-a currente calamo em 1432 (Conselhos de D.
Duarte, p. 46).
(7) ANTT, Cortes, ms. 2, n.º 18, fols. 4 e 5.
(8) «Braço militar» ocorre nos Apontamentos de Álvaro
de Chaves, p. 270.
(9) Duby, 1978; Le Goff, 1977, pp. 322-323; Bourdieu,
1977, p. 560.
(10) ANTT, Suplemento de cortes, ms. 4, n. 46.
Poder-se-ia pensar que a palavra «estados» é um lapso, que
se escreveu em vez de «cidades», pois é frequentíssima a
associação «cidades e vilas». Mas no Algarve só havia uma
cidade, a de Silves.
(11) Alguns exemplos: Cortes de 1430, caps. 22, de
1433, caps. 3, 38, 119, 126 e 142, de 1455, cap. 21, de
1459, cap. 41, de 1468, cap. 5, de 1472-173, caps. 1 e 19 e
de 1455, cap. 4 do clero.
(12) M. A. Beirante, 1984, faz o levantamento das
diversas acepções ocorridas nas obras de Fernão Lopes. Os
critérios utilizados são diferentes dos nossos.
(13) Cortes de 1361, cap. 88 dos gerais dos povos e
protocolo da carta com capítulos do clero das mesmas
cortes, de 1430, cap. 22, de 1433, caps. 53 e 147, de 1459,
cap. 32, de 1472-1473, cap. 44 e de 1481-1482, cap. 103.
(14) V., entre muitos, Amélia Andrade, 1990; M. da C.
F. Ferreira, 1989; M. A. Beirante, 1980; R. Costa Gomes,
1987; e ainda, sobre a multiplicidade de ofícios, Oliveira
Marques, 1974, pp. 131-150.
(15) Sobre a pragmática de 1340, v. Oliveira Marques,
1980, pp. 93-119; sobre outras pragmáticas posteriores, M.
E. C. Ferreira, 1971. Complemente-se a informação lendo as
Cortes de 1433, cap. 120, de 1459, cap. 1, de 1472-1473,
cap. 5 e de 1481-1482, cap, 99. Sobre a mentalidade
nobiliárquica e burguesa a respeito de gastos, leia-se
Magalhães Godinho, 1971, pp. 91-97.
(16) Cortes de 1459, cap. 13. V. também as Cortes de
1427, cap. 33 e de M39, cap. 28; Leal conselheiro, cap. 41.
(17) Cortes de 1372, cap. 18, de 1446, cap. 8, e de
1472-1473, caps. 72 e 79.
(18) Não é líquido que deva interpretar-se nesta
acepção o teor das Cortes de 1433, cap. 38.
(19) V. Phénoménologie hégélienne..., 1981; revista
Vare, número dedicado a G. Duby, 1978; Bourdieu, 1979, pp.
113, 117-118 e 434.
(20) Para o Porto e Braga, v. Armindo de Sousa, 1983 e
1990b; para as outras localidades, v. as obras citadas na
n. 14.
(21) V., a título de exemplo elucidativo, as Cortes de
1477, cap. 16 dos gerais do Algarve.
(22) «Ora som ricos e nem têm ni migalha por azo das
grandes perdas das naus, que somente em este ano se
perderem seis desta cidade, além das muitas que são
perdidas de três anos para cá.» (Vereações do Porto,
1401-1449, fol. 247.) Alguns burgueses caídos em pobreza ou
desgraça: Álvaro Anes (1448), João Martins (1449), João
Pais (1475), Fernão Luís (1480) e Vasco Anes da Rua Nova
mais a mulher (1481). A todos a Câmara procura ajudar: v.
as mesmas Vereações, fols. 280v.º e 151v.º; Livro de
vereações, fols. 51v.º, 105v.º -106 e 177.
(23) Em 1384 fala-se de um «conselho miúdo» de Évora,
que era constituído por mesteirais e outros que «favores e
obras e serviços» faziam (G. Pereira, 1885, I, doc. 53).
(24) Os sete textos são os seguintes: Cortes de 1459:
capítulos dos moradores do termo de Coimbra; capítulos dos
mesteres de Santarém; capítulos dos moradores do termo de
Torres Novas; capítulos dos lavradores de Ponte de Lima: de

401
1465: capítulos dos lavradores e povo da Guarda e seu
termo; de 1468: capítulos do povo miúdo de Estremoz: de
1459: capítulos dos moradores de Évora.
(25) Cap. 4 dos lavradores e povo da Guarda (publ. por
R. Costa Gomes, 1987. pp. 179-181). V. n. 24.
(26) ANTT, Leitura nova, além-Douro, liv. 3, fols.
31v.º e 32.
(27) V. Cortes de 1331. Cap. 63, de 1389, cap. 2, de
1391, cap. 2, de 1408, cap. 7, de 1433, caps. 21, 34, 90,
142 e 151, de 1439, caps. 8 e 13, de 1455, cap. 5, de 1459,
cap. 6, de 1468, cap. 4, de 1472-1473, caps. 5 e 118, de
1481-1482, caps. 68, 78, 99, 100, 103, 104, 107, 131 e 138,
e de 1490, caps. 8, 12, 15 e 25.
(28) M. T. C. Rodrigues. 1968, p. 98 (sobre arruamentos
de mesteres). Sobre o desenvolvimento tardio das
corporações de mesteres em Portugal, v. J. Mattoso, 1985,
vol. I, p. 375.
(29) Sobre o desfasamento verificado entre a
reabilitação teórica do trabalho e a promoção social do
trabalhador, v. Le Goff, 1983, e Schuhl, 1969.
(30) Livro antigo de cartas e provisões, pp. 202-204.
(31) V. Cortes de 1465, cap. 9, e a carta de isenção de
um almocreve, de 1482, publ. por Baquero Moreno, 1979, pp.
83-86.
(32) Entre 1385 e 1490, foram apresentados em 27 cortes
88 capítulos sobre concelhos e sua administração. É nestes
capítulos que os burgueses se insurgem contra as isenções
de serviços municipais concedidas a mesteirais. E também em
muitos capítulos subordinados ao tema «Vassalos», 25, ao
todo, levados a 13 cortes. Tudo capítulos gerais dos povos.
Os capítulos especiais das cidades e vilas ainda são mais
insistentes e críticos.
(33) ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, liv. 4, fol.
25v.º.
(34) É fácil saber as profissões, porque os textos
foram estudados exaustivamente por Baquero Moreno,
1979-1980, vol. I, pp. 487 esegs.
(35) Ver atrás, n. 24.
(36) A palavra «trabalhador» no sentido que hoje vigora
aparece já na primeira metade do século XV. V., por
exemplo, as Cortes de 1430, cap. 22.
(37) V. salários de mesteirais em 1480 em Costa Lobo,
1979, p. 525, e Oliveira Marques, 1974, pp. 131-150.
(38) V., por exemplo, Zurara, Crónica da tomada de
Ceuta, cap. 35 (os mesteirais «per sua naçom nom som
obrigados e seguir virtude»); Crónica de D. Duarte de
Meneses, cap. 41.
(39) Para o século XV, v. Cortes de 1430, cap. 22, e de
1439, caps. 5 e 49, de 1455, cap. 5, de 1472-1473, cap. 91,
de 1490, cap. 25.
(40) V. adiante, neste capítulo, a parte relativa aos
«Eclesiásticos».
(41) Para outras vertentes, v., por exemplo, Baquero
Moreno, 1975, 1985 e 1990.
(42) Afonso X, Primeira partida, títs. 5 e 11;
Synodicon Hispanum, Portugal, passim; Cortes de D. Afonso
IV, pp. 21, 27, 42 e 63; Cortes de 1394, caps. 15, 17 e 18;
ANTT, Livro 3 de místicos, fols. 258v.º e 259, 1448; ANTT,
Cortes, ms. 2, n.º 18, vols. 1-10, 1476, etc.
(43) O prior do Crato deve considerar-se um caso à
parte. Tanto aparece entre o clero como entre a nobreza.
(44) Documento de Pendurada de 1367, publ. por Ribeiro,
1857, vol. II, pp. 247-250; Cortes de 1361, cap. 1 dos
gerais dos povos.
(45) Synodicon Hispanum, Portugal; v. índice temático,
pp. 477-478.
(46) Cortes de 1481-1482, caps. 38 e 39. Sobre o
excesso de ordenações menores, ainda no princípio do século
XVI, V. Silva Dias, 1960, vol. I, p. 39. Alguns números:
ordenados em Coimbra em Maio de 1524, 1963 indivíduos; em
Dezembro de 1529, na mesma cidade, 1708 indivíduos.
(47) Além dos capítulos referidos na nota anterior, V.
também as Cortes de 1472-1473, caps. 166 e 197.
(48) AHM Porto, Livro 3 de vereações, fols. 273 e
277v.º. V. Armindo de Sousa, 1983.
(49) Rigorosamente, conhecemos uma queixa. É de Tavira,
data de 1347 e visa o bispo de Silves. Agravo n.º 9, «em
razom dos defamamentos que diziam que o bispo [D. Álvaro
Pais] per si e per sas cartas e em pregações pubricas fazia
e dizia dos do seu bispado, dizendo que eram maus,
perseguidores e emygos da Egreja e seus e outrossy que o
quiserem matar». Doc. publ. por Ribeiro, 1857, vol. III, p.
186.
(50) Cortes de 1371, cap. 82; AHM Porto, Vereações de
1401-1449, fol. 59; M. T. C. Rodrigues, 1968, p. 112.
(51) Cortes de 1390-1391, cap. 4; J. Álvares, Tratado
da vida do infante D. Fernando, cap. 7.
(52) Viterbo, Elucidário, vocábulos «biguino» e
«Evasam»; Armindo de Sousa, 1981, p. 144.
(53) Além dos documentos já mencionados, v. Cortes de
1331, caps. 41, 42 e 44 dos especiais de Lisboa, de 1361,
cap. 15 dos gerais do povo, e de 1371, cap. 82 dos gerais
do povo.
(54) Cortes de 1394, cap. 21, e de 1398, cap. 2.
(55) «Ordenações e estatutos» feitos pela Câmara de
Lisboa e homologados por D. João I em carta de 3 de
Novembro de 1385, publicados por Freire de Oliveira, 1932,
vol. I, pp. 264-280.
(56) AHCM Lisboa, Códice 10, fol. 38.
(57) Esta informação não é inteiramente segura. V.
Costa Lobo, 1979, p. 227.
(58) Por exemplo, da rainha D. Leonor Teles e da mãe da
Beltraneja, irmã de D. Afonso V.
(59) Consta que era perigo das mulheres «praticarem»
com clérigos, especialmente quando os maridos andavam fora:
ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, livro 5, fol. 29v.º.

402
(60) Cortes de 1331. caps. 41, 42, 43, 44 e 46 dos
especiais de Lisboa; carta régia de 1352 sobre o castigo
dos clérigos: Cortes portuguesas. D. Afonso IV, pp.
150-156; Cortes de 1387, cap. 6; lei de 28 de Dezembro de
1401; Ordenações afonsinas, liv. II, tít. 22, e livro V,
tít. 19; penas contra barregãs dos clérigos de 1420 (?):
AHCM Lisboa, Códice 5, fols. 94v.º-98v.º; Cortes de 1451,
cap. 15. Sobre servidores e barregãs de clérigos: lei de
1454: AD Porto, Origmais, livro 22, fol. 8; Cortes de 1455,
caps. 10 e 13 do clero de 1468, cap. 12, de 1472-1473,
caps. 35 e 77, e de 1481-1482, cap. 143.
(61) V. por exemplo, AD Porto, Originais do Cabido,
livro 14, fols. 11, 12, 16, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25,
26 e 50, livro 21, fols. 1 e 4, livro 22, fols. 10 e 11,
livro 27, fols. 15, 17, 26, 29 e 30, e livro 29, fol. 63,
onde se documenta um grande número de conflitos entre
bispos, entre bispos e cabidos, entre uns e outros e
franciscanos ou dominicanos, etc. Tais acontecimentos
verificaram-se em 1254, 1320, 1338, 1429, 1446, 1449, 1451
(duas vezes), 1452, 1460, 1469, 1472, 1473 (cinco vezes),
1475, 1477, 1492 (três vezes) e 1493. Fazendo-se uma
sondagem nos arquivos de outras catedrais do País, a
sondagem seria provavelmente semelhante. V. ainda o doc.
publ. por Ribeiro, 1857, vol. II, pp. 260-262, sobre abusos
dos familiares do bispo, e a carta de D. Afonso V de 1451
em que exige aos juízes e oficiais que protegiam os
dominicanos contra «agravos dos clérigos e prelados», etc,
publ. por Ribeiro, 1860, vol. I, pp. 334-336.
(62) V. M. Martins, 1957 e 1951, pp. 283-298, em que se
explica como se «fazia» a «agua sancta de Jhesu» em S.
Domingos de Lisboa. Sobre a tentativa dominicana de
introduzir esta «sancta água» e a oposição do bispo e do
cabido do Porto, v. AD Porto, Originais do cabido, livro
21, fol. 4, 1451.
(63) Estes capítulos estão publicados, excepto os de
1477 (ANTT, Cortes, ms: 2, n.º 14, fols. 136 e segs.). Os
de 1361, 1390, 1391 e 1427, nas Ordenações afonsinas, liv.
II, títs. 5, 6 e 7; os de 1455, por G. Pereira de Castro,
1742, pp. 469-490; os de 1456, por Armindo de Sousa, 1983.
(64) As fontes indicadas na n. 60 e ainda Cortes de
1361, cap. 73, de 1472-1473, caps. 165 e 166, de 1475, cap.
3 do Algarve, de 1477, cap. II, de 1481-1482, caps. 3 e 38,
V. também as Ordenações afonsinas, livro III, tít. 15, §§
17 e 18 (onde se faz menção de clérigos carniceiros,
taverneiros, rufiões, jograis, «trejeitadores», goliardos e
botões).
(65) V. Cortes de 1361, cap. 2 do clero, de 1390-1391,
cap. 2 do clero, e de 1394, cap. 22; AHCM Lisboa, Códice 5,
fols. 94v.º-98v.º (documento de 1420?); carta de Bruges do
infante D. Pedro, 1426 (Conselhos de D. Duarte, p. 28);
carta régia de 1461 sobre as condições exigidas aos
minoristas para poderem usufruir dos privilégios
eclesiásticos (AHM Porto, Liv. 4 dos pergaminhos, fols.
78-81); Cortes de 1472-1473, cap. 197, e de 1481-1482, cap.
39. Sobre o excesso de ordenações e de minoristas, v. J.
Marques, 1988, pp. 953-982, e 1951, e ainda Arquivo do
Cabido de Évora, CEC5-I (livro das ordenações de 1472) e
CEC5-II (Matrículas das ordenações de 1482-1483).
(66) Eis alguns textos que provam abuntantemente o
exposto: Cortes de 1352, cap. I; carta régia de 1363
confirmando outra de 1352 (Cortes portuguesas. D. Afonso
IV, pp. 150-156); Cortes de 1361, caps. 1, 2, 3, 19, 53, 55
e 66, de 1371, caps. 19, 24, 44 e 70, de 1372, cap. 13, de
1387, cap. 1, de 1389, cap. 12, de 1418, cap. 2, de 1430,
cap. 21, de 1433, caps. 71, 100 e 105, de 1436, caps. 4 e
5, de 1439, cap. 50, de 1451, caps. 5 e 32, de 1455, cap.
3, de 1468, cap. 5, de 1472-1473, caps. 47, 57, 97, 98,
139, 147, 166, 168 e 189, de 1472-1473, cap. 19 da nobreza,
e de 1481-1452, cap. 163, V. ainda os capítulos do clero,
que são os textos mais ilustrativos, indicados na n. 63.
(67) Zurara, Crónica de Guiné, cap. 7; Crónica de D.
Duarte de Meneses, cap. 31; Crónica da tomada de Ceuta,
cap. 5; Cavallarias de allgus fidallgos portugueses, cód.
87 da Bibliografia Pública Municipal do Porto.
(68) Cortes de 1385, cap. 32 dos especiais de Lisboa.
V. ainda AHM Porto, Livro A, fols. 151-154, extensa carta
em que se compendiam os privilégios dos infanções e a sua
previvência até ao século XVI.
(69) 1433: AHM Porto, Livro 4 dos pergaminhos, fol. 8;
1472: BGU Coimbra, Ms. 697, p. 172; 1475: AHM Porto, Livro
4 de vereações, fol. 75v.º; 1476: ANTT, Cortes, ms. 2, n.
18, foi. 5; 1476: ANTT, Livro 2 de místicos, fol. 59v.º.
(70) Baquero Moreno, 1980, vol. II, traça a biografia
de cerca de 200 fidalgos que eram vivos nas vésperas da
Batalha de Alfarrobeira, em 1449. Dele e outros nos
servimos. Os quatro ricos-homens que achámos são os
seguintes: Álvaro Vaz de Almada (p. 999), Diogo Fernandes
de Almeida (p. 696), Martim Afonso de Miranda (p. 890) e
Nuno Martins da Silveira (p. 962). Além destes e de Luís
Gonçalvez, a que se refere Zurara, Crónica de D. Pedro de
Meneses, vol. I, cap. 73, não vimos mais nenhum.
(71) ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, livro III, fol.
73v.º.
(72) Os de 1398 estão nas Ordenações afonsinas, livro
II, tít. 59; os de 1472-1473 estão inéditos (Armindo de
Sousa, 1990a, vol. I, p. 400). Não referimos os de 1408
porque não trazem o teor original escrito pelos nobres, mas
resumos feitos pela chancelaria régia (Ordenações
afonsinas, liv. II, tít. 59, § 36).
(73) Armindo de Sousa, 1983, pp. 14-20. É óbvio que
estamos a referir-nos a escudeiros-título e não a
escudeiros-função.
(74) Cortes de 1427, cap. 31, de 1433, caps. 50 e 84,
de 1442, cap. 4, é de 1477, cap. 4.
(75) Cortes de 1472-1473, cap. 62, e de 1451-1482,
caps. 61, 62 e 63.
(76) Os capítulos das Cortes de 1361, 1398 e 1408 foram
publicados nas Ordenações afonsinas respectivamente no
livro 5, títs. 87 e 94, e no livro 2, tít. 59, § 1-35 e
segs.; os de 1361 também em Cortes portuguesas. Reinado de
D. Pedro I, pp. 28-29; os de 1472-1473 estão inéditos:
ANTT, Cortes, ms. 2, n.º 14, fols. 56-64vº.

403
(77) V. Ordenações afonsinas, livro 2, títs. 60 e 63.
Ainda nas Cortes de 1472, cap. 5 da justiça, os povos vêem
na legislação fernandina sobre as jurisdições dos nobres
(tít. 63) matéria actual que urgia fazer cumprir.
(78) ANTT, Cortes, ms. 2, n.º 14, fol. 57.
(79) «Civilização da vergonha» (shame-culture) versus
«civilização da culpabilidade» (guih-culture). No seu livro
The chrysanthemum and the sword a antropóloga Ruth Benedict
estuda os traços distintivos desses dois tipos de
civilização ou cultura.
(80) V. C. G. Riley. 1991, e apêndice documental, e
também Baquero Moreno, 1979, vol. I.
(81) Estas duas virtudes inferem-se, pela negativa, das
críticas constantemente proferidas pelos povos contra os
fidalgos durante os séculos XIV e XV. Aliás, o rei D.
Afonso V aponta-as, à cortesia e à mesura, como as virtudes
que devem exornar a nobreza (v. a resposta ao cap. 15 dos
fidalgos nas Cortes de 1472-1473, na fonte indicada na n.
76).
(82) Sentença régia datada de Montemor-o-Novo, 25 de
Janeiro de 1481, no manuscrito da Biblioteca Municipal de
Viseu Provas e apontamentos da história portuguesa, vol.
II, fol. 137.
(83) Livro antigo de cartas e provisões, pp. 152-158
(nota do editor, A. de Magalhães Basto).
(84) Baquero Moreno, 1981; id., 1985, pp. 172-211; id.,
1990, pp. 13-35, 93-107, 108-123 e 156-178.
(85) V., por exemplo, Cortes de 1361, cap. 25 do clero;
de 1455, caps. 7 e 11 do clero; de 1477, cap. 1 do clero; e
de 1481-1482, cap. 117 dos povos.
(86) Além das crónicas de Fernão Lopes, Zurara e Pina,
v. Cavallarias de allgusfidallgos, BM Porto, cód. 87.
(87) AD Porto, secção monástica, Convento de Santo
Tirso, códs. 59 e 149.
(88) V., por exemplo, Cortes de 1361, cap. 42: de 1433,
cap. 26; de 1455, cap. 5; de 1459, cap. 1; ede 1475, cap.
26.
(89) Sobre disciplina de perfilhação dos órfãos, v. as
Cortes de 1455, cap. 11. Sobre a inesperada ruína de
lavradores, v. o caso de Afonso de Manguela, foreiro de
Santo Tirso, nos anos 30 do século XV: AD Porto, Convento
de Santo Tirso, Códice 149, fol. 9.
(90) Referimo-nos aos livros de vereações da Câmara do
Porto dos séculos XIV e XV, que se guardam no AHM Porto.
Alguns deles estão publicados, conforme se pode ver na
bibliografia. Para além dos do Porto, chegaram até nós
alguns outros: de Loulé, Torre de Moncorvo e Vila do Conde,
por exemplo (v. Oliveira Marques, 1988).
(91) Cortes de 1352, cap. 3; de 1361, caps. 43 e 76; de
1371, caps. 33, 51 e 54; de 1389, caps. 2, 15, 25 e27; de
1390, cap. 13; de 1391, cap. 1; de 1394, cap. 23; de 1398,
cap. 11; de 1400, cap. 4; de 1401, cap. 6; de 1408, caps.
2, 7 e 9; de 1410, caps. 7 e 11; de 1418, caps. 25, 28, 29,
34 e 45; de 1427, cap. 26; de 1430, cap. 22; de 1433, caps.
21, 79, 87, 88, 119, 122, 143, 147, 149 e 155; de 1436,
caps. 7, 8, 12 e 24; de 1439, caps. 8, 24, 33, 44, 48 e 49;
de 1444, cap. 3; de 1451, cap. 25; de 1455, caps. 3, 5, 13
e 20; de 1455, cap. 8 do clero; de 1456, cap. 3; de 1459,
caps. 1, 2, 3, 4, 8, 10, 17, 22, 35, 44 e 46; de 1460,
caps. 3 e 4; de 1465, cap. 5; de 1468, caps. 151 e 188: de
1472-1473, caps. 52, 91, 102, 142, 151 e 188; de 1475,
caps. 13 e 27; de 1481-1482, caps. 22, 104, 110, 112, 120,
121, 124, 125, 131, 138, 159, 162, 167 e 170; e de 1490,
caps. 29, 37 e 38.
(92) V. G. Fourquin, 1976, e J. Heers, 1968, pp. 64-70.
Para Portugal, v. J. Antunes, A. Resende de Oliveira e J.
Gouveia Monteiro, 1984; L. de Sousa Rebelo, 1983; J.
Serrão, 1984; e M. J. Ferro Tavares, 1978.

REALIZAÇÕES

No primeiro capítulo deste ensaio falámos de


«condicionamentos básicos» — território, população, técnica
e superstruturas ordenadoras, tais como modelos
societários, sistemas jurídicos, língua e símbolos de
unidade nacional. Esses condicionamentos são os
pressupostos necessários, materiais e formais, dos países,
nações e pátrias; os suportes e vectores da distinção e
identidade dos povos. Analisámo-los a respeito de Portugal
nos séculos XIV e XV.
No segundo capítulo falámos de «socialidade», tendo
procurado, apoiados num grande número de textos de variadas
espécies, ir o mais longe possível na descrição e
entendimento das estruturas, grupos e motivações.
Categorizámos as pessoas, perseguimos as direcções e os
sentidos dos seus comportamentos e anotámos a sequência do
processo da socialidade em Portugal desde 1325 a 1484.
Vistos os condicionamentos básicos e os agentes
humanos, resta falar dos efeitos. Das realizações.
É o que vamos tentar neste terceiro capítulo.
E fá-lo-emos de modo propositadamente muito breve.
Porque é matéria que o leitor poderá, com comodidade e
grande cópia de pormenores, visitar em recentes e
credenciadas histórias de Portugal (1). Destacaremos aqui
as «memoráveis realizações», tão-somente.
Memoráveis realizações? Que é isso? Não é verdade que
todas as realizações históricas são igualmente memoráveis,
mesmo que efémeras, precisamente por serem isso, históricas
e irrepetíveis? Entendamo-nos: «memoráveis realizações»
serão aqueles feitos ou actos — sociais, jurídicos,
administrativos, fiscais e políticos — que irão ter efeito
no longo prazo, que irão marcar a história portuguesa
durante tempos suficientemente dilatados, de três ou mais
gerações. Nem nos importará que tais actos sejam originais
ou inspirados de fora, ou convergentes com experiências
estrangeiras. Este lado das coisas será deixado entre
parênteses. Enfim, guiar-nos-á esta preocupação: detectar
sinais de especificidades duradouras e seguir-lhes a
trajectória durante o período do nosso estudo — 1325 a
1484. Para tal, começaremos por traçar o panorama geral
desses 160 anos. O que faremos segundo o modo mais cómodo e
tradicional: cronologicamente, reinado após reinado,
desdobrando a conjuntura política.
Finalmente, dedicaremos a nossa atenção às «memoráveis
realizações» que se verificaram na área da cultura
propriamente dita, designadamente nos campos da literatura
e da arte. E, neste caso, «memoráveis» serão as realizações
que os especialistas hegemonizam, quer pelo seu valor
absoluto e intemporal quer pelo seu carácter de testemunhos
da época.

Protagonismos

O evoluir das conjunturas, desde D. Afonso IV até D.


João II, é o que vamos ver de seguida. Será uma sucessão de
sínteses rápidas, nas quais exponenciaremos factos e feitos
que retomaremos depois, selectivamente, no subcapítulo a
seguir. Conforme dissemos, prosseguiremos por governos.

D. Afonso IV (1325 a 1357)

D. Afonso IV, sétimo rei de Portugal, nasceu em Lisboa


no dia 8 de Fevereiro de 1291, filho de D. Dinis e da
Rainha Santa Isabel. Casou em 1309 com a infanta castelhana
D. Beatriz. A partir de 1315 incompatibilizou-se com o pai

406
por diversas razões relacionadas com o valimento na corte
dos seus meios-irmãos, Afonso Sanches, João Afonso e Fernão
Sanches, indicados pela intriga como seus possíveis rivais
na sucessão monárquica, nomeadamente o primeiro dos três.
Em 1320, a incompatibilidade virou guerra aberta. Uma
guerra fomentada por alguns nobres despeitados e saudosos
de antigos privilégios feudais — que D. Dinis havia
cerceado — e também uma guerra querida por Castela e
Aragão, reinos interessados em enfraquecer Portugal no
contexto da Península. Durou quatro longos anos essa
desvairada guerra civil. De um lado, D. Afonso e a mãe,
mais um punhado de grandes senhores e muitos filhos
segundos, a que se juntaram os bispos de Lisboa e do Porto;
do outro, o sexagenário D. Dinis com os três bastardos
acima ditos, os oficiais da corte, alguns nobres de
segunda, o bispo de Évora, o deão do Porto e,
importantíssimos aliados, os mestres das ordens militares.
Em termos gerais, o Norte e o Centro puseram-se ao lado do
infante e o Sul ao lado do rei. As forças equivaleram-se e
por isso o pleito durou quatro anos. Foram anos de
recontros, cercos e decercos, conquistas e reconquistas,
roubos e assassínios e grande actividade propagandística e
diplomática. Aragão e o papa intervieram no caso e a Rainha
Santa Isabel teve papel importante, nomeadamente em 1323,
em Alvalade, quando os exércitos do marido e do filho
estiveram à beira de escrever a sangue uma tragédia.
Finalmente, em 26 de Fevereiro de 1324 assinou-se a paz em
Santarém: o infante D. Afonso obtinha a segurança da
sucessão, sendo destituído dela e afastado da corte o
bastardo Afonso Sanches. O grande perdedor da contenda,
como sempre sucede nas guerras civis, foi o povo, que
durante esses longos anos viu os seus bens, os seus campos,
os seus gados e os seus corpos à mercê das reviravoltas das
armas, dos beligerantes e dos salteadores oportunistas,
sorte entregue à brutalidade da força e ao desamparo da lei
e da ordem. Até porque a neutralidade calculista da maior
parte dos senhores e dos prelados, longe de lhe dar
protecção, mais o expunha às violências — violências
cruzadas e impunidas.
Em 7 de Janeiro de 1325, D. Dinis morreu e D. Afonso
subiu ao trono. Logo, logo, convocou cortes, para Évora, às
quais chamou ricos-homens, cavaleiros e outros filhos de
algo; bispos, abades, priores e representantes de cabidos,
mosteiros e igrejas; procuradores dos concelhos; e outras
gentes do senhorio. Objectivo da assembleia: «pêra me
receberem por Rey e por senhor e me fazerem menagem e me
conhocerem senhorio e divido natural como a Rey e a senhor
a que som theudos de conhocer e pêra livrar com eles alguas
outras cousas» (2). Vê-se que se tratou de uma assembleia
muito frequentada e luzida, espécie de congresso nacional
destinado a estreitar em torno do novo rei o País todo,
clero-nobreza-povo, obediente e concordante. Enfim, ritual
de refazimento da ordem e da unanimidade; o sapar das
conflagrações dos últimos anos. Foi iniciativa muito hábil.
A qual mostra um Afonso IV politicamente maduro — conforme,
aliás, era de esperar da sua idade e da sua experiência. E
dissemos «iniciativa». Acrescente-se «inédita» e só
retomada no século XV. Porque, desde 1254 — ano das
primeiras cortes seguramente comprovadas — até 1433, não
conhecemos outras, além destas de 1325 (Évora), que tenham
sido expressamente convocadas para jurar um rei acabado de
subir ao trono. Anote-se, portanto, este facto.
Nestas cortes, o monarca, assegurado, como vimos, da
fidelidade de todos os súbditos, retomou o affaire Afonso
Sanches, agora judicialmente, sem embargo de ele, Afonso
Sanches, se achar em Castela e lhe ter enviado juramento e
menagem através de procurador bastante. Afonso IV acusou-o
de traidor, condenou-o a desterro perpétuo e confiscou-lhe
os bens. No ano seguinte fez o mesmo a João Afonso, só que
para este a sentença foi de morte e como tal executada.
Assim, o reinado de D. Afonso IV começou sob o efeito do
ódio e da paixão da vingança. Tudo bem escusado,
provavelmente sem fundamento, e perigoso para o País e seus
habitantes. É que Afonso Sanches, baldados os seus
protestos escritos e outras medidas contra a arbitrária
sentença de desterro e espoliação, pegou armas, reuniu
forças de Castela e invadiu Portugal, espalhando a lei do
ferro e fogo, território fronteiriço abaixo, desde
Trás-os-Montes até ao Alentejo. D. Afonso IV fazia o mesmo
do outro lado, especialmente em Albuquerque, na zona de
Badajoz, onde o adversário tinha sede e principais apoios.
Jogava-se guerra feudal mas perigosamente à beira de se
transformar em conflito internacional, pois o rei de
Castela, Afonso XI, se bem que interessado na paz com
Portugal (repudiara a esposa, D. Constança, e casara com D.
Maria, filha do rei português), Afonso XI, dizíamos, tinha
obrigação de proteger o senhor de Albuquerque, sogro de
Afonso Sanches, contra as incursões de Afonso IV. Era
obrigação de suserano a vassalo. Que laços de parentesco
não podiam anular. De modo que o ódio e a vingança do
monarca português ao seu irmão havia desencadeado uma

407
guerra mesquinha e extremamente temerária. A qual se
agudizou em Julho de 1326 com a execução de João Afonso,
que atrás lembrámos. A Rainha Santa Isabel, da sua clausura
de Coimbra, aonde se remetera, temia o pior e enviava ao
filho recados. Recados de paz e de restituição ao bastardo
dos bens espoliados. Mas a contenda durou três anos e só
terminou porque Afonso Sanches, tendo adoecido gravemente,
suspendeu as operações. Negociou a paz e da negociação
obteve a restituição de todos os bens confiscados. E
restituídos, faleceu (1329). Está sepultado no Convento de
Santa Clara de Vila do Conde, convento que ele fundou.
Acalmado nos seus ódios e afirmado junto dos súbditos
como homem que não esquecia traições nem contemporizava com
rivais, D. Afonso IV pôde voltar-se decididamente para os
negócios do Estado. Os quais consistiam, como sempre sucede
onde quer que haja Estado, mínimo que seja, em actuar em
duas direcções: o exterior e o interior do País. No
exterior, acautelando inimigos; e no interior, acautelando
o poder e a autoridade.
Relativamente ao exterior, verifica-se toda uma série
de iniciativas diplomáticas e comerciais tendentes a
segurar a paz com vizinhos, a projectar Portugal à
distância e a trazer a prosperidade aos naturais. A
diplomacia e o comércio são os substitutos inteligentes da
guerra. Modos sublimados da competição pelas armas. A que
os séculos XIV e XV darão importância sempre crescente. Em
1328 e 1329 confirma-se a aliança perpétua com Aragão e
Castela, isto é, reafirma-se o Tratado de Agreda de 1304.
Em 1345 e 1346 tenta-se a aproximação à Inglaterra, mas sem
sucesso. Todavia, registe-se. Em 1353 firma-se, também com
a Inglaterra, um importante tratado comercial, válido por
50 anos — preparado, aliás, por contactos que vinham de
longe, recíprocos, e de que são indiciadores certos
privilégios a mercadores ingleses outorgados em 1338 e um
tratado de mútua protecção anticorso selado em 1343. A
Guerra dos Cem Anos, Inglaterra contra a França, grassava
desde 1328, tornava-se europeia desde a Batalha de Crécy
(1346) e obrigava o rei português a optar por uma das
facções, mesmo mantendo neutralidade militar. D. Afonso IV
optou pela Inglaterra, pelo menos ao nível das relações
diplomáticas e dos acordos comerciais. No que deve ter sido
influenciado por mercadores, como esse Afonso Martins Alho,
portuense, interveniente nas negociações que levaram à
assinatura do acordo comercial de 1353. As direcções da
política externa foram, por consequência, as seguintes:
amizade com Aragão, paz com Castela e aproximação à
Inglaterra. Tudo interesses. Ou jogo — que em tal consiste
a razão última e inteligente de qualquer foreign politics.
Em última análise, protecção das fronteiras e suas
ligações: a seca e a molhada, a continental e a atlântica.
E o jogo, apesar de Castela propender para as simpatias da
França, resultou.
Bem. Houve, é certo, uma guerra com Castela. Deu-se
entre 1336 e 1339. Mas isso nada teve a ver com Franceses e
Ingleses, antes com a política interna castelhana, cujos
nobres e prelados se dividiam entre obedecer ao rei ou ao
poderoso D. João Manuel, seu rival. D. Afonso IV entra no
vespeiro aparentemente por uma questão emotiva: a
solidariedade com a filha Maria, esposa do castelhano e que
o castelhano praticamente repudiava, trocando-a no tálamo
por Leonor de Gusmão. E como procede o português? Negoceia
o casamento do infante D. Pedro, seu herdeiro, com a filha
de D. João Manuel, em desprezo da promessa de 1328, segundo
a qual a mulher de D. Pedro e futura rainha de Portugal
havia de ser D. Branca, sobrinha do rei de Castela. Aliás,
D. Constança Manuel havia sido repudiada por Afonso XI e
substituída por D. Maria, a filha de D. Afonso IV, essa que
agora carpia mágoas de mal-amada em escritos e mensageiros
que enviava até ao pai. O leitor não estranhe estas
confusões de matrimónios prometidos e falhados, esposas
ofendidas e repudiadas, alianças direitas e cruzadas,
rainhas a prazo de não importa que coroa, porque o amor era
acessório do casamento; e parentesco, vide política, a
regra dos coroados. Tal se praticava por todo o lado. De
modo que não é de crer que a motivação profunda da
ingerência de D. Afonso IV no vespeiro castelhano se deva
explicar por imperativos emocionais. Nem sequer pelo facto
de Afonso XI ter sequestrado em Toro a prometida do infante
D. Pedro — embora este motivo, visto às luzes da época,
pareça mais convincente e seja o veiculado pelas crónicas.
Há-de ter havido, bem lá na última análise do rei, qualquer
esperança de dilatação de poder ou de fronteiras. Fosse
pelo que fosse, a guerra estalou, espargiu terror e sangue
em toda a terra e no mar, invasões e contra-invasões,
surtidas e escaramuças, incêndios e pilhagens, massacres e
prisioneiros — o costume. E, como de costume, o povo,
português e castelhano, o de mais perder. Três anos de
histeria destruidora, 1336 a 1339. Galiza, Entre Douro e
Minho, Alentejo, Badajoz, terras de Huelva, Algarve

408
oriental, costa andaluza, foram cenários do sangrento
vendaval. E ainda o maré regiões costeiras, desde Gibraleón
a Lisboa e do Porto até Vigo. Finalmente, por influência do
papa e do rei de França, acertaram-se tréguas, assinou-se a
Paz de Sevilha (Julho de 1339) e tudo ficou como devera: as
mesmas fronteiras e as mesmas mulheres. Ou seja, os
territórios mutuamente conquistados eram devolvidos, D.
Constança Manuel casava com o infante D. Pedro e a rainha
D. Maria era reassumida como esposa de leito pelo marido,
Afonso XI. Em suma, cada vez mais a guerra se mostrava modo
inepto para o alargamento fronteiriço de Portugal para
Castela; e vice-versa. A via era o Sul, contra os Mouros.
Só que os Mouros praticavam doutrina idêntica, apenas
invertendo a direcção. E porque a maré era boa, pois os
cristãos se matavam, resolveram pôr a doutrina em
exercício.
Em 1339, Granada mexe-se, toma Gibraltar e assola os
territórios cristãos do Sul. Logo a seguir, em 1340, é o
rei de Marrocos que atravessa o estreito com mais de 100
navios e entra vitorioso em Espanha. Prepara-se, aliado aos
Granadinos, para prosseguir pelo Norte. A Cristandade
aflige-se, mormente a mais próxima do perigo, Castela e
Afonso XI, Portugal e Afonso IV. Os quais, ontem inimigos
de morte, hoje somam esforços de cruzados e amigos. E
juntos vencem o Islão na Batalha do Salado (30 de Outubro
de 1340). As crónicas perpetuarão a vitória como uma das
maiores de toda a Reconquista. Tenha sido ou não, a verdade
é que ela marcou de ponto final as esperanças islamitas de
reocupar a Península. Granada continuará durante ainda
século e meio; limitando-se, porém, a aguentar.
Entretanto, a frota de guerra portuguesa, que D. Dinis
havia criado e entregue ao comando do genovês Pessanha,
vinha escrevendo história digna, tanto na limpeza de
piratas e corsários, como em expedições punitivas contra as
costas muçulmanas, como em guerras propriamente ditas (a de
Castela e a de Granada), como, finalmente, em expedições de
descoberta e conquista. Com efeito, é opinião muito crível
que a célebre exploração das Canárias atribuída a
Lancelloto Malocelli, genovês (± 1336), tenha sido
orientada pelo almirante-mor de Portugal Manuel Pessanha,
genovês também, como se sabe. Tenha-o sido ou não, facto é
que os navios portugueses chegaram às Canárias antes
daquela data e continuaram a ir lá depois de 1339. E será
precisamente com fundamento nessas viagens pioneiras que os
reis portugueses nunca deixarão de reivindicar junto dos
papas, a partir de 1345 e por mais de 100 anos, a sua
soberania no arquipélago. De modo que saúde-se o governo de
D. Afonso IV como aquele que assinala os primeiros começos
da expansão portuguesa para além do continente europeu.
E aí ficam resumidas as direcções e sentidos mais
importantes da política externa deste rei. O saldo é
positivo. Não tanto em razão da eficácia imediata das
«realizações», mas sim em razão das pistas que se rasgam e
dos caminhos que se apontam.
No que toca à política interna, o reinado de Afonso IV
pode considerar-se positivo também. Ficará na história como
dirigido por um rei legislador e centralista, digno
herdeiro do pai e do avô (A. Carvalho Homem, 1990, pp.
213-223). E tudo apesar de ter ocorrido, em 1348-1349, a
peste negra, o maior flagelo de que a Europa tem memória,
com o seu cortejo de desordens de toda a espécie.
Recorde-se o que dissemos no primeiro capítulo. De todas as
realizações político-governativas de D. Afonso IV,
retenha-se:
a) A reforma do modo de actuação parlamentar dos
deputados do povo (1331);
b) A reforma da administração da justiça (juízes de
fora e corregedores — 1327 e 1332-1340);
c) Medidas inovadoras na organização do desembargo
régio (data indeterminada — 1331--1340);
d) Reformas da administração concelhia (cerca de 1340);
e) Repressão de abusos senhoriais (1331, 1334, 1335,
1341 e 1343);
f) Medidas sociolaborais (1349).
Os últimos anos do governo de D. Afonso IV foram
marcados pela guerra civil. Dele contra o filho, repetição
da história. O motivo próximo foi o assassínio de Inês de
Castro, mulher clandestina do infante D. Pedr» desde a
morte da rainha D. Constança (1348 ou 1349). Um assassínio
ordenado ou consentido pelo rei e desferido por razões de
Estado — afastar do herdeiro português as influências
perigosas dos Castros, os quais, rebelados contra Pedro I
de Castela, tentavam meter o infante no caso,
prometendo-lhe o trono. Seria a quebra de tratados; e
guerra, obviamente. Matou-se Inês (1355) para afugentar
esses perigos. Mas o efeito foi a guerra civil, o filho
contra o pai. O infante reuniu um vasto exército, marchou

409
sobre o Entre Douro e Minho e Trás-os-Montes e tentou, sem
êxito, ocupar a cidade do Porto. Isto sucedeu na Primavera
e Verão de 1355. Em Agosto do mesmo ano foi possível tratar
a paz, graças sobretudo ao prior do Hospital, D. Álvaro
Gonçalves Pereira. O tratado verificou-se em Canaveses (5
de Agosto de 1355). Por ele, o infante D. Pedro ficou como
co-governador do País.
D. Afonso IV faleceu em Lisboa no dia 28 de Maio de
1357, com a idade de 66 anos, 32 reinante. A história
cognominou-o de ò Bravo, associando-o gloriosamente à
Batalha do Salado.

D. Pedro I (1357 a 1367)

D. Pedro I nasceu em Coimbra no dia 8 de Abril de 1320,


de modo que tinha 37 anos quando cingiu a coroa de
Portugal. Homem maduro, experiente e conhecedor exacto do
País inteiro. Foi amado do povo e temido dos grandes.
Fernão Lopes, que dele fala pensando-o avô da dinastia a
que serve, não regateia louvores: alegre, magnânimo,
liberal, justo, popular e cavalheiro. Gago — que é coisa
ambígua, virtude-defeito, contenção e excesso, diferença
simpática; Moisés era gago. Vícios? Pois, sim: mas só
aqueles «de que peendença podia fazer», ou seja, só aqueles
de que podia desencarregar-se facilmente com satisfações
neste mundo, ficando desde logo apto a aceder à «perdurável
folgança no outro» (Crónica de D. Pedro, prólogo). Como
quem diz: não fez pecados, mas pecadilhos, de sexo, já se
vê, esses que umas missas e algumas esmolas logo apagavam
nos reis. Aliás, um desses pecados, praticado na mãe de D.
João I, assegurou a continuidade da independência de
Portugal e produziu a dinastia de Avis. Vá-se lá entender a
lógica dos pecados, efeito superior à causa, a escolástica
o esgrimisse. Fernão Lopes pensaria nisto.
Os historiadores modernos têm visto D. Pedro I com
outros olhos e outros critérios. Um homem agressivo. De uma
agressividade constitucional, patológica. A qual foi
canalizada e cumprida nessa função prioritária dos reis:
exercer a justiça. Só que D. Pedro confundiu o exercício da
justiça com a execução da mesma nos incriminados. Gostou
mais de ser algoz do que juiz. E fê-lo com sádico prazer.
Comendo enquanto justiçava ou enquanto os carrascos
aplicavam tormentos. Só um neurótico.
Chamaram-lhe o Cru, ou cruel — e foi. Mas foi-o
castigando crimes, os mais variados, nas mais variadas
pessoas, «democraticamente». Por conseguinte, chamaram-lhe
ainda o Justiceiro — e realmente foi-o também. Não o Justo,
mas o Justiceiro, o corregedor-mor, o executor. Não estamos
a exagerar: é ver a crónica que dele fez Fernão Lopes, seu
admirador crítico. Este D. Pedro foi o rei gago, ambíguo,
ciclotímico, temível. Um látego útil nessa época em que o
motivo da ordem assentava no medo. Por isso especialmente o
povo o amou — o «povo-vítima resignada» dos abusos impunes,
o «povo-cliente preferido» das forcas e enxovias. Que
agora, vendo a todos, e não só a ele, debaixo da férula da
lei, rejubilou. E no fim do reinado disse: «Tais anos nunca
houve em Portugal, como estes que reinara el-rei D. Pedro.»
(Crónica de D. Pedro I, cap. 44.) É um dito que merece
reflexão: o povo preferia um rei sádico e cego na aplicação
uniforme da lei, suportando-lhe excessos pontuais, a um
outro qualquer contemporizador e parcial. Isso ensina-nos
que a ordem assentava no medo, como dissemos, o que é moral
arcaica; que o rigor penal, inverso ao estatuto social, era
sentido como escândalo; que o poder político, identificado
com poder de coerção, era tido como indispensável; e que o
rei era desejado como autoridade e força dissuasora
supremas, acima dos povos e acima dos clérigos e dos
nobres. Sendo assim — aquele dito o insinua e toda a
Crónica de D. Pedro I o confirma — o rei Cruel e Justiceiro
há-de ser apreciado segundo essas coordenadas, as da época.
E então as ressonâncias conotativas adstritas aos vocábulos
«sádico» e «neurótico», em vez de revelarem a imagem
«com-sentida» do monarca — essa que importa à história
fixar — provavelmente não fazem senão deturpá-la. Por
outras palavras, a psicologia histórica que ajuda o
historiador não é prioritariamente a individual, mas a
social, colectiva. Até porque as personalidades que a
historiografia destaca, reis e heróis, ou similares, antes
de tudo são funções. Ora, parece que, na óptica dos
contemporâneos e das gerações subsequentes, a crueza de D.
Pedro I foi o modo exacto de ser rei nesse tempo concreto,
pouco importando humaníssimos discursos nossos contrários a
esse sentir — que fazer história não é pregar moralismos
intemporais nem sentenciar sobre mortos.
O que acabámos de dizer é consideração sobre a tónica
da política interna de D. Pedro. Justiça, a grande paixão.
O cronista Fernão Lopes viu-o bem; e por isso dedicou todo
o prólogo da crónica deste rei a dissertações próprias e

410
emprestadas sobre essa virtude. Depois, capítulos IV a X,
es-praia-se em relatos, anedóticos quase todos, da
administração judiciária concreta: degolação de dois
criados régios, punição do bispo do Porto que dormia com
mulher casada, castração de um escudeiro por causa de crime
idêntico, queima e degola de um par adúltero, etc. Enquanto
isto, o rei legislava contra alcoviteiras e adúlteros e
aperfeiçoava a máquina judicial — lei sobre apelações
(1359), lei sobre advogados e procuradores (1362),
regimento dos secadores e porteiros (1365), etc. No que
toca ao desembargo régio, D. Pedro I seguiu a esteira do
pai, reformando e inovando. De tal modo que pode dizer-se,
por exemplo, que a autonomização da Casa do Cível
relativamente ao desembargo propriamente dito foi obra sua
(A. Carvalho Homem, 1990, pp. 225-227).
Sobre centralização monárquica e repressão de
privilegiados, o governo do Justiceiro foi ambíguo. Com os
nobres mostrou-se largo, magnânimo, remando ao contrário do
pai; com os prelados usou pesos e medidas diferentes dos
que adoptou para os restantes súbditos. Mas,
interrogar-se-ia ele, súbditos os clérigos? Esse corpo da
nação sempre pronto a apelar para autoridades
«estrangeiras», o papa e o seu direito? Uma categoria de
pessoas cuja obediência a exigir nunca podia fundar-se na
fidelidade pessoal, a autêntica, mas apenas numa vaga
dependência derivada da posse de territórios havidos de
mero e misto império? Posse juridicamente intocável sem o
aval do papa? Que súbditos eram esses? Quando um Estado, a
Igreja, vive dentro de outro Estado, o civil, quem é
súbdito de quem? D. Pedro I há-de ter experimentado estas
dúvidas, estas perplexidades. Como o avô e o pai. Subjugar
os nobres era fácil. Por conseguinte, não corria grave
risco o monarca que os exaltasse — porque, exaltando-os com
senso e medida, mais dependentes os tornava. Mas a mesma
táctica não podia aplicar-se aos prelados porque exaltá-los
equivalia a largar mão deles, diminuir a obediência e
alienar a autoridade. A Igreja era um tertium genus dentro
da monarquia. Cremos que estas interrogações e estas
respostas, mais do que razões emotivas e pessoais, explicam
as diferenças de atitudes de D. Pedro I a respeito dos
nobres e do clero: simpático para os primeiros, hostil para
com o segundo.
Para a nobreza, apesar de a nobreza o temer, conforme
vimos no segundo capítulo deste estudo, D. Pedro foi
magnânimo, mais do que seria de esperar de um rebento de
Afonso IV. Em 1361, nas Cortes de Elvas, respondeu aos seus
medos com palavras de alta estima e promessas de inteira
solidariedade, penitenciando-se, com tal estilo, de
prováveis excessos anteriormente cometidos nessa sua
vesânia de justiçar «democraticamente». Aliás, antes desse
ano, em 1357, fez conde de Barcelos a D. João Afonso Telo,
outorgando-lhe a inédita regalia de poder transmitir o
título e direitos por hereditariedade. Depois, naquele ano
de 1361, faz dos filhos de Inês de Castro, que eram seus
filhos também, D. João e D. Dinis, senhores de Porto de Mós
e do Prado. E, cinco anos mais tarde (1366), institui
senhor de Unhão o «cunhado» D. Álvaro Peres de Castro. A
outro filho, o bastardo D. João — esse que na década de 80
vai ser rei — mete-o a Mestre de Avis (1364), com isso
iniciando a nacionalização das ordens militares e
baptizando, sem o saber, a dinastia de todos os orgulhos
portugueses. Registe-se.
As antipatias para com os eclesiásticos são notórias
nas Cortes de 1361. D. Pedro continua a política da
afirmação do Estado contra a Igreja, que vinha de D. Afonso
III e se escudava no direito romano, cada vez mais o
direito dos príncipes. É sintomática a acusação prelatícia,
exarada num dos capítulos do clero de 1361 (Elvas), de que
o monarca tinha em maior estima as Partidas de Afonso X do
que o direito canónico (cap. 24). Ou seja, que atribuía
mais autoridade a um rei de Castela do que ao «padre santo
que tinha as vezes de Jesus Cristo» (ibid.). A resposta de
D. Pedro foi altaneira: pensassem o que quisessem, mas a
sua actuação continuaria a ser a que era (3). Esta resposta
seria de esperar. Com efeito, não foi este rei, aliás ainda
infante, o primeiro em Portugal a instituir o «beneplácito
régio»? Essa medida que correspondia a censurar os
rescritos e letras papais, e não só, emitidos para
Portugal? O chefe de uma nação a ajuizar sobre a
oportunidade da voz do chefe da Cristandade? O beneplácito
régio será para os prelados um acinte enormíssimo, sempre
protestado com veemência desde os primeiros tempos da sua
instituição [v. cap. 32 do clero de 1361 (Elvas)]. Mas
vigorará definitivamente, apesar da breve e inconsequente
revogação feita por D. Afonso V em 1456 [cap. 4 do clero de
1456 (Lisboa)] (Armindo de Sousa, 1983, p. 72).

411
Enfim, as antipatias para com os clérigos, evidentes em
Pedro I, devem entender-se, tal como dissemos há pouco,
como expressão de uma política: a da afirmação do Estado
civil. Que vinha de trás e continuará.
Quanto à política externa, o que se sabe é que o rei,
depois daquela tentação dos Castros, ainda infante, no
sentido de se imiscuir nos negócios de Castela, se desviou
de tais veredas. Manteve com o reino vizinho boas relações,
ajudando, inclusive, contra Aragão o monarca castelhano,
seu sobrinho e homónimo, e suspendendo inteligentemente a
ajuda na hora em que a boa estrela dele declinava perante a
ascensão do rival Henrique de Trastâmara. No que se mostrou
um político muito hábil e previdente, negociando casamentos
frustrados e intervindo em negociações internacionais
difíceis, sempre privilegiando a paz do reino. O que
conseguiu. O governo de D. Pedro I foi o único do século
XIV em que Portugal não conheceu guerras. Razão pela qual o
seu nome será lembrado durante décadas e décadas
sucessivas. Razão importante, que não única. Também o afã
da justiça, de que falámos. E ainda a prosperidade
financeira do Estado e o facto de ser avô da dinastia de
Avis. Faleceu a 18 de Janeiro de 1367.

D. Fernando I (1367 a 1383)

D. Fernando nasceu em Coimbra no dia 31 de Outubro de


1345. Tinha, portanto, vinte e um anos e alguns meses
quando subiu ao trono. Herdava um reino em paz e um erário
muito rico. Tudo indicava que, apesar da crise social e
económica que se vivia — aliás, comum a toda a Europa —,
Portugal iria ter um bom reinado: rei dado ao trato com a
nobreza, augúrio de paz interna, e neutral nos negócios de
Castela, promessa de paz com os vizinhos. Mas houve duas
coisas: o assassínio de Pedro I de Castela pelo meio-irmão
Trastâmara, sucessor no trono com o nome de Henrique II, e
o facto de D. Fernando chegar a rei solteiro, sem esposa
negociada dentro dos interesses do Estado. Este segundo
facto haverá de revelar-se, devido à escolha matrimonial
ditada aparentemente por mero impulso emotivo, extremamente
desestabilizador. A ponto de, mais tarde, nas Cortes de
Coimbra de 1385, os povos, recordados, terem proposto que
casamentos régios passassem a ser matéria do Parlamento
(cap. 7). Há homens e mulheres que, devido à sua posição de
nascimento no xadrez do interesse público, são forçados a
abster-se de critérios individuais em matérias de foro
sentimental. São gente para a nação — de que a nação não
abdica. Moedas de troca da viabilidade dos reinos e da paz
entre os Estados. Política e parentesco — alianças — sexo
para o bem comum, destino ou fado dos reis e seus filhos.
Sempre assim foi, até nas sociedades mais arcaicas. Nos
séculos XIV e XV europeus também; e com ênfase extremamente
marcada. Com excepção aparente de Roma, excepção óbvia, os
tratados internacionais selavam-se com matrimónios. As
princesas eram bem nacional de valia número um. Mesmo
imbecis ou idiotas, como essa D. Branca de Castela, noiva
de D. Pedro I — que D. Pedro I e outros consortes
negociados aceitavam e repudiavam, conforme as conjunturas
mudassem. Casamentos políticos e política de casamentos,
amor fora de questão, era assim. E casamentos por obrigação
e destino. É ver o discurso dos povos contra o direito de a
princesa Santa Joana escolher a vida monástica, proferido
em 1471: pura e simplesmente, ela não podia escolher a
castidade (Armindo de Sousa, 1990a, vol. I, pp. 458-459). O
seu corpo, já que engendrado por rei-rainha, erá para bem
da dinastia e destinado a procriar. A procriar com parceiro
que os políticos indicassem.
De modo que não causa qualquer estranheza ter sido D.
Fernando considerado pela maioria dos súbditos como
temerário, imprudente e egoísta ao tomar por mulher Leonor
Teles, «menina» fidalga reinol, apetecida só pela beleza,
casada e tudo. Esquecendo tratados. Pondo em risco a paz do
reino. Alijando o bem da «república». Concitando, era
crença, a ira de Deus sobre os súbditos. Não admira,
portanto, que esse casamento, realizado em segredo no ano
de 1371 e publicamente em 1372, precedido de relações
adulterinas notórias, tenha servido de motivo alegado para
revoltas populares como até aí nunca se viram. Motivo
alegado; «alegado», note-se. Realmente, as explosões
populares têm de explicar-se noutras causas mais profundas,
as mesmas que explicam fenómenos análogos sucedidos na
Inglaterra, na Flandres, na França e na Itália pela mesma
altura — a fome, a peste e a guerra, a trilogia da ira, a
forja de todas as fúrias. Estava-se no apogeu trecentista
da grande crise secular. E, quando em tais circunstâncias
se está, um casamento real não querido pode ser o detonador
de um vendaval. Nomeadamente se esse casamento significa
412
ascensão de clãs relutados — como o dos Teles de Meneses —
e ameaça para outros benquistos — como o dos Castros,
designadamente os filhos da bela e infeliz Inês, a que
«depois de morta foi rainha».
D. Fernando, emotivo e manobrável, amigo de fidalgos e
desdenhador do povo, de Formoso e Inconstante cognominado,
ocupa no painel dos reis portugueses uma posição mal
olhada. Desde sempre. O cronista Fernão Lopes dá dele a
imagem de um homem que morre chorando, amaldiçoando-se,
farrapo de príncipe. E com efeito: coroa delapidada, trono
sem herdeiro, espada vencida, rainha adúltera e nação em
perigo.
Três guerras com Castela: 1369-1370, 1372-1373 e
1381-1382. Estas três guerras tiveram por motivo directo a
sucessão da coroa castelhana, após o assassínio de Pedro I
pelo seu meio-irmão Henrique de Trastâmara. Foi o desfecho
de uma longa guerra civil, que dividia as obediências no
país vizinho já desde os tempos do nosso Afonso IV. Viu-se
como esse monarca português e depois o seu herdeiro
souberam manter-se suficientemente neutros no dissídio; e
viu-se também como esse dissídio intestino ali ao lado,
devido a redes nobiliárquicas de lá para cá e vice-versa,
trouxe a Portugal algumas convulsões — designadamente a
execução de Inês de Castro e a guerra de D. Pedro contra o
pai, logo a seguir. Mas afora isso, a ingerência portuguesa
na confusão de Castela pôde evitar-se.
Assassinado o rei castelhano pelo Trastâmara (1369) e
usurpado o trono pelo regicida, que foi aclamado pelos
apoiantes, D. Fernando sente-se obrigado a intervir. À uma,
porque o assassinado era seu primo direito, filho da irmã
do pai; à outra, porque em bom direito sucessório entendia
que o trono era devido a ele, bisneto legítimo de Sancho
IV, e não ao usurpador, um bastardo. Acalentado nessa
pretensão por fidalgos ambiciosos, novos, incompetentes e
irresponsáveis — os Teles de Meneses, os Castros e os
Vilhenas — e entusiasmado pelos apoios que lhe eram
significados na Galiza, em Leão, Zamora, Salamanca, Cáceres
e Andaluzia — por cidades, vilas, fidalgos e prelados —, D.
Fernando entrou na guerra. Que durou até Janeiro de 1371,
equilibrada e de bons auspícios para o monarca português.
Até porque o adversário, se bem que ajudado pelos
Franceses, tinha de lidar em muitas frentes — Navarra,
Aragão, Galiza, Portugal, Andaluzia e Granada. Mas D.
Fernando, sem motivo aparente, aceita a paz. Houve com
certeza na decisão conselhos de políticos prudentes e
avisados da marcha que levava a Guerra dos Cem Anos, onde o
bloco franco-castelhano inesperadamente se tornava
ganhador. Aliás, sabe-se que as negociações para a paz
castelhano-portuguesa eram orientadas pela França e pelo
papa. E a paz foi acordada em Alcoutim em Março de 1371. D.
Fernando desistia do trono de Castela, mas alargava o
território nacional para leste e para norte. Ademais,
casaria com a filha do inimigo da véspera.
Ora, casando, como casou, ainda nesse ano de 1371, com
Leonor Teles, D. Fernando desrespeitava aquela última
cláusula do Tratado de Alcoutim. O que levou à sua
revogação e ao Acordo de Tui (1372), no qual ficou
estabelecido que as relações e as fronteiras
luso-castelhanas regressavam ao statu quo de antes da
guerra, ou seja, tudo como três anos atrás, situação de
conflito. Se no casamento de D. Fernando com D. Leonor
Teles, para além de evidentes motivos passionais, houve
também razões políticas, não custa admitir que essas razões
consistiram nisso: anulação da aliança com Castela, e,
logo, com a França, e conquista da independência face aos
dois blocos envolvidos na Guerra dos Cem Anos.
Independência até ver. Mãos livres para optar. Compasso de
espera. (L. Adão da Fonseca, 1986, pp. 15-19.)
Compasso de espera que durou pouco tempo. Com efeito,
quatro meses volvidos sobre o Acordo de Tui, é redigido o
Tratado de Tagilde (Julho de 1372), em que se toma partido
pela Inglaterra contra Henrique II de Castela e os seus
aliados franceses. Se bem que este tratado só no ano
seguinte (Junho de 1373) seja ratificado por D. Fernando e
Eduardo III, a verdade é que ele foi visto desde logo pelos
Castelhanos como alinhamento de Portugal ao lado dos seus
inimigos na guerra europeia. Por outro lado, os Portugueses
começaram a actuar em conformidade com esta interpretação:
aprisionamento de navios biscainhos mercantes surtos no
Tejo e apoio a actos militares desferidos em Lugo e Orense
por exilados galegos. Face a isto, Henrique II decidiu
invadir Portugal. Atravessou a fronteira beirã em Dezembro
de 1372 e encaminhou-se para Lisboa, conquistando o que
quis, sem qualquer oposição do rei português, cujo exército
preferiu fugir a bater-se. Em Fevereiro, Lisboa era ocupada
na sua maior parte e cercada no que sobrou. D. Fernando,

413
vencido e humilhado, apressa-se a acordar a paz. A qual foi
logo assinada, em Santarém, 24 de Março. Entre várias
medidas, Portugal ficava obrigado a cortar a aliança com os
Ingleses e a juntar-se à França e Castela outra vez.
E em tal ponto estacionou a política de alianças.
O Tesouro era exausto, a moeda a desvalorizar, os
preços a subir e a população a sofrer. É claro que as
revoltas populares, ensaiadas e drasticamente reprimidas em
1371, reapareceram com força e para além de Lisboa —
Abrantes, Tomar, Leiria, Santarém —, tudo em 1373. Depois,
em 1374, 1375 e 1379, novas «uniões»; desta vez em Portel,
Montemor-o-Velho e, novamente, Tomar (M. J. Ferro, 1978, p.
371). O povo revoltava-se contra o rei e contra os tempos.
E o rei tentava, embainhada a espada inglória, socorrer-se
da pena administrativa — à qual, é facto, se devem os bons
actos da sua governarão, esses que ficaram memoráveis e que
hão-de merecer a evocação elogiosa do seu nome, em cortes
designadamente, décadas e décadas fora até pelo menos
1481-1482. Eis alguns exemplos:
1373-1375 — amuralhamento de cidades e vilas, tais como
Lisboa, Évora, Porto, Braga, Coimbra, Santarém, Viana,
Ponte de Lima, Beja, etc;
1374 — reforma da administração pública e legislação
contra abusos senhoriais;
1375 — Lei das Sesmarias, leis protectoras dos
mercadores nacionais, leis reguladoras dos privilégios
jurisdicionais da nobreza;
1377 — foral da portagem de Lisboa;
1378 — novas leis sobre a reforma da administração
pública;
1380 — fundação da Companhia das Naus.
Tudo isso foram medidas extremamente simpáticas e
indiciadoras de um monarca idóneo e atento aos desafios da
história. Demagógicas? Não. De interesse nacional e do
Estado. Até porque, pelo meio, se incrementaram outras, que
não dissemos, antipáticas, mas precisas à realização do
mesmo interesse: o Regulamento das Sisas, por exemplo.
Entretanto, o mundo mudava. Em 1378 dá-se o Grande
Cisma do Ocidente, dois papas e duas «Romãs». O que quer
dizer ruptura da Cristandade em duas obediências e, logo,
desdobrar do foro diplomático internacional em duas sedes e
dois titulares, mais do que concorrentes, inimigos. Um
escândalo religioso inominável, por um lado. Por outro
lado, porém, um abrir de opções e de hipóteses políticas
aos condutores de reinos e de nações. Tornava-se possível
cristãos combaterem cristãos, aboletando-se todos no
argumento da guerra justa, da guerra religiosa, de
ortodoxos contra cismáticos. Pormenor que, em termos de
fervor guerreiro e de moral de tropas, não era nada
despiciendo. É ver como ele vai funcionar, passados poucos
anos, nas lutas de independência encabeçadas pelo Mestre de
Avis, depois rei João I, contra os «cismáticos
castelhanos». E cismáticos porquê? Porque o papa deles era
o outro. Útil, excessivamente útil aos príncipes o Grande
Cisma do Ocidente. Mudarão de obediência pontifícia ao
sabor das oportunidades diplomáticas e políticas. Castela e
França seguirão o papa de Avinhão e Inglaterra o de Roma;
Portugal vai seguir um e outro, conforme — conforme lhe
convenha a «fé» dos Franceses ou a «fé» dos de Inglaterra.
Assim, em 1378, duas «fés», primeiro a de Roma e depois a
de Avinhão; em 1381, volta-se à de Roma; no ano seguinte,
retoma-se a de Avinhão. Com D. João I, Roma é que será a
autêntica: Castela estava no erro. É claro que estas «fés»
eram as oficiais. Nas paróquias e dioceses, a perplexidade,
fruto de boas intenções e de oportunismos de outra escala,
era a regra. Em Portugal e por todo o lado.
Dissemos que em 1373 D. Fernando embainhou a espada.
Teve que ser. Falecido, porém, o adversário Henrique II,
conjecturou que era chegada a sua hora militar
consagradora. Até porque o novo rei de Castela, João I, lhe
pareceu guerreiro fácil. Contactou um aliado de há 10 anos,
o conde de Andeiro, que se achava exilado na Inglaterra, e
por ele fez saber ao duque de Lencastre a sua disposição de
atacar de novo o reino castelhano. Coisa que o duque gostou
de ouvir, quer porque a Península Ibérica importava aos
interesses marítimos dos Ingleses quer porque ele, o duque,
casado com a filha do assassinado pelos Trastâmaras,
alimentava expectativas sobre o trono de Castela. Firma-se
então um acordo anglo-luso — o de Estremoz de 1380 — no
qual se confirma o Tratado de Tagilde de 1373, que garantia
a possibilidade de Portugal se expandir territorialmente
para norte e para leste; acorda-se o envio para cá de uma
força inglesa de 2000 homens; negoceia-se o casamento de D.
Beatriz (de 8 anos) com o sobrinho do Lencastre; e

414
convenciona-se que, ganha a guerra, o duque inglês seria o
rei amigo no país ao lado. Ficou ainda escrito que a guerra
abriria logo que a expedição inglesa chegasse.
Mas abriu antes, em Maio de 1381. Três meses antes.
Porque o rei de Castela antecipou-a. O Alentejo, a Beira e
Trás-os-Montes sofreram-na mais do que ninguém. Os
ingleses, chegados em Julho, gostaram muito de Lisboa e só
em Dezembro se resolveram a ir ao que vinham, para a frente
alentejana, sem pressa nem convicção, arrogantes e
daninhos. Deixaram fama de odiados ocupantes. Enfim, depois
de diversos confrontos, escaramuças, razias, um ataque em
forma a Lisboa, uma estrondosa derrota da armada portuguesa
em Saltes, João I de Castela e D. Fernando de Portugal, à
margem dos Ingleses, odiados por todos, fizeram pazes. Sem
vencedores nem vencidos. Foi em Elvas, no mês de Agosto de
1382. Voltava-se a 1373. Com um acrescento: a infanta D.
Beatriz, herdeira do trono português, casaria com o
herdeiro de Castela. Posteriormente, sucedida a morte da
rainha castelhana e viúvo o rei, D. Beatriz passou do filho
para o pai (Tratado de Salvaterra de Magos de 2 de Abril de
1383). A menina, de 11 anos, é entregue ao marido logo a
seguir. Tudo a contento das cortes, pois tudo elas
ratificaram — as de Valhadolid, em Agosto, e as de
Santarém, em Setembro. E nesse «tudo» constava também o
seguinte: falecendo D. Fernando sem filho varão, as coroas
de Portugal e Castela, embora rigorosamente separadas,
seriam cingidas por D. João e D. Beatriz; à morte destes
passariam as coroas para os seus sucessores; se eles não
tivessem sucessores nem D. Fernando outra filha, ambas as
coroas passariam para quem fosse rei de Castela e depois
para os sucessores desse; entretanto, quer dizer, morrendo
D. Fernando sem mais filhos nem netos maiores de 14 anos, a
sua viúva, D. Leonor Teles, ficaria por regente de
Portugal. A regência terminaria logo que uma das
circunstâncias anteriores se verificasse:
Assim se combinaram as coisas. E passados sete meses
mais uns dias D. Fernando faleceu. Infeliz, como já
dissemos. Se não foram as guerras em que se meteu, ou para
que foi empurrado, o seu governo teria saldo muito
positivo. E convenha-se: não teve sorte nenhuma no tempo
que lhe coube reinar. Morreu em Lisboa, no dia 22 de
Outubro de 1383, nove dias antes de completar 38 anos.
Diz-se que tuberculoso.

Regência de D. Leonor Teles (Outubro a Dezembro de 1383)

Em conformidade com o Tratado de Salvaterra de Magos,


que há pouco vimos, D. Leonor ocupou a regência de
Portugal. E fosse normal o curso dos tempos, haveria de
ocupá-la durante muitos anos. O que não sucedeu. Porque não
eram normais os tempos nem uníssonas as pessoas.
Logo que os reis legítimos, D. João de Castela e D.
Beatriz, são aclamados pelas cidades e vilas, como era
costume e o Tratado de Salvaterra estipulava, as pessoas
foram-se manifestando contrárias e deram-se mesmo tumultos
em várias localidades. A nação contestava nas ruas o que
fora acordado pelos políticos e homologado pelo Parlamento.
Nada havia contra a pequena Beatriz, de resto «expatriada»,
mas muito contra o marido dela e contra Leonor Teles, a
quem chamavam a Aleivosa. Sobretudo o povo. Mas não só.
Também fidalgos, os quais procuravam, a coberto de uma
fidelidade póstuma a D. Fernando, ultrajado em sua honra
viril, ressarcir-se no conde de Andeiro e afastá-lo. E
entre eles havia também quem temesse pela vida: o Mestre de
Avis, por exemplo, que era filho d’el-rei D. Pedro e, por
isso, fácil bandeira a arvorar pelos «nacionalistas»,
desejosos de um monarca lidimamente português. E esses
temerosos tinham razão — porque, realmente, uma das
primeiras coisas que o rei castelhano fez logo que soube da
morte de D. Fernando foi prender outras «bandeiras»
verosímeis, as que melhor teve à mão, o infante D. João,
filho também de D. Pedro, e o conde de Gijon y Norona,
marido de D. Isabel, filha bastarda de D. Fernando. De modo
que o País mexia-se, uns por interesse, outros por medo,
uns por vindicta, outros por patriotismo. Um golpe bem
conduzido podia virar as coisas.
E o golpe surgiu. No dia 6 de Dezembro de 1383. O conde
Andeiro é assassinado em Lisboa e o povo da cidade é
mobilizado para proteger o assassino — precisamente o
Mestre de Avis. Depois a história precipita-se. A rebelião
alastra pelo reino, o rei de Castela invade militarmente o
País, a regente foge da «capital» e o Mestre de Avis é
proclamado, revolucionariamente e contra vontade, «Regedor
e Defensor de Portugal». Isto sucede em meados de Dezembro
de 1383. E com isto termina a regência de D. Leonor Teles.
De facto.

415

Interregno (Dezembro de 1383 a Abril de 1385)

Com a nomeação do Mestre de Avis como «Regedor e


Defensor do Reino» pelo povo de Lisboa, contra todos os
tratados e à rebelia de todo o direito, os reis aclamados
anteriormente são abolidos e a regência de D. Leonor
também. Entra-se num interregno. Ou seja, num período em
que não há rei nem autoridade governativa que actue em seu
nome. O que, num país dotado de história, só pode acontecer
por duas causas: ou por grande cataclismo, independente da
vontade dos homens; ou por revolução, que os homens
provocaram. Foi a segunda alternativa que se verificou em
Portugal. De modo que, digamo-lo entre parênteses, não
enxergamos fundamento para discriminar, neste caso,
revolução de interregno. Ou de crise.
À partida, a situação do Mestre de Avis não era nada
confortável. Porque, veja-se: ser posto como «Defensor do
Reino» por uma cidade dele numa altura em que o rei
legítimo marchava, poderosíssimo, contra essa cidade
rebelde era aceitar o lugar do morto. Claro que esse rei
não tinha legitimidade para fazer a invasão antes de os
rebeldes se terem manifestado; e fê-lo. Está certo. Mas
tinha o direito de argumentar post factum com a desculpa de
que o previu, ao facto, e se adiantou a sustê-lo. Tanto
como a regente D. Leonor, que primeiro se opôs e depois
ratificou a invasão, tinha o direito de argumentar que não
estava contra os Portugueses, mas contra os rebeldes
somente. Tais argumentos retirariam a paz de consciência a
todos os fidalgos, prelados e povos que, contra seus
juramentos, se passaram para a facção do Mestre. Pois; é
que todos eles justificaram a sua atitude na quebra do
Tratado de Salvaterra, que o castelhano e a regente
primeiro que eles perpetraram. É retórica de
autojustificação. Com efeito. O que se passou foi um medir
de riscos e interesses. Jogar. Jogar tudo. Uns jogaram num
lado, outros noutro; uns desde o escuro dos começos, outros
ao compasso das clarificações. No primeiro grupo
achar-se-ão heróis, coisa equívoca, gente que nada tinha a
perder; no segundo há homens lúcidos, «retóricos» — que a
retórica é a lucidez dos indecisos. É ver os relatos que
Fernão Lopes fez dos sucessos e dos actores, desde a
assembleia de São Domingos, em Lisboa, nos meados de
Dezembro de 1383, até à «oitava» de Aljubarrota, sem
esquecer o Parlamento de Coimbra, em Abril de 1385. A lição
é claríssima: os heróis foram os refeces e idealistas como
Nuno Álvares Pereira; o Mestre de Avis, assim, assim; e
todos os demais calcularam.»
Enfim, durante o período da revolução, que é o período
do interregno, o Mestre de Avis fez o que podia: prometeu o
impossível e deu o que não tinha para dar. O objectivo era
resistir; e resistiu. Com isso foi aprendendo a ser chefe.
E o decerco de Lisboa, mais devido à peste — ira de Deus —
do que a feitos militares, atraiu-lhe a aura de
carismático, sobrenaturalmente assistido, e apoiantes, cada
vez mais apoiantes, indivíduos e comunidades. Uns
espontaneamente, outros porque obrigados a isso pela espada
de Nuno Álvares e de outros capitães denodados, os
apóstolos do «evangelho português» segundo Lopes {Crónica
de D. João I, vol. I, cap. 69). De modo que em Outubro de
1384 a causa do Mestre já não era a de uns rebeldes que se
ergueram em Lisboa, mas a de Portugal erguido contra
Castela. Para que o Mestre fosse rei só faltava uma eleição
confirmada pelos três braços da nação. Em cortes,
obviamente. É o que vai fazer-se em Coimbra.

D. João I (1385 a 1433)

D. João I nasceu em Lisboa no dia 11 de Abril de 1357.


Era filho bastardo do rei D. Pedro e de uma senhora galega,
Teresa Lourenço, da qual e de cuja família não se sabe
dizer nada. Parece que o pai só o conheceu aos 6 anos,
altura em que, a rogo do aio, o tornou Mestre de Avis. Pelo
Alentejo deixou o mestrezinho e cavaleiro — cavaleiro que o
pai armara nesses inocentes 6 anos — correr o resto da
infância e toda a juventude, destino marcado, ser freire da
ordem de que era mestre, com votos e tudo. E foi. Ordens
sacras, castidade aceite e prometida. Todavia, como era
próprio do tempo, da sua condição e da idade, praticou
amores. Amores dos 18,19 anos, com menina chamada Inês
Pires, nobre, cujo pai diz-se que não gostou e em sinal
deixou de fazer a barba — mas é lenda. Facto é que desse
amor nasceu Afonso, o que vai ser conde de Barcelos e duque
de Bragança; e anos depois Beatriz, que será condessa de
Arundel — o que prova que esses amores juvenis, apesar de
proibidos, foram dedicados e de efeito. A partir dos 20
anos, muito rico e prestigiado, acotia o círculo do régio
meio-irmão e sabe ser mais benquisto dele do que os filhos
de Inês de Castro, todos irmãos, como é sabido. Isto até
1382, em que é preso no Castelo de Évora, temendo o pior,
ou seja, a morte. É solto devido ao valimento do conde de
Cambridge, capitão dos expedicionários ingleses então em
Portugal, do qual, mais tarde e já rei, vai ser sobrinho
por afinidade. Atribuiu o percalço a intrigas de Leonor

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Teles e do conde Andeiro, par adúltero, e não esquecerá
mais a afronta nem o terror por que passou. O que nos
tempos imediatos veio a dar numa coisa: obedecer e
precaver-se. Mesmo depois da morte do irmão D. Fernando.
Quem o visse, não apostaria nele o herói. Claro que matou o
Andeiro. Mas tudo indica que o fez mais por medo do que
pela pátria, empurrado. E logo tentando fugir. Mas,
agarrado, ficou. Nem se importava de casar com a cunhada, a
Aleivosa. Ela é que não anuiu. Quanto ao resto, até 1385,
já sabemos.
De modo que D. João I merece a nossa admiração. Porque
humano, igual a qualquer de nós. Não nasceu herói; fez-se.
Não nasceu rei; aprendeu. Empurrado pelos factos? Com
certeza. Mas tirou dos factos lição. E isso é ser
inteligente. Está escrito que ele é o exemplo do anti-herói
(M. L. Passos, 1974, pp. 89-207). Concorde-se. Mas então
será um anti-herói carismático. Isto é, alguém que,
hesitando, foi construindo carisma. É de homem com muito
mérito. De rei da.Boa Memória. (O leitor desculpe-nos esta
distracção quase panegírica.)
Conforme já se insinuou, D. João I subiu ao trono por
eleição, após um interregno complicado, eleição feita nas
Cortes de Coimbra de 1385. Era um entre diversos candidatos
juridicamente mais sólidos: D. Beatriz, filha única
legítima do rei D. Fernando, e D. João ou D. Dinis, filhos
do rei D. Pedro e de D. Inês de Castro, dos quais não se
sabia ao certo se eram legítimos ou não. As cortes, de que
estavam ausentes os partidários de D. Beatriz, dividiram-se
em dois blocos: um, apoiado pelos concelhos e pela nobreza
de segunda; e outro, pelos nobres de primeira e
provavelmente pela maioria dos prelados. Aquele votava em
D. João I, Mestre de Avis, «Governador e Regedor do Reino»
desde a expulsão de D. Leonor; este votava no outro D.
João, meio-irmão do anterior, considerado por muitos como
infante legitimado por casamento clandestino. O segundo
bloco apontava ainda como candidato preferível ao Mestre de
Avis o outro filho de D. Pedro e D. Inês, o infante D.
Dinis. O jurista João das Regras, orador oficial das cortes
claramente filiado no primeiro bloco, encarregou-se de
provar, em longos discursos, a inelegibilidade dos
adversários do Mestre ou, pelo menos, a falibilidade e
inconsistência dos motivos fundadores das suas
preferências. Esses discursos, apoiados ademais em
inquérito parlamentar sobre a veracidade ou não do
casamento de Pedro com Inês — que terá concluído
rigorosamente na impossibilidade de concluir — foram
decisivos para aquietar escrúpulos legitimistas, mas não
tiveram força para vencer os adeptos dos infantes Castros.
E as cortes foram-se arrastando na indecisão. Finalmente,
quase 30 dias após o início dos trabalhos, o Parlamento,
por unanimidade, elegeu o Mestre de Avis. Foi uma
unanimidade conseguida mais pelas ameaças de violência do
fogoso condestável D. Nuno Alvares Pereira do que pelas
razões do jurista João das Regras. De qualquer modo, uma
unanimidade; forma útil. Útil, porque de extrema
conveniência para efeitos de diplomacia internacional, na
cúria do papa designadamente. Mas, porque forçada,
interinamente questionável. Como questionável foi todo o
processo, a começar pela legitimidade da convocatória das
cortes. Por isso, muitos anos volvidos, em 1398, ainda
havia quem defendesse as pretensões ao trono português do
infante D. Dinis, falecido que era o seu irmão D. João (S.
D. Arnaut, 1960, pp. 247-254). E, por isso também, as
preocupações da nova dinastia em dar de si, no reino e fora
dele, uma imagem de genuinidade impoluta, carismática e
nacionalista, sancionada pelo direito, pelo povo e pela
virtude e, acima de tudo, confirmada por Deus. As crónicas
encomendadas que haverão de escrever-se e toda uma
propaganda continuamente acalentada ao longo da dinastia de
Avis são disso prova sabida (Armindo de Sousa, 1984).
Em 14 de Agosto de 1385, poucos meses após a subida ao
trono, D. João I vai enfrentar o momento mais perigoso da
vida toda: opor-se em batalha campal ao rei castelhano, que
pela segunda vez invadia pessoalmente o País, a fim de
fazer valer os seus direitos sucessórios e os parágrafos do
Tratado de Salvaterra de Magos. A batalha trava-se perto de
Leiria, na aldeia de Aljubarrota. As forças eram muito
desiguais, com vantagem para o castelhano. Mas fosse porque
o português teve tempo de preparar o campo, fosse porque a
táctica adoptada desconcertou o atacante, fosse porque os
Castelhanos subvalorizaram os seus contrários e irromperam
sem tino, fosse por tudo isso junto mais o cansaço deles,
invasores, versus a frescura e alto moral dos Portugueses —
a verdade é que em poucas horas o pleito ficou resolvido.
D. João I e o seu condestável obtinham a vitória mais
retumbante da história de Portugal. Nessa que continua a
ser a batalha-símbolo de todas as batalhas lusíadas —
Aljubarrota. Que lá tem a perpetuá-la, ex-voto e túmulo do

417
grande vencedor, um dos mais magníficos monumentos de toda
a arquitectura portuguesa — o Mosteiro de Santa Maria da
Vitória, mais conhecido por Mosteiro da Batalha. «Batalha»
por antonomásia. Essa: a de Aljubarrota, 14 de Agosto,
1385.
Tal vitória, tão redonda e imprevista, foi logo tida
por milagre. Sentença de Deus a confirmar a eleição de
Coimbra e a dinastia que se iniciava; e, ao mesmo tempo, a
punir os cismáticos de Castela. Deus, que sempre está pelo
direito e nas batalhas reais premeia e castiga conforme o
lado da razão, descera ao campo de Aljubarrota, como os
deuses homéricos ao de Tróia, e decretou: João das Regras
estava certo, o Mestre de Avis é que era; D. João I será. E
foi.
Este estilo de dizer, evocador de epopeia, é procurado.
Remete para a interpretação que se há-de mais tarde fazer
dos factos e suas versões. Que é muito cedo construída,
essa interpretação. É notória lá, no Mosteiro da Batalha,
no epitáfio de D. João I, texto escrito ou inspirado pelo
Eloquente D. Duarte. Só dois grandes feitos se registam:
este, que salvou Portugal e a dinastia; e o da tomada de
Ceuta, que vingou a honra da Cristandade e da Espanha.
Depois da vitória de Aljubarrota, o rei de Castela
foge, o seu exército, desconjuntado e errante, é chacinado
— até por padeiras, diz a lenda — e as cidades, vilas e
praças que ainda lhe eram fiéis apressam-se a render-se ao
português vencedor. Portugal ficava, outra vez inteiro, sob
um rei seu. Mas a paz definitiva haveria de esperar longos
anos. 1402 e 1411 serão duas importantes etapas.
D. João I vai ficar na história como o rei de Boa
Memória. Só por razões de propaganda dinástica ou por
motivos patriótico-políticos isso pôde ter sucedido. É
certo que essas razões e esses motivos contagiaram os
povos, pois o recordam em 1451, 18 anos depois de falecido,
como «pai dos Portugueses» (4). A verdade, porém, é que no
seu reinado a vida dos Portugueses não foi fácil.
Até 1411 andou-se praticamente em guerra; a inflação
monetária atingiu níveis que nunca foram igualados em
nenhum outro governo até hoje; as tradicionais queixas do
povo contra os privilegiados persistiram, tendo mesmo
recrudescido, conforme se lê nos textos parlamentares; os
impostos extraordinários, os «pedidos», não só se tornaram
crónicos, como até foram lançados à rebelia das cortes e
para finalidades diferentes da defesa nacional; e,
finalmente, coisa extremamente censurada e qualificada de
roubo, as «sisas», imposto indirecto municipal, só em
situações muito graves concedidas a reinantes, foram
apropriadas à coroa como se se tratasse de direitos reais.
De modo que é grandemente equívoca a «boa memória» desse
rei que a tem por cognome. Em todo o século XV, por
exemplo, quando se fala de sisas, D. João I é lembrado como
monarca falecido com a consciência encarregada. E mais:
advertem-se os sucessores de que morrerão, eles também,
encarregados, e mais até, caso mantenham a causa, pois
somarão ao roubo assumido a impiedade pelo desleixo de não
aliviarem as culpas dos pais. Em 1481, quando D. João II
inicia reinado, a advertência não é esquecida. E outra vez,
como sucedeu com D. Duarte e D. Afonso V, ignorada. O
Estado, esse insaciável comedor de impostos, instalara-se e
crescia.
O reinado de D. João I pode considerar-se em duas
fases. Uma até 1411 ou 1412; e outra até ao fim, em 1433. A
primeira foi marcada pela guerra contra Castela, de
independência e fortalecimento da nação; a segunda pela
guerra expansionista de Marrocos e inícios das explorações
atlânticas. Pelo meio, não podia deixar de ser, foi-se
olhando pela administração. Política em três direcções; e
em todas o rei por centro.
Até 1411, logo desde o sucesso de Aljubarrota,
procura-se reconquistar todas as cidades, vilas e lugares
de Portugal que obedeciam a D. Beatriz e ao castelhano.
Uns, como dissemos atrás, entregam-se espontaneamente — na
Estremadura, Trás-os-Montes e entre Tejo e Odiana; outros,
houve que tomá-los à força — Chaves, Bragança, Almeida,
Melgaço, Campo Maior — tarefa terminada em 1388.
Entretanto, ao mesmo tempo que se faziam «entradas»,
escaramuças e até uma batalha célebre — a de Valverde — em
território inimigo, os Portugueses estreitam alianças
internacionais, revigorando novamente a aliança e amizade
com a Inglaterra. Assina-se o Tratado de Windsor (1386), do
qual resulta a integração da guerra de D. João I na dos Cem
Anos e a mais antiga aliança entre nações que o Ocidente
conhece, a de Portugal com a Inglaterra, que ainda hoje
perdura. Depois, de tréguas em tréguas precárias,
desrespeitadas por ambos os contendores, assina-se o Acordo
de 1402, de paz por 10 anos, este realmente observado; e em
1411 o de Segóvia, que pôs fim definitivo às hostilidades
entre os dois reinos ibéricos, se bem que se tratasse ainda
de acordo temporário e não perpétuo. D. João I ficava rei
incontestado de um Portugal restituído às fronteiras de

418
1297, as tradicionais. Pôde então virar o pensamento para a
expansão do território, a qual só podia ser no ultramar.
O primeiro passo da expansão ultramarina concretizou-se
na conquista de Ceuta, em Marrocos, no ano de 1415. Mas
antes dessa opção pensou-se noutras, todas militares e
expansionista.e tingidas também de motivações
anti-islâmicas, em Granada e Gibraltar. Só que isso
equivaleria a uma provocação dos interesses castelhanos.
Não convindo.
É difícil aduzir uma explicação fundamental para essas
ânsias conquistadoras. Razões económicas, políticas,
religiosas, históricas e sociais — não apenas portuguesas —
devem ter-se coligado numa espécie de motivo sincrético e
poderoso. Sem saber bem para quê nem para onde, que o
segredo foi guardado, a nobreza, o clero e os povos
armaram-se e partiram, do Porto, Lisboa, e Lagos, ou seja,
do Entre Douro e Minho, da Estremadura e do Algarve. Só na
hora da largada definitiva e três anos após os preparos
souberam qual o destino — o Norte de Africa, Ceuta. Que
tomaram de surpresa. E com o feito iniciaram um capítulo
novo na história da civilização europeia.
Do ponto de vista económico e estratégico, Ceuta
revelou-se um fracasso, um sorvedouro de gentes e dinheiro.
Depressa surgiram vozes, mesmo no círculo do rei,
contrárias à manutenção ou pelo menos à prossecução da
política que a tinha por símbolo e primícias. O povo e os
burgueses secundavam essas vozes. Mas o clero, a maioria da
nobreza e o rei não. Porque Ceuta tornou-se um campo de
honra e títulos, sinal de cruzada havida e muita mais a
haver, baluarte de prestígio para a monarquia, credencial
portuguesa em Roma e em todos os principados cristãos. Por
conseguinte, Ceuta manter-se-ia e outras «ceutas» se
haveriam de buscar.
Ao mesmo tempo que Ceuta se tornava extensão de
Portugal, título dos reis portugueses, à custa de decercos
e «heroísmos», o grande Atlântico ia sendo percorrido e
descoberto para oeste e para sul. A Madeira (1419-1421), os
Açores (1427-1432), a costa de África até ao cabo Bojador,
fronteira do mar impossível (1422-1433). Só que estes
caminhos da expansão, aqueles que afinal hão-de tornar-se
epopeicos, eram perseguidos por aventureiros e favorecidos
por acasos da sorte, se bem que aplaudidos e instigados por
um homem inexplicado, o infante D. Henrique, «navegador» de
terra firme.
Quando D. João I morre, em 1433, Portugal é o
quadrilátero continental europeu de hoje, acrescido do
território de Olivença, mais Ceuta no Norte de África, mais
os arquipélagos da Madeira e dos Açores. Se agora
ressuscitasse, rei de novo, e botasse os olhos ao mapa dos
seus senhorios, interrogaria sem dúvida: aonde foi ter
Olivença? Porque é que Ceuta não há?
Finalmente, a terceira direcção da política joanina, a
da administração interna. Em palavras breves.
Ideia geral: superação do caos instaurado no tempo da
revolução; imposição da autoridade monárquica sobre o
clero, a nobreza e os concelhos; e instauração de uma aura
de prestígio da dinastia em todo o espaço europeu. Não se
pode garantir que o motor da ideia foi o interesse do
Estado, essa coisa fusca que está para além dos
protagonismos políticos. Porque, vendo bem, procurou-se
enaltecer o rei e a dinastia emergente. Os textos
propagandísticos, designadamente o epitáfio da Batalha e o
retrato moral de D. João I exarado por D. Duarte no Leal
conselheiro, parecem conclusivos.
Para se desembaraçar das sequelas revolucionárias e
manter o clero e a nobreza em cómodo controlo, D. João
apoiou-se nas oligarquias municipais através das cortes. O
modo começou logo em 1385 e foi sempre seguido até ao fim
do reinado, nas 28 cortes convocadas e cumpridas
(1385-1430) (5). Muitas medidas foram tomadas a respeito de
tabelamento de salários, circulação da mão-de-obra,
administração concelhia, alçadas de oficiais régios e
senhoriais, direitos e regalias de privilegiados,
jurisdições eclesiásticas, etc. Além disso, suscitada pelo
clero nas Cortes de 1427, uma «concordata» de 94 capítulos
consagrava, a contragosto dos prelados e em proveito da
monarquia, normas e limites às ambições clericais. Apesar
das reticências do papa. Aos nobres, em cortes também,
foram definidas obrigações e fronteiras jurisdicionais e
morigeradoras, desde o pagamento de tributos até punições
por abusos de poder sobre súbditos — tudo em nome do
direito e da moral e, significativo, da submissão devida ao
rei. A Lei Mental, aplicada antes da publicação conforme o
próprio nome sugere, mostra bem a alta autoridade
conseguida pelo monarca — ele que tinha colocado sob
dependência próxima a única e grande casa senhorial
concorrente, a do condestável D. Nuno Alvares Pereira,
metendo nela, por casamento com a filha herdeira do

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magnate, o bastardo D. Afonso. Quanto aos concelhos,
compagnons de route no processo de centralização, foi fácil
mantê-los em respeito. Bastou urgir a aplicação de normas,
praxes e mecanismos administrativos que vinham de trás —
relativos a corregedores e juízes de fora, sobretudo — e ir
insistindo com eles, a guerra o justificava, no sentido da
obtenção do direito às sisas e da concessão vezeira de
pedidos, de forma que esses impostos pudessem tornar-se
receitas normais da coroa, um permanente e universal, o
outro extraordinário mas sob arbítrio só do rei. E viu-se
que o primeiro foi conseguido e ficou; ao contrário do
segundo, que, apesar de experimentado com sucesso a
propósito dos casamentos dos infantes D. Duarte e D. Pedro,
continuou a depender do consentimento parlamentar.
Senhor do reino, D. João I não esqueceu a importância
de criar laços na Europa. Não para imediatamente prevenir
guerras ou conseguir ajudas, mas porque isso fazia parte da
ideia de monarquia e era necessário à fama e prestígio do
seu novel tronco dinástico. Havia um grande e distinto
clube de príncipes da Cristandade; convinha, evidentemente,
meter-se lá o mais representadamente possível. É o cronista
Zurara que nos lembra esta conveniência {Crónica de D.
Duarte de Meneses, cap. 144). Assim, mediante o processo
antigo, natural, seguro e sabido dos casamentos políticos,
Portugal e a nova monarquia ligam-se à Borgonha, a Aragão e
à Inglaterra — à Inglaterra que já era parente por D.
Filipa de Lencastre, a mãe da ínclita Geração. E ao
império, à Hungria e ao papado, graças a trocas de
embaixadas e ao prestígio de Ceuta.
Enfim, quando D. João morre, em 13 de Agosto de 1433,
pode dizer-se que mereceu morrer feliz, da melhor das «boas
mortes» (Armindo de Sousa, 1984). Concluía um percurso
existencial feito de muita sorte, mas também de argúcia e
persistente aprendizagem. Morria rei.
A história reconhecerá este rei como o de Boa Memória.
Fá-lo-ão os povos antes de 1451, o cronista Fernão Lopes
também, e antes ainda desse ano, e insistirá nesse epíteto
o Cancioneiro geral de Resende. É um apelido universalmente
aceite, apesar de todas as reticências que atrás
registámos. E universal porquê? Porque D. João I
personificou a consciência nacional que com ele se afirmou.
Inquestionada e definitivamente. Ouvindo o seu nome, as
pessoas recordavam Aljubarrota, independência,
portuguesismo, glória de Ceuta, expansão da fé. Que boa
memória! O que eram ao pé dessas recordações ás agruras da
guerra, os impostos, a inflação, os quotiliquês das
finanças municipais?

D. Duarte (1433 a 1438)

D. Duarte era um homem maduro e muito experiente quando


assumiu a coroa. Nascido em Viseu, no dia 31 de Outubro de
1391, contava quase 42 anos nesse dia 14 de Agosto em que
começou a reinar.
Não vamos dizer muito sobre este monarca, que a
tradição cognominou de Eloquente. É que muito do que se
disse a respeito da governação de D. João I deve-se a ele
também — visto que foi associado ao Poder, com os difíceis
pelouros da Justiça e da Fazenda, antes da tomada de Ceuta,
provavelmente em 1412, já lá iam 21 anos. De modo que deve
ter sido, em toda a Idade Média portuguesa, o monarca mais
experiente à hora de empunhar o ceptro. E sabe-se que tomou
a missão de governar, antes e depois de 1433, com um
sentido de responsabilidade e justiça verdadeiramente
modelar. Não porque fosse um carácter melancólico e
doentio, alheio à vida e às coisas que ela tem boas,
intelectual ensimesmado e incapaz de passar das ideias e
dos livros à acção. Tal imagem, que Oliveira Martins criou,
mais por talento literário do que por investigação das
fontes, não pode mesmo sustentar-se. De resto, diga-se de
passagem, uma biografia de D. Duarte cientificamente
contada ainda não se escreveu.
Por conseguinte, o pouco que dele aqui se narre não
deve interpretar-se como menosprezo da sua acção
governativa. Repetimos: o seu reinado liga-se ao anterior
de modo indissolúvel, conforme, aliás, foi seu desígnio
expresso nas Cortes de 1433 (Leiria-Santarém), as primeiras
do reinado. De D. João mais ele para ele sozinho houve
certamente evolução e progresso; não houve, porém, rupturas
nem mudanças de velocidade. Os povos entenderam-no logo
nessas primeiras cortes e diz Pina na crónica a ele
dedicada, capítulo VI, que partiram delas «alegres e mui
contentes, consolando-se na morte do padre que perderam com
a virtuosa vida do filho que cobraram».
Prosseguiu, portanto, a política que vinha a fazer-se,
mantendo nos cargos conselheiros e altos funcionários,
assim como dando seguimento às estratégias governativas
pelas quais se havia co-responsabilizado há muito. Não

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admira, pois, que se note um desenvolvimento coerente na
condução dos negócios marroquinos, nas navegações
atlânticas, no aproveitamento das ilhas, no processo da
centralização monárquica e na área das relações com o
estrangeiro. Nas Cortes de 1433, de que chegaram até nós
155 capítulos gerais dos povos, D. Duarte revela-se um
político maduro: distante e atento para com os concelhos,
superior e firme relativamente à nobreza e determinado em
reprimir os abusos jurisdicionais do clero.
Dois fundamentos têm sido invocados para apoucar a sua
personalidade e ensombrar o seu reinado: o «mal
menencórico», ou depressão nervosa, que o assaltou quando
foi associado ao governo do pai, mocinho de quaisquer 20
anos, e o fracasso da expedição contra Tânger. O primeiro
fundamento ninguém hoje o saberia se não fosse ele próprio
a dizê-lo e a registá-lo no seu livro Leal conselheiro.
Registo que denota, além de invulgar capacidade
introspectiva e frieza de análise — notável inteligência —
a certeza de uma crise superada, completamente vencida e,
note-se, experiência divulgada para servir de lenitivo e
ensinamento a quem quer que viesse a passar pelo mesmo. Um
abúlico, que tal já tem sido chamado, nunca procederia
deste modo. E muito menos pensaria e punha em livro um
tratado de «desporto», tal como o da Ensinança de bem
cavalgar toda a sela, que também é dele. O segundo
fundamento das opiniões negativas contra D. Duarte
centra-se no desastre de Tânger. Buscando conquistar essa
cidade marroquina, na sequência da política que conduziu ao
feito de Ceuta, o exército português de cercador tornou-se
cercado e sofreu uma estrondosa vergonha — a vergonha de
«ir por lã e volver tosquiado». O revés da agressão. Só
isso. É certo que o desastre quebrantou a Nação. Não tanto
pelos mortos que lá ficaram, mas pelo orgulho ferido e pelo
infante D. Fernando, irmão do rei, que não voltou. Tânger
não passou de um parênteses. Um parênteses que ilustra pela
negativa o significado epocal, nobiliárquico e cristão, dos
feitos portugueses no Norte de África. Feitos que, após
este parênteses, haverão de prosseguir, cavalheirescos e
arcaicos, idealistas e impopulares, até ao desastre — esse
sim, nacional — de Alcácer Quibir (1578), onde com o rei D.
Sebastião faleceu a continuidade da dinastia de Avis e, a
prazo, a independência de Portugal.
De modo que D. Duarte não pode ser julgado
negativamente por uma neurose precoce de que soube curar-se
nem por um desaire de guerra ofensiva no ultramar. No fim
do reinado, tal como se infere dos textos das Cortes de
1438 (Leiria) — essas que foram reunidas para resolver
corolários de Tânger —, ele, «eloquente», mostra-se lúcido
no revés, máximo responsável e supremo guia da Nação,
cabeça do País em acto de auscultar os membros. Aceita
conselhos e sugestões, fomenta-os mesmo. E, como era seu
feitio, não abdica de ditar a decisão última. É rei. E
actua como tal.
Morreu em Tomar no dia 9 de Setembro de 1438. De peste,
provavelmente. A um mês e meio de fazer 47 anos.

Regência de D. Leonor de Aragão (1438 a 1439)

À morte de D. Duarte, o seu filho D. Afonso, que era o


sucessor, tinha apenas 6 anos (6). Por vontade do falecido
expressa em testamento, o governo do País passou para a
viúva, a qual seria regente e tutora do rei até que este
atingisse os 14 anos. Em si esta disposição nada tinha de
anormal. Todavia, desagradou à Nação, a todos os concelhos
e a grande parte da nobreza. Pensava-se, por um lado, que
melhor andaria o governo em mãos masculinas, que as havia
nobilíssimas e competentes, e, por outro lado, temia-se que
a regente pudesse pôr em perigo a independência e a paz do
reino, manobrada pelos seus irmãos, os infantes de Aragão,
que se achavam em pé de guerra contra o monarca de Castela.
Entendeu-se então conveniente reunir cortes, nas quais,
além de se prestar juramento e menagem ao menino-rei, se
estudasse a questão. As cortes reuniram-se de facto em
Torres Novas, nos primeiros dias de Novembro desse ano de
1438, e duraram cerca de um mês. Depois de muitas consultas
e discussões, o infante D. Henrique apresentou uma proposta
que acabou por ser aprovada. É conhecida como «Regimento do
Reino de 1438». Trata-se de uma espécie de constituição
destinada a vigorar até que D. Afonso atingisse a
maioridade política, em 1446. Estabelece-se que o poder
seja partilhado pela rainha, pelo infante D. Pedro e por
umas «cortes restritas» de celebração anual, instituídas
para o efeito. De modo que D. Leonor foi regente sozinha
durante apenas cerca de três meses.
A solução clausulada no Regimento do Reino não agradou
a ninguém. Sete meses mais tarde os co-regentes andam
inimistados e as cidades de Lisboa e Porto, decididas a
entregar a regência in solido ao infante D. Pedro,

421
movimentam-se no sentido de o conseguirem nas cortes
previstas para Dezembro desse ano, as de 1439 (Lisboa). O
que realmente veio a suceder, segundo modos e processos
pouco menos que revolucionários. O regimento de Torres
Novas foi anulado e o infante D. Pedro, tal como há muitos
anos o pai, declarado por pressão do povo «Regedor e
Defensor do Reino»; e, mais ainda, tutor e curador do rei.
A rainha tentou resistir, apoiada por forças internas e
pela promessa de ajuda dos seus irmãos de Aragão. Vai haver
movimentação de tropas e clima de invasão iminente, mas sem
consequências dignas de nota. A rainha foge para Castela, é
acusada de se conluiar com estrangeiros, despojada de todos
os seus bens, e acaba por morrer em Toledo, no ano de 1445.
Regressará a Portugal mais tarde, para dormir no Mosteiro
da Batalha o sono da paz perto do marido, que tal decidiu o
filho de ambos, Afonso V.

Regência do infante Pedro (1439 a 1448)

O infante D. Pedro era um ano mais novo do que o


falecido irmão D. Duarte. Nasceu em 9 de Regência Dezembro
de 1392 na cidade de Lisboa. Quando, nas Cortes de 1439, é
posto à frente do País, completava, precisamente durante os
trabalhos da assembleia, 47 anos de idade. Homem muito D.
rico, muito experiente e muito culto. Conhecia de vista as
«sete partidas do Mundo», de leitura muitos livros e
autores — incluindo Cícero, que traduziu, e Séneca, que
adaptou — e de estudo ou intuição a psicologia das turbas,
com as quais sempre manteve um distanciamento cordial e
inteligente. Indubitavelmente foi homem querido do povo. A
mãe, essa inglesa cujo seio só conhecia o modo superlativo
da função procriadora, moribunda mas lúcida, e intuitiva
como em geral são as mães na apreciação dos filhos,
encomendou ao infante D. Pedro a protecção das donas e
donzelas, já que não podia encomendar-lhe os povos, pois,
desculpou-se ela, esses tinham de ser encomendados a D.
Duarte, futuro rei. Isto vem na Crónica da tomada de Ceuta,
de Zurara, capítulo XII. E é revelador do carácter do
infante. Os fracos, protector dos fracos; sensível à causa
dos fracos. Não terá sido por isso que o pai o preteria ao
Henrique? Ao Henrique a quem a mãe recomendou a defesa dos
nobres, conforme se lê naquele capítulo XII? É
impressionante a perspicácia dessa mãe moribunda. Ou então
a habilidade do cronista que retroprojecta no discurso de
D. Filipa a opinião que ele próprio sustentava, quando, já
morto D. Pedro, escreveu aquela crónica. Seja como for, a
opinião, se não foi da mãe, foi considerada apta a passar
como se fosse.
Além de rico, experiente e culto, o infante D. Pedro
era homem interessado nas coisas do País. Hoje diríamos um
cidadão atento, esclarecido e empenhado. Aos 33 ou 34 anos
de idade tinha ideias precisas sobre como governar
Portugal. É ver a carta que escreveu de Bruges ao irmão
co-governador e futuro rei, em 1425 ou 1426. É uma
carta-manifesto de homem de Estado, com opiniões seguras
sobre política eclesiástica, cultural, militar, judicial,
financeira e social. Opiniões muito modernas para o tempo.
Sobrepõe a utilidade do País e o progresso das populações
às prosápias cavalheirescas e aos interesses privados.
Só que uma coisa é emitir opiniões de fora e outra
governar mesmo. Que então o homem de Estado com ideias
modernas pode revelar-se hesitante e actuar de modo
ambíguo. Que tal nos parece ter sido a actuação governativa
do regente D. Pedro.
Apoiado jubilosamente pelos concelhos, Lisboa e Porto à
frente, furtou-se desde o princípio a corporizar uma
política demagógica, arrepiando as circunstâncias que não
só lho permitiam como até lho solicitavam. Dois exemplos: a
recusa categórica em aceitar estátua sua nos estaus da
capital e a declaração pró-nobiliárquica proferida nas
Cortes de 1439.
No primeiro caso rejeita ser heroicizado pelos
concelhos e pelo povo, que pretendiam perpetuar-lhe a
memória de abolidor das aposentadorias passivas [cap. 21
dos povos de 1439 (Lisboa)]. No segundo caso, esquiva-se de
ser apropriado, mesmo em imagem, pelo terceiro estado, como
caudilho contra o clero e a nobreza. Por isso, manda pôr no
fim das respostas aos capítulos dos concelhos — respostas
assaz benevolentes — que não é sua intenção prejudicar os
privilégios dos senhores e fidalgos. Eles, privilégios,
prevaleceriam, em caso de dúvida e conflito, sobre as
respostas emitidas. Lembre-se que esta declaração é
publicada precisamente nas cortes que lhe atribuíam, por
efeito de pressão popular, a regência do reino e a tutoria
do rei. Quer dizer: o infante faz questão de tornar claro,
no próprio momento em que recebe o Poder, que o aceita, não
para beneficiar clientelas sociais e políticas, mas para
servir o País, a Nação, todos os grupos e classes. Por
outras palavras, demarca-se, logo que eleito, dos seus
eleitores mais numerosos e assume publicamente uma postura

422
de homem de Estado. A qual, era fatal, irá em breve
desagradar a todos.
Porque ele, infante D. Pedro, era uma vontade
prisioneira entre duas épocas: a época dos senhores
feudais, por criação e status; e a da burguesia urbana, por
reflexão e conhecimento dos tempos e dos mundos. O seu
governo vai balançar entre esses dois universos. Será,
portanto, um governador ambíguo. «Dúplice dono [...] de
dever e de ser» — dirá dele o poeta Fernando Pessoa na
Mensagem,
Dado o exposto, não admira que os historiadores se
dividam na apreciação da regência de D. Pedro.
Para uns, foi um período em que o centralismo régio não
só progrediu como até, separada a pessoa do rei do
exercício do Poder, assumiu a forma de centralismo estatal,
prefigurando o modelo cesarista que há-de afirmar-se com D.
João II, quatro décadas mais tarde. Para outros, sucedeu
precisamente o contrário, devendo considerar-se o infante
D. Pedro como o inaugurador de um neo-senhorialismo, que
irá ter a sua expressão acabada no reinado de D. Afonso V.
Cremos que ambas as apreciações são exageradas.
Todavia, atendendo ao modo como a política externa foi
conduzida; à preocupação em dotar o País de um ordenamento
jurídico coerente e positivo; à condução do movimento
expansionista decididamente voltado para as navegações, em
detrimento de gestas marroquinas; à atenção concedida a
mercadores e burgueses em cortes, apesar das ressalvas em
matéria de liberalismo financeiro; à manutenção da política
eclesiástica que vinha de trás, a qual terá conduzido à
reunião prelatícia de 1447; e, enfim, ao clima de grande
animadversão, ódio mesmo, para com ele, regente, sempre
acalentado pela nobreza ao longo da regência e
particularmente adensado depois das Cortes de 1446;
atendendo a estes dados, e a outros que seria longo
enumerar, inclinamo-nos para perfilhar a primeira opinião.
Cremos que o governo do infante D. Pedro, apesar das
concessões feitas à nobreza — modo certamente de tentar
obter a sua colaboração ao menos passiva —, pode
considerar-se como continuador do centralismo monárquico,
que vinha sendo ensaiado desde há muito tempo e que no pai
e no irmão achou impulsionadores sabidos. Cremos ainda que
os concelhos, se bem que arrefecidos no seu inicial fervor,
o de 1439, nunca verdadeiramente acariciaram outra política
ou outro político antes de 1446. Depois, também não:
limitaram-se a esperar para ver, que tal aconselhava a
conjuntura. Afinal, o seu caudilho mostrara-se demasiado
inacessível e, vendo bem, não passava de uma aposta
transitória, de curto razo. Portanto, direita volver,
finja-se o jogo da preia-mar, a do Bragança. É neste
contexto político-oportunista que devem ser lidos os
capítulos de Lisboa, Évora e Elvas levados a D. Afonso V, a
correr, fora de cortes, em 1448, poucos meses depois de D.
Pedro largar a regência (7). Esses apressados e verrinosos
capítulos levam a marca da horda. Mas ver-se-á. Ver-se-á
como os concelhos haverão de suportar agravos bem maiores
do que esses que agora superlativizam. É ler os capítulos
gerais deles nas cortes feitas depois de 1451 — que as de
1451 foram as primeiras do pós-regência. Criticarão, é um
facto, aqui e além, o governo do regente. Mas fica-se com a
ideia nítida de que as censuras contra o falecido D. Pedro
não passam de habilidade política para espicaçar pundonores
em D. Afonso V. Os concelhos não dizem, silêncio táctico,
mas perderam pontos com a saída do infante. Entre 1451 e
1481 é notória a sua secundarização relativamente aos
nobres e clérigos junto da monarquia. O seu poder de
intervenção nas esferas da decisão política é praticamente
nulo. Têm poder de falar e dê propor e exercem-no com uma
veemência nunca vista, quase arrogantemente. O rei, não
podia deixar de ser, ouve-os e dá-lhes razão — mormente nas
ocasiões em que a deferência implicava outorgamento de
«pedidos» e «empréstimos» por parte deles. Mas nunca como
nesses 30 anos foi tão evidente a inconsequência prática
das medidas legislativas promulgadas por efeito de
sugestões populares. Um exemplo: as propostas apresentadas
nas Cortes de 1472-1473 (Coimbra-Évora), mais de duas
centenas. Das que foram aprovadas, e por isso transformadas
em leis, pode-se dizer, grosso modo, que nenhuma se
respeitou. Por isso elas serão retomadas, transcorridos 10
anos, nas primeiras cortes de D. João II, as de Évora-Viana
de 1481-1482. O mesmo se poderia afirmar a respeito de
importantes medidas, adiantadas pelos concelhos, nas
assembleias parlamentares de 1455, 1459, 1465, 1468, etc.
Em contrapartida, as decisões tomadas por inspiração
clerical nas Cortes de 1455 e de 1456 parece terem sido
observadas — e, lembre-se o que dissemos no segundo
capítulo deste ensaio, essas decisões anularam décadas e
décadas de esforço centralizador monárquico. Foi
precisamente durante esses 30 anos que os deputados do povo

423
requereram mais de uma vez a sujeição do monarca ao
seguinte princípio: abolição ou excepção a decisões de
cortes só em cortes. Princípio jamais aceite.
Enfim, depois do infante D. Pedro, os concelhos, e logo
os povos, perderam terreno em proveito da nobreza e do
clero. Regrediram. Tal como o direito comum em benefício do
canónico e do privilégio. E, porque assim foi, regrediu o
Estado em prol do feudalismo. Ora, não cremos que o
processo de regressão tenha sido fomentado nem consentido
pelo regente. Até porque os beneficiários do processo viram
nele o maior obstáculo. Por isso o combateram. E, já
aposentado, perseguiram-no. Só parando com a exterminação
da sua pessoa, do seu nome e da sua família. Em
Alfarrobeira, 1449, Maio, 20. Como se ele fosse o corpo de
uma ideia medonha que era preciso matar.

D. Afonso V (1448 a 1481)

É da psicologia que todo o adulto carrega aos ombros


para bem e para mal uma infância D. Afonso V decisiva. Os
reis também. D. Afonso V, nascido em Sintra a 15 de Janeiro
de 1432, teve uma infância que não foi carga leveira. Órfão
de pai aos 6 anos e praticamente de mãe aos 7, separado dos
irmãos, menino-coisa disputada, comeu o pão da
instabilidade afectiva. Que edifício firme e coeso podia
ele fazer de si? Que modelo disponível de pai podia ele
fixar? Um tio «algoz» da mãe e sogro estipulado? Um
qualquer preceptor humanista que lhe declinasse o rosa
rosae das emoções?
Uma boa biografia de D. Afonso V, que não há — como,
aliás, de nenhum outro rei do período que nos ocupa —, terá
de contar com isso, com as condições e circunstâncias do
seu processo educativo. E não nos admiraria que o maior
fracasso político do infante D. Pedro viesse a revelar-se
aí, no modo como educou ou consentiu que fosse educado o
rei, seu sobrinho e genro, de quem era tutor e curador
oficial. Porque, com efeito, o D. Afonso V adulto mostra
ter sido educado no apreço de grandes feitos e epopeias
arcaicas à custa do presente e do pragmatismo governativo.
Diríamos: D. Afonso V, o último cruzado. O papa Calisto
III, outro homem fora de época, manda tanger à cruzada
contra os Turcos todos os sinos cristãos de 1455: e é ver
D. Afonso V disputar a dianteira nos preparos e fervor.
Tomou a causa como sua e dá mostras de temer que outros
príncipes cristãos o ultrapassem no empenho. É que nada o
impedia de ser exemplar na dedicação. Tinha herdeiro
acabado de nascer e viuvez acabada de atingir — ergo
partiria lá para onde a fé católica houvesse de requerer o
seu braço, na Hungria ou coisa assim. Preparou-se. Cortes
para obter dinheiro; amnistias para obter guerreiros;
cunhagem nova para obter moeda forte. Enviou embaixadas e
cartas aos países; reforçou Ceuta para dissuadir
oportunismos da moirama; obteve fáceis bulas para
indulgências e dízimos. E, prontíssimo, aguardou sinal de
marcha. Que não veio. Os outros reis não quiseram.
Que fazer então dos preparos e das bulas? África.
Marrocos. A cruzada aqui ao pé, guerra nossa de cada dia,
igual substância. A decisão é tomada em 1457. Em 1458
conquista-se Alcácer Ceguer. Em 1463-1464, tenta-se Tânger,
mas desiste-se. Em 1469 é a vez de Anafe, a actual
Casablanca, que logo se abandonou, por ficar situada
desconfortavelmente ao sul. Em 1471 cai Arzila e, neste
mesmo ano, ironia, ocupa-se a praça tangerina, velho
espinho, sem glória, sem guerra, sem nada. Cidade vazia de
habitantes, que os mouros tinham escolhido deixá-la. Não se
sabe se Tânger foi olhada a partir daí como símbolo da vã
fatuidade epopeica. Decerto que não. Mas que o merece ser,
não há dúvida.
Por aí ficaram as conquistas africanas de Afonso V. Era
dono de Ceuta, Alcácer Ceguer, Arzila e Tânger. Bem se
poderia dizer senhor do estreito de Gibraltar. Mas não.
Intitulou-se «Rei de Portugal e dos Algarves d’aguém e
d’além-mar em África». Título de grande efeito e expressão
de grande nome. Que só isso. Económica, financeira e
militarmente tais áfricas nada trouxeram. Só garbo e campo
militar de exercícios reais. Diferentes eram Arguim, a
Mina, toda a Guiné, áfricas que o Africano — cognome de
Afonso V cuja conotação epocal é difícil de definir — não
tinha interesse em perscrutar. Será história do filho.
Realmente, a política expansionista de D. Afonso V, ao
contrário da da regência, tirou os olhos do mar e dos
contactos mercantis pacíficos na África Negra. Contactos
incentivados, contra a prática guerreira da extorsão; pelo
infante D. Pedro. Se neste capítulo alguma coisa se fez
entre 1448 e 1475, nomeadamente em matéria de navegação

424
atlântica, deveu-se à iniciativa de particulares,
mercadores concretamente, porque as navegações davam
lucros. E só porque os davam, o mercador lisboeta Fernão
Gomes meteu-se nelas, arrematando em leilão público o
«resgate» da Guiné e o avanço das descobertas para sul —
avanço que foi efeito das condições do concurso, um
encargo, e não benefício desejado. Outros mercadores, como
Martim Afonso «Bom-Viagem», ganharam análogos certames. É
que os descobrimentos marítimos foram postos pelo Africano
em hasta pública. Tal e qual. Como se se tratasse de quinta
a arrendar pelo melhor preço. Os deputados às Cortes de
1472-1473 (Coimbra-Évora) protestarão vigorosamente contra
tão escandalosa política. Perversamente o fazem, é certo —
pois desejam para todos os burgueses acesso livre às
riquezas da Guiné. Mas nos arrazoados que tecem, interesse
comum e proveito do rei e natureza das mercadorias,
manifestam mais sensibilidade a respeito da importância
nacional dos descobrimentos em curso do que o próprio rei.
E foi só para os não ouvir que D. Afonso V entregou ao
príncipe D. João, em 1475, esse «incómodo» pelouro das
navegações e comércio atlânticos.
Nesse mesmo ano de 1475, quando as conquistas de
Marrocos iam de vento em popa, D. Afonso V pôs-lhes termo e
iniciou uma fase nova na sua política externa. Volta-se
para a Península Ibérica e acaficia a ideia de tornar-se
imperador das Espanhas. Era uma ideia velha. D. Fernando,
um século antes, deixou-se encantar por ela, conforme
vimos. E, tal como dessa vez, o projecto vai também agora
ruir estrondosamente.
A oportunidade do sonho, já acalentado em 1465, ocorreu
com a morte de Henrique IV de Castela, em Dezembro de 1474.
O falecido, que era casado com uma irmã do português,
deixava em testamento a sucessão à filha única, de 8 anos,
a qual, augurava o testamento, deveria casar com o tio
Afonso V; e este, desde logo, ficar como regente. E é para
dar cumprimento a estas disposições que o monarca
português, ouvido conselho em Estremoz e feitas cortes em
Évora, garantidos apoios em Espanha, deixa à frente do
reino o príncipe D. João e invade Castela em meados de
1475. Por lá andou guerreando Isabel e Fernando, futuros
Reis Católicos, seus rivais. De desaire em desaire,
curiosíssima Batalha de Toro incluída, humilhante digressão
pela França finalizando, abdicação do trono até, D. Afonso
V acaba por ser um rei sem nada, perplexo, interrogando-se
mesmo sobre o sentido da sua gesta africana. E decide,
ainda dentro dos seus horizontes grandiosos e
ultrapassados, deixar tudo e fazer-se eremita na Terra
Santa. Mas foi contrariado pelo monarca francês e
restituído a Portugal. Não será eremita na Terra Santa, mas
frade num qualquer humilde convento, promete. Afinal,
continuou a ser o que o prosaico pragmatismo ordenava: rei
de Portugal até morrer, em 1481, na vila de Sintra, círculo
fechado, 49 anos de idade. Deve ter morrido sem entender
que entre o mundo que imaginara e aquele em que realmente
existira ia um abismo de séculos.
Quanto à política interna de D. Afonso V, o que se
disse até aqui, nomeadamente a respeito da regência de D.
Pedro, é suficiente. Protecção da Igreja e da nobreza,
neofeudalismo. Que os concelhos haverão de pagar, com
assíduos protestos, tais como em cortes nunca se ouviram.
Leiam-se, por exemplo, os notáveis capítulos das
assembleias de 1459 e de 1472-1473; e também, para
apreciação retrospectiva, os que foram apresentados a D.
João II no Parlamento de 1481-1482. De resto, o próprio D.
João II, numa só frase, dirá tudo: que o pai deixou-lhe
apenas o senhorio das estradas de Portugal.

Memoráveis realizações

Conforme dissemos ao abrir este terceiro capítulo do


nosso ensaio, vamos destacar aqui «memoráveis realizações»
verificadas entre 1325 e 1484, durante esses 160 anos cuja
conjuntura acabámos de descrever. São feitos ou actos
marcantes, surgidos agora e logo durante esse período
histórico. E marcantes porque significativos de rumos
duráveis, e não efémeros, percursos suficientemente longos
ou decisivamente específicos na história de Portugal.
Tais realizações poderão ser agrupadas por categorias,
essas que geralmente servem para designar capítulos nos
discursos historiográficos: realizações administrativas,
económicas, financeiras, fiscais, judiciais, jurídicas,
militares, políticas, religiosas e sociais. Não vamos,
todavia, seguir este método, apesar da sua comodidade.
Desde logo porque, extremamente analítico, nos exigiria

425
tempo e espaço demasiados. Consideremos isso tudo em bloco,
subordinando-o a dois ou três temas — esses que resultarem
da resposta a estas questões: chegados a 1484 e olhando
para trás, Portugal é-nos revelado como quê? Que perfil
mostra ter construído enquanto individualidade geopolítica
desde D. Dinis até aí? Que avanços? Que direcções?
A resposta a estas interrogações parece-nos ser assim:
em 1484 Portugal é um Estado e uma Pátria — uma estrutura
geopolítica e social madura ou adulta. Que se move, plena
de vida, ambiciosamente, para direcções imprevistas — o
império.
Logo, duas «memoráveis realizações», Estado e Pátria, e
passos seguros no sentido do império. Deixando de lado o
tema da Pátria, pois já o abordámos atrás quando falámos da
«ordem», e não avançando pelo do império, visto que será
matéria do volume III desta História, fixemo-nos no Estado.

O Estado

Os modernos antropólogos políticos têm a tendência para


admitir a existência de Estado em todas as sociedades
globais, mesmo «primitivas». A razão estaria no facto de
não haver sociedades sem unidade política nem ser pensável
esta sem Um governo, ao menos «mínimo» ou «difuso». Não
teria, então, fundamento a divisão dos grupos humanos em
«sociedades com Estado» e «sociedades sem Estado» (G.
Balandier, 1980, pp. 35-58). É evidente que esta posição
maximalista tem a ver com a definição de campo político e
de poder — poder que passa a ser entendido muito
elasticamen-te, não já apenas como capacidade de coagir,
mas preferentemente como «resultante, para toda a
sociedade, da necessidade de lutar contra a entropia que a
ameaça de desordem» (ibid., p. 46).
De tão larga, pouco nos serviria esta ideia de poder,
de governo e de Estado. Até porque, debruçando-nos sobre
Portugal de há 600-500 anos, nos parece conveniente
ocidentalizar, que é como quem diz, utilizar uma noção
próxima daquela que está compreendida na locução «Estado
moderno», mais restrita do que «Estado unitário», e,
afortiori, do que «Estado segmentar».
Seguindo Joseph Strayer, entendemos por Estado uma
sociedade política cuja unidade se revela permanente no
tempo e estável num espaço geográfico; que é dotada de
instituições persistentes e impessoais; e que se manifesta,
essa unidade, na aceitação colectiva consensual de uma
autoridade suprema, à qual as pessoas se subordinam por
sentimentos de lealdade. Logo: história e território;
mecanismos de autoridade e poder; governo centralizado e
nacionalmente «comsentido».

História e território

Em 1325 Portugal conta seis gerações de história e uma


de território definitivo. É um facto. Mas um facto que para
a maioria da população com certeza não disse nada. Porque,
o que era a história para 98% dos portugueses? Relatos
heróicos, canções de feira, nomes de reis? Provavelmente.
Acontecimentos ligados às comunidades restritas das
cidades, vilas e aldeias, suas famílias e «chefaturas»,
ocasionalmente tingidos de cores translocais devido a
evocações de passagens régias, de grandes senhores ou de
exércitos em campanha. E tudo isso transmitido oralmente,
gerações sobre gerações. Memória colectiva de âmbito
nacional dificilmente existiria ao nível do grande público.
E, existindo, não passaria de memória lacunar, extremamente
evanescente em seus modos e suportes. E quanto ao
território, o que é a estabilidade de uma geração? E o
significado de um espaço só parcialmente apreendido e nunca
representado na sua totalidade e contornos? O território
português, «Reino de Portugal», seria um nome sem figura.
Uma referência abstracta, a que o rei, e só ele, podia
emprestar alguma consistência sensível. De modo que a ideia
de unidade política subsumida numa história e num espaço,
«nacionais», não existia no imaginário colectivo. Essa
ideia, possível e provável desde Afonso III, atracava ao
rei e vivia da sua imagem — uma imagem efectiva para alguns
e um som apenas para a maioria. Não há consciência de
nação, conquanto exista nação, de facto. Diz José Mattoso
(1985, vol. II, pp. 211-212): «A nação existe, tem já a sua
coerência e a sua autonomia, os seus caracteres próprios, a
sua capacidade de resistência, mas a consciência deste
facto encontra-se apenas na mente de uma minoria,
geralmente próxima do poder político, a partir do qual ela
se difunde com lentidão.»

426
Portanto, em 1325 não há ideia de Estado tal como o
definimos atrás, seguindo Strayer. Mas há,
independentemente da advertência das pessoas, duas
condições fundamentais para que o Estado irrompa: uma
história e um território.

Mecanismos de autoridade e poder

«Mecanismos» é termo que desejamos seja lido na sua


mais vaga significação. Entenda-se por ele agentes e
estruturas, por exemplo. Já, porém, «autoridade» e «poder»
queremos que se entendam rigorosamente; naquele rigor que a
antropologia política os contempla. «Autoridade», virtude
reconhecida a alguém, pela sociedade, de interpretar e
dizer os interesses, caminhos e destinos dela, sociedade,
de modo imperativo, absoluto. Em nome de qualquer coisa
veemente, irrecusável, clarissimamente legítima — a qual
pode ser um carisma indefinível, pessoal e sagrado; uma
experiência da vida e das pessoas diuturnamente expressa em
proscrições de sagesse indesmentida; ou então uma
eloquência versada nas certezas da razão e do direito. A
autoridade alimenta-se da persuasão. Melhor dito, é
atributo de quem sabe e pode persuadir com verbo e
eficácia. É capacidade de classificar e definir consentida
e aprovada espontaneamente por aqueles que são implicados
no exercício dessa capacidade. A autoridade não coage
fisicamente ninguém. Só moralmente. O que, em termos
políticos, pode ser definitivo. E é por isso que o
político, essencialmente poder, abomina imaginar-se despido
de autoridade. E, habilidade muito sua, tenta por todos os
modos consagrar junto da opinião pública esta perversa
relação: poder, logo autoridade. Como se houvesse uma
relação biunívoca entre as duas entidades. Não há.
Correlação, reciprocidade, pode ser, conforme os casos.
Identidade, não.
Poder é sujeitar. Não existe poder sem súbditos
concretamente designados por referenciais objectivos, reais
ou simbólicos. O território é o referencial mais corrente.
Sujeitar, portanto. O que quer dizer coagir, forçar, impor.
Se bem que a definição de Balandier respeitante a poder,
que atrás transcrevemos, pareça não implicar
necessariamente a força — coisa que ele próprio recorda —,
parece-nos que só aparentemente isso é verdade. Porque, com
efeito, a imposição de comportamentos e.valores mediante a
socialização, sejam quais forem os seus mecanismos, é modo
de coagir e forçar, psicopedagógico é certo, subtil, mas
maneira de contrariar o curso da natureza, o qual se
pressupõe diferente e oposto à vontade de quem decide sobre
quais são os «bons comportamentos» e «bons valores
sociais». Aliás, aqueles que não quiserem submeter-se à
coacção educativa terão de haver-se, mais tarde ou mais
cedo, com a força policial. É por isso que se costuma dizer
que a educação fecha as cadeias. O que, não prestigiando de
forma alguma a genuína natureza da função educativa e dos
seus agentes, tal como hoje se entendem, traduz
inequivocamente o desígnio dos poderes acerca da matéria.
Para eles, os contestários dos sistemas e modelos têm todos
o mesmo nome: desviacionistas. E como tais são reprimidos.
A menos que se trate de excêntricos inofensivos, que então
a opinião pública se encarrega de os reprimir: são idiotas.
E fica tudo dito, o poder não precisa de se incomodar.
De modo que o poder é força e a autoridade persuasão. E
é esta diferença fundamental que vai obrigar-nos a
distinguir os mecanismos ou instituições que Joseph Strayer
afirma deverem existir num Estado digno deste nome.
Mecanismos ou instituições da estrutura política. Uns de
autoridade, outros de poder.
No primeiro grupo, arrolaremos as cortes e os
conselhos; no segundo, o direito, a justiça, a fiscalidade,
a diplomacia e a guerra. Outros haverá certamente. Mas
colocando-nos nos séculos XIV e XV, cremos estarem por aí,
no que toca à construção do Estado, as «memoráveis
realizações».
AS CORTES

As cortes derivam das cúrias régias extraordinárias e


terão começado quando representantes dos concelhos entraram
nelas pela primeira vez como membros efectivos. Discute-se
o ano preciso em que isso se verificou. O de 1254 continua
a ser desde Alexandre Herculano o que reúne mais consensos
— pelo que as Cortes de Leiria desse ano se mantêm como
sendo as primeiras da história parlamentar portuguesa.
Diríamos: é incontroverso que essas cortes o foram
realmente; mas é duvidoso que tenham sido as primeiras.

427
[Legenda de figura.]
Cortes celebradas entre 1385 e 1495 (extraído de
Armindo de Sousa, As Cortes medievais portuguesas, I vol.,
Porto, 1990).

428
A instituição foi designada por muitas e variadas
expressões, pelo menos 16: «acordo», «ajuntamentos»,
«chamado», «chamamento», «concílio», «conselho»,
«conselhos», «cortes», «cortes e conselhos», «cortes
gerais», «cortes gerais e solenes», «cúrias», «juntamento»,
«juntamentos», «parlamentos» e «visitação». Desde muito
cedo, porém, o designativo oficial fixou-se em «cortes»,
termo que, ao contrário dos outros todos, apenas foi usado
para nomear as assembleias parlamentares. «Cortes gerais» é
modo de dizer de gosto jurídico, muito utilizado nas
Ordenações afonsinas (1447), mas em si mesmo nada adianta
ou acrescenta a cortes somente. Não cremos que dessa
designação se possa inferir a existência institucionalizada
de «cortes restritas».
A instituição parlamentar medieval portuguesa só
existia realmente enquanto funcionava, isto é, foi uma
instituição iterativa, identificada com reunião ou
assembleia actuante. Nascia e renascia todas as vezes que o
Poder, convocados os membros dela, tratava com eles os
negócios que entendia propor-lhes ou outros que aceitava
discutir. Todavia, pode e deve falar-se do parlamento
medieval como uma instituição virtualmente permanente. Isto
era assim em Portugal, como em Castela, como na Itália, ou
na França, ou na Inglaterra, ou no império. E, diga-se de
passagem, o Parlamento português é mais antigo do que o
famoso English Parliament. Ora, é devido ao facto de as
cortes só terem existido realmente enquanto funcionavam que
é costume designá-las, para as individualizar, exarando
«ano (local)», assim, por exemplo, 1385 (Coimbra) ou 1490
(Évora); e também, quando for o caso, «anos (locais)» —
1390-1391 (Évora), 1433 (Leiria-Santarém), 1472 -
1473(Coimbra-Évora).
A periodicidade das cortes nunca foi taxativa. Houve
diversas propostas nesse sentido, sempre oriundas dos
povos, mas jamais coroadas de sucesso prático. Reuniram
quando reis ou regentes as convocaram pressionados por
motivos conjunturais, de natureza financeira as mais das
vezes. Dir-se-ia que os concelhos as desejavam e que os
governantes as aborreciam. Coisa perfeitamente
compreensível. De modo que as convocatórias foram o
instrumento jurídico que lhes dava existência real e
legitimidade. Só conhecemos duas excepções a este
princípio: uma em 1439 (Lisboa), assembleia reunida por
força do estipulado na do ano anterior, no Regimento do
Reino de 1438; e outra em 1460, em que o Parlamento
convocado para Santarém não chegou a reunir, devido a
doença do rei. Reunidas, as cortes mantinham-se em acto,
geralmente no mesmo local, até que se esgotassem os
negócios a tratar, despedindo-se os seus membros, clero e
nobreza e povo, uns mais cedo, outros mais tarde, conforme
se fossem concluindo os respectivos trabalhos. Em média, as
cortes duravam um mês. Em média. Porque, por exemplo, as do
Porto de 1387 não foram além de três dias e as de 1481-1482
(Évora-Viana) prolongaram-se durante seis meses. Sucedeu
também, pelo menos em 1472-1473 (Coimbra-Évora), que os
trabalhos foram interrompidos ao fim de 30 dias e retomados
passado meio ano, noutra localidade.
O parlamento medieval português nunca teve um
regulamento escrito. As suas regras e excepções são
inferidas por critério estatístico. Por conseguinte, a
regra não significa respeito por uma norma positiva nem a
excepção significa o inverso. Tivemos oportunidade de
verificar, quando estudámos sistematicamente as cortes
celebradas entre 1385 e 1495, que nenhuma praxe foi seguida
sem excepções. Isto faz da instituição uma entidade de
estudo difícil, rebelde a todo o tipo de esquematizações
geométricas ou lógicas. Juntando este facto à carência de
fontes sobre os modos e meios das reuniões — não houve
actas, por exemplo, e se houve perderam-se todas —, é
trabalho minucioso e extremamente complicado estabelecer,
até, esta coisa primária: o rol das assembleias
parlamentares precisas. As dúvidas e imprecisões são
grandes entre os historiadores. Cremos ter estabelecido
para o período que vai de 1385 a 1495 a existência de 55
cortes suficientemente documentadas (v. mapa 1). Para o
período anterior, 1325 a 1385, sigamos a lista proposta por
Marcelo Caetano (1981, pp. 316-320) — a qual, advirta-se,
carece de confirmação baseada em levantamentos exaustivos
de fontes e em estudos rigorosos e sistemáticos das mesmas.
Essa listada 13 assembleias: 1325 (Évora), 1331 (Santarém),
1340 (Santarém), 1352 (Lisboa), 1361 (Elvas), 1371
(Lisboa), 1372 (Porto), 1372 (Leiria), 1373 (Santarém),
1375 (Atouguia), 1376 (Leiria), 1380 (Torres Novas) e 1383
(Santarém). Daqui se segue que os reis da segunda dinastia
deram mais atenção à assembleia do que os da primeira.
Deram mais atenção, leia-se fizeram mais convocatórias.

429
E não se tire do facto nenhuma lição a respeito da
personalidade deles, reis, nem do prestígio da instituição.
As lições a tirar haverão de situar-se no âmbito estrito da
conjuntura político-administrativa.
As cortes eram integradas pelos detentores do poder
monárquico e seus áulicos, pelos grandes senhores laicos e
outra fidalguia, pelos prelados e delegados capitulares e,
finalmente, por deputados dos concelhos. Por outras
palavras, para que uma assembleia fosse cortes era preciso
que na sessão solene de abertura estivessem presentes os
reis ou regentes — os detentores do poder supremo — e
elementos das três ordens do corpo social. Mas isso não era
suficiente: importava que as convocatórias dissessem que a
assembleia era de natureza parlamentar ou os negócios da
agenda o inculcassem. Porque uma assembleia convocada, por
exemplo, para jurar um príncipe herdeiro podia não ser de
cortes, muito embora houvesse de reunir maior número de
pessoas e delegações do que o habitual nos parlamentos.
Isso sucedeu, designadamente, no auto de juramento do
príncipe D. João, futuro D. João II, em 1455, e no do seu
filho, o príncipe D. Afonso, em 1476. Não é, portanto, a
composição de uma assembleia que lhe confere estatuto
parlamentar. Mais: podia suceder, e sucedeu, que após a
sessão inaugural uma ordem da sociedade fosse embora. Isso
não prejudicaria o carácter dos trabalhos posteriores. Em
1433, uma prova, admitia-se que as cortes se mantinham
reunidas mesmo que o clero e a nobreza se ausentassem e o
local dos trabalhos se transferisse de Leiria para Santarém
(Livro dos Conselhos del-rei D. Duarte, pp. 79-81). Em
contrapartida, não há nenhum caso, parecer ou afirmação que
dê estatuto parlamentar a uma assembleia reunida sem a
presença de delegados do povo. E isto é extremamente
importante para caracterizar o parlamento medieval
português. Nota distintiva. Não se estranhe, por
conseguinte, a nossa insistência em qualificar as cortes
como areópago do povo. Foi-o; e não só por este motivo. O
clero e os nobres dispunham de outras assembleias para
«trabalhar» com os reinantes. O povo, isto é, os
representantes dos concelhos, congregados como corpo social
representativo do terceiro estado, não.
As cortes funcionaram segundo mecanismos e praxes
ditados pela tradição leoneso-castelhana, não obstante
adaptações pontuais à realidade do País e inovações
conjunturais. As grandes linhas são as mesmas, se bem que o
perfil da instituição portuguesa não coincida exactamente
com o das suas homónimas peninsulares. Por exemplo, no que
toca à capacidade interventiva pessoal dos nossos deputados
nas decisões: é muito mais ampla do que a dos castelhanos.
Além de que a cobertura do quadro municipal foi entre nós
mais abrangente do que a verificada em Castela. Os
deputados concelhios portugueses, regressados dos
parlamentos, podiam ufanar-se de ser portadores de uma
imagem bastante exacta dos problemas e ansiedades de
Portugal inteiro.
A abertura das cortes fazia-se por uma sessão solene,
em plenário, geralmente no dia previamente marcado nas
cartas convocatórias. Todos os membros estavam presentes,
desde o rei e seus áulicos até aos delegados dos concelhos
mais humildes. Com D. João II essa sessão inaugural assumiu
formas soleníssimas. Se o Parlamento servia também para
jurar um rei acabado de subir ao trono, o cerimonial
procurava incutir nos participantes, sem pressa, faustosa e
quase liturgicamente, a ideia da ordem social querida por
Deus e pelos foros da Espanha — epifania do Poder e ritual
de renovação da monarquia.
Havia sempre, nas sessões inaugurais, um discurso
solene, a «oração de proposição», que um letrado escolhido
ou uma pessoa de muita autoridade pronunciava em nome do
rei. Nela se comunicava, muitas vezes em primeira mão, o
porquê da assembleia, o objectivo desejado pelo reinante.
Seguiam-se depois as sessões de trabalho, cada estado em
seu sítio. Dessas reuniões separadas resultavam os
pareceres e decisões do clero, da nobreza e do povo sobre
os temas agendados e ainda as reivindicações, propostas e
queixas que cada grupo houvesse por bem formular. O rei,
mediante delegados especiais, respondia depois a tudo. O
resultado destes trabalhos chegou até nós parcialmente, nos
conhecidos capítulos gerais de cortes e em acordos
diversos, tais como decisões sobre lançamentos de impostos
extraordinários, eleição de governantes supremos e
Regimento do Reino (1438).
Com o príncipe D. João, regente na ausência de D.
Afonso V, tomou-se a iniciativa, em 1477, de fazer reunir
conjuntamente o clero, a nobreza e os concelhos em sessões
de trabalho sobre os negócios da agenda. A ideia, concebida
pelo príncipe, era forçar os três estados a trabalharem em
comissão paritária na resolução dos grandes problemas
nacionais, com patriotismo, harmonia e eficácia. Os povos

430
abraçaram a ideia, mas os outros não — e ela fracassou.
Ficou a semente, que mais tarde haverá de frutificar.
Resolvidos os assuntos que motivavam as assembleias, ou
chegados os trabalhos a impasse, e desembargados os
capítulos de agravos eventualmente requeridos, as cortes
terminavam.
O parlamento medieval foi uma instituição
político-administrativa de enorme importância. Isso tira-se
das suas funções. Umas «primárias atribuídas»: apresentação
de propostas, petições e agravamentos; concessão de pedidos
e empréstimos aos reis; prestação de menagens e juramentos;
votação de guerra e paz; realização de reformas gerais;
eleições de reis e regentes; resoluções de questões
monetárias; alienação de territórios da coroa; votação de
matérias constitucionais; e extinção de regências. Há aí
funções legislativas, técnicas e políticas. Que podemos
apreciar em termos percentuais, entre 1385 e 1495, assim,
respectivamente: 45,65%, 41,30% e 13,04%. Donde, foram as
actividades parlamentares de natureza legislativa e técnica
que caracterizaram a instituição. Outras funções podem ser
designadas como «primárias invocadas», ou seja, como
funções que os participantes, nomeadamente o povo,
entenderam devidas, mas que o Poder nunca ratificou. Por
exemplo: que as decisões parlamentares não pudessem ser
abolidas nem dispensadas senão com o acordo dele próprio,
Parlamento; e ainda que declarações de guerra ofensiva não
tivessem valor sem o consentimento da assembleia. Estas
funções, se bem que invocadas apenas e não outorgadas,
mostram expectativas dos deputados, rumos desejáveis,
prestígio da instituição e existência, a nível dos
concelhos ao menos, de uma genuína «mentalidade
parlamentarista». Mas há mais: aquelas funções que
designamos «secundárias», essas que o Parlamento cumpre
pelo facto de funcionar, efeito de halo. Umas «manifestas»,
outras «latentes». Por exemplo, a propaganda do rei, no
primeiro caso, e a educação política dos deputados e dos
concelhos, no segundo. Nunca é de mais chamar a atenção
para a importância destas funções secundárias — até porque
costumam passar desapercebidas dos historiadores. E estão
na lógica das preocupações do Poder e do Estado, conforme
lembra a antropologia política e atrás tentámos recordar.
Vejamos agora uma série de cortes do nosso período, as
quais podem e devem ser consideradas como etapas mercantes
da história da instituição e, portanto, «memoráveis
realizações» de natureza institucional e política:
1331 (Santarém). O povo assume o estatuto de braço
parlamentar, ao lado do clero e da nobreza. Isso deveu-se a
uma disposição régia meramente disciplinar e destinada a
favorecer a rapidez e eficácia dos desembargos: os
deputados do povo reuniriam para decidir colectivamente
sobre o caderno de capítulos a apresentar. O rei pouparia
tempo nos despachos, pois de uma só vez decidiria sobre
matérias que, de outro modo, podiam ser repetidas nos
cadernos das diversas delegações. Nasceram os capítulos
gerais dos povos. Só que essa medida instituiu reuniões dos
deputados do povo para estudar os agravamentos sofridos
pelo terceiro estado do País e concedeu a esses deputados
poderes não já estritamente imperativos. O mandato dos
procuradores passa a implicar capacidades deliberativas,
assim como o trabalho parlamentar adquire as virtualidades
de trabalho de grupo, ao menos no que toca aos delegados
concelhios. Um salto qualitativo notável.
1372 (Leiria). Confirma-se que o mandato dos deputados
populares era de natureza deliberativa e que, por
conseguinte, o seu estatuto parlamentar era o de
representantes dotados de plena potestas para decidir sobre
os assuntos da agenda. Estas cortes são ainda importantes
por se revelarem capazes de fazer frente ao rei e tomarem
decisões contrárias aos desígnios dele: assumem-se como
substrutura política paralela ao supremo poder monárquico.
1385 (Coimbra). O Parlamento actua como depositário da
monarquia, delegado de Deus na distribuição da soberania
política: elege-se um rei e procura-se submeter o exercício
da sua autoridade a uma constituição. Vota-se uma
periodicidade anual das cortes e um sistema de governo «de
gabinete» vigiado pelos representantes da nação. Os votos e
projectos, se bem que aceites em princípio pelo rei, foram
destinados ao fracasso.
1438 (Torres Novas). Aprova-se um regimento do reino e
nele uma estrutura acabada para as cortes: composição,
periodicidade e competências. O Parlamento, com reuniões
anuais convocadas por si próprio, é encarado como órgão
detentor de soberania, paralelo ao Conselho da Regência, ao
Conselho da Justiça e ao Conselho da Fazenda. No ano
seguinte, foi tudo anulado.

431
1472-1473 (Coimbra-Évora). As cortes são utilizadas
como organismo desencadeador de grandes reformas do País,
em áreas como a Justiça, a Fazenda e a Defesa. A iniciativa
parte do rei, mas são os deputados do povo que pensam e
redigem os textos reformativos.
1477 (Santarém-Lisboa). Cria-se uma comissão
interestamental paritária para discutir e aprovar as
questões da agenda — a «Comissão de Determinadores». Pela
primeira vez concebe-se a ideia de fazer funcionar o
Parlamento em duas instâncias: uma composta por deputados
das três ordens sociais, em igualdade numérica, mais
delegados do poder supremo — e esta instância trataria das
questões de fundo, de âmbito nacional e interesse
supra-estamental; e outra constituída pelos plenários
separados do clero, nobreza e povo, para tratar assuntos
que a cada um diziam respeito. Esta ideia do príncipe D.
João, ao tempo regente do reino, não teve efectivação
imediata, porque, já se disse, as classes privilegiadas
boicotaram-na. Há-de realizar-se mais tarde.
1481-1482 (Évora-Viana). Introduzem-se inovações em
termos de aparato faustoso, de formalismos protocolares e
de relacionamento do rei com os súbditos. São cortes de
início de reinado, mas o rei exime-se de pronunciar
juramento, exige que todos lhe prestem menagens iguais e
faz-se rodear de uma aura tão hierática que dir-se-ia
personificar a própria fonte do Poder. As cortes passam a
fazer parte da utensilagem destinada a produzir uma
monarquia cesárea. São prestigiadas e engrandecidas, porque
servem de trampolim aos projectos da política joanina.
E pronto. Aí fica o essencial sobre as cortes do nosso
período e o principal sobre as etapas da sua evolução.
Foram uma substrutura política global, temo-lo dito. Mas
uma substrutura dotada, não de poder, mas de autoridade.
Distinguiram-se e afirmaram-se como isso. A sua autoridade
advinha-lhes de serem a instância solene onde a vontade e
os desígnios da Nação se exprimiam, voz monárquica e dos
estados buscando conjugação; e, sobretudo, de serem o lugar
privilegiado da rememoração quase ritual dos valores e
princípios que davam credibilidade e forma à ordem social e
política. Rememoração e induzimento; ordem vigente e ideal.
Espaço de igualações em matéria de autoridade. Instituição
de prestígio destinada a um porvir excelentíssimo.

Os CONSELHOS. O CONSELHO DO REI

Durante o período do nosso estudo deu-se muita


importância aos conselhos e aos conselheiros. As crónicas,
os tratados, os códigos jurídico-políticos e os capítulos
de cortes falam deles com assiduidade e atenção muito
séria. Inculca-se que os fracassos e sucessos dos reinantes
se devem fundamentalmente a eles. A política externa
desastrosa de D. Fernando, por exemplo, é atribuída em 1385
mais aos conselheiros do que a ele — certamente por ter
sido desastrosa. E D. Duarte, outro exemplo, é denegrido
por Rui de Pina, a propósito do «desastre de Tânger», por
ter actuado «contra conselho e vontade dos mais e de mor
autoridade» (Crónica de D. Duarte, cap. 44). Os reis e
todos aqueles que por função ou missão deviam decidir sobre
pessoas e empresas eram obrigados, moral e politicamente,
primeiro, a tomar conselhos; segundo, a saber pesá-los,
utilizando a sua pessoal discrição e a autoridade de quem
os dava; terceiro, a seguir os de maior peso. Não o
fazendo, por autoritarismo, por minguada inteligência ou
por acepção de privados — maxime por condescendência fraca
para com as esposas —, eram réus perante a história. É
claro que este modo de pensar a responsabilidade da
direcção política, e, logo, a capacidade de actuar enquanto
chefe, não é exclusivo do nosso período histórico. Vem
muito de trás e persistirá séculos fora. Os livros da
Bíblia, por exemplo, estão cheios de casos e lições. Por
outro lado, «dar bom conselho» é obra de misericórdia que a
Igreja consagrou.
Onde quer que haja sociedades com um mínimo de governo
e de Estado, aí achamos fatalmente conselhos e
conselheiros. É claro que ao nosso escopo, séculos XIV e XV
portugueses, interessa determinar a existência ou não de
conselhos institucionalizados, designadamente o «conselho
régio».
Datam da época de D. Afonso III (1248-1279) os
primeiros indícios de um conselho destacado da cúria
ordinária. Não se trata, porém, de um órgão já constituído.
É um grupo de privados que o monarca escolhe entre oficiais
da corte, fidalgos, clérigos e letrados. Um grupo reduzido
de pessoas, cujo funcionamento ou modo de actuar se
desconhece. Nem se sabe se a instituição — que o é quoad
nomen et finem — o foi quoad jus, em termos
constitucionais. Tudo indica que não. Era um grupo

432
informal, revestido de autoridade, a que o rei recorria
quando julgava necessário. Continuará assim com D. Dinis
(1279-1325).
A partir de 1325, com o governo de D. Afonso IV, vai-se
«assistir a progressos nítidos na organização do Conselho»
(A. Carvalho Homem, 1990, p. 239). Consistirão numa maior
responsabilização dos conselheiros, já que mencionados
parcial ou individualmente a respeito de missões concretas.
Com D. Pedro I, mantendo-se a composição desse «órgão» como
até aí — prelados, mestres de ordens militares, altos
nobres e letrados —, diminui a ênfase das fontes na sua
colegialidade em benefício da identificação dos membros, ao
passo que se afirma a diversificação das suas competências.
Quer dizer, acentuam-se os modos verificados no reinado
anterior. Com D. Fernando, prossegue-se a continuidade. Que
se nota numa grande responsabilização dos conselheiros na
função monárquica legislativa e diplomática, agora
recrutados preferencialmente entre oficiais ou ex-oficiais
do desembarco, em prejuízo de nobres e clérigos; e entre
letrados estranhos à administração central. Quer dizer, D.
Fernando preferiu assessores a vozes autorizadas da
comunidade nacional. Disso o criticarão as Cortes de 1385
(Coimbra).
Com D. João I, e devido ao modo como ele acedeu ao
Poder, o conselho régio vai ter um perfil interestamental
claro, recrutando clérigos, fidalgos, letrados e cidadãos,
de modo a traduzir o pensar da comunidade. Intervirá mais
decididamente nos negócios da governação. E admitirá,
quando se julgar momentoso, vozes de «especialistas»
consultados ad casum. Mas à medida que o reinado avança,
mormente a partir de 1402, voltar-se-á ao modo de D.
Fernando: o conselho régio como grupo de assessores. E sem
organização constitucional ainda (Carvalho Homem, 1990 pp.
233-239). O que dissemos no capítulo precedente, a respeito
de ricos-homens do século XV, repetimo-lo outra vez em
modalidade dubitativa: talvez os ricos-homens
quatrocentistas não sejam outra coisa senão conselheiros
régios por este nome dignificados. «Burocratas»
distinguidos.
A partir de D. João I, o assunto está por estudar.
Houve conselho e conselheiros, evidentemente. Com a missão
de esclarecer os problemas da governação e ajudar os reis.
Mas com que atribuições, competências, composição? Com que
regimento, se o houve? Instituição constitucionalmente
definida? Sabe-se que em 1475 e 1477 houve conselhos
solenes, reuniões magnas, com prelados, grande nobreza e
letrados. Do primeiro saiu a decisão de entrar em Castela
para colocar lá, no poder de regente, o rei Afonso V; e do
segundo resultou a convocação das Cortes de Santarém-Lisboa
desse ano e respectiva ordem de trabalhos. Mas como
funcionaram essas assembleias, quem falou, em nome de quem?
Não se sabe. Nem se sabe de quem partiu a ideia primeira de
as congregar. Do rei? Do conselho régio?
Uma coisa é certa: em todo o período do nosso estudo
houve uma instituição consultiva, permanente, adstrita ao
poder monárquico, chamada «Conselho D’el-Rei». Foi uma
instituição de autoridade. Ou integrada por autoridades — o
que vem a dar no mesmo.

OS MECANISMOS DO PODER: DIREITO E JUSTIÇA

Sobre o direito, enquanto mecanismo do Poder ou


instrumento do controlo social, já falámos atrás, no
primeiro capítulo. Não vamos agora repetir-nos. Passemos,
portanto, à justiça, aos mecanismos do poder judicial.
O poder judicial no período do nosso estudo andou
misturado com os outros, o legislativo e o executivo, e
disperso em muitas mãos: as dos reis, as dos senhores e as
dos autarcas municipais. É dispersão característica dos
sistemas políticos feudais. Contra a qual vão lutar os
monarcas, apoiados no direito romano e, simultaneamente, na
razão que lhes advém da força. Chama-se a essa luta
«movimento de centralização monárquica», a qual irá
conduzir ao cesarismo régio dos finais do século XV e mais
tarde desembocar perversamente no absolutismo político.
Chamarão os monarcas em seu auxílio toda uma herança
teórica cristã ocidental, reservatório ideológico
extremamente respeitado, que se reivindica do Evangelho, S.
Pedro e S. Paulo, Santo Agostinho, Dinis o Areopagita,
Santo Isidoro de Sevilha, Carlos Magno e muitos outros.
Assim: o rei é o guardião e defensor da lei; seu primeiro
papel, manter e impor a justiça. Dizia lapidarmente Fernão
Lopes, aliás traduzindo Gil de Roma: «Duvidar se o rei háde
ser justiçoso não é outra cousa senão duvidar se a regra
há-de ser direita» (Prólogo da Crónica de D. Pedro). E
ainda: «O rei deve de ser de tanta justiça e direito que

433
compridamente dê as leis à execução — doutra guisa
mostrar-se-ia seu regno cheio de boas leis e maus costumes,
que era torpe cousa de ver» (Ibid.). De modo que os reis
têm, mais do que apetência para se apropriarem dos
mecanismos judiciais dos seus reinos, a obrigação de
fazê-lo. E se porventura outros aplicam a justiça, é na
qualidade de delegados régios que a devem aplicar. Isto na
teoria. Porque na prática o que se verifica é os senhores
das terras, laicos e eclesiásticos, geralmente deterem
jurisdição cível e crime, que exercem de modo isento, fora
da interferência dos agentes judiciais do monarca. Por
outro lado, os concelhos, agarrados a ancestrais e arcaicas
tradições autonómicas, porfiam em manter máquina judicial
própria, gerida pelos homens-bons segundo critérios decerto
eficazes e equitativos, mas tecnicamente muito frustes e
politicamente dispersivos da unidade da Nação e do Estado.
As isenções senhoriais são escaninhos de excepção e os
particularismos foraleiros são mosaico de muitas cores. O
trabalho da monarquia no período do nosso estudo vai ser a
criação dum direito comum nacional e lentamente controlar e
gerir a sua aplicação por todo o lado. Escapar-lhe-á a
Igreja, obviamente; mas ela verá reduzido e «fiscalizado» o
campo da sua jurisdição específica. Tudo isso será
simultaneamente causa e efeito da afirmação do rei como
supremo poder do Estado. E reflectir-se-á nos discursos do
Parlamento, como não podia deixar de ser, desde 1331 em
diante.
Nas páginas anteriores fomos indicando feitos e actos
do poder central tendentes a subordinar a si as isenções
dos senhores e dos concelhos. Vejamos agora, rapidamente,
quais os mecanismos judiciários que se foram inventando e
definindo ao compasso desses actos, desses feitos.
Esses mecanismos são órgãos e ofícios, tribunais e
funcionários ou magistraturas. Todos ligados ao poder
central. A «Casa do Cível», a «Casa da Justiça da Corte», a
«Audiência da Portaria», «corregedorias», «ouvidorias» e
«juizados».
A Casa do Cível era um tribunal superior fixo,
integrado pelos sobrejuízes e dois ouvidores, com alçada
sobre feitos cíveis e feitos crimes. Feitos cíveis de todo
o reino, excepto do sítio onde estivesse a corte e das
localidades a cinco léguas daí, e dos feitos crimes de
Lisboa e seu termo — isto a partir do momento em que o
tribunal ficou sediado em Lisboa, ou seja, a partir pelo
menos do reinado de D. Duarte. Crê-se que a Casa do Cível
tenha sido instituída por D. Afonso IV e desde logo com
localização certa e permanente, primeiro em Coimbra
(1362-1363), depois em Santarém (1364-1385), seguidamente
em Santarém e Lisboa, ora num lado ora noutro, e
finalmente, com D. Duarte como se disse, definitivamente em
Lisboa. Definitivamente, entenda-se, até ao fim do nosso
período histórico.
A Casa de Justiça da Corte era o tribunal supremo, que
acompanhava o rei por onde quer que ele andasse. Tinha
competência sobre apelações e agravos de natureza civil ou
criminal provenientes de um raio de cinco léguas do local
onde a corte eventualmente se encontrava e, no que toca ao
crime, dos que provinham de todo o País, exceptuando Lisboa
e seu termo. Tratava, além disso, de todos os feitos que
escapavam à alçada específica da Casa do Cível. Digamos que
a Casa de Justiça da Corte simbolizava e cumpria a dimensão
judicial do poder régio — que vimos ser fundamental à noção
de monarquia — e que a Casa do Cível significava um
distanciamento impessoalizante da função judiciária
relativamente à figura do soberano. Compreender-se-á então
que o tribunal de última instância por excelência, esse que
avocava a si, quando o rei entendesse, todos os feitos de
recurso, tenha sido sempre a Casa da Justiça da Corte,
também chamada «Casa da Justiça d’el-Rei», ou só «Casa da
Justiça» e, pelo menos depois de 1475, «Casa da
Suplicação». E compreender-se-á ainda por que é que no
tempo de D. Pedro I, rei Justiceiro, por amor da rapidez,
da eficácia e porventura do temperamento dele, monarca, a
Casa do Cível perca prestígio em proveito da outra, já não
se compreenderá tão bem, a não ser por razões de clareza e
eficiência administrativa — que são burocraticamente
decisivas — que a Casa da Justiça, estando a corte em
Lisboa, não absorva os feitos crimes dessa cidade e seu
termo, deixando-os à Casa do Cível como se o rei estivesse
fora [cap. 2 dos gerais do povo de 1433 (Leiria-Santarém)].
E de modo nenhum se compreenderá como é que D. Afonso V
outorgou aos fidalgos em 1451 que os apelos e agravos idos
de suas terras fossem sentenciados sem recurso na Casa do
Cível de Lisboa.
A Casa da Justiça da Corte tem a sua origem no
desmembramento da cúria em dois tribunais e, portanto,
embora herdeira directa do prestígio e simbolismo daquela,
é contemporânea lógica da Casa do Cível. As duas,
provavelmente fundadas por D. Afonso IV, denotam, por um
lado, progresso administrativo e autonomização rei/funções
régias, e, por outro, esforço de controlo centralizador do

434
País ao nível da justiça. É óbvio que simbolizam um grande
passo na afirmação do Estado.
Outro tribunal superior foi a Audiência da Portaria, ao
qual presidia o porteiro-mor e que tinha competência sobre
pleitos atinentes à Fazenda real, direitos reais, impostos
e mouros ou judeus — mouros e judeus que eram «coisas» do
rei. Por volta de 1370, os ouvidores da Portaria,
magistrados deste tribunal, passam a designar-se por
vedores da Fazenda, continuando com as suas funções
simultaneamente judiciais, fiscais e económico-financeiras.
Corregedorias e ouvidorias são magistraturas
eminentemente judiciárias. As primeiras devem o nome aos
corregedores, que foram exclusivamente oficiais régios; as
segundas, aos ouvidores, que tanto podiam ser régios como
senhoriais. E havia ainda as «judicaturas», ou «juizados»,
a que presidiam juízes, régios, senhoriais e concelhios,
ordinários e especiais, da terra ou de fora — uma imensa
quantidade de pessoas, desde analfabetos a titulares de
graus académicos, e um mosaico variadíssimo de
competências, nem sempre claramente delimitadas.
Interessam-nos aqui os magistrados adstritos ao poder
central, nomeadamente corregedores, ouvidores e juízes de
fora designados pelo rei. De todos estes, cremos que os
corregedores foram os mais importantes em termos
sociopolíticos.
Antes dos corregedores existiram os meirinhos-mores e
antes ainda os tenentes das terras. Os primeiros
corregedores apareceram durante o reinado de D. Dinis, mas
será com D. Afonso IV que eles se vão tornar regulares e
sujeitos a um regimento específico — datando o primeiro de
1332 como consequência dos agravos populares das Cortes de
1331 (Santarém). A este primeiro regimento seguir-se-ão
outros: o de 1340, uma revisão deste datada de 1418 e
finalmente o que se encontra no título 23 do livro 1 das
Ordenações afonsinas, que é um apanhado de tudo com
rectificações e adendas introduzidas pelos compiladores
desse código. Dissemos «finalmente» a pensar no período do
nosso estudo. Lembre-se, porém, que o tema dos corregedores
é dos mais assíduos nos discursos das cortes, mesmo depois
da publicação do código afonsino, e que, sempre que neles
se fala, se vão acrescentando novos pormenores, uns
restringindo competências, outros alargando-as, outros
declarando normas de actuação, outros ainda aptidões para o
cargo — de modo que as regras do ofício e o perfil desses
oficiais nunca ficarão terminados (8). No reinado de D.
Afonso V verificar-se-á uma enorme confusão — até mesmo
retrocesso e desprestígio da magistratura — com a
introdução dos «adiantados», «governadores» e «regadores da
justiça», todos fidalgos, os quais recordam os antigos
meirinhos-mores dionisinos. As propostas dos povos em
cortes foram sempre no sentido de os corregedores serem os
magistrados superiores das correcções ou comarcas,
exercendo por si e não por ouvidores, com alçada nas terras
de jurisdição privada, letrados e de modo algum fidalgos
nem clérigos (Cortes de 1433 cap. 7). Só uma vez é pedida a
sua extinção: em 1459 (Lisboa), capítulo 13 dos gerais.
Extinção pura e simples, em benefício dos juízes ordinários
municipais e dos vereadores das câmaras. É claro que este
pedido não teve efeito. Pelas queixas dos povos, fidalgos e
clérigos, contínuas ao longo dos séculos XIV e XV, vê-se
bem quanto estes magistrados significavam de presença da
justiça régia por todo o País e, logo, de «opressão» para
os privilégios judiciais dos senhores laicos e
eclesiásticos, bem como de obstáculo aos desígnios
autonómicos dos municípios. Com D. João II a esfera da
intervenção territorial dos corregedores coincidirá com
Portugal inteiro.

[Legenda de figura.]
Divisão administrativa em comarcas (extraído de A. H. de
Oliveira Marques, Portugal nas crises dos séculos XIV e XV,
Lisboa, 1986).

435
Dissemos que os corregedores eram magistrados judiciais
colocados à frente das correições e comarcas. Foram seis
essas circunscrições administrativas: Entre Douro e Minho,
Trás-os-Montes, Beira, Estremadura, Além-Tejo e Algarve. As
delimitações oscilaram com os tempos e não é muito fácil
estabelecê-las até ao pormenor. Veja-se o mapa da página
anterior. E um mapa demasiado genérico, que serve apenas
para se ter uma ideia e que se reporta ao período posterior
a D. Duarte. Um mapa minucioso há-de ter em consideração
que os corregedores visitavam cidades, vilas e julgados,
que procuravam pessoas, de modo que os limites comarcãos
teriam sido mais as montanhas e ermos do que os rios; mais
o que separava e afastava comunidades do que aquilo que
servia para as pôr em contacto, como eram os cursos de
água. Foi por isso que, a pedido das populações, o concelho
de Gaia se separou, em 1437, da Estremadura para se ligar
ao Porto e ser incluído na comarca de Entre Douro e Minho.
E foi também por essa razão que uma vasta área deserta da
serra algarvia e do Alentejo sul não recebeu corregedor —
mas um meirinho, o «meirinho da serra», de que fala o
capítulo 164 dos gerais de 1472-1473 (Coimbra-Évora). Por
outro lado, e em contraposição, houve terras que tiveram,
devido à sua importância demográfica, corregedor privativo.
Assim Lisboa; e Santarém algumas vezes.
Para se ter uma ideia de como os povos entendiam, em
1433, as funções dos corregedores, leia-se o capítulo 8 dos
gerais que eles apresentaram ao rei nas cortes desse ano.
Resumindo-o: o ofício de corregedor «somente seja» andar
pela sua correcção, de lugar em lugar, a reprimir abusos,
despachar agravos e fiscalizar a actuação dos juízes e
tabeliães; e prender malfeitores, executando logo de
tormento os que merecerem e enviando os outros, com nota de
culpa, aos juízes das terras onde cometeram as
malfeitorias. O rei responde que nada se inove, que as
funções sejam as especificadas no Regimento de 1418. As
quais eram muito mais vastas, com efeito. Integravam
alíneas que tinham a ver com obras públicas e administração
local, por exemplo. Mas os povos queriam que os
corregedores fossem aquilo só: magistrados itinerantes
exclusivamente judiciários. Era isso que lhes convinha — e
para o conseguir porfiarão durante todo o período do nosso
estudo. Em vão. Porque as competências e atribuições desses
funcionários, fundamentais para o poder central, foram no
sentido da expansão e não no inverso. Mesmo no tempo de D.
Afonso V — o qual só cometeu o desarranjo, perverso em
matéria de centralização, de meter no ofício grandes
fidalgos, mudando, embora, o nome deles, oficiais do
ofício, para «adiantados», «governadores» e «regedores da
justiça» das comarcas, conforme dissemos atrás.
Os corregedores tinham a assessorá-los uma série de
outros oficiais: meirinhos, ouvidores, chanceleres,
escrivães, procuradores (ou advogados), tesoureiros,
porteiros e carrascos. Carrascos, nem sempre, apesar de
determinação de D. João I, que o mandava, e das queixas dos
concelhos contra o descuido. De modo que o corregedor era
um séquito: todos esses, seus filhos, mulheres, criados
e... a récua dos criminosos, em cambada, amarrados às
cadeias, com suas mulheres ou filhos para ajudar. A chegada
da correição era sempre uma estopada, uma estragação e um
espectáculo temeroso. Sobretudo para as cidades e vilas
grandes, porque, chegando, era certo ficar dias e dias,
meses; comendo, amedrontando, requerendo homens, bestas e
géneros — apesar de a lei estipular a saída 8, 15, 30 dias,
conforme, após a chegada. É ver os capítulos de cortes. Os
corregedores levavam a imagem e o nome terrível-fascinante
do rei a todos os cantos do reino: «justiça que manda fazer
nosso senhor el-rei D. João...»
Os corregedores de que falámos eram os das comarcas e,
parênteses breve, os privativos de Lisboa e Santarém. Mas
houve outros: os corregedores da corte. Estes magistrados,
conforme o nome diz, seguiam o rei. Tinham alçada na
localidade onde o rei estivesse e num raio de cinco léguas
à volta. O que quer dizer que a sua autoridade e poder se
sobrepunham a todas as outras justiças e polícias
territoriais. É opinião que o corregedor da corte foi
instituído ao mesmo tempo que os outros corregedores, mas a
verdade é que a primeira notícia da sua existência é
bastantes anos posterior à da existência daqueles, datando,
ainda assim, do reinado de D. Afonso IV.
«Ouvidores» eram magistrados encarregues, conforme o
nome diz, de ouvir as partes dos feitos e instruir os
processos. Isso primitivamente. Com o tempo, passaram a
deter a função, delegada é claro, de julgar e emitir
sentenças. Foi isso o que se passou com os ouvidores dos
tribunais superiores de que falámos atrás, os quais eram
juízes supremos, mais importantes do que os sobrejuízes.

436
Essa sublimação de funções ocorreu, mais uma vez, durante o
reinado de D. Afonso IV. O título VII do livro 1 das
Ordenações afonsinas fixa o perfil e competências dos
ouvidores da corte.
Houve ainda os ouvidores das terras dos senhores, à
frente dos quais, e a grande distância em honra e poderes,
se achavam os das terras das rainhas. E provavelmente os
dos infantes. Os outros, dos senhorios jurisdicionais
laicos, eram homólogos dos corregedores das comarcas,
funcionando como eles entre os juízes locais e os seus
senhores, bem como, função específica, entre os seus
senhores e os tribunais régios de última instância,
nomeadamente em matéria de apelos e agravos, tanto de
feitos cíveis como criminais. Não está ainda rigorosamente
averiguada a conexão entre estes magistrados e os das
correições, especialmente no reinado de D. João II, quando
os corregedores têm ordem para entrar nas terras isentas. O
que se sabe é que há queixas e queixas, denúncias e
denúncias, por parte dos concelhos, contra os ouvidores dos
senhores, seus meirinhos e seus escrivães. A imagem que se
tira da leitura dessas queixas e denúncias é a de um
verdadeiro farwest, onde os senhores fazem a justiça que
entendem, desafiando o rei e o direito. É provável que haja
algum exagero. Seja como for, do mal o menos, as populações
preferem a justiça ditada e cumprida pelos oficiais régios.
E pedem que os corregedores prevaleçam sobre os ouvidores
e, mais, que os fiscalizem. Pedido que D. Afonso V
compreende, aceita e defere em 1472-1473 (Coimbra-Évora),
por exemplo. Mas sem efeito. Será o filho, D. João II, a
dizer que sim e cumprir, em 1481-1482. Conforme lembrámos.
Os monarcas podiam, quando entendessem preciso para bem
da justiça, enviar pelas terras magistrados especiais,
geralmente ouvidores dos tribunais supremos, com plenos
poderes para actuar sem apelo nem agravo. Eram as temíveis
e eficazes «alçadas». Estes ouvidores das alçadas eram os
únicos mortais que, de uma penada, processo sumário, podiam
matar sem perigo. Em nome do rei. Com a espada ou a forca.
Em tempo de paz. Os corregedores também, mas com menor
celeridade e decisão.
Outros agentes do poder judicial régio, como os juízes
de fora e os tabeliães, não tiveram acção tão espectacular
como os anteriores. Mas isso não significa que devam ser
desmerecidos no seu papel de construtores da centralização
do poder monárquico e, logo, do Estado. Eram tentáculos da
monarquia postos ali, no quotidiano das populações e dos
municípios. Surgiram cedo. Os primeiros, no reinado de D.
Dinis; e os segundos, antes ainda, na primeira metade do
século XIII, se bem que só tenham obtido o seu primeiro
regimento em 1305. D. Afonso IV, D. Pedro e D. Fernando
aperfeiçoaram tecnicamente o ofício, o qual foi vedado
desde o princípio a clérigos, maiores e menores, seculares
e religiosos, o que mostra claramente tratar-se de um
mecanismo destinado a afirmar o poder central régio. A
história medieval dos tabeliães e notários públicos
portugueses, não só institucional como sobretudo social e
política, aguarda o seu historiador (9). Adivinha-se
fascinante.

OS MECANISMOS DO PODER: A FISCALIDADE

Não se concebe Estado moderno sem impostos nem


organização fiscal. Nesta matéria também o nosso período
registou memoráveis realizações. Desde logo, o primeiro
imposto geral permanente instituído em Portugal, as sisas
gerais.
A história deste imposto vem contada no capítulo 26 dos
povos das Cortes de 1459 (Lisboa), que não resistimos a
transcrever aqui, com pontuação e ortografia actualizadas:
«Senhor, o vosso povo sente muito a desordenança de vossa
mui desarrazoada despesa. Que sabereis que os reis antigos
suportavam grandemente seus estados e defensavam a terra
por os direitos reais, que em estes reinos são confiscais
da coroa do reino, e além delo tinham grandes tesouros —
sem haver aí sisas nem redízimas. Que estas sisas não
entraram, salvo quando, por falecimento d’el-rei D.
Fernando, a rainha D. Leonor com alguns poderosos os
quiseram dar [os reinos] a Castela. E os povos miúdos, como
seus antecessores os gançaram [ganharam] por seu sangue aos
Mouros sem ajuda de Castela, tomaram voz com el-rei D.
João, vosso avô, e o levantaram por rei e senhor, tendo já
Castela grã parte deles. E às despesas da guerra [que] eram
grandes, ordenaram estas sisas, para sua defensão; com
promissão d’el-rei que, acabados os ditos trabalhos, as não
Houvesse aí mais. E os trabalhos acabados e as pazes

437
firmadas, [sucedeu] levar Deus o dito senhor para si e
vosso padre acerca dele [isto é, logo a seguir]. E quando o
infante D. Pedro em vosso nome entrou ao regimento [do
reino], foi-lhe requerido que, desencarregando as almas de
seu padre e de vosso, e por não obrigar a vossa, as
leixasse. E sua resposta foi que em ele não era tal poder.
[Que aguardássemos] até vós serdes em idade, que o a vós
requerêssemos. E ora, senhor, vemos que todalas terras,
reguengos, lezírias e direitos reais, assi per vosso avô e
padre como por vós, são dados a fidalgos — que vos não
ficou senão estas sisas, que levais em grande vossa
obrigação e contra vontade de vossos povos. E ainda: os
fidalgos do que têm não se hão por contentes; e destas
sisas, que vossas não são, pedem tenças e casamentos; e
tantos e tão sem ordem lhes são dados que nos maravilhamos
por que vos suportais. O que a vosso povo faz mui grande
dano, porquanto, por esta causa, amiúde lhe lançais
pedidos. E de tudo fazeis muitas despesas escusadouras, em
grande destruição da terra. Pede-vos o povo, corno a
príncipe católico, que queirais pôr Deus ante vós e, por
aliviardes as almas dos reis vosso avô e padre das penas
que por isto podem padecer, e assi a vossa, as queirais [às
sisas] de todo tirar. E, não vos prazendo, por dardes algum
remédio e aliviamento a vosso povo, vos praza quererdes em
elas dar esta ordem, a qual declaramos em esta maneira:
[...]». (A maneira está no capítulo a seguir, o 27.)
A isto D. Afonso V, visivelmente agastado, disse:
«Responde el-rei que ele leva as sisas bem e directamente,
com boa consciência. E que se espanta [por] por vós ser tal
tocado. Que bem sabeis que o reino e sua fazenda, assi por
criação e casamentos de nossos filhos e por outras
necessidades que sobrevieram ao reino, são em tão grande
abatimento que, se aí sisas não houvesse, ele as devia pôr
de novo [ou seja, tomar a iniciativa de instituí-las].»
Do texto dos povos tiram-se diversas lições:
a) As sisas, enquanto imposto geral permanente, tiveram
começo no reinado de D. João I;
b) Foram inicialmente uma concessão patriótica dos
povos destinada a custear as despesas da guerra de
independência;
c) Os monarcas transformaram-nas, abusivamente, em
direito real, tanto que devem sentir-se culpados perante
Deus, as suas consciências e a nação;
d) A apropriação das sisas favoreceu a prodigalidade
desenfreada da monarquia em benefício dos fidalgos e a
laxidão dela, monarquia, no que toca à administração e
cobrança dos seus antigos direitos feudais.
Estas quatro lições deduzem-se também do capítulo 123
dos povos das Cortes de 1481-1482 (Évora-Viana), em que se
volta a pedir, mas desta vez com muito respeito, que as
sisas sejam abolidas. D. João II, em sua longa e solícita
resposta, declara ter-se instruído histórica e
juridicamente sobre a matéria das sisas — desde quando
foram impostas, de que modo e para que fins. Afirma que já
antes de D. João I os reis D. Afonso IV, D. Pedro e D.
Fernando as lançavam e levavam, «às vezes gerais, outras
horas em certas cousas», e não só para custas de guerras,
como essencialmente para suportamento do estado monárquico
— reis, rainhas e infantes — e manutenção da máquina
administrativa. Emite o parecer de que o povo todo «deve e
é obrigado por direito» a manter e prover o seu rei de tudo
o que lhe for necessário, podendo para tal ser constrangido
pela força, «posto que o rei por sua causa e culpa viesse
em míngua e necessidade». Recorda que para obviar às
despesas suas e do Estado não vê outro recurso melhor e
mais equitativo do que o das sisas — como, aliás, os outros
«reis comarcãos» também não vêem. Lembra que «esta cousa
vem já de tanto tempo» que se pode considerar de facto um
costume adquirido. E finalmente adverte: os «povos não são
em isto agravados e a necessidade que [ele, monarca] tem o
escusa do carrego [de consciência] que acerca disto alguém
lhe queira» imputar — imputação que, evidentemente, «será
sem causa e contra razão e direito». Enfim, simulando
deferência e atenção especial para com os povos, D. João II
indefere o pedido de abolir as sisas e fá-lo de modo
definitivo. Sem subterfúgios nem evasivas. Encara o
problema de frente e, em 700 palavras, limpa a memória dos
antecessores, destrói o fantasma da «consciência
encarregada», esconjura a ideia da imoralidade do imposto e
funda de modo categórico e pragmático a inelutabilidade
desse mecanismo fiscal. Até hoje. É o imposto que vigora
sobre as transacções.
A história deste imposto no nosso período é realmente
aquela que os povos contaram em 1459 e em 1481-1482. A que
D. João II proferiu não é verídica. Com efeito, não consta
que antes de D. Fernando as sisas tivessem sido levadas
pelos reis. Com D. Fernando foram-no. E para fins

438
militares. Mas por concessão excepcional dos povos,
outorgada provavelmente em cortes, e por um período
limitado — três anos. De resto, não eram sisas gerais nem
respeitavam às classes privilegiadas. As sisas, enquanto
imposto geral e permanente, são criatura de D. João I.
Gerada por patriotismo. Criatura que, ao contrário do que
diziam os concelhos no seu discurso de 1459, não nasceu na
revolução de 1383-1385, mas mais tarde, em 1387, e sem
ligação qualquer com o povo miúdo, revolucionário. Aliás, a
criatura, ao nascer, não denotava personalidade distinta:
era tal e qual como a do reinado fernandino. Só que
cresceu, perdurou, tornou-se adulta e ficou. A história é
assim:
Em 1387 D. João I casou no Porto e aí fez cortes de
três dias, tudo numa quinzena, que a guerra ao lado do
sogro esperava-o em Trás-os-Montes. Nessas cortes
manifestou a necessidade de dinheiro tanto para as despesas
bélicas como para dar casa à mulher. Esse dinheiro havia de
vir dos clérigos e dos povos. Da nobreza não, que essa dava
o corpo e a vida nos campos da honra. O modo de se
conseguir o dinheiro ficava, portanto, ao cuidado daqueles
dois estados do reino. Os quais, acabadas as breves Cortes
do Porto, vão reunir em Coimbra com a rainha e altos
funcionários régios numa assembleia ad hoc, logo a seguir.
Nessa assembleia — que tem sido vista erradamente como
Cortes de Coimbra de 1387 — foi decidido outorgar ao rei
«sisas gerais», ou seja, o imposto municipal que incidia
sobre compras e vendas de «todas as cousas», fosse qual
fosse o comprador ou vendedor. É claro que uma decisão
deste género, se bem que dissesse respeito principalmente
aos concelhos, interessava a toda a sociedade, fidalgos
incluídos. E os fidalgos não foram escutados. Por esta
razão, e também porque o montante a arrecadar, calculado
por alto, se revelou insuficiente, houve necessidade de
reunir cortes outra vez nesse ano, com urgência. Foi o que
se fez. Em Braga, no mês de Novembro. E então aí, sim,
todos os estados presentes, as sisas são aprovadas, gerais
e a dobrar. Por consentimento unânime. E D. João I aprendeu
a ver aí, na generosidade do País e na árvore das sisas, um
recurso contra a penúria das suas finanças. Vai ser assim:
1389 (Lisboa) — obtenção das talhas, sisas e pedidos;
1390 (Coimbra) — outra vez as sisas;
1394 (Coimbra) — idem;
1398 (Coimbra) — pedidos e sisas;
1401 (Guimarães) — referencia-se num capítulo de Lisboa
que as sisas se arrecadavam para o rei.
É de crer que a transformação do imposto das sisas de
extraordinário em permanente se tenha verificado por
inércia, como efeito das necessidades da guerra. Os povos o
disseram, como vimos, em 1459, interpretando, sem dúvida, o
outorgamento contínuo desde 1387. Outorgamento realizado em
cortes até 1398. Depois disso não conhecemos mais nenhuma
referência a concessões, ao passo que verificamos notícias
da ininterrupta recolha desse imposto para as necessidades
do Estado. Os capítulos 24 a 31 inclusive dos gerais dos
povos de 1394 (Coimbra), oito ao todo, dão-nos conta de que
a máquina encarregada desse tributo está bem oleada e
funciona zelosamente. Tanto que os concelhos querem pôr-lhe
travão. Por exemplo, pedem que sejam abolidos os juízes
privativos que ela comporta — afinal usurpadores das
atribuições dos juízes concelhios, sob cuja alçada andava
tradicionalmente a matéria. «Indeferido», sentencia o rei.
Que não haja sisas, outro exemplo, nem se metam os
siseiros, funcionários delas, em casos de empréstimos,
nomeadamente quando a coisa, por descaminho ou estragação,
é restituída em dinheiro. «Non innovanchim, sigam-se os
regimentos», responde o rei. Siseiros, juízes próprios,
regulamentos — a máquina está inventada. Em 1398 (Porto),
os povos voltam à carga contra aqueles juízes (cap. 1):
indeferido outra vez. Em 1398 (Coimbra) estabeleceram-se
ordenações e artigos para morigerar a função dos siseiros —
de certo com a concordância dos concelhos, pois exigem, em
1400 (Coimbra), no capítulo 5, que esses artigos e
ordenações sejam cumpridos à letra. Em 1410 (Lisboa),
volta-se ao assunto (caps. 3, 4 e 5), dando-se a entender
que o imposto é geral, peimanente e aceite — só se
criticando o excessivo zelo dos funcionários. Aliás, nestas
mesmas cortes, capítulo 21 dos concelhos, dá-se o assunto
como arrumado: concorda-se que haja juízes das sisas,
desejando-se tão-só que eles sejam eleitos também pelos
vereadores das câmaras municipais e «todos os anos». E dado
isto, «todos os anos», não faz falta procurar mais. Diga-se
apenas que a primeira contestação popular contra o imposto
data de 1433 e incide somente na sisa dos vinhos. D. Duarte
indefere, argumentando quase nos mesmos termos que irá

439
utilizar o neto. D. João II. O que é, no mínimo,
assinalável. Veja-se o capítulo 51 das cortes celebradas
nesse ano em Leiria e Santarém.
Do exposto pode-se concluir o seguinte: o tributo geral
e permanente das sisas foi instituído informalmente, por
inércia ditada pelas circunstâncias da guerra, na década 90
do século XIV. Há 600 anos, precisamente. Foi criatura de
D. João I. da penúria financeira, da generosidade da Nação
e do sentido de patriotismo dos povos.
Sobre outros impostos gerais, como as dízimas,
quantitativos percentuais hipotéticos na massa das receitas
do Estado, agentes fiscais administrativos e judiciários,
divisão do território em circunscrições próprias para gerir
a fiscalidade, sedes dessas circunscrições e aplicação dos
dinheiros auferidos (tanto destes impostos como dos
extraordinários, pedidos e empréstimos públicos) — o leitor
poderá consultar obras recentes, sólidas e acessíveis (10).

OS MECANISMOS DO PODER: A DIPLOMACIA E A GUERRA

A diplomacia, a guerra e o comércio são as três formas


pelas quais o Poder se relaciona com o exterior. A primeira
é pacífica, releva do jogo e é tida como expressão
sublimada da agressividade. É negócio — e como tal tem
parentesco com o comércio externo. Só que o comércio visa a
riqueza e a diplomacia visa a segurança e o prestígio. A
guerra é a crueza da força ao serviço do prestígio, da
segurança, da ambição e da riqueza. No período do nosso
estudo assiste-se à valorização dos modos diplomáticos no
relacionamento internacional. Isso deveu-se, sem dúvida, à
experiência europeia da Guerra dos Cem Anos, ao Cisma do
Ocidente e, causa-efeito, à afirmação dos Estados
nacionais, com o correlativo abandono da filosofia política
do feudalismo. O qual abandono é notório nas novas teorias
sobre a guerra justa e na nova mentalidade sobre a
mercancia, o dinheiro e os juros; por exemplo.
Na primeira parte deste capítulo vimos desfilar
tratados, alianças, casamentos e embaixadas. Eram os
instrumentos pacíficos do foreign politics da época. Não
vamos aqui repetir o que já se viu. Mas, fiéis ao objectivo
deste subcapítulo, tentar descobrir «memoráveis
realizações», agora no campo da diplomacia e na vertente da
afirmação do Estado.
Encarando assim as coisas, não descobrimos grandes
realizações antes da dinastia de Avis. É certo, houve o
Tratado de Tagilde de 1373 e o de Estremoz de 1380, que se
têm por antecessores do de Windsor e da secular aliança
inglesa. Pois. Mas o de Windsor é de 1386 e aqueles dois,
se não fosse este, provavelmente só seriam recordados por
alguns eruditos especializados nos azares de D. Fernando.
Durante a dinastia afonsina, o quadro das relações
diplomáticas confina-se praticamente à Península Ibérica
(11). Com D. Afonso IV e D. Pedro I reina um clima geral de
bom entendimento com Aragão e Castela — realizando-se
tratados de aliança e não agressão e casamentos que
estreitam amizades recíprocas. Serão querelas internas
castelhanas que vão desfazer a boa harmonia — nomeadamente
a luta dos Trastâmaras pela conquista do Poder, a qual
culminará no assassínio de Pedro I e no acesso ao trono de
Henrique II. Esses episódios arrastarão a Espanha para a
Guerra dos Cem anos, com incursões de franceses e ingleses
entre 1363 e 1367. Pedro I de Castela havia optado pela
aliança com a Inglaterra, ao contrário do seu meio-irmão,
rival, assassino e sucessor, que optou pela França. Com o
êxito dos Trastâmaras, a política de alianças dos reinos
peninsulares com a Europa vai ficar definida para longos
anos: Castela, pró-francesa; Portugal, pró-inglês. Aragão
oscilará. No fundo, o que se passa é a busca da hegemonia
peninsular por cada um desses três Estados. E nessa busca,
se bem que Portugal e Aragão acalentem desígnios, Castela
acaricia esperanças. Entre nós, dois reis avantajaram-se
nesse sonho, tendo, inclusivamente, pegado em armas para o
concretizar: D. Fernando e D. Afonso V. Vimos como ambos se
saíram da aventura: derrotados e desiludidos. O próprio D.
João II de Portugal, inteligente e moderno, não desdenhou a
ideia da supremacia peninsular, só diferindo do pai nos
modos. Já rei, e recordando uma proposta de casamento do
progenitor com Isabel, a futura «rainha católica», opinava
que se deveria ter aproveitado por todas as formas essa
hipótese; que o pai deveria ter casado com Isabel e casá-lo
a ele com Joana, a Beltraneja, as duas herdeiras possíveis
do trono de Castela, e assim, «de uma maneira ou outra,
foram de Espanha pacíficos reis e senhores» (Rui de Pina,
Crónica de D. Afonso V, cap. 173). A união ibérica pela

440
diplomacia hábil dos casamentos régios, e não pelo poderio
das armas. Portugal querer sujeitar Castela pelas armas era
imaginar-se David contra Golias, sem direito a esperar
milagre; ao contrário, defender-se de arremetidas
castelhanas imperialistas, isso sim, legitimava a esperança
do prodígio — o qual se viu ocorrer nos campos de
Aljubarrota, acreditou-se e escreveu-se.
Os desaires de D. Fernando nas três guerras que
conduziu contra o vizinho castelhano tiveram por efeito
duas coisas: a invenção de um inimigo designado dos
Portugueses e o estreitamento de laços de amizade para além
do mapa peninsular. E daí uma terceira: a projecção dos
desejos expansionistas portugueses na África e no mar. Tudo
isso foi extremamente importante para Portugal, os
Portugueses e a sua história. Do inimigo ao lado veio a
vontade de coesão nacionalista, patriótica e cultural; dos
aliados europeus, designadamente da Inglaterra, decorreu a
abertura à Europa; e da expansão ultramarina nasceu a
vocação universalista, o império e a experiência dos
mundos. Todos esses efeitos pesam sobre nós como traços
personalizantes, distintivos e quase determinantes da nossa
maneira de ser e de pensar o futuro. A nossa identidade de
povo fazedor de história. Definida e afirmada nos séculos
XIV e XV.
Com a dinastia de Avis, o quadro das relações
diplomáticas normais de Portugal extravasa largamente da
Península Ibérica. No reinado de D. Duarte (1433-1438)
contam-se como amigos e oficialmente relacionados Estados e
senhorios da Europa quase toda. E em 1471 é a Europa
inteira e o Norte de África (v. mapa da página 444). Com D.
João II as boas relações portuguesas chegarão a reinos da
África Negra, ao império do rei do Congo, caso notável e
extremamente precoce. Portugal é Estado parceiro e
respeitado. Tem assento no concerto das nações. Onde a
breve trecho haverá de ditar rumos.
Quanto à guerra, que realizações dignas de nota? As
muito sabidas de todos: a da independência, com as célebres
vitórias dos Atoleiros, Trancoso, Aljubarrota e Valverde; a
do Norte de África, com as conquistas de Ceuta, Alcácer
Ceguer, Arzila e Tânger; a da sucessão de Castela
(1475-1479), com essa singular vitória-derrota de Toro.
Depois as vitórias no mar, da armada, como em Mitilene
(1455); ou das caravelas guarnecidas de bombardas, na volta
da Mina. Derrotas em mar e terra também as houve,
evidentemente: em Saltes (1381); as três guerras de D.
Fernando (1369-1371, 1372-1373 e 1381-1382); o «desastre»
de Tânger (1437); e a guerra de D. Afonso V (1475-1479). Só
que as «nossas» derrotas não são feitos memoráveis.
Memoráveis são as vitórias. E uma por todas: Aljubarrota
(1385).
No que toca à organização militar — e é aqui que se
torna possível detectar os progressos do Estado —, houve
inovações importantes no período do nosso estudo. Por
exemplo, a constituição de um corpo nacional de besteiros,
tropas permanentes, dependentes não já de senhores ou
concelhos, mas do rei, através de oficiais específicos
regionais, subordinados todos a um anadel-mor. Os besteiros
eram tropas de elite, sujeitas a treino contínuo, que
combatiam com uma arma de tiro à distância extremamente
mortífera e certeira sendo bem manobrada — a besta. Não são
guerreiros de epopeias, da luta corpo a corpo e da morte
com endereço e remetente. Quer dizer, não são cavaleiros
nem peões feudais, esses que vinham das batalhas sabedores
de quem matou quem. Não; os besteiros matavam e morriam no
anonimato, à distância. Como os operadores das bombardas. A
guerra dos séculos XIV e XV, a dos Cem Anos é exemplo,
desmereceu dos heróis individuais. Agora os heróis são os
chefes, e só eles. O braço do guerreiro possante e
destemido cede lugar à inteligência fria das estratégias e
das tácticas. É ver Aljubarrota que a arqueologia
desenterrou: quão diferente da Aljubarrota cronística! E,
com efeito: à crónica compete perpetuar a bravura e o
milagre; a nós compete ver o sangue, o lodo, o medo, o
ardil e a traição. Tudo anónimo e humano, excessivamente
humano. Que tais são as guerras todas. Pois bem: os
besteiros, tão eficazes quanto esquecidos e relutados — e
como eles os archeiros —, são o símbolo perfeito da
guerrafmatar sem saber quem, irresponsavelmente,
consciência tranquila, dever cumprido. Entre eles não há um
herói. Quando muito, um louvor público ao «soldado
desconhecido». Mas isto é dos nossos dias. Quanto mais
anonimamente se mata, tanto mais a guerra é moderna e os
capitães colhem lucros. Onde iam os tempos de Aquiles,
Heitor, Rolando, Cid, o Campeador, e de todos esses que os
poetas cantaram, pormenorizando seus gestos e suas vítimas!
Heroísmos... Nuno Álvares Pereira? D. João I? Não. Estes
foram estrategos. Jogadores de xadrez. Eficacíssimos
capitães. Recordem-se e louvem-se — se se entender
louvá-los. Mas saiba-se que Nuno Álvares e D. João I

441
resumem o heroísmo de muitos besteiros, frecheiros,
bombardeiros e carreadores anónimos, mesteirais dessas
cidades e vilas. Que o tempo dos cavaleiros garbosos,
lidadores individualizados contra individualizados
lidadores, tinha ficado para trás. Agora, nos séculos XIV e
XV, figuravam sublimados nos romances de cavalaria.
Romântica recordação. Que os novíssimos heróis, imaginando,
encarnam. E riem (Crónica de D. João I, vol. II, cap. 76).
Serve o exposto para dizer que a guerra dos finais da
Idade Média mudou muito. «Guerra defensiva, guerra de usura
que não acaba mais» (B. Guené, 1971, p. 206). As batalhas
campais, cavaleiros contra cavaleiros, decisivas,
terminaram. Nem Aljubarrota, campal e real, teve lances
epopeicos. Estudo do terreno, preparação do campo,
combatentes pé-terra — é a nova arte. E mesmo assim quando
acontece haver batalhas. «Onde aqui notai que este Nun
Alvares foi o primeiro que, da memória dos homens até este
tempo, pôs batalha pé-terra em Portugal e a venceu»
(Crónica de D. João I, vol. I, cap. 95). Necessidade de
infantaria, portanto, peões, besteiros, artilheiros,
frecheiros e carreadores. Ainda, claro, cavaleiros: mas
para entradas, razias, escaramuças, surtidas, «inculcas»,
cavalgadas de destruição e pilhagem. Guerra defensiva, as
torres e os muros são os grandes protagonistas; e, para seu
ataque, escaladores, engenhos, muita paciência e trens. E
ver como uma peste milagrosa se transforma em anjo de
sitiados — no cerco de Lisboa de 1384, por exemplo. E é ver
o afã de D. Fernando em amuralhar as cidades e as vilas.
Infantaria, artilharia, assédios e ocupação — guerra
cara. Que competia ao poder central gerir e subvencionar.
Por consequência, impostos e mais impostos — sisas,
pedidos, dízimas e empréstimos públicos. O dinheiro era a
real mola da guerra, diziam os cronistas do século XV. Mais
barato ficava resolver os diferendos diplomaticamente.
De modo que nos séculos XIV e XV as cortes, os
conselhos, a administração judicial, os mecanismos fiscais,
a diplomacia e a guerra afirmam-se e impõem-se como uma
necessidade dos tempos. Do poder político em mutação. Tudo
isso será, em correlação sistemática, causa-efeito da
centralização das monarquias. Que volvem Estados modernos.

Centralização política e «com-sentimento» nacional

Quando se chega a 1385, Portugal é país maduro.


Independente de Leão e Castela há mais de 200 anos, nove
reinados já vividos, fronteiras praticamente definitivas
desde 1297, língua própria, estruturas políticas e
administrativas e sociais confirmadas, rumos económicos
definidos, rede escolar update, alianças diplomáticas
internacionais escolhidas, consciência nacional existente,
enfim, Portugal é País e é Nação. Tanto que hoje se orgulha
de ser, superadas todas as tentações colonialistas e
regressado às suas fronteiras continentais de 1297 — quase
as mesmas —, o país mais antigo da Europa em termos
geográfico-políticos e étnico-culturais. No seu peregrinar
pelo mundo — mundo que em grande medida desvendou —, erigiu
marcos de civilização que aí ficam definitivamente na
história: Brasil, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe,
Cabo Verde, Guiné-Bissau. Timor?
Em 1385, portanto, Portugal é País e é Nação. Maduro.
Maduro, ma non tropo, que o processo de personalização
está, como vimos, em curso. Aliás, nunca haverá de parar,
tal como sucede à gente. Que um organismo político é
contínua adaptação aos avatares da história.

O REI
De todas as estruturas políticas portuguesas do período
do nosso estudo, o rei foi a mais importante. Porque rei,
com efeito, foi uma estrutura. Iam longe os tempos em que o
monarca era visto como um senhor entre senhores, um priínus
interpores no círculo dos nobres, um «primeiro» pela
riqueza patrimonial e cópia de vassalos. Desde Afonso III,
rei de 1248 a 1279, esses tempos esgotaram-se. Por efeito
da influência de legistas imbuídos de direito romano,
aprendido em Bolonha, onde o próprio Afonso III fora conde,
e devido também a um maior empenhamento administrativo,
concluída que estava a Reconquista cristã do Sul do País.
Iniciava-se a transformação do reino em Estado. Que
prosseguirá com D. Dinis, D. Afonso IV, D. Pedro I, D.
Fernando. Para isso contribuíram diversas medidas fiscais,

442
administrativas, militares, legislativas e judiciais — em
que se destacam as inquirições e confirmações gerais, a
continuação de outorga de forais a cidades e vilas, a
criação do corpo nacional de besteiros, a instituição dos
tabeliães régios, a criação dos corregedores das comarcas e
dos juízes de fora, a organização dos tribunais de última
instância, a transformação da cúria régia em cortes ou
parlamento, as leis de desamortização tendentes a evitar a
concentração descontrolada de bens fundiários na posse da
Igreja, a nacionalização das ordens militares, a imposição
do beneplácito régio sobre rescritos papais e do mestre de
Rodes, etc. — tudo o que analisámos acima e muito mais que,
por brevidade, não podemos analisar. Enfim, quando se chega
à dinastia de Avis, pode dizer-se que o reino de Portugal,
incluído o Algarve, é um Estado. Porque realmente preenche
as condições exigidas para assim ser considerado — essas
que no princípio deste subcapítulo enunciámos, seguindo a
doutrina de Joseph Strayer. A saber; é uma unidade política
já secular e dotada de fronteiras geográficas
estabilizadas; possui instituições permanentes e
impessoais; e é habitado por uma população que julga
necessária uma autoridade suprema, à qual aceita ligar-se
por vínculos de lealdade. Fale-se, pois, à vontade de
Portugal-País, Portugal-Nação, Portugal-Estado.
Portugal-Pátria está na forja, quase pronto.
De modo que em 1385 rei é estrutura do Estado. Estado a
iniciar percurso, sem dúvida, estrutura in fieri,
certamente — mas existem. Competirá a D. João I, a D.
Duarte, ao infante D. Pedro e a D. João II incrementá-lo e
fortalecê-lo. O que haverá de ser conseguido. E haverá de
ser conseguido pari passu com a apropriação por aquela
estrutura, o rei, de todos os poderes da soberania:
legislar, julgar, executar leis e políticas, lançar
impostos directos e indirectos, decidir da guerra e da paz,
conduzir tratados e alianças com estrangeiros. Tudo isso em
exclusivo. D. João II, decidido incrementador do processo,
haverá de dizer: «Eu sou a própria lei.» Afirmação que
prepara o caminho para essoutra radical e definitiva:
«L’état c’est moi.» Que prepara o caminho, dissemos. O que
equivale a exprimir que entre 1385 e 1495 o Estado
adolescente tornou-se adulto e a estrutura-rei que se
achava in fieri tendeu para o acabamento.
Mas, mesmo no século XV, apesar dos esforços cesaristas
teóricos e práticos, outras estruturas políticas
coexistirão com o rei, discutindo territórios e súbditos,
exercendo sobre eles jurisdição de mero e misto império;
enfim, dividindo a autoridade e dispersando as obediências
directas. Civis, note-se. Restos de feudalidade.
Essas estruturas concorrentes e feudais são bem
conhecidas: os senhorios laicos e eclesiásticos; e os
municípios. Melhor: concorrentes, os senhorios e os
municípios; feudais, só os primeiros.

OS SENHORIOS LAICOS

Os senhorios laicos vinham de longe, dos tempos


anteriores à «fundação da nacionalidade», e enxameavam o
Norte, no Entre Douro e Minho, aí onde as inúmeras
linhagens buscavam os troncos. É por isso que, vimo-lo no
segundo capítulo deste ensaio, o Norte será sempre
nobiliárquico, rural, conservador e escassamente
municipalizado — apesar do Porto, cidade emblemática das
virtudes burguesas e excelências autárquicas, onde os
fidalgos e os abades bentos não podiam ter casa nem ficar
de hospedagem por mais de três dias consecutivos. O Sul foi
diferente. Urbano e concelhio, ergo parlamentar. Nele houve
senhores, com certeza. Eclesiásticos e laicos. Mas
implantaram-se aí por modo de prémio e para efeito de
defesa da Reconquista, sobre comunidades já constituídas e
organizadas ou a constituírem-se e a organizarem-se aquando
eles, senhores. Ademais, a maioria dos senhorios do Sul foi
de ordens militares, mentalidades distintas das dos nobres
terratenentes agarrados ao solar. No Sul houve doação e
transplante; no Norte houve herança avoengueira e fonte
nobiliária. Grande diferença: a que vai da acomodação à
imposição. Por isso, o Norte, incluindo Trás-os-Montes,
onde os senhores impunham, teve poucos deputados em cortes;
ao contrário, o Sul, onde os senhores houveram de
adaptar-se, porque adventícios, dominou numericamente no
panorama popular do Parlamento. E advirta-se o propósito do
caso: as cortes foram, dissemo-lo atrás, o areópago dos
municípios. O Centro do País, ou seja, o território que vai
desde o Douro até ao Tejo, comungou de características do
Norte misturadas com as do Sul, Estremadura mais para

443
aquele, Beiras em equilíbrio. O Algarve, reino à parte. Sul
obviamente, foi, no século XV, urbano, municipal,
parlamentar e simpatizante de nobres.
Tira-se do exposto que senhorios laicos, ou enclaves
territoriais de fidalgos, foram muitos no período do nosso
estudo, desde um extremo ao outro do País. Mas não
detiveram todos o mesmo estatuto jurídico-político. Uns
eram isentos do poder régio, possuídos de juro e herdade,
com mero e misto império; outros eram concessões
vitalícias, só com jurisdição cível ou com as duas
jurisdições. Os primeiros passavam de pais a filhos e de
reinado a reinado, sendo os reis obrigados a mantê-los
inalterados mediante juramento que prestavam quando subiam
ao trono — isto até D. João II que se recusou a jurar e
obrigou todos os titulares de senhorios a prestarem-lhe
vassalagem, como se fossem alcaides amovíveis. Os segundos,
isto é, os senhores de jurisdições vitalícias, não podiam
legar os títulos aos herdeiros, assim como não continuavam
automaticamente com eles de reinado para reinado. Certo que
os reis neófitos, por piedade para com os antecessores,
geralmente os confirmavam e, não havendo motivo grave,
permitiam a sucessão hereditária neles. Tal como sucedia
com os ofícios, os quais se multiplicaram à medida que o
Estado se foi estruturando, advindo daí aos fidalgos novas
fontes de poder, se bem que poder monarquicamente
controlado. Dessa feita, todos os senhorios jurisdicionais
tenderam para perpétuos, havendo apenas dois modos de
fazê-los regressar efectivamente à coroa: a aplicação da
Lei Mental (publicado em 1434) e a expropriação por crime
de heresia ou traição judicialmente sentenciado. Ambos os
modos foram utilizados.
Nas terras de jurisdição privada, nomeadamente onde a
jurisdição era de mero e misto império, o poder régio —
fiscal, militar e judicial — foi diminuto até D. João II.
Que é como quem diz, o Estado foi quase nulo aí. Os
corregedores, anadéis e almoxarifes não tinham alçada
nessas terras. Mesmo os juízes ordinários concelhios, a
quem competia prender os criminosos foragidos e fazer
seguir os apelos e agravos, eram habitualmente impedidos de
exercer essas funções. Até os mandatos e acórdãos dos
desembargadores eram cassados e censurados. E de nada
valeram resoluções de cortes em contrário no tempo de D.
Afonso V (1448-1481). Os senhores, os textos parlamentares
no-lo dizem, chegaram ao cúmulo de lançar sobre os
moradores seus súbditos impostos camuflados de empréstimos
graciosos espontâneos e de exigir que os gritos de apelido
fossem proferidos em seus nomes, substituindo o obrigatório
«aqui d’el-rei». Quer dizer, a soberania régia em tais
senhorios passou habitualmente por nenhuma. Ou seja, o
poder político, por isso que fundamentalmente se traduzia
na administração da justiça e da fiscalidade, andava
erradio da coroa onde quer que as terras fossem isentas,
mesmo que os senhores se limitassem a governar sem abusos.
O que, segundo os textos das cortes, nunca realmente
sucedeu.
De modo que os senhores laicos dotados de jurisdição
cível e crime, estrutura sociopolítica característica do
Estado, constituíram verdadeiros enclaves de poder,
paralelos ao rei e concorrentes dele. Até D. João II.

OS SENHORIOS ECLESIÁSTICOS

Com os senhorios eclesiásticos o panorama foi


diferente. Para pior. Por causa da confusão poder
religioso/poder civil. Uma confusão procurada pelos bispos,
abades, priores e mestres, muito naturalmente, efeito de
educação, atitude mental. Estranho seria que tal não
sucedesse. Os abusos que se lhes apontam são os mesmos que
se apontavam aos laicos, de quem, aliás, são parentes, mas
com a nota agravante de fulminarem os súbditos
desobedientes e suas terras, assim como oficiais régios ou
concelhios demasiado zelosos, com excomunhões e interditos.
Donde se seguia esta coisa paradoxal e cínica: cominar uma
pena religiosa por motivos profanos contra homens do rei
que agiam em nome dele, rei; e exigir que o monarca, pois
que era católico, castigasse com o braço secular aqueles
cujo crime era serem-lhe dedicados. Claro que os reis não
cediam cegamente à exigência. D. Duarte, por exemplo, foi
peremptório: já que os prelados eram tão lestos em recorrer
ao braço secular como braço justiçoso, começassem eles
primeiro por cumprir as leis cuja desobediência esse braço
punia. Salomónica a decisão. Que nem por isso serviu de
escarmenta. E porque não serviu, as excomunhões foram
caindo em impunidade civil e descrédito social, na razão
directa da sua frequência. De modo que essa arma privativa
dos senhores eclesiásticos, à força de ser brandida como

444
instrumento de persuasão política, acabou por envilecer.
Nem mesmo no reinado do católico Afonso V recuperou o seu
antigo impacte.
Disse-se que os senhorios privados, laicos e
eclesiásticos foram muitos de norte a sul. É verdade.
Médias feitas, pode-se afirmar que somaram territórios mais
extensos do que os pertencentes à coroa. E isso em todo o
País, com excepção da comarca de entre Tejo e Odiana, onde
a propriedade régia ultrapassava a marca dos cinquenta
pontos percentuais. Na comarca de Trás-os-Montes —
registe-se para se ter uma ideia — as terras reguengas não
iriam muito acima dos 25%. Por conseguinte, o poder régio,
apreciado em termos de fruição dominial, era inferior ao da
nobreza e do clero juntos. Todavia, atendendo a que o rei
era um e os outros eram muitos, deverá concluir-se que,
mesmo em matéria de dominação fundiária, ele, rei, foi
sempre primeira figura. Dominando a senhoreação do reino
sem credíveis ameaças. Embora ameaças tenha havido. Ameaças
políticas. É que, não se esqueça o leitor: senhorio de
terras por fidalgos e clérigos significava, no período do
nosso estudo, senhoreação política análoga.
Compreender-se-á então o sentido real do desabafo do
Príncipe Perfeito quando subiu ao trono: sentia-se soberano
apenas das estradas de Portugal.
Os grandes senhorios eclesiásticos que achamos nos
primórdios da dinastia de Avis eram os tradicionais:
bispados, mosteiros e ordens militares. Urbanos e rurais.
Entre os primeiros, Porto e Braga; que D. João I tratará de
obter para a jurisdição da coroa em 1402, com sucesso
relativamente fácil. O Porto, definitivamente; e Braga, até
1472. Dessa feita, todas as cidades medievais portuguesas
passaram a dizer-se do rei até esse ano de 1472. Dos
grandes senhorios monásticos, fundamentalmente rurais,
cite-se Alcobaça, Santa Cruz de Coimbra, Santo Tirso de
Riba de Ave, entre dezenas de outros localizados a norte do
rio Tejo. E das ordens militares, em que sobressaiu a de
Sant’Iago, refira-se que foram beneficiárias de 40% das
terras e rendas de entre Tejo e Odiana, de 19% das da
Estremadura e de 13% das da Beira. Em suma, as grandes
abadias e os quatro mestrados das ordens religiosas
militares constituíram verdadeiros potentados
terratenentes, que nunca deixaram de atrair as atenções dos
monarcas. Por prudência e cupidez.

[Legenda de figura.]
Relações diplomáticas de Portugal no século XV
(extraído de A. H. de Oliveira Marques, Portugal na crise
dos séculos XIV e XV, Lisboa, 1986).

445

E assim foi que os báculos dos abades e os gládios dos


mestres andaram quase sempre em mãos seguras e fiéis,
validos e familiares da monarquia. Nada, pois, de estranhar
que desses potentados nunca tenham nascido perigos graves
para os reis. A sucessão dos titulares era perfeitamente
domesticável. Ao contrário do que sucedia com os senhorios
laicos — os quais só por casamentos com filhos dos reis ou
pela força bruta podiam ser controlados e submetidos. O
primeiro processo foi o mais comum desde João I; e o
segundo, o utilizado, in extremis, por João II.
Os senhores laicos e eclesiásticos constituíram, no
período do nosso estudo, entraves ao poder absoluto do
Estado. Detentores de territórios e súbditos apartados da
jurisdição directa dos monarcas, representaram pequenos
estados dentro da monarquia. Restos de feudalismo que D.
João II, «o homem», se encarregará de «civilizar» segundo
os modos da modernidade. Definitivamente? É interrogação
cuja resposta se remete para outro volume desta história de
Portugal. O III.

OS CONCELHOS

Os concelhos, essoutra estrutura do Poder. Mas poder


mínimo. Com efeito, nos séculos XIV e XV, os concelhos
estão despidos da sua autonomia antiga. Todos eles gravitam
na dependência de alguém: do rei ou de senhorios privados.
E, por conseguinte, sujeitos à fiscalização de funcionários
externos e impostos: corregedores ou ouvidores e seus
oficiais; almoxarifes ou porteiros e mesmo juízes não
eleitos, nomeados de fora; e ainda alcaides-mores estranhos
à autarquia. As antigas liberdades e franquias,
concretizadas na autogestão do terrritório, da economia, da
justiça, da fiscalidade e da milícia, foram pouco a pouco
sendo cerceadas. Desde a aceitação-imposição dos forais até
à apropriação monárquica das sisas, passando pela
instituição dos besteiros do conto, pela publicação da Lei
dos Pelouros, pela multiplicação de juizados especiais,
pelas restrições no lançamento de talhas e fintas, pela
perda de competência administrativa em matéria de obras
públicas militares, pela subtracção de súbditos pagantes e
serventes efectuada por reis e senhores, etc. Enfim, o
poder autárquico resumia-se praticamente a gerir as
almotaçarias e as obras públicas civis, a julgar com alçada
absoluta apenas delitos menores, a elaborar listas de
contribuintes dos pedidos, a vigiar a saúde e ordem
públicas, a administrar os bens camarários e, em muitos que
não todos os concelhos, a levar ao Parlamento queixas,
criticas, sugestões e poucos vetos. E mesmo sobre quase
tudo isso pairava o olhar fiscalizador do almotacé-mor (a
partir de D. Duarte), dos fronteiros gerais e dos ubíquos
corregedores ou ouvidores. Coisa notável, foi nas cortes
que o poder político dos concelhos mais se distinguiu e
realmente se fez afirmar em termos nacionais. Nos lugares,
teve o peso que granjeavam os respectivos grupos
oligárquicos — assinalável em Lisboa, Évora, Porto,
Santarém, por exemplo; e frouxo ou quase nulo em
localidades como Braga. Se bem que, no contexto do terceiro
estado e no seio das comunidades urbanas, as câmaras
detivessem poder e fossem disputadas por grupos rivais —
opostos em razão de parentesco e compadrio, destatu
socioprofissional ou de residência intra e extramuros. E
isso apesar de os titulares dos cargos prestarem serviço
gratuito e de os cofres municipais se acharem cronicamente
vazios. De modo que o poder dos concelhos, jurídica,
militar e economicamente diminuto, de um ponto de vista
estritamente político, mais simbólico do que real, foi
apreciado nas terras e muito importante no País. Graças às
cortes, repita-se, ele funcionou como vontade dos povos,
apoiando e criticando os reis, verberando a nobreza e o
clero. Consciência da Nação. Diga-se, pois, que foi no
Parlamento que o poder colectivo dos concelhos
nacionalmente se afirmou e produziu assinalável efeito
político e social. Paradoxalmente ou não, é à medida que os
monarcas vão interferindo neles, limitando as suas
autonomias, que eles, concelhos, por isso mesmo compelidos
para se solidarizarem entre si, se afirmam como estrutura
política do Estado, fazendo das assembleias representativas
nacionais o seu areópago distintivo. O que se pode
verificar, por exemplo, em 1433, 1439, 1459, 1472-1473,
1477 e 1481-1482, em que os cerca de 80 concelhos
parlamentares conduziram estratégias de terceiro estado,
nitidamente anti-senhoriais, antieclesiás-ticas e até mesmo
anti-régias. Apesar de dependerem jurisdicionalmente da
coroa e de senhorios nobiliárquicos ou eclesiásticos em
partes sensivelmente iguais.

446
Enfim, o poder político dos concelhos nos séculos XIV e
XV, deles enquanto estrutura do Estado, caracterizou-se
fundamentalmente por ser força de denúncia e consciência da
Nação. Por isso teve a consideração dos reis e foi olhado
com receio pela nobreza e clerezia.
E pronto. O exposto dá a ideia da distribuição do Poder
em Portugal nos últimos 160 anos da monarquia feudal. Do
«poder político-formas» e do «poder político-pessoas».
Reis, nobres, cleros e «cidadãos» — as pessoas; monarquia,
senhorialismo e municipalidade — as formas. Atrás ficaram
expressões e mecanismos: jurídicos, judiciais, militares,
diplomáticos, fiscais e sociopolíticos. Uma soma de
memoráveis realizações que desabrocharam em Estado. Nação,
Pátria, Estado — eis aí o grande legado que os portugueses
de Trezentos e Quatrocentos transmitiram ao futuro. Apesar
das fomes, das pestes e das guerras, tristes tempos que
viveram. Gu precisamente por isso?

Os deuses vendem quando dão.


Compra-se a glória com desgraça.
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa!

(Fernando Pessoa, Mensagem)

A cultura

Não vamos tratar de pôr aqui uma história resumida da


cultura em Portugal nos séculos XIV e XV nem, muito menos,
ensaiar um levantamento dos caracteres especificamente
portugueses discerníveis já nessa época — como se diz serem
alguns verificáveis em Fernão Lopes e até no Amadis de
Gaula. O nosso escopo é decididamente mais modesto: dizer
realizações. Algumas das muitas que têm sido memoradas
pelos especialistas da cultura.
«Cultura», como se sabe, é palavra polissémica de mais.
Todo o humano específico, não biologicamente herdado, cabe
nela: ciências, crenças, artes, valores, leis, costumes,
tradições, hábitos; expressões e suportes de tudo isso; e
ainda processos, ambientes e instituições socializantes.
Vasto mundo. Que Peter Worsley (1970, vol. I, p. 29)
resumiu nesta frase rigorosa e chocante: «Os canos de
esgoto são tão culturais como as sinfonias.»
É óbvio que vamos optar por uma noção de cultura muito
mais estreita, não sociológica, humanística e tradicional —
escolas, literatura e arte.
De onde se segue que das nossas considerações o povo
vai ser excluído. E dessa feita, 98% dos portugueses — pois
só iremos à cultura das «elites intelectuais». Ou seja, a
uma reduzidíssima parcela dos 2% restantes. Desde já então
uma pergunta: até que ponto o nosso discurso poderá
reivindicar-se de Portugal e dos Portugueses?
Gostaríamos certamente de trazer ao leitor uma história
da cultura popular — desses 98% ou 99% de homens e mulheres
que nos precederam há 600-500 anos. Mas sobre isso não
podemos dizer nada. As suas filosofia, literatura e música
— tudo oral —, mesmo que chegadas até hoje através do
«folclore», não se vê como defini-las. Lendas, contos,
provérbios e anexins que ainda restam? Como consignar-lhes
a origem e as metamorfoses, tempo a fundo, até há meio
milénio e mais? Tudo o que sabemos dessa gente e dos seus
modos foram outros que disseram, raros «intelectuais»
coevos que puderam aceder à escrita. São prismas. O povo
mesmo é noite para nós. José Mattoso, que se debruçou sobre
esta questão estudando O essencial sobre os provérbios
medievais portugueses (1987), conclui advertindo os
leitores de que a reconstituição da cultura popular a
partir de tal matéria tem mais valor epistemológico do que
real, não correspondendo «a uma descrição da realidade, mas
a uma abstracção» (p. 60).
No que toca à cultura material, acepção etnológica,
poderá haver mais sorte. Só que a arqueologia medieval,
voltada para a pesquisa do quotidiano das populações
urbanas e rurais, está, entre nós, a ensaiar os começos.
Enfim, o povo-cultura do nosso período, que muito
gostaríamos de saber, mantém-se calado. Nem sequer
discernimos como é que falava. Que falas, que discursos,
que expressões dialectais corriam pelas ruas, pelos
caminhos e pelos campos? No Porto, em Lisboa, Évora ou
Faro? Que falar, o do camponês, do pastor, do mesteiral ou
do homem do mar? No Norte, no Sul, no litoral e na serra?

447
Não o sabemos; nem decerto o saberemos nunca. Que os
farrapos que há, nos discursos directos dos textos, são
insuficientes e surdos.
Tem-se ensaiado outro modo de ir até à cultura popular.
Consiste em arrancar do seguinte raciocínio: qualquer que
ela fosse, manifestou-se nas feiras, nas romarias, nos
centros de peregrinação, nos adros das igrejas, nas forjas
e moinhos. Mas isso é discursar sobre ambientes e não sobre
conteúdos. É outra história. Metacrónica, às vezes.
De modo que, caro leitor, falemos de «elites». Escolas,
literatura e arte.

Escolas

Nos séculos XIV e XV houve em Portugal inúmeras


escolas. Todas elas dirigidas por clérigos ou ao modo
clerical. Isso por força de uma tradição ocidental milenar
ou quase. Letrados, isto é, gente que percebia através de
letras, sabendo riscá-las e proferi-las, com isso fixando a
memória dos tempos e mantendo-a domesticada e disponível,
eram os clérigos. Eles foram os herdeiros das gregas musas,
essas que detinham o segredo do passado, a sabedoria do
presente e os verbos no futuro. As musas, assistentes de
poetas e filósofos, passaram o testemunho aos padres.
Porque o Cristianismo, religião do Livro, é interpretação
do passado, leitura do presente e revelação do fim dos
tempos. Tudo hermenêutica da palavra de Deus, Javé, o
Sendo, que só na contemplação, ócio ou scholê — a escola —
se resolve. De modo que o clérigo teve de ser letrado. Ele,
o conservador das verdades e das certezas, orator. Orator,
o que sabe, o que reza e o que diz. Ignorante, analfabeto,
era o leigo. De modo que as letras e os latins, território
dos clérigos, foram mundo reservado a machos. Que é como
quem diz, a cultura intelectual não se compadeceu de
mulheres.
Muito cedo a igreja de Espanha insistiu na criação de
escolas para clérigos: os concílios de Toledo de 527 e 663
e o de Mérida de 666, por exemplo. Escolas em internato,
sob a direcção dos bispos, onde se estudasse Sagrada
Escritura e Cânones. Mais tarde, e não contando com as
iniciativas importantes do «Renascimento Carolíngio», foi a
vez de insistirem no mesmo, agora para toda a cristandade,
os concílios ecuménicos de Latrão, III e IV,
respectivamente celebrados em 1179 e 1215. Por seu turno,
as ordens monásticas, desde a origem, vinham incrementando
idênticas preocupações. E nem era preciso dizer que foi nos
claustros que as letras se refugiaram durante o Período
Bárbaro, preservando da destruição e olvido os monumentos
dos antigos. Não fora a devoção da Igreja pelo livro, a
cultura literária do Ocidente seria muito mais pobre e
recente. No período do nosso estudo, não há reforma
monástica ou religiosa que não passe por atenções ao
ensino. É ver, por exemplo, essa que D. Luís Pires, meados
do século XV, patrocinou nos mosteiros beneditinos do
bispado do Porto através de frei João Álvares. E é ver
também os articulados das constituições sinodais diocesanas
portuguesas no período que nos ocupa. Igreja e cultura
intelectual rimaram sempre. O que não quer dizer,
obviamente, que a rima tenha sido, sem excepções,
«consoante» e «rica».
Podemos estabelecer uma tipologia de escolas para os
séculos XIV e xv em Portugal. Será assim: universidade,
escolas catedrais, escolas capitulares, escolas monásticas,
escolas conventuais, «escolas palacianas», escolas
municipais, escolas paroquiais e escolas «domésticas». Da
existência de tudo isto há provas suficientes. Vamos por
partes.

A UNIVERSIDADE

A Universidade portuguesa foi criada por D. Dinis


provavelmente em 1289 e confirmada pelo papa Nicolau IV em
9 de Agosto do ano seguinte. Num diploma régio, datado de
Leiria de 1 de Março de 1290, chama-se-lhe Generale
Studium, Estudo Geral, nome da época, e assina-se-lhe
Lisboa, «cidade régia», como sede. Esse acto do rei
Lavrador não nasceu de uma decisão sua isolada, antes
correspondeu a um desígnio do clero português. Com efeito,
em 12 de Novembro de 1288 tinha sido enviada a Roma uma
petição nesse sentido, subscrita pelo abade de Alcobaça,
pelos priores de Santa Cruz de Coimbra, S. Vicente de Fora,
Santa Maria de Guimarães e Santa Maria da Alcáçova de
Santarém e por vinte e um reitores de igrejas espalhadas
pelo reino. Estava-se no século das universidades e

448
Portugal não podia ficar atrás. Como não ficou; sendo a
universidade portuguesa uma das mais antigas da Europa.
Entre 1289 e 1484, a Universidade conheceu duas fases;
uma, desde a fundação até 1377, caracterizada por grande
mobilidade geográfica; e outra, desde aí em diante
(concluída em 1537), distinguida pela fixidez em Lisboa. Na
primeira fase, contam-se quatro períodos, correspondentes a
outras tantas migrações, de Lisboa para Coimbra, e
vice-versa. Assim: 1289-1308, Lisboa; 1308-1338, Coimbra;
1338-1354, Lisboa; e 1354-1377, Coimbra. Em 1377, segunda
fase, a instituição regressa a Lisboa, onde permanecerá
durante quase toda a dinastia de Avis, e isso por virtude
de uma promessa feita aos moradores da capital em 3 de
Outubro de 1384 por D. João I, que ainda era «Mestre e
defensor do reino». Não obstante aquelas deslocações, nunca
houve ruptura de continuidade da instituição. Porque a
Universidade, como todas as congéneres europeias, era uma
corporação de pessoas e não um instituto adstrito
necessariamente a uma localidade, sendo os privilégios
concedidos pelos papas e pelos reis gozados em conformidade
com aquele estatuto. Por esta razão, não se deve considerar
a Universidade criada por D. Dinis e confirmada pelo papa
como sendo de Lisboa ou de Coimbra, mas de Portugal
inteiro. Como de Portugal inteiro eram as rendas que lhe
proporcionavam a subsistência, se bem que o Sul
contribuísse mais (Oliveira Marques, 1986, pp. 410-411).
As palavras, latinas, que designavam a instituição
foram Studium, Studium Generale (ou Generale Studium) e
Universitas. A primeira designava a escola onde reuniam
para o seu «trabalho» específico os professores e os
alunos, chamados estes «escolares». A segunda designava,
conforme se lê na 2.ª Partida de Afonso X (tít. 31, Lei
1.ª), a escola em que havia mestres e estudantes dedicados
ao estudo das ciências universais — Gramática, Retórica,
Dialéctica, Geometria, Aritmética, Música e Astronomia (as
sete artes liberais); Direitos (Cânones e Leis), Medicina e
Teologia. A terceira, Universitas, expremia tanto o
conjunto dos estudantes, como a pluralidade deles mais os
mestres. Com o tempo, «Universidade» passou a significar o
mesmo que «Estudo Geral», evoluindo ambas as designações
para a representação das seguintes ideias, tomadas
simultaneamente: a) instituição que acolhia alunos
provenientes de qualquer parte; h) o conjunto das
disciplinas ministradas, ou «faculdades» (podendo existir
todas ou só algumas); c) local onde os professores dessas
disciplinas ensinavam; d) escola capaz de conceder o jus
docendi ou licentia doccndi (a licenciatura) — ubique ou
não, ou seja, em toda a cristandade ou só no País (12). A
capacidade de criar universidades, ainda segundo Afonso X,
competia ao papa, ao imperador e aos reis. Entretanto,
convinha sempre obter a confirmação do papa, pois ele era o
chefe supremo da Cristandade e dos clérigos.
As autoridades universitárias foram entre nós de duas
categorias: a administrativa e a científica. A primeira
contava com um número grande de funcionários, uns dotados
de atribuições económico-financeiras, outros de atribuições
fiscais e outros ainda de atribuições judiciárias. É que a
Universidade e seus espaços, os alunos e os mestres e, bem
assim, o pessoal administrativo gozavam de isenção total a
respeito das autoridades régias e municipais. O número um
da cadeia administrativa era o «conservador» (inicialmente
dois), supremo juiz dentro do Estudo, de cujas sentenças só
era possível apelar para o rei. Depois, por ordem de
importância, o «procurador», o «inquiridor», o «ouvidor», o
«vedor dos feitos», o «bedel», o «escrivão dos feitos» —
todos estes afectos às questões da justiça. E ainda o
«recebedor das rendas» (ou «sacador», ou «provedor»), o
«porteiro», o «tesoureiro», o «almotacé», os «taxadores» e
os «regatões» e «regateiras» privativos — gente ligada à
organização fiscal, económica, financeira e logística.
A administração docente e científica era da
responsabilidade dos «lentes», ou professores, e dos
alunos. Os alunos, porém, faziam-no através de dois
delegados — os «reitores» — eleitos entre os escolares de
Leis e Cânones, um de cada curso. Foram estes reitores
estudantes que se apresentaram nas Cortes de Lisboa de 1439
a solicitar privilégios para os seus colegas e os lentes.
Daí não deve concluir-se, todavia, que eles tivessem
competência para procurar em cortes a Universidade, a qual,
aliás, conforme dissemos noutro estudo, não gozava de
assento parlamentar. Tratou-se, sem dúvida, de uma
delegação ocasional e «oportunista». O procurador da
Universidade junto do rei, sem necessidade de servir-se das
cortes, era o «protector» — também chamado «encarregado» e
«governador» — o qual fechava a pirâmide administrativa da

449
instituição, conciliando a docência e o funcionalismo e o
mundo académico com o «civil». Em geral, o cargo de
protector era atribuído pelos reis a figuras de grande
prestígio e influência. O Doutor João das Regras, o Doutor
Gil Martins, o infante D. Henrique, o infante D. Fernando,
sobrinho e herdeiro do anterior, e o próprio rei D. Afonso
V foram os protectores e governadores conhecidos no nosso
período. Dessa sorte, a Universidade saía prestigiada e os
monarcas tinham mão nela. (Sobre tudo isto. v. Oliveira
Marques, 1986, pp. 408-419.)
A Universidade portuguesa começou com as «faculdades»
das Artes, dos dois Direitos (Cânones e Leis) e com
Medicina (ou Física). Mas as Artes funcionaram incompletas
em seus cursos: só Gramática e Dialéctica (ou Lógica). No
século XV foi introduzida a Música, a Retórica, a
Aritmética, a Geometria e a Astronomia — tudo nas Artes; e
a Filosofia na Medicina. A «faculdade» de Teologia, rainha
das disciplinas, deu entrada ainda no século XIV. De modo
que a Universidade portuguesa do século XV pôde comparar-se
a qualquer outra da Europa coeva. No que diz respeito às
matérias ministradas. Que não quanto à qualidade e
prestígio dos mestres e cursos. Em 1439, por exemplo,
muitos alunos preferiam ir acabar em Bolonha ou Paris ou
Oxford os seus estudos, obtendo lá os graus [caps. da
Universidade requeridos nas Cortes de 1439 (Lisboa)]. Coisa
que os reitores não viam com bons olhos — responsáveis que
eram do nome da escola. D. Pedro, regente eleito,
respondedor dos capítulos, entendeu ao contrário:
deixassem-nos ir, exigindo-se-lhes tão-só uma satisfação
pecuniária à Universidade portuguesa onde haviam iniciado
os estudos. Com D. Afonso V, multiplicam-se as bolsas a
estudantes estrangeirados. E com D. João II, a pedido dos
povos nas Cortes de 1481-1482, capítulo 57, as tenças de
escolares fora do País são abolidas e aplicadas no Estudo
nacional. Mas só na letra.
Um indivíduo que soubesse ler e escrever e pouco mais
podia entrar na Universidade. Passados três anos de
aproveitamento era bacharel, primeiro grau académico
(bacalaureatus, coroado de louros). Mais dois ou quatro
anos, conforme os cursos, era licenciado (detentor de
licencia docendi ubique). Finalmente, outros anos em cima,
sempre mais de dois, era doutor ou mestre. Não se sabe
muito bem a diferença destes dois últimos títulos. Seja
como for, nunca se saía com os graus todos antes de nove
anos cumpridos e aproveitados e de diversas provas
prestadas perante júris numerosos. Um doutor ou mestre
nunca era homem de idade menor. Geralmente, e isto é certo
para a Teologia, atingia o cume na casa dos 30 anos. Se
tudo corresse bem. Sabe-se que em Paris, por exemplo,
nenhum estudante podia entrar na Teologia sem ter o grau de
mestre em Artes. Isto no século XIII Em Portugal não
sabemos bem como era. Mas fosse como fosse, ser escolar já
dava prestígio. E é opinião aceite que a maioria dos
universitários saía da instituição com esse estatuto. Ou
seja, sem nenhum grau académico. Ser licenciado ou doutor
abria as portas do prestígio e do funcionalismo monárquico.
Conseguiram-no clérigos, fidalgos e burgueses.
A Universidade portuguesa, como as da Europa toda, deve
considerar-se como uma memorável realização da Idade Média
corporativa e cristã.

AS ESCOLAS CATEDRAIS

As escolas catedrais, conforme já vimos, são muito


anteriores às universidades e continuaram depois delas.
Aliás, as universidades surgiram na Europa a partir das
escolas catedrais (J. Le Goff, 1957). Que também se
chamavam episcopais. Eram escolas urbanas, adstritas às
sés, dirigidas pelos cónegos dos cabidos e destinadas a
instruir clérigos para a vida pastoral. Por isso,
chamaram-se também escolas capitulares. Em Portugal, todas
as sés as tiveram: Braga, Porto, Lamego, Guarda, Viseu,
Coimbra, Lisboa, Évora e Silves. Nem admira, pois que os
concílios que atrás citámos as impuseram. Nessas escolas
devia-se, em princípio, ministrar as disciplinas do trivium
e do quadrivium, essas que vimos constituir nas
universidades o curso das Artes. É, porém, de prever que os
currículos e planos de estudos variaram em função dos
tempos e dos responsáveis locais, os «mestres-escolas» e
seus superiores, os bispos. Além dessas disciplinas,
ministraram-se ensinamentos rudimentares de Sagrada
Escritura, Espiritualidade, Direito e, porventura,
Medicina. Depois da fundação da Universidade, as escolas
catedralícias entraram em declínio, admitindo-se que
passaram a funcionar como uma espécie de instituições de
ensino preparatórias do Estudo Geral e das escolas

450
franciscanas e dominicanas, muito mais evoluídas. De
qualquer maneira, o mestre-escola, cónego cheio de
prestígio e de dinheiro, continuou pelos tempos fora. Com o
Concílio de Trento (1545-1563), as escolas catedralícias
vão transformar-se nos «seminários», que chegaram quase até
hoje.

ESCOLAS CAPITULARES

Estas escolas são muitas vezes confundidas com as


anteriores. E há razão para isso, pois os planos de estudo,
orientação pedagógica e orgânica interna eram iguais.
Entendemos, porém, que devem distinguir-se. E só porque
funcionaram não já nos cabidos das sés, mas em colegiadas,
as quais às vezes eram mesmo isentas da jurisdição
episcopal. Como a de Nossa Senhora da Oliveira, de
Guimarães. Além desta, houve pelo menos mais cinco no
período do nosso estudo: as de Valença, Barcelos, São
Martinho de Cedofeita (Porto), Ourém e Santa Maria de
Santarém (13). É de crer que em todas funcionaram escolas.

ESCOLAS MONÁSTICAS

Conforme o nome sugere, estas escolas estiveram


adstritas a mosteiros beneditinos ou agostinhos. Também se
chamavam «claustrais». Surgiram muito cedo, quase se
podendo dizer que as beneditinas apareceram com a própria
fundação monástica, e isso porque os meninos oblatos sempre
existiram. Lembre-se do caso de S. Mauro e S. Plácido,
meninos oferecidos a S. Bento, e leia-se o capítulo 59 da
regra, «Dos filhos de nobres ou de pobres que são
oferecidos». As escolas claustrais nasceram para formar
estas crianças na leitura, na escrita, na música e no
cálculo. O livro de texto para estes estudos elementares
era o Saltério, cujos 150 salmos deviam ser aprendidos de
cor. Além disso, podia-se ir mais longe no aprofundamento
dos conhecimentos, nomeadamente da língua latina,
aprendendo-se as etimologias das palavras, gramática e
prosódia. Esporadicamente, e só para monges mais dotados,
facultar-se-iam estudos de Exegese Bíblica, Direito,
Medicina e Farmácia. Isto nos mosteiros mais ricos e
populosos, nesses em que se sabe terem existido obras como
as Origens ou Etimologias de Santo Isidoro de Sevilha, a.
Arte menor de Donato, as Sentenças de Pedro Lombardo, etc.
No período do nosso estudo, os mosteiros beneditinos
achavam-se em grande decadência, havendo perdido o seu
papel cultural relevante ainda testemunhado no século XIII.
De qualquer modo, mesmo decadentes e quase desabitados,
continuavam a sua velha tradição de ministrar estudos. Ao
menos os elementaríssimos. Em Santo Tirso de Riba de Ave,
por exemplo. E, como aí, certamente em Paço de Sousa,
Pombeiro e em muitos outros.
Entretanto, em Alcobaça, o ensino e o estudo nunca
desapareceram, mesmo a nível superior. Aí se ministrou
Gramática e Lógica durante o período que nos interessa; e
Agronomia — ao menos na prática. Alcobaça teve, além disso,
entre os seus monges, mestres e licenciados, formados tanto
na Universidade portuguesa como em estrangeiras. Foi, sem
dúvida, um centro cultural importante — que isso é atestado
ainda pelas obras e traduções dos séculos XIV e XV,
conforme o seu espólio, guardado na Biblioteca Nacional,
patenteia. A escola de Alcobaça aguarda o seu historiador.
Refira-se, finalmente, a escola importante que foi o
Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, certamente a mais
assinalável de todas — pelas suas tradições, pelos seus
mestres, pela sua biblioteca e pelo seascriptorium.
Ministrou-se aí Teologia, Dogmática e Moral, e Medicina.
Análogo a Santa Cruz, se bem que a certa distância, foi o
mosteiro de S. Vicente de Fora, de Lisboa.
Nos séculos XIV e XV, as escolas monásticas e
claustrais, em decadência conforme dissemos, haviam
modificado já, e profundamente, os seus antigos objectivos
pedagógicos. Não já instruir monges para o opus Dei, a
liturgia e a contemplação, mas de preferência formar
clérigos e leigos para a vida das cidades, gramática,
aritmética, medicina e pastoral. Compreende-se assim que as
escolas dos mosteiros rurais praticamente tenham
desaparecido. E que as que se mantiveram, elementaríssimas,
se tenham transformado, na prática, em escolas semelhantes
às paroquiais.

451
ESCOLAS CONVENTUAIS

As escolas conventuais, como o nome diz, existiram nos


conventos das ordens «modernas», as dos mendicantes,
franciscanos e dominicanos; e nos dos Lóios. São institutos
religiosos vocacionalmente muito diferentes das ordens
monásticas antigas, beneditinas, cistercienses (beneditinas
também), dos agostinhos, etc. Desde logo, são casas de
clérigos empenhados na pastoral, na pregação e na defesa da
ortodoxia católica. Clérigos urbanos. Naturalmente, o
ensino ministrado por estes homens reflecte as suas
preocupações e a sua mentalidade — muito distanciadas das
dos monges.
Entre nós, e nos séculos XIV e XV, foram importantes as
escolas dos franciscanos de Lisboa, Coimbra, Santarém,
Porto e ainda Guimarães e Alenquer. Em Lisboa, os
franciscanos ensinavam, a quem quer que se inscrevesse,
Gramática, Filosofia, e Teologia. A partir de 1453 o Estudo
Geral de S. Francisco de Lisboa era equiparado à
Universidade.
Com os dominicanos sucedeu a mesma coisa: escolas
espalhadas por vários centros — Lisboa, Porto, Batalha —,
os mesmos objectivos pedagógicos, idênticos cursos e
currículos, a mesma qualidade docente.
Enfim, os clérigos ilustres dos finais da Idade Média
são, além dos prelados seculares, os religiosos de S.
Francisco e S. Domingos. A preferência dos reis vai agora
para eles e não para os monges. É ver o papel dos
franciscanos no movimento revolucionário de 1383-1385; e é
ver também como os dominicanos são chamados a ser os
guardiões do panteão da dinastia de Avis, na Batalha.
Folheiem-se ainda os sete volumes do Chartularium
universitatis portugalensis: verificar-se-á que os
escolares e graduados religiosos que aí aparecem são na sua
esmagadora maioria clérigos mendicantes.

«ESCOLAS PALACIANAS»

São aquelas que funcionaram nos paços — dos senhores ou


dos reis. Sobre as de senhores, laicos obviamente, se acaso
existiram, desconhecem-se. Eles tinham bibliotecas,
escrivães e letrados ao seu serviço. Escolas formais, não
consta. Mas na corte do rei existiram. Sabemo-lo pelo
capítulo 1.º do povo das Cortes de 1472-1473
(Coimbra-Évora), no passo em que se sugere como devem os
moços fidalgos ser criados no paço d’el-rei: «Não tragam
aios nem azémolas, com cama nem outra maneira de casa;
vossa alteza lhes mande dar de comer em sala e seu vestir e
calçar honesto, sem pano de seda nem outra maneira custosa;
e poderá vossa mercê ordenar-lhes como aprendam a ler e
escrever e gramática — segundo se costumava nos tempos
d’el-rei vosso avô e padre.» Deste passo se segue que no
tempo de D. João I e de D. Duarte os moços da corte tinham
escola própria e viviam em comum, à maneira de colegiais.
Com D. Afonso V insinua-se que não. Todavia, a insinuação
não pode interpretar-se como desleixo do rei em relação ao
ensino e formação cultural dos meninos paçãos. Pelo
contrário, é crítica velada à magnanimidade que ele
mostrava nisso: punha-os na Universidade. Em 1473, por
exemplo, andavam no Estudo de Lisboa 41 moços, filhos de
nobres e funcionários da corte, todos a expensas régias. A
coroa gastou com eles 275 800 reais (14). É contra isto que
os povos se pronunciam. No fundo, dizendo: baste ao rei
ministrar-lhes instrução elementar e barata. E a todos,
tanto aos que são destinados à carreira das letras, como
aos que devem seguir a das armas.
Sobre se D. Afonso V atendeu ou não à sugestão, nada
sabemos. O que sabemos é que continuou a ser pródigo para
com estudantes, no País e no estrangeiro. Em 1481-1482
(Évora-Viana), os povos voltam ao tema no capítulo 57 — que
sejam abolidas as tenças para estudos, os pais dos
estudantes que paguem. D. João II promete fazer como pedem.
Mas sabe-se que continuou a conceder bolsas.

ESCOLAS MUNICIPAIS

Entendemos por escolas municipais «estabelecimentos» de


ensino subsidiados pelas câmaras concelhias. Não há muitas
notícias. Mas é certo terem existido no Porto e em Évora,
destinadas a serem frequentadas pelos «filhos dos bons e

452
quaisquer outros que querem aprender» (15). Tratava-se de
escolas de gramática, ensino elementar, escrita e leitura.
As notícias reportam-se aos meados do século XV.

ESCOLAS PAROQUIAIS

Há poucos conhecimentos sobre estas escolas. Mas


sabe-se que existiram desde longa data. Exemplo disso é o
testamento de D. Silvestre Godinho, arcebispo de Braga, em
que o signatário afirma ter recebido instrução durante anos
e aprendido o Saltério na igreja paroquial de São Paio de
Pousada, daquela arquidiocese. O testamento é de 1244.
Estas escolas, longínquas antecessoras das primárias
actuais, deviam ser muito elementares e dependentes do zelo
pastoral dos párocos. Nelas se ensinaria a leitura, não
sendo líquido que se ensinasse a escrita. E deviam ser
subsidiárias das necessidades litúrgicas e catequéticas
paroquiais. Como quer que fosse, devem ser olhadas como
venerandas «instituições». Venerandas pela sua função
benemérita no mundo rural e pela sua longuíssima
persistência na história: os «padres-mestres» chegaram, em
Portugal, ao século XX.

ENSINO DOMÉSTICO

Chame-se assim ao ensino ministrado a título privado,


ou seja, por indivíduos desinseridos de casas religiosas e
de instituições, clérigos, geralmente, os quais aceitavam
ensinar a troco de dinheiro. Esta espécie de ensino está
bem documentada no século XV. O capítulo 86 dos gerais do
povo de 1433 refere-se-lhe acidentalmente, como caso
corrente de citações abusivas de leigos aos tribunais
eclesiásticos. Assim: «Senhor, a vossa jurisdição é
usurpada per esta guisa: se algum leigo dá a ensinar algum
filho a clérigo e lhe não paga o ensino, [o clérigo] cita-o
perante o juiz eclesiástico.» Cremos que este texto é muito
elucidativo. Com efeito, requer-se que o rei proíba os
juízes eclesiásticos de se apropriarem de feitos que
pertenciam à jurisdição secular. Para fundar a justeza do
requerimento dá-se um caso, um facto motivador — como é
habitual na retórica dos capítulos de cortes. E, entre
todos os casos possíveis suficientemente apelativos — que
eram muitos —, foi-se buscar esse: o do ensino privado e
«doméstico». Ora, a escolha implica o seguinte: que esse
tipo de ensino contratuado privadamente era coisa vulgar e
notória. Nas cidades e vilas, evidentemente, já que o
assunto é lembrado em capítulo geral de cortes. Produzido,
consequentemente, por pessoas ligadas às oligarquias
municipais. Estes docentes particulares deviam ser
abundantes em Lisboa, Porto, Coimbra, Évora, Santarém — as
terras parlamentares do primeiro banco e, logo, as mais
responsáveis pelos capítulos gerais. É de crer que esses
«mestres» particulares tenham sido sobretudo clérigos
misseiros de obediência episcopal.

CONCLUSÃO

O exposto mostra que nos séculos XIV e XV Portugal se


achava update no que diz respeito a ensino e escolas. Não
devia distanciar-se do resto da Europa. Em meios, que não
em qualidade, com certeza. Mas a diferença de qualidade só
deveria sentir-se no grau universitário. É claro que essa
rede de escolas atingiu pouca gente. Mas não deve
imaginar-se o nosso país como a selva da incultura
europeia. Conforme tivemos oportunidade de mostrar noutro
estudo, o tema do analfabetismo generalizado tem que ser
temperado no que diz respeito às cidades e vilas. Maxime no
que toca aos oficiais concelhios e oligarquias urbanas
(Armindo de Sousa, 1990a, vol. I, pp. 216-221).

Literatura

A história da literatura portuguesa dos finais da Idade


Média é um mundo que não podemos de forma nenhuma pretender
resumir aqui. Autores, géneros, produções, valor estético,
impacte social, função formativa, tudo isto exige espaço

453
que ultrapassa o que temos disponível. Por isso, muito
humildemente só iremos anotar alguns tópicos, grandes
linhas. Afinal, indicar apenas realizações importantes,
nomes memoráveis de autores e de títulos — conforme quer o
propósito deste capítulo.
Quando D. Dinis morreu, em 1325, foi-se com ele a
escola galego-portuguesa, ou trovadoresca (Rodrigues Lapa,
1977, pp. 319-325). Certo; certo que ainda ficaram cultores
até cerca de 1350; mas foram nomes obscuros, outonais. O
lirismo português vai de férias por 100 anos. Este facto
tem intrigado os especialistas, como Carolina Michaélis e
Rodrigues Lapa por exemplo, os quais adiantam para ele
explicações pouco convictas. Extinção do mecenato e das
competições poéticas? Acentuação do pragmatismo do viver
nacional, expresso no desenvolvimento mercantil e
plutocrático? Moralismo excessivo da corte de D. João I e
dos filhos? Apego à positividade das coisas reais da vida?
Administração, justiça e guerra a abafar outros interesses
e distracções? Nada disto é suficiente para explicar o
estranho esgotamento da musa. Nem sequer a peste negra, com
o seu cortejo de fomes e desgraças. A verdade, porém, é que
a musa esgotou. Em Portugal, que não na Itália nem na
Inglaterra. Um embaixador inglês à corte de D. Pedro I,
ouvindo dois jograis que o rei tinha, excelentíssimos entre
seus pares e sempre guardados de reserva para as grandes
recepções, ouvindo-os, riu-se. E votou: qualidade de
pedintes. D. Pedro I, envergonhado, despediu logo, repente
muito seu, aqueles dois excelentíssimos jograis (Rodrigues
Lapa, 1977, pp. 321-322). Como iam longe os tempos do avô!
Esta história é significativa do «grau de requinte»
artístico que vicejava na corte do Justiceiro. Pois se ele
até preferia danças de rua no meio das turbas! E trombetas,
trombetas em vez de liras...
De modo que, desde a morte de D. Dinis até D. Afonso V,
Portugal diz-se em prosa. O que não deve entender-se como
falta de cultura literária — até porque a prosa é indício
de maior maturidade. E pode não andar ausente da prosa o
lirismo, a finura de sentimentos e de afectos.
A produção literária do nosso período histórico pode
arrumar-se por géneros. Assim:
Poesia — religiosa e profana;
Prosa — novelística, histórica, moralística e técnica.
Dentro da poesia religiosa, que vai ter bons cultores
no futuro, cumpre destacar as Laudes e cantigas espirituais
de mestre André Dias, monge beneditino, professor
universitário, bispo e andarilho do mundo. Escritor
prolífico, especialmente em latim, nasceu à volta de 1348 e
faleceu cerca de 90 anos mais tarde, provavelmente em
Lisboa.
Na poesia profana, além dos últimos trovadores de
importância menor (o galego Macias, por exemplo), deve
lembrar-se o Cancioneiro geral, de Resende, publicado pela
primeira vez em 1516. Trata-se de uma notável colectânea de
poemas de diversas autorias, produzidos entre 1449 e 1516,
em que se exara, a par de algumas composições inspiradas, o
banal e o medíocre. É enorme a variedade de géneros, como é
enorme a extensão da obra. Há aí poesia amorosa, jocosa,
religiosa, didáctica ou moralizante, histórica, épica,
dramática e traduções versificadas. Como fonte informativa
histórico-cultural, o Cancioneiro geral de Resende é de
consulta obrigatória. Diga-se, finalmente, que nele se
inauguram géneros que haverão de fazer sucesso literário a
breve trecho; e até espécimes de literatura marginal que
lembram sketches do moderno teatro de revista (A. Crabbé
Rocha, 1979, pp. 64-65). O Cancioneiro geral de Resende
testemunha o regresso da poesia lírica «ao peito ilustre
lusitano», após as aparentes férias de 100 anos que atrás
dissemos.

A PROSA NOVELÍSTICA

A prosa novelística anda em torno da chamada «matéria


da Bretanha» ou ciclo arturiano. Entre nós, este ciclo
novelesco teve a designação de «Demanda do Santo Graal» e
constou de três partes, que são outras tantas novelas ou
romances: O livro de José de Arimateia, Merlin e A demanda
do Santo Graal propriamente dita. Em certas versões, a
última novela encerra com a Morte de Artur. Deste ciclo faz
parte a História de Vespasiano, que é resumo do primeiro
romance. Estas obras implicam problemas que não podemos
desenvolver aqui: origem do ciclo, autenticidade portuguesa
das obras referidas, data de composição, etc. Diga-se que

454
estas novelas encerram um imaginário fascinante,
cavalheiresco e místico, profundamente medieval. E diga-se
sobretudo que alimentaram a imaginação de homens como Nuno
Álvares Pereira e seus pares, os quais tomaram os heróis
delas como modelos de vida. Saiba-se ainda que tiveram nos
séculos XIV e XV uma tal divulgação que não é raro
encontrarmos antropónimos inspirados nelas: Iseus,
Tristãos, Lançarotes. Galvões, Parsifais, Genebras,
Vivianas, Guiomares.
Pertencente ao mesmo género e inspirado no referido
ciclo, é o célebre Amadis de Gaula — esse romance de
cavalaria que Cervantes poupou à fogueira no auto de
destruição da biblioteca quixotesca. Foi escrito no século
XIII e acrescentado no século XIV. Também não é líquido que
o original seja português. Crê-se seriamente que sim.

PROSA HISTÓRICA

No capítulo da prosa histórica, os séculos XIV e XV


foram fecundos e marcantes. Baste dizer que é corrente
afirmar-se ter a historiografia portuguesa nascido neste
período. Com Fernão Lopes, como se sabe. Mas antes de
Fernão Lopes, no século XIV designadamente, haviam-se feito
ensaios de valor. Citem-se: o Livro das eras (parcialmente
em latim), o Livro das lembranças e as Crónicas breves —
que são textos analísticos, ou cronicões, oriundos de Santa
Cruz de Coimbra. Cite-se ainda a Crónica geral de Espanha
de 1344 e sobretudo o Nobiliário do conde D. Pedro. Antes
disto produziram-se textos «históricos» em latim, como os
célebres Annales portucalenses veteres, iniciados
provavelmente no Mosteiro de Santo Tirso e prosseguidos em
Santa Cruz de Coimbra. É certo que o rigor histórico de
todos esses textos é muito relativo, assim como o valor
literário global. Realmente a «história», enquanto género
«científico e literário», irrompe em força no século XV.
Tal como sucedeu em Espanha e na França. O método e o
estilo são encontrados. Por Fernão Lopes. Não vamos fazer
aqui considerações sobre este cronista. A bibliografia que
o tem por objecto de estudo não pára de crescer, assim como
não param de se alargar os horizontes das abordagens.
Digamos só os títulos das crónicas que escreveu: Crónica de
D. João I, em duas partes, Crónica de D. Fernando, Crónica
de D. Pedro e, hipoteticamente, a Crónica do condestabre. A
seguir a Fernão Lopes, no tempo e no ofício de cronista,
Gomes Eanes de Zurara, literariamente inferior, prolixo,
amante de citações e de apartes «filosofantes». Mas, ainda
assim, dotado de qualidades para escrever páginas
brilhantes — como essas em que descreve Ceuta na tarde da
conquista, cenário de epopeia e miséria humana. Zurara
escreveu a Crónica da tomada de Ceuta, a Crónica de Guiné,
a Crónica de D. Pedro de Meneses e a Crónica de D. Duarte
de Meneses. É considerado o cronista dos primórdios da
expansão portuguesa e europeia na África e no Atlântico.
Outro cronista importante, se bem que não oficial, é frei
João Álvares, que escreveu o Tratado da vida e feitos do
muito virtuoso senhor infante D. Fernando. Finalmente,
Garcia de Resende e Rui de Pina, cujas produções se
verificaram já depois do nosso período. Houve ainda outros
nomes menores, que nos abstemos de citar aqui. Tal como não
citamos inúmeras histórias hagiográficas e traduções.

PROSA MORALÍSTICA E TÉCNICA

O século XV, nomeadamente no reinado de D. João I e de


D. Duarte, foi moralista. Diz-se que esses dois reinados se
caracterizaram por um puritanismo frio, mais inglês que
lusitano. Os príncipes davam-se a ensinar. A emitir juízos
morais a respeito de tudo: do quotidiano, de leituras que
faziam, de doutrinas que aprenderam, de virtudes e vícios,
de doenças e prazeres. Por outro lado, compraziam-se em
escrever e rodeavam-se de livros. Vão à guerra, à caça, às
sete partidas do Mundo, às reuniões onde se jogava a
política — e escrevem. Conselhos, cartas, tratados e
livros. Assim foi D. João I, D. Duarte, e os infantes D.
Pedro, D. Henrique, D. João; e não o infante D. Fernando —
porque, se calhar, não teve tempo. Enfim, o pai e os
filhos, ínclita Geração. É claro que os escritores do
grupo, os que ficaram consagrados, foram três: D. João I,
D. Duarte e o infante D. Pedro. O infante D. Henrique
escreveu conselhos e um pequeno tratado de teologia pouco
conhecido; o infante D. João, homem de grande bom senso,

455
inteligência e cultura, pouco deixou. O infante D. Fernando
revelou-se sobretudo um homem de leituras e da amizade de
escritores, como Fernão Lopes e frei João Alvares;
aguardava.
D. João I escreveu o Livro da montaria, obra sobre
desporto, o desporto da caça grossa, considerado na época
actividade paramilitar. É uma fonte fundamental para o
estudo da mentalidade nobre da época. O autor revela-se bom
estilista, conhecedor perfeito da matéria, «alma sã em
corpo são». Oiça-se o que diz do livro um homem como
Rodrigues Lapa: «Escrito em uma língua de admirável
frescura e limpidez, há nele, por vezes, um vivo sentimento
da Natureza, que nos transporta à charneca alentejana ou
aos prados vicejantes das coutadas reais; aspira-se nele o
perfume acre e sadio do tojo e das árvores em flor.» E
ainda Rodrigues Lapa (1977, pp. 343-344): «Na nossa
literatura desportiva, este livro é um verdadeiro
monumento.»
D. Duarte escreveu duas obras: o Livro da ensinança de
bem cavalgar toda a sela e o Leal conselheiro. O primeiro é
uma obra didáctica, conforme o próprio título revela. Mas
não se trata dum didactismo esquemático e frio, seco
tratado de equitação. É obra composta a partir da
experiência pessoal, repleta de originalidade e opiniões
convictas. Fala da vontade, do esforço, da psicologia do
medo e da estética das posturas. Fala de pedagogo. E, como
em geral os pedagogos, atento aos valores dos bons tempos.
Que são sempre os valores viris, a homens se dirige o
livro, contra as novidades efeminadas — a dança, por
exemplo, e todo o seu séquito de «manhas» de salão, sedas e
sorrisos. De homens é a equitação, a montaria e a luta.
O Leal conselheiro é um tratado de moral para fidalgos
e senhores. Muito extenso, muito seco e muito útil. Muito
útil para nós, historiadores desses tempos.
O infante D. Pedro gostou mais de traduções e
adaptações; o que não significa, modo da época, que não
tenha metido pelo meio coisas suas. Duas obras: o Tratado
da virtuosa benfeitoria e o Livro dos ofícios.
Não se esqueça, enfim, o Livro de falcoaria de Pêro
Menino, encomendado pelo rei D. Fernando, grande entusiasta
da caça de altanaria. É livro literariamente pobre.
CONCLUSÃO

O exposto é um apanhado daquilo que de mais importante


se realizou nos séculos XIV e XV em termos literários.
Muita coisa se omitiu. Especialmente no campo das
traduções, da hagiografia, da epistolografia e dos tratados
filosóficos e jurídicos. Não falámos, por exemplo, de obras
conhecidas como o Conto do Amaro, o Bosco deleitoso, o
Horto do esposo, a Corte imperial ou a Visão de Túndalo.
Dissemos o memorável e mais memorado. Decore-se Fernão
Lopes.

Arte

Quem quer que atravessasse Portugal de norte a sul ou


em transverso, há 600-500 anos, via serras nuas, cerros
calvos, planícies ermas e verdes vales. De longe a longe,
uma povoação cinzenta ou choupanas dispersas, conforme. Mas
havia de avistar, de repente ou à distância, outra vez
conforme, altas construções maciças, cidades e vilas
nobres. Lá dentro morava a arte. É claro que se o
peregrinar fosse pelo Norte do País, a arte podia
aparecer-lhe no dobrar de uma curva, uma igreja, um
castelo, uma torre senhorial.
A arte medieval foi antes de mais arquitectura.
A arquitectura do período do nosso estudo é o gótico.
Mais altura e mais luz do que o românico, o estilo
anterior, mas pouco arrojo. À parte breves excepções, o
gótico português teve medo. Pequenino, à escala humana, não
ousou escalar o céu. Quem compara os nossos monumentos
góticos com os exemplares europeus a custo aceita que são
góticos. Onde as alturas blasfemas das flechas da Alemanha
e da França? Na Batalha? D. Duarte quis. E, portanto,
«Capelas Imperfeitas». O leitor desculpe, mas parece que só
nos capelos do mar fomos nós, Portugueses, capazes de
capelas perfeitas. O que não quer dizer que não tenhamos o
nosso gótico. Como tivemos românico. Haveremos de ter o
manuelino, isso sim, sopro do mar; e depois o barroco —
como fomos bons no barroco!

456
Segundo Mário Chico (1968, pp. 258-259), há 96
monumentos góticos em Portugal, dos quais 55 típicos, 20 do
período de transição para o manuelino, ou manuelinos mesmo,
e 21 renascentistas com estrutura gótica. Da época do nosso
estudo há, por conseguinte, cerca de meia centena,
atendendo a que o gótico cisterciense, como o de Alcobaça,
é anterior. Poder-se-ia falar, portanto, de riqueza e afã
construtivo. Coisa estranha nesses 160 anos de crise,
penúria demográfica, fome e peste. Porque construir era
caro. Mas também foram os anos da expansão mendicante e da
religiosidade «moderna». Isto para os monumentos sacros.
Para os profanos, lembrem-se os nobres titulados e a sua
necessidade de paços a condizer. E lembre-se também que
muitos desses monumentos são arranjos de anteriores.
Os distritos que mais construíram, distrito no sentido
de divisão administrativa actual, foram, por ordem
decrescente, Portalegre, Évora, Leiria, Faro, Porto,
Santarém, Lisboa e Beja. Os restantes, com um ou dois
monumentos, podem ficar esquecidos. Quer dizer: o gótico é
estilo da colonização do Sul e da implantação de
franciscanos e dominicanos no território.
De todos os monumentos góticos portugueses registem-se
dois: Alcobaça e a Batalha. Ambos magníficos e ambos
«estrangeirados». Só que do nosso período é apenas o
segundo. Os restantes, essas dezenas que dissemos, vêem-se
em qualquer um à toa, como irmãos em irmãos numa família
modesta. Diferenças? Claro. Personalidades próprias? Pois.
Mas todos humildes na sua pele de calcário ou granito — que
é a primeira nota que salta à vista de quem os olha e os
compara. Portais, rosáceas, plantas, abóbadas, capitéis,
pés-direitos, tramos, arcobotantes, naves, ogivas, arcos,
pináculos — tudo isso e muito mais, gramática do estilo,
veja o leitor noutro lado, que é matéria de não pôr aqui.
Aqui, para além de recordarmos que são património nosso, a
visitar e defender, sítios onde se resume o passado,
importa dizer que são belas realizações que os homens dos
séculos XIV e XV legaram ao futuro com orgulho, coisa sua.
Coisa nobre. Memoriais do seu esforço e sensibilidade. Que
eles pensaram isso.
E quem diz igrejas, claustros, mosteiros e conventos
diga torres, castelos e muros de vilas e cidades. Afirmavam
os de Braga em 1451: «não há cidade melhor corregida [de
muros] que esta» em todo o reino (16). Havia. Era,
portanto, o bairrismo a falar. Bairrismo que na correcção
das muralhas contemplava excelência, segurança e beleza.
Que a beleza era sentida como isso: afirmação de poder. Por
isso se chamavam «nobres» as terras dentro de muros. As
terras encouraçadas. É a beleza-virgindade feminina, turris
eburnia, Nossa Senhora, castelo de marfim. A beleza estava
na nobreza e a nobreza na dissuasão e na força. É bem
provável que nós, ao embevecermo-nos hoje do belo medieval,
estejamos, afinal, a vivê-lo segundo modalidades que os
medievais não pensaram, não sentiram nem, se futurassem,
quiseram. Que é isso da emoção estética? A emoção estética
é a história. Deslumbrar-nos com o que vemos sentindo como
os avós. E não fazer dos avós um mero estímulo, um suporte
diletante.
E o mesmo se diga da escultura. Razão tem o Professor
Oliveira Marques ao escrever (1986, p. 439): «Ao entrar
hoje numa igreja gótica portuguesa, sabiamente restaurada
pelos pseudoconhecedores do passado, obtém-se uma imagem
completamente falsa do ambiente original: falta-lhe a maior
parte dos atributos que faziam dos templos trecentistas e
quatrocentistas lugares acolhedores e distraídos.»
Atributos que diremos: estatuária diversa e criteriosamente
distribuída; tapeçarias; pinturas murais — excessivas na
quantidade e no brilho; e música, muita música, que esses
espaços foram concebidos para funcionar. Devia ser proibido
apreciar uma sé fora de uma cerimónia pontifical — Te Deum,
ordenações maiores, Semana Santa, Páscoa, ou Pentecostes,
ou Natal, visitas formais de reis ou homólogos, exéquias do
titular. Com sons e ritmos da época. Sem trombetas nem
timbales — a não ser lá fora, rei entrando. E qual
polifonia, qual música «clássica»! As estátuas, a luz e as
cerimónias não se inventaram para ouvir isso. Olhe, leitor,
os 12 apóstolos à entrada da Sé de Évora e os quatro
evangelistas que figuram no claustro; contemple a centena
de virgens, santos, profetas, reis e demais bem-aventurados
do portal da Batalha; siga por esse País e veja esculturas
análogas nos portais ou sobre altar; aprecie-lhes a -
expressão, adivinhe-lhes a mentalidade. E concorde:
arquitectura, escultura, pintura, música, sermões, pessoas,
foi um todo. E depois, faça exercício inverso: foram as
pessoas que inventaram isso tudo. Sublimando. É: sentir a
arte da história é o mesmo que meter-se nelas, nas pessoas
dessa história. Trabalho difícil. E simples de dizer por
palavras: contemplação, empatia, abertura esclarecida e
tolerante. No fim, até é capaz de ser bom. Porque,
lembre-se, leitor, os templos dos séculos XIV e XV foram

457
inventados para serem «lugares acolhedores e distraídos».
Que melhores lugares queremos hoje?
A escultura gótica tem sido distribuída em duas
categorias: a tumular; e a imaginária, de retábulos e de
altares. Ambas estão bem representadas. A primeira, em
Braga, com o túmulo de D. Gonçalo Pereira; no Porto, com o
de João Gordo; em Odivelas, com ode D. Dinis; na Sé de
Lisboa, com os de Bartolomeu Joanes e de Lopo Fernandes
Pacheco; em Évora, com o do bispo D. Pedro; em Coimbra, com
os da Rainha Santa e da sua neta D. Isabel; em São João de
Tarouca, com o do conde D. Pedro; etc. E, depois de todos
os etc. possíveis, os túmulos de Pedro e de Inês, em
Alcobaça. Duas obras-primas sem paralelo na Europa. Aqueles
túmulos são um compêndio de arte, de história e de
mentalidade medieval. Diríamos: o leitor informe-se em boa
bibliografia, vá e demore. É espantoso como se diz tanta
coisa em tão pouco espaço e com tão elevado nível estético!
Da imaginária de altares — deixando de lado a
imaginária dos portais, «arquitectónica», de que falámos
atrás — citem-se escultores como Pêro de Coimbra, João
Afonso, o mestre das Alhadas, o mestre de Arouca e Diogo
Pires, o Velho. Estes homens, da pedra de Ançã e do mármore
do Sul, desencantaram Virgens, Cristos, apóstolos e santos.
Que o leitor já viu. Porque estão em Braga, Leça da
Palmeira, Amares, Jazente, Lamego, Coimbra, Figueira da Foz
(Alhadas), Tábua, Arouca, Montemor-o-Velho, Lorvão,
Almoster, Flor da Rosa, Évora, etc.
No que toca à pintura, refira-se o fresco de O bom e
mau juiz (Monsaraz), segunda metade do século XIV, o
retrato de D. João I (Museu Nacional de Arte Antiga), o
retrato da princesa Santa Joana (Aveiro) e os Painéis de S.
Vicente de Fora, atribuídos a Nuno Gonçalves. Estes valem
uma história da pintura portuguesa dos finais da Idade
Média (se bem que sejam decididamente «modernos»). Porquê?
Porque, sendo como são portugueses, denunciam tamanha
maturidade qual só se imagina possível depois de muitos e
muitos anos de ensaios. Eles revelam a máxima floração de
uma escola; e podem ser considerados património mundial.
Até porque retratam a sociedade e os homens que se
lembraram de dar «novos mundos ao Mundo». E em toda a
seriedade de quem se assume como tal. Todos eles, apesar
das diferenças de estatutos e riqueza, posam firmes,
resolutos.
Finalmente, no que toca às artes decorativas —
riquíssimo o período na arte da iluminura —, lembremos as
tapeçarias de Pastrana, cujos cartões já foram atribuídos
ao autor dos Painéis de S. Vicente de Fora.

ENFIM...

O leitor há-de ter reparado que a partir do momento em


que nos metemos na arte este ensaio virou apelo. Apelo à
fruição. Deixámos de lado análises eruditas e elencos
exaustivos e preferimos apelar. Provavelmente cometemos um
abuso, ou, no mínimo, um atropelo à inteligência. Seja.
Porque é bom concluirmos assim: para além da inteligência
das coisas está a alegria de senti-las.

Conclusão

Procurámos responder à pergunta «Que avanços e que


direcções em Portugal entre 1325 e 1484?» Pois, os avanços
e direcções foram no sentido da «Nação» e da «Pátria». Se
em 1325 é permitido afirmar que há território e passado,
mas não ainda consciência de nação colectivamente advertida
pela população global, em 1484 há território, passado,
nação e pátria, tudo fortemente «com-sentido» e condensado
em «Portugal» e «Portugueses». Construiu-se Estado —
parturição muito lenta. Em 1484 o Regnum de D. Dinis é um
«Estado Moderno», organizativamente complexo e seguramente
centralizado. Distinto culturalmente dos vizinhos e
preparado para ir pelo mundo fora. Já tem o plano — o
«Plano das índias» — saber e experiência para realizá-lo. É
estado-povo-cultura às portas de ser império e cantar-se em
epopeia. Lusiadamente.

458
Conclusão geral

Analisámos no primeiro capítulo deste estudo os


condicionamentos básicos do País nos séculos XIV e XV e no
segundo procurámos descobrir as pessoas e seus modos — os
modos por que se organizaram e se relacionaram entre si.
Ficámos a saber espaço, técnicas, população e ordenamento,
por um lado; e gentes na sua distribuição societária, por
outro: as condições e os agentes. Faltava saber o que se
fez, os actos e as obras. Foi disso que tratámos agora. E é
provável que, chegados ao fim, o leitor se interrogue.
Isso? Só isso o que se fez?
Haverá certamente leitores desejosos de conhecer o
pormenor dos feitos e actos, tudo especificado por áreas
nítidas, o económico, o político, o financeiro, o fiscal, o
administrativo, o judicial, o militar, etc. E é legítimo
esse desejo.
Nós, porém, optámos por uma perspectiva abrangente —
que nos desse as grandes linhas de rumo de Portugal nos 160
anos que nos coube estudar. Centrámos, consequentemente, a
nossa atenção em dois amplos subcapítulos: os protagonismos
de cúpula e as realizações do País, enquanto Nação, Pátria,
Estado e cultura. Tudo numa preocupação de anotar
trajectórias, surpreender e seguir os indícios dessas
realizações e o seu desabrochar em instituições e modos
maduros de ser na história com especificidade.
Competirá ao leitor decidir se o nosso objectivo foi
alcançado.

Notas

(1) V., por todos, A. H. de Oliveira Marques, Portugal


na crise dos séculos XIV e xv, Lisboa, Presença, 1986.
(2) Doc. publicado em Cortes portuguesas — Reinado de
D. Afonso IV (1982), p. 21.
(3) Cap. 24 dos do clero de 1361 (Elvas), em Cortes
portuguesas — Reinado de D. Pedro I (1986), p. 22.
(4) Cap. 1 dos do Algarve de 1451 (Santarém), ANTT,
Suplemento de cortes, m. 4, n.º 47.
(5) Sobre o número de cortes, seus objectivos, datas,
documentação produzida, etc, v. Armindo de Sousa, 1990a,
vol. I, pp. 291-431.
(6) Sobre a regência de D. Leonor de Aragão e a do
infante D. Pedro, v. Baquero Moreno, 1979-1980.
(7) Capítulos publicados por Baquero Moreno, 1978 e
1982. Sobre estas alegadas Cortes de 1448 (Lisboa), que
pensamos não terem existido, v. Armindo de Sousa 1990a,
vol. I, pp. 445-451.
(8) Cortes de 1472-1473 (Coimbra-Évora), cap. 89, e de
1481-1482 (Évora-Viana), cap. 154.
(9) Entretanto, v. Gama Barros, pp. 353-484.
(10) V., por todos, Oliveira Marques, 1986, pp.
300-316.
(11) Sobre esta matéria, Oliveira Marques, 1986, pp.
316-334, e bibliografia aduzida.
(12) A. Moreira de Sá, «Introdução», in Chartularium
Universitatis portugalensis, vol. I, 1966, pp. XI-XV.
(13) A. D. de Sousa Costa, «Colegiadas», in Dicionário
de História de Portugal, vol. I, 1963, pp. 613-614.
(14) Chartularium universitatis portugalensis, vol.
VII, 1978, doc. 2532.
(15) ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, livro 35, fol.
108v.º. Sobre isto, v. Armindo de Sousa, 1990a, vol. I, p.
219.
(16) ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, livro 10-11,
fol. 53v.º

Bibliografia

O elenco bibliográfico que se segue regista as fontes


impressas e os estudos citados no texto ou em notas.
Omitem-se, portanto, todos os que, embora atinentes aos
temas abordados e à época, não foram expressamente
referidos. Omitem-se também indicações de fontes
manuscritas, não editadas ainda, inclusive as que foram
sendo citadas ao longo do estudo. O leitor interessado
poderá identificar essas fontes e respectiva localização
arquivística nas referidas notas de rodapé.

1. Fontes impressas

Alguns documentos para servirem de provas à Parte 1.ª


das Memórias para a História e Theoria das Cortes Geraes,
ed. do Visconde de Santarém, Lisboa, 1828.

459
Alguns documentos para senirein de provas à Parte 2.ª
das Memórias para a História e Theoria das Cortes Geraes.
ed. do Visconde de Santarém, 1828.
Chancelaria de D. Pedro I (1357-1367), ed. de A. H. de
Oliveira Marques, Lisboa. INIC, 1984.
Chartulariuin universitutis portugalensis, ed. de A.
Moreira de Sá, 9 vols., Lisboa. IAC-INIC, 1966-1985.
Cortes Portuguesas — Reinado de D. Afonso IV
(1325-1357), ed. de A. H. de Oliveira Marques, Maria Teresa
Campos Rodrigues e Nuno José Pizarro Pinto Dias, Lisboa,
INIC, 1982.
Cortes Portuguesas — Reinado de D. Pedro I (1357-1367),
ed. de A. H. de Oliveira Marques e Nuno José Pizarro Pinto
Dias, Lisboa. INIC, 1986.
Descobrimentos portugueses, ed. de João Martins da
Silva Marques, vol. 1, Supl., vol. II toms. II e III,
Lisboa, INIC, 1988.
Documentos do Arquivo Histórico da Câmara Municipal de
Lisboa — Livros de Reis, vols. 1-3, Lisboa, 1957-1959.
Documentos históricos da cidade de Évora, ed. de
Gabriel Pereira, partes 1-3, Évora, 1885-1891.
Elementos para a história do município de Lisboa, ed.
de Eduardo Freire de Oliveira, vol. I, 1.ª ed., Lisboa,
1882-1885.
História florestal, aquícola e cinegética, ed. de Baeta
Neves, vols. 1-5, Lisboa, Ministério da Agricultura e
Pescas, 1980-1988.
Livro antigo de cartas e provisões dos senhores reis D.
Afonso V, D. João II e D. Manuel I do Arquivo Municipal do
Porto, ed. pref. e notas de Artur de Magalhães Basto,
Porto, s/d. (É o vol. v da colectânea «Documentos e
memórias para a história do Porto», edição da Câmara
Municipal do Porto).
Livro das leis e posturas, ed. de Maria Teresa Campos
Rodrigues, Lisboa, Faculdade de Direito, 1971.
Livro de linhagens do século XVI, ed. de A. Machado de
Faria, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1956.
Livro dos conselhos de el-rei D. Duarte (Livro da
cartuxa), ed. de A. H. de Oliveira Marques e João José
Alves Dias, Lisboa, Editorial Estampa, 1982.
Monumenta Henricina, ed. de António Joaquim Dias Dinis,
15 vols., Coimbra, 1960-1974.
Monumento Portugaliae Vaticano, vols. II e IV, ed. de
António Domingues de Sousa Costa, Roma/Porto, Liv. Ed.
Franciscana, 1968; e Braga, Edit. Franciscana, 1970.
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Ordenações manuelinas, 5 livros, Lisboa, Fundação
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Regra do glorioso patriarca S. Bento, Mosteiro de
Singeverga, Edições Ora & Labora, 1951.
Synodicon hispanum, II-Portugal, ed. de António Garcia
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«Vereaçoens» (anos de 1390-1395), ed. coment. e notas
de Artur Magalhães Basto, Porto, s/d. (É o vol. II da
colecção «Documentos e memórias para a história do Porto»,
public. da Câmara Municipal do Porto).
«Vereaçoens» (1431-1432) — Livro I, ed., índices e
notas de João Alberto Machado e Luís Miguel Duarte, Porto,
Arquivo Histórico Municipal do Porto, 1985.
«Vereaçoens» (anos de 1401-1449) — Livro II, ed. de J.
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AFONSO X, Primeyra partida, ed. de José de Azevedo
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ÁLVARES, Fr. João, Cartas e traduções, ed. de A. de
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1977.

460
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Nota: além das fontes impressas acabadas de indicar,
foram utilizadas muitas outras que andam publicados, como
apêndices documentais, em grande parte dos estudos que a
seguir irão ser registados.

2. Estudos

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Abreviaturas:

al. — alínea
cap. — capítulo
cf. — conferir, ver
ed. — edição
fl. — folha
fls. — folhas
ib. — ibidem
id. — idem
loc. cit. — local citado
ms. — manuscrito
n. — nota
p. — página
pp. — páginas
segs.— seguintes
tít. — título
tom. — tomo
v. — ver, conferir
V. g. — verbi gratia, por exemplo
vol. — volume

Siglas:

AD — Arquivo Distrital
AHCM — Arquivo Histórico da Câmara Municipal
AHM — Arquivo Histórico Militar
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BN — Biblioteca Nacional
BPM — Biblioteca Pública Municipal
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FLUC — Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
IAC — Instituto de Alta Cultura
INIC — Instituto Nacional de Investigação Científica
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IPPAR — Instituto Português do Património Arquitectónico e
Arqueológico
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MR — Museu Regional
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