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HISTÓRIA ESSENCIAL DE

PORTUGAL
Pelo Prof. José Hermano Saraiva

Volume I – Das origens à Revolução de


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Quase todas as Histórias Nacionais começam por um
capítulo de introdução geográfica, que constitui a descrição
do meio, para mostrar como esse meio teve influência na
evolução dos povos. A melhor introdução geográfica que eu
conheço para a História Portuguesa está nestes três versos
de Camões:

«Eis aqui, quase cume da cabeça


da Europa toda, o Reino Lusitano,
onde a terra se acaba e o Mar começa»1

Essa situação foi realmente essencial para a História de


Portugal. Para a História de Portugal e para a própria
formação do povo português, porque as primitivas
populações do Mundo tinham uma vida nómada,
vagabunda. Andavam, geralmente, no sentido do Sol,
deslocavam-se em imensos rebanhos, pastavam os frutos
que a terra dava, depois iam em demanda de outras
colheitas. E, à medida que avançavam, expulsavam os

1 Canto III (estância 20) de Os Lusíadas. Vasco da Gama termina a descrição da


geografia europeia ao rei de Melinde: «Eis aqui (...) o Reino Lusitano, onde a terra
se acaba e o Mar começa; Esta é a ditosa pátria minha amada...»
povos que aí estavam e instalavam-se, os povos expulsos
iam, por sua vez, expulsar outros.
Em Portugal, essa substituição dos povos não era
possível. Daqui, ninguém podia fugir para parte alguma.
Chegavam novas migrações, lutavam, combatiam,
acasalavam, misturavam-se e acabavam por se fundir
numa grande amálgama de populações. Isso fez do
português este tipo que nós somos. Nós não temos raça
nenhuma, não se pode falar na raça portuguesa. Se
houvesse uma raça, nós éramos uma anti-raça, feita com
gente vinda de toda a parte, ao longo de milhões de anos.
Essas sucessivas migrações humanas podem, hoje,
distinguir-se pelas diferentes técnicas com que
trabalhavam a pedra. É possível que os primeiros homens
se tenham servido de outros materiais, mas os que
chegaram até nós são os que o tempo não consumiu: são
pedras. E a técnica de transformar uma pedra qualquer
num instrumento para bater e para atingir a caça variou
muito. Os arqueólogos designam as várias técnicas usadas,
com intervalos de muitos séculos umas para as outras, pelo
nome da região onde apareceram os jazigos mais
significativos. Devo dizer que praticamente todas essas
técnicas estão documentadas no nosso país, o que mostra
exactamente que gentes de toda a parte se vieram aninhar
aqui.
Ora, há cerca de uma dúzia de milhares de anos, o clima
da Europa sofreu grandes mudanças: a temperatura sobe
e, portanto, grandes conjuntos gelados desaparecem, os
campos agricultáveis tornaram-se muito mais numerosos, a
fauna é muito mais parecida com a dos nossos dias e, de
certo modo, o clima por essa altura fica muito parecido com
o que é hoje o clima que nós temos. E isso, claro, faz surgir
uma nova maneira de viver, uma nova época da Pré-
História, a que os arqueólogos chamam o Neolítico. Com o
Neolítico, os homens já vivem em grupos, em pequenas
comunidades. Não se pode falar em aldeias, mas são
grupos organizados. Já fabricam muitos utensílios, como
por exemplo a loiça, em que comem, e aparece, então, a
primeira cerâmica, já tumulam, enterram os seus
cadáveres, domesticam alguns animais, já sabem preparar
os alimentos, para alturas de fome fazem sementeiras. Pois
eu creio que, ainda hoje, nos nossos dias, há costumes que
vêm desde o Neolítico. Olhem, por exemplo, isto de ter um
cão: antes do Neolítico, o cão era um animal feroz que
atacava o Homem; depois foi domesticado e ficou nosso
“amigo”. Outro exemplo é a conservação do leite: o leite
era conservado em vasilhas redondas e, daí, a forma
normal que ainda hoje tem o queijo. O queijo é apenas o
leite conservado numa vasilha redonda. Podemos ainda
mencionar o vinho: eles quiseram guardar as uvas, mas o
sumo das uvas fermentado dava uma bebida que constitui
hoje um dos principais alimentos do Mundo. E é, nessa fase,
que aparecem os mais característicos, os mais
impressionantes monumentos do nosso passado Neolítico,
que são os dólmenes2, tão numerosos em todo o país, os
menires3, os cromeleques4.

2 Monumento megalítico composto por pedras dispostas em forma de mesa


gigantesca.

3 Monumento megalítico composto por uma pedra grande e comprida, fixa


verticalmente no solo

4 Monumento megalítico que consiste num conjunto de pedras ou menires


normalmente colocados em círculo ou elipse
Figura 1 – Um dos muitos dólmenes existentes na Região na região de Portalegre e um
pouco por todo o Alentejo.

Figura 2 – Menir dos Almendres, Alentejo


Figura 3 – Cromeleque dos Almendres, Évora, Alto Alentejo

Isto existe por todo o território português, mas num número


especialmente importante no Alentejo, onde há maior
densidade do que em qualquer outra região. Porquê? A
explicação óbvia é que o Alentejo é a melhor terra para dar
pão que existe neste território que, agora, é nosso. E os
homens procuraram sempre o pão… Foi num dólmen
alentejano que apareceu um objecto representativo de um
cavaleiro, ainda sem estribos, oriental, vindo do fundo do
Mediterrâneo, que eu penso que é a imagem de um dos
primeiros exploradores de metal que vieram à nossa
Península, isto porque a Península Ibérica era
extraordinariamente rica em metais.
Figura 4 – Objecto representativo de um cavaleiro, ainda sem estribos, oriental, vindo do
fundo do Mediterrâneo

Foi isso, aliás, que começou a atrair colonizadores que


vinham de longe. Acabou o tempo da pedra, agora os
homens já sabem fabricar instrumentos em metal e a
Época dos Metais dura desde cerca de 2500 a.C. até à
chegada dos Romanos. Em várias fases: primeiro é uma
metalurgia do cobre (e do ouro), porque se trata de um
metal que se trabalha com facilidade; depois, eles
descobrem que, misturando estanho no cobre, obtêm uma
liga muito mais dura, que é o bronze. E a Época do Bronze
dura perto de mil anos (o primeiro bronze começa cerca de
1800 a.C.). O primeiro ferro é introduzido pelas invasões
dos Celtas. O objecto mais típico dos Celtas é o punhal de
antenas. Trata-se de um punhal dotado de emblemas, de
uma lâmina e que era de ferro. Bom, é evidente que ele
tem um carácter fálico: as antenas simbolizam o testículo e
era, portanto, um instrumento do poder. Do poder e da
guerra, porque é claro que, com uma arma de ferro, o
grupo era muito mais temível do que com uma arma de
bronze. Mas o ferro não era só para as armas, era também
para os arados. São eles que se misturam às populações
que havia por aqui.
Os Celtas não eram muito numerosos, tanto assim que,
em certa altura, até faziam os tais punhais de antenas em
bronze, o que significa, ou que não havia madeira bastante
para fundir o ferro (porque a fusão do ferro é muito mais
difícil em relação à do cobre, exigindo muito mais lenha),
ou então significa que os grupos que vieram de fora
assimilaram a civilização que aqui encontraram. De
qualquer maneira, são esses Celtas, misturados aos Iberos,
que vêm a dar a civilização castreja. No alto de um
castro5, vêem-se as habitações redondas, onde, aquando
da chegada dos Romanos, as populações viviam,
geralmente no alto de montes, em aldeamentos rodeados
por cinturas de muralhas, onde se defendiam.

Figura 5 – Os castros eram compostos por conjuntos de várias habitações. Nalguns


casos, cercadas por várias linhas de muralhas, isto é, um povoado fortificado.
Castro de Pias, Castro do Couce e Alto do Castro são designações que nos remetem
a memória para essa época.

5 Lugar fortificado das épocas pré-romana e romana, na Península Ibérica, que era
um povoado permanente ou apenas refúgio das populações circunvizinhas em caso
de perigo, também designado crasto, castelo, citânia, cividade, cristelo, etc.
E é essa civilização castreja que domina quase todo o
território português até ao século II a.C. Mas, nesse século,
o domínio do Mediterrâneo era disputado por duas grandes
potências: Roma e Cartago. Os Cartagineses, para
organizar exércitos para a guerra contra Roma, serviram-se
da Península Ibérica. Aqui, na Península, havia realmente
homens muito aptos para a guerra, muito valentes, e eles
recrutavam, aqui, enormes exércitos que atiraram contra
Roma. E os Romanos vieram à Península,
fundamentalmente, para impedir esse recrutamento, mas é
também claro que estavam igualmente motivados pela
imensa riqueza mineira que toda a Península tinha.
Os habitantes locais, dos castros – os Lusitanos –
opuseram-se energicamente ao domínio romano. Ficou
famoso, mesmo entre os Romanos, o chefe dessa
resistência, que era Viriato. Ele, durante alguns anos,
travou grandes batalhas contra as legiões de Roma e
venceu-as. Os Romanos não puderam derrotar, enfim, no
campo de batalha, mas venceram-no à traição:
conseguiram subornar dois lugares-tenentes, que o
apanharam distraído e o assassinaram. A cidade de Viseu
fez uma estátua a Viriato, na medida em que este era
natural da região dos Montes Hermínios, do lado do
Atlântico, portanto desta Serra da Estrela, já mais atlântica.
Figura 6 – Estátua a Viriato, em Viseu.

É curioso que, por detrás da estátua, há um monumento


verdadeiro. Podemos ver uma altura, que constitui um
monumento a sério: era um acampamento de uma legião
romana. Os Romanos, para se defenderem, levantavam
grandes cômoros6 de terra, muralhas de terra, e era lá
dentro que ficava a legião.
Os Romanos dominaram completamente toda a
Península Ibérica durante mais de cinco séculos.
Costumam-se referir as datas de 146 a.C. e depois 409
d.C., que é quando vêm os Bárbaros. Durante esses perto
de 600 anos, a influência que os Romanos têm na Península
é tão grande, tão grande, que nós hoje nem sequer
conseguimos saber qual seria a linguagem que falávamos
antes da vinda dos Romanos, porque a que hoje falamos é
a que os Romanos nos ensinaram. Falamos o latim, claro,
6 Pequena elevação isolada de terreno.
um latim já muito corrompido e estropiado, mas é latim que
nós falamos. Mas não foi só na linguagem:
Foi o pão que se come e a maneira de o fabricar;
Foram as técnicas da construção civil, das casas, que
chegaram praticamente até aos nossos dias;
Foram as leis, na medida em que as nossas leis ainda
são hoje decalcadas nas leis romanas;
Foi a organização das cidades.

Foi tudo… Depois da vinda dos Romanos, passamos a ser


uma colónia da Itália, uma região em que se fala o latim,
em que se pensa em latim, em que os homens se divertem
à maneira dos latinos. E é claro que isso tem consequências
decisivas na História da civilização peninsular.
Portugal é, hoje, uma nação românica. Isto quer dizer
que somos uma pátria filha de Roma. Ficaram muitos
vestígios, muitos vestígios da passagem dos Romanos. Em
todo o país, há mais de dois mil monumentos romanos. É
claro que uns são muito importantes e ainda hoje estão de
pé, como por exemplo:
a Ponte Romana de Chaves, onde, até há pouco
tempo, passavam pesados camiões;
Figura 7 – Ponte Romana de Chaves

a Torre de Centum Cellas, que era o centro de uma


região mineira;

Figura 8 – Torre de Centum Cellas


o Criptopórtico de Aeminium (Coimbra), onde hoje
está o Museu Machado de Castro, que constitua a
base de um palácio romano;

Figura 9 – Criptopórtico de Aeminium

o Templo de Évora (que se chamou tanto tempo o


“Templo de Diana” e que não tem nada a ver com
Diana, sendo antes do culto imperial);
Figura 10 – Templo Romano de Évora

as Ruínas Romanas de São Cucufate (Alentejo),


que chegaram, até hoje, porque eram uma Villa
Romana, também centro de uma região mineira, onde
se instalou um convento e que não deu tempo para
destruir, dado que os frades, em vez de os deitarem
abaixo, aproveitaram os muros romanos e, por isso,
está de pé;

a Villa

Figura 11 – Ruínas Romanas de São Cucufate

Romana de Milreu, no Algarve.


Figura 12 – Villa Romana de Milreu

Mas, talvez, a
mais importante de todas as recordações que os Romanos
nos deixaram foram as Ruínas de Conímbriga. A cidade
foi destruída pelos Bárbaros, arrasaram-na. Depois dos
Bárbaros, cada um foi levando a sua pedra para a
reconstrução de Condeixa e, hoje, a cidade pouco mais tem
que os alicerces. Ainda assim ficaram os mosaicos, que são
dos mais belos monumentos romanos que existe em
Portugal.

Figura 13 – Ruínas de Conímbriga


Diz-se, muitas vezes, que a civilização romana termina
na Península com as Invasões Bárbaras do princípio do
século V d.C. Penso que isto é apenas uma meia verdade,
porque é certo que os Bárbaros mutilaram, incendiaram,
degradaram as cidades que encontraram, chacinaram
populações. De certo modo, eles destruíram uma
civilização, mas não conseguiram substituí-la por nenhuma
outra. Os peninsulares continuaram a falar em latim, a
plantar os olivais, a colher o seu vinho, porque realmente
os Bárbaros não tinham uma civilização superior que se nos
pudesse comunicar. Mas é evidente que as Invasões
Bárbaras são um facto muito importante. Iniciam-se no
ano 409. Grandes bandos de povos germânicos – os
Alanos, os Vândalos, os Suevos – atravessam as
gargantas dos Pirenéus, penetram na Península Ibérica e
derramam-se um pouco por toda a parte.

Figura 14 – Invasões Bárbaras


É curioso que a resistência dos Romanos foi muito fraca,
em muitas partes nem resistiram. Para tal realidade, a
explicação reside no facto de os Romanos também estarem
a atravessar uma crise. Eram uma civilização inteiramente
baseada na escravatura e, naturalmente, os escravos não
estavam dispostos a lutar e a dar a vida pelos senhores que
os oprimiam, senhores que, de acordo com um escritor
dessa época, por vezes eram mais bárbaros do que os
próprios Bárbaros.
Mas no ano de 516, portanto, cerca de um século depois,
chegou à Península uma outra grande invasão de povos
germânicos: eram os Visigodos. Os Visigodos estavam já,
há muito tempo, no Império, portanto estavam, de certo
modo, mais civilizados, mas também não eram portadores
de uma cultura superior e, por isso, eles não puderam
enriquecer a cultura peninsular. Apesar disso, eu acho que
a influência, na História, das invasões visigóticas foi
realmente muito grande. É com os Visigodos que nasce
uma classe nova, uma classe que não era conhecida na
Época Romana – a Nobreza. Os Visigodos chegam,
apoderam-se das terras importantes e, portanto, ficam
proprietários, servidos pelos antigos donos, que agora são
os servos, e são realmente de uma outra raça. Ora, um
fidalgo é exactamente isso: é um grupo étnico diferenciado,
de pele mais clara (até se dizia que eles tinham sangue
azul, porque a pele era branca), uma classe militar, que
vivia da guerra (eram cavaleiros, ao passo que os outros
tinham que viver do trabalho) e uma classe proprietária,
que vive do fruto de uma terra, trabalhada pelos outros. É a
Nobreza que vai ter um papel importantíssimo durante toda
a Idade Média.
É também com os Visigodos que a Igreja assume um
papel muito importante dentro do Estado. O Clero católico
já havia surgido durante a Época Romana, porque o
Cristianismo instala-se no Mundo Romano, mas a
importância política desse Clero, dentro do Estado, é um
facto que só acontece com os Visigodos. Porquê?
Exactamente porque os Visigodos não têm cultura, não
sabem latim e precisam do apoio dos bispos, que, de certo
modo, representam a continuação da cultura latina. As leis,
durante a Monarquia Visigótica, são feitas, nos consílios,
pelos bispos, e o Clero aparece como uma classe com
grande poder. Aqui temos como Clero e Nobreza, dois
elementos fundamentais na sociedade medieval,
aparecem, respectivamente, na Época Romana e na Época
Visigótica. Com os Mouros é o povo livre que vai surgir…
Os Muçulmanos invadiram a Península Ibérica no ano
711. A invasão vem do Norte de África, atravessa o Estreito
de Gibraltar, cujo nome se deve precisamente a essa
invasão (porque o General se chamava Tariq e passou-se a
chamar ao estreito «Jabal al-Tariq», quer dizer o «Estreito
de Tariq»), tendo um êxito militar fulminante. Os exércitos
mouros derrotaram completamente os Visigodos, na
grande Batalha de Guadalete, e três ou quatro anos depois
eram donos de toda a Península, com uma excepção nas
Astúrias, dominando praticamente toda a Península.
Figura 15 – Invasão Muçulmana da Península Ibérica (711-714). A verde, os territórios sob
domínio muçulmano.

Como é que se pode explicar essa queda tão rápida da


Península nas mãos nos invasores? Há duas razões fortes:
A primeira prende-se com o facto de os Visigodos
terem o monopólio das armas. Só os nobres visigodos
é que podiam ser militares, tinham arte da guerra,
enquanto os demais não tinham nada que ver com a
guerra, portanto nem sequer foram vencidos. As
populações hispano-romanas permaneceram na paz;
A segunda razão era a grande tolerância religiosa de
que os Muçulmanos deram provas. Os Muçulmanos
usavam este sistema: invadiam as dioceses cristãs,
mas se os cristãos aceitassem pagar um certo tributo,
podiam manter o seu culto, as igrejas abertas, os seus
sacerdotes. Tudo como dantes. Claro que, se não
pagassem esse tributo, mas se se submetessem à Lei
do Islão, passavam a ser iguais aos outros. É claro
que, naturalmente, os próprios Mouros estavam
interessados em receber o tributo. Portanto, não
houve também grandes perseguições por motivos
religiosos.

O domínio dos Muçulmanos na Península teve uma


importância muito diferente, conforme foi no Norte ou no
Sul. Isto porque, nas regiões do Norte, estiveram pouco
mais de 100 anos, já no Sul, onde podemos encontrar o
Castelo de Alcácer do Sal, construído pelos Mouros (sendo
que Alcácer do Sal, por exemplo, só foi reconquistada pelos
Cristãos no ano de 1217, estando mais de 400 anos em
poder dos Mouros), verifica-se uma influência muito mais
duradoura.
Figura 16 – Castelo de Alcácer do Sal

De um modo geral, costuma dizer-se que a influência dos


Árabes se deu, sobretudo, na agricultura, na introdução das
novas plantas e nas técnicas do regadio. Tudo isso é
verdade, mas tais factos tiveram importantes
consequências na sociedade: o regadio permite que uma
parcela pequena de terra sustente uma família. É o árabe
que traz consigo a horta e o hortelão é um homem livre,
que vende os produtos do seu trabalho na cidade. É assim
que nasce um povo independente, senhor do seu próprio
destino.
Penso, portanto, que estão, agora, definidos os três
elementos da sociedade medieval portuguesa:
Clero, surgido ainda na Época Romana;
Nobreza, nascido no tempo dos Visigodos;
Povo, nascido na Época dos Mouros.
Depois da invasão dos Mouros, um pequeno número de
Cristãos continuou a resistir nas montanhas das Astúrias: é
a História de Covadonga7. Ainda hoje, Covadonga é
considerado uma espécie de «lugar sagrado». Essa
pequena guerra, à medida que o poder dos Mouros ia
enfraquecendo, ia avançando sobre a antiga terra dos
Mouros e é a essa guerra que se dá o nome de
«Reconquista». É claro que há muitas opiniões sobre o
que foi a Reconquista e eu creio que, de facto, se trata do
restabelecimento do regime de servidão que tinha sido
derrubado com a derrota dos Visigodos. Os novos senhores
que vêm do Norte chegam, os lavradores livres das aldeias
são obrigados a voltar à sua antiga situação de servos da
gleba e, por isso, houve realmente muitas revoltas dos
Cristãos contra os seus novos senhores. Há mesmo um
documento que chama a estes Cristãos, que cá tinham
ficado, os «libertinos», isto é, os filhos dos escravos,
dizendo que eles se revoltavam contra os seus antigos
senhores, mas que eram reconduzidos à primitiva servidão.
Isto revela claramente o carácter social da Reconquista: os
nobres vinham, apoderavam-se destas terras que estavam
mais ou menos sem dono, sem autoridade, e era a isso que
se chamava a «presúria». Presúria vem de presa, tomar
presúria. Vímara Peres8 foi um presor que, no ano de 868,
tomou de presúria o cabeço quase deserto onde, hoje, se
encontra a Sé do Porto. Havia apenas uma ermida, estando,
hoje, no seu centro, a Catedral.
7 Covadonga é uma região espanhola das Astúrias, na província de Oviedo, que
ficou célebre por ser o palco de um dos episódios mais marcantes das guerras da
Reconquista (Batalha de Covadonga, primeira grande batalha da Reconquista
Cristã, em 718), nas quais se confrontaram as populações cristãs da Península
Ibérica e os invasores muçulmanos. Em meados do século VIII, Pelágio, o líder da
resistência cristã, arrebatou esta importante vitória ao derrotar o exército árabe-
berbere na garganta rochosa junto da montanha da Virgem. À boa maneira das
lendas de cavalaria da Idade Média, o vitorioso Pelágio foi proclamado rei sobre o
campo de batalha. Os restos mortais deste guerreiro medieval, considerado o
impulsionador do movimento militar, repousam junto das ossadas de Afonso, O
Católico, na Cueva, que se abre nos flancos da montanha da Virgem e onde antes
do combate o guerreiro cristão se disfarçou com uma capa espanhola.
(Batalha de Covadonga. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2011.
[Consult. 2011-06-30].
Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/$batalha-de-covadonga>.)
Figura 17 – Estátua equestre em homenagem a Vímara Peres, de Salvador Barata-Feyo,
inaugurada em 1968, no Porto

É claro que essa Reconquista passa a Linha do Douro,


chegando à Linha do Mondego no ano de 1064. Coimbra
é conquistada pelos Cristãos, passando a ser cabeça do
novo Condado – o Condado Conimbricense. O
enfraquecimento dos Estados Árabes é justificada pela

8 Cavaleiro do século IX cujo nome se encontra ligado ao processo da Reconquista


Cristã. Apesar da prudência que a escassez de documentos recomenda, supõe-se
que a conquista do Porto aos muçulmanos terá sido definitiva, seguindo-se o
repovoamento do burgo e das terras a sul do Douro. O nome Portucale terá surgido
nesta altura e compreendia todo o território a sul do Rio Minho.
(Vímara Peres. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2011. [Consult.
2011-06-30].
Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/$vimara-peres>.)
vinda dos Cruzados9 à Península, que ajudavam os nossos
Reis nas guerras contra os Árabes, porque os Reis
aprovaram esta ideia. Tantas indulgências valia combater
os Mouros aqui na Península, como combater os Turcos lá
na Terra Santa. Portanto, muitos cavaleiros Cristãos da
França, da Inglaterra, vieram aqui fazer a sua guerra. Tudo
isso contribuiu para a vitória definitiva da Cristandade
sobre os Mouros.

Esses dois Condados, o que tinha a cabeça no Porto e o


que tinha a cabeça em Coimbra, eram governados por
Condes, praticamente independentes, mas realmente
dependiam do Rei de Leão, ao qual prestavam vassalagem.
Ora, no ano de 1095, o imperador Afonso VI, cujo título se
devia ao facto de ser Rei dos três Reinos de Leão, Castela e
Galiza, reuniu os dois Condados do Porto e de Coimbra num
só Condado e deu todo esse território a uma filha, D.
Teresa, que, por essa altura, tinha casado com um fidalgo
francês, o Conde D. Henrique, da poderosa família feudal
francesa dos Duques da Borgonha. São eles – D. Henrique e
D. Teresa – os primeiros príncipes de Portugal, que, por
vezes, residiram no Castelo de Guimarães. Os seus túmulos
estão, hoje, na Catedral de Braga.

9 Expedicionário que fazia parte das Cruzadas, isto é, as expedições empreendidas


pelos cristãos, na Idade Média, que tinha como objectivo libertar os lugares santos,
e designadamente Jerusalém, do poder islâmico.
Figura 18 – Os limites do Condado Portucalense, entregue por Afonso VI a Teresa de Leão e
Henrique de Borgonha

O Conde morreu em 1114 e, naturalmente, o governo do


Condado passou para a Rainha viúva, que era a mãe do
jovem D. Afonso Henriques.
Figura 19 – Estátua de D. Afonso Henriques, em Guimarães

Quando o pai morreu, ele ainda era uma criança. Mas,


claro, era uma criança que cresceu e, em 1122, já se
armou, a si próprio, cavaleiro, na Catedral de Zamora, o
que significa que ele não reconhecia ninguém acima de si.
Ora, por essa altura, a Condessa D. Teresa apoiava-se
muito nos nobres galegos, estando até casada com um
grande fidalgo da Galiza – o Conde Fernão Peres de
Trava –, que tinha uma posição de chefia em tudo o que
dizia respeito aos assuntos portucalenses. E os portugueses
não viam com bons olhos essa espécie de sujeição à Galiza.
Havia resistência, que vem a ser encabeçada pelo jovem
Afonso Henriques, apoiado, por um lado, pelos burgueses
de Guimarães, pelo Arcebispo de Braga e também por
muitos fidalgos portucalenses. E Afonso Henriques, com
essas forças, resolveu apoderar-se do governo do Condado.
É claro que a mãe não concordou, pois entendia que a
Condessa era ela.
Assim, os dois, mãe e filho, travaram um combate no
Campo de S. Mamede – Batalha de S. Mamede –, perto
do Castelo de Guimarães. Devo dizer que, passados alguns
anos, a esse lugar já se chamava o «Campo de Sam
Redanhas». «Redanhas», em sentido figurado, quer dizer
feitos de valentia, actos corajosos. Compreende-se
perfeitamente que, ao sítio onde houve uma batalha, se
tenha ligado essa ideia de feitos valentes. Ora, nós
sabemos, e sabemo-lo perfeitamente porque Fernão Lopes
o diz, onde era o «Campo de Sam Redanhas». Ficava a
meia légua de Guimarães, na estrada de quem vem do
Porto para Guimarães. As tropas de D. Teresa vinham
atacar e precisavam de passar o rio, tendo-o feito,
certamente, pela Ponte Romana de Creixomil que, já nessa
altura, existia. E foi, aí, que se deu o combate que fez
nascer Portugal10…

10 A cidade de Guimarães está historicamente, associada à fundação da


Nacionalidade e identidade Portuguesa. Guimarães (entre outras povoações)
antecede e prepara a fundação de Portugal, sendo conhecida como "O Berço da
Nação Portuguesa". Aqui tiveram lugar, em 1128, os principais acontecimentos
políticos e militares, que levariam à independência e ao nascimento de uma nova
Nação.
Figura 20 – Encontra-se inscrito numa das torres da antiga muralha da
cidade de Guimarães «Aqui nasceu Portugal», referência histórica e
cultural de residentes e visitantes nacionais.

Depois do combate de S. Mamede é Afonso Henriques


quem governa o Condado Portucalense, com o Porto e
Coimbra, embora o Condado, claro, dependa do Rei de
Leão. Entre as muitas acções militares de D. Afonso
Henriques, nenhuma ficou tão célebre como a Batalha de
Ourique. A Batalha de Ourique é realmente um caso
curioso, curioso! Não há dúvida que houve uma batalha,
datada do ano de 1139, entre as forças de D. Afonso
Henriques e forças mouras. Dizem que eram muitos reis,
enfim, porque depois a lenda foi ampliando, ampliando, e
acabou por transformar essa batalha num acontecimento
extraordinário, estrondoso, com a própria intervenção de
Deus, com um milagre: Deus veio do Céu à Terra e
apareceu a D. Afonso Henriques para lhe anunciar que lhe
ia dar a vitória em troca de depois ele, D. Afonso
Henriques, Lhe dever consagrar este país. É curiosa essa
história, porque realmente a lenda do milagre só aparece
no século XVI, mas foi acreditada, piedosamente, nos
séculos XVI, XVII, XVIII. E é preciso chegarmos quase ao fim
do século XIX para que o nosso grande escritor Alexandre
Herculano tenha mostrado o que havia de, enfim,
inadmissível em todas essas fantasias. Chegou-se mesmo
ao ponto de dizer que nem sequer houve batalha, o que
não é verdade, porque houve realmente uma Batalha de
Ourique, não se sabendo, contudo, hoje, ao certo, em que
local se realizou. Foi inclusive feito um monumento à
Batalha de Ourique, localizado em Vilã Chã de Ourique, nas
imediações da vila do Cartaxo.
Figura 21 – Monumento à Batalha de Ourique, em Vilã Chã de Ourique

É um belo monumento que representa, aqui, os ricos


homens do tempo de D. Afonso Henriques e, lá em cima, o
vulto da vitória. Bom, mas se formos ao Alentejo, à região
de Ourique, eu podia-lhes mostrar outro monumento à
mesma Batalha.
Figura 22 – Monumento à Batalha de Ourique, no Alentejo.

Há outras regiões, como por exemplo Leiria, que diz que foi
lá que se realizou a Batalha. A verdade é que, ao certo, não
se sabe onde foi a Batalha. Que a Batalha existiu, não há
dúvida nenhuma, e que essa Batalha deu ao jovem D.
Afonso Henriques um enorme prestígio, que lhe foi útil para
alcançar a realeza e a independência, disso também não
pode haver dúvidas.
A partir de 1140, D. Afonso Henriques já assina «Rei»,
«Afonso, Rei dos Portugueses». Para se poder considerar
um Rei independente, ele não podia naturalmente prestar
vassalagem ao Rei de Leão. E, de facto, nunca a prestou.
Mas, é claro, isso custou-lhe combates sangrentos,
negociações muito hábeis. E, em 1143, numa reunião que
foi feita na cidade de Zamora, o próprio Rei de Leão deu a
Afonso Henriques já o tratamento de «Rei»− Tratado de
Zamora.

Figura 23 – Tratado de Zamora

Finalmente, em 1179, pela primeira vez, o Papa Alexandre


III, na célebre Bula Manifestis Probatum, reconheceu
Afonso Henriques como Rei de Portugal.
Figura 24 – Bula Manifestis Probatum

É claro que a independência de Portugal deve muito a D.


Afonso Henriques, mas não foi apenas a valentia, a
teimosia e o génio político de um homem que estiveram na
base do nascimento de uma nova nação. Portugal tornou-se
independente, isto é, tornou-se nação que tem o direito de
se governar a si própria, porque toda a região tinha um
carácter próprio e principalmente porque existia um povo
português, com uma língua própria, muito diferente
daquela que se falava em Castela e Leão. Esse povo tinha
conhecido uma situação de quase liberdade no tempo dos
Mouros, e agora apoiava o príncipe que protegia os
concelhos, que constituíam o vestígio da liberdade popular,
ameaçada pela Reconquista. De facto, foram os concelhos
que deram a D. Afonso Henriques a força que lhe permitiu
ser independente, a começar pelo concelho dos burgueses
de Guimarães, que lhe permitiu resistir a um cerco posto
pelo Rei de Leão e que lhe deu também as tropas que lhe
fizeram ganhar o combate de S. Mamede. E à força do povo
juntava-se a força dos bispos, que queriam ver as suas
dioceses independentes das Sés Metropolitanas de Toledo e
de Compostela. Ele manteve, por um lado, a guerra com os
Mouros e conseguiu que a fronteira do seu Reino passasse
da Linha do Mondego para a Linha do Tejo, com a
conquista definitiva das grandes cidades de Santarém e de
Lisboa.
Figura 25 – Conquista da cidade de Santarém aos Mouros, em 1147.
Figura 26 – Conquista da cidade de Lisboa aos Mouros, em 1147.

E com Lisboa, apoderou-se de Sesimbra, de Sintra, de


Palmela. Constroem-se grandes monumentos, como são,
por exemplo, a Sé Velha de Coimbra, ou a Sé de Lisboa,
ou o Convento de Alcobaça, ou o Convento de Santa
Cruz de Coimbra, ou o Convento de S. João de
Tarouca, ou o Castelo de Leiria. É, portanto, um grande
e construtivo reinado.
Figura 27 – Sé Velha de Coimbra

Figura 28 – Sé de Lisboa
Figura 29 – Mosteiro de Alcobaça

Figura 30 – Convento de Santa Cruz


Figura 31 – Convento de São João de Tarouca

Figura 32 – Castelo de Leiria


A Monarquia que nasceu, assim, com D. Afonso
Henriques foi, essencialmente, popular, no sentido de que a
força do Rei era a força do povo. O fundador da
nacionalidade governou Portugal desde 1127 até à data da
morte, em 1185, portanto durante 58 anos. Quando ele
morreu, Portugal era considerado já um reino independente
e estava em franco progresso. Ele dispôs que, depois da
morte, o enterrassem em Coimbra, no altar-mor do
Mosteiro de Santa Cruz que ele próprio tinha fundado. O
seu túmulo grandioso é uma homenagem ao fundador de
Portugal, sendo já obra, claro, do Rei D. Manuel que, em
cerca de 1520, manda construir este grande monumento.
Mas é ali que, desde a morte, jazem os seus restos mortais.

Figura 33 – Túmulo de D. Afonso Henriques, fundador de Portugal, no altar-mor do Mosteiro


de Santa Cruz

Mas, talvez, o aspecto mais notável do seu governo seja


a protecção que ele deu constantemente aos concelhos dos
moradores. Discute-se muito, ainda hoje, qual é a
verdadeira origem dos concelhos medievais portugueses.
Há quem diga que eles representam os municípios
romanos, que tinham estado esquecidos durante alguns
séculos, mas que ressuscitaram na Reconquista. Eu penso
que não foi assim. Penso que os municípios romanos
realmente desapareceram quando desabaram todas as
instituições da autoridade romana e foram substituídos
pelas autoridades dos nobres, que se apoderaram das
terras depois da Invasão Visigótica. Mas, depois, os
invasores mouros mataram ou expulsaram os donos
visigóticos das terras e os moradores que lá ficaram, que
eram os vizinhos – esta palavra «vizinho» é curiosa, porque
vem de «vicus» e foi esta última expressão que deu Vigo,
depois substituída pelos Árabes pela palavra deles «aldeia»
– ficaram sem senhores e tiveram de se organizar para
resolver os seus próprios problemas, os problemas da sua
vida colectiva, porque alguém tinha de fazer justiça,
alguém tinha que mandar reparar os caminhos por onde se
passava, tinha que mobilizar e administrar os lagares do
vinho e do azeite, os afloramentos da terra, o regime da
pastorícia. Tudo isso eram problemas de todos e que só
podiam ser resolvidos por todos. Por isso, os vizinhos
reuniram-se – penso que, nos primeiros tempos, não
haveria Paços do Concelho –, portanto, reuniam-se à
sombra de grandes árvores, e aí decidiam colectivamente o
que é que se devia fazer. O nome que se dava a essas
reuniões era «conventus publicus vicinorum», isto é, as
reuniões colectivas dos vizinhos. E, portanto, a autoridade
que era outrora exercida pelo nobre visigótico passa agora
a pertencer à reunião colectiva dos vizinhos.
Reparem que isto é uma mudança profunda: no Mundo
Romano e, depois, no Mundo Visigótico, quem governa a
terra é o «dominus», o dono; na sociedade posterior à
Invasão Sarracena de 711, os senhores da terra são mortos
ou são expulsos e quem governa a terra são os vizinhos.
São dois caminhos opostos: o senhorialismo e o
municipalismo. Se a terra fosse de um nobre ou da Igreja
não pagava impostos (ou seja, era imune), mas se a terra
fosse de um concelho, isto é, se ela fosse governada pelos
vizinhos, o senhor era o Rei e, portanto, era ele que tinha
direito a receber os impostos, fixados nos forais. Impostos e
serviços, entre outros, o serviço militar que consistia em,
durante um certo número de semanas por ano, sempre na
Primavera, cada concelho tinha que pôr
ao serviço do Rei um certo número de
cavaleiros – eram esses os famosos
cavaleiros-vilãos –, um certo número de
besteiros (lavradores armados de
bestas) e um certo número de homens
de pé. É claro que isso tornava o Rei o
mais forte chefe militar do país, porque
cada concelho mandava poucos
homens, mas muitos concelhos
formavam uma grande hoste. Nenhum senhor, nenhum
conde podia ter a veleidade de medir forças com a Hoste
Real. O trono português teve, assim,
desde o início, na sua base, a força do
povo, e também isso marcou o nosso
destino histórico e modelou a maneira
de ser política da Nação Portuguesa.
A D. Afonso Henriques sucede, no
trono, o filho, D. Sancho I, que
também foi um grande Rei. Concedeu
muitas dezenas de forais, fez nascer a
vida em povoados que eram montes de
ruínas. Sucede-lhe D. Afonso II, que reinou pouco tempo,
mas foi também um grande rei, tendo convocado as
primeiras Cortes e publica as primeiras Leis Gerais. É
realmente um Rei que tem de enfrentar já as primeiras
reacções dos nobres, mas, quando Figura 34 – D. Sancho I,
morre, quem sucede no trono é um segundo monarca de
Portugal, cognominado “O
filho dele – D. Sancho II –, que ainda é Povoador”
muito pequeno. Não sabemos a idade, a Crónica só diz que
estava na puerícia, isto é, era uma criança. Os nobres
aproveitaram essa circunstância e o reino de Sancho II é,

Figura 35 – D. Afonso II,


terceiro monarca de
Portugal, cognominado “O
de facto, tumultuoso, cheio de conflitos sangrentos, de
guerras civis, de actos de violência sobre as vilas, sobre os
concelhos, sobre as igrejas, sobre os celeiros e adegas dos
conventos. Isto leva os representantes dos concelhos e os
bispos a apresentarem uma queixa ao Papa, dizendo-lhe
que aquele homem não sabia governar, que o país havia
caído num inferno. O Papa acreditou nas queixas e todos os
documentos que existem nos levam a crer que as queixas
tinham
razão. O
Reinado
de D.
Sancho II
foi um
período
infeliz da
História
de
Portugal.
Por isso,
o Papa
Eugénio IV, que considerava-se o chefe de toda a
Cristandade, retirou o governo de Portugal ao Rei D.
Sancho II e entregou-o a um irmão mais novo, D. Afonso,
que vivia em França, casado com uma grande fidalga, D.
Matilde, que era Condessa de Bolonha. Daí, ao nosso D.
Afonso, ficou para sempre o cognome de «O Bolonhês»,
tendo aliás assinado sempre «Conde de Bolonha» até que,
é verdade, depois de ser Rei de Portugal, assinava como
Rei de Portugal. D. Afonso vem de Paris para tomar conta
do Reino de Portugal, é bem recebido em Lisboa, mas D.
Sancho tenta resistir e há uma guerra civil que
ensanguentou o país durante cerca de dois anos. Mas D.
Sancho foi vencido, teve que sair de Portugal e refugiar-se
em Toledo, onde morreu pouco depois, e «O Bolonhês»
sobe ao trono: é D. Afonso III.
Figura 37 – D. Afonso III, quinto
Figura 36 – D. Sancho II, quarto
monarca de Portugal, cognominado “O
monarca de Portugal,
Bolonhês”
cognominado “O Capelo”

Com o reinado do «Bolonhês», restabelece-se a paz e a


organização no país. O povo é, pela primeira vez, chamado
a tomar parte nas Cortes11. A cidade de Lamego é ligada às
11 O termo Cortes procede do latim cohors. Ao longo dos séculos este tipo de
organismo teve diversas designações: cúria, concílio e parlamento; segundo
Armindo de Sousa, estas designações chegaram a ser 16. As Cortes eram
assembleias de estrutura e funcionamento complexos e não terão existido
anteriormente a 1211. Quanto aos seus antecedentes, enquanto Henrique de Gama
Barros os encontra nos concílios nacionais da monarquia visigoda, Sanchez-
Albornoz filia-as na Cúria Régia, órgão auxiliar dos reis. Inicialmente a participação
na cúria constituía um acto de vassalagem e não uma prerrogativa, mas
progressivamente estas assembleias evoluíram para um modelo cada vez menos
palaciano e cada vez mais assente na abordagem dos problemas políticos,
económicos e legislativos. As Cortes só o passam a ser efectivamente a partir do
momento em que nelas passa a ter assento permanente o braço do povo, através
dos representantes dos concelhos, para além da nobreza e do clero, que já
anteriormente se encontravam próximos do rei. Funcionavam por convocatória do
rei em sessões ordinárias, antecedidas por sessões solenes. Na sessão solene era
proferido um discurso de abertura, a cargo de alguém nomeado pelo rei. Neste
discurso eram apresentados os motivos da convocação. A convocação de Cortes
nunca obedeceu a uma periodicidade temporal bem determinada, dependeu da
vontade do rei (pois começaram a representar uma limitação ao seu poder) e de
conjunturas políticas e sociais. Os trabalhos das Cortes desenrolavam-se em
reuniões separadas de cada um dos três braços, que, cada um por si, apresentavam
ao rei as suas petições ou conclusões. O rei a todos respondia posteriormente,
cabendo-lhe, em caso de impasse ou não, a decisão final. A duração dos trabalhos
decorria por tempo indeterminado até que terminassem os assuntos a discutir;
pode, contudo, afirmar-se que a sua duração média seria de um mês. O período
áureo das Cortes em Portugal corresponde aos séculos XIV e XV, tendo as primeiras
sido realizadas em Leiria em 1254; nunca mais, após este período, se convocaram
Cortes em tão grande número. Podem apontar-se como razão para a realização de
tão elevado número de Cortes a necessidade que o rei tinha de apoio financeiro e
político. A sua decadência começa com a expansão económica ultramarina e com a
evolução das ideias dos legistas, que foram tornando o rei menos dependente dos
Cortes também por uma lenda, inventada no século XVII,
que diz que foi aí que D. Afonso Henriques reuniu as
famosas «Cortes de Lamego» que, realmente, nunca
existiram. Isso é uma lenda inventada por imaginosos
cronistas. A lenda entrou, de certo modo, na História,
porque houve muitos actos importantes da vida portuguesa
– até a nossa independência –, em que se falava no Direito
definido nas Cortes de Lamego12.
Para falar no reinado de D. Afonso III, nenhum lugar está
mais indicado do que Leiria, porque, de qualquer forma, a
única notícia segura que temos das Cortes com
representantes do braço popular é realmente dessas
Cortes, das Cortes de Leiria, datadas de 1254. Pensa-se
que as Cortes estiveram reunidas na Igreja de S. Pedro,
dotada de uma fachada românica e situada no sopé do
Castelo de Leiria.

grandes senhores nobres e dos impostos extraordinários exigidos ao povo. Esta


decadência é manifesta a partir de D. João II e definitiva quando a linha política
evolui definitivamente no sentido do absolutismo. O rei já não depende deste órgão
pois só ele tem a boa razão que lhe permite decidir sempre no melhor sentido.
(Cortes. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2011. [Consult. 2011-
06-30].
Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/$cortes>.)

12 Ninguém dispõe da Acta autêntica das chamadas «Cortes de Lamego», que se


terão reunido na Igreja de Santa Maria de Almacave, em Lamego. Dispõe-se, no
entanto, de uma cópia apócrifa do século XVII, onde é feita a aclamação de D.
Afonso Henriques como Rei de Portugal e se estabelecem as "Regras de Sucessão
ao Trono". O conteúdo da Acta dessas Cortes, publicado por Frei António Brandão,
foi respeitado até à Dinastia Filipina, mas só foi explicitamente incorporada no
ordenamento jurídico da Monarquia Portuguesa nas Cortes de 1641, para que o
trono não fosse de novo para um príncipe estrangeiro como nas Cortes de Tomar de
1581. Desde 1641, essa Acta passou a valer como uma Lei Fundamental do Reino
de Portugal quanto às "Regras de Sucessão ao Trono".
(BRANDÃO, Doutor Frei António. Terceira parte da Monarchia Lusitana: que contem
a historia de Portugal desdo Conde Dom Henrique, até todo o reinado del Rey Dom
Afonso Henriques…. Lisboa: Pedro Craesbeck, 1632.)
Figura 38 – Igreja de S. Pedro, dos finais do século XII, em Leiria

É um castelo que tem coisas muito anteriores a D. Afonso


III, como por exemplo a parte central com a torre de
menagem, datada do princípio da Monarquia, e também
tem coisas muito mais modernas que D. Afonso III, como
aquela linda alcáçova com janelas debruçadas sobre o que
hoje é a cidade, tudo isso é do tempo de D. João I, portanto
já dos princípios do século XV.
Figura 39 – Torre de Menagem do Castelo de Figura 40 – Interior da alcáçova do
Leiria Castelo de Leiria

Há muitas outras coisas que nos lembram a Revolução


do “Bolonhês”, como, por exemplo, a bandeira do Rei: até a
D. Sancho II, são apenas as cinco quinas em campo branco,
ou seja, a Hoste Real ia atrás daquela bandeira, mas D.
Afonso III, quando vem para o Reino, tem que trazer uma
bandeira que o distinga. Ele tinha sido apoiado, em França,
por uma tia materna, que era a Rainha D. Branca de
Castela, cuja bandeira era vermelha, toda bordada com
castelos de ouro – era isso que queria dizer «Castela». O
nosso príncipe sobrepõe a bandeira branca das quinas à
bandeira vermelha dos castelos, dando o resultado de uma
bandeira com cinco quinas rodeadas pela faixa dos
castelos, que ainda hoje figura na Bandeira Nacional.
Figuras 41 e 42 – Evolução da bandeira de Portugal

Com D. Afonso III, muitas coisas mudam em Portugal e


um dos passos importantes é a conquista definitiva do
Algarve, logo em 1249. Note-se que D. Afonso III só era Rei
desde 1248, ano em que morre, em Toledo, o Rei D.
Sancho II. Pois, logo em 1249, ele, à pressa, vai conquistar
as últimas praças mouras do Reino do Algarve. Porquê essa
pressa toda? Porque realmente quem se considerava com
direito a conquistar o Algarve era o Rei de Leão e Castela,
que entendia que era um direito dele. Por isso, quando os
portugueses conquistaram aquelas praças, surgiu um
conflito entre a Coroa Portuguesa e a Coroa Castelhana,
conflito que D. Afonso III resolveu com uma extrema
habilidade: casou com uma filha bastarda do Rei de
Castela. D. Afonso X, o Rei de Castela, por sua vez, deu o
Algarve ao primeiro neto que nasceu desse casamento, que
vem a ser o Rei D. Dinis. Quando o Rei D. Dinis cresceu,
aquilo era um Reino à parte, mas pertencia ao Rei de
Portugal e foi assim que o Algarve se integrou na Coroa
Portuguesa.
Devo-lhes dizer que esta Revolução de 1245-48, que
põe no trono «O Bolonhês», é pouco conhecida dos
portugueses. Tem muitos pontos de semelhança com a
Revolução que, século e meio mais tarde, vem a mudar
também o destino nacional – a Revolução de 1383-85. A
razão porque uma é tão conhecida e outra tão pouco creio
que é só esta: a Revolução de 1383-85 teve um escritor
genial que a descreveu – Fernão Lopes –, ao passo que a
Revolução de 1245-48 não teve ninguém que lhe dedicasse
uma Crónica.

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