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1 NOTAS

"Sou especialista da curiosidade não especializada"


(Agostinho da Silva, Pensamento à Solta,
in Textos e Ensaios Filosóficos II, p. 160)

PESCADORES E CORSÁRIOS

1. A ocupação humana da bacia do Tejo

PRÉ-HISTÓRIA

Os mais antigos fósseis de hominídeos na Europa, datados de 1,1 a 1,2 milhões de


anos, foram encontrados no norte da Península Ibérica, na serra de Atapuerca, Burgos,
Espanha. Foi denominado Homo antecessor. Nesta fase do conhecimento, tudo indica que,
pelo menos, a parte ocidental da Europa tenha sido povoada por humanos vindos do Norte de
África e que, de algum modo tenham atravessado o estreito de Gibraltar. O clima e a fauna
europeia assemelhava-se à actualmente existente em África.

Em Portugal, os vestígios humanos mais antigos datam de há cerca de 500-300 mil anos, e
dizem respeito à espécie Neandertal. Os restos fósseis conhecidos da espécie Homo sapiens
são de Cro-Magnon com traços de neandertal, com 24.500 anos. O esqueleto de uma criança
encontrada no “Vale do Lapedo”, Abrigo do Lagar Velho, concelho de Leiria, é interpretado
como indicador de populações híbridas resultantes do cruzamento das duas espécies. São
também os registos de seres com características neandertais mais recentes que se conhecem,
possivelmente os últimos da sua espécie.

Estas eram as sociedades Paleolíticas de subsistência, de caçadores-coletores que deixaram a


sua cultura, como a arte rupestre do Vale do Côa, a gruta do Escoural na Serra de
Monfurado, Montemor-o-Novo, nas grutas litorais da Arrábida e no Tejo nas praias de
Alcochete, onde Neandertais se tornaram especialistas em talhar bifaces cortantes.

Após o fim da última idade do gelo, há cerca de 12 a 11 mil anos, as alterações climáticas
permitiram iniciar a domesticação de animais de pastoreio, algumas culturas de cereais e a
pesca.
O estuário do Tejo é um dos maiores do território europeu ,
atingindo uma superfície em torno dos 320 km2. A sua principal fonte de água doce é,
naturalmente, o próprio rio , existindo, contudo, contribuições consideráveis de linhas de água
de menor caudal, como é o caso dos rios Trancão e Sorraia.

As características geográficas, climatéricas e recursos naturais desta vasta área


favoreceram, desde períodos remotos, a fixação de comunidades humanas.

Dos primeiros caçadores-recoletores e pescadores, aos camponeses neolíticos e da “Idade dos


Metais”, Fenícios, Romanos, Germanos, Árabes e Portugueses, todos viveram o rio e do rio.
Desde muito cedo as tribos começaram a aproveitar os recursos hídricos e a navegar neles. Os
primeiros barcos terão sido feitos de troncos, formando jangadas, depois fizeram pirogas,
primeiro impulsionando-as com as mãos e de seguida com outros instrumentos. Aprendendo a
utilizar o vento e aventurando-se no mar.

O Neolítico(*) é testemunhado no sul de Portugal por utensílios de pedra e pela cultura


megalítica(**), com dólmens como a Anta Grande do Zambujeiro, menires como no
cromeleque dos Almendres, bem como a arte esquemática representada na Anta pintada de
Antelas (Oliveira de Frades) e em ídolos-placa.

(*) O Povoado Neolítico da Ponta da Passadeira: O cordão dunar da praia fluvial da Ponta da Passadeira, há
cerca de 5 000 anos encontrava-se recuado e situado mais a Norte. Localizada na fronteira dos concelhos
Moita/Barreiro, a paisagem que nessa era circundava a Ponta da Passadeira tinha características bastante
diferentes das atuais, estando coberta por um bosque de Pinus (pinheiros) e Quercus suber L. (sobreiros),
favorecendo a fixação humana desde o Paleolítico Médio até ao Neolítico e Calcolítico Inicial. Os povoados
ribeirinhos que aí se estabeleceram, subsistiram da agricultura e pecuária e, especialmente, dos recursos
marino-estuarinos. Os vestígios recolhidos permitiram observar a existência de uma economia baseada na
extração de sal por via ígnea e uma intensa produção oleira desenvolvida de forma massiva, inclusive o 1º.
Forno cerâmico identificado em Portugal . Os vestígios desta atividade ainda são visíveis e encontram-se
milhares de pequenos fragmentos cerâmicos em toda a extensão da Praia do Lavradio. Todos estes achados
fazem parte das reservas arqueológicas da CM Moita e do acervo do Museu de Arqueologia e Etnografia do
Distrito de Setúbal Alguns recipientes foram reconstituídos e encontram-se expostos no Espaço Memória, na
Quimiparque. Na ETAR Barreiro/Moita está patente uma exposição permanente com um vestígio arqueológico
dos bosques neolíticos atualmente submersos. Fontes: CMBarreiro/Moita

(**) A cultura megalítica na Europa


A cultura megalítica europeia foi uma civilização pré-histórica e pré-literata baseada principalmente na
Europa Ocidental e que deixou um legado de grandes monumentos de pedra (ou megalitos) dispersos
através do continente. Calcula-se que as primeiras destas construções, encontradas na Península
Ibérica, datem de aproximadamente 5.000 a.C., antecipando desta forma as pirâmides do Antigo
Egipto por cerca de dois milénios, o que coloca o atual território português como possível centro
difusor desta cultura. Constituídas originalmente de tumbas comunais e outras estruturas bastante
simples, o desenho dos megalitos evoluiu posteriormente para incluir as fileiras de pedras da Bretanha
e as centenas de círculos de rochas das ilhas britânicas, dos quais o mais famoso é Stonehenge.
PROTO-HISTÓRIA

A idade do bronze da Península, com o desenvolvimento da olaria e outros metais


como ouro, prata, estanho, iniciou-se cerca de 4 000 a.c. a sul, em locais como El Argar, (ver
cultura de El Argar) de onde se espalhou. No III milénio a.c. , várias ondas de povos indo-
europeus Celtas vindos da Europa Central invadiram o território. Misturando-se com as
populações locais, formaram diferentes grupos étnicos, com numerosas tribos. As principais
tribos foram os galaicos, que estabeleceram a cultura castreja a norte, os lusitanos no centro,
os célticos no Alentejo, e os cónios no extremo sul de Portugal (regiões do Algarve, Alentejo
sul da Estremadura e oeste da Andaluzia). Aí se desenvolveu a escrita do sudoeste(*) uma das
escritas paleo-hispânicas atribuída aos Tartessos. A sul, na mesma altura, estabeleceram-se
também alguns postos comerciais costeiros semi-permanentes de fenícios e a partir de século
V a.c. de cartagineses. (Ver Museu da Escrita do Sudoeste. Almodôvar).
(*)(https://ferndias.blogspot.com/2019/08/escrita-do-sudoeste-sw-1-escrita-da.html)

Teriam sido os Tartessos os fundadores do primeiro reino administrativamente organizado na


península Ibérica ocidental, englobando toda a depressão dos vales do Tejo, Sado e
Guadalquivir, até Olisipo(*)(Lisboa), construindo o primeiro caminho terrestre ligando a capital
do reino da Bética (Andaluzia) com Olisipo. Era uma civilização caraterizada por um misto de
traços ibéricos pré-históricos e fenícios, dos quais era um importante parceiro comercial,
principalmente em metais como o estanho, o cobre e o ouro.
No século VI a.c., Tartesso parece desaparecer abruptamente, talvez eliminada por
Cartago que, depois da batalha de Alália, teria feito pagar a aliança com os gregos. Os
romanos chamaram à Baía de Cádis Tartessius Sinus, mas o reino de Tartessos já não existia e
seria substituído pelos Túrdulos.
(*) O sufixo “ippo” (ipo) revela influência Tartessa. (Olisipo)

Alcácer do Sal, Setúbal e Lisboa apresentam ocupações indígenas que receberam, num dado
momento, influências orientais, reproduzindo o padrão do Baixo Guadalquivir; presença tartéssica, a
julgar por topónimos, antropónimos e vestígios materiais. Os topónimos tartéssicos incidem em zonas
costeiras e portos de comércio. Estes três tópicos são fundamentais para defender a supracitada
colonização tartéssica.

A colonização fenícia

“A chegada de populações fenícias à Península Ibérica, nos inícios do 1º milénio


a.c.., (Bronze final) foi um acontecimento que produziu alterações radicais em todas as
comunidades autóctones com as quais esses grupos humanos do Próximo Oriente entraram
em contacto(*). Ainda que os moldes exatos em que se formatou essa convivência não
estejam ainda definitivamente esclarecidos, a verdade é que o elemento oriental foi o que
prevaleceu em termos culturais, sobretudo nas áreas da fachada litoral peninsular onde essas
comunidades se instalaram.
… a introdução de novos objetos … como é o caso de novas formas cerâmicas,
artefactos em metal e objetos de pasta vítrea, irá marcar uma profunda revolução no registo
arqueológico dos inícios do 1º. Milénio, conferindo-lhe, desse momento em diante, um cariz
marcadamente orientalizante, que irá perdurar até à chegada dos primeiros contingentes militares
romanos ao território.” (Elisa de Sousa.2014)

A chegada destas gentes orientais ao estuário do Tejo não acontece por acaso, parecendo
obedecer a objetivos muito específicos e a um planeamento prévio (Arruda, 2005). A partir
dos finais do século VI a.C., a situação alterou-se, de forma radical, em todo o território
mediterrâneo e atlântico afetado pela colonização fenícia. A conjugação de fatores de
instabilidade interna, associada à queda de Tiro e à saturação dos mercados do Mediterrâneo
Oriental pela introdução de grandes quantidades de minérios, concretamente de prata, durante
as centúrias anteriores, forçaram as colónias do Ocidente a reestruturar, de forma
independente, as suas estratégias económicas, o que originou transformações profundas no
tipo de povoamento e nos artefactos.

(*) A escavação do povoado de Santa Sofia (V.F.Xira), ao longo de duas extensas campanhas
(durante o verão de 2006 e 2007), permitiu caracterizar a sua ocupação e organização espacial,
revelando um singular povoado de cabanas onde a presença fenícia se encontra bem evidenciada.
Esta descoberta veio relançar a discussão científica em torno de um período fulcral da história da
ocupaçáo humana do Vale do Tejo, a idade do Bronze Final, período esse que foi definido pela
Comissão europeia em 1995 como “a primeira idade de ouro da Europa”. (Elisa Sousa, Museu
Municipal. “V.F.Xira há três mil anos”, Setembro 2013).

Os Fenícios em Almada. O sítio de Almaraz

Vestígios da presença fenícia, datados da 1ª. Idade do Ferro (1.200 a.n.e. - 1.000), foram identificados
em cinco locais do concelho de Almada; destes, sobressai o extenso povoado de Almaraz. Neste local
foram recolhidos uma das cerâmicas mais características do Mundo Fenício: a cerâmica de verniz
vermelho, tratando-se do conjunto mais numeroso até agora dado a conhecer em Portugal.
A localização privilegiada de Almaraz, um esporão sobranceiro ao Tejo, fez com que, pelo menos, o
local tivesse sido escolhido como habitat desde o Calcolítico médio e no Bronze Final até à 2ª. Idade
do Ferro.

Nas bases de subsistência desta comunidade predominavam largamente as espécies domésticas. A


maior representação numérica é a dos ovicaprinos. Mas considerando a corpulência do boi doméstico,
a quantidade de restos identificados correspondem a um peso de carne muito superior, pelo que é lícito
concluir que era esta a espécie mais importante na dieta.

A estas espécies, junta-se, acessoriamente, o coelho doméstico. A caça teria um papel insignificante
nos hábitos destas populações sedentárias, essencialmente voltadas para o estuário do Tejo e para o
comércio marítimo. A abundância de restos de peixe e moluscos demonstra-o.
A presença do boi doméstico que, como foi referido, constituiria a componente mais importante da
alimentação, revela uma comunidade estável e sedentária. A agricultura está também documentada
pela presença de mós e de grainhas de uva.

Na economia, ainda teríamos a salga de peixe a par da inevitável exploração de sal, o qual poderia
constituir também um produto de exportação. Sabe-se da importância que o sal desempenhava na
Antiguidade e da dificuldade da sua produção no Mediterrânio.

A exploração das areias auríferas do Tejo seria outra actividade provável atendendo à importância
que, desde pelo menos o Período Romano e até aos alvores da Idade Moderna, aquela exploração
atingiu. Por outro lado a metalurgia encontra-se bem documentada no Almaraz, através de escórias (de
ferro, seguramente, e bronze?) bem como da recolha de cadinhos de fundição.

Também os produtos da terra, como vinho e azeite poderiam constituir bens de troca, comerciados em
contentores cerâmicos e exportados.
(Barros, L; Cardoso, J.L; Sabrosa, A (1993) – Fenícios na Margem Sul do Tejo -Economia e Integração Cultural do Povoado
do Almaraz – Almada In Actas do Colóquio Os Fenícios no Território Português).

“Durante o decurso dos três séculos do chamado período orientalizante (VIII a VI a.n.e.), a cultura material
do estuário do Tejo não é muito diferenciada de outras áreas tocadas pela colonização fenícia”. (Elisa de
Sousa)
“No Bronze final do Ocidente Peninsular, náo há palácios não há mercados, não há
templos…”, como muito bem recordou a professora de Coimbra (Vilaça 2003).

A adaptação a um novo modelo de organização social e política, que a colonização fenícia


implicou, foi certamente “dolorosa” e em muitos casos não inclusiva (**), mesmo que para
alguns tenha tido evidentes benefícios”. (Ophiussa, vol. 1, 2017 pgs. 79-90, UNIARQ).

(**) A história do Monte tradicional alentejano remonta ao séc VII a. C. e à presença dos Fenícios
que, por terem na Península Ibérica uma base importante e estratégica na sua rota de comércio,
exerciam sobre este território uma forte influência…

Os Fenícios foram um dos primeiros povos a tentar implementar um conceito de Estado, onde as
regras fossem similares entre os diferentes povos que coabitavam a região. Os grandes centros
urbanos, por eles dominados, foram os primeiros locais a acolher e a implementar estas regras, o que
levou a que uma boa parte dos seus habitantes habituados a viver segundo as suas próprias normas
começassem a dispersar por todo o sudoeste peninsular, de modo a poderem viver segundo os seus
próprios costumes. Por consequência, levavam consigo muito da influência Fenícia no que à
construção e à estrutura habitacional dizia respeito.

Com uma história que ascendente os 2500 anos, o Monte Alentejano teve a sua maior influência na
arquitetura mediterrânica, instituída, em grande parte, pelos Fenícios. É de realçar a privacidade de
espaço como característica principal, situando-se a habitação no centro dos pátios, o que garantia a
sua salvaguarda. (Carlos Dias, Público 2 Outubro 2016, entrevista Rui Matoloto)

Os barcos de proa levantada poderão ter sido aperfeiçoados por fenícios a partir de embarcações celtas. O barrete frigío e o
vestuário das populações de pescadores da costa portuguesa e foz dos rios Ave, Tejo, Sado e Guadiana denotam também
influência orientalizante.
A Colonização Roman
Este texto da “Geografia” de Estrabão é contemporâneo dos acontecimentos que consolidam a
ocupação romana da Ibéria.

“O Tejo tem de foz uma largura de uns 20 estádios e uma profundidade tão grande que pode
ser remontado por barcos de dez mil ânforas de capacidade. Na altura das cheias, produz
dois esteiros, nos baixios interiores, a ponto de formar como que um mar de 150 estádios, de
tornar a planície navegável e de isolar, no esteiro superior, uma ilha, de cerca de 30 estádios
de extensão e com uma largura um pouco menor, muito fértil e com belas vinhas. Esta ilha
situa-se junto da cidade de Móron,(?) que se ergue num monte próximo do rio, a 500 estádios
de distância do mar no máximo, e está rodeada por uma região fértil.
A navegação até aí é fácil mesmo para barcos de grande porte numa boa parte do seu
trajecto e, no resto, por embarcações de rio. Para cima de Móron(?) a navegação ainda é
mais longa. Brutos, denominado o Galaico, utilizou esta cidade como a base das operações,
quando entrou em guerra contra os Lusitanos e os submeteu. Em seguida amuralhou
Olisipo, nas margens do rio, para ter livres a navegação e o acesso aos víveres. Estas
cidades são também as maiores que se encontram junto ao Tejo.”(Estrabão, Geografia, III,
3, 1 - tradução de José Ribeiro Ferreira (Kalb; Höck, 1988: 190) (In “Por este rio acima:
…”, Carlos Fabião, Janeiro 2014, Cira 3).

Segundo Carlos Fabião (Actas, “Congresso da Conquista e Romanização do Vale do Tejo”, Cira
Arqueologia, Janeiro 2014), o Tejo era visto como um eixo fundamental da instalação romana na península
Ibérica. Entre os finais do século II e os inícios do século I a.c. davam-se os primeiros passos da
romanização e o valor da bacia hidrográfica e extensa navegabilidade do rio, que permitia bom acesso
ao interior peninsular era registado nos apontamentos geográficos de Estrabão e também de Plínio-o-
Velho que sublinham “...a riqueza aurífera dos rios lusitanos. A região de que falamos (Lusitânia) é fértil e é
percorrida por rios grandes e pequenos… Quase todos são navegáveis e são os que mais areia aurífera possuem”.
(Geografia III,3,4); “O Tejo é famoso pelas suas areias auríferas” (Plínio-o-Velho, História Natural, 4,115).

Mesmo que a revolta sertoriana(*) tenha obrigado a um importante retrocesso da ocupação


romana, a importância estratégica do porto de Olisipo e a via natural do Tejo para Norte, não
explica os vestígios arquelógicos de continuada e densa ocupação militar em ambas as
margens do rio.
(*) General e estadista Quintus Sertorius (126 -73 a.n.e.).

Seria provavelmente a riqueza aurífera do Tagus a justificar a presença destes


estabelecimentos militares. As extensas “conheiras”(*) em ambas as margens do rio e as
imensas redes de galerias já identificadas em Vale de Gatos, Foros da Catrapona e Adiça
(Seixal e Almada) junto do estuário na margem esquerda, assim o evidenciam. (*)
“conheiras”, cova, espaço amplo escavado para exploração mineira a céu aberto.
No que respeita à atividade económica, novos dados têm sido revelados ultimamente pela
arqueologia, destacando-se as formas da proto-indústria dos fornos de cerâmica e cetárias
(*). (António F. Carvalho e Francisco Almeida, CMSeixal, Pub. D.Quixote, 1996)**

(*) cetária é um tanque de forma retangular de dimensão variável, destinado à salga e fabrico de diversos
molhos e outros preparados de peixe, na época romana. O condimento mais conhecido aí fabricado era o
garum, que era utilizado como condimento em quase todos os pratos.
“O fabrico e a distribuição dos preparados de peixe foram com certeza das atividades económicas mais
características do baixo Tejo na Época Clássica. A testemunhá-lo está a descoberta não só de tanques para
as indústrias conserveiras, mas também de estruturas de produção de recipientes anfóricos, normalmente
associados ao transporte de preparados de peixe”.
Até agora foram identificados os complexos de cetárias da Casa dos Bicos, Cacilhas, Rua Augusta, Setúbal, e o
maior de todos, em Troia.

Quanto aos fornos de cerâmica, conhecem-se até à data 4 complexos no estuário do


Tejo: Muge e Garrocheira, a Norte, e a Quinta do Rouxinol (Corroios, Seixal) e Porto dos
Cacos (Alcochete, Rio Frio).

“A sua implantação corresponde, de modo geral, à necessidade de recursos essenciais


à produção oleira tradicional: argilas, e acessibilidade a boas vias de comunicação… Quanto à
lenha seria recolhida em grande parte na atual margem Sul… No que diz respeito à produção,
o que salta mais à vista é a enorme quantidade de contentores anfóricos… O que nos parece
provado, é que o grosso destes contentores se destinaria ao transporte dos preparados de
peixe (Fabião & Guerra, 1990). Assim sendo, é natural a associação dos fornos de cerâmica com
as cetárias. No entanto, apesar dessa associação parecer evidente, é de realçar o facto de, pelo
menos na Quinta do Rouxinol e na Garrocheira, não estarmos perante uma produção exclusiva
de ânforas, mas também de outros tipos de recipientes, para além de material de
construção ...”
Quanto à organização do espaço agrário, este tende a concentrar-se em redor de Olisipo (Na
época de Augusto estima-se que Olisipo teria cerca de 30 a 40 mil habitantes) , mercê das melhores terras que
permitiam a diversificação de produtos agrícolas: pastoreio, cereais, vinha, oliveira,
fruticultura, horticultura e ainda silvicultura. A criação de gado, em regime pastoril ocuparia o
último dos anéis de exploração…” **

No que respeita à margem Sul, as características dos solos, atuaram, decididamente


como condicionadoras do povoamento. É possível observar uma maior concentração de sítios
de carácter rural apenas numa faixa a Norte do actual concelho de Almada...Quanto à restante
área circundante… teria uma utilização essencialmente florestal, abastecendo não só os fornos
de cerâmica, mas também a própria cidade de Olisipo.” **

Em suma, podemos diferenciar pelo menos três níveis de circuitos comerciais: um


local, ligado ao abastecimento de Olisipo; um regional, com outros centros urbanos, casos de
Scallabis e Caetobriga, só para mencionar os mais próximos; e finalmente … o comércio de
longa distância com outras regiões do Império.

“A situação de Olisipo como “capital marítima” propicia os contactos marítimos, via


utilizada para a recepção dos produtos de importação como, por exemplo, as cerâmicas finas e
nas exportações os preparados de peixe e, possivelmente, os vinhos. Seria também
interessante determinar o efectivo papel das pedreiras, bem como os tanques de tinturaria de
têxteis (Casais Velhos e Bom Sucesso)”.**

Síntese do período romano

Entre o século III a.c. e VIII estabelece-se na Península a Pax Romana. Um império
poderoso
baseado na força bélica e num modo de produção esclavagista depende destes dois
conectados aparelhos como motor de continuada expansão. A civilização europeia nasce sob
a visão imperial greco-romana que vai deixar um legado que perdurará séculos. O seu
poderio naval destruiu toda a resistência fenícia até à queda de Cartago. O Tejo torna-se
uma via romana permitindo ao longo de séculos a ligação do litoral ao interior, expandindo a
economia e o controle territorial. As salinas das margens do estuário do Tejo, exploradas
desde o Neolítico, permitiram a indústria do pescado e a sua exportação para lugares
longínquos, utilizando os contentores anfóricos (ânforas) produzidos em diversos lugares de
acesso fácil proporcionados pelos esteiros. O Império lança-se à tarefa de tentar regularizar
as períódicas cheias do rio Tejo com aterros, muralhas e estacaria. Constroem-se portos para
a navegação entre as principais cidades, como complemento das vias romanas, das quais
Equabona (Coina) é exemplo, formando uma bacia económica que atravessava toda a
Lusitânia.

No século III o Império Romano inicia um processo de auto-desagregação. As contradições


inerentes ao motor da expansão territorial, a pilhagem e a arregimentação de escravos,
impõem uma reflexão acerca da equação custos-benefícios. Perante o impasse da muralha de
Adriano na Britânia (atual Inglaterra/ Gales), o imperador Teodósio decreta o fim das
conquistas e proclama que os governantes devem dedicar-se prioritariamente à
administração do Império. Após a morte de Teodósio em 395, os vastos territórios são
divididos em Império Romano do Ocidente, com a capital em Roma e Império Romano do
Oriente (ou Bizantino) com a capital em Constantinopla (mais tarde Bizâncio).
Em 434, a investida dos Hunos nas fronteiras ocidentais do Império, põe em fuga os povos
germânicos do Reno e Danúbio, que se refugiam na península Ibérica. Suevos, Alanos e
Vândalos instalam-se mais ou menos pacificamente, seguidos dos Visigodos. O termo
“invasão” é uma visão ultrapassada da situação vivida pelo recuo do poderio do Império.
Estas migrações devem ser compreendidas como um processo complexo, um catalisador de
uma conjuntura de crise anunciada.
O modo de produção deixa de ser rentável devido ao aumento dos preços da mão-de-obra
escrava. Instala-se uma depressão económica, enfraquecendo a aristocracia (patrícios),
detentora de grandes extensões de terras, os latifúndios.

Perante sucessivos desastres militares, os dirigentes romanos recorrem a alianças


conjunturais com os recém-chegados. É assim que os próprios Hunos foram utilizados pelo
exército romano para combater outros grupos. O mesmo também se deu com os Visigodos que
foram arregimentados nas fileiras do Império no combate aos Suevos e Alanos. As interações
entre romanos e bárbaros obedeciam a interesses concretos, alianças militares permeadas
por situações de conflito e até mesmo de incorporação destes “invasores” ou imigrantes, na
estrutura política do Império Romano.
Em 476, Odoacro, chefe dos Hérulos, conquista Roma e depõe o imperador Rómulo Augusto.
O Império Romano do Ocidente tinha chegado ao fim, mas o do Oriente perduraria como
Império Bizantino, por mais mil anos. No dia 12 de Abril de 1204, o saque de Bizâncio pelas
tropas da IV Cruzada e o massacre de dois mil gregos marca a rutura entre o cristianismo
ortodoxo do Oriente e o católico do Ocidente.

Também apressaria a queda do Império Bizantino em 1453, às mãos da nascente expansão


Otomana, comandada por Maomé II.

A colonização romana deixou-nos uma rede de estradas, uma cultura, uma língua, o
Direito Romano e … uma visão imperial.

OS ÁRABES CHEGAM À PENÍNSULA IBÉRICA

No início do século V, os Visigodos que ocupavam o sudoeste da Gália (França) e


parte do norte da Hispânia, pressionados pelos Hunos entram em força na Península Ibérica.
Vinham em nome do Imperador do Ocidente, Honório, com o fito de estabelecer a ordem na
Península, ocupada por Suevos, que tinham alargado os seus domínios, Alanos e os belicosos
Vândalos. Acabaram por unificar num só reino toda a Ibéria.

Em 710 as cortes visigóticas reúnem-se para eleger um novo soberano, tentando resolver a
disputa entre dois concorrentes: Ágila II, filho do falecido rei e Rodrigo que controlava a
capital visigótica de Toledo. Rodrigo acaba por ser o escolhido em eleições muito disputadas.
Não aceitando o resultado, os partidários de Ágila desencadeiam uma guerra civil e pedem
apoio ao governador muçulmano de África.

Em 711, sob o comando do general Berbére, Tãrik ibn Ziyade, tropas muçulmanas atravessam
o estreito de Gibraltar e vencem Rodrigo em Guadalete. De 711 a 713 sucessivos movimentos
militares e migrações essencialmente berbéres (mouros) progridem na ocupação da Hispânia
que passa a ser desgnida por al-Ândalus. Em 788 o Califado Omíada dá por terminada a
conquista, ignorando as montanhosas Astúrias por considerá-las sem interesse e onde Pelágio,
descendente da corte visigótica, começa por organizar a Resistência.
O Califado ainda faz uma tentativa para passar os Pirenéus mas são detidos em Poitiers pelos
Francos.
A unificação da Ibéria governada por muçulmanos dá origem ao Emirado independente de
Córdova que comandou os destinos do al-Andalus de 711 a 1492, quase 800 anos.

A língua árabe é introduzida na Península Ibérica como elemento unificador e consegue


impor-se ao longo do século XI, sem distinguir a religião dos seus falantes; ou seja, era a
língua de comunicação dos muçulmanos, dos cristãos e dos judeus do al-Ândalus.

O Gharb al-Ândalus

As montanhas conhecidas como Cordilheira Central, que inclui a Serra da Estrela, a


Serra do Gerês e a Serra da Peneda, em Portugal e de Guadarrama, Gredos e Gata, em
Espanha, dividem a Península Ibérica em duas realidades bem diferenciadas. O relevo a
Norte torna-se mais acidentado e a vegetação mais verde e exuberante, devido a maiores
precipitações atmosféricas. Já o Sul é caracterizado por um clima mediterrânico, com
invernos relativamente suaves e verões quentes e secos. A vegetação predominante é o mato
mediterrâneo, oliveiras, sobreiros e vinhas.

Não só o clima e a vegetação moldam as populações, são notórias as diferenças culturais e


históricas entre estas duas regiões. O Norte tem uma forte influência celta e galaica, com uma
tradição mais rural enquanto o Sul foi influenciado por gregos e fenícios com predominância
de romanos e mouros, cosmopolitas e mareantes.

Estas diferenças geoculturais entre Norte e o Sul contribuíram para a formação de identidades
regionais distintas e para a diversidade cultural. Ainda hoje, podemos perceber essas
diferenças nas tradições, gastronomia, dialetos e festas populares.

Desde a Antiguidade que viajantes e historiadores assinalam, como ponto de separação, estas
montanhas que cortam a Península sensivelmente a meio.

“Depois de Estrabão referir que “uma cordilheira contínua, que se alonga do meio-dia para o setentrião,
separa a Céltica da Ibéria”, al-Rãzi lembrava “a cadeia de montanhas que divide as duas Espanhas” e
al-Idusi afirmava que “a Península Ibérica está separada em duas em todo o seu comprimento pelos
montes chamados Serras”. Ao quase de mil quilómetros são raros os pontos de passagem neste
maciço montanhoso (Cordilheira Central). No extremo ocidente, a cidade de Coimbra era um dos pontos
de passagem, entre as terras do Norte e as férteis lezírias de Santarém. Foi este eixo o gerador do
futuro reino de Portugal.”
(Cláudio Torres & Santiago Macias, in “O Legado Islâmico em Portugal”, Círculo de Leitores, Julho de 1998)
(José Luís de Matos, Lisboa na Civilização Islâmica, 2015)

Note-se, por exemplo, que sempre que se desencadearam movimentos de resistência aos processos
de centralização conduzidos por Córdova ou Sevilha, o Garb acompanhou de perto esses movimentos
associando-se aos seus cinco pontos mais importantes: o termo de Coimbra, o estuário do Tejo, o Alto
Alentejo, o Baixo Alentejo e o Algarve. (Cláudio Torres &…)
“No Ocidente da Península, o Gharb* al-Andaluz apresenta-se como herdeiro natural da antiga
Lusitânia.”(*Ocidente)

“Um dos fenómenos mais inovadores da islamização do Gharb reside no papel


desempenhado pelas populações autóctones ao longo de mais de cinco séculos em que o
processo decorreu. Até meados do século X a maioria da população, embora em rápido processo
de arabização era ainda não muçulmana o que nos leva a pensar que o papel dos moçárabes* foi
certamente muito maior…”
*Os moçárabes (do árabe mustharabin,"arabizado") eram cristãos ibéricos que viviam sob o governo
muçulmano em Al-Andalus. Os seus descendentes não se converteram ao Islão, mas adotaram elementos
da língua e cultura árabe . Eram, principalmente, católicos romanos de rito visigótico.

“A estratégia de ocupação operada nos territórios do al-Andalus pelas primeiras tropas


muçulmanas basear-se-ia mais no estabelecimento de consensos e na elaboração de acordos
com as populações peninsulares. Esse facto viria a contribuir, de forma decisiva, para a
manutenção no Gharb de um estado de relativa autonomia que se aproximou, por vezes, de
uma quase independência.”
O “pacto de convivência” ou “pacto de Umar” permitia aos habitantes manter a sua religião e
leis existentes em troca de lealdade e pagamento de impostos aos governantes. Tais acordos
eram geralmente vantajosos para ambas as partes.

Os reinos das Taifas

O termo taifa no contexto da história Ibérica, refere-se a um principado muçulmano


independente, um emirado ou pequeno reino existente após a derrocada do califa Hixame III
(dinastia omíada) e a abolição do califado de Córdova em 1031. Após a queda do último califa
é proclamada a República em Córdova. As coras (províncias) proclamam-se independentes,
regidas por clãs árabes, berbéres ou eslavos “As sucessivas tentativas de centralização do
poder por parte de emires e califas, chocaram com frequência, no desejo autonomista
manifestado localmente, sobretudo por muladis (autóctone convertido ao islamismo) e moçárabes,
sentimento que o decorrer dos séculos não apagou (Cláudio Torres...1998).
O grande período das revoltas muladis no Gharb coincide com a segunda metade do século IX
e encontra-se intimamente ligado às acções de um chefe militar de grande importância para a
história do Ocidente penínsular: Ibn Marvãn al-Jilliqi (Marvão).

A morte de Ibn Marvãn em 889-890?, não apagou este fenómeno autonomista vivido há
longas décadas no Gharb, zona que permaneceu durante quarenta anos fora de influência
directa dos emires de Córdoba. A unificação operada por Abd al-Rahmãn III (912) concluiu
um século de luta pelo território do Gharb.

(Badajoz, uma das raras fundações urbanas do Ândalus, foi fruto da luta contra a centralização omíada
de Córdova levada a cabo pelo clã familiar dos Marvânidas, originário da região. Foi sua intenção
transformar Badajoz na primeira capital de um Gharb continuador da Lusitânia onde, desde Beja a
Santa Maria de Faro, mantinha fortes solidariedades políticas. Quase dois séculos mais tarde, Badajoz
torna a ser o centro de uma tentativa semelhante em que a dinastia berbére dos Aftássidas consegue
unificar no mesmo reino as cidades de Beja, Évora e Lisboa).

O enfraquecimento do poder almorávida (*) tem como consequência o aparecimento no Gharb, das
segundas taifas. A motivação religiosa surge, nesta região, como capa de interesses políticos bem
vincados e desenrolou-se ao mesmo tempo que teve lugar a investida cristã de 1139 a 1147, que fez
avançar os limites do emergente reino de Portugal até à linha do Tejo. Foi durante estas campanhas
que duas cidades cruciais, Santarém e Lisboa, foram tomadas à influência islâmica. (Cláudio Torres)

(*)O Império Almorávida foi um império islâmico fundado por uma dinastia berbere do norte África e que se
centrou no território do actual Marrocos O império foi estabelecido no século XI no Magrebe ocidental e
Andalus englobando territórios actualmente pertencentes à Mauritânia (donde provinham), Marrocos e metade
sul da Península Ibérica. A capital do império foi a cidade de Marraquexe.
Os últimos cem anos da islamização foram marcados por um conjunto de campanhas
militares conduzidas pelos senhores do Norte e cujo início se pode situar um pouco antes de
meados do século XII.
A segunda metade deste século é marcada pela influência que os Almôadas exercem no sul da
Península, como por uma época em que as campanhas militares cristãs se tornam mais
assíduas e devastadoras.

“Entre 1165 e 1172 passam a integrar o novo reino português os territórios mais a norte do Alentejo e
que correspondem ao termo de Évora. Pouco depois, em 1184, tem lugar a importante ofensiva
conduzida por Yaqub Yusuf, que tenta reconquistar Santarém. Se deixarmos de lado as razias levadas
a cabo por Sancho I, em 1189 e as que Abu Yusuf Yaqub al-Mansur conduziu nos anos subsequentes,
verificamos que os acontecimentos decisivos se desenrolaram entre 1217 e 1249 e irão culminar com a
conquista do que restava do Alentejo e de todo o Algarve.”

1195 – Vitória Almôada na Batalha de Alarcos


1212 – Vitória cristã na Batalha de Navas de Tolosa e fim do poder almôada no
Andaluz.

1.9. A Reconquista e os Moçárabes

“O islamismo implanta-se nas cidades do al-Andaluz ibérico desde muito cedo. Além das guarnições
militares islâmicas, as cidades possuíam no geral uma maioria de cristãos “mustharabin” ou moçárabes
que contituíam o grosso da população. Os moçárabes falam (*) e lêem em árabe e a própria cultura
cristã é expressa em árabe. São parte integrante e activa da Civilização Islâmica.”
(*) (romanço moçarábico – lusitano no nosso caso)

“Deve no entanto dizer-se que os moçárabes eram portadores de um conjunto de valores que se
demarcavam em muitos aspectos, quer da cultura árabe propriamente dita, quer da cultura nórdica de
matriz carolíngia-feudal que virá a ser imposta pela cruzada Papal. Esta ideologia setentrional apropria-
se abusivamente do exclusivo da designação “cristã” como se cristãos não fossem os moçárabes
herdeiros e continuadores do cristianismo inicial do Mediterrâneo. A “Reconquista” é meramente o
domínio do norte sobre o sul que não poupa sequer as antigas populações cristãs dos territórios
conquistados.” (José Luís de Matos. Lisboa na Civilização Islâmica.Fev.2015.)

O Pacto de Umar permitiu uma rica interação cultural entre os moçárabes e a população
muçulmana, resultando numa troca de conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos. No
entanto, à medida que o processo de islamização avançava, os moçárabes enfrentaram uma
crescente pressão para se converterem ao Islão e foram gradualmente assimilados ou
migraram.

O papel dos moçárabes foi fundamental na preservação do conhecimento greco-romano


durante este período, uma vez que traduziram muitas obras para o árabe, contribuindo
também para o desenvolvimento da arquitetura, música, poesia e artes. A participação ativa
na sociedade al-Andaluz dos moçárabes, é um exemplo notável de como as interações
culturais e religiosas podem moldar a História de uma região ao longo de séculos. O seu
papel na preservação e disseminação do conhecimento e na contribuição para o
desenvolvimento cultural é uma parte importante e esquecida da particular islamização do
Gharb, uma das sociedades mais desenvolvidas do seu tempo.

Lisboa na civilização do Al-ândalus

Lisboa tem sido caracterizada pelos historiadores como Cidade-Estado, ou cidade


independente dos poderes centrais, desde pelo menos a época romana até à reconquista Cristã.
A sua vasta zona de influência incluía a península de Setúbal e Palmela e os campos
férteis de Tomar e Torres Vedras. As suas terras são fartas e as toalhas de água dos rios
Tejo e Sado foram sempre generosa fonte alimentar. Com os aldeamentos dispersos de
pescadores e camponeses, este território foi, manifestamente, o mais rico e densamente
povoado de todo o Gharb al-Ândalus, existindo ligações muito fortes por mar com o
norte de África.

Os profundos recortes e esteiros dos lados de Almada e Coina eram naturalmente


vistos como portos de abrigo de Lisboa. Foram com certeza estas qualidades portuárias
da margem esquerda que, desde os primeiros tempos da formação do primitivo núcleo
urbano e nomeadamente no decorrer do século XI, definiram as ligações e
dependências entre os dois lados do grande estuário.

Com os seus esteiros e canais a penetrar várias dezenas de quilómetros no interior na


hoje chamada península de Setúbal, uma rápida e eficaz rede de cabotagem,
alimentada por infinidade de embarcações de todos os calados, permitiam fixar, seja
no rio Judeu, seja principalmente, no rio Coina, os maiores estaleiros de construção
naval.
Ao contrário das costas mediterrânicas onde, por essa altura, as boas madeiras já
seriam escassas, é de supor a existência de grandes matas de pinheiro-manso, cuja
mancha vegetal se estenderia das dunas de Sines, ao longo de todo o curso do Sado,
até ao Pinhal do Rei nas arribas da Caparica.

Alguns dos sinais mais significativos da ocupação intensa deste território são-nos
revelados pelo toponímia árabe, citemos apenas alguns exemplos: Se os habitantes de
Lisboa têm geralmente uma larga autonomia, eles são no entanto tutelados e
protegidos em época almorávida por guarnições de ascetas guerreiros que se localizam
nos seus mosteiros nas serras da embocadura do Tejo, nas “azoias”* de Sintra e Sesimbra e na
“azoia” de St. Iria, ou ainda no “ribat”** da serra da Arrábida. (José Luís de Matos.2015)

As populações da beira rio vivem em Birre (“bur”, o poço) em “alcabdaq” (Alcabideche), nas
praias (Maçãs) onde chegam e de onde partem os “saloios”, os que são originários de Salé –
“Rabat”, o principal porto berbere do Atlântico em época almorávida e ainda hoje capital de
Marrocos.
O ouro das areias auríferas de Almada (“a mina”) e cujos exploradores, os adiceiros, ainda são
lembrados na Rua da Adiça* (mina de ouro) e Alfama (fonte termal).

*.Azoia. A palavra vem do árabe 'az-zauiâ', que significa “canto, ermida, capela onde está enterrado um santo
ou morábito”
**. O Ribat de Arrifana, igualmente conhecido como Castelo da Arrifana, foi um complexo religioso e militar
do período muçulmano, situado no município de Aljezur. Segundo as fontes islâmicas, era utilizado como um
convento para monges guerreiros, tendo começado a ser construído por volta de 1130.

A partir do século VII a civilização islâmica surgiu como uma das mais influentes da sua
época. A localização geográfica da península Arábica, o domínio do sudoeste asiático e do
norte de África permitiu-lhes usufruir dos contactos culturais tanto a Oriente como a
Ocidente. As rotas comerciais que atravessavam esta vasta região, como a Rota da Seda *,
tornam-se cruciais para o comércio entre os continentes, permitindo a absorção de influências
e conhecimentos de diferentes culturas.

Com a partida dos Arabes, ficam entre os despojos muitos objetos nauticos e de pesca, e inclusive
embarcacoes que reforcaram a frota portuguesa (Pico, 1963, p. 14).

Desenvolvendo um conhecimento científico pragmático e tecnológico, como a química, a


medicina, astronomia, cartografia e náutica que lhes permitiu uma supremacia económica
no Mediterrâneo, até à batalha de Lepanto (1571)*, e no Índico até à chegada dos
portugueses (1497), que souberam aproveitar o legado do al-Ândalus, utilizando-o na sua
expansão marítima, tornando o estuário do Tejo o centro de um império colonial.

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