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A tele-grafia de Avital Ronell: o poder de resposta.

The telegraphic speech of Avital Ronell: the power of response.

André Luís de Araújo*

RESUMO
Avital Ronell investiga a cena cultural contemporânea cruzando elementos
éticos, estéticos, performáticos e literários. O mapeamento que faz do plano
dos saberes na atualidade, a partir dos Ensaios para o fim do milênio, reunidos
em Finitude’s Score (1994) e em The Telephone Book (1989), propõe uma
reflexão a partir das matrizes do pensamento da diferença, mas não se
contenta com a desconstrução operada. Atende, pois, com urgência, a um
chamado involuntário que dilacera, uma vez que é necessário prestar contas
daquilo que se impõe. O telefone torna-se, então, para ela, uma figura
metonímica da tecnologia atual, das novas mídias e dos processos de
subjetivação, dado que provoca a criação de realidades e imprevisibilidades.
Franqueamos o terreno do ruído, da falha, da lacuna, com a introdução da
tecnologia, materialidades desejáveis tão caras à literatura.

PALAVRAS-CHAVE: Avital Ronell; Telefone; Chamado; Resposta

ABSTRACT
Avital Ronell investigates the contemporary cultural scene crossing ethical,
aesthetic, performative and literary elements. The mapping of the present-day
plane of knowledge which she makes from the Essays for the end of the
millennium, gathered in Finitude's Score (1994) and in The Telephone Book
(1989), proposes a reflection from the array of the thought of difference, but
does not settle with the operated deconstruction. It urgently answers, therefore,
an involuntary call that lacerates, as it is necessary to account for what imposes
itself. The phone becomes then, for her, a metonymic figure of current
technology, new types of media and subjective processes as it causes the
creation of realities and unpredictabilities. We enter the ground of the noise, of
the failure, of the gap, with the introduction of technology, desirable materialities
so precious to literature.

KEYWORDS: Avital Ronell; Telephone; Call; Response.

*
Doutor em Letras Estudos Literários pela UFMG. Aluno especial da Faculdade Jesuíta de
Filosofia e Teologia – FAJE, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil; aluisaraujosj@gmail.com
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Introdução

Uma rota alternativa para a investigação estética, Avital Ronell,


professora de alemão, inglês e literatura comparada, na Universidade de Nova
York, desenvolve seu trabalho filosófico em diálogo com a crítica literária.
Nascida em Praga, mas radicada nos Estados Unidos, suas aulas,
conferências e manifestos têm um caráter performático em que a autora faz
cruzar, em suas intervenções, o gestual, a conversa telefônica, a música, a rua,
trazendo à tona personalidades e elementos culturais que hoje a distinguem no
mero funcionalismo acadêmico.

O mapeamento que faz do plano dos saberes na atualidade, a partir dos


Ensaios para o fim do milênio, reunidos em Finitude’s Score (1994) e em The
Telephone Book (1989), propõe uma reflexão a partir das matrizes do
pensamento da diferença, mas não se contenta com a desconstrução operada.
Movendo-se na contracorrente, na ressonância da voz, da ambiguidade, colhe
interferências difíceis de catalogação.

Permite, assim, aumentar a compreensão teórica e discursiva de uma


estética que potencializa a criação de realidades e imprevisibilidades próprias à
poesia, através do ruído, da ranhura, da falha, da introdução da tecnologia,
como materialidade desejável no poema. Evidencia, desse modo, os abismos
próprios da construção textual e põe em interlocução muitas vozes, numa fala
rumorológica incessante, um universo infinito de palavras, uma linguagem
ininterrupta. Provoca cada ponto de conexão entre os sujeitos a constantes
atualizações, porque vislumbra ideias, imagens, realidades. Em sua
inquietação, lança indagações sobre as teorias e a cultura em circulação e
coloca em movimento uma unidade de corpo-conhecimento.
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1 O chamado e o telefone

Nessa perspectiva, Avital Ronell converte o telefone em figura


metonímica da tecnologia atual e das novas mídias – “Você não sabe quem
está chamando ou que está para ser chamado, e você empresta, ainda, sua
orelha, desistindo de algo, recebendo uma ordem. É uma questão do poder de
resposta” (RONELL, 1989, p. 2)1. Faz ver que o chamado, em erupção, como
uma espécie de violência perpetrada contra uma projeção de destinatário ou
destino, encontra-se, pois, essencialmente fora de qualquer controle, chegando
a ser emitido apenas para marcar o que está fora de mão (Cf. RONELL,1989,
p. 32). E instiga, visto que quem responde a uma chamada telefônica precisa
prestar contas daquilo que o chamado vai impor. Um chamado involuntário e a
convocação de uma voz. Onde está o outro? Quem quer falar? Falar o quê?
Para quem?

Tudo isso exige uma presença, pede uma interlocução, busca um


destinatário, vai dirigido a quem atender. Faz, portanto, a conexão de
subjetividades, com todas as implicações que isso envolve, colocando em
contato uma rede de vozes num plano de ação e resposta. Mais que isso: hoje,
superando outras épocas, mistura meios de propagação, contaminação, no
dizer da autora. Porque, estando abertos às novas tecnologias, estaremos,
também, dispostos a redimensionar o contato exigido – uma vez que este já
não vai dar-se apenas no um a um, tampouco reduzido ao âmbito da escuta
telefônica, ou sem a possibilidade de saber quem chama, hajam vista os
identificadores de chamada e os avanços da telefonia móvel –, o que nos leva
a pensar, ainda, nesse alcance, que pede a disposição do corpo todo, não
meramente o ouvido, mas até mesmo as sensações, tornadas muitas vezes
sinais gráficos, utilizadas no textual da Internet, nas salas de bate-papo,
considerando, também, as imagens difundidas pelas web cam e o universo das
redes sociais.

Como se vê, a ativista da voz compreende esse contato e o amplia, sob


os signos da dissensão, orquestrando, a partir das contribuições da música e
1
Todos os trechos das obras de Avital Ronell aqui mencionados são de tradução nossa.
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da filosofia, o papel do telefone, protótipo para a comunicação. Tematiza,


dessa maneira, a voz, a conversa, o som, a digitação, o texto; promove o
encontro das linguagens em outros meios de difusão. Compartilha a errância,
torna-se porta-voz de uma discursividade que não entra apenas pelo labirinto
do pavilhão auricular, mas encontra seu lugar onde parecia haver uma singular
separação. Implementa, com isso, a lógica da simultaneidade.

Nessa ligação, Ronell faz vibrar acordes de várias áreas do


conhecimento, levanta campos de discussão filosófica que pedem a conexão e
a atenção de um leitor-espectador-ouvinte, a fim de extrair dos silêncios tele-
gráficos a condição de possibilidade que excede o som, porque conta com as
interrupções, os ruídos, os arranhões, os ecos e as lacunas. Mostra, então,
outros usos do telefone: a leitura a partir do silenciamento, das fendas. Traz
para a discussão um lugar proveitoso para a virtualidade, a vivacidade da
sombra, o surgimento de uma porção considerada antes invisível,
borgeanamente fecunda, desconhecida da maioria, a urdidura do poema, os
bastidores da escrita.

“O telefone vem até você e lhe acaricia, ou pode ser usado como uma
arma, uma arma sem indícios, uma arma apontada para a sua cabeça”.
(RONELL, 1994, p. 34). Faz-se, dessa maneira, a comunicação do rumor da
rua e da sinfonia da orquestra. Cria-se um espaço de significantes
fragmentados, produzindo uma interseção em que as linhas públicas se cruzam
com as mais privadas, num todo harmônico. E Ronell, via telefone, conecta
livro, poética e filosofia. Realiza um trajeto dotado de extensão, um trabalho
ensaístico que envolve a captura dos processos de escrita e pensamento,
intervenção cultural, como veremos a seguir.
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1.1 Intervenção e construção estética

O que fazer, pois, com o que existe? Como intervir? Como conseguir
que, novamente, haja uma primeira vez na já gasta discussão filosófica e
culturalista? A esse respeito, Alan Pauls (2004) comenta que Jorge Luis
Borges, por exemplo, não reduz seu pensamento e intervenção a uma apologia
da reescrita, como poderíamos ser levados a crer. O crítico argentino reforça
que o conceito de livro e, consequentemente, de obra de arte, por sua vez,
começa a se colocar verdadeiramente borgeano. Nesse sentido, Avital Ronell,
também, como se pode ver, não recai no imobilismo essencialista da
reprodução epistemológica. Ao contrário, parte para o estudo e a
experimentação com a linguagem, lançando mão da ontologia e da
interpretação como forma de compreender esse estado de ser visceral sujeito-
objeto que coloca em evidência a desaceleração da diferença. A fonte
diferencial não se expande porque não dá conta do reconhecimento do que
continua pendente, relegado à sombra, adiado em seu reconhecimento como
outro, mantido à distância, mas disposto a se enunciar a qualquer chamado,
translúcido, vivo.

Nessa esteira, e em consonância com a proposta da filósofa norte-


americana, Alan Pauls (2004), tematizando Borges, deixa claro que muitos
fraudam e não demonstram ter nenhuma obrigação com a Verdade, pois
elevam seu parasitismo até as últimas consequências, intensificando a escuta
e a resposta, não agrupando nem sistematizando a diferença. É assim que
inventam livros, autores, personagens, situações que nunca existiram e se
ocupam disso. Criticam e expõem seus pontos de vista, propõem a vertigem,
fazem delirar as categorias nas quais descansava o sentido comum, em rumor
contínuo – bem ao gosto de Avital Ronell –, descentrado; contágio e
proliferação e, paradoxalmente, salvação.

Operam sobre o texto e sobre o contexto, sobre as condições nas quais


se apresenta um texto ao leitor, no momento de sua edição, ou reedição,
adulterando conforme lhes apraz. Desse modo, no que se refere à pergunta
feita acerca da intervenção, a resposta é móvel, inquietante, segundo Borges,
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já que a identidade de algo escrito não se define por uma série de atributos,
mas pela relação que mantém com os contextos nos quais aparece ou com a
época de seu surgimento e/ ou edição.

Dessa forma, abre-se uma série de indagações sobre o fazer poético e a


concepção de poesia na atualidade; bem como merecem um olhar atento os
escritos destinados à publicação e seus rascunhos, primeiras versões,
laboratório da construção estética, posto que deixam entrever o escritor como
alguém que trabalha com frases, com palavras, com a discursividade, com a
elocução do eu. O especialista de uma arte conceitual, que parece fria, incolor,
cada dia mais rara, que dificilmente deixa marcas e que, não obstante, é capaz
da extraordinária revelação da manipulação de conceitos e contextos (Cf.
PAULS, 2004, p. 119).

É como se escrever fosse isso – continuaria Alan Pauls – mudar coisas


de lugar, recortar e colar, extrapolar e fazer enxertos, deslocar e repor,
expatriar e arraigar, separar e inserir. Definir um personagem ou urdir uma
trama é, então, criar uma ambiência, produzir um contexto ativo e criativo
capaz de promover uma intervenção. E, em Borges, tal empreitada é digna de
nota em sua obra Pierre Menard, autor del Quijote. Nela, um personagem
criado, um escritor menor, francês, reverenciado por baronesas decadentes,
enriquece a cultura universal por meio de um processo de leitura e intervenção
em uma das maiores obras do cânone literário espanhol, a partir da
apropriação de três capítulos da obra de Cervantes, escrita em pleno século
XVII.

No entanto, tal façanha se dá em princípios do século XX, e a diferença


de contextos se encarrega de todas as implicações transcorridas ao longo
desses mais de trezentos anos de publicação entre uma obra e outra,
carregados de complexos processos, acontecimentos e transformações pelos
quais passou a humanidade e a vida cultural como um todo. É o que enche de
sentidos e usos inesperados a literatura, enriquecida a partir da leitura, a
despeito dos anacronismos deliberados e das atribuições falsas. Assim, vemos
surgir personagens transformados em conceitos limpos e eficazes,
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independentes da obra, livres o suficiente para entrar e sair, para transitar em


todos os espaços e tempos, a tal ponto que vamos acompanhando como tudo
vai convertendo-se em palavra desejada, aberta à rumorologia, estudo e
experimentação.

O eu, por exemplo, pode não estar ali, no fone em resposta, no dizer de
Avital Ronell. Em contrapartida, por tudo o que aprendemos de Borges,
referendado por Alan Pauls (2004), pode, por outro lado, estar gravado na
secretária, pronto para ser acionado e reproduzido. Voz sem corpo, errática,
acionada e reproduzida em cada leitura. Como destaca Ítalo Moriconi: “[...] a
dissolução do eu romântico na mascarada errante do sujeito poético instaurada
pelo modernismo, configurando uma alternativa à ‘desaparição elocutória do
eu’ proposta e realizada por Mallarmé” (MORICONI, 1996, p. 99). É, como se
pode ver, a legitimação de um sujeito poético estilhaçado, vacilante,
visualmente descentrado, no meio de palavras soltas, declarações telegráficas,
relatos reticentes, cortes.

E o operador, leitor-espectador-ouvinte dessa escrita performática, parte


em busca, com seus próprios esforços, da extensão dessa fala, mas se
encontra, invariavelmente, com a ambiguidade irônica que explode entre as
lacunas deixadas pelo contratante verbal2. Aí se propagam rumores, indecisão.
À mercê do impossível, do real, o leitor afunda nessa arte, enreda-se entre
fragmentos, deambulações, périplos. Completa o que falta, exercitando seu
excesso. É um “processo inacabado, cujo alinhamento se dá, justamente, pela
não-identificação com os lugares destinados às contradições da subjetividade e
da realidade político-social” (VASCONCELOS, 2002, p. 203).

Interessante notar, nesse exercício, de um interlocutor a outro, ou de um


autor a outro, como é possível que se embaralhem biografias, línguas, culturas
e formas de saber, multiplicando-se os focos de observação de um problema e
a análise de épocas, tradições e até mesmo mitologias diversas. O intuito é
colocar em evidência a radical instabilidade que afeta toda relação de

2
A expressão foi cunhada pelo próprio Borges, para designar a pessoa do escritor, segundo
Alan Pauls (2004, p. 126).
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propriedade com o saber e a cultura. Cultura de divulgação, resumida,


traduzida, muitas vezes enciclopédica, espaço de perplexidade, de inquietude e
de ameaça. Estamos todos em busca da relação que o signo estabelece com a
estrutura verbal onde se encontra inserido, pronto para ser recuperado, em
função de leituras, respostas, encadeamentos.

2 O chamado e a resposta

Entende-se, pois, este leitor-espectador-ouvinte – sem o desprezo de


suas faculdades – como o “lugar borgeano que inclui figuras tão diversas como
o outro, o interlocutor, o confidente, o destinatário do relato, o herdeiro, o duplo”
(PAULS, 2004, p. 127). O grande agente contextual que abre o sentido a todas
as forças que o produzem, afetam-no e o determinam. Em suma, a restituição
ou a invenção de contextos; o espaço existente entre dois registros, duas
percepções, duas formas de raciocínio, duas linguagens, como mínimo. O que
chama e o que atende ao chamado do telefone.

Tanto que Avital Ronell não propõe simplesmente a diferença pela


diferença. Ela inscreve suas obras no ponto de intervenção dessa fronteira
movente, no espaço da rua, entre os signos e o poder, encaminhando-se para
estratégias de intensificação dessa escuta-resposta ao chamado. A
proliferação por contiguidade, que não agrupa nem sistematiza a diferença em
derivados, mas potencializa uma alteridade radical, com percursos pela
tecnologia adentro, aguça a receptividade e o anonimato, descentralizando e
exaurindo o ato de pensar, de modo a se observar a impessoalidade do street-
talk3, a suplementação, o ruído, a sombra. Um scratch/montagem de espaços e
temporalidades.

Nesse sentido, ler e caminhar são dois movimentos de um mesmo vício,


um exercício e um programa. Traçam um percurso subjetivo. Caminhar é uma
operação múltipla: é, ao mesmo tempo, uma maneira de ler sobre a marcha
dos signos de uma cidade desconhecida – Nova York, para a estrangeira Avital
3
Ref. a um dos ensaios de Avital Ronell reunido em Finitude’s Score (1994).
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Ronell –, uma forma de ocupação física e um modo de reinscrever sobre o


plano urbano, uma disposição para a deriva. É preciso, então, ler a partir das
margens, das zonas limite, dos arrabaldes, das transições, em busca de
encontrar o pensamento de alguém e tropeçar com ele, para, enquanto se
caminha, ler ou escrever e, por que não, apropriar-se dele.

Há nisso tudo o traço do urbano e da conversação, a tentativa de captar


o ritmo da cidade, da rua e do diálogo. A fala cotidiana, sem ser a reprodução
dialógica, mas a produção de algo melódico e harmônico, apesar de frenético.
Um espaço multiterritorial, multirrítmico, multicêntrico, que aponta para várias
direções, um arranjo de múltiplas texturas. Um processo de produção de
realidades abertas ao que está fora, expandindo-se, errando, migrando em
escapadas, fugas, tropeços, conexões atualizadas que não buscam apaziguar
as heterogeneidades reunidas. Em resumo, a suplementação da linguagem, a
partir de dentro, com um código próprio, uma língua intensiva, em virtude da
afasia do sistema linguístico dominante.

2.1 Uma performance tele-gráfica

De tal sorte que, catalogando múltiplas referências, Ronell, fascinada


pelos ruídos da rua, realiza, a partir do telefone, o contato entre o dentro e o
fora, a periferia e a “great house”, movendo-se, recepcionista de chamadas,
“hostess”, anfitriã, estabelecendo relação, saturando de performance as
fendas. Convoca as ausências, os interstícios sombrios, a se manifestarem, a
mostrarem que respiram; expõe a epistemologia da rua, do rumor, da escória;
transcende os guetos, sintetiza o disjuntivo, como se vê nos ensaios Finitude’s
Score, Street-talk e The Worst Neighborhoods of the real.

Desse modo, sob a sombra da negatividade, o rumor atua para capacitar


o território onde se encontra, friccionando o que separa a criação da
destruição; numa palavra: ensina e pratica a errância! O telefone significa aqui
o contato com o Outro fendido, contato nunca quebrado, nem claramente
rompido. Vozes que acenam caminhos do pensamento abertos na linguagem.
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Voz e corpo que alteram suas condições em função do contato que se


quer estabelecer, do que se quer dizer, dispondo de si, ignorando as margens,
buscando o gestual, compondo os fios dos sentidos da performance. Mediação
da voz na estrutura do corpus, reflexão do objeto artístico e de uma forma de
ser que desloca a representação em função da simulação e da fabulação. Tudo
se pronuncia em vista de outra temporalidade e de outro movimento, ganhando
uma espacialidade, um dinamismo verbo-motor, tele-gráfico.

É como nos encontramos: numa linha de segmentaridade em


contiguidade de territórios, unidos por essa telegrafia que nos colocou a todos
em contato e, por isso, nossos segmentos se afinam, conjugam-se num fluxo
maleável, numa escala intensiva, numa indeterminação objetiva. Afinal, como
diriam Deleuze & Guattari (1996)4, é certo que duas linhas não param de
interferir, de reagir uma sobre a outra, e de introduzir cada uma na outra uma
corrente de maleabilidade ou mesmo um ponto de rigidez. Elas mostram como
o diálogo ou a conversação obedecem aos cortes de uma segmentaridade fixa.

Há vários movimentos, fissuras que não param de se manifestar, toda


uma subconversação na conversação, evidenciando que uma perspectiva
corpórea encontra seu equivalente numa inflexão da voz. Uma percepção
cenestésica que exige um esforço considerável da subjetividade. Nessa
civilização que tende a ignorar outros procedimentos de registro, “um laço
funcional liga de fato à voz o gesto: como a voz, ele projeta o corpo no espaço
da performance e visa a conquistá-lo, saturá-lo de seu movimento”
(ZUMTHOR, 1993, p. 245).

Essa performance é jogo, espelho, desdobramento do ato e dos atores,


das subjetividades: do corpo do artista, filósofo, teórico, crítico, poeta ao corpo
da obra de arte, filosofia, teoria, crítica, poesia. Ali está o lugar máximo da
percepção da expressão. Vida que não esgota suas possibilidades,
reverberando entre o corpo e a voz a articulação da cena cultural, sob novas
formas de compreender o estético e de reconhecer suas múltiplas gradações.
O sentido de um texto dando-se em presença e no jogo de um corpo humano.
4
Comentário feito a partir da novela In the Cage (1898), de Henry James, nos Mil Platôs, v. 3.
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Porque Avital Ronell é portadora de uma linhagem performática, uma


escrita que, ao produzir estranhamento, vai dotando-nos de sensibilidade para
aguçar nossa percepção de mundo e instaurar outros planos de possibilidade e
de leitura. Vemos, então, a linguagem do ponto de vista da variedade de suas
injunções, articulações, flexões, até sermos dotados da capacidade de
enxergar, através das sombras, a materialidade repleta de significados. Com a
autora e sua comunidade textual (o lastro cultural que forma cada um de nós,
num sistema de heranças, alianças e referências), arriscamos em vista de um
projeto coletivo, a fim de: “Abrir de tudo quanto é jeito para novas vias – por
vezes linhas de fuga minúsculas, e outras vezes possibilidades de trabalhar em
escala maior” (GUATTARI, 1987, p. 67).

Conclusão

Assistimos, assim, à tentativa de quem insiste com o próprio corpo em


construir algo de vivo, modificando sua relação com o mundo, sabotando as
formas de alienação, atravessando as estratificações existentes, para “[...] fazer
com que os corpos, todos os corpos, consigam livrar-se das representações e
dos constrangimentos do ‘corpo social’, bem como das posturas, atitudes e
comportamentos estereotipados” (GUATTARI, 1987, p. 43). Para alcançar o
exercício da escrita, da voz, do contato, da interlocução, a emergência de
outras práticas discursivas, de novos territórios existenciais coletivos, o elogio
da sombra que enriquece de modo contínuo sua relação com o mundo.

Sua imagem fugidia, sempre em movimento, instiga a curiosidade, posto


que queremos descobrir os bastidores desse work in progress, o trabalho árduo
de quem, com intensidade, presença e verdade registra os scratches, os
fragmentos e as fraturas expostas, o segredamento e a secreção da poesia
que emanam dos corpos e vão alojando-se em nós. A um só tempo:
esconderijo, revelação, trajetória, descaminho, silenciamento e ruído – street-
talk. Alguém que vai construindo seu próprio movimento e
temporalidade/espacialidade.
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Tudo bem cosido, a despeito das rupturas e oscilações, justaposições e


montagens. Estamos muito próximos, mas sem muito consentimento para
revelações confessionais. Relegados ao terreno da ironia, franqueamos a
escuridão, entre a disjunção da experiência pessoal e a explosão do simulacro.
Conservamos, nitidamente, como bem pontuava Avital Ronell em seus escritos,
os esgarçados da rasura e do rascunho, enovelados em perturbações tele-
gráficas, na tessitura urbana da performance. Como alguém que produz um
personagem e logo se alivia com as ansiedades do silêncio, que hesita sobre o
sexo e a idade que lhe dará, que teme por seu futuro.

No fim das contas, percebemos que o melhor é acolher, como forma de


dar uma resposta responsável para a cena contemporânea, uma resposta da
subjetividade a uma demanda de questões existenciais individuais e coletivas:
“a obrigação de responder, a responsabilidade que consiste em chamar tanto
quanto em responder à chamada” (RONELL, 1989, p. 59). Apresenta-se,
assim, quem parecia estar ausente e nos abrimos a uma prosa rumorológica.

E o modelo e a anuência nos vêm da própria Avital Ronell, quem vai


transformando suas aulas-conferência, vividas antes apenas como anotações,
sob a forma de ensaio. Primeiro, o rumor; em seguida, o discurso e o diálogo,
interrupções, telefonemas; depois, a interlocução, a caminhada pela rua, em
Manhattan, saindo da Universidade, rumando para Low East, em setembro de
2001, pouco antes do atentado terrorista à cidade. Agora, o comentário e a
citação, o percurso de alguém que faz do trânsito cultural uma prática e
escreve de volta, em outro momento, no seu país, após o desastre que
inaugurou o milênio. Outra vez a singularidade de quem atua “no intervalo, na
interrupção, dentro do andamento da voz e da caminhada de alguém que se
mostra como pensador durante a passagem de si, de mim e de muitos outros
diferentes, cada vez mais diferentes” (VASCONCELOS, 2002, p. 207).
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REFERÊNCIAS

BORGES, Jorge Luis. Pierre Menard, autor del Quijote. In: Ficciones. Buenos
Aires: Alianza Editorial, 1945. p. 47-59.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia.


Vol. 3. Trad. Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e
Suely Rolnik. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.

GUATTARI, Félix. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. São


Paulo: Brasiliense, 1987.

MORICONI, Ítalo. Ana Cristina Cesar: o sangue de uma poeta. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1996.

PAULS, Alan. El factor Borges. Barcelona: Anagrama, 2004.

RONELL, Avital. The telephone book: Technology – Schizophrenia – Electric


Speech. Lincoln: University of Nebraska Press, 1989.

RONELL, Avital. Finitude’s Score: Essays for the end of the millennium. Lincoln
e Londres: University of Nebraska Press, 1994.

VASCONCELOS, Maurício Salles. Derivados da diferença: Estenofonia. In:


SCARPELLI, M.; DUARTE, E. Poéticas da Diversidade. BH: UFMG/FALE/Pós-
Lit, 2002. p. 199-208.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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