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Resumo: É um desafio compartilhar uma impressão produzida por algo que pode ser percebido diferentemente de um individuo
a outro. Sendo o silêncio um elemento de linguagem com múltiplos sentidos torna-se complexo falar sobre ele. Buscamos
neste artigo reconstituir impressões descobertas num itinerário interno e intimo de investigação. Enquanto sensações, som e
silêncio seriam iguais, porém com intensidades diferentes. O silêncio corresponde a um estado de percepção. A articulação
entre som e silêncio é importante para a inteligibilidade nos processos de comunicação. É no silêncio que se reflete sobre o
que se percebeu. Nas mídias contemporâneas, rádio e TV, o silêncio continua sendo elemento raro. O ambiente urbano acabou
se tornando um caos sonoro habitado por seres com escutas deformadas.
Palavras-chave: sonologia, silêncio, escuta, rádio, ruído ambiental
Opening to silence
Abstract: It is a challenge to share an impression about something that can be perceived differently from one individual
to another. Being the silent a language element with multiple meanings is complex to talk about it. We seek in this article
to reconstruct sensations discovered in a introspective and intimate way of research. Sensations, sound and silence would
be the same, but with different intensities. Silence is a state of perception. The relationship between sound and silence is
important for intelligibility in communication processes. Is just during silence that we can think about what they just heard.
In contemporary media, radio and TV, the silence remains a rare element. The urban environment became a sonic chaos
inhabited by creatures with deformed listening.
Keywords: sonology, silence, listening, radio, environmental noise
1. Introdução
É complexo tratar de algo aparentemente evidente para uns e dificilmente apreensível para outros.
É complexo, também, assimilar e compartilhar conteúdos polissêmicos: sons, gestos, palavras e expressões
com múltiplos sentidos. O silêncio é um desses elementos de linguagem possuindo diversos significados. Pode
ser portador de pudor, respeito, dor, conivência, cumplicidade, denúncia, confissão, aquiescência, negação,
omissão, repreensão, condenação (DINOUART, 1771) e, às vezes, pode até mesmo se tornar um grito. Entende-
se porque Georges Clemanceau (estadista, jornalista e médico, 1841-1929) afirmou que “manejar o silêncio
é mais difícil que manejar as palavras”. Tanto o silêncio quanto o vazio possuem a capacidade de absorver
significados projetados por quem o recebe. São muitas as possibilidades, fantasias e dúvidas provocadas por
uma pergunta expressamente não respondida, deixada no ar pelo interlocutor. O silêncio não somente varia seu
significado conforme as situações, como pode acumular vários sentidos simultâneos. É algo cuja existência
prima pela ausência de matéria sonora, conseqüência de uma omissão, uma interrupção, uma articulação para
o nada, para um vazio cheio de sentidos, de links, de associações, de caminhos abertos. Falar daquilo que nos
parece indescritível, de forma racional, precisa e objetiva, pode, por vezes, tanger o impossível, pela própria
limitação das palavras, dos sentidos, da sintaxe, do conjunto de recursos de representação da linguagem
verbal.
“Quando o homem, em sua história, percebeu o silêncio como significação, criou a linguagem
para retê-lo.” (ORLANDI, 1995, p.29)
2. As sensações
“O som é sempre o pólo complementar daquele elemento fundamental da música, sem o qual, a
vivência artística não é possível: o silêncio.” (KOELLREUTTER, 1984, p.17)
Essa afirmação nos convidou a refletir sobre as possíveis relações entre som e silêncio no
contexto artístico e em nosso cotidiano. Os autores-ouvintes deste texto, imersos em incessante murmúrio
urbano, propõem que se pense sobre a real importância e a necessidade do silêncio diante da complexidade,
multiplicidade e diversidade sonora e musical que vivemos na atualidade. Segundo Koellreutter sons e silêncios
foram, na música tradicional, dois conceitos fundamentais sobre os quais se baseia a estética clássica. Hoje, no
entanto, a nova estética traz à tona uma revisão radical dessa conceituação, levando não apenas a uma noção
nova do que seja o som, mas também transformando profundamente o conceito tradicional de silêncio. Na
nova estética, som é silêncio e silêncio é som.
Conforme Taborda, Fonterrada e El Haouli (1999), silêncio, mais do que uma propriedade física, é
um estado da percepção, uma sensação psicoacústica de quietude, acionada por fatores externos e internos. O
baixo nível de intensidade sonora, próximo ao limiar de audição, pode induzir a percepção de silêncio. Também
podemos considerar silêncio, sons que deixamos de ouvir por serem permanentes e redundantes como, no
cotidiano, ruídos de aparelhos, de circulação de pessoas, reação paradoxal da escuta diante do excesso de
informações sonoras. Em outras palavras, a incapacidade de extrair sentido de uma grande quantidade de
informações concentradas no tempo acaba provocando o mesmo desligamento da consciência que a repetição
ou a baixa intensidade provocam. O estado de silêncio pode também surgir a partir de contextos musicais
contínuos e repetitivos como mantras e músicas que provocam transe, levando o ouvinte a uma sensação de
quietude. Baseados em Murray Schafer, Taborda et al. ainda colocam que o som transforma-se em silêncio
quando, por algum desses fatores, é abstraído de nossa percepção e é transportado do plano da consciência
para um fundo inconsciente. Nesse caso, nesse movimento da consciência para a inconsciência, o som emerge
e submerge na percepção, como uma pedra que a superfície do mar oculta ou revela de acordo com o fluxo da
maré.
O silêncio não é ausência de palavras. Impor o silêncio não é calar o interlocutor mas impedi-lo
de sustentar outro discurso. Em condições dadas, fala-se para não dizer (ou não permitir que se
digam) coisas que podem causar rupturas significativas em relação aos sentidos. [Nesse caso]
As palavras vem carregadas de silêncios. (ORLANDI, 1995, p.105)
3. Os sentidos
Assim como a sombra, que é o silêncio da luz, potencializa a definição, o relevo e o delineamento
das formas, o silêncio e o vazio influenciam na inteligibilidade do que está sendo comunicado.
Determinantes de clareza e definição, silêncio e vazio estão na origem das articulações, pois seus
desdobramentos – pausa, interrupção, separação, erupção ou extinção abrupta ou suave – aparecem já na base
da estrutura da linguagem falada e escrita, induzindo a pontuação. Orlandi (1995, p.39) afirma que “o silêncio,
mediando as relações entre linguagem, mundo e pensamento, resiste à pressão de controle exercida pela
urgência da linguagem”. O silêncio significa e re-significa de outras formas, pois “o silêncio não é transparente
e ele atua na passagem (des-vão) entre pensamento-palavra-e-coisa.”
É no vazio, ou na suspensão, que refletimos sobre o que já foi percebido. Enquanto os sons se
empilham uns sobre os outros, o ouvinte permanece atento, em vigília, menos disponível para refletir sobre o
que acabou de ouvir.,
4. As mídias
A programação nas mídias áudio-visuais contemporâneas quase nunca nos deixa um instante
sequer de pausa. É um fluxo permanente de imagens e sons, processados para superar diariamente a selva de
informação ao redor das pessoas, em casa, no trabalho, nas ruas, nos meios de transporte, nos terminais de
transporte público, ambientes coletivos (clinicas médicas, shoppings centers, bares e restaurantes).
Para romper o círculo vicioso é preciso abandonar conceitos e padrões viciados que acabaram
reduzindo as mídias a uma sistemática aprisionada em hábitos conformados a moldes automatizados e
tecnicistas (El HAOULI, 2006). A tal ponto que a programação de uma rádio é tecnicamente denominada de
“grade de programação”. Triste prisão! A presença do silêncio na programação proporcionaria um espelho
refletindo as impressões subjetivas de cada ouvinte sobre o conteúdo em via de assimilação. Questionar
conceitos e hábitos, induzir reflexões e fazer os ouvintes experimentarem novas impressões – esses parecem
ser pontos de escape para essa mídia sonora. Só com questionamentos dessa ordem é que poderemos fazer um
outro rádio – um rádio que, como quer a compositora e radioartista canadense Hildegard Westerkamp:
“ao invés de nos entorpecer a capacidade de ouvir sons, nos fortalecesse a imaginação e a
criatividade; ao invés de nos manipular para aceitar um trabalho mais rápido e um consumo
maior, nos inspirasse a inventar; ao invés de nos sobrecarregar com informação irrelevante
que nos fatiga, nos revigorasse a sensibilidade acústica; ao invés de nos conduzir a ignorar
pensamentos e o que nos rodeia, nos estimulasse a ouvir; ao invés de transmitir sempre as
mesmas coisas, não se repetisse; ao invés de nos silenciar, nos encorajasse a cantar e a falar,
para fazer do rádio um pouco de nós mesmos; ao invés de meramente transmitir para nós,
ouvíssemos através dele”. (WESTERKAMP, 1997)
Enfim, um rádio que nos levasse a praticar as diferenças, o mundo que nos rodeia. Um ato que
poderia abrir espaços sensíveis e respiráveis em nossa subjetividade.
“O silêncio não fala, ele significa. É pois inútil traduzir o silêncio em palavras; é possível no
entanto compreender o sentido do silêncio por métodos de observação discursivos.” (ORLANDI,
1995, p.105)
“...você não consegue deixar de procurar um sentido que talvez se oculte, não nos ruídos
isolados, mas no meio, nas pausas que os separam...” (CALVINO, 1995)
5. A respiração
O trânsito urbano não pára. Ruído de fundo e sons em primeiro plano estão equiparados em nível
sonoro. Os habitantes das cidades praticamente não percebem profundidade sonora, porque muitas vezes os
sons ao seu redor cobrem o relevo das delicadas sonoridades distantes submetidas à suave e natural filtragem
do ar.
A natureza sonora de ambientes urbanos se aproxima daquela própria aos meios de comunicação:
compressão sonora exacerbada esmagando tudo o que poderia existir num plano sonoro mais sutil ou distante.
Todos esses sons compactados, empilhados, sobrepostos acabam diluídos e integrados a uma massa sonora
quase constante e uniforme, com pouco relevo. Tanto é que quando nos encontramos mergulhados no sublime
silêncio de um jardim de mosteiro cisterciense podemos ficar extasiados como se estivéssemos diante de uma
epifania. Percebemos, então, de forma mágica que esse silêncio não é um vácuo de sons, uma ausência, mas,
ao contrário, nos abre uma projeção infinita.
“Eu não confundo a solidão com a lira do deserto. A nuvem que nesta noite envolve sua orelha
não é neve adormecida, mas brumas tiradas da primavera.” (CHAR, 1962).
É do vazio que vem aquilo que, no instante em que é descoberto, nos parece já conhecido há
muito tempo. É diante do nada que se revela o que é imprescindível. É em silêncio que nossa mente se prepara
para decidirmos sobre nós mesmos. A duração do silêncio é a exata distância do recuo com o qual observamos
o retorno de nossa própria voz. É pelo silêncio que nos separamos de algo que habitualmente está sempre
conosco. É, antes de mais nada, pelo silêncio que nos responde um oráculo.
O ruído permanente, persistente, ostensivo, provoca inibição da critica, do julgamento com
distanciamento sobre o que está sendo decidido. Sob a agressão permanente de ruídos as pessoas se limitam a
seus hábitos automatizados, escolhendo apenas as opções para as quais foram condicionadas, e com as quais
estão permanentemente em convívio.
É assustador pensar que raramente há lugares para estar em silêncio, ou espaços vazios, aberturas
para o ‘nada’. Ruídos, motores, sinais de alerta, toques de aviso, diálogos entre interlocutores omissos,
conversas à metade, chamados incompreendidos, músicas passantes em bólidos estrondosos, locuções
entusiasmadas, anúncios se proclamando extraordinários estão em todos lugares, calando o silêncio. A pulsão
de ‘comunicação’ não pode parar. O silêncio é banido e, com ele, a possibilidade de confronto das pessoas
consigo mesmas, condenadas à prisão em seu próprio vazio, um vazio cheio de tudo.
6. As perguntas
Pouco se questiona sobre o ambiente sonoro e a escuta cotidiana. O que é que de fato ouvimos,
como ouvimos, para que ouvimos, por que ouvimos, até quando ouvimos, de que forma ouvimos. Não
pensamos na escuta do silêncio, estar em silêncio, entrar no silêncio para re-ouvir o que foi escutado.
Se nosso conhecimento estuda e aborda minuciosamente o som em todos seus múltiplos aspectos,
o silêncio por estranho que possa parecer, ainda permanece considerado como um anti-som. Quantos trabalhos
acadêmicos tem sido dedicados ao silêncio e seus desdobramentos? Quantas disciplinas e linhas de pesquisa
dedicam atenção ao silêncio? Investigações em história da música, técnicas musicais, ciência e tecnologia
aplicadas à música, psicoacústica, musicologia, educação musical, percepção musical, processos criativos,
praticas interpretativas, abordam o silêncio? Há respeito pelo silêncio?
Sendo assim, com a exceção de tecnologias de silêncio induzido, a questão prévia que se apresenta
é: por que, no espaço cotidiano, nos mobilizamos tão pouco para produzir silêncios e acabamos nos dedicando
mais a ações ruidosas?
7. Au delà
“O som tem por função produzir, enfatizar, intensificar e conscientizar o silêncio. Não o
silêncio no sentido da não-existência do som, mas no sentido de ‘seijaku’ ( ), calma interior
e equilíbrio, como fundo originário da vivência espiritual, condição de ordenação e critério de
conteúdo e valor.” (KOELLREUTTER, 1984)
“Música é arte somente quando nos faz esquecer o som e nos induz a um estado de equilíbrio
interior, se tornando silêncio ‘ativo’” (KOELLREUTTER, 1984)
8. Referências
BRITO, Teca Alencar de. Koellreutter educador: O humano como objetivo da educação musical. São Paulo,
Peirópolis, 2001.
CALVINO, Italo. Um rei à escuta. In: Sob o sol-jaguar. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
CHAR, René. Lettera amorosa. In: La parole em archipel. Geneva: Edwin Engelberts, 1963
DINOUART, Abbé. L’art de se taire. (1771) Jêrôme Millon: Paris, 2000. (Petite collection atopia)
_____. Ao redor de nossos ouvidos. In: ‘Leitura e Visão de Mundo: Peças de um Quebra-Cabeça’. Org.:
Lucinea Aparecida de Rezende – Londrina: Atrito Art Editorial, p. 105 - 112, 2005.
_____. O Rádio pensa ou só fala ? In: RUMOS MÚSICA: pensamentos & reflexões. Coordenação-geral:
Núcleo de Música. São Paulo: Itaú Cultural, 2006.
KOELLREUTTER, Hans Joachin. À procura de um mundo sem « vis-à-vis » : reflexões estéticas em torno das
artes oriental e ocidental. São Paulo: Ed. Novas Metas, 1984
MANNIS, J. A. Silencio e vazio. In: POLÊM!CA, Caderno Imagem (UERJ) Rio de Janeiro, Volume 8 (2)
2009.
ORLANDI, E. P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Ed. Unicamp, 1995.
TABORDA, Tato; EL HAOULI, J.; FONTERRADA, Marisa. Escuta! A Paisagem sonora da cidade. Rio de
Janeiro: Secretaria Municipal do Meio Ambiente, 1999.
WESTERKAMP, Hildegard. O Ambiente Sonoro no Rádio. In: Rádio Nova – Constelações da Radiofonia
Contemporânea, n. 2. Org. ZAREMBA, L.; BENTES, I. Rio de Janeiro: UFRJ, ECO, Publique, 1997.
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