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A ESCUTA MUSICAL: APROXIMAÇÕES ENTRE OS PROCESSOS DE

APRENDIZAGEM E DE ESCUTA

Augusto César Faleiro1

Ma. Gisele Dhein2

RESUMO

O presente artigo apresenta uma revisão de literatura a partir de um olhar cartográfico para a
obra de Raymond Murray Schafer, “A afinação do mundo”, de 2001. Este escrito buscou
estabelecer relações de proximidade e distanciamento com os conceitos de aprendizagem
deleuziana e escuta barthesiana, para problematizar e ampliar o entendimento de escuta para a
psicologia. Desta forma, foi possível estabelecer aproximações com os conceitos analisadores
através da pesquisa schaferiana com as paisagens sonoras mundiais e a ação do homem, e
sociedade, nas paisagens sonoras. Foi possível identificar uma coalizão entre os conceitos
esquizoanalíticos de escuta e aprendizagem com a obra schaferiana.
Palavras-chave​: Aprendizagem, Escuta, Paisagem Sonora, Filosofia da Diferença, Música.

ABSTRACT
The present article presents a literature review from a cartographer sight to the Raymond
Murray Schafer book, “The tuning of the world” from 2001. This paper had been layed to
find proximity and detachment relations with deleuzian learning and barthesian listening
concepts to problematize and widen the understanding of psychological listening. Thus, had
been possible to establish approximations with analyzers concepts throughout a schaferian
research with the world soundscapes and mankind and society action on those soundscapes.
Have been possible identify a coalition between the schizoanalytic concepts of Listening and
Learning within Schafer’s composition.
Key words:​ Learning, Listening, Soundscape, Difference philosophy, Music.

1
​Graduando do Curso de Psicologia do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, do Centro Universitário
Univates.
2
​Graduada em Psicologia pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC (2006). Mestre em Psicologia, área
de concentração Psicologia Social, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS (2010).
Docente no Centro Universitário UNIVATES, onde também atua como Coordenadora do Curso de Psicologia.
INTRODUÇÃO

Este estudo buscou estabelecer relações de proximidade e distanciamento entre os

conceitos de aprendizagem e escuta na obra ‘A afinação do mundo’, de Raymond Murray

Schafer, de 2001. Para problematizar o processo de ensino-aprendizagem que Schafer (1977)

define como escuta sensível da ​paisagem sonora3, utilizamos o conceito de escuta, de Roland

Barthes, que relacionamos com o conceito de aprendizagem de Gilles Deleuze,

entendendo-os como analisadores para a obra “A afinação do mundo” (SCHAFER, 2001).

O conceito de escuta de Barthes é um amplo campo de compreensão, pois diz de três

fases da escuta. O primeiro deles diz de um reconhecimento do ruído, o que Barthes chama

de ​índices​, e também, da forma responsiva a qual nos comportamos a partir do que fora

capturado por nossas orelhas, isto é, uma audição, como a do predador e/ou da presa. O

segundo momento da escuta barthesiana engloba o primeiro movimento, porém, com a

significação do ruído, com uma estruturação semiótica daquilo que fora percebido, isto é,

compor uma melodia4 (conhecimento) representando uma cena/episódio, ou paisagem, a

partir das notas (informação) que já sabia e/ou aprendeu.

Para Barthes (1990) o terceiro movimento da escuta é o que mais nos distanciamos do

animal selvagem - tanto o animal quanto aquele que nos habita. Este movimento é o diálogo,

a fala, a dinâmica de um saber-poder com outro ser: humano, animal ou objeto. Mas não

apenas é o poder de transmissão das “músicas de conhecimento” que compomos durante a

vida, mas também a forma como nos relacionamos com a sociedade, e com seu processo de

3
Ambiente sonoro. Tecnicamente, qualquer porção de ambiente sonoro vista como um campo de estudos. O
termo pode referir-se a ambientes reais ou a construções abstratas, como composições musicais e montagem de
fitas, em particular quando consideradas como ambiente (SCHAFER, 2001, p. 366).
4
Melodia é o conjunto de sons em ordem sucessiva (MED, 1996, p. 11-12).
composição enquanto sociedade. Além do mais, este terceiro ato da escuta diz também do

processo de institucionalização do sujeito.

O escutar para Barthes (1990) é um amplificador ao entendimento de sujeito quando

refere-se à relação que se estabelece entre o sujeito em seu meio, a partir do que se entende

por sujeito culturalmente aceito, aliado à percepção e simbolização daquilo que fora captado

pelos sentidos, em especial o ouvido no primeiro movimento da escuta. Ao passo que esta

escuta torna-se inteligência: “A impressão é apenas a metade da percepção. A outra metade é

a expressão. A uni-las, está a inteligência - o conhecimento acurado das observações

perceptuais” (SCHAFER, 2001, p. 216).

O conceito de aprendizagem deleuziana - o qual refere-se a reconhecimento dos

signos, ​repetição do novo, isto é, da diferença, ou mesmo, a criação, o pensar - interliga-se

constantemente com o conceito de escuta barthesiana, pois o reconhecimento dos ​signos ​diz

de uma compreensão dos ​índices, ​bem como no segundo e terceiro movimentos da escuta

remetem ao processo de criação, de diferenciação e da espontaneidade desta

organização/criação daquilo que fora percebido e compreendido para além das orelhas. Por

esses e outros motivos, que apresentaremos ao longo do texto, que relacionamos

intrinsecamente os conceitos de escuta barthesiana e aprendizagem deleuziana, como se

fossem apenas um amplo conceito - a aprendizagem pela escuta, a escuta musical.

A partir da leitura da obra, já referida, pôde ser verificado como o ser humano

utilizou-se do som5 produzido pela paisagem para o desenvolvimento da língua, da

agricultura e da cidade e como o homem modificou, e vem modificando, a paisagem e sua

sonoridade através de sua atuação na mesma, como, por exemplo, mudar o curso de um rio,

derrubar florestas, ou o barulho contínuo das máquinas de produção e transporte. Desta

5
​Som, segundo Med (1996, p. 11-12), é a sensação produzida no ouvido pelas vibrações de corpos elásticos.
forma, podemos observar os processos de escuta e sua relação com o sujeito em seu processo

de subjetivação, a fim de ampliar a compreensão do sujeito apresentado pela psicanálise;

entendendo que este não é apenas atravessado pela sexualidade, estímulos do ambiente, e

pelos instintos, mas também atravessado pelos sentidos e pelo sensível nos territórios

(geográficos e do pensamento) que habita, desabita e modifica constantemente (DELEUZE;

GUATARRI, 1995).

O sujeito constrói sua escuta; isto é, seu processo de subjetivação. Este é entendido

como contínua captura, aprendizagem e simbolização do meio no qual o indivíduo permeia e

transforma (BARTHES, 1990; DELEUZE,1995; SCHAFER, 2001). Para Barthes (1990)

[...] a escuta é essa atenção prévia que permite captar tudo o que pode vir perturbar
o sistema territorial; é uma defesa contra a surpresa; seu objetivo é a ameaça; ou, ao
contrário, a necessidade; o material da escuta é o índice, seja porque revela o perigo,
seja porque permite a satisfação da necessidade (p. 219).

Como podemos observar na obra de Deleuze (1995), e em Barthes (1990), o nosso

‘compelir’ e ‘traduzir’ dá-se através dos processos de codificação, e decifração, de dar

sentido aos sentidos por nós sentidos. Gerar significantes às ​coisas, ​atribuir valores às

experiências para traduzi-las em saber, em um processo onde as informações que

compreendemos e experiências sejam traduzidas em aprendizagem - mesmo que seja

inicialmente de forma responsiva, e possa ser ‘repensada’ a tornar este movimento, que

entendo como processo de aprendizagem.

Aprendemos a decifrar e traduzir estes estímulos capturados, e os signos percebidos,

e compreendidos, estes por sua vez são anexados ao nosso ‘repertório de aprendizagem’,

como em aquelas velhas pastas pretas que colocamos as músicas que aprendemos.

Retornamos a estas músicas - essa aprendizagem - com uma nova escuta a cada vez, pois

estamos continuamente construindo este corpo - a escuta - durante nossa vida (DELEUZE,
2006). É com este corpo de escuta, que em constante construção, retornamos a este repertório

para produzir um aprendizado; e com isso, produzir uma escuta. Barthes (1990) cita: “deste

fundo auditivo destaca-se a escuta, como exercício de uma função de inteligência, isto é de

seleção” (p. 218).

Para Schafer (2001), os tempos, os horários e as horas são ensinados através do som.

Porém, não apenas o barulho tonal; este, que é um ruído que está situado dentro das

frequências pré-estipuladas da música, A (lá) tem a frequência de 440Hz. Mas o movimento

causado pela emissão de ​signos dos sinos vibrando a paisagem. Este movimento, que

acústico, emite ​signos para serem reconhecidos. E é na captura destes signos, que são

reconhecidos meandrantemente, que podemos compor acordes com as notas/signos que

capturamos e transformar em acordes/conhecimento. Esta musicalização das informações

reconhecidas pelo sujeito é constituinte dos processos de subjetivação/aprendizagem, e este

movimento é constantemente atravessado pela escuta barthesiana.

Este processo é mediado e atravessado constantemente por instituições, métodos,


6
práxis , pelo entendimento de sujeito culturalmente aceito. Por isso, entendemos como um

processo de subjetivação, nos tornando sujeitos pelas relações de saber-poder nas quais

estamos inseridos (FOUCAULT, 2013). Porém, não apenas o saber formal escolar, mas

aquele que é constantemente traduzido e produzido pelos sentidos.

PROCESSO METODOLÓGICO

O livro ‘A afinação do mundo’ foi escrito por Raymond Murray Schafer a partir de

seu projeto de pesquisa “As paisagens sonoras mundiais”, sendo publicado em 1977 com o

título “The tuning of the world”. Em 1997, o livro foi traduzido para o português pela Dra.

6​
Segundo Baremblitt (2002), práxis é entendida como a prática indissociável ao saber.
Marisa Trench de Oliveira Fonterrada, graduada em Música, mestre em Educação e doutora

em Antropologia. Para esta pesquisa utilizamos a segunda reimpressão de 2001. Este livro é

dividido em quatro partes.

A primeira parte retrata os sons da paisagem antes da revolução industrial, revolução

elétrica e o como o ser humano foi se implicando com os sons naturais: como o mar, a água,

o vento, o barulho dos fenômenos naturais, entre outros. A segunda parte fala sobre a ação da

revolução industrial e elétrica sobre a paisagem e o modo como o ruído foi diminuindo a

fidelidade sonora da paisagem. Entre a segunda e a terceira parte há um interlúdio que remete

sobre a musicalização da paisagem sonora e a percepção do som. A terceira parte comenta

sobre os métodos de captura de informação, de que maneira que a captura e disseminação do

som veio historicamente se construindo, sobre o como o ruído vem ensurdecendo a população

de diversas formas. E a quarta parte, e última, retrata a respeito da teoria do projeto acústico

de Schafer e os prejuízos do ruído na contemporaneidade (SCHAFER, 2001).

Foi realizada uma primeira leitura do livro “A afinação do mundo”, onde fizemos um

registro das nuances num diário de bordo, que foi produzido durante as leituras, para

identificar os aspectos de proximidade e distanciamento com o conceito de escuta

barthesiana. A partir da primeira leitura e das correlações registradas no diário de bordo,

identificamos que a quarta parte não foi passível de relação com o conceito de escuta de

Barthes, pois diz respeito ao projeto acústico, teoria que Schafer desenvolveu a respeito da

redução de ruído através de uma ampliação da qualidade sonora, retirando ou suprimindo a

grande massa sonora da paisagem sonora contemporânea.

Após esta primeira leitura, a qual identificamos como reconhecimento do campo,

fizemos uma segunda leitura, para poder retornar às partes que se relacionavam com o

conceito de escuta. Esta segunda leitura teve o intuito de coleta de material de análise.
Os textos iniciais do livro “A afinação do mundo”, em seus quatro primeiros

capítulos, são introduzidos com excertos retirados da literatura mundial, para demonstrar a

implicação e os atravessamentos do ser humano com as manifestações da paisagem sonora.

No segundo capítulo, Schafer retrata o como a nossa complexa forma de comunicação, a

língua e a linguagem, foi, inicialmente como forma responsiva, composta a partir dos sons;

pois o humano foi capturando os sons e transformando-os em onomatopéias, para então

transformá-las em palavras.

A primeira parte da obra “A afinação do mundo” se refere a como o ser humano ouvia

e respondia aos ​índices​, para formar uma escuta/significação daquilo que foi compreendido

para além daquela forma responsiva aos estímulos. O que mais chama a atenção, esta que

entendemos e utilizamos como cartográfica7, é como Schafer vai apresentando e arguindo

acerca da temática da escuta. Ao longo do livro ele introduz prospectos/olhares a fim de

ampliar o entendimento de seu conceito de escuta. Desde a introdução da obra ele

problematiza o que se entende por escuta, e progressivamente ele vai pondo elementos para

ampliar - maximizar - este conceito. Ainda na primeira, ele começa a dissertar sobre a

influência do homem na paisagem sonora conforme o processo de evolução/adaptação social.

7
A cartografia é um método formulado por G. Deleuze F. Guattari (1995) “que visa acompanhar um processo, e
não representar um objeto. Em linhas gerais, trata-se sempre de investigar um processo de produção. De saída, a
idéia de desenvolver o método cartográfico para utilização em pesquisas de campo no estudo da subjetividade se
afasta do objetivo de definir um conjunto de regras abstratas para serem aplicadas. Não se busca estabelecer um
caminho linear para atingir um fim. A cartografia é sempre um método ad hoc. [...] A pista que tomamos aqui
diz respeito ao funcionamento da atenção durante o trabalho de campo. Não se trata de buscar uma teoria geral
da atenção. A idéia é que, na base da construção de conhecimento através de um método dessa natureza, há um
tipo de funcionamento da atenção que foi em parte descrito por S. Freud (1912/1969) com o conceito de atenção
flutuante e por H. Bergson (1897/1990a) com o conceito de reconhecimento atento. Através do recurso a esses
conceitos, bem como a referências extraídas do campo das ciências cognitivas contemporâneas,o objetivo é
analisar a etapa inicial de uma pesquisa, tradicionalmente denominada “coleta de dados”. Ocorre que, do ponto
de vista dos recentes estudos acerca da cognição numa perspectiva construtivista, não há coleta de dados, mas,
desde o início, uma produção dos dados da pesquisa” (KASTRUP, 2007, p. 15).
Estabelecendo uma relação da ação do homem na paisagem sonora desde o nomadismo até o

ápice da revolução elétrica.

No interlúdio e na terceira parte do livro, Schafer faz uma análise qualitativa da

percepção do som e como construímos a escuta. E nesta terceira parte do livro está contido o

processo metodológico o qual Schafer utilizou para a escrita do livro “A afinação do mundo”.

ESCUTANDO A APRENDIZAGEM

O primeiro movimento de escuta barthesiana, o reconhecimento dos ​índices​, pode ser

observado na primeira parte da obra “A afinação do mundo” (2001), quando Schafer refere-se

sobre a construção das línguas através da codificação dos sons produzidos por animais, sons

naturais e feitos pelo homem, que resultaram em onomatopéias que por fim culminaram em

palavras. Para que estas onomatopéias se transformassem em palavras, o homem teve que

criar significantes para os sons que capturava e assim movimentando o segundo tipo de

escuta barthesiana - a significação para além dos ​índices​.

O terceiro movimento da escuta barthesiana na obra de Schafer (2001) pôde ser

percebido ao longo do livro. O autor comenta sobre a oralidade na transmissão do

conhecimento, a aprendizagem das tradições através dos sons e do badalar do sino, bem como

a influência da indústria sobre a população que banaliza os ruídos prejudiciais em troca de

uma sobrevivência no ambiente urbano. Desta forma, construímos um corpo de escuta - essa

escuta barthesiana - ‘surdo’ a paisagem poluída.

Ao construir um corpo de escuta, repleto de representações e significantes, estão se

organizando outros modos de se construir um corpo de escuta, isto é, ao definir um meio de

capturar a cena que está ocorrendo, criam-se outros modos de escuta em decorrência da
relação que se estabelece com o outro. Podemos perceber que a escuta, a partir da filosofia da

diferença de Gilles Deleuze e Felix Guatarri (1995), se constitui, se destrói e multiplica na

relação do sujeito com a cena, seus atores, o cenário, os músicos e a plateia; ou seja, com

tudo aquilo que toca os corpos de escuta do sujeito.

Para Deleuze (2003), o aprender é um movimento de reconhecimento dos códigos que

a paisagem oferece. Como um processo de escuta, entendido a partir dos movimentos

propostos por Barthes (1990), da paisagem sonora (SCHAFER, 2001), está emitindo signos

constantemente para serem reconhecidos pelos nossos sentidos, para então construir uma

escuta, isto é, uma aprendizagem.

Scherer (2005) comenta que “A palavra ​apprendre​, permitam-me lembrá-lo, reúne, na

língua francesa, os dois sentidos, o de “aprender” e o de “ensinar”, em um ato comum entre

que aquele que ensina e aquele que é ensinado, aquele que fala e aquele que escuta e recebe”

(p. 1184). Para Deleuze (1998), a aprendizagem, que é entendida como processo (um

tornar-se), e é construída como uma forma dialética entre aquele que ensina e aquele que

aprende; um processo de escuta que se dá no encontro com o mestre, e não apenas com o

saber/conhecimento, como um movimento múltiplo de construção de sujeito. A

aprendizagem um exercício dos sentidos em razão a linguagem? Segundo Deleuze (2003), a

aprendizagem é um movimento de reconhecer os signos e processá-los. Nos encontramos

com estes signos através dos sentidos.

Portanto, atribuo a aprendizagem à escuta, essa escuta, que, proposta Barthes (1990),

em seus três movimentos (percepção/captura, processamento/ponderação/pensar, e a fala),

propõe uma aproximação com uma constituição de sujeito, uma construção de subjetividade.

Não apenas a audição, propriamente, mas a escuta que se faz uma ação de reflexão e tradução

do ambiente através do som, do ruído e dos barulhos.


Barthes (1990), referindo-se à escuta, aponta que: “[...] é uma decifração; o que se

tenta captar pelo ouvido são signos; aqui, sem dúvida, é a vez do homem; escuto da maneira

que leio, isto é, mediante a certos códigos” (p. 217). Apreendemos o mundo pelos nossos

sentidos básicos, como a audição, visão, tato, olfato, e paladar, isto é, compreendemos o

mundo através da captura e codificação das paisagens sonoras que nos circundam

(SCHAFER, 2001). A paisagem sonora é todo o campo de estudo do som e da escuta de tudo

que está passível de ser sentido, saber diferenciar o som de algo perigoso para algo pacífico

para poder se defender, bem como saber os sons das letras/palavras para poder se comunicar.

SCHAFER E A ESCUTA MUSICAL

A poluição sonora ocorre quando o homem não ouve cuidadosamente. Ruídos são
sons que aprendemos a ignorar (SCHAFER, 2001, p.18).

No parágrafo acima Schafer comenta sobre uma surdez seletiva que desenvolvemos

em função da poluição sonora - esta que é o acúmulo e superpopulação sonora - como forma

de sobrevivência à paisagem sonora contemporânea. Esta é uma manobra astuta de nosso

corpo, isto é, uma aprendizagem para ignorar a turbulência para poder construir uma escuta

em meio ao ruído. Podemos observar este fenômeno quando apenas percebemos a presença

do ar condicionado, da geladeira, da máquina de lavar, das lâmpadas fluorescentes, dos

roteadores de internet, e de outros aparelhos tecnológicos quando eles desligam; ou seja,

percebe-se a ausência do estímulo sonoro, não a presença.

[...] A definição de música tem sofrido uma mudança radical nos últimos anos.
Numa das mais recentes, John Cage declarou: “A música é sons, sons à nossa volta,
quer estejamos dentro ou fora das salas de concerto - vejam Thoreau”. Cage está
aludindo a ​Walden​, de Thoreau, onde o autor descobre uma inesgotável fonte de
entretenimento nos sons e visões da natureza (SCHAFER, 2001, p. 19).
Schafer defende que a música está onde houver som, a natureza produz música com o

som das águas, do vento, dos animais e fenômenos naturais. Contudo, a superpopulação de

sons, isto é, a poluição sonora, produziu uma redução da captura e da presença de sons

naturais. Entretanto, a cidade, que cheia de tecnologia e barulhos contínuos, produz música.

Assim como a música, que podemos nomear artística e/ou comercial, vem sofrendo

mudanças na estrutura e conceito, o nosso entendimento de música urbana - este conjunto de

barulhos da civilização tecnologizada - vem se compondo; mesmo que possa parecer,

inicialmente, um meio de defesa à esta superpopulação de sons. Pois assim como os ouvidos

e a escuta, não se fecham aos estímulos, a Música (arte e campo de estudo e produção) não se

fecha ao ambiente.

Esta música ambiental - produzida pelo ambiente, não para o ambiente - em sua forma

rural ou arcaica, ou mesmo urbana e/ou contemporânea, da forma a qual Schafer introduz,

pode ser relacionada com o conceito de Diferença (DELEUZE; GUATARRI, 1995); isto é, o

pensar pela criação, repetir o diferente/outro. Pois, mesmo que a música ambiental seja um

produto da paisagem, ela está repetindo a diferença. Aliado ao fato da impossibilidade de

reprodução fidedigna, tanto a paisagem,quanto a população mudam/transformam.

Não podemos cair num reducionismo e pensar que qualquer coisa possa ser música

por si só, porém, pode ser um gênero dentro do campo da Música. Mas para que seja música,

como podemos identificar no trecho acima, é preciso construir um corpo de escuta para estes

estímulos em harmonia8, ou não, e progressão, ou não, e significá-los em música.

Definir a música meramente como sons teria sido impensável alguns anos atrás,
embora hoje as definições mais restritas sejam as que se tem revelado mais
inaceitáveis. Pouco a pouco, no decorrer do século XX, todas as definições
tradicionais da música foram caindo por terra em razão da abundante atividade dos
próprios músicos (SCHAFER, 2001, p. 20).

8
Harmonia é o conjunto de sons e ordem simultânea (MED, 1996, p. 11-12).
Durante muito tempo a música esteve atrelada à religião. A partir do irrompimento do

cristianismo no mundo ocidental a música começou a ser dogmatizada e se cristalizar em

padrões específicos de composição e execução. Além da igreja controlar a produção de arte -

a censura - ela começou a estruturar a produção de arte, pois antes do papa Gregório I, o

magno, havia infinidades de proto-sistemáticas para composição e leitura - na música, na

pintura, na escrita. Ele introduziu - mesmo que cristalinamente - estas formas de composição

e leitura para unificar estes processos. Assim, havendo uma sistemática universal, poderia

haver uma aprendizagem mais eficaz. Isto é, foram criados este modos de se relacionar com a

arte para poder disseminá-la, contudo, essa (a arte) somente poderia ser em honraria a Deus, o

que possibilitou que se tornasse sagrada9.

A música esteve presa dentro da igreja e do conservatório durante muito tempo. Após

sua fuga das grossas paredes de pedra, encontrou-se rodeada de glória e pompas nas salas de

concerto e grandes teatros. Schafer comenta que a música começou a sair da sala de concerto

pelo furor e ação dos músicos dentro do campo da Música. Em adição, podemos observar que

a partir da ação dos músicos criou-se uma nova escuta para a música, criou-se novas

aprendizagens com a música para gerar esta escuta e com isso emerge a urgência de um

campo mais flexível para a composição e execução musical. Usando dos conceitos mais

rígidos, como a harmonia, progressão, melodia, contraponto como luzes para romper com

estes conceitos, ou para compor com este conceitos, porém sem usá-los dogmaticamente.

[...] No mito dionisíaco, a música é concebida como um som interno, que irrompe
do peito do homem; no mito apolíneo, ela é compreendida como som externo,
enviado por deus para nos lembrar a harmonia do universo. Na visão apolínea, a
música é exata, serena, matemática, associada às visões transcendentais de utopia e
da harmonia das esferas. [...] Na visão dionisíaca, a música é irracional e subjetiva.
Ela emprega recursos expressivos: flutuações temporais, obscurecimento da
dinâmica, coloração tonal (SCHAFER, 2001, p. 21).

9
Sagrada não apenas por ser religiosa, ou em devoção ao divino. Mas por ser intocável e inalterável.
Estes campos gregos de composição musical usavam das parábolas da sua cultura

para explicar o como fazer música. Para cada deus e deusa havia um estilo de composição;

porém, Dionísio e Apolo foram usados para simplificar o modo de se relacionar com a

música e seus instrumentos. A música apolínea é metódica e comumente executada com

harpas e liras; já a música dionisíaca é mais irracional e normalmente é executada com

sopros: metais (cornetas, horns, trompas) e madeiras (clarinetas, flautas).

Este exemplo do mundo antigo para a composição ainda é observável, com a música

erudita, que é mais apolínea, e o rap, rock n’roll e freestyles são mais dionisíacos. Porém,

contemporaneamente, é observável que não há mais estes pólos de composição, e sim um

gradiente que pode ser ora métrico e ora irracional durante a mesma obra, o que seria

inconcebível até o século XX.

Hermann Hesse apresenta uma teoria social interessante, em ​O jogo de contas de


vidro de 1972 (p. 30), de uma fonte chinesa: [...] “a música de uma época
harmoniosa é calma e jovial, e o governo equilibrado. A música de uma época
inquieta pe excitada e colérica, e seu governo é mau. A música de uma nação em
decadência é sentimental e triste, e seu governo corre perigo” (SCHAFER, 2001, p.
22).

Hasse (1972), apud Schafer (2001), infere que a arte presente dentro de uma

determinada cultura é, também, reflexo da organização política que se instaurou dentro da

sociedade. A arte, desde o início dos tempos, é uma forma de relação com o sujeito e sua

cultura, mas podemos observar que tanto o sujeito quanto a cultura sofrem efeitos dos modos

de governamentalidade instaurados no meio social. Simbolicamente pode se inferir, a partir

de Hasse, que a arte é o espelho da cultura, e seu reflexo é o modo de relação do sujeito com

o meio que habita.

Antes da era escrita, na época dos profetas e épicos, o sentido da audição era mais
vital que o da visão. A palavra de deus, a história das tribos e todas as outras
informações importantes eram ouvidas, e não vistas (SCHAFER, 2001, p. 28).
Neste parágrafo acima Schafer comenta sobre as sociedades orais, onde o

conhecimento dava-se através da fala e da escuta, onde a audição era um sentido de

sobrevivência e relação com o ambiente. A aprendizagem dava-se através do ouvir e do

escutar a paisagem e os ensinamentos dos mais velhos.

O tato é o mais pessoal dos sentidos. A audição e o tato se encontram no ponto em


que as mais baixas frequências de sons audíveis passam a vibrações tácteis (cerca
de 20hertz). A audição é um modo de tocar a distância, e a intimidade do primeiro
sentido funde-se à sociabilidade cada vez que as pessoas se reúnem para ouvir algo
especial (SCHAFER, 2001, p. 28).

O que ‘saltou aos olhos’, ou melhor, ‘gritou aos ouvidos’ foi este ponto de encontro

entre o tato e a audição. Pois o ouvir é um modo de tocar à distância, é construir uma escuta

com uma ampla gama de sentidos, o que a partir de Deleuze (1995) e Barthes (1990)

podemos nomear como uma escuta sensível - sensível; pois dá-se no entre, na aliança, isto é,

rizomática, pois segundo Deleuze e Guatarri (1995) “[u]m rizoma não começa nem conclui,

ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação,

mas o rizoma é aliança, unicamente aliança” (p. I).

Um riacho de montanha é um acorde de muitas notas soando estereofonicamente


pelo caminho do ouvinte atento (SCHAFER, 2001, p. 37).

Escutar a paisagem é, também, vivê-la. O som da água, assim como o vento, são sons

fundamentais de nosso planeta, pois eles existem muito antes da existência de qualquer vida.

Mas não se pode afirmar que havia sons antes da vida, pois não havia ouvidos para ouvir,

nem mentes para escutar.

Os rios do mundo falam suas próprias linguagens. O calmo murmúrio do rio


Merrimack, “rodopiando, sorvendo e deslizando para baixo, beijando a areia à sua
passagem”, era um sonífero para Thoreau. Para James Fenimore Cooper, Os rios do
norte do estado de Nova York sempre se moviam preguiçosamente para dentro das
cavernas nas rochas, “produzindo um som cavo, que lembrava a explosão de um
canhão distante” (SCHAFER, 2001, p. 38).
Os sons da água vêm influenciando os homens ao longo da história. Porém, Schafer, a

partir da literatura, identificou que o som da água não é o mesmo pelo mundo, e a escuta que

se faz da paisagem não é a mesma; pois, enquanto sujeitos, produzimo-nos de modos

variados conforme a cultura social presente em nosso processo de subjetivação - tornar-se

sujeito. Schafer conseguiu apontar com a literatura mundial que nossa escuta se compõe a

partir de nosso processo de subjetivação, e este é sonoro; isto é, a partir da simbolização

daquilo que fora escutado. Muitos épicos e poemas surgem do barulho da água, os acordes

estereofônicos do rio, o ronronar do mar, o tamborilar da chuva foram estímulos suficientes

para produzir inspiração nos escritores, compositores, pintores, arquitetos para criar. Como

por exemplo, a Odisseia de Homero (séc. VIII a.C), La Mer de Charles Trenet (1946), o Farol

de Alexandria de Ptolomeu I Sóter (280 a.C), entre outras obras.

A água nunca morre, o homem sábio rejubila-se com ela. Nem mesmo duas gotas de
chuva soam do mesmo modo, como o ouvido atento poderá comprovar (SCHAFER,
2001, p. 39).

No trecho acima Schafer usa a água como uma metáfora para a escuta, refere-se que o

som natural é sempre único, mesmo dentro de uma população de sons. Schafer refere-se com

“a água nunca morre, o homem sábio rejubila-se com ela” sobre a sabedoria de se constituir e

construir a partir do reconhecimento e ressignificação dos estímulos (quer sonoros, visuais,

táteis, olfativos, palatares, de equilíbrio), tendo em vista que os emissores destes estímulos

sempre estarão presentes, contudo a percepção pode ser mutante.

Esta metamorfose da percepção pode ser entendida como “o que se pôde ser

percebido” durante certo período histórico? Bem como, como pôde ser entendido o sujeito

nesta ou naquela sociedade para que ele construísse sua escuta?

Cada paisagem sonora mundial tem seu próprio som peculiar, e com frequência
esses sons são tão originais que constituem marcos sonoros (SCHAFER, 2001, p.
48).
Nesta citação o autor se refere aos sons que a paisagem produz, e o como o homem

aprendeu a construir um corpo de escuta que seja capaz de reconhecer o local a partir da

escuta. Como, por exemplo, ouvir o som do vento oscilante como o das ondas pulsantes e

com isso conseguir sentir o calor da areia nos pés. Ou mesmo ouvir o canto do Jaburu

(Tuiuiú) e saber que este som foi retirado do Pantanal Matogrossense. O Jaburu para o

pantanal, bem como as ondas para a praia são marcas sonoras, isto é, um som característico

de um determinado local.

É difícil para um ser humano imaginar um som apocalíptico, do mesmo modo como
é difícil imaginar um silêncio definitivo. Ambas as experiências existem
teoricamente para o ser vivo, uma vez que elas impõem limites à própria vida
(SCHAFER, 2001, p. 51).

O som sempre esteve ao lado da imaginação e o ser humano sempre cogitou a ideia de

apocalipse e inexistência de vida, o que poderia causar tremendo barulho, ou silêncio. Ambas

as ideias são impossíveis de seram presenciadas pelo humano, pois para haver silêncio

absoluto não pode haver matéria, nem vibração, o que pelo que temos ciência não há em

nosso universo observável. Uma forma apocalíptica até pode existir, mas dificilmente

estaremos aqui para ouvi-la, dada a situação que criamos a nós mesmo para nossa existência

neste planeta.

[...] O Homem sempre tentou destruir seus inimigos com ruídos terríveis.
Encontramos tentativas deliberadas para reproduzir o som apocalíptico na história
das guerras, desde o entrechocar-se dos escudos e o rufar dos tambores dos tempos
primevos até a bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki (SCHAFER, 2001, p. 51).

A influência do som fez o humano usá-lo como arma. Se muitos têm medo do trovão

do raio, da turbulência do tornado, do crepitar do fogo, dos urros das ondas gigantes, como

não fazer deste um artifício, uma forma de guerrear? Nas idades antiga e clássica o bater de

escudos, o soar da cornucópia, o rufo de tambores, o grito de guerra, os estampidos dos


foguetes criavam ambientes de terror ao inimigo. Futuramente, a arma de fogo, o canhão, a

bomba ampliaram o ruído da guerra.

A linguagem e o canto dos pássaros têm sido tema de muitos estudos, embora não se
saiba ao certo se, de fato, os pássaros “cantam” ou “conversam”, no sentido
costumeiro desses termos. Seja como for, nenhum som da natureza tem estado
ligado tão afetivamente à imaginação humana quanto a vocalização dos pássaros
(SCHAFER, 2001, p. 53).

Os pássaros encantam a humanidade, pois os pássaros conseguem produzir melodias,

que muitas vezes complexas e harmoniosas, sem ter construído uma ciência como a Música.

Como pode um ser tão pequeno produzir, e com um telencéfalo subdesenvolvido, música?

Que é uma das mais complexas artes.

Em alguns de seus pormenores, a linguagem afetiva de certos pássaros [...] mantém


relação com as formas de expressão humana vocal e musical. Por exemplo, os sons
aflitos dos pintainhos são compostos apenas por frequências descendentes, enquanto
as frequências ascendentes predominam nos cantos de prazer. Os mesmos contornos
gerais estão presentes nas expressões de tristeza e prazer do homem (SCHAFER,
2001, p. 55).

O homem, que é capaz de produzir qualquer som a partir do uso de tecnologia, muitas

vezes usa do sons da natureza para se comunicar. Podemos inferir por razões lógicas de

evolução de nossa espécie que os sons dos animais estavam presentes no ambiente antes da

invenção da linguagem, e com certeza, muito antes da língua. E a partir da capacidade de

empatia e simbolização daquilo que fora capturado, nos aproximamos dos animais e de sua

‘linguagem’.

Cada território terá sua própria sinfonia de pássaros, produzindo um som


fundamental nativo - tão característico quanto a língua dos homens que vivem
nesse lugar (SCHAFER, 2001, p. 56).

Os pássaros são comumente marcos sonoros (característica identificatória da

paisagem sonora) em seus territórios. Nem todas as aves migram, e tampouco migram para

muito longe, como o pombo que percorre grandes distâncias para procurar abrigo e proteção.
Assim os pássaros são denominadores influentes da população sonora do território. Desta

forma, constituindo importantes marcos sonoros do local. Assim, podemos construir uma

aprendizagem a respeito das estações, do ambiente, ou mesmo da ação do homem na

paisagem a partir do barulho dos pássaros.

Para começar devemos atentar ao fato de que muitos sinais comunicados entre
animais - os de caçada, alerta, medo, raiva ou acasalamento - não raro correspondem
estreitamente, em duração, intensidade e inflexão, a muitas exclamações humanas.
[...] Isso somado ao fato de o homem muitas vezes compartilhar os mesmos
territórios geográficos com os animais, remete ao seu aparecimento no folclore e em
rituais (SCHAFER, 2001, p. 68).

O convívio com os animais possibilitou ao homem simbolizar certos sinais sonoros

em expressões de linguagem. Possibilitou também que o barulho dos animais criasse formas

de interrelação entre os humanos a partir das significações, isto é , dos corpos de escuta, que

o homem a partir do convívio com os animais possa fazer. Como podemos observar na

citação seguinte:

A onomatopéia reflete a paisagem sonora. Mesmo com a nossa linguagem


avançada, ainda hoje continuamos, no vocabulário descritivo, a resgatar os sons
ouvidos no ambiente acústico; e bem pode ser que as mais complexas extensões
acústicas do homem - suas ferramentas e seus recursos de sinalização - também
continuem, até certo ponto, a ampliar os mesmos modelos arquetípicos (SCHAFER,
2001, p. 68).

Todas as línguas não surgiram do nada. Elas surgem do contato e da emergência da

situação. Os animais nos deram muitos verbos e adjetivos graças aos sons que faziam e de

como se relacionavam entre si e com os humanos.

[...] O homem tem muitas palavras para descrever os sons dos animais que estão
mais próximos dele. São verbos, palavras de ação, e a maior parte ainda é
onomatopaica (SCHAFER, 2001, p. 69).

Muito mais comum nas línguas saxônicas, germânicas e anglicanas, como o inglês e

alemão, há o uso das onomatopéias como verbos. Mas também observamos na língua

portuguesa. Ao que podemos nomear, o humano ouvia os sons dos animais, dava sentido a
eles e criava uma onomatopéia. Então a partir desta significação, e do uso desta onomatopéia,

ela se transformava em palavra.

Examinando o perfil de uma cidade medieval européia, logo notamos que o castelo,
a muralha da cidade e a cúspide da igreja dominavam o cenário. Na cidade moderna,
o prédio de apartamentos de muitos andares, a torre do banco, e a chaminé da
fábrica é que são as estruturas mais altas. Isso nos diz muito coisa sobre as
instituições sociais proeminentes nas duas sociedades (SCHAFER, 2001, p. 85).

A música, como já citado, teve por muito tempo caráter divino, ou divinatório, o sino

da igreja, bem como a cornucópia do castelo tinham funções bem definidas. O sino indicava

os momentos de se ter fé, e de se aproximar de deus, enquanto a cornucópia comunicava o

perigo, ou mesmo, comandos de guerra.

O sinal sonoro mais significativo da comunidade cristã é o sino da igreja. Em um


sentido bem verdadeiro, ele define a comunidade, pois a paróquia é um espaço
acústico circunscrito por sua abrangência. O sino é um som centrípeto; atrai e une a
comunidade num sentido social, de mesmo modo que une homem e deus. Algumas
vezes no passado, ele adquiria também uma força centrífuga, quando era utilizado
para expulsar os espíritos do mal (SCHAFER, 2001, p. 86).

O sino desde sua invenção sempre teve um caráter mágico e/ou religioso. Ele tem a

função de levar ao universo, a deus, os pedidos dos humanos. Segundo Barthes (1980) o sino,

a partir do cristianismo, tinha função de reunir a comunidade, proteger os pessoas, e expulsar

más forças. O sino assumiu a função de ensinar pelo som, ao longo de sua história.

Foi durante o século XIX que o sino se uniu a uma invenção técnica de grande
significado para a civilização européia: o relógio mecânico. Juntos ele se tornaram
os sinais mais inevitáveis da paisagem sonora porque, como o sino da igreja e
mesmo com a mais implacável pontualidade, o relógio mede a passagem de tempo
de forma audível (SCHAFER, 2001, p. 88).

Desta vez, com a união do relógio com o sino, o homem moderno poderia perceber as

horas através dos ouvidos. Mas não apenas: o relógio ensinou o ritmo da modernidade com o

badalar. O sino do relógio, além de estético e didático às horas, teve a função social de

organizar a população e regrar o trabalho.


Os relógios sonoros regulavam os movimentos da cidade com certo autoritarismo
militante. Ocasionalmente, eles ascendiam ao estado de marcas sonoras
(SCHAFER, 2001, p. 89).

O relógio governou, e governa, o mundo a punhos de ferro. Ele não tolera atrasos, não

suporta outro ritmo. O relógio, para o mundo contemporâneo, assumiu a posição divina, pois

ele está em todos os lugares e a todos governa.

A associação entre relógios e sinos de igreja não foi absolutamente fortuita, pois o
cristianismo desenvolveu a ideia retilínea de tempo como progresso, ainda que
progresso espiritual, com um ponto inicial (a criação), um indicador (Cristo) e uma
profética conclusão (o Apocalipse) (SCHAFER, 2001, p. 89).

A 60 batidas por minuto o relógio impôs o milagre do progresso. A igreja cristã

sempre esteve a serviço do progresso, este como forma retilínea e ascendente, e se

empodeirou de todas as técnicas para assegurar o progresso, e este foi irrompido

drasticamente, como uma guerra - que se tornou a mais mortal dentre elas, pois possibilitou

que as guerras fossem ainda mais sonoras.

Antes da revolução industrial, o trabalho costumava estar associado à canção, pois


os ritmos das tarefas eram sincronizados com o ciclo da respiração humana ou
surgiam dos hábitos relacionados com as mãos e os pés (SCHAFER, 2001, p. 99).

A revolução industrial e elétrica trouxeram o barulho contínuo e ainda mais audível

para a paisagem. Mas este não é o maior prejuízo; o relógio, por sua vez, foi a velocidade de

produção e a produção serial em massa, que vem criando muito sofrimento no trabalhador,

pois ele não sabe como fazer o produto, mas apenas a peça, e o ritmo é acelerado, o que faz

com que o trabalhador não consiga produzir plenamente, gerando um sentimento de estar em

déficit ou débito com seu empregador, como podemos perceber no processo fabril intitulado

Fordismo, e posteriormente Toyotismo.

A revolução industrial introduziu uma multidão de novos sons, com consequências


drásticas para muitos dos sons naturais e humanos que eles tendiam a obscurecer; e
esse desenvolvimento estendeu-se até uma segunda fase, quando a revolução
elétrica acrescentou novos efeitos próprios e introduziu recursos para para
acondicionar sons e transmiti-los esquizofrenicamente através do tempo e do espaço
para viverem existências amplificadas ou multiplicadas (SCHAFER, 2001, p. 107).
Como toda revolução, a industrial e elétrica deixaram marcas perpétuas para

humanidade, no ambiente visível, no audível, e no modo se relacionar enquanto sociedade.

Contudo, estas revoluções de produção obscureceram alguns aprendizados, isto é, escutas

sensíveis da paisagem sonora. Pois além de superpopular de sons o meio ambiente, tornou o

homem sedentário às percepções do mesmo. Schafer comenta que:

Hoje o mundo sofre de uma superpopulação de sons. Há tanta informação acústica


que pouco dela pode emergir com clareza (SCHAFER, 2001, p. 107).

Esta poluição sonora traz um prejuízo à escuta, ao passo de provocar um déficit na

aprendizagem. Se há uma baixa qualidade sonora ambiental a ser percebida, em função da

multidão sonora, acabamos por anestesiar nossos sentidos sensíveis - como a escuta, o olhar,

a sensação por exemplo - e acomodar nossos sentidos orgânicos - como a visão, a audição, o

tato. Esta anestesia da percepção pode ser entendida como dessensibilização; isto é,

barthesianamente seria tornarmos insensíveis ao sensível. Schafer nos evoca a problemática

da qualidade da nossa aprendizagem em função da caoticidade da paisagem sonora. Contudo,

Deleuze (1995) afirma que é em meio ao caos que conseguimos criar; isto é pensar -

aprender. Porém esta anestesia dos sentidos dá-se através da acomodação; isto é, estar fadado

a perceber o mesmo, e não a diferença - como podemos observar na obra de Deleuze (1995) e

Barthes (1990). Schafer provoca-nos a ouvir pela diferença (DELEUZE, 1995); ou seja,

escutar.

Este fenômeno de analgesia perceptiva pode ser percebido quando entendemos que o

som da natureza, como o canto dos pássaros, ou grilos, é barulho enquanto as buzinas e o

ronco de motores é som, quiçá, música.

A associação entre o Ruído e o poder nunca foi realmente desfeita na imaginação


humana. Ele provém de deus, para o sacerdote, para o industrial e, mais
recentemente, para o radialista e o aviador. O que é importante perceber é que: ter o
Ruído Sagrado não é, simplesmente, fazer o ruído mais forte; ao contrário, é uma
questão de ter autoridade para fazê-lo sem censura (SCHAFER, 2001, p. 114).

Schafer apresenta este modo de relação de saber-poder através do som, de muitas

formas, como o alto-falante que se relaciona com o outro sobrepujando sua vontade. A outra

forma é o Ruído Sagrado, isto é, poder produzir ruídos, barulhos, sons e música sem sofrer

com a censura, ou pressão externa. De certa forma seria ocupar uma posição privilegiada na

relação de poder. Schafer classifica como imperialista aquele que exerce/produz o Ruído

Sagrado, pois:

Imperialismo é a palavra utilizada para se referir a expansão de um império ou


ideologia a partes do mundo remotas à fonte.[...] Quando o poder do som e o
suficiente para criar um perfil acústico, também podemos considerá-lo imperialista
(SCHAFER, 2001, p. 115).

O Ruído Sagrado não é produzido apenas pelo sacerdote. É produzido também pela

fábrica, pelos carro-propagandas, mas não plenamente, pois ainda há certa censura; como a

lei anti-ruído e os EPI10’s para os ouvidos - sendo ambos muito recentes.

O gravador “matou” a imaginação humana, ao que se refere ao som emitido, de uma

fala ou de um evento natural, mas ao passo que “matou” a imaginação, ele possibilitou a

imortalidade do som, bem como a facilitou a edificação do imperialismo sonoro, enquanto

instituição. Schafer chamou de esquizofonia este processo.

O prefixo grego ​schizo significa cortar, separar. E ​phone é a palavra grega para voz.
Esquizofonia refere-se ao rompimento entre um som original e sua transmissão ou
reprodução eletroacústica. [...] No princípio todos os sons eram originais. Eles só
ocorriam em determinado tempo e lugar. Os sons estavam indissociavelmente
ligados aos mecanismos que os reproduziam.[...] Os sons têm semelhanças entre si,
a exemplo dos fonemas que se repetem numa palavra, mas não são idênticos. Testes
mostraram que é fisicamente impossível para o ser mais racional e calculista da
natureza reproduzir duas vezes exatamente da mesma maneira um só fonema de seu
próprio nome (SCHAFER, 2001, p.133)

10
​Sigla para equipamento de proteção individual.
Esta esquizofonia possibilitou que a aprendizagem através da escuta fosse ainda mais

possível, contudo, como Schafer (2001) comenta, o microfone não tem a mesma capacidade

da máquina fotográfica, pois apenas consegue operar num plano de ​close​. O gravador retirou

uma “deficiência” natural, a diferença na reprodução sonora, o que acaba castrando ainda

mais a imaginação humana, pois traz o empirismo - cartesiano - à reprodução do som.

Desde a invenção do equipamento eletroacústico para a transmissão e estocagem de


som, qualquer um deles , por minúsculo que seja, pode ser movimentado e
transportado através do mundo ou estocado em uma fita ou disco para gerações
futuras. Separamos o som do produtor de som (SCHAFER, 2001, p. 134)

Atualmente, devido à “revolução tecnológica” que vivemos, o som pode ser estocado

virtualmente, sem precisar de algum objeto físico, como discos e fitas, que lhe imortalizará.

Podemos ouvir música árabe sem nunca ter ido à Arábia, ou mesmo ter contato com qualquer

coisa parecida usando o Spotify11Ⓒ, porém, não podemos ver quem tocou, ou sentir a

vibração que se instaurou na paisagem quando esta música foi executada, pois ao passo que o

gravador imortalizou o som, ele separou o som do produtor, assim como as revoluções de

produção - Industrial e elétrica - fizeram com o produto final.

Apesar da música se tornar industrial - produzida para públicos distintos, feita

serialmente, e com prazo de validade - ela nunca perdeu, plenamente, as propriedades

sensíveis, isto é, a música ainda toca corações, provoca sentimentos, nos faz ficar inquietos a

ponto de bater o pé, ou melhor, dançar.

As tribos aborígenes12 usavam o Didgeridoo (Didjeridú)13 em rituais e para curar. Eles

tinham ciência que o som causava certa analgesia, ou mesmo, tinha propriedades para além

11
​Aplicativo para smartphone e computadores que reproduz música, utilizando a Nuvem como fonte​.
12
Povo nativo da Austrália.
13
Instrumento musical, de som muito característico, e mágico utilizado em momentos festivos, e religiosos para
dar graças à colheita, curar os doentes. É um instrumento tubular de sopro, feito de troncos de árvore, onde o
núcleo é comido por cupins.
da audição. Mas ​moozak14 inseriu no mercado uma forma de áudio-analgesia, como traz

Schafer (2001) - a música ambiente.

[...] O homem moderno descobriu o que se pode chamar de ​áudio-analgesia​, isto é,


o uso do som como analgésico, como distração para disseminar distração. A
utilização da áudio-analgesia na vida moderna se estende de seu uso original, na
cadeira do dentista, para a música de fundo em hotéis, escritórios, restaurantes e
muitos outros lugares privados e públicos (SCHAFER, 2001, p. 141).

Aprendemos a ouvir música de amor, de sofrimento, de dor, de alegria. Nos

implicamos, enquanto músicos, a criar músicas para expressar sentimentos, ou mesmo,

criamos sentimentos para expressar músicas. Estas movimentações dizem respeito aos

processos da escuta barthesiana, porque retratam o processo desde a captura do som até a

composição - o diálogo enquanto música - como uma forma de produção social. Quando se

faz música, ou a reproduz, é intentada para um público, é atravessada por certas relações de

poder, é harmonizada a partir de um entendimento de sujeito contemporâneo - este que é

mutante à medida em que o tempo passa, bem como a próprio entendimento de Música.

O homem precisou inventar a maior das invenções para poder criar a humanidade;

esta por sua vez foi a linguagem, pois ela possibilitou que tudo fosse criado. Não se sabe

muito bem como, nem onde ao certo, ela foi inventada, mas a única coisa que podemos aferir

é que ela surgiu da necessidade. Não há linguagem sem o desenvolvimento de uma semiótica,

o que Schafer chama de notação; como podemos ver a seguir:

A notação é uma tentativa de substituir fatos auditivos por sinais visuais


(SCHAFER, 2001, p.175).

Então, a linguagem, que agora repleta de sinais para além dos ​signos ​da escuta, forma

uma língua; esta pertence a um território, que pode ser geográfico, social, ou do pensamento.

Enquanto a linguagem pode ser compreendida para além do território, a língua define o

14
​Autor responsável pelo movimento esquizofonia, e que introduziu no mercado musical a ‘música de
elevador’.
espaço territorial e o afirma. Pois a língua é uma materialização, isto é, uma notação, pois

substitui o ​signo pelo sinal. Schafer afirma que a língua se construiu a partir de muito contato

com o som, e com seu emissor; pois depois do contato com o ruído, transforma-o em som, e

este em onomatopéia, que se tornará palavra, para que, enfim, torne-se representação gráfica

para ser reproduzido. Como cita Schafer:

[P]or que classificar? Classificamos informações para descobrir similaridades,


contrastes e modelos. Como todas as técnicas de análise, essa atividade só pode ser
justificada se nos conduzir à melhoria da percepção, do julgamento e da invenção
(SCHAFER, 2001, p.189).

Desta forma, a classificação é um modo de tornarmos sensíveis à aprendizagem, de

sermos atravessados pela escuta daquele que classificou. Compor uma música é classificar

sentimentos em uma harmonia, por exemplo. Podemos classificar sons em emoções, em

propriedades sonoras porque intentamos a compor um aprendizado pela escuta.

Os sons podem ser classificados de muitas maneiras: de acordo com suas


características físicas (acústica) ou com o modo como são percebidos
(psicoacústica); de acordo com sua função e significado (semiótica e semântica); ou
de acordo com suas qualidades emocionais ou afetivas (estética). Embora seja
hábito tratar essas classificações separadamente, há óbvias limitações para esses
estudos isolados (SCHAFER, 2001, p.189).

Compor música pode ser relacionado à construção de aprendizagem, pois consegue

unir esses quatro movimentos citados acima. Estas características físicas são os dados

empíricos cristalinos/cristalizados que são fundamentais para poder ver e ouvir a informação;

a psicoacústica, a semiótica e a semântica dizem respeito ao segundo movimento da escuta

barthesiana, quando refere-se à significação e impressão causada durante a captura. Já a

estética fala do terceiro movimento, pois diz respeito aos atravessamentos e à reprodução

deste conhecimento. Porque só reproduzimos aquilo que nos afeta de certa forma.
Para podermos perceber e reconhecer o que é evidente, emergente, ou “imperceptível”

na paisagem, dependendo do lugar que se ocupa, e o que se escuta, na paisagem, como cita

Schafer, a partir da Gestalt:

De acordo com os psicólogos da Gestalt, que introduziram a distinção, a figura, é o


foco de interesse, e o fundo, o cenário ou contexto. Isso foi acrescentado, mais
tarde, um terceiro termo, o ​campo​, significando o lugar onde ocorreu a observação.
Foram os psicólogos fenomenológicos que apontaram para o fato de que aquilo que
é percebido como figura ou fundo é determinado principalmente pelo campo e pelas
relações que o sujeito mantém com esse campo (SCHAFER, 2001, p.214).

Voltemos ao movimento de composição da língua para entender esta aprendizagem

através da escuta. O sinal sonoro do predador, o urso, ou o bandido, por exemplo, teve que

ser reconhecido como perigo para que se tornasse significativo ao homem para culminar em

palavra, isto é, teve que se fundamentar como figura ao cenário. Outros sons que eram fundo,

isto é, menos perceptíveis em função do grau de relevância que teve dentro da relação de

escuta que se estabelece, tiveram que se tornar figura para poder existir à percepção humana.

Observemos a citação a seguir:

Nos testes de percepção visual Figura/Fundo, a figura e o fundo podem ser


invertidos, mas não podem ser percebido simultaneamente. Por exemplo, quem olha
dentro da água clara de um lago pode perceber o próprio reflexo ou o fundo do lago,
mas não os dois ao mesmo tempo (SCHAFER, 2001, p.214).

Este seria o grau de relevância aos nossos sentidos, ou seja, que relação se

estabelece/constrói com esta percepção. O que emerge do fundo como figura é aquilo que por

necessidade - da percepção deficitária que temos, ou melhor, aprendemos a ter - se instaurou,

ou fora percebida pelo forasteiro.

Considerar um som como figura ou fundo está parcialmente relacionado com a


aculturação (hábitos treinados), parcialmente com o estado da mente do indivíduo
(estado de espírito, interesse) e parcialmente com a relação individual com o campo
(nativo, forasteiro). Não há nada o que fazer com a dimensão física do
som,[...]mesmo os sons mais fortes, como os da revolução industrial, permaneceram
completamente indiscerníveis até que sua importância social começou a ser
questionada. Por outro lado, mesmo os sons mais delicados serão notados como
figuras quando são novidade, ou quando são percebidos por forasteiros (SCHAFER,
2001, p.215).
A escuta barthesiana - aprendizagem pela escuta - surge a partir do pensamento

schaferiano, de uma demanda social, ou interna, pois acomodamos nossa percepção até que

ela se faça necessária, ou seja percebida pela escuta/olhar do turista. Schafer reitera dizendo:

[...] indiquei o modo pelo qual diferentes linguagens têm expressões onomatopaicas
especiais para animais, pássaros e insetos familiares. Ao lado das limitações
fonéticas da língua, as diferenças óbvias dessas palavras ​parecem indicar algo a
respeito da maneira pela qual os mesmos sons são ouvidos de modos tão diversos
em diferentes culturas - ou será que os animais e insetos falam dialetos?
(SCHAFER, 2001, p. 216).

Esta escuta que construímos pertence aos territórios que estamos inseridos, pois

quando uma escuta forasteira, ou o olhar de um turista, se faz, outras percepções se fazem -

como a escuta psicológica, que forasteira à situação, pode perceber com certa clareza por não

estar atravessado com a ocorrência, por exemplo.

CONCLUSÃO

Na obra de Raymond Murray Schafer, “A afinação do mundo”, de 2001, buscamos

aproximações e distanciamentos com os conceitos de aprendizagem deleuziana e escuta

barthesiana. O livro em questão tem um olhar cartográfico e procura estabelecer relações

entre o som e o desenvolvimento da humanidade, e, por isso, entendemos como campo de

pesquisa para estabelecer estas relações com os conceitos de aprendizagem e escuta.

Para Schafer, Deleuze e Barthes a aprendizagem/escuta - conceitos que se relacionam

intrinsecamente - dizem de um processo de encontro com o conteúdo e seu emissor, com o

som e seu produtor, com a vida e seus habitantes. E a partir de muito contato constróem uma

significação, uma semiose, uma linguagem, uma cultura. Na filosofia destes autores -

Barthes, Deleuze e Schafer - a experiência e a criação são de ordem maior, dizem do ato de

pensar, ou mesmo da ação de problematizar a própria experiência enquanto experiência. Por


isso, propusemos-nos a estudar os processos de escuta, e sua relação com o sujeito em seu

processo de subjetivação de forma a ampliar a compreensão do sujeito, entendendo que este

não é apenas atravessado pela sexualidade, estímulos do ambiente e pelos instintos, mas

também atravessado pelos sentidos e pelo sensível nos territórios que habita, desabita, e

modifica, constantemente.

No processo de produção de dados e análise foi possível perceber aproximações aos

conceitos de aprendizagem e escuta, quando Schafer disserta sobre os modos que os sons da

paisagem auxiliaram os artistas - poetas, escritores, pintores, escultores, músicos - em seu

processo de criação. Outra aproximação possível ocorre quando o autor fala do processo de

criação e desenvolvimento da língua e da linguagem através do encontro com o som e seu

emissor, assim como, quando refere-se aos aprendizados socioculturais e produção subjetiva

através do som - sino da igreja e o relógio mecânico. A obra assume um grau de

distanciamento no que refere aos dados cartesianos acerca das propriedades do som, mas

assume uma posição mais próxima quando traz estes dados de forma quanti-qualitativa,

problematizando o efeito prolongado da exposição aos ruídos em relação à população, que os

banaliza e os naturaliza.

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