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APRENDIZAGEM E DE ESCUTA
RESUMO
O presente artigo apresenta uma revisão de literatura a partir de um olhar cartográfico para a
obra de Raymond Murray Schafer, “A afinação do mundo”, de 2001. Este escrito buscou
estabelecer relações de proximidade e distanciamento com os conceitos de aprendizagem
deleuziana e escuta barthesiana, para problematizar e ampliar o entendimento de escuta para a
psicologia. Desta forma, foi possível estabelecer aproximações com os conceitos analisadores
através da pesquisa schaferiana com as paisagens sonoras mundiais e a ação do homem, e
sociedade, nas paisagens sonoras. Foi possível identificar uma coalizão entre os conceitos
esquizoanalíticos de escuta e aprendizagem com a obra schaferiana.
Palavras-chave: Aprendizagem, Escuta, Paisagem Sonora, Filosofia da Diferença, Música.
ABSTRACT
The present article presents a literature review from a cartographer sight to the Raymond
Murray Schafer book, “The tuning of the world” from 2001. This paper had been layed to
find proximity and detachment relations with deleuzian learning and barthesian listening
concepts to problematize and widen the understanding of psychological listening. Thus, had
been possible to establish approximations with analyzers concepts throughout a schaferian
research with the world soundscapes and mankind and society action on those soundscapes.
Have been possible identify a coalition between the schizoanalytic concepts of Listening and
Learning within Schafer’s composition.
Key words: Learning, Listening, Soundscape, Difference philosophy, Music.
1
Graduando do Curso de Psicologia do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, do Centro Universitário
Univates.
2
Graduada em Psicologia pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC (2006). Mestre em Psicologia, área
de concentração Psicologia Social, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS (2010).
Docente no Centro Universitário UNIVATES, onde também atua como Coordenadora do Curso de Psicologia.
INTRODUÇÃO
define como escuta sensível da paisagem sonora3, utilizamos o conceito de escuta, de Roland
fases da escuta. O primeiro deles diz de um reconhecimento do ruído, o que Barthes chama
de índices, e também, da forma responsiva a qual nos comportamos a partir do que fora
capturado por nossas orelhas, isto é, uma audição, como a do predador e/ou da presa. O
significação do ruído, com uma estruturação semiótica daquilo que fora percebido, isto é,
Para Barthes (1990) o terceiro movimento da escuta é o que mais nos distanciamos do
animal selvagem - tanto o animal quanto aquele que nos habita. Este movimento é o diálogo,
a fala, a dinâmica de um saber-poder com outro ser: humano, animal ou objeto. Mas não
vida, mas também a forma como nos relacionamos com a sociedade, e com seu processo de
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Ambiente sonoro. Tecnicamente, qualquer porção de ambiente sonoro vista como um campo de estudos. O
termo pode referir-se a ambientes reais ou a construções abstratas, como composições musicais e montagem de
fitas, em particular quando consideradas como ambiente (SCHAFER, 2001, p. 366).
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Melodia é o conjunto de sons em ordem sucessiva (MED, 1996, p. 11-12).
composição enquanto sociedade. Além do mais, este terceiro ato da escuta diz também do
refere-se à relação que se estabelece entre o sujeito em seu meio, a partir do que se entende
por sujeito culturalmente aceito, aliado à percepção e simbolização daquilo que fora captado
pelos sentidos, em especial o ouvido no primeiro movimento da escuta. Ao passo que esta
constantemente com o conceito de escuta barthesiana, pois o reconhecimento dos signos diz
de uma compreensão dos índices, bem como no segundo e terceiro movimentos da escuta
organização/criação daquilo que fora percebido e compreendido para além das orelhas. Por
A partir da leitura da obra, já referida, pôde ser verificado como o ser humano
sonoridade através de sua atuação na mesma, como, por exemplo, mudar o curso de um rio,
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Som, segundo Med (1996, p. 11-12), é a sensação produzida no ouvido pelas vibrações de corpos elásticos.
forma, podemos observar os processos de escuta e sua relação com o sujeito em seu processo
entendendo que este não é apenas atravessado pela sexualidade, estímulos do ambiente, e
pelos instintos, mas também atravessado pelos sentidos e pelo sensível nos territórios
GUATARRI, 1995).
O sujeito constrói sua escuta; isto é, seu processo de subjetivação. Este é entendido
[...] a escuta é essa atenção prévia que permite captar tudo o que pode vir perturbar
o sistema territorial; é uma defesa contra a surpresa; seu objetivo é a ameaça; ou, ao
contrário, a necessidade; o material da escuta é o índice, seja porque revela o perigo,
seja porque permite a satisfação da necessidade (p. 219).
sentido aos sentidos por nós sentidos. Gerar significantes às coisas, atribuir valores às
inicialmente de forma responsiva, e possa ser ‘repensada’ a tornar este movimento, que
e compreendidos, estes por sua vez são anexados ao nosso ‘repertório de aprendizagem’,
como em aquelas velhas pastas pretas que colocamos as músicas que aprendemos.
Retornamos a estas músicas - essa aprendizagem - com uma nova escuta a cada vez, pois
estamos continuamente construindo este corpo - a escuta - durante nossa vida (DELEUZE,
2006). É com este corpo de escuta, que em constante construção, retornamos a este repertório
para produzir um aprendizado; e com isso, produzir uma escuta. Barthes (1990) cita: “deste
fundo auditivo destaca-se a escuta, como exercício de uma função de inteligência, isto é de
Para Schafer (2001), os tempos, os horários e as horas são ensinados através do som.
Porém, não apenas o barulho tonal; este, que é um ruído que está situado dentro das
causado pela emissão de signos dos sinos vibrando a paisagem. Este movimento, que
acústico, emite signos para serem reconhecidos. E é na captura destes signos, que são
processo de subjetivação, nos tornando sujeitos pelas relações de saber-poder nas quais
estamos inseridos (FOUCAULT, 2013). Porém, não apenas o saber formal escolar, mas
PROCESSO METODOLÓGICO
O livro ‘A afinação do mundo’ foi escrito por Raymond Murray Schafer a partir de
seu projeto de pesquisa “As paisagens sonoras mundiais”, sendo publicado em 1977 com o
título “The tuning of the world”. Em 1997, o livro foi traduzido para o português pela Dra.
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Segundo Baremblitt (2002), práxis é entendida como a prática indissociável ao saber.
Marisa Trench de Oliveira Fonterrada, graduada em Música, mestre em Educação e doutora
em Antropologia. Para esta pesquisa utilizamos a segunda reimpressão de 2001. Este livro é
elétrica e o como o ser humano foi se implicando com os sons naturais: como o mar, a água,
o vento, o barulho dos fenômenos naturais, entre outros. A segunda parte fala sobre a ação da
revolução industrial e elétrica sobre a paisagem e o modo como o ruído foi diminuindo a
fidelidade sonora da paisagem. Entre a segunda e a terceira parte há um interlúdio que remete
som veio historicamente se construindo, sobre o como o ruído vem ensurdecendo a população
de diversas formas. E a quarta parte, e última, retrata a respeito da teoria do projeto acústico
Foi realizada uma primeira leitura do livro “A afinação do mundo”, onde fizemos um
registro das nuances num diário de bordo, que foi produzido durante as leituras, para
identificamos que a quarta parte não foi passível de relação com o conceito de escuta de
Barthes, pois diz respeito ao projeto acústico, teoria que Schafer desenvolveu a respeito da
fizemos uma segunda leitura, para poder retornar às partes que se relacionavam com o
conceito de escuta. Esta segunda leitura teve o intuito de coleta de material de análise.
Os textos iniciais do livro “A afinação do mundo”, em seus quatro primeiros
capítulos, são introduzidos com excertos retirados da literatura mundial, para demonstrar a
língua e a linguagem, foi, inicialmente como forma responsiva, composta a partir dos sons;
transformá-las em palavras.
A primeira parte da obra “A afinação do mundo” se refere a como o ser humano ouvia
e respondia aos índices, para formar uma escuta/significação daquilo que foi compreendido
para além daquela forma responsiva aos estímulos. O que mais chama a atenção, esta que
problematiza o que se entende por escuta, e progressivamente ele vai pondo elementos para
ampliar - maximizar - este conceito. Ainda na primeira, ele começa a dissertar sobre a
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A cartografia é um método formulado por G. Deleuze F. Guattari (1995) “que visa acompanhar um processo, e
não representar um objeto. Em linhas gerais, trata-se sempre de investigar um processo de produção. De saída, a
idéia de desenvolver o método cartográfico para utilização em pesquisas de campo no estudo da subjetividade se
afasta do objetivo de definir um conjunto de regras abstratas para serem aplicadas. Não se busca estabelecer um
caminho linear para atingir um fim. A cartografia é sempre um método ad hoc. [...] A pista que tomamos aqui
diz respeito ao funcionamento da atenção durante o trabalho de campo. Não se trata de buscar uma teoria geral
da atenção. A idéia é que, na base da construção de conhecimento através de um método dessa natureza, há um
tipo de funcionamento da atenção que foi em parte descrito por S. Freud (1912/1969) com o conceito de atenção
flutuante e por H. Bergson (1897/1990a) com o conceito de reconhecimento atento. Através do recurso a esses
conceitos, bem como a referências extraídas do campo das ciências cognitivas contemporâneas,o objetivo é
analisar a etapa inicial de uma pesquisa, tradicionalmente denominada “coleta de dados”. Ocorre que, do ponto
de vista dos recentes estudos acerca da cognição numa perspectiva construtivista, não há coleta de dados, mas,
desde o início, uma produção dos dados da pesquisa” (KASTRUP, 2007, p. 15).
Estabelecendo uma relação da ação do homem na paisagem sonora desde o nomadismo até o
percepção do som e como construímos a escuta. E nesta terceira parte do livro está contido o
processo metodológico o qual Schafer utilizou para a escrita do livro “A afinação do mundo”.
ESCUTANDO A APRENDIZAGEM
observado na primeira parte da obra “A afinação do mundo” (2001), quando Schafer refere-se
sobre a construção das línguas através da codificação dos sons produzidos por animais, sons
naturais e feitos pelo homem, que resultaram em onomatopéias que por fim culminaram em
palavras. Para que estas onomatopéias se transformassem em palavras, o homem teve que
criar significantes para os sons que capturava e assim movimentando o segundo tipo de
conhecimento, a aprendizagem das tradições através dos sons e do badalar do sino, bem como
uma sobrevivência no ambiente urbano. Desta forma, construímos um corpo de escuta - essa
capturar a cena que está ocorrendo, criam-se outros modos de escuta em decorrência da
relação que se estabelece com o outro. Podemos perceber que a escuta, a partir da filosofia da
relação do sujeito com a cena, seus atores, o cenário, os músicos e a plateia; ou seja, com
propostos por Barthes (1990), da paisagem sonora (SCHAFER, 2001), está emitindo signos
constantemente para serem reconhecidos pelos nossos sentidos, para então construir uma
que aquele que ensina e aquele que é ensinado, aquele que fala e aquele que escuta e recebe”
(p. 1184). Para Deleuze (1998), a aprendizagem, que é entendida como processo (um
tornar-se), e é construída como uma forma dialética entre aquele que ensina e aquele que
aprende; um processo de escuta que se dá no encontro com o mestre, e não apenas com o
Portanto, atribuo a aprendizagem à escuta, essa escuta, que, proposta Barthes (1990),
propõe uma aproximação com uma constituição de sujeito, uma construção de subjetividade.
Não apenas a audição, propriamente, mas a escuta que se faz uma ação de reflexão e tradução
tenta captar pelo ouvido são signos; aqui, sem dúvida, é a vez do homem; escuto da maneira
que leio, isto é, mediante a certos códigos” (p. 217). Apreendemos o mundo pelos nossos
sentidos básicos, como a audição, visão, tato, olfato, e paladar, isto é, compreendemos o
mundo através da captura e codificação das paisagens sonoras que nos circundam
(SCHAFER, 2001). A paisagem sonora é todo o campo de estudo do som e da escuta de tudo
que está passível de ser sentido, saber diferenciar o som de algo perigoso para algo pacífico
para poder se defender, bem como saber os sons das letras/palavras para poder se comunicar.
A poluição sonora ocorre quando o homem não ouve cuidadosamente. Ruídos são
sons que aprendemos a ignorar (SCHAFER, 2001, p.18).
No parágrafo acima Schafer comenta sobre uma surdez seletiva que desenvolvemos
em função da poluição sonora - esta que é o acúmulo e superpopulação sonora - como forma
corpo, isto é, uma aprendizagem para ignorar a turbulência para poder construir uma escuta
em meio ao ruído. Podemos observar este fenômeno quando apenas percebemos a presença
[...] A definição de música tem sofrido uma mudança radical nos últimos anos.
Numa das mais recentes, John Cage declarou: “A música é sons, sons à nossa volta,
quer estejamos dentro ou fora das salas de concerto - vejam Thoreau”. Cage está
aludindo a Walden, de Thoreau, onde o autor descobre uma inesgotável fonte de
entretenimento nos sons e visões da natureza (SCHAFER, 2001, p. 19).
Schafer defende que a música está onde houver som, a natureza produz música com o
som das águas, do vento, dos animais e fenômenos naturais. Contudo, a superpopulação de
sons, isto é, a poluição sonora, produziu uma redução da captura e da presença de sons
naturais. Entretanto, a cidade, que cheia de tecnologia e barulhos contínuos, produz música.
Assim como a música, que podemos nomear artística e/ou comercial, vem sofrendo
inicialmente, um meio de defesa à esta superpopulação de sons. Pois assim como os ouvidos
e a escuta, não se fecham aos estímulos, a Música (arte e campo de estudo e produção) não se
fecha ao ambiente.
Esta música ambiental - produzida pelo ambiente, não para o ambiente - em sua forma
rural ou arcaica, ou mesmo urbana e/ou contemporânea, da forma a qual Schafer introduz,
pode ser relacionada com o conceito de Diferença (DELEUZE; GUATARRI, 1995); isto é, o
pensar pela criação, repetir o diferente/outro. Pois, mesmo que a música ambiental seja um
Não podemos cair num reducionismo e pensar que qualquer coisa possa ser música
por si só, porém, pode ser um gênero dentro do campo da Música. Mas para que seja música,
como podemos identificar no trecho acima, é preciso construir um corpo de escuta para estes
Definir a música meramente como sons teria sido impensável alguns anos atrás,
embora hoje as definições mais restritas sejam as que se tem revelado mais
inaceitáveis. Pouco a pouco, no decorrer do século XX, todas as definições
tradicionais da música foram caindo por terra em razão da abundante atividade dos
próprios músicos (SCHAFER, 2001, p. 20).
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Harmonia é o conjunto de sons e ordem simultânea (MED, 1996, p. 11-12).
Durante muito tempo a música esteve atrelada à religião. A partir do irrompimento do
a censura - ela começou a estruturar a produção de arte, pois antes do papa Gregório I, o
pintura, na escrita. Ele introduziu - mesmo que cristalinamente - estas formas de composição
e leitura para unificar estes processos. Assim, havendo uma sistemática universal, poderia
haver uma aprendizagem mais eficaz. Isto é, foram criados este modos de se relacionar com a
arte para poder disseminá-la, contudo, essa (a arte) somente poderia ser em honraria a Deus, o
A música esteve presa dentro da igreja e do conservatório durante muito tempo. Após
sua fuga das grossas paredes de pedra, encontrou-se rodeada de glória e pompas nas salas de
concerto e grandes teatros. Schafer comenta que a música começou a sair da sala de concerto
pelo furor e ação dos músicos dentro do campo da Música. Em adição, podemos observar que
a partir da ação dos músicos criou-se uma nova escuta para a música, criou-se novas
aprendizagens com a música para gerar esta escuta e com isso emerge a urgência de um
campo mais flexível para a composição e execução musical. Usando dos conceitos mais
rígidos, como a harmonia, progressão, melodia, contraponto como luzes para romper com
estes conceitos, ou para compor com este conceitos, porém sem usá-los dogmaticamente.
[...] No mito dionisíaco, a música é concebida como um som interno, que irrompe
do peito do homem; no mito apolíneo, ela é compreendida como som externo,
enviado por deus para nos lembrar a harmonia do universo. Na visão apolínea, a
música é exata, serena, matemática, associada às visões transcendentais de utopia e
da harmonia das esferas. [...] Na visão dionisíaca, a música é irracional e subjetiva.
Ela emprega recursos expressivos: flutuações temporais, obscurecimento da
dinâmica, coloração tonal (SCHAFER, 2001, p. 21).
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Sagrada não apenas por ser religiosa, ou em devoção ao divino. Mas por ser intocável e inalterável.
Estes campos gregos de composição musical usavam das parábolas da sua cultura
para explicar o como fazer música. Para cada deus e deusa havia um estilo de composição;
porém, Dionísio e Apolo foram usados para simplificar o modo de se relacionar com a
Este exemplo do mundo antigo para a composição ainda é observável, com a música
erudita, que é mais apolínea, e o rap, rock n’roll e freestyles são mais dionisíacos. Porém,
gradiente que pode ser ora métrico e ora irracional durante a mesma obra, o que seria
Hasse (1972), apud Schafer (2001), infere que a arte presente dentro de uma
sociedade. A arte, desde o início dos tempos, é uma forma de relação com o sujeito e sua
cultura, mas podemos observar que tanto o sujeito quanto a cultura sofrem efeitos dos modos
de Hasse, que a arte é o espelho da cultura, e seu reflexo é o modo de relação do sujeito com
Antes da era escrita, na época dos profetas e épicos, o sentido da audição era mais
vital que o da visão. A palavra de deus, a história das tribos e todas as outras
informações importantes eram ouvidas, e não vistas (SCHAFER, 2001, p. 28).
Neste parágrafo acima Schafer comenta sobre as sociedades orais, onde o
O que ‘saltou aos olhos’, ou melhor, ‘gritou aos ouvidos’ foi este ponto de encontro
entre o tato e a audição. Pois o ouvir é um modo de tocar à distância, é construir uma escuta
com uma ampla gama de sentidos, o que a partir de Deleuze (1995) e Barthes (1990)
podemos nomear como uma escuta sensível - sensível; pois dá-se no entre, na aliança, isto é,
rizomática, pois segundo Deleuze e Guatarri (1995) “[u]m rizoma não começa nem conclui,
ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação,
Escutar a paisagem é, também, vivê-la. O som da água, assim como o vento, são sons
fundamentais de nosso planeta, pois eles existem muito antes da existência de qualquer vida.
Mas não se pode afirmar que havia sons antes da vida, pois não havia ouvidos para ouvir,
partir da literatura, identificou que o som da água não é o mesmo pelo mundo, e a escuta que
sujeito. Schafer conseguiu apontar com a literatura mundial que nossa escuta se compõe a
daquilo que fora escutado. Muitos épicos e poemas surgem do barulho da água, os acordes
para produzir inspiração nos escritores, compositores, pintores, arquitetos para criar. Como
por exemplo, a Odisseia de Homero (séc. VIII a.C), La Mer de Charles Trenet (1946), o Farol
A água nunca morre, o homem sábio rejubila-se com ela. Nem mesmo duas gotas de
chuva soam do mesmo modo, como o ouvido atento poderá comprovar (SCHAFER,
2001, p. 39).
No trecho acima Schafer usa a água como uma metáfora para a escuta, refere-se que o
som natural é sempre único, mesmo dentro de uma população de sons. Schafer refere-se com
“a água nunca morre, o homem sábio rejubila-se com ela” sobre a sabedoria de se constituir e
táteis, olfativos, palatares, de equilíbrio), tendo em vista que os emissores destes estímulos
Esta metamorfose da percepção pode ser entendida como “o que se pôde ser
percebido” durante certo período histórico? Bem como, como pôde ser entendido o sujeito
Cada paisagem sonora mundial tem seu próprio som peculiar, e com frequência
esses sons são tão originais que constituem marcos sonoros (SCHAFER, 2001, p.
48).
Nesta citação o autor se refere aos sons que a paisagem produz, e o como o homem
aprendeu a construir um corpo de escuta que seja capaz de reconhecer o local a partir da
escuta. Como, por exemplo, ouvir o som do vento oscilante como o das ondas pulsantes e
com isso conseguir sentir o calor da areia nos pés. Ou mesmo ouvir o canto do Jaburu
(Tuiuiú) e saber que este som foi retirado do Pantanal Matogrossense. O Jaburu para o
pantanal, bem como as ondas para a praia são marcas sonoras, isto é, um som característico
de um determinado local.
É difícil para um ser humano imaginar um som apocalíptico, do mesmo modo como
é difícil imaginar um silêncio definitivo. Ambas as experiências existem
teoricamente para o ser vivo, uma vez que elas impõem limites à própria vida
(SCHAFER, 2001, p. 51).
O som sempre esteve ao lado da imaginação e o ser humano sempre cogitou a ideia de
apocalipse e inexistência de vida, o que poderia causar tremendo barulho, ou silêncio. Ambas
as ideias são impossíveis de seram presenciadas pelo humano, pois para haver silêncio
absoluto não pode haver matéria, nem vibração, o que pelo que temos ciência não há em
nosso universo observável. Uma forma apocalíptica até pode existir, mas dificilmente
estaremos aqui para ouvi-la, dada a situação que criamos a nós mesmo para nossa existência
neste planeta.
[...] O Homem sempre tentou destruir seus inimigos com ruídos terríveis.
Encontramos tentativas deliberadas para reproduzir o som apocalíptico na história
das guerras, desde o entrechocar-se dos escudos e o rufar dos tambores dos tempos
primevos até a bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki (SCHAFER, 2001, p. 51).
A influência do som fez o humano usá-lo como arma. Se muitos têm medo do trovão
do raio, da turbulência do tornado, do crepitar do fogo, dos urros das ondas gigantes, como
não fazer deste um artifício, uma forma de guerrear? Nas idades antiga e clássica o bater de
A linguagem e o canto dos pássaros têm sido tema de muitos estudos, embora não se
saiba ao certo se, de fato, os pássaros “cantam” ou “conversam”, no sentido
costumeiro desses termos. Seja como for, nenhum som da natureza tem estado
ligado tão afetivamente à imaginação humana quanto a vocalização dos pássaros
(SCHAFER, 2001, p. 53).
que muitas vezes complexas e harmoniosas, sem ter construído uma ciência como a Música.
Como pode um ser tão pequeno produzir, e com um telencéfalo subdesenvolvido, música?
O homem, que é capaz de produzir qualquer som a partir do uso de tecnologia, muitas
vezes usa do sons da natureza para se comunicar. Podemos inferir por razões lógicas de
evolução de nossa espécie que os sons dos animais estavam presentes no ambiente antes da
empatia e simbolização daquilo que fora capturado, nos aproximamos dos animais e de sua
‘linguagem’.
paisagem sonora) em seus territórios. Nem todas as aves migram, e tampouco migram para
muito longe, como o pombo que percorre grandes distâncias para procurar abrigo e proteção.
Assim os pássaros são denominadores influentes da população sonora do território. Desta
forma, constituindo importantes marcos sonoros do local. Assim, podemos construir uma
Para começar devemos atentar ao fato de que muitos sinais comunicados entre
animais - os de caçada, alerta, medo, raiva ou acasalamento - não raro correspondem
estreitamente, em duração, intensidade e inflexão, a muitas exclamações humanas.
[...] Isso somado ao fato de o homem muitas vezes compartilhar os mesmos
territórios geográficos com os animais, remete ao seu aparecimento no folclore e em
rituais (SCHAFER, 2001, p. 68).
em expressões de linguagem. Possibilitou também que o barulho dos animais criasse formas
de interrelação entre os humanos a partir das significações, isto é , dos corpos de escuta, que
o homem a partir do convívio com os animais possa fazer. Como podemos observar na
citação seguinte:
situação. Os animais nos deram muitos verbos e adjetivos graças aos sons que faziam e de
[...] O homem tem muitas palavras para descrever os sons dos animais que estão
mais próximos dele. São verbos, palavras de ação, e a maior parte ainda é
onomatopaica (SCHAFER, 2001, p. 69).
Muito mais comum nas línguas saxônicas, germânicas e anglicanas, como o inglês e
alemão, há o uso das onomatopéias como verbos. Mas também observamos na língua
portuguesa. Ao que podemos nomear, o humano ouvia os sons dos animais, dava sentido a
eles e criava uma onomatopéia. Então a partir desta significação, e do uso desta onomatopéia,
Examinando o perfil de uma cidade medieval européia, logo notamos que o castelo,
a muralha da cidade e a cúspide da igreja dominavam o cenário. Na cidade moderna,
o prédio de apartamentos de muitos andares, a torre do banco, e a chaminé da
fábrica é que são as estruturas mais altas. Isso nos diz muito coisa sobre as
instituições sociais proeminentes nas duas sociedades (SCHAFER, 2001, p. 85).
A música, como já citado, teve por muito tempo caráter divino, ou divinatório, o sino
da igreja, bem como a cornucópia do castelo tinham funções bem definidas. O sino indicava
O sino desde sua invenção sempre teve um caráter mágico e/ou religioso. Ele tem a
função de levar ao universo, a deus, os pedidos dos humanos. Segundo Barthes (1980) o sino,
más forças. O sino assumiu a função de ensinar pelo som, ao longo de sua história.
Foi durante o século XIX que o sino se uniu a uma invenção técnica de grande
significado para a civilização européia: o relógio mecânico. Juntos ele se tornaram
os sinais mais inevitáveis da paisagem sonora porque, como o sino da igreja e
mesmo com a mais implacável pontualidade, o relógio mede a passagem de tempo
de forma audível (SCHAFER, 2001, p. 88).
Desta vez, com a união do relógio com o sino, o homem moderno poderia perceber as
horas através dos ouvidos. Mas não apenas: o relógio ensinou o ritmo da modernidade com o
badalar. O sino do relógio, além de estético e didático às horas, teve a função social de
O relógio governou, e governa, o mundo a punhos de ferro. Ele não tolera atrasos, não
suporta outro ritmo. O relógio, para o mundo contemporâneo, assumiu a posição divina, pois
A associação entre relógios e sinos de igreja não foi absolutamente fortuita, pois o
cristianismo desenvolveu a ideia retilínea de tempo como progresso, ainda que
progresso espiritual, com um ponto inicial (a criação), um indicador (Cristo) e uma
profética conclusão (o Apocalipse) (SCHAFER, 2001, p. 89).
drasticamente, como uma guerra - que se tornou a mais mortal dentre elas, pois possibilitou
para a paisagem. Mas este não é o maior prejuízo; o relógio, por sua vez, foi a velocidade de
produção e a produção serial em massa, que vem criando muito sofrimento no trabalhador,
pois ele não sabe como fazer o produto, mas apenas a peça, e o ritmo é acelerado, o que faz
com que o trabalhador não consiga produzir plenamente, gerando um sentimento de estar em
déficit ou débito com seu empregador, como podemos perceber no processo fabril intitulado
sensíveis da paisagem sonora. Pois além de superpopular de sons o meio ambiente, tornou o
multidão sonora, acabamos por anestesiar nossos sentidos sensíveis - como a escuta, o olhar,
a sensação por exemplo - e acomodar nossos sentidos orgânicos - como a visão, a audição, o
tato. Esta anestesia da percepção pode ser entendida como dessensibilização; isto é,
Deleuze (1995) afirma que é em meio ao caos que conseguimos criar; isto é pensar -
aprender. Porém esta anestesia dos sentidos dá-se através da acomodação; isto é, estar fadado
a perceber o mesmo, e não a diferença - como podemos observar na obra de Deleuze (1995) e
Barthes (1990). Schafer provoca-nos a ouvir pela diferença (DELEUZE, 1995); ou seja,
escutar.
Este fenômeno de analgesia perceptiva pode ser percebido quando entendemos que o
som da natureza, como o canto dos pássaros, ou grilos, é barulho enquanto as buzinas e o
formas, como o alto-falante que se relaciona com o outro sobrepujando sua vontade. A outra
forma é o Ruído Sagrado, isto é, poder produzir ruídos, barulhos, sons e música sem sofrer
com a censura, ou pressão externa. De certa forma seria ocupar uma posição privilegiada na
relação de poder. Schafer classifica como imperialista aquele que exerce/produz o Ruído
Sagrado, pois:
O Ruído Sagrado não é produzido apenas pelo sacerdote. É produzido também pela
fábrica, pelos carro-propagandas, mas não plenamente, pois ainda há certa censura; como a
fala ou de um evento natural, mas ao passo que “matou” a imaginação, ele possibilitou a
O prefixo grego schizo significa cortar, separar. E phone é a palavra grega para voz.
Esquizofonia refere-se ao rompimento entre um som original e sua transmissão ou
reprodução eletroacústica. [...] No princípio todos os sons eram originais. Eles só
ocorriam em determinado tempo e lugar. Os sons estavam indissociavelmente
ligados aos mecanismos que os reproduziam.[...] Os sons têm semelhanças entre si,
a exemplo dos fonemas que se repetem numa palavra, mas não são idênticos. Testes
mostraram que é fisicamente impossível para o ser mais racional e calculista da
natureza reproduzir duas vezes exatamente da mesma maneira um só fonema de seu
próprio nome (SCHAFER, 2001, p.133)
10
Sigla para equipamento de proteção individual.
Esta esquizofonia possibilitou que a aprendizagem através da escuta fosse ainda mais
possível, contudo, como Schafer (2001) comenta, o microfone não tem a mesma capacidade
da máquina fotográfica, pois apenas consegue operar num plano de close. O gravador retirou
uma “deficiência” natural, a diferença na reprodução sonora, o que acaba castrando ainda
Atualmente, devido à “revolução tecnológica” que vivemos, o som pode ser estocado
virtualmente, sem precisar de algum objeto físico, como discos e fitas, que lhe imortalizará.
Podemos ouvir música árabe sem nunca ter ido à Arábia, ou mesmo ter contato com qualquer
coisa parecida usando o Spotify11Ⓒ, porém, não podemos ver quem tocou, ou sentir a
vibração que se instaurou na paisagem quando esta música foi executada, pois ao passo que o
gravador imortalizou o som, ele separou o som do produtor, assim como as revoluções de
sensíveis, isto é, a música ainda toca corações, provoca sentimentos, nos faz ficar inquietos a
tinham ciência que o som causava certa analgesia, ou mesmo, tinha propriedades para além
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Aplicativo para smartphone e computadores que reproduz música, utilizando a Nuvem como fonte.
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Povo nativo da Austrália.
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Instrumento musical, de som muito característico, e mágico utilizado em momentos festivos, e religiosos para
dar graças à colheita, curar os doentes. É um instrumento tubular de sopro, feito de troncos de árvore, onde o
núcleo é comido por cupins.
da audição. Mas moozak14 inseriu no mercado uma forma de áudio-analgesia, como traz
criamos sentimentos para expressar músicas. Estas movimentações dizem respeito aos
processos da escuta barthesiana, porque retratam o processo desde a captura do som até a
composição - o diálogo enquanto música - como uma forma de produção social. Quando se
faz música, ou a reproduz, é intentada para um público, é atravessada por certas relações de
mutante à medida em que o tempo passa, bem como a próprio entendimento de Música.
O homem precisou inventar a maior das invenções para poder criar a humanidade;
esta por sua vez foi a linguagem, pois ela possibilitou que tudo fosse criado. Não se sabe
muito bem como, nem onde ao certo, ela foi inventada, mas a única coisa que podemos aferir
é que ela surgiu da necessidade. Não há linguagem sem o desenvolvimento de uma semiótica,
Então, a linguagem, que agora repleta de sinais para além dos signos da escuta, forma
uma língua; esta pertence a um território, que pode ser geográfico, social, ou do pensamento.
Enquanto a linguagem pode ser compreendida para além do território, a língua define o
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Autor responsável pelo movimento esquizofonia, e que introduziu no mercado musical a ‘música de
elevador’.
espaço territorial e o afirma. Pois a língua é uma materialização, isto é, uma notação, pois
substitui o signo pelo sinal. Schafer afirma que a língua se construiu a partir de muito contato
com o som, e com seu emissor; pois depois do contato com o ruído, transforma-o em som, e
este em onomatopéia, que se tornará palavra, para que, enfim, torne-se representação gráfica
sermos atravessados pela escuta daquele que classificou. Compor uma música é classificar
unir esses quatro movimentos citados acima. Estas características físicas são os dados
empíricos cristalinos/cristalizados que são fundamentais para poder ver e ouvir a informação;
estética fala do terceiro movimento, pois diz respeito aos atravessamentos e à reprodução
deste conhecimento. Porque só reproduzimos aquilo que nos afeta de certa forma.
Para podermos perceber e reconhecer o que é evidente, emergente, ou “imperceptível”
na paisagem, dependendo do lugar que se ocupa, e o que se escuta, na paisagem, como cita
através da escuta. O sinal sonoro do predador, o urso, ou o bandido, por exemplo, teve que
ser reconhecido como perigo para que se tornasse significativo ao homem para culminar em
palavra, isto é, teve que se fundamentar como figura ao cenário. Outros sons que eram fundo,
isto é, menos perceptíveis em função do grau de relevância que teve dentro da relação de
escuta que se estabelece, tiveram que se tornar figura para poder existir à percepção humana.
Este seria o grau de relevância aos nossos sentidos, ou seja, que relação se
estabelece/constrói com esta percepção. O que emerge do fundo como figura é aquilo que por
schaferiano, de uma demanda social, ou interna, pois acomodamos nossa percepção até que
ela se faça necessária, ou seja percebida pela escuta/olhar do turista. Schafer reitera dizendo:
[...] indiquei o modo pelo qual diferentes linguagens têm expressões onomatopaicas
especiais para animais, pássaros e insetos familiares. Ao lado das limitações
fonéticas da língua, as diferenças óbvias dessas palavras parecem indicar algo a
respeito da maneira pela qual os mesmos sons são ouvidos de modos tão diversos
em diferentes culturas - ou será que os animais e insetos falam dialetos?
(SCHAFER, 2001, p. 216).
Esta escuta que construímos pertence aos territórios que estamos inseridos, pois
quando uma escuta forasteira, ou o olhar de um turista, se faz, outras percepções se fazem -
como a escuta psicológica, que forasteira à situação, pode perceber com certa clareza por não
CONCLUSÃO
som e seu produtor, com a vida e seus habitantes. E a partir de muito contato constróem uma
significação, uma semiose, uma linguagem, uma cultura. Na filosofia destes autores -
Barthes, Deleuze e Schafer - a experiência e a criação são de ordem maior, dizem do ato de
não é apenas atravessado pela sexualidade, estímulos do ambiente e pelos instintos, mas
também atravessado pelos sentidos e pelo sensível nos territórios que habita, desabita, e
modifica, constantemente.
conceitos de aprendizagem e escuta, quando Schafer disserta sobre os modos que os sons da
processo de criação. Outra aproximação possível ocorre quando o autor fala do processo de
emissor, assim como, quando refere-se aos aprendizados socioculturais e produção subjetiva
distanciamento no que refere aos dados cartesianos acerca das propriedades do som, mas
assume uma posição mais próxima quando traz estes dados de forma quanti-qualitativa,
banaliza e os naturaliza.
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