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As Vozes pelo Caminho do Mover: Som, cinestesia e o si mesmo como pro-


cesso na somática do sistema Laban/Bartenieff

Daniel Magalhães de Andrade Lima


Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, Recife/PB, Brasil
E-mail: danmalima@gmail.com / daniel.andradelima@ufpe.br

Resumo Abstract

O artigo se dedica a mapear, cruzar e agrupar sa- The article is dedicated to map, cross and group know-
beres que abordam voz por uma perspectiva dos ledges that addresses voice from a perspective of the
estudos do movimento desenvolvidos pelo Sistema Laban/Bartenieff System of movement studies. The
Laban/Bartenieff. A pesquisa gira em torno, portanto, research, therefore, revolves around the construc-
da construção de fundamentos para o trabalho vo- tion of foundations for a vocal work through parame-
cal por parâmetros do mover. Durante tal processo, ters of movement. During this process, discussions
discussões ligadas aos desdobramentos propostos related to posits of authors such as Regina Miran-
por autoras como Regina Miranda, Barbara Adrian da, Barbara Adrian and Bonnie Bainbridge Cohen
e Bonnie Bainbridge Cohen são desenvolvidas. Fri- are developed. Thus, plural ways of understanding
sa-se, assim, maneiras plurais de entender a voz voice as movement, as spatial disturbance and as
como movimento, como perturbação espacial e an agent of movement are emphasized. Finally, it is
como agente do mover. Por fim, se pontua a impor- highlighted the importance of vocal work in widening
tância de um trabalho vocal na abertura de possibi- possibilities of being in the world, recognizing the
lidades de estar no mundo, reconhecendo a dinâ- dynamics between listening and vocal production
mica entre escuta e produção vocal como uma que as one that underlines our self-updating processes.
enfatiza os nossos processos de autoatualização.

Palavras-chave Keywords
Educação Somática. Voz. Somatic Education. Voice.
Sistema Laban/Bartenieff. Escuta. Laban/Bartenieff System. Hearing.
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Introdução: o que exploramos os escritos e práticas sobre movimento amplamente.


quando lidamos com voz Rudolf Laban desenvolveu um amplo trabalho teóri-
co e prático que se preocupava com o teatro e com
Para grande parte de nós, falar, vocalizar, ouvir a sonorização e Irmgard Bartenieff (BARTENIEFF;
e se relacionar com pessoas oralmente é um aspecto LEWIS, 2002) propôs exercícios que se associam à
central de nossas vidas. Ainda que existam diversos vocalização e exemplificou movimento a partir de ca-
procedimentos comunicacionais – desde dispositi- sos em que a voz aparece. Outras autoras – explora-
vos técnicos às comunicações não verbais –, a voz, das expansivamente neste trabalho – também abor-
pela escuta e pela enunciação, é importante para dam qualidades e transformações vocais em seus
como pessoas com audição se compreendem diante textos. Em salas de aula, nas experimentações e in-
do mundo. Nesse sentido, as vozes fazem parte das corporações oriundas do sistema, falas, sons vocais,
maneiras pelas quais reconhecemos a nós mesmos ritmos respiratórios e melodias cantadas também
e àqueles com quem nos encontramos em nossas integram grande parte das práticas conduzidas por
existências, nos lembrando que cada pessoa desen- Analistas do Movimento pelo Sistema Laban/Barte-
volve algo único a partir de padrões próprios de se nieff. Assim, o saber desenvolvido por estes estudos
colocar nos espaços e para os outros. É também, e práticas já é povoado por uma preocupação com
muitas vezes, pelas memórias de vozes que ouvimos como a voz e o movimento pelo espaço se relacionam.
que nós nos constituímos, seja pela sabedoria enun- Diante desse panorama e da dificuldade de en-
ciada por nossos mestres ou pelas vozes proibitivas contrar trabalhos que abordem de maneira delimitada
de algumas autoridades (ROSE, 2001). O “como” e o a prática integrativa de voz e movimento, este artigo
“o quê” de cada enunciação vocal, assim, nos importa. se dedica, então, a mapear, elaborar e elencar postu-
Enquanto muitos dos estudos sobre voz a abor- lações conceituais que circulam pelo Sistema Laban/
dam a partir de explorações físicas, frequentemen- Bartenieff, desenvolvendo-as enquanto bases para
te a voz tem sido trabalhada como algo à parte do um entendimento sobre a voz e o mover. Se muitas
corpo, o que é enfatizado pelo seu caráter etéreo e dessas postulações estão espalhadas entre práticas,
pela capacidade de viajar para longe daqueles que manuais e convites para exercícios, a proposta aqui
as produzem (seja por aparelhos digitais e acústicos, é cruzá-las para iluminar como tais desenvolvimen-
seja pelo seu amplo alcance espacial). Enquanto tos podem fundamentar uma abordagem vocal por
pensar o caráter autônomo da voz é bastante im- tais saberes. Portanto, este trabalho é fruto de uma
portante – é central, por exemplo, para compreen- revisão teórica propositiva, enfatizando o lugar do
der como o campo da música gravada, do cinema treino vocal nos escritos influenciados pela teoria la-
e da televisão atuam –, é importante que a voz seja baniana. Tal revisão é feita tendo em vista um enten-
tratada também como algo que não está à parte do dimento somático sobre formação de sujeito, investi-
movimento corporal. Ela, afinal, se relaciona intima- gando três eixos centrais: (a) os modos pelos quais a
mente com os moveres dos quais ela parte. Mesmo vocalização se articula com os movimentos internos,
processada, transformada e reproduzida, uma voz (b) a formação do espaço individual em relação à voz
ainda mantém alguma relação com o corpo que a e (c) as relações entre cinestesia e audição. Com
originou e, em último caso, informa as pessoas que este percurso percorrido, se espera ser possível
a escutam sobre os vestígios audíveis deste outro contribuir para o entendimento do Sistema Laban/
corpo (e de como ele é imaginado pelo ouvinte). Bartenieff como um conjunto de conhecimentos ca-
No Sistema Laban/Bartenieff, interessado, den- paz de propor práticas e teorias afinadas com pers-
tre outros objetivos, em expandir as possiblidades pectivas contemporâneas sobre corpo e subjetivida-
expressivas de cada pessoa, sons e vozes povoam de, sublinhando a importância de estar vindo-a-ser.

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Revista Cena, Porto Alegre, nº 32 p. 83-93 set./dez. 2020
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
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Voz como movimento: as capacidades o caminho da vocalização. Aqui, pensar variações


sensório-motoras na produção vocal de qualidades de movimento envolve se voltar
para a voz – gerada a partir do suporte da respi-
Ao apresentar a respiração como movimento ração – por meio de todo seu potencial expressivo.
fundamental para a vocalização, Barbara Adrian Laban (1978), ao propor os modos pelos quais
(2008), em seu livro dedicado à formação vocal e seu sistema de entendimento de movimento contri-
corporal do ator a partir do Sistema Laban/Barte- buía para o teatro, por exemplo, pontua que a voz é
nieff, sugere uma anedota parental: a respiração é “o movimento das cordas vocais” (p. 21) e lembra que
apresentada metaforicamente como a mãe do mo- os movimentos que geram a voz podem ser “ouvidos,
vimento, da voz e da fala. Não é à toa, assim, que mas não vistos” (p. 26). Regina Miranda (2008), em
a autora proponha que o ponto zero para o trabalho concordância, ao exemplificar a maneira pela qual
do ator seja a exploração do suporte respiratório: a noção de fraseado se vincula ao tema labaniano
é ele que permite que o movimento se desenvol- da ação-recuperação, emprega especificamente um
va e, a partir dele, se produza a voz, por meio da exemplo vocal, acrescentando a ideia de que a fala
qual se encaminha a fala. Nesse esquema, a fala pode ser compreendida “como movimento e não
não é um destino essencial da voz, mas está inti- como algo associado ao movimento” (p. 44). Em sua
mamente vinculada aos seus processos moventes. discussão, a autora nos lembra que cada pessoa tem
Na apresentação de Adrian, assim, voltada maneiras próprias de falar e que essas maneiras po-
principalmente para o trabalho de produção gestual dem ser entendidas por parâmetros do movimento:
e vocal, a voz se configura como o som que – proje-
tado por uma série de movimentos internos ao corpo Algumas usam tempos rápidos, outras usam
maior número de contrastes sonoros, há
– se catapulta para o espaço, construindo relações quem fale entremeando muitas pausas en-
com os ambientes e outros seres. Neste esquema, quanto outras falam num jorro quase inin-
ela utiliza os termos voz e som “de maneira intercam- terrupto. Conhecemos também a variedade
de timbres e dos diversos lugares do corpo
biável para significar qualquer som que atravesse a de onde pode provir a fala. E tudo isso dife-
boca ou a garganta” (ADRIAN, 2017, n.p., tradução re de uma pessoa para outra, tendendo a
nossa). Em termos de movimento, o processo de permanecer mais ou menos de forma cons-
tante em cada uma, formando o seu estilo
produção vocal é explicado por ela sucintamente: de movimento. (MIRANDA, 2008, p. 44).

O som se inicia quando a pressão do ar


exalado induz oscilação das pregas vo- Pode-se notar, assim, que a voz – em fala, canto
cais, o que leva o ar a vibrar enquanto e demais modos expressivos – é não só fruto de uma
passa por tais pregas. As vibrações do ar série de movimentos (intercostais, faríngeos, orais
exalado acertam, então, as superfícies
duras da boca e da garganta (a cavidade e respiratórios de maneira ampla), mas também se
faríngea), criando ressonância. A resso- faz por ondas sonoras pelo espaço interno e externo
nância vibra o ar para fora do corpo, es- e, portanto, pode ser tomada enquanto movimento.
palhando então o som para o ambiente.
(ADRIAN, 2008, n.p., tradução nossa). Partindo do corpo, é a partir de nosso maquiná-
rio sensório-motor que nos organizamos para a pro-
É a respiração, afinal, complexamente formada dução vocal. Como pontua habilmente Adrian, muitas
pela inspiração e pela expiração, que possibilita a das capacidades expressivas surgem de ações que
própria emissão de som. Tal compreensão da pro- partem de pulsões – no original chamadas de impul-
dução vocal enquanto uma série de movimentos, ses – que consistem na “resposta instantânea do cor-
evidentemente, possibilita que diversos parâmetros po inteiro a uma necessidade” (ADRIAN, 2008, n.p.,
de entendimento do mover sejam aplicados a todo tradução nossa). Isto é, os modos pelos quais mo-

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vimentos são produzidos também em termos vocais costais, do diafragma, do abdômen, mas também da
se articulam às necessidades que surgem em con- faringe, laringe, boca e nariz. Nesse processo, vibra
tato com o ambiente e, assim, a expressão vocal (no ar nas pregas vocais e ressoa, com auxílio da farin-
canto, na fala e em outros diversos sons) se dá pela ge e da cavidade oral, em diversas zonas do corpo:
interação. A voz, como movimento, então, se produz ao falarmos, cantarmos ou vocalizarmos livremente,
a partir de motivações que articulam o corpo – como estamos convidando para a ação variadas partes
um sistema complexo – com os espaços, ambientes corporais. A produção tonal se articula, dentre outras
e outros seres. Nesse sentido, compreender a voz coisas, com a variação dos lugares de ressonância
tanto enquanto movimento quanto como produto que podem ser explorados no corpo. Adrian (2008)
de uma série de movimentos envolve refletir so- sugere que podemos pensar em variadas possibili-
bre o potencial que a produção vocal possui de criar dades de lugares por onde o som pode vibrar para
conexões, principalmente entre as partes do corpo. se formar a voz, pontuando a importância especial
Por conta desse aspecto, Adrian recorre aos da boca, do nariz e seios da face, do topo da cabeça
Bartenieff Fundamentals (BARTENIEFF; LEWIS, e da caixa torácica. Então, ativando musculaturas e
2002) como maneira de integrar as partes do corpo literalmente vibrando pelas cavidades e partes duras
e as diversas maneiras de conectá-las em função do de nosso corpo, a voz pode ajudar a construir cone-
movimento, amplamente, e da produção vocal, mais xões entre partes inferiores e superiores, pode nos
especificamente. Tais fundamentos aparecem em ajudar a mapear a espinha dorsal, a perceber as ten-
seu texto como um sistema que permite uma reedu- sões espaciais que percorrem o tórax e a distinguir
cação do corpo guiada de dentro para fora. A voz, amplamente os lugares em que o som ressoa, cola-
assim, sendo movimento e simultaneamente produto borando no mapeamento sensível da própria anato-
de uma série de movimentos internos, aparece como mia. O trabalho de movimento pode, então, ser tam-
uma maneira de compreender a própria anatomia do bém explorado a partir da voz como uma motivação
corpo e suas qualidades expressivas, assim como que pode gerar ações (como transferências de peso,
um modo de chamar a integração total do corpo para mudanças de nível ou de suporte) que se transfor-
a ação. Ou seja, o desejo ou necessidade de produ- mam à medida que os iniciamos pelo som ou que ex-
zir som é também um motivo para o agenciamento ploramos diferentes áreas de ressonância do corpo.
de diversas organizações corporais. Assim, emitir Em seus textos, Peggy Hackney (2002) – in-
voz em diferentes qualidades – a partir das diversas teressada em pensar como o trabalho de Bartenieff
necessidades e desejos – envolve assumir varia- atua na busca de conectar o corpo integralmente –
das disposições de corpo e organizações do sistema se refere recorrentemente ao processo de “repadro-
sensório-motor. A enunciação pode ser também o nização” e de resgate e retorno dos padrões neu-
próprio motivo para a transformação corporal – e não rocelulares básicos de conectividade do movimento
só um produto de determinadas disposições físicas. como sendo uma aventura. A autora – como Barte-
Como movimento, portanto, a voz é tanto resposta nieff – destrincha especificamente como a integra-
quanto agente do corpo como arquitetura viva e dinâ- ção do corpo em suas partes e com outros corpos
mica. O corpo, portanto, não precisa ser organizado constrói relações e conexões que são capazes de
silenciosamente para então ser capaz de produzir voz transformar as vivências físicas e subjetivas que te-
de maneira eficiente: a própria motivação para enun- mos com outros e conosco. A mutabilidade, o fato de
ciar voz e escutá-la também provocam, pois, mudan- estarmos sempre em movimento, junto a um senso
ças de forma, postura e padrões de conectividade. de inteireza (wholeness), aqui, são chaves para as
A voz, afinal, para que seja formulada, ativa o construções de conexão entre parte e todo, si mesmo
suporte respiratório a partir das musculaturas inter- e outros. Mesmo um pequeno movimento que des-

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loque determinadas partes corporais demanda uma se estreitar, transformar os ambientes – se refe-
adaptação do corpo como um todo, modificando as rem, então, a uma projeção dos movimentos que
relações que se estabelecem até então. A produção a originaram no corpo físico, mas também enalte-
sonora, mobilizando diversos sistemas corporais a cem as diferentes qualidades que a voz pode assu-
partir da necessidade e do desejo de agir, parece fa- mir com certa autonomia ao passear pelo espaço.
zer o mesmo e, se trabalhada cuidadosamente, pode Esta autonomia da voz – ao se distanciar do corpo
nos convidar constantemente a nos reorganizarmos. – tem sido explorada intensamente por autores da
música, semiótica e dos estudos culturais. Dentre
Voz como projeção do corpo: eles estão, por exemplo, o francês Roland Barthes
ocupando e criando espaços (2012), a artista australiana Norie Neumark (2010)
e o comunicólogo Thiago Soares (2014), interessa-
Enquanto os movimentos internos da pro- dos, cada um a seu modo, a investigar os efeitos
dução vocal podem ter um papel fundamental da voz na escuta de outras pessoas. Tais estudos
nas diversas organizações corporais, o potencial se preocupam com como a voz produz, projeta ou
da voz de se formar fisicamente para além dos se distancia de determinadas qualidades corpo-
limites do corpo é uma característica extrema- rais, pensando como a materialidade do som vo-
mente importante para a função relacional que cal se transforma a partir de dispositivos técnicos
ela estabelece em nossas vidas. Como descre- de captura e reprodução de som, como é transfor-
ve belamente Adrian (2008), dirigindo-se ao leitor: mada em diferentes contextos técnicos e culturais.
A filósofa Adriana Cavarero (2011), em sua fe-
O som da sua voz irradia para além dos limi- nomenologia da expressão vocal, desenvolve uma
tes corporais do seu corpo. Você não pode
impulsionar seu corpo, sem consequências perspectiva que pode nos ajudar a compreender o
sérias, através da parede, dos telhados ou caráter comunicacional e relacional da voz em um
subir instantaneamente seis lances de es- nível interpessoal, oriundo do potencial das vocali-
cada. Mas a voz pode e dá tais saltos. Ela
continua a voar para o espaço, onde o cor- dades (as qualidades vocais) de se projetarem no
po não pode ir. A voz pode encolher para espaço e para os outros. Em sua perspectiva, a voz,
viajar através das passagens mais estreitas mesmo se distanciando do corpo e tendo certa auto-
ou se expandir para encher um anfiteatro
de dois mil assentos. Uma vez libertada nomia, sempre nos lembra do seu caráter corpóreo:
do corpo, a voz é desimpedida pelas arti- a enunciação vocal comunica, mesmo que sem for-
culações, ossos, ligamentos e músculos e, mação de palavras, a vitalidade única de cada ser.
portanto, tem um potencial de flexibilidade
que o corpo nunca pode alcançar. Enquanto Assim, ao enunciarmos vocalmente qualquer som,
a produção de som é uma ação muscular estamos, no mínimo, comunicando para os outros
tanto quanto alcançar um garfo, a resso- nossa presença física neste tempo e espaço, pro-
nância vocal se estende além da iniciação
muscular, usando o espaço oral (boca) e jetando nossa capacidade singular de gerar voz:
arquitetônico (sala, teatro, ao ar livre) como
caixas de ressonância. As vibrações resul- A voz é o equivalente daquilo que a pes-
tantes produzem ondas de som que irra- soa única possui de mais escondido e
diam para o ambiente, como perturbações mais verdadeiro. Não se trata, porém, de
que resultam no arremesso de uma pedra um tesouro inatingível, de uma essência
em água parada ou nos traços de fogos de inefável e, muito menos, de uma espécie
artifício de quatro de julho acenando à noi- de núcleo secreto do eu, mas sim de uma
te. (ADRIAN, 2008, n.p., tradução nossa). vitalidade profunda do ser único que goza
da sua autorrevelação por meio da emis-
são da voz. (CAVARERO, 2011, p. 19).
Todos esses feitos que a voz pode fazer para
além do corpo – como voar pelo espaço, encolher,

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Com isso, a autora, está preocupada com como Actors, compreende que a voz parte do pensamento
a voz, ainda que destinada à palavra e ainda que claro voltado para a função comunicativa. Assim, se
diversas pessoas falem os mesmos termos, está torna central a compreensão de que “um pensamen-
sempre vinculada ao reconhecimento de um cor- to articulado deve ser tratado como um gesto, que
po – que toma como carnal –, já que faz vibrar a viaja em uma trajetória específica pelo espaço para
úvula, pressiona o ar, reverbera nas cavidades da afetar o ouvinte da mesma maneira que os membros
cabeça e do tronco. O ponto central de sua escrita externos quando gesticulam para enfatizar nosso
está em compreender que cada enunciação vocal significado” (ADRIAN, 2017, n.p. tradução nossa).
– seja ela falada, cantada, gritada ou murmurada e Nesses sentidos, a voz que se projeta do cor-
mesmo que emitida por uma mesma pessoa – co- po também ajuda a constituir a exploração espacial
munica de diferentes maneiras um caráter presente e atua nos modos pelos quais nos relacionamos
e único: duas vocalizações não podem ser iguais. espacialmente, com outros, mas também conosco.
Isto é importante porque permite que percebamos As relações espaciais projetadas por cada
com mais clareza que a voz – para além do canto e pessoa em termos de movimento formam o espa-
da fala – produz propriedades únicas em termos de ço pessoal, que é chamado de cinesfera: uma área
movimento e que funciona de maneira a colocar em tridimensional volátil e movente, constituída pelo
relação diversos seres, em um esquema de alterida- espaço que ocupamos e que podemos potencial-
de. Para Cavarero (2011), nós, afinal, diferenciamos mente ocupar – nas palavras de Laban, “o espaço
vozes também pelas maneiras como percebemos ao nosso alcance”, deslocado conosco como uma
que elas são diferentes ou semelhantes aos nossos “aura” (LABAN, 2011, p. 10, tradução nossa). Aqui,
próprios sons. Ao sussurrarmos, falando com calma a cinesfera é formada, também, pelo alcance mais
e leveza, por exemplo, estamos comunicando – jun- etéreo da voz. Tal espaço individual, evidentemente,
to às palavras – um estado próprio de movimento, pode aumentar e diminuir de acordo com como es-
que expressa de alguma maneira como estamos no tabelecemos as relações de nossas partes e com os
momento da vocalização, como nos relacionamos outros corpos espacialmente. A cinesfera é também
com o ambiente e como potencialmente nos dife- influenciada, como não poderia deixar de ser, por
renciamos de outros sons que circulam pelo espaço. fatores culturais – como aponta Ciane Fernandes
Cada enunciação, assim, possui uma esfera vocá- (2006) ao citar as experiências de mudanças cines-
lica, para além de semântica, que permite que as féricas da bailarina Iami Rebouças em Salvador e na
pessoas identifiquem ou fabulem nossos estados Inglaterra, que percebeu, em suas viagens, diferen-
físicos, mas que certamente as lembra que existe ças nas maneiras como pessoas desses dois lugares
um outro ser que, pela voz, anuncia sua presença. lidavam com a extensão de seus movimentos. Pos-
Esse tipo de entendimento de voz como rela- sivelmente, essas mudanças também se materializa-
ção, colocado pela própria Adrian em suas discus- vam nas maneiras como as pessoas empregavam o
sões, é o que a faz se preocupar principalmente com alcance de suas vozes; em como constituíam seus
como a voz se produz pelo corpo e, evidentemente, espaços individuais vocalmente visando a relação.
se intensifica ao se pensar o trabalho do ator. Laban Ao se pensar voz em relação à categoria Espa-
(1978), por exemplo, se refere, pensando produção ço, então, é importante se atentar ao seu potencial
vocal, à prática da atuação como sendo um trabalho de expandir e reformular a cinesfera: mais do que
que visa a comunicação: tal comunicação só é pos- revelar o estado de quem emite a voz, as ondas so-
sível porque a voz se expande para além do corpo. noras se produzem também no espaço externo e se
Adrian (2017), em concordância, em seu capítulo es- transformam por ele. Como pontua Adrian, pois, a
crito para o livro-manual The Laban Workbook For voz passeia alargando-se, estreitando-se, dissipan-

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do-se; transformando-se. De certa maneira, assim, qualitativa do espaço para Laban. Muitas vezes, este
as vozes comunicam tanto os modos e motivações movimento torna positivas algumas contradições
de cada pessoa que emite sons quanto a situação que já existiam nos textos labanianos, evidencian-
do espaço em que se propagam, como salas, corre- do como o trabalho pelo sistema Laban/Bartenieff é
dores e espaços abertos, transformando-se também complexo. A topologia aparece para Miranda, então,
a partir dos dispositivos digitais e técnicos que utili- como modo de potencializar as abordagens qua-
zamos cotidianamente. É comum, por exemplo, que, litativas sobre a categoria Espaço, já que o traba-
ao testarmos a profundidade de um buraco profundo lho a partir da geometria euclidiana – pautado em
ou de uma sala ampla, façamos uma emissão vocal linhas, ângulos e direções precisas – enfoca uma
para ouvir o quanto de eco o espaço nos dá em re- tendência fortemente quantitativa. A topologia, com
torno. Assim, conhecemos as propriedades físicas figuras pautadas pela plasticidade (como o Toro e
do espaço em relação ao nosso corpo – fazendo da a Fita de Moebius, que se torcem em si mesmos),
voz um aspecto central para a exploração do espaço afinal, permite achatamentos, alargamentos e di-
individual. Sucintamente, ao emitirmos voz estamos versos tipos de transformações permanentes, atu-
não só ouvindo nosso corpo, mas também adqui- alizando-se por essas mudanças (MIRANDA, 2008).
rindo feedbacks sobre os ambientes em que esta- A voz, então, sendo ao mesmo tempo produ-
mos inseridos e sobre as tecnologias de captura e zida no corpo e no espaço, simultaneamente emi-
reprodução sonora com as quais nos relacionamos. tida e escutada, pode ser entendida como um fator
Nesse sentido, a voz – produzida e simultane- importante na encarnação de tais discussões. Pro-
amente escutada – é um dos modos básicos pelos duzir sons vocais, afinal, é tanto se organizar para
quais percebemos nossa presença física em cada a emissão quanto se transformar pela escuta da
espaço, de maneira que é uma parte importante das própria enunciação, de maneira cíclica, realizan-
Conexões Corpo-Espaço, como sugeridas por Mi- do movimentos que simultaneamente se dirigem
randa (2008) em sua releitura do corpo Laban-Barte- para fora e para dentro do corpo, topologicamen-
nieff. Em seu livro, Miranda está especialmente pre- te. Nesse esquema, as diferentes maneiras pelas
ocupada com como a relação entre Corpo e Espaço quais nos dispomos para ouvir e produzir sons, para
– e como trabalhada a partir de Bartenieff (BARTE- escutar a si e ao outro, muitas vezes assimetrica-
NIEFF; LEWIS, 2002) – ajuda a articular a ideia de mente, nos modulam em relação a como lidamos
interno e externo, de um dentro e fora do corpo, já com as especificidades de cada situação e espaço.
que estamos sempre nos articulando em termos es-
paciais, interna e externamente. Não por acaso ela Movendo por/com vozes:
propõe as noções de Corpo Topológico e de Cor- cinestesia, produção vocal e audição
po Sem Lugar: o primeiro se refere aos “processos
contínuos de metamorfose corporal”, o segundo Até então, a discussão aqui apresentada cami-
“enfatiza as intensidades espaciais em atuações no nha para compreender como a voz tanto se produz
corpo”; ambos partem da necessidade de pensar por uma série de movimentos internos como tam-
“um corpo cujo suporte não poderia estar localiza- bém, enquanto movimentos de ondas, se transforma
do dentro dele, mas sim em sua troca permanente pelo espaço e pelos dispositivos com os quais nos
com o fora-dentro de si” (MIRANDA, 2008, p. 33). relacionamos. Nesse sentido, enquanto emitimos
Nesse sentido, o trabalho de Miranda se dedi- sons e os ouvimos simultaneamente, estamos nos
ca a ampliar o trabalho labaniano, mostrando como organizando para a produção vocal, mas também
a investigação de outras geografias e matemáticas para a escuta, que nos informa sobre nossa fisicali-
menos mensuráveis dialogam com a complexidade dade e sobre como estamos nos relacionando com

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cada espaço, a partir de mudanças na Forma da voz. processo, o movimento e a função da fala se relacio-
Durante nossas vidas, escutamos e percebemos, po- nam por meio da interação com a audição, de tal for-
rém e evidentemente, outros seres e pessoas que ma que o inter-relacionamento entre fala e audição é
não são nós mesmos: este é um fator central na chamado por ela de linguagem e o “relacionamento
maneira como nos produzimos em termos de mo- entre movimento e audição é chamado de comuni-
vimento e, assim, influi nos modos pelos quais nos cação não-verbal” (p. 153). A audição é importante,
projetamos vocalmente. É importante que perceba- assim, pois age ativamente – junto a outras manei-
mos, portanto, mais enfaticamente como a escuta ras de sentir o mundo – na produção do movimento,
– e a percepção de maneira mais ampla – é cen- dado que “o movimento dos bebês se desenvolve
tral na maneira como movimento e voz se vinculam. em resposta ao som e ao ritmo da linguagem dirigida
Bonnie Bainbridge Cohen (2015), em sua a ele”, assim como a partir de respostas cinestésicas
discussão sobre somática pelo método Body-Min- ao “movimento e ao ritmo da forma como são manu-
d-Centering, produz discussões sobre a relação seados, às práticas culturais de sua educação, à sua
entre voz e cinestesia pela audição que são espe- imitação do movimento das pessoas ao seu redor e
cialmente importantes para compreender o papel ao seu ambiente emocional, intelectual e espiritual”
da escuta. Em tal momento de seu trabalho, ela (COHEN, 2015, p. 153). Evidentemente, cada pes-
sugere exercícios vocais que se orientam, dentre soa, de acordo com suas singularidades e capacida-
outros saberes, a partir do Sistema Laban/Bartenie- des sensíveis, desenvolve-se de diferentes manei-
ff, propondo inclusive escalas espaciais de explora- ras, enfrentando e solucionando desafios cotidianos.
ção vocal e vogal. Em seu texto Cohen está preo- O argumento de Cohen se apoia na ideia de
cupada com como uma educação somática da voz que transformações na cinestesia transformam a
pode auxiliar no desenvolvimento do movimento e produção vocal e de que o contrário também é ver-
na função da fala e da linguagem, apontando que dadeiro; as duas instâncias (cinestesia e voz) são
relacionadas pela audição, que tanto nos estimula
Nós vocalizamos aquilo que ouvimos, ba- em termos de movimentos quanto de produção vocal.
seados em padrões neuromusculares es-
tabelecidos em nossa respiração e movi- Esta relação é tão forte para Cohen que ela suge-
mento. Para a maior parte das pessoas, re, por exemplo, que iniciou seus estudos ligados
falar é uma função ou atividade automáti- especificamente à fala para que pudesse melhorar
ca e não percebemos conscientemente as
nossas estruturas vocais. Se a integração seu mover. Ela também indica, ainda pensando na
audição/respiração/movimento/fala estiver função expressiva da fala, que a língua se alinha
desimpedida e desinibida, então o desen- ao movimento de tal maneira que ela percebe que
volvimento da linguagem e a produção da
fala serão eficientes e não precisaremos frequentemente “a atitude corporal (posturas e ges-
perceber conscientemente essas estruturas tos) é diferente quando se fala diferentes idiomas”
ou o seu processo (COHEN, 2015, p. 152). (COHEN, 2015, p. 153). Neste esquema, a escuta
tanto aprimora quanto é aprimorada pelo cresci-
Nessa perspectiva, enquanto todas as facul- mento das capacidades cinestésicas e vocais. Sin-
dades sensíveis são importantes na elaboração do tetizando suas ideias, a autora coloca finalmente:
movimento e da voz, Cohen reconhece que o ouvido
tem um papel especialmente relevante nos nossos A nossa expressão vocal (falar e cantar)
pode melhorar ao se aprimorar a percep-
primeiros momentos de desenvolvimento de movi- ção auditiva e a consciência cinestésica,
mento (e de capacidade vocal), dado que mudanças com treinamento da audição e do movi-
nas nossas vozes funcionam de maneira a treinar mento, respectivamente. A nossa audição
pode melhorar com o desenvolvimento
nossos ouvidos e vice-versa (COHEN, 2015). Neste de maior sensibilidade cinestésica, que

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Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
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leva a melhora da expressão vocal. Final- 372). É importante, nesse sentido, que se desen-
mente, a consciência do nosso movimento volvam práticas pedagógicas para voz que se so-
pode ser melhorada pelo treino da audição
e da vocalização (COHEN, 2015, p. 176). mem aos treinos tradicionais e que visem fomentar
outras maneiras de se organizar e agir no mundo.
Nesse aspecto, apesar de essa não ser espe- Com base nessa argumentação, pode-se per-
cificamente a preocupação de Cohen, é importante ceber que a chamada de Cohen para uma somática
que notemos que os modos a partir dos quais nos de- da fala pode ser compreendida também pela ideia
senvolvemos vocal e gestualmente a partir da escuta de que, ao conhecermos e experienciarmos melhor
se relacionam às maneiras pelas quais nos fazemos nossas estruturas (de produção vocal, escuta e mo-
enquanto sujeitos. A musicóloga especializada em vimento), nós desenvolvemos novas maneiras de
voz Freya Jarman-Ivens (2011), por exemplo, apon- ser. Em sua proposta, o treino da voz aparece não só
ta que nossas disposições físicas e, especialmente, como uma parte do processo comunicacional, mas
vocais se constroem a partir de como lidamos com como uma maneira de se atualizar somaticamente no
tecnologias midiáticas (que capturam e reproduzem mundo – o que pode ser importante para que as pes-
vozes), com nossos aparatos fisiológicos e psicoló- soas se repensem em termos de corpo, mas também
gicos (como técnicas vocais e compreensões sobre de identidades, em como se posicionam frente os
nosso próprio corpo) e com tecnologias de poder modos de se apresentar nos seus cotidianos. Com-
(como o modo pelo qual nos produzimos em ter- preender o trabalho somático da voz a partir de uma
mos de gênero e raça, por exemplo). Pela escuta e preocupação com investigações sobre sujeito, assim,
produção vocal, nós nos configuramos em termos é importante para se perceber que, ao lidar com voz e
identitários, nos modulamos para falar distintamente corpo, se realiza uma investigação e potencial trans-
para microfones, ambientes fechados ou abertos e formação de como as pessoas se compreendem,
para exercer autoridade e sujeição. Dessa manei- se comportam, se fabulam e narram a si mesmas.
ra, a voz é tanto fruto de procedimentos e técnicas Essa questão é expressamente discutida por
como é em si uma técnica relacional que nos faz no Miranda (2008) ao apresentar como tem trabalha-
mundo e nos posiciona diante dos outros. Percebo, do artisticamente a partir das Conexões Corpo-
assim, que sua argumentação é relacionável com a -Espaço. Em seu texto, a autora aponta que tem
discussão de Cohen no sentido de que ambas estão estimulado os artistas que trabalham com ela a
preocupadas com as maneiras pelas quais a escuta desenvolver uma fala corpo-verbal que visa exer-
modula os modos a partir dos quais agimos vocal citar a crença de que é “possível, desejável e enri-
e gestualmente no mundo e pelo qual nos fazemos quecedor que pessoas diferentes, de falas diferen-
em termos corporais. Daiane Jacobs (2017), pes- tes, com informações diferentes, convivam, criem e
quisadora preocupada com o papel do treino e dos exercitem discursos poéticos, que possam ser sin-
processos de sujeição, em consonância, demons- ceramente apreciados e integrados criativamente
tra especificamente que a construção da voz (e de em cena ou fora dela” (MIRANDA, 2008, p. 87-88).
si) depende de determinadas maneiras de escutar, Isto, afirma a autora, “permite o trânsito, recria
afetadas pela cultura. Assim, “os tipos vocais são a palavra, acha o gesto capaz de provocar deslo-
resultados de um tipo específico de escuta, e a pa- camento e expansão” e encara a “experiência do
dronização dos tipos vocais também é resultado de movimento como um processo constante de auto-
uma padronização da própria escuta”, de tal forma -redefinição” (MIRANDA, 2008, p. 88). Como postula
que “as vozes são reflexos das relações entre cor- Miranda, como ilumina Cohen e como estimula para
pos e treinamentos diários, direcionados (na arte) a arte Adrian, então, atualizar-se e transformar-se
ou espontâneos (no cotidiano)” (JACOBS, 2016, p. ao experimentar maneiras diversas de se mover, vo-

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calizar, escutar (aos outros e a si mesmo), precisa constante. Nos lembra que somos formados também
ser um imperativo, um ponto-base, em uma pers- por assimetrias de silenciamentos e tomadas de fala,
pectiva somática que vise ampliar as possibilidades e que os padrões até então dados podem ser refeitos.
cinestésicas, vocais e perceptivas de cada pessoa. Explorar a voz somaticamente incorporando
os saberes desenvolvidos a partir de Laban, assim,
Considerações finais: reunindo bases para pode fazer perceber que a descoberta de nossa
uma prática vocal emancipatória anatomia, fisiologia e nossas capacidades físicas
sensivelmente, estando atentos aos nossos sons e
É notável, em suma, que ler os desenvolvimen- feedbacks, é um constante trabalho de reinvenção
tos da Laban Movement Analysis, dos Bartenieff Fun- de si, de transformações expressivas. Neste sentido,
damentals, do Body-Mind-Centering e das Conexões o trabalho somático da voz a partir das categorias
Corpo-Espaço a partir de uma atenção à voz parece trabalhadas pelo Sistema Laban/Bartenieff, quan-
enfatizar a maneira como toda essa rede de sabe- do encarado pelas potências e transformações do
res aborda os modos pelas quais nos posicionamos mover, podem ser importantes em um processo de
e nos relacionamos no mundo. Modular-se para a reformulação subjetiva das formas de ser que es-
comunicação, para a função expressiva e para os tão previamente dadas. Estudar voz pelo caminho
feedbacks fornecidos pelos sons espaciais são fun- do movimento, afinal, envolve estudar como cons-
damentos que aparecem recorrentemente quando truímos relações, pontes e conexões a um nível in-
se pensa o movimento pela voz. Se o movimento terpessoal e social, propondo outras e novas ma-
sempre é expressivo e se a relação é central para o neiras de construí-las e nos reformulando em tal
mover humano, a vocalização sublinha o tempo todo processo; uma prática central para fomentar novas e
que estamos sempre em relação e que, assim, nos- mais solidárias maneiras de viver nossas existências.
sos movimentos são processos que articulam nossas
percepções com nossas ações, o que sofremos e o Referências
que fazemos. Por conta disso, a voz é uma das manei-
ras evidentes pelas quais percebemos que estamos ADRIAN, Barbara. Actor Training The Laban Way –
sempre nos atualizando em termos de movimento. An Integrated Approach to Voice, Speech, and Mo-
Dessa maneira, se repensar vocalmente tende vement. Ebook: Allworth Press, 2008.
a fazer aparecer momentos disparadores de um pro-
cesso de “desidentificação” com a voz, estranhando ______. Moving Your Voice: Expanding Your Vocal
determinados sons que não estamos habituados a Creative Potential Through LMA. In: CAREY, David;
produzir e que não compõem aquilo que comumen- CAREY; Clark. (Orgs). The Laban Workbook For Ac-
te chamamos de “minha voz”. À medida que se ex- tors – A Practical Training Guide With Video. Ebook:
ploram áreas de ressonância, murmúrios, sons de- Bloomsbury, 2017.
sestruturados, as possibilidades dos articuladores,
as Formas da voz, a cinesfera vocal e diferentes BARTENIEFF, Irmgard; LEWIS, Dori. Body move-
qualidades de Esforço, novas qualidades de corpo ment: coping with the environment. Nova Iorque e
e voz aparecem e mais surpresas emergem. Este Londres: Routledge, 2002.
estranhamento parece nos lembrar e avisar que so-
mos mais plurais do que acreditamos e que talvez te- BARTHES, Roland. The grain of the voice. In:
nhamos mais potenciais do que sabemos. A explora- STERNE, Jonathan. (Org.). The sound studies read-
ção vocal nos lembra que estamos nos atualizando, er. London: Routledge, 2012.
mudando ou reincidindo, e que este é um processo

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