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GUIA

DA
VOZ
CANTADA
MATEUS CORUSSE
Olá!
Este é um livro desejado há muito tempo e que, sinceramente, gostaria
muito de poder ter lido quando iniciei minhas atividades como cantor e
professor de canto quase uma década atrás. Foi preciso muito estudo, muita
formação e também muitas cabeçadas para chegar na clareza e conhecimento
para escrevê-lo.
Ele nasce do intuito de colaborar com muitos cantores e professores que
possuem dificuldades em encontrar materiais e literatura que fale sobre temas
importantes relacionados à voz de forma direta e, sempre que possível,
cientificamente embasada. É bem verdade que as produções brasileiras,
embora crescentes, ainda são bastante incipientes. Infelizmente, também é
verdade que existem muitas informações equivocadas sendo amplamente
divulgadas por aí e chavões que, embora inconsistentes, ainda rondam
constantemente a prática do cantor e do professor de canto.
Durante todo o livro, busquei assumir uma postura isenta em relação aos
estilos de canto e abordagens de ensino. Não se pretende aqui defender uma
ou outra bandeira. Quero que você, leitor, conheça alguns princípios básicos da
fisiologia, do treinamento vocal e da saúde vocal e que, em posse deles,
escolha ou continue na abordagem que mais lhe agradar.
Também optei por uma abordagem dos assuntos de modo sintético. Não
é a ideia desenrolar tratados sobre a voz aqui, mas lançar sementes e indicar
caminhos mais precisos para aqueles que desejam se aventurar nos temas
apresentados.
Espero que essa iniciativa contribua com o crescimento dos
conhecimentos da técnica vocal, ciência da voz e da pedagogia vocal.
Boa leitura!

Mateus Corusse
FISIOLOGIA DA VOZ
A voz p. 04
O que é técnica vocal? p. 05
Pregas Vocais p. 06
Respiração p. 07
Registros vocais p. 08
Modos de fonação p. 09
Ressonância p. 10
Falsete p. 11
Voz na máscara / garganta p. 12
TREINAMENTO VOCAL
ETVSO: canudos, tubos e mais... p. 14
Aquecimento Vocal p. 15
Exercícios Vocais p. 16
Popular ou Erudito p. 17
Afinação p. 18
MUSICALIDADE
Interpretação p. 20
Canto e teoria musical p. 21
Ouço minha voz e não gosto p. 22
Linguagem e Estilo musical p. 23
SAÚDE VOCAL
Voz de peito machuca? p. 25
Disfonia p. 26
Tensão p. 27
INDICAÇÕES DE LEITURA
A voz é parte significante na vida de qualquer pessoa. Ela não só
comunica palavras e mensagens, como também constitui parte relevante
daquilo que é própria pessoa.
Pensamos a voz a partir de três subsistemas: respiração, fonação e
articulação. Essas três partes, embora didaticamente abordadas
separadamente, ocorrem de modo integrado em toda produção vocal.
Diferentes usos da voz, cantada ou falada, irão apontar para diferentes
manobras nesses três níveis.
A respiração diz respeito ao processo pelo qual, com o uso das
musculaturas inspiratória e expiratória, geramos a pressão subglótica, ou seja,
a pressão pela qual se provocará a vibração das pregas vocais. Embora não haja
consenso nem na literatura, nem na pedagogia vocal, o apoio consiste em
manobras pelas quais o cantor regula o fluxo e essa pressão. Durante um bom
tempo, esse foi um dos elementos mais destacados na pedagogia vocal.
Na fonação temos a vibração das pregas vocais, pelas quais se produz o
chamado som da fonte glótica. Assim, é produzida uma frequência
fundamental (fo) e os harmônicos. Aqui também são definidos os modos de
fonação e os registros vocais.
A articulação, por fim, aponta para diferentes manobras dos
articuladores (mandíbula, lábios, língua, palato, faringe e a própria laringe) que
moldam o trato vocal. Nesse aspecto, destacam-se as ressonâncias do trato
vocal que a partir das conformações do trato vocal amplificam ou abafam a fo e
os harmônicos. Muita confusão se faz em relação ao termo ressonância, mas
esse já é um assunto para outro capítulo.
A técnica vocal corresponde ao conjunto de comportamentos vocais, e,
portanto, corporais, adotados pelo cantor em vista da produção de uma
qualidade vocal desejada. Diferentes sonoridades pretendidas apontam para
diferentes configurações do aparelho vocal, em seus níveis de respiração,
fonação e articulação.
Durante muito tempo, advogou-se a existência de uma técnica ideal para
os cantores, geralmente relacionada ao canto lírico. Essa compreensão decai
em dois pontos bastante problemáticos. O primeiro deles é o da
desconsideração de que no canto erudito há diferenças nas concepções
técnicas das diferentes escolas, ou ainda a ideia de que a formação
desenvolvida por elas gera padronização completa na execução vocal de todos
os cantores líricos. O segundo é o de se corroborar a ideia de que existiria uma
técnica ideal isenta de critérios estéticos ou das noções de adequação e
inadequação formuladas e reformuladas nos séculos de prática vocal da
humanidade.
Neste sentido, um ponto central para a compreensão da técnica vocal é
que ela sempre é norteada por uma estética. Ou seja, é o estilo de canto, o
gênero musical e as características de determinada expressão artística que
definirão quais tipos de vozes são preferencialmente, ou ao menos mais
recorrentemente, adotados e, por consequência, a técnica para que se possa
produzi-los.
Graças aos avanços das pesquisas relacionadas à voz, muitos dos mitos
relacionados à produção vocal tem sido superados e diferentes abordagens de
pedagogia vocal têm se constituído para atender aos variados tipos de canto.
As pregas vocais (PPVV) são compostas por músculo (Tireoaritenóideo –
TA) e mucosa. Elas estão fixadas sobre duas cartilagens da laringe, chamadas
cartilagem tireoidea e cartilagens artinenoideas. O espaço entre elas é
chamado de glote.
Em um adulto, as pregas vocais chegam a 22mm nos homens e 16mm
nas mulheres. O seu tamanho está relacionado com as frequências possíveis
de serem produzidas, de modo que as PPVV dos homens, por serem maiores,
conseguem produzir sons mais graves e a das mulheres sons mais agudos.
Quando estamos respirando, as pregas vocais ficam abertas (abduzidas).
Já quando estamos vocalizando, as pregas vocais ficam fechadas (aduzidas).
Quando o ar vence a resistência oferecida pelas pregas vocais, ele as atravessa
as fazendo vibrar. Esse movimento de abertura e fechamento das pregas é
chamado de ciclo glótico (fase fechada – abertura – fase aberta – fechamento)
Quando produzimos um som mais grave, as pregas vocais são
encurtadas. Por sua vez, quando produzimos um som agudo elas são esticadas.
Um fator interessante é que a vibração das pregas é correspondente à
frequência produzida, ou seja, se uma pessoa produz um Lá 440Hz, suas PPVV
vibrarão 440 vezes por segundo.
A respiração está intimamente ligada com todo o canto. Em síntese, o ar
se direciona para as pregas vocais; elas são aduzidas (fechadas), gerando uma
resistência que promove a chamada pressão subglótica. Quando essa
resistência é vencida, ocorre a vibração das pregas vocais.
Na respiração regulamos o fluxo, o volume e a pressão. Observe que para
a pressão dois aspectos importantes podem ser destacados: o ar e o
fechamento das pregas vocais. Os dois atuam de modo a regular a pressão
subglótica. Quando se requer uma maior pressão, como no caso de notas mais
agudas ou maior intensidade, o cantor pode recrutar uma maior pressão tanto
pela ação dos músculos respiratórios, quanto pela maior força de adução das
pregas. Aí está a grande importância da respiração: trabalhar para regular a
pressão subglótica sem precisar sobrecarregar a laringe.
Quando há maior uso da musculatura inspiratórias (contração do
diafragma e abertura de costelas), ocorre um aumento do volume da caixa
torácica. Quando se ativa a musculatura expiratória (contração da parede do
abdômen, por exemplo), ocorre uma diminuição do seu volume.
Por muito tempo, a pedagogia tradicional destinou à respiração um
grande enfoque no treinamento vocal. Hoje, tem sido crescente a compreensão
da importância de sua aprendizagem de modo articulado com a fonação. De
qualquer modo, trabalhar a respiração requer um refinamento da consciência
corporal e da própria postura e alinhamento corporal do cantor.
Os registros vocais agrupam uma das maiores quantidades de
terminologias de toda a pedagogia vocal. Inclusive, diferentes abordagens de
pedagogia vocal acabam por criar nomenclaturas e interpretações diversas
para os registros.
Uma das formas mais recentes e bem aceitas de interpretação dos
registros é por meio dos mecanismos laríngeos. Esse conceito foi desenvolvido
em pesquisas como as de Roubeau, Henrich e Castellengo (2009) que
observaram a existência de quatro padrões vibratórios das pregas vocais. Os
registros, portanto, podem ser agrupados do seguinte modo: M0 (fry, basal), M1
(peito, denso, mecanismo pesado), M2 (cabeça, falsete, tênue, mecanismo
leve), M3 (whistle, elevado, flauta).
Muitas vezes, nomes diferentes são dados para o mesmo registro por
conta de critérios que excedem o aspecto do mecanismo laríngeo. Para
exemplificar, falsete e voz de cabeça são a mesma coisa do ponto de vista do
mecanismo laríngeo. No entanto, geralmente são diferenciados pela
sonoridade ‘aerada’ do primeiro, o que se deve não a um mecanismo diferente,
mas a um modo de fonação mais soproso.

Registro basal, Fry, Strohbass,


M0
Registro pulsátil .
Voz de peito, Registro denso, Registro
M1
modal, Voz plena, Mecanismo pesado.
Voz de cabeça, Falsete, Registro tênue,
M2
Registro elevado, Mecanismo leve .
M3 Whistle, Voz de apito, Flauta, Assobio.
Quando ouvimos uma voz cuja sonoridade possui bastante ar, ou outra
que, ao contrário, parece ser mais ‘encorpada’, geralmente estamos falando de
variações dos modos de fonação.
Eles ocorrem no nível da fonação e correspondem ao comportamento
assumido pelas pregas vocais em termos do tipo de contato, da pressão
subglótica e da força de adução (o quanto uma prega se põe em direção à
outra).
Sundberg apresenta a seguinte gradação: fonação sussurrada, fonação
soprosa, fonação fluida, fonação neutra e fonação tensa. Quanto mais em
direção ao tenso for a fonação, maior serão a pressão e a força de adução.
Outro ponto interessante é que, por consequência, será maior também a fase
fechada do ciclo glótico.
Diferentes estilos de canto tendem a adotar modos de fonação
preferidos. Além disso, a variação deste aspecto constitui um interessante
elemento para a variação da interpretação.
A ressonância é um tema no qual se encontram muitas confusões.
Muitas vezes, a sua compreensão é comprometida porque não há clareza ou se
misturam elementos da sensações e percepções corporais com o fenômeno
em si da ressonância.
Basicamente, a ressonância constitui o processo pelo qual os
harmônicos produzidos pela vibração das pregas vocais serão ampliados ou
abafados de acordo com a disposição do trato vocal, que é moldado pelos
articuladores. As diferentes manobras articulatórias geram diferentes
conformações que, por sua vez, promovem diferentes interações com os
harmônicos.
No entanto, no decorrer da história houve diferentes teorias que
propuseram interpretações equivocadas sobre como isso se daria a produção
vocal. Algumas pensavam que as pregas vocais não produziam som, mas sim,
geravam baforadas de ar que deveriam atingir as frequências dos formantes no
trato vocal. Outras, ainda, advogavam um direcionamento da coluna de ar para
diferentes pontos da cabeça. Partindo daí, vão surgindo termos e metáforas
como: voz na máscara, voz na frente, giro da voz, jogar a voz para tal lugar,
ressonância alta, pontos de ressonância e outros mais.
Entretanto, cabe ressaltar que embora isso não ocorra assim do ponto de
vista da fisiologia e acústica, o uso dessas metáforas é muito utilizadas como
recurso para o ensino do canto.
O falsete é um termo bastante recorrente no jargão do canto. Há
diferentes compreensões a seu respeito, algumas partindo da concepção de
registro e outras dos modos de fonação.
A qualidade vocal geralmente associada ao falsete é relacionada com
leveza, soprosidade e pouca projeção. No caso dos homens, o termo tende a
ser adotado para a voz que aparece após a passagem. Nas mulheres, ele é
geralmente associado a uma voz mais fraca e soprosa.
Pensando nos mecanismos laríngeos, é importante entender que voz de
cabeça e falsete são a mesma coisa: ambos equivalem a M2. No entanto,
tende-se a se compreender que há uma maior adução na voz de cabeça do que
no falsete, o que gera a percepção de uma voz mais encorpada, ou seja,
variações nos modos de fonação.
O uso deste tipo de ajuste é adequado dependendo do tipo de canto que
se deseja. Há estéticas que privilegiam vozes mais aduzidas, enquanto outras
possuem mais flexibilidade em relação aos modos de fonação.
Vozes que não estão habituadas a cantarem em M2 tendem a apresentar
a soprosidade característica do falsete ao fazerem a passagem do registro. No
entanto, quando intencional, esse ajuste pode constituir uma interessante
ferramenta expressiva para a elaboração da interpretação do cantor.
Os termos voz na máscara e voz na garganta são muito recorrentes no
jargão dos cantores e professores de canto. Muitas vezes, eles são associados a
uma compreensão do que seria a ressonância no canto.
Como já foi abordado no capítulo sobre ressonância, não é possível fazer
um direcionamento da voz (a voz não está na frente, atrás, para cima ou para
baixo!). Acontece que, dependendo de como é produzida a voz, o cantor tem
sensações diferentes sobre como ocorre sua produção vocal. Os termos voz na
máscara e voz na garganta relacionam-se muito com esse aspecto. Grosso
modo, a voz na máscara está geralmente associada a uma voz emitida com
facilidade, fluidez e boa projeção, enquanto a voz na garganta é associada ao
esforço e tensão.
Como vimos, esses termos não correspondem à fisiologia. Isso em si não
é um problema, visto que não há necessidade de que a metodologia do
professor adote uma terminologia científica (as imagens e metáforas são
usadas há séculos no ensino de canto). A questão é que, muitas vezes,
acredita-se que, de fato, a voz está no lugar [x] ou [y].
Além disso, um problema desses termos é que eles são
demasiadamente subjetivos e generalistas. Por exemplo, a voz na garganta está
geralmente associada com uma voz mais tensa. Mas, o que isso significa?
Podem ser várias coisas! Pode ser um modo de fonação mais tenso, uma
tensão na musculatura extrínseca ou, ainda, uma constrição em algum
articulador. Cada uma dessas variações possui uma sonoridade específica e
aponta para diferentes estratégias a serem tomadas para sua resolução.
Os Exercícios de Trato Vocal Semiocluído (ETVSO) constituem uma gama
variada de exercícios vocais que, conforme o próprio nome aponta, ocorrem a
partir de uma oclusão incompleta do trato vocal ou do seu prolongamento.
Eles podem ser realizados a partir de manobras com o uso de diferentes
articuladores (vibração de lábio e de língua, fricativos sonoros, humming) e
com a utilização de instrumentos (tubos, canudos, copos, entre outros). Além
disso, podem ser feitos também com o uso das mãos (firmeza glótica e finger
kazoo)
Basicamente, por meio da semi-oclusão gera-se uma pressão retroflexa
sobre as pregas vocais que atua de modo a melhorar a onda da mucosa por
meio do equilíbrio entre as pressões sub e supraglótica. Como resultado, há
uma fonação mais fluida e com menos esforço, uma maior economia vocal e
uma melhor interação entre fonte e filtro.
Por estas qualidades, os ETVSO são muito positivos quando utilizados
não somente para o aquecimento vocal, mas também para o condicionamento
vocal, pois os exercícios podem oferecer resistências variadas que
proporcionam o estabelecimento de uma progressão da sobrecarga para o
treinamento vocal.
O aquecimento vocal consiste em uma série de exercícios que tem por
objetivo preparar a voz para algum uso profissional, o que envolve não somente
a profissão dos cantores, mas também outros profissionais como professores,
palestrantes, atores, vendedores, entre outros.
No aquecimento vocal, promove-se a mobilização das pregas vocais,
manutenção da onda da mucosa e do fluxo de ar e a mobilização dos
articuladores, de modo a auxiliar na manutenção da saúde vocal e prevenção
de fadiga e disfonias.
Vários exercícios podem ser utilizados para o aquecimento. Entre os mais
comuns estão os de vibração de lábios e língua, fricativos, sons nasais e
escalas variadas. Tem sido recorrente também o uso de tubos e canudos
(ETVSO). Por fim, utilizam-se vocalizes diversos sobre a tessitura do cantor,
podendo contemplar elementos musicais relativos ao repertório a ser
executado. Também exercícios de alongamento e de respiração podem ser
contemplados. É importante que o aquecimento vocal seja realizado próximo
ao momento de uso profissional da voz.
Além dos aspectos relacionados à função vocal, o aquecimento também
pode ser utilizado como um momento de concentração do cantor para
apresentação que irá realizar, preparando-se física e mentalmente para a
performance. Destaca-se que todo aquecimento deve ser construído de modo
individual e específico para as necessidades de cada cantor.
Vocalizes são exercícios vocais construídos com diferentes combinações
de vogais, consoantes, dinâmicas e desenhos melódicos pelos quais os
cantores realizam o seu treinamento vocal.
Os vocalizes podem ser desempenhados com diferentes funções.
Quando empregados com uma finalidade estética, o cantor buscará a execução
do padrão musical de um modo adaptado às perspectivas de seu estilo de
canto. Por sua vez, quando a finalidade do exercício é fisiológica, o que se
busca não é a beleza, mas que aquela sonoridade gere determinadas respostas
do aparelho vocal.
Ponto importante a ser destacado é que a melodia de um exercício não
determina, por si só, uma finalidade específica. É preciso sempre levar em
conta outros parâmetros no conjunto, como a dinâmica escolhida, as vogais
empregadas, a velocidade, o registro, entre outros. Neste sentido, um mesmo
desenho melódico terá um resultado muito diferente se for praticado com uma
vogal aberta e em dinâmica forte do que aquele praticado com uma vogal
fechado e em dinâmica fraca.
Além disso, destaca-se que diferentes vocalizes podem ser adotados
para uma mesma finalidade. Sendo assim, é muito importante que o professor
tenha conhecimentos de fisiologia e acústica para melhor compreender os
impactos das diferentes escolhas dos exercícios vocais na formação de seus
alunos.
Popular ou erudito: qual dos dois tipos de canto é mais indicado para
alguém que deseja aprender a cantar? A resposta para essa questão é muito
simples: depende de qual tipo de cantor a pessoa deseja ser!
Um aspecto muito relevante para a compreensão da técnica vocal e do
estudo de canto é entender que é a estética quem conduz a técnica. Ou seja, é
o tipo de canto que se deseja executar que definirá, a partir de seus referenciais
estéticos e do que é adequado ou não para aquele estilo, os ajustes vocais a
serem executados e, por consequência, treinados nas aulas de canto.
Por muito tempo propagou-se a ideia de que a técnica ideal seria aquela
proveniente das escolas de canto erudito. Isso em partes se deve ao fato de que
o canto erudito é executado há muito mais tempo, possuindo maior
consolidação em suas escolas e na formação de cantores. No entanto, os
avanços recentes no conhecimento da ciência da voz e da pedagogia vocal
permitiram o surgimento de abordagens para os variados cantos populares.
É importante lembrar também que a aula de canto envolve muito mais do
que a aprendizagem da técnica. Junto da formação vocal, o cantor deve
mergulhar nos referenciais estéticos do estilo que está cantando, ampliar o
conhecimento do repertório, dos gêneros musicais e dos intérpretes da área,
compreender os padrões rítmicos, melódicos e harmônicos da música que
executa, entre muitas outras coisas. Por isso, nada mais adequado do que já se
estudar o tipo de canto que se deseja executar.
A afinação é um dos pontos centrais para todo cantor. Existem diferentes
causas pelas quais se pode ter dificuldade em dominá-la, mas aqui vamos falar
de três que considero mais recorrentes.
A primeira delas é quando há defasagem na percepção musical. Nesses
casos, o problema ocorre pelo cantor não perceber ou ter dificuldade em
reconhecer a nota ou melodia que deve realizar. Aqui se destaca o papel do
treinamento da percepção nas aulas de canto e o estudo de repertórios que
apresentem complexidade melódica adequada. A música popular brasileira é
riquíssima neste sentido. O treinamento para esse caso é progressivo, desde
cantores ‘monotônicos’, passando por aqueles que afinam com a ajuda de uma
voz de referência, até chegar na independência no canto solo e, por último,
executando linhas melódicas diferentes junto de um grupo.
Um segundo ponto é a desafinação causada por questões técnicas.
Nestes casos, é a dificuldade de um elemento que compromete a afinação,
podendo ser causada por tensão, transição de registros, determinada região da
tessitura, entre outros. Faz-se necessário, então, o treinamento específico para
sanar a necessidade apresentada.
A terceira e última situação é aquela em que o cantor desafina quando se
apresenta em público. Embora a percepção e a técnica estejam em dia, o
nervosismo pode atrapalhar a execução. Nesses casos, é importante trabalhar
o controle emocional. Também é valido buscar apresentar-se com maior
frequência de modo a acostumar-se com o palco e com a exposição.
A interpretação é um dos aspectos mais interessantes do canto. Muitas
pessoas a separam da técnica, inclusive em suas aulas. Mas seria impossível
pensá-las separadamente. A interpretação só se utiliza dos recursos que o
cantor já dominou tecnicamente, ao mesmo tempo em que técnica se orienta
em vista de uma expressão estética a ser construída. Ou seja, elas são
complementares!
A interpretação expõe como o cantor pensa a canção. Ela envolve não
somente a adoção de determinados ajustes vocais, mas, toda uma leitura e
contextualização da letra e música que se canta e que, ao ser impregnada de
sentido, passará a nortear as escolhas estéticas do cantor e a determinar a sua
qualidade emotiva.
Um ponto interessante é tentamos dar um passo além dos adjetivos
geralmente utilizados para descrever as performances. Alguns exercícios
interessante são ouvir um cantor e tentar descrever os ajustes utilizados,
comparar os comportamentos vocais utilizadas em momentos contrastantes
de uma canção ou em faixas com propostas estéticas diferentes ou, ainda,
observar como são dispostos os elementos da prosódia.
Muitas pessoas tendem a separar a prática musical da teoria musical
como se elas constituíssem universos complemente distintos. No caso dos
cantores, isso ainda se acentua porque já carregamos nosso instrumento
conosco e, na maior parte das vezes, demos os primeiros passos musicais
guiados pela intuição e experimentação e não pelo conhecimento musical
formal.
Um problema que tende a se estabelecer a partir disso é que, muitas
vezes, os cantores param justamente nessa etapa da intuição e não buscam
conhecer ou se aprofundar na teoria musical. Essa é uma realidade bastante
limitante, pois todas as atividades musicais podem ser beneficiadas pelo
melhor entendimento teórico da música, seja na composição, arranjo,
acompanhamento, interpretação, entre outros.
Muitas vezes, dá-se muita atenção para o texto, mas esquece-se que as
diferentes estruturas musicais presentes em cada obra estão plenas de
sentidos possíveis. Cabe então ao cantor, assim como a qualquer músico que
deseja refinar seu fazer musical, conhecer de modo profundo a teoria musical e
para aplica-la em sua percepção e execução musical.
É muito comum ouvir que as pessoas não gostam de suas próprias vozes
quando a escutam em gravações de áudios ou de mensagens que enviam para
seus amigos. Isso acontece porque nenhum de nós ouve a sua própria voz
como o restante do mundo.
Nós ouvimos a nossa voz tanto pela referência externa, quanto interna.
Quando escutamos os nossos áudios de celulares, por exemplo, ouvimos
somente a referência externa. Por isso, sentimos tanto estranhamento.
Sob outros aspectos, também é muito recorrente que os cantores
estejam desgostosos com suas vozes. Muitas vezes, nosso incômodo se dá
porque temos referências estéticas e musicais distantes da nossa realidade e,
por vezes, enxergamos beleza apenas nestes tipos de expressão.
Parte da aprendizagem do canto, portanto, refere-se à uma descoberta
da própria voz e de suas potencialidades. O timbre pode ser moldado a partir de
vários ajustes e cada voz consegue reproduzir uma gama ampla de sonoridades
e é justamente na individualidade de cada voz que está a riqueza de sua
expressão artística.
Quando lidamos com a linguagem e o estilo musical, estamos tratando
de um dos corações do canto e de toda a música. Em última instância, são eles
quem vão determinar muito da pertinência das possibilidades assumidas nas
qualidades vocais dos intérpretes.
Como já falamos em outro momento, é a estética quem guia os
diferentes tipos de canto. Imagine um cantor de rock cantando samba ou
cantor lírico cantando baião. Muito provavelmente, ainda que eles sejam muito
bons no tipo de canto que estão habituados, o resultado seria, no mínimo,
estranho. Isso se dá porque há inúmeros modos de se cantar e o
desenvolvimento dos estilos, dos gêneros e dos movimentos musicais sempre
acaba por estabelecer aspectos musicais comuns ou preferidos. As
características bem-vindas em um estilo diferem das que são desejadas em
outro.
Assim, quando um cantor escolhe o tipo de repertório que vai executar, é
preciso que ele busque conhecer as características vocais e musicais que são
pertinentes para aquele contexto. Ou ainda, mesmo que queira propor algo que
rompa com a estética estabelecida, é interessante isso seja feito de modo
consciente. Um bom músico deve conhecer muito bem a história, os principais
intérpretes, os compositores e os aspectos musicais que foram se
consolidando no seu estilo.
Em alguns casos, a adequação ao estilo se dará a partir de
características especificamente vocais. Por exemplo, os cantores líricos
possuem em comum alguns pontos como a maior projeção, a homogeneidade
da tessitura, a predominância do registro de cabeça nas vozes femininas, entre
outros. Outras vezes, a adequação se dará em relação a aspectos musicais. Por
exemplo, no canto popular valoriza-se a exploração e variação da divisão
rítmica, a improvisação e outros mais.
Esse tema da voz de peito seria bem mais simples de ser abordado não
fosse a imensa dificuldade gerada pela pluralidade da terminologia aplicada
sobre os registros vocais. Partimos do entendimento de que existem quatro
mecanismos laríngeos com os quais se dispõem os registros vocais. Para
simplificar, vamos adotar os seguintes termos neste capítulo: fry (M0), peito
(M1), cabeça ou falsete (M2) e whistle (M3).
Nas vozes masculinas é comum que se cante predominantemente em
voz de peito, tanto no canto erudito, quanto no popular, embora no segundo
caso seja admitido o uso de falsete. Já nas vozes femininas, há a predominância
da voz de cabeça no lírico e variedade de uso dos registros no popular. Aqui já
há um recorte estético do que se espera em relação aos registros nestes tipos
de canto.
A concepção de que voz de peito machuca se dá por algumas questões.
Primeiro, porque pode haver uma confusão ao assimilar a voz de peito (registro
- M1) com uma qualidade vocal tensa. Nesse caso, é importante destacar que
qualquer registro pode ser acompanhado de diferentes qualidades de fonação
e articulação, podendo elas serem tensas ou não.
Em segundo lugar, podem surgir tensões ao se tentar estender o registro
de peito sobre notas agudas ou ao se cantar com muito volume sem o devido
preparo e resistência. Nesse caso, é importante que haja um progressivo
trabalho de treinamento e condicionamento vocal.
Por último, há certa tendência ao aparecimento de tensões na voz de
peito quando as vozes não estão habituadas ao uso desse registro ou, ainda,
nas proximidades das regiões de passagem. No entanto, essas tensões são
eliminadas com o estudo da técnica vocal e o seu trabalho é bastante comum
nas aulas de canto.
A tendência atual as classifica em disfonias em dois grupos: as
comportamentais e as orgânicas.
Nas disfonias comportamentais há a participação do uso vocal da
pessoa no estabelecimento ou identificação do problema. É quando um mau
hábito tende a gerar uma alteração ou quando, a partir de uma demanda vocal
estabelecida, verifica-se alguma alteração na produção vocal por conta de
algum aspecto congênito. Entre elas estão as fendas, as AEM’s (alterações
estruturais mínimas), as disfonias psicogênicas, entre outros.
As disfonias orgânicas, por sua vez, independem da participação do
comportamento vocal. Entre elas podem ser destacadas as lesões nos
músculos ou nervos que controlam a fonação, câncer de laringe, disfonias por
refluxo laríngeo, entre outros.
Por fim, destaca-se a necessidade de que o profissional da voz, cantada
ou falada, atente-se aos cuidados com sua saúde vocal. É importante lembrar
que o zelo e a responsabilidade com sua própria voz apontam tanto para o fato
de que ela constitui parte importante do que é a própria pessoa, como também
é o seu instrumento de trabalho.
A tensão, embora seja algo não desejado, faz parte do cotidiano da
grande maioria dos cantores. Parte do estudo da técnica vocal volta-se para a
sua eliminação para que se possa desenvolver liberdade e flexibilidade na voz.
Para tanto, é muito importante que o cantor e seu professor consigam ter a
clareza de qual tipo de tensão está ocorrendo e como lidar com ela.
Nesse sentido, dois pontos precisam estar muito claros: (1) onde está a
tensão e (2) o que está a causando. Para solucionar a situação, é preciso que os
exercícios e estratégias sejam construídos levando em conta ambos os pontos.
Em relação ao primeiro, existem tensões tanto no nível da fonte, como no
nível do filtro. Alguns cantores apresentam a tensão no modo de fonação,
empregando muita pressão e resistência glótica. Outros, por sua vez,
apresentam tensão nos articuladores, como na língua ou faringe. Outros, ainda,
apresentam tensões na musculatura extrínseca.
Já em relação ao segundo, as tensões podem estar sendo motivadas por
diferentes realidades: pode ser por conta de uma região de passagem de
registro, pode ser uma estratégia articulatória inadequada, uma postura
corporal desorganizada, uma demanda vocal para além do nível de
condicionamento atual, entre outros.
• BEHLAU, Mara (Org). Voz, o livro do especialista: volumes I e II. 3. ed. Rio de Janeiro:
Revinter, 2013.

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suas transições em quatro métodos franqueados de ensino de canto. 2022. Monografia
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MATEUS CORUSSE

mateuscorusse

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Cantor, professor de canto e pesquisador de
música e pedagogia vocal. Doutor em Música
pela Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp). Mestre em Educação pela
Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar). Graduado no curso de
Licenciatura em Música com habilitação em
Educação Musical também pela UFSCar.
Formado em Canto MPB/Jazz pelo
Conservatório de Tatuí.

Especialista em Pedagogía y tecnología para


la voz y el canto (UNED - Madrid).
Especialista em Pedagogia Vocal, técnica e
expressão (FASM). Pós-graduado em
Formação Integrada em Voz - Coaching Vocal
pelo Centro de Estudos da Voz (CEV).
Especialista em Educação aplicada à
performance musical (2016). Certificado na
formação Somatic Voicework – The LoVetri
Method (níveis I, II e III).

Tem desenvolvido atividades de ensino de


canto e música em variados contextos. É MATEUS CORUSSE
professor na Faculdade Santa Marcelina.
Docente nas pós-graduações de Pedagogia
Vocal (FASM) e Voz Cantada (FNH). Ministra
cursos de formação intensivos e extensivos
para cantores, professores de canto e
profissionais da voz.

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