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Universidade Federal do Maranhão – UFMA

Departamento de Licenciatura em Teatro – CCH


22 de Maio de 2018

Ensaio sobre o treinamento integralizado corpo-voz e sua contribuição


para o ator de rua.
Docente: Eduarda Milena Aguiar Saraiva

Há variados caminhos para se tratar o trabalho vocal do ator,


principalmente por termos um rico material de nomes como Stanislawiski,
Eugênio Barba, Grotowski, Meyrhold, nomes que laboraram e chegaram a
conclusões pedagógicas a cerca do trabalho vocal do ator, onde nos
deixaram um grande legado e referência para o trabalho vocal na cena. Por
isso, trago neste tenro ensaio apontamentos de Eugênio Barba comentados
por Martins para um trabalho de corpo-voz do ator. Porém, não delimitando
apenas a este recorte, mas trazendo para o trabalho físico-vocal do ator de
rua, muito embora não haja quase nenhum material que trate sobre este
tema.

Tendo em vista tal carência de pesquisas relacionadas a voz dentro


das artes cênicas, principalmente no teatro de rua, quando tal linguagem tem
tido uma grande produção teatral, tanto no Brasil quanto na América Latina,
onde tem-se ocupado um lugar de destaque e atraído os olhares de muitos
pesquisadores, bem como, a minha prática pessoal no curso de Canto Lírico
na Escola de Música Lilah Lisboa, dois caminhos, temas e lugares que me
atravessam, somando a uma fase também pessoal de um problema
patológico vocal, ocorreu-me de pensar em pesquisar o trabalho vocal do
teatro de rua, investigando o treinamento corpo-voz de grupos referência no
país como “Oi Nois Aqui Traveis” (RS), Grupo Oigalê (RS), Imbuaça (SE), e
entre outros os quais os caminhos da pesquisa me levar, afim de chegar a
uma pedagogia vocal, a um entendimento dos processos fisiológicos da voz
do ator de rua e atentando para um olhar a cerca do possível desgaste vocal
ator para a qual nos leva a rua, uma vez que é um espaço não-cômodo, e
com frequentes interferências sonoras. Me faço as seguintes perguntas: Na
rua, um espaço caótico e ruidoso, o quais os ricos apresenta para o ator que
invade a cidade? Quais as práticas vocais e corpo-vocais que tais grupos
vivenciaram e frequentemente praticam para manter a potência e saúde
vocal em seus espetáculos? Como chegar a um treinamento corpo-vocal
para um corpo extracotidiano, expressivo e vocalmente preparado para um
espetáculo de rua?

De antemão, estas são as perguntas que me faço, para as quais


encontro dificuldades em desenvolver inicialmente, por não haver
publicações em relação ao trabalho vocal do ator de rua, para tanto, vou me
fazer dos apontamentos do Eugênio Barba como ponte para se chegar ao
meu objeto de pesquisa, pois este trouxe um apurado estudo sobre as
relações entre corpo-voz do ator, sobre o olhar não mecanicista do corpo,
como algo isolado da mente, emoção, alma, mas como um conjunto de
todas essas áreas interconectadas. Barba foi um diretor de teatro que
sustentou o trabalho total do corpo do ator para um desbloqueio do corpo
cotidiano, uma eliminação dos hábitos culturais padrões – logo, limitantes e
não expressivos – por meio do que chamou de training, onde o ator
descobrir-se-ia corporalmente, eliminando tensões e cargas corpóreo-
emocionais para se chegar a um estado de desbloqueamento, organicidade
e presença cênica. Tal trabalho físico, possibilita ao ator também uma maior
emissão vocal tendo em vista seu condicionamento fisiológico e
consequentemente uma saúde vocal para trabalhar seus personagens.

Martins, autora na qual primeiramente me apoiarei para este ensaio,


nos diz que os modelos científicos contemporâneos influenciam no modo de
pensar a agir da sociedade e como esta entende a voz no seu corpo. E
durante muito tempo, principalmente no século XIX, o corpo era um
instrumento que era visto de maneira independente onde não se
considerava as suas relações com bio-psico-sociais (MARTINS, 2005, p1).
Tal pensamento influenciou no trabalho vocal do ator em que seu trabalho
delimitava-se apenas à oralizar, á declamação. Não havia um trabalho em
que o corpo e voz trabalhassem em unidade, mas estavam dissociados de
um treinamento, logo, tínha-se espetáculos que padeciam de vivacidade, de
expressividade corporal. Constantin Stanislavski, Vsevolod Meyerhold, Jacques
Copeau, Jerzy Grotowski e Eugenio Barba pesquisaram um treinamento que
integrava corpo-voz-mente, em oposição àquela formação mecanicista vigente no
século XIX.

Com este treinamento o corpo tornaria-se mais orgânico para a criação


artística, Ato orgânico na criação teatral significa “o contato interior que o ator tem,
na realização da ação física, com sua pessoa e suas energias potenciais; é uma inter-
relação integral corpo-mente-alma, uma espécie de totalidade psicofísica. Um estar
pleno, vivo, integrado” nas ações físico-vocal-verbais da personagem (FERRACINI,
Apud MARTINS, 2002, p.111).
O ator não é um todo, quando na arte da interpretação, não interpreta apenas a
partir de um texto, mas com todo o seu ser, presença, mente, psique, voz, o corpo do
ator traduz ação e no treinamento do ator, tudo é evocado, memórias corporais,
sensibilidade, suas energias, porém não cabe ao ator rememorar emoções a
fim de uma possível presença mais orgânica, como a proposta da memória
emotiva de Stanislaviski (1989), para Barba, a representação surge a partir
da pesquisa física: : do equilíbrio precário, da postura, da equivalência, dos
apoios do corpo, da energia. (p.11) , e a partir destes princípio o ator acessa
nele mesmo um motor de criação de ações físicas as quais constituirão
partitura física das ações de personagens. Para tanto, como afirma Martins
(2005, p11). As ações corpóreo-vocais-verbais são psico-físicas por
envolverem os motivos e justificativas interiores das intenções da
personagem.

Estas reflexões possibilitam e sustentam o pensamento sobre a arte


do ator ser uma arte de movimento corpóreo-vocal, De tal forma que os
requisitos físicos devem estar agregados ao exercício das dimensões
mental, energética e expressiva do ator, em sua totalidade. (BARBA, Apud
MARTINS, 2010, p)

Trazendo então para o teatro de rua, a que interessa este trabalho


corpóreo-vocal e como ele poderia auxiliar na questão da emissão e saúde
vocal?

Barba nos fala do corpo cotidiano que carrega um amontoado de


tensões, cargas que se sobrepõe ao nosso corpo e afeta a forma como
somos e existimos.
Em minha prática com o canto lírico, uma das primeiras observações
feitas é acerca da respiração e relaxamento dos músculos da região do
pescoço e ombros, relaxamento da laringe com exercícios e alongamentos,
estes, que servem de base primeira para um trabalho vocal, uma vez que as
tensões do corpo influem na emissão vocal do indivíduo. O relaxamento,
alongamento logo surte efeito e faz surgir uma voz mais presente, limpa,
fluída, mais preparada para o estudo que trabalhará o alcance de notas tanto
mais graves quanto agudas e que em uma má orientação, em um estudo
não adequado poderá causar uma série de complicações vocais, desde a
calos, fendas, nódulos, pólipos.

Em minha experiência com teatro, quando experimentei no processo


da disciplina Interpretação II com a professora Me. Tissiana Carvalhedo,
trabalhos de exaustão, advindos do trabalho energético do grupo Lume
Teatro (SP) fundado por Luís Otávio Burnier que fez grandes pesquisas
acerca do trabalho energético do ator, sentia em mim uma melhor emissão
vocal, um destensionamento do corpo que fazia cair por terra bloqueios e
dificuldades que sentia de alcances vocais por excesso de tensão corporal.
Desde então entendi que um corpo aquecido que tivesse experiênciado um
trabalho intenso de grande expressividade e energização e pesquisa
corporal – tal como na disciplina - seria um corpo com uma voz mais límpida,
fluida e preparada para o estudo da voz.

Tempos depois me deparo com o teatro de rua, tema o qual tem me


atravessado e para o qual pretendi utilizar estes dois universos a afim de
pensar uma problemática que seria a do trabalho vocal do ator de rua.

A rua, este lugar polifônico em sua natureza, ruidosa e sempre cheia


de interferências, leva ao ator automaticamente a se render a um esforço
vocal muito maior do que no palco à italiana, este que além de estar no
edifício teatral separado do povo e as interferências da cidade, é projetado
acusticamente para uma melhor captação da voz.

Nesta pesquisa realizada por Goulart e Villanova, intitulada “Atores


profissionais do teatro: aspectos ambientais e sócio-ocupacionais da voz”,
eles realizam uma pesquisa qualitativa a partir de observações e entrevistas
com um grupo de atores, e apesar de não explicitar o teatro de rua, traz uma
informação que contribui para a sustentação da problemática da rua em
relação à voz:

Os atores referiram não ter dificuldade de projeção vocal quando


utilizam palco italiano. Este aspecto merece destaque, uma vez a
maior parte dos entrevistados concorda que o tipo de palco exerce
influência sobre a voz do ator. O palco italiano é o tipo de palco
característico dos teatros europeus existentes desde o século XVII.
Trata-se do palco retangular, em que a relação entre atores e
espectadores é sempre frontal e oferece condições de visibilidade e
acústica o mais próximo possível da perfeição [...] Já a arena,
fundada por jovens formados pela primeira turma da Escola de Arte
Dramática (EAD) de São Paulo, teve esta denominação devido à
escolha do palco(17). A arena existe desde o século XX e pode ser
circular, com o público ocupando toda a volta em torno do palco, ou
retangular, com o público acomodado em três ou quatro de seus
lados(16). Ao utilizar a voz profissionalmente os atores competem
com ruídos ambientais e com isso, tendem a elevar a intensidade
vocal e apresentar maior esforço à fonação(3,13,22). (GOULART,
VILLANOVA, 2010, p.275).

Dois aspectos desse texto apesar de não falar explicitamente, fazem


alusão aos fenômeno do teatro de rua: A roda, a circunferência que se faz no
acontecimento espetacular de rua, e os ruídos, interferências, causados pela
polifonia da cidade. Sobre essa sinfonia que existe na rua, Alexandre Matte
nos fala dentro de um olhar poético sobre a grande sinfonia de ruídos da
cidade:

A rua nos ensurdece por sua polifônica, polissêmica e


insurgente profusão de ruídos: de pregações e de pregoeiros,
de cantos ensaiados e improvisados: tantas vezes bêbados,
das sirenes e de patrulheiros, de assovios e de cancioneiros,
de repentes e de rompantes: individuais e coletivos...A cidade
é constituída por incontável número de coros. Em qualquer
cidade – e por mais desatentos que sejam os cidadãos a seus
tanto obstáculos – há nas artérias pulsantes que se
caracterizam em caminhos de deambulação sinfonias
diversas, das mais simples às mais sofisticadas. Novos ouvem
melhor que os velhos, cães ouvem melhor que os jovens,
artistas de música tendem a ouvir mais intensamente que os
cães...Nas grandes cidades, nas megalópoles, velhos, jovens
cães e artistas, todos indistintamente – a partir de diferentes
percepções – ouvem uma grande e dissonante sinfonia.
(MATTE, 2011, p.141)
Dentro destra profusão de ruídos o ator dos espaços urbanos adentra
um lugar não cômodo como um palco à italiana e que exigirá do ator um
intenso trabalho vocal para que dentro da prática, este possa não acabar
alterações vocais que possam a vir afetar totalmente o resultado de seus
trabalhos na rua. Embora, apesar de não ter trabalhos escritos sobre
caminhos corpo-vocais focalizando o trabalho do artista de rua - e aqui
coloco não só atores, mas cantores, cancioneiros, poetas declamadores de
rua, todos aqueles que usem os espaços urbanos como fundo para seus
trabalhos – há muitos trabalhos tantos dos clássicos autores como
contemporâneos que trabalharam a voz não como um instrumento à parte
do corpo, mas como o próprio corpo. O corpo como uma grande caixa de
ressonância que precisa de um treinamento de alinhamento de postura, de
desbloqueio de tensões, consciência das sensações físicas, da respiração
adequada, de trabalhos de aquecimento para um resultado tanto de
presença cênica quanto de voz, Segundo Glorinha Beuttenmüller, (Apud,
BENTO e BRITO, 2009, p.2) o “corpo é o controle remoto da voz” (1995).,

Neste artigo Corpo e voz uma preparação integrada, são levantada


questões e análises sobre a saúde vocal de atores de escolas de teatro de
bacharelado, na qual a fonoaudióloga Marly Santoro (2000) verificou
alterações vocais e queixas por parte dos alunos após ingressarem nos
cursos de bacharel em teatro. Nos diz.

Essas alterações vocais ou disfonias, expressadas por


rouquidões, são ocasionadas por nódulos ou calos nas
cordas vocais, pólipos, fendas glóticas e
espessamentos. Decorrem geralmente do abuso, do
mau uso vocal e do desconhecimento dos fatores que
desencadeiam os problemas vocais, como tensão
excessiva na laringe e incoordenação fono-respiratória.
É necessário instrumentalizar os alunos através de um
trabalho de conscientização da importância do apoio no
diafragma para o uso da voz comgrande intensidade ou
durante o esforço corporal. (BRITO, 2000, p.2)

O corpo precisa ser instrumentalizado corpóreo-vocalmente para que


os atores venham a não repetir movimentos sem o cuidado vocal aliado,
como em cenas em exijam força ao mesmo tempo em que se fala e que tais
movimentos em não conformidade com uma postura e consciência vocal
adequadas, pode chegar numa alteração vocal como disfonias, calos,
nódulos, pólipos vocais. Logo, se já no teatro não urbano já nos deparamos
com problemas de alterações vocais, falta de conhecimento e preparo na
área técnica da voz aliada a um trabalho corpóreo, no teatro de rua, por sua,
como bem diz Matte(2011) , “profusão de ruídos”, o ator de rua carece
grandemente de encontrar esse preparo a fim de potencializar seu trabalho
na rua, a fim de amplificar suas caixas de ressonância, de obter um cuidado
vocal que não desconsidere o trabalho corpóreo e teatral, mas que caminhe
junto.

Esta pesquisa pretende apoiar-se sobre tais estudos que


interelacionam o corpo e voz como dois agentes que trabalham
indissoluvelmente ligados, trazendo para o âmbito da rua, a fim de colaborar
com a pesquisa nessa área, uma vez que nada se tem relatado acerca da
voz no teatro de rua com produções acadêmicas voltadas para a referente
temática.

REFERENCIAL TEÓRICO:

BENTO, Maria Enamar Ramo Neherer, BRITO, Marly Santoro de, : Corpo e
voz, uma preparação integrada. In: Dossiê: Teatro e Pedagogia, revista: O Pecevejo
online, RJ, UNIRIO, 1.2 2009

Bibliografia: MARTINS, Janaina Trasel. Integração corpo-voz na


arte do ator: considerações a partir de Eugenio
Barba. In: GUBERFAIN, Jane. A voz em Cena. RJ: Revinter, 2005.

GOULART, Bárbara Niega de Garcia, VILLANOVA, Juliana Richinitti,


Atores profissionais de teatro: aspectos ambientais e sócio-
ocupacionais do uso da voz, J Soc Bras Fonoaudiol. 2011;23(3):271-6

MATTE, Alexandre. Tantos acontecimentos narrativos tomando a rua


como uma musa inspiradora...para quem a rua é a musa? Quem é a musa
das ruas? In: Seminário Nacional de Dramaturgia para Teatro de Rua –
Caderno 1 – 011. Publicação Núcleo Pavanelli. São Paulo: UNESP, 2011

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