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PERFORMANCE SE ENSINA?

DOES PERFORMANCE TEACHES?

¿PERFORMANCE SE ENSEÑA?
Mara Lucia Leal
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Mara Lucia Leal é atriz formada pela ECA-USP. Entre 2003-2005


desenvolveu pesquisa de mestrado sobre o diretor e dramaturgo George
Tabori no IA-UNICAMP. Em 2011 finalizou pesquisa de doutorado no
PPGAC-UFBA intitulada Memória e(m) Performance: material
autobiográfico na composição da cena. É professora do Curso de Teatro e
do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal de
V.1, N.1, DEZ (2012)

Uberlândia (UFU). Textos publicados: “George Tabori: Como se pode


repetir o que é único?” In: Teatro: ensino, teoria e prática. Volume 2 ed.,
Uberlândia: EDUFU, 2011, v.2, p. 113-123. “Baba Antropofágica: ritual e
experiência do corpo coletivo” (co-autoria com Dirce Helena Carvalho).
In: Brondani; Leite; Telles. Teatro – Máscara – Ritual. Campinas; SP:
Editora Alínea, 2012, p. 243-260.
E-mail: lealmara@hotmail.com
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Mara Lucia Leal

PERFORMANCE SE ENSINA?

DOES PERFORMANCE TEACHES?

¿PERFORMANCE SE ENSEÑA?

Resumo: neste texto apresento o percurso das atividades realizadas com alunos do Curso de Teatro da
Universidade Federal de Uberlândia (UFU), durante a disciplina Interpretação/Atuação V, no primeiro
semestre de 2010. O foco da disciplina foi o cruzamento da linguagem da performance com a cena
teatral contemporânea e suas relações com autobiografia e memória. A metodologia utilizada baseou-
se em exemplos da arte contemporânea (incluindo-se as várias linguagens artísticas) que trabalham
com material autobiográfico para a composição da cena, teoria da performance e exercícios de
percepção e memória como estímulo para o processo criativo dos alunos. A partir dessa imersão
teórico-prática, cada aluno desenvolveu um programa de performance, realizada ao longo do
semestre. O objetivo da disciplina foi refletir sobre a importância desses procedimentos e teorias para a
formação do artista cênico. PALAVRAS-CHAVE: Autobiografia. Memória. Performance.

Abstract: in this paper I present a trajectory of activities carried out with students from the Theatre
Course of the Universidade Federal de Uberlândia (UFU), during a subject called Interpretation /
Performance V, first semester of 2010. The focus of the course was crossing the language of
performance with the contemporary theater scene and its relationship with memory and
autobiography. The methodology used was based on examples of contemporary art (including several
artistic languages??) working with autobiographical material for composition, performance theory and
exercises in perception and memory as a stimulus to the creative process of the students. From this
immersion of theory and practice, each student developed a performance program, held throughout the
semester. The aim of the course was to reflect on the importance of these procedures and theories for
the formation of the scenic artist. KEY-WORDS: Autobiography. Memory. Performance.

O processo com os alunos é parte de uma pesquisa maior sobre como a cena
contemporânea tem acionado a memória pessoal e coletiva para a criação artística1. A
memória é aqui pensada em sua relação estreita com experiência, autobiografia e
criação na atualidade, por isso, direcionei meu olhar para artistas que trabalham com a
memória pessoal como procedimento artístico. Durante a pesquisa de campo para o
doutorado, comecei a me questionar por que, ao s e trabalhar com material

1 - Este texto, com modificações, faz parte do terceiro capítulo da tese de doutorado “Memória e(m) Performance: material
autobiográfico na composição da cena”, defendida no PPGAC/UFBA, em 2011. Também está em fase de publicação outro
artigo sobre esse processo no livro “Pedagogias do Teatro: experiências contemporâneas”, organizado por Narciso Telles.
A pergunta-título é uma paráfrase do título do artigo de Josette Feral (2004) “La actuacion, ¿se enseña?”.
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autobiográfico, é frequente virem à tona memórias relacionadas às construções de


identidades, principalmente as construções de gênero, raça e sexualidades. Ao re-
encenar esses temas, tem-se a possibilidade de se colocar em questão mitos e
estereótipos compartilhados através de nossa memória coletiva. Assim, vejo o trabalho
criativo, a partir da memória pessoal, como um procedimento que colabora para outras
possibilidades de escrituras cênicas que tentam criar contra-discursos à lógica
dominante.
Escolhi a linguagem da performance como meio para realizar as atividades com
os alunos, porque acredito que pelo seu caráter híbrido, libertário e crítico ela poderia
colaborar para se trilhar caminhos menos utilitários e mais autorreflexivos sobre o fazer
artístico. Partindo desses pressupostos, desenvolvi um programa para a disciplina, que
teria como ponto de partida a própria experiência dos alunos, colaborando assim para se
descobrir potencialidades a partir do que se é, do que se carrega em seu corpo-memória,
da sua relação com o mundo, pensando a sala de aula como um espaço de reflexão e de
V.1, N.1, DEZ (2012)

criação sobre arte.


Com esse processo queria ir à contramão a ideia de que as disciplinas de
interpretação são espaços apenas para adquirir habilidades técnicas: ao invés de
apresentar técnicas ou procedimentos como ferramentas para a criação do ator, queria
fazê-los pensar que o teatro que fazemos deve ser aquele que queremos que ele seja e
não algo dado por uma tradição. A tradição deve ser nossa conselheira, mas aquela que
nos aconselha a trilhar novos caminhos a partir do conhecido e não a permanecer no
mesmo lugar.
Como queria que eles entrassem em contato com a linguagem da performance
aliando experiência pessoal e reflexão sobre performances de outros artistas, dividi os

1 - Karen Finley tem criado, desde os anos 1970, solos autobiográficos que põem em questão os limites entre o pessoal e o
público, entre realidade e ficção. Alguns de seus trabalhos já foram considerados imorais ou pornográficos por expor
questões sexuais consideradas tabus, como perversões e violências sexuais. Peggy Shaw é fundadora do grupo teatral
lésbico Splitt Britches, que atua desde 1981 dentro de um contexto feminista sobre comunidades marginais e queers. Ela
cria uma personagem butch-femme, um disfarce fora e dentro do palco que discute a essencialização dos papéis sociais,
teatrais e das narrativas sobre sexualidades. Penny Arcade apresenta em seus solos o mundo underground da cidade de
Nova Iorque do qual faz parte e de como a sociedade capitalista vem “limpando” esses lugares considerados submundos.
Segundo a artista, como Sherazade, ela conta histórias para sobreviver. (Ver BERNSTEIN, 2001).
1- As citações das alunas são partes de seus diários de bordo, relatórios e programas das performances, material autorizado
por elas para divulgação da pesquisa. Direção de Gaspar Noé. França (2002). Contado de trás para frente, o filme narra a
busca por vingança de Marcus e Pierre, depois que Alex (Monica Bellucci), namorada de Marcus, é estuprada
violentamente. Considerado fenômeno do funk carioca do século XXI, a primeira mulher fruta foi Andressa Soares, a
Mulher Melancia, a partir do sucesso como dançarina da dança do Créu, composição do funkeiro MC Créu, dança e letra de
alta conotação sexual. A partir de seu sucesso solo, incluindo capas de revistas masculinas, várias mulheres aderiram à
associação de seu corpo com frutas da estação, numa metáfora bem direta do corpo feminino feito para a degustação
masculina. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Andressa_Soares> e <>. Acesso em: 25 jan. 2011.
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dois encontros semanais de forma que em um se trabalhava os exercícios de percepção


e memória e no outro debatíamos sobre um texto previamente lido, associado a material
audiovisual sobre as performances ou espetáculos comentados.
A escolha das referências teóricas e audiovisuais para a disciplina privilegiou
algumas frentes: primeiro dar um panorama da arte da performance com o objetivo de
evidenciar a grande diversidade de propostas e pensamentos sobre performance.
Depois, apresentar trabalhos de artistas que focam suas pesquisas em narrativas
pessoais e autobiográficas.
Privilegiei, na escolha dos textos, pesquisadores como Agra (2008), Fabião
(2009), Medeiros (2005) e Villar (2003), artistas-docentes que pensam a arte da
performance dentro de cursos universitários brasileiros. O primeiro texto escolhido
para debate em sala de aula, “Performance e teatro: poéticas e políticas da cena
contemporânea”, da performer e professora Eleonora Fabião (2009), descreve várias
performances para depois elencar, a partir dessas experiências, questões ou “tendências
dramatúrgicas” que surgem das escolhas temáticas e de procedimentos. Ela nomeia as
preparações das performances de “programas”, termo apropriado por mim para a
elaboração das performances dos alunos. Esses programas são os roteiros criados pelos
artistas que serão postos em ação durante a performance. Esse ponto é muito
importante, pois há, no senso comum, a ideia de que performance seria algo
improvisado, mas, como diz Fabião (2009, p. 63), “o performer não improvisa uma
idéia: ele cria um programa e programa-se para realizá-lo”. Outra questão levantada por
Fabião é sobre a importância da linguagem da performance para os cursos de teatro.
Como essa disciplina é oferecida para alunos de teatro queria, logo de início, fazê-los
pensar em como a cena teatral contemporânea tem dialogado com a linguagem da
performance e sua importância para um estudante de teatro.
Aliado ao material textual, os alunos assistiram a vídeos de performances de
artistas oriundos de diversas áreas e tendências como Coco Fusco, Corpos
Informáticos, Luiz de Abreu, Marina Abramovic, entre outros. Num segundo momento
começou-se a relacionar essas experiências com as do teatro contemporâneo.
Em paralelo às discussões sobre os textos, as performances e espetáculos
assistidos durante o semestre, realizei como os alunos exercícios de percepção e de
memória sensorial para que o corpo-memória deixasse vir à tona os desejos escondidos
e/ou adormecidos, buscando ir além dos condicionamentos e padrões fixos, num
processo de autopesquisa. Não perdendo de vista este ponto, meu interesse com esses
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exercícios era de que colaborassem para que os alunos religassem as experiências do


aqui-agora com suas memórias significativas, para que eles estivessem disponíveis a se
abrirem aos temas autobiográficos e para trazerem para o grupo o que os afetava
naquele momento, pois como diz Larrosa (2008, p. 187), queria que fossem sujeitos da
experiência, “um sujeito ex-posto, ou seja, receptivo, aberto, sensível e vulnerável. [...]
um sujeito que não constrói objetos, mas que se deixa afetar por acontecimentos”. Era a
partir desses acontecimentos, presentes e passados, que deixam marcas nos corpos, que
gostaria que se lançassem no processo criativo.
A escolha dos exercícios de percepção e memória para o processo criativo teve
como foco serem detonadores de experiência e presença, pois acredito que só quando
estamos conectados com o aqui-agora, com as sensações e vivências do presente é que
se abrem as portas para as experiências passadas, através de associações e imaginações.
Pensava também que, ao conectar as memórias individuais com as percepções do aqui-
agora, de si e do outro, potencializaria o estado de presença e a possibilidade de emergir
V.1, N.1, DEZ (2012)

questões significativas para cada um.


Antes de iniciar os exercícios, em roda, conduzia uma sequência de alongamento
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e aquecimento para conectá-los com o próprio corpo e com o presente. Ao final de cada
exercício ou atividade, pedia que escrevessem as impressões no diário, tanto de suas
ações como a dos colegas: o que viu, sentiu, imaginou, lembrou ou associou durante o
exercício. Além dos exercícios de percepção e memória, os alunos também
desenvolveram composições (imagem abaixo) a partir dos exercícios. Como forma
para se preparar para a performance, cada um poderia conduzir as atividades práticas e
apresentarem seus programas ou as dificuldades em realizá-los em forma de narrativas.
Com essas atividades tentei criar um tripé, no qual a junção entre eles, as
performances dos artistas analisados e as reflexões sobre esses trabalhos seriam o
estopim para os programas das performances, unindo tanto questões ligadas aos
procedimentos como aos seus temas.
Essa primeira etapa foi concentrada no primeiro mês e meio de aula e ao seu final
os alunos apresentaram para o grupo seus programas de performances. A maioria optou
por performances individuais, mas cada programa foi discutido com o grupo para que
os colegas pudessem colaborar tanto no desenvolvimento da ideia quanto em sua
realização. A segunda etapa compreendeu o período de preparação e apresentações e foi
até o final do semestre. Como tínhamos dois encontros semanais, em um era discutido o
programa da performance e no outro ele era colocado em ação. No encontro posterior,
debatia-se o que tinha acontecido e já se planejava a próxima ação.
Com a escolha dos programas, cada aluno foi descobrindo quais eram as
necessidades acerca do preparo psicofísico e da produção técnica que cada performance
exigia. Assim, a sala de aula se transformou no espaço tanto para discussão da
viabilidade material de cada performance como da preparação exigida de cada
performer. No fim do semestre realizamos uma ação coletiva, um momento em que
muitos reelaboraram o que haviam apresentado ao longo do semestre.
Muitas performances colocaram em evidência a discussão sobre o que é, hoje,
considerado arte através da ritualização do cotidiano, da ampliação dos limites
psicofísicos do performer, da utilização de espaços urbanos, da ampliação da presença e
da colaboração do espectador para o desenvolvimento da performance. O viés
autobiográfico também colaborou para que vários alunos vissem outras possibilidades
de escrituras cênicas e percebessem que o ator com suas subjetividades é também autor
do processo criativo.
Apesar das performances realizadas terem caráter muito diferenciado entre si, é
possível elencar algumas experimentações recorrentes: busca da horizontalidade entre
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artista e público; compartilhamento de experiências e vivências; o uso de site specific;
intervenção no espaço urbano/público; interdisciplinaridade artística e novas
tecnologias. Dos temas que surgiram, os mais relevantes foram os ligados à família e à
sexualidade, como questão de gênero, homofobia, violência doméstica, pedofilia e a
opressão social.
Algumas performances, mesmo sem tocar diretamente num tema
autobiográfico, tiveram seu estopim nos exercícios de percepção e memória e diziam
respeito a situações que, mesmo que não tivessem vivenciado, tinham relação direta
com sua experiência cotidiana.

Gênero e Sexualidades: memórias silenciadas


Como não seria possível aqui discorrer sobre todas as performances realizadas,
descrevo, a seguir, ações que tiveram como impulso inicial questões de gênero e
sexualidade. Um texto discutido em sala de aula que, acredito, ajudou na reflexão foi “A
performance solo e o sujeito autobiográfico”, de Ana Bernstein (2001). Nele, a autora
apresenta o trabalho de três performers norte-americanas (Karen Finley, Peggy Shaw e
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Penny Arcade)2 que constroem seus trabalhos a partir de narrativas autobiográficas.


Como salienta Bernstein (2001, p. 92), na medida em que artistas passam a usar seu
corpo como suporte para seus trabalhos, o “corpo torna-se então o ponto de mediação
entre uma série de relações binárias de oposição, tais como o interior e o exterior, sujeito
e mundo, público e privado, subjetividade e objetividade.” Com isso, a performance
autobiográfica, longe de ser um experimento apenas narcisista ou privado, vem
colaborando para pôr em pauta discussões ligadas às minorias, principalmente no que
diz respeito às sexualidades postas à margem:
A performance solo autobiográfica tem, de fato, desempenhado uma função
crítica na criação de um espaço de discurso para minorias que não se
enquadram na normatividade do discurso ideológico dominante,
[colaborando] para a reivindicação por diversas minorias do papel de agentes
sociais e na criação de uma contra-esfera pública.(BERNSTEIN,2001, p.92).

2 - Karen Finley tem criado, desde os anos 1970, solos autobiográficos que põem em questão os limites entre o pessoal e o
público, entre realidade e ficção. Alguns de seus trabalhos já foram considerados imorais ou pornográficos por expor
questões sexuais consideradas tabus, como perversões e violências sexuais. Peggy Shaw é fundadora do grupo teatral
lésbico Splitt Britches, que atua desde 1981 dentro de um contexto feminista sobre comunidades marginais e queers. Ela
cria uma personagem butch-femme, um disfarce fora e dentro do palco que discute a essencialização dos papéis sociais,
teatrais e das narrativas sobre sexualidades. Penny Arcade apresenta em seus solos o mundo underground da cidade de
Nova Iorque do qual faz parte e de como a sociedade capitalista vem “limpando” esses lugares considerados submundos.
Segundo a artista, como Sherazade, ela conta histórias para sobreviver. (Ver BERNSTEIN, 2001).
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Não é por acaso que os três exemplos citados por ela são mulheres trazendo,
muitas vezes, experiências de violência sexual ou de orientação homossexual. O tema
da sexualidade veio à tona em diferentes momentos da disciplina. Acredito que os
exercícios realizados em sala colaboraram para aflorar memórias ligadas ao universo
familiar e infantil e, para algumas alunas, surgiram memórias de violência sexual. Duas
delas se interessaram em desenvolver suas performances a partir destes temas.
Entretanto, o tema da violência sexual não foi tratado apenas em sua forma física, mas
também como as próprias mulheres entram na lógica do discurso dominante
transformando seus corpos em objetos de consumo ou de trabalho doméstico. Tirar a
mordaça e falar sobre esses temas, muitas vezes considerados tabus, foi a tônica desses
trabalhos.
Durante o exercício de narrativas, Alba de Freitas contou a lembrança de
violência sexual que sofreu na infância e que seria tema de uma de suas performances.
Apesar de não ter participado até o final da disciplina, ela foi responsável por
intensificar a discussão sobre violência sexual em sua turma. Em um encontro sobre o
programa de sua performance, todas as mulheres presentes, inclusive eu, relataram
alguma situação de violência sexual que tinham vivido, deixando claro que ainda
vigora a lei do silêncio e, consequentemente, a tentativa de apagamento dessas
memórias.
Quando eu tinha por volta de cinco a seis anos eu saí de casa com meu irmão
mais velho para ir a uma padaria que ficava lá perto de casa. No caminho um
homem, que na minha lembrança não era velho, devia ter uns 26 anos,
abordou nós dois com uma história que ele tinha umas bonecas e uns
brinquedos em algum lugar, que eu não me lembro bem se era na casa dele,
sei lá. Mas ele disse que daria esses brinquedos para a gente, mas que eu,
somente eu, a menina, poderia ir com ele buscar. Eu não me recordo bem
desse momento, mas no final das contas eu fui com esse rapaz e ele me levou
para o meio do mato. [...] Eu só lembro dele tirando a minha roupa.
(FREITAS, 2010)3.

Alba desenvolveu três programas de performances que seriam realizados


sobre esse tema. Em um deles, usaria um áudio narrando a violência que sofreu e uma

3 - As citações das alunas são partes de seus diários de bordo, relatórios e programas das performances, material autorizado
por elas para divulgação da pesquisa.
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mixagem com outro áudio com dados de pesquisa sobre a situação da violência sexual
no Brasil, trechos do código penal sobre estupro e informações sobre o disque
denúncia.
EXPERIMENTO 01: Áudio 01 e Áudio Mix intercalados tocando em todo o
ambiente (praça, de preferência). Performer vestida de criança (vestido
branco, como os de batizado, sapatilhas, meias e o cabelo amarrado “maria-
chiquinha”) com máscara branca, sem volume de feições. As partes do corpo
que não são tampadas pela roupa, estão pintadas com urucum, ou qualquer
produto que possa colorir o corpo mas posso sujar facilmente qualquer coisa
em que encoste. AÇÃO: Andar pelo ambiente fazendo brincadeiras
levemente sexualizadas (sentar no colo para brincar de cavalinho, sentar para
brincar de pernas abertas mostrando a calçinha, etc.) somente com os
homens, procurando sempre encostar neles e deixá-los sujos com o produto
que esta no corpo. (FREITAS, 2010)
V.1, N.1, DEZ (2012)

No próprio áudio, Alba de Freitas já esclarece seu interesse com a ação. Depois
de narrar a agressão que sofreu quando criança, ela fala do silêncio que impera sobre
esses abusos: “Na minha casa ninguém nunca falou sobre isso. Eu não tenho coragem
de perguntar nada sobre o assunto para os meus pais.” Para ela, essa lei do silêncio –
fruto da hipocrisia social sobre o tema sexual – não só culpabiliza a vítima – em sua
maioria crianças, adolescentes e mulheres – como colabora para que os agressores
fiquem na impunidade: “Não falamos abertamente nem sinceramente sobre sexo e as
violências ficam encobertas em todos esses preconceitos e tabus.” (FREITAS, 2010).
“Um dia saindo da faculdade às 17h, fui abordada por um homem armado, ele me
arrastou para um terreno vago. Então...” A instalação Você sente prazer com isso?, de
Thábatta Ferreira foi montada no banheiro do Camarim 19. Em seus azulejos, ela
escreveu trechos de narrativas de violência sexual sofridas por mulheres em
Uberlândia, algumas, inclusive, no entorno da universidade, que foram recolhidas por
ela para a performance. Sobre esse mesmo azulejo, era projetada a cena de estupro do
filme Irreversível4, que se repetia infinitamente. Todo o espaço do camarim era
iluminado apenas pela luz do projetor e o público tinha que se espremer para ver e ouvir
a cena pela porta do banheiro, como o voyeur de um crime que se repete infinitamente.

4 - Direção de Gaspar Noé. França (2002). Contado de trás para frente, o filme narra a busca por vingança de Marcus e
Pierre, depois que Alex (Monica Bellucci), namorada de Marcus, é estuprada violentamente.
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A escolha de Thábatta não surgiu de uma experiência pessoal ligada ao tema, mas
do medo de que essa violência, sofrida por outras mulheres, viesse a acontecer com ela
ao sair da universidade, fato que a impedia de circular no entorno da UFU depois de
determinado horário. Durante a preparação para a performance, ela tentou recolher, por
escrito, as narrativas de violência que já tinha ouvido oralmente, às vezes por terceiros.
Ao fazer isso, ela se deu conta de que impera a lei do silêncio, na qual as vítimas,
constrangidas ou traumatizadas, negam-se a narrar essas experiências. Assim, as
narrativas escritas por Thábatta foram reelaboradas, a partir das lembranças das
histórias tantas vezes recontadas e de outras narrativas que ela recolheu em jornais ou
na internet. Assim, não se trata de narrativas autobiográficas, mas de como a performer,
partindo da memória coletiva, as reestrutura e dá novo significado a essas narrativas.
Além das narrativas, Thábatta decidiu incluir imagens e sons da cena do estupro do
filme Irreversível porque, apesar de ficcionais, sempre lhe causaram grande incômodo.
Desta forma, sua instalação discute tanto o silêncio imposto socialmente às vítimas
como também o silêncio de quem vê e nada faz, situação do filme e dos espectadores
que são voyeurs de uma violência que se repete indefinidamente em algum lugar bem
perto. Apesar da dificuldade que a aluna teve em se colocar biograficamente e também
fisicamente na ação, em suas reflexões relata a importância do processo para ela:
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Faço grandes relações de minhas escolhas para essa disciplina com os textos
lidos e discutidos em aula principalmente os que tratavam de performances
autobiográficas, que apesar de minhas escolhas (violência sexual), não ter
acontecido comigo, o tema esta sempre presente em minha vida, seja com
amigos, conhecidos, família, etc., [...] fico feliz em ter conseguido realizar
minha performance só e com todo o grupo [durante a performance coletiva
final], que foi excelente a meu ver, pois apesar de ter me angustiado muito ao
fazê-la, fiquei muito feliz depois que queimei todos os relatos que tinha e
acabei com tudo aquilo que me afligia naquele momento, sinto como se
tivesse me libertado de todo um sofrimento que me angustiou todo o
semestre. (FERREIRA, 2010)
V.1, N.1, DEZ (2012)

Na imagem acima, vê-se o corpo de Thábatta Ferreira como suporte para a


projeção da cena do estupro durante a performance coletiva. Como a sala de encenação
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é muito grande e as ações aconteciam em diferentes pontos, só as pessoas mais
próximas de Thábatta viram a projeção, mas o som dos gritos e pedidos de socorro
ecoou, em vão, pela sala.
Luciene Andrade, seguindo no tema da discussão de gênero e sexualidade, quis
falar de outro tipo de violência contra a mulher, que através da objetificação de seu
corpo, pode ser alvo de diferentes tipos de violência. Partindo desta ideia, ela escolheu o
tema da “frutalização” da mulher feita por elas mesmas e difundido pelos meios de
comunicação de massa para a performance Não reaja. Já que existe Mulher Melancia5,

5 - Considerado fenômeno do funk carioca do século XXI, a primeira mulher fruta foi Andressa Soares, a Mulher
Melancia, a partir do sucesso como dançarina da dança do Créu, composição do funkeiro MC Créu, dança e letra de alta
conotação sexual. A partir de seu sucesso solo, incluindo capas de revistas masculinas, várias mulheres aderiram à
associação de seu corpo com frutas da estação, numa metáfora bem direta do corpo feminino feito para a degustação
masculina. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Andressa_Soares> e <>. Acesso em: 25 jan. 2011.
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Mulher Melão, Mulher Jaca, entre outras, Luciene se transformou na Mulher Salada de
Fruta, usando uma saia e um bustiê feitos de diversas frutas, com uma frase imperativa
na barriga e nas costas: “desfrute-me” e uma coroa de abacaxi na cabeça, numa
referência a nossa primeira mulher fruta: Carmen Miranda. Ela pensou sua
performance como intervenção urbana, mas ainda receosa das reações, resolveu fazer
um primeiro experimento dentro do campus. Caminhou como Mulher Salada de Fruta
pelo bloco do Curso de Teatro, acompanhada pelos colegas de disciplina, depois
circulou pelas ruas do campus, sendo observada por vários funcionários e estudantes,
que comeram seu figurino.
Apesar de Luciene não ter partido de um tema autobiográfico, considera que os
exercícios de sala de aula foram importantes para sua escolha:

[...] foi essencial recorrer ao cotidiano e ao plano de memórias do percurso de


vida de cada um dos propositores – no nível individual – e, analisar as
possibilidades de diálogo desta ação no macrocosmo. A experimentação de
V.1, N.1, DEZ (2012)

ações cotidianas – em um nível de troca – foi um dos exercícios que exerceu


maior impacto na escolha do tema de minha performance, visto que durante o
exercício vieram imagens, sensações e memórias ligadas ao universo
feminino que dialogam com as desenfreadas apelações pela indústria da
beleza e da objetificação do corpo. (ANDRADE, 2010)

Entretanto, a ação não atingiu o objetivo de Luciene de Andrade, pois sua


irreverente vestimenta frutal criou mais a vontade de interagir com ela, des-frutando-a,
do que estabelecer um diálogo crítico com a imagem da mulher comestível. Assim
como Carmem Miranda, Luciene usa literalmente frutas sobre seu corpo, elas são o
figurino simbolizando o tropicalismo brasileiro. No caso das mulheres fruta, referência
de Luciene para sua ação, elas não usam frutas sobre seus corpos, mas associam partes
deles, as sexuais, com frutas tropicais, tornando-se assim, também literalmente,
mulheres comestíveis. Essas mulheres se apropriam do discurso dominante criando
uma auto objetificação para, ao invés de questionar, entrar na lógica da sociedade, na
qual tudo pode se transformar em objeto de consumo. Luciene pensou que só o fato de
vestir a roupa fruta já criaria um contra-discurso, mas ela só o reforçou de forma lúdica.
Como a maioria das pessoas que interagiram com a Mulher Salada de Fruta foram os
próprios alunos do curso, houve uma facilidade para tudo virar uma grande brincadeira
de desfrute.
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A partir desse experimento e das reações do público, Luciene utilizou os mesmos
materiais (frutas) sobre seu corpo, só que intensificando a figura da mulher como objeto
para a reelaboração da performance durante o evento de finalização da disciplina:

Esta experimentação me levou à reflexão de quais foram as relações


estabelecidas entre a ação escolhida e o tema da performance. Percebi que a
ação caminhou para uma evidência do corpo que reforçava o discurso de
materialização e consumo, e com as fragilidades da ação experimental, não
foi colocado um contra-discurso que se pretendia. (ANDRADE, 2010)
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Para realizar a ação final, foi essencial ter o contato primário com a
linguagem. Neste contexto, a ação primeira teria sido válida, por possibilitar
a experimentação e identificar os possíveis discursos que se estabelecem para
fortalecerem a ação. Com os processos de outros participantes da disciplina
foi possível perceber como acontecia o desdobramento da ação e a construção
do discurso sobre o que se apresentava. Deste modo, a ação final caminhou
para um lugar de confronto com a ação inicial, tendo alguns elementos que
dialogam com a imobilidade e perda de identidade, ligados a exposição do
corpo feminino como objeto frutalizado. (ANDRADE, 2010)

Através de sua fala e de como ela reelaborou sua performance, fica claro que
Luciene de Andrade conseguiu criar um elo entre os exercícios de sala de aula, a
performance, sua reflexão e dos participantes, entendendo todo o processo como
momentos de experimentações. Assim, partindo de seus interesses pessoais, ela teve a
possibilidade de transformar sua proposta inicial a partir do confronto consigo mesma e
com o outro.
V.1, N.1, DEZ (2012)

Marcella Prado Ferreira iniciou a performance passadocontemporâneo


buscando água na fonte existente na Praça Tubal Vilela, no centro da cidade de
Uberlândia, em frente ao prédio Espaço Cultural Veredas, onde ela realizou a
performance. Como a casa fica no primeiro andar e a cozinha nos fundos, ela precisou
descer e subir com baldes inúmeras vezes, pois seu objetivo era encher de água um tonel
de metal que ela colocou na cozinha: era o início de seu passadocontemporâneo. Ela
agia de forma determinada, via-se uma urgência e necessidade em realizar aquela
atividade, que acabou contaminando alguns presentes que passaram a ajudá-la naquela
ação absurda.

O quê? Performance artística. Quando? Dia 13/05 às 19h.


Onde? Espaço VEREDAS - Praça Tubal Vilela, 181
Entrada valiosa: sua presença!
Sinopse:
PARA O INTELECTO: Uma questão de gênero? Talvez. A projeção do filme
'Tempos Modernos', de Charles Chaplin, sobre uma ação cotidiana da vida
doméstica, lavar louças, incita a discussão sobre um fazer cíclico e a divisão
de trabalho neste ambiente. Busco me relacionar com as interferências que
podem ocorrer nesse ciclo, aparentemente interminável e (in) divisível,
como antes e ainda agora. Traga sua louça! (PRADO FERREIRA, 2010)
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Com o texto acima, Marcella Prado Ferreira divulgou sua performance por e-
mail. A ação foi realizada três vezes no recém aberto Espaço Cultural Veredas, no qual
havia uma casa abandonada há muito tempo: além de não ter água nem energia elétrica,
tinha parte do teto destruído, muita sujeira e a história de ter sido um prostíbulo no
passado. Três alunas se interessaram em realizar suas performances neste espaço
precário. Priscilla Bello optou pelo quarto conjugado, seu objetivo era desenvolver
improvisações em espaços abandonados; Bruna Bulkol ocupou o banheiro da casa, sua
performance foi simultânea a de Marcella que ocupou a cozinha da casa; ambas
realizaram, de forma distinta, rituais de limpeza. Como os organizadores do espaço
queriam abri-lo para a realização de performances, Marcella fez a sua em três ocasiões:
duas vezes no evento “Noites Performáticas”, realizada durante o Festival Latino-
Americano e depois no horário destinado à disciplina.
Sua motivação para a performance era levar uma ação cotidiana e privada,
“invisível”, para o espaço público e visível, ela queria dar a ver um ciclo doméstico.
Depois de encher o tonel com a água da fonte, iniciou a limpeza da cozinha: no primeiro
dia da performance ela lavou os azulejos que estavam imundos, com a colaboração de
alguns presentes; depois o armário, a pia, o chão e, por fim, os utensílios que ela havia
levado para sua ação: panelas de sua mãe e potes de vidro coletados durante a
preparação da performance. Depois de limpar tudo, começou a encher os potes de vidro
com suas “intimidades”: saliva, lágrima, respiração e mechas de seus cabelos. Fechou
os potes e os jogou dentro do tonel, entrou dentro dele e começou a jogar os potes, que se
estilhaçavam pelo chão da cozinha. Nesse momento, o de maior tensão da ação, o
público que se comprimia pelas paredes começou a se distanciar procurando um lugar
seguro. Depois de tudo limpo e quebrado, Marcella foi embora da cozinha. A ação
durou por volta de duas horas e meia.
Desde a ideia inicial, Marcella queria projetar imagens do filme Tempos
Modernos de Charles Chaplin sobre sua ação, mas, por problemas técnicos, só
conseguiu realizar a performance com as imagens na última apresentação. A
superposição das imagens criou um ambiente difuso, com alternância de claro-escuro e
relações imprevistas: em alguns momentos via-se a personagem do filme observando
Marcella que lava a louça compulsivamente e, em outros, o espaço da cozinha e o corpo
de Marcella se metamorfosearam com as engrenagens da fábrica. A imagem abaixo
ilustra um dos questionamentos de Marcella com a performance: a mulher e a atividade
doméstica transformadas em mais uma engrenagem da sociedade machista e capitalista
que segue num tempo cíclico unindo passado, presente e futuro.
140
V.1, N.1, DEZ (2012)

Em suas reflexões posteriores à performance, Marcella fala da experiência como


um momento de transformação: ao realizar uma ação cotidiana que a oprimia, de forma
intensa, repetitiva e por tanto tempo ela chegou num momento de clímax, de êxtase, no
qual pôde destruir e reconstruir a partir dos cacos que sobraram:
Meu peito dói. Meus pés lampejam. Sou um nada. É estranho. Estou num
estado... de ameba. Esgotada. Estou cheia de energia. Estou ligada. Não
posso dormir ainda. [...] Há um movimento de oposições em mim. Tudo
acontecendo ao mesmo tempo. Simultaneamente. Tudo. Intensidades.
Texturas. Cores. Temperaturas. Sorrisos e lágrimas. Desapego. Dor. Alívio.
Imensidão. Transparência. Sinto-me grande. E invisível. Ultrapassei as
fronteiras do meu corpo. Estou maior que ele. Dissolvida no espaço e perdida
no tempo. [...] Metamorfose. Eu mudei abruptamente. Destruí minha cria
com minha própria vida. Shiii... Você ainda vai ser cacos. Não se preocupe,
não vai sumir. Um salto pro inesperado, numa sequência de ações. As
reverberações fugiram do meu domínio. Elas foram maiores que eu.
Chegaram ao infinito do meu conhecimento. Extrapolaram as expectativas.
Tocaram no desconhecido. [...] Eu não fui só eu. Eu fui tudo em mim. E eles
não ouviram o meu grito. Eu gritei por todos. (PRADO FERREIRA, 2010)
141
A performance para Marcella Prado Ferreira pode ser analisada como um ritual
de passagem, um momento de ruptura com situações do passado, ainda
contemporâneo: situações de opressão ainda vividas por mulheres no ambiente
doméstico. Com seu ritual de limpeza, ela expurga esse fardo de si, mas sabe que ele
ainda permanece.
Woman is the nigger of the world...yes she is
If you don’t believe me take a look to the one you’re with
Woman is the slaves of the slaves
Ah yeah...better screem about it.
John Lennon/ Yoko Ono

Depois que descobri o prazer do risco, perdi o medo. [...] Tempos...


Tempo ontem, tempo hoje. Tempos diferentes num tempo comum.
Tempos comuns num espaço de tempo diferente. Limpar a poeira
acumulada dos dias passados, para dar espaço ao depósito de cacos
hoje. Selecionar os restos que me interessam. Descartar as máscaras
que já não servem. Há tempos os tempos sem tempo. (PRADO
FERREIRA, 2010)
142
Para a reelaboração da performance, foi importante o exercício das narrativas, no
qual Marcella Prado Ferreira experimentou várias formas de se apropriar da memória
das ações realizadas. Ela escreveu trechos de suas reflexões sobre a performance nas
paredes da sala e reatualizou suas ações, incluindo outras ações “femininas” como se
depilar, utilizando panelas e pratos. Escolheu como sonoplastia para sua ação a música
Woman is the nigger of the world, de John Lennon e Yoko Ono, cantada por Cassia
Eller. Depois jogou tudo no tonel, que agora não foi mais utilizado com água, mas com
fogo para transformar memórias e(m) cacos.
Como partir desse corpo-memória condicionado que apenas repete o que foi
aprendido e conseguir incorporar novas formas de estar no mundo? Observando o
percurso desenvolvido pelos alunos e alunas ficou claro que isso só é possível através
de um trabalho psicofísico que reflita criticamente sobre essas memórias corporais. Só
assim é possível incorporar novos padrões de movimento-pensamento.
Nas performances comentadas aqui fica evidente a questão de tornar visível o
que está invisível, de dar voz ao que se silencia. Essas performances não chegam a ter
um caráter de protesto como de artistas que se engajam na luta por direitos civis, mas as
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performers cobram de si mesmas outra forma de se colocar frente a questões que lhe
dizem respeito. Procuraram, através desses experimentos, refletirem sobre qual o papel
que suas ações, artísticas ou não, têm no coletivo.
Quando se tirou a mordaça e se falou de temas como sexismo, homofobia,
opressão familiar e social, muitas vezes vivenciados e silenciados, criou-se ações
liminares, que contribuíram não apenas para o compartilhamento dessas experiências,
mas também para se pensar novas formas de se relacionar com essas questões através da
arte.
Baseando-se na afirmação de Foucault (2002, p.10) de que “o discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por
que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”, pergunto-me se essas
cenas, ao discutirem construções identitárias como gênero e sexualidades existentes em
nossa sociedade, também promovem o apoderamento dessas alunas-artistas de novos
discursos e espaços de poder.
O que nos constitui? Incorporamos construções identitárias como de gênero e
sexo porque são objetos de nossa percepção? Por que foram inscritas em nossos corpos
através das experiências cotidianas? Nossos atos são apenas a repetição dessas
memórias? Acredito que é o olhar crítico sobre essas performances – do cotidiano e da
arte – que abre uma brecha para se sair do círculo vicioso das linguagens
normatizadoras e naturalizadoras.
143
Ao pensar sobre as construções de sexo e gênero, Judith Butler (2008, p. 27; 206)
aponta para duas formas de se entender como o corpo é construído nesses termos:
“meio passivo sobre o qual se inscrevem significados culturais, ou então como
instrumento pelo qual uma vontade de apropriação ou interpretação determina o
significado cultural por ‘si mesmo’”. Nos dois casos, o corpo é mero instrumento ou
meio de significados culturais. Então, ela apresenta outra possibilidade de se entender
essas relações, ao propor que “cultura” e “discurso” enredam o sujeito, mas não o
constituem. Assim, a ação do sujeito não é completamente determinada, abrindo-se
brechas para se criar novas performances, já que “o sujeito culturalmente enredado
negocia suas construções, mesmo quando estas constituem os próprios atributos de sua
própria identidade”.
Desde os anos de 1970 as chamadas “performances de identidade”, que partem
de material autobiográfico, tiveram papel significativo para dar visibilidade à discussão
sobre gênero, sexualidades e diferenças étnico-raciais. A performance, pelo seu caráter
de “comportamento restaurado”, tem a possibilidade de, ao repetir os atos, propor uma
disjunção, pois o ato nunca repete o original. Nesse sentido, a teoria de Butler (2008)
sobre a performance de gênero, mas que influenciou todo um discurso sobre
performances que trabalham com construção identitária ou politicamente engajadas,
colabora para pensar que, a partir da repetição, da citacionalidade, há espaço para a
crítica: “A possibilidade de agenciamento inovador está sempre presente, não baseada
num sujeito preexistente limitado por leis regulatórias, mas no ‘deslize’ inevitável que
surge da repetição reforçada e da citação da performance social.” (CARLSON, 2009, p.
194).
Com essa disciplina pretendi refletir sobre a importância da linguagem da
performance e da memória autobiográfica no processo de formação do artista cênico. E,
com isso, retomo a questão-título: Performance se ensina? Valentín Torrens (2007), ao
organizar um livro sobre Pedagogia da Performance, ajuda a pensar sobre essa questão.
Para ele, a função dos procedimentos propostos seria mais de dinamizar, de colaborar
para que os participantes conseguissem dar forma ao que já era latência em cada um, já
que para ele, a performance não teria como objetivo reformar a arte, pois seu início e fim
é o homem.
Em seu livro, Torrens apresenta programas de cursos universitários e oficinas
sobre performance em diferentes continentes, do norte e do sul. Ao ler os programas dos
cursos, dois fatos chamaram minha atenção: primeiro que o caminho percorrido por
144
mim na disciplina foi muito próximo de alguns citados, o que me faz pensar não em
uma metodologia, mas em procedimentos recorrentes unindo teoria, material
audiovisual e prática que, ao mesmo tempo em que insere o participante nessa
linguagem artística, apresenta exercícios que colaboram para o desenvolvimento de
seu projeto autoral. Cada artista-docente imprimirá um foco, geralmente ligado as suas
pesquisas, mas por ser uma arte corporal, os exercícios físicos são essenciais para a
quebra de padrões fixos, inibições, como indicam BBB Johannes Deimling e Angelika
Fojtuch sobre as atividades em suas oficinas que incluem improvisações e exercícios de
percepção:
Não tente aprender uma técnica, mas sim de superar a timidez, reduzindo inibições,
explorando os limites pessoais, estar pronto para uma nova experiência e percepção do
corpo no espaço e no tempo. O que importa é compreender e utilizar o próprio corpo
como um instrumento. (In TORRENS, 2007, p. 227)

Não penso na revolução, mas vi transformações pessoais serem realizadas nesses


V.1, N.1, DEZ (2012)

processos. Vi contra-discursos às práticas dominantes de controle do corpo, lutas


pessoais contra micropoderes que querem domesticar corpos, seja pela repressão ou
pela estimulação. Trazer para a cena fragmentos autobiográficos de situações de
opressão colaborou para se refletir sobre performances que já naturalizaram esses
mesmos discursos de opressão e controle e pensar novas possibilidades de reescrituras
cênicas.

Referências

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da performance é um fator estratégico para sua pedagogia. Sala Preta. São Paulo, n. 8, p.
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