Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
PERFORMANCE SE ENSINA?
¿PERFORMANCE SE ENSEÑA?
Mara Lucia Leal
124
PERFORMANCE SE ENSINA?
¿PERFORMANCE SE ENSEÑA?
Resumo: neste texto apresento o percurso das atividades realizadas com alunos do Curso de Teatro da
Universidade Federal de Uberlândia (UFU), durante a disciplina Interpretação/Atuação V, no primeiro
semestre de 2010. O foco da disciplina foi o cruzamento da linguagem da performance com a cena
teatral contemporânea e suas relações com autobiografia e memória. A metodologia utilizada baseou-
se em exemplos da arte contemporânea (incluindo-se as várias linguagens artísticas) que trabalham
com material autobiográfico para a composição da cena, teoria da performance e exercícios de
percepção e memória como estímulo para o processo criativo dos alunos. A partir dessa imersão
teórico-prática, cada aluno desenvolveu um programa de performance, realizada ao longo do
semestre. O objetivo da disciplina foi refletir sobre a importância desses procedimentos e teorias para a
formação do artista cênico. PALAVRAS-CHAVE: Autobiografia. Memória. Performance.
Abstract: in this paper I present a trajectory of activities carried out with students from the Theatre
Course of the Universidade Federal de Uberlândia (UFU), during a subject called Interpretation /
Performance V, first semester of 2010. The focus of the course was crossing the language of
performance with the contemporary theater scene and its relationship with memory and
autobiography. The methodology used was based on examples of contemporary art (including several
artistic languages??) working with autobiographical material for composition, performance theory and
exercises in perception and memory as a stimulus to the creative process of the students. From this
immersion of theory and practice, each student developed a performance program, held throughout the
semester. The aim of the course was to reflect on the importance of these procedures and theories for
the formation of the scenic artist. KEY-WORDS: Autobiography. Memory. Performance.
O processo com os alunos é parte de uma pesquisa maior sobre como a cena
contemporânea tem acionado a memória pessoal e coletiva para a criação artística1. A
memória é aqui pensada em sua relação estreita com experiência, autobiografia e
criação na atualidade, por isso, direcionei meu olhar para artistas que trabalham com a
memória pessoal como procedimento artístico. Durante a pesquisa de campo para o
doutorado, comecei a me questionar por que, ao s e trabalhar com material
1 - Este texto, com modificações, faz parte do terceiro capítulo da tese de doutorado “Memória e(m) Performance: material
autobiográfico na composição da cena”, defendida no PPGAC/UFBA, em 2011. Também está em fase de publicação outro
artigo sobre esse processo no livro “Pedagogias do Teatro: experiências contemporâneas”, organizado por Narciso Telles.
A pergunta-título é uma paráfrase do título do artigo de Josette Feral (2004) “La actuacion, ¿se enseña?”.
126
1 - Karen Finley tem criado, desde os anos 1970, solos autobiográficos que põem em questão os limites entre o pessoal e o
público, entre realidade e ficção. Alguns de seus trabalhos já foram considerados imorais ou pornográficos por expor
questões sexuais consideradas tabus, como perversões e violências sexuais. Peggy Shaw é fundadora do grupo teatral
lésbico Splitt Britches, que atua desde 1981 dentro de um contexto feminista sobre comunidades marginais e queers. Ela
cria uma personagem butch-femme, um disfarce fora e dentro do palco que discute a essencialização dos papéis sociais,
teatrais e das narrativas sobre sexualidades. Penny Arcade apresenta em seus solos o mundo underground da cidade de
Nova Iorque do qual faz parte e de como a sociedade capitalista vem “limpando” esses lugares considerados submundos.
Segundo a artista, como Sherazade, ela conta histórias para sobreviver. (Ver BERNSTEIN, 2001).
1- As citações das alunas são partes de seus diários de bordo, relatórios e programas das performances, material autorizado
por elas para divulgação da pesquisa. Direção de Gaspar Noé. França (2002). Contado de trás para frente, o filme narra a
busca por vingança de Marcus e Pierre, depois que Alex (Monica Bellucci), namorada de Marcus, é estuprada
violentamente. Considerado fenômeno do funk carioca do século XXI, a primeira mulher fruta foi Andressa Soares, a
Mulher Melancia, a partir do sucesso como dançarina da dança do Créu, composição do funkeiro MC Créu, dança e letra de
alta conotação sexual. A partir de seu sucesso solo, incluindo capas de revistas masculinas, várias mulheres aderiram à
associação de seu corpo com frutas da estação, numa metáfora bem direta do corpo feminino feito para a degustação
masculina. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Andressa_Soares> e <>. Acesso em: 25 jan. 2011.
127
e aquecimento para conectá-los com o próprio corpo e com o presente. Ao final de cada
exercício ou atividade, pedia que escrevessem as impressões no diário, tanto de suas
ações como a dos colegas: o que viu, sentiu, imaginou, lembrou ou associou durante o
exercício. Além dos exercícios de percepção e memória, os alunos também
desenvolveram composições (imagem abaixo) a partir dos exercícios. Como forma
para se preparar para a performance, cada um poderia conduzir as atividades práticas e
apresentarem seus programas ou as dificuldades em realizá-los em forma de narrativas.
Com essas atividades tentei criar um tripé, no qual a junção entre eles, as
performances dos artistas analisados e as reflexões sobre esses trabalhos seriam o
estopim para os programas das performances, unindo tanto questões ligadas aos
procedimentos como aos seus temas.
Essa primeira etapa foi concentrada no primeiro mês e meio de aula e ao seu final
os alunos apresentaram para o grupo seus programas de performances. A maioria optou
por performances individuais, mas cada programa foi discutido com o grupo para que
os colegas pudessem colaborar tanto no desenvolvimento da ideia quanto em sua
realização. A segunda etapa compreendeu o período de preparação e apresentações e foi
até o final do semestre. Como tínhamos dois encontros semanais, em um era discutido o
programa da performance e no outro ele era colocado em ação. No encontro posterior,
debatia-se o que tinha acontecido e já se planejava a próxima ação.
Com a escolha dos programas, cada aluno foi descobrindo quais eram as
necessidades acerca do preparo psicofísico e da produção técnica que cada performance
exigia. Assim, a sala de aula se transformou no espaço tanto para discussão da
viabilidade material de cada performance como da preparação exigida de cada
performer. No fim do semestre realizamos uma ação coletiva, um momento em que
muitos reelaboraram o que haviam apresentado ao longo do semestre.
Muitas performances colocaram em evidência a discussão sobre o que é, hoje,
considerado arte através da ritualização do cotidiano, da ampliação dos limites
psicofísicos do performer, da utilização de espaços urbanos, da ampliação da presença e
da colaboração do espectador para o desenvolvimento da performance. O viés
autobiográfico também colaborou para que vários alunos vissem outras possibilidades
de escrituras cênicas e percebessem que o ator com suas subjetividades é também autor
do processo criativo.
Apesar das performances realizadas terem caráter muito diferenciado entre si, é
possível elencar algumas experimentações recorrentes: busca da horizontalidade entre
130
artista e público; compartilhamento de experiências e vivências; o uso de site specific;
intervenção no espaço urbano/público; interdisciplinaridade artística e novas
tecnologias. Dos temas que surgiram, os mais relevantes foram os ligados à família e à
sexualidade, como questão de gênero, homofobia, violência doméstica, pedofilia e a
opressão social.
Algumas performances, mesmo sem tocar diretamente num tema
autobiográfico, tiveram seu estopim nos exercícios de percepção e memória e diziam
respeito a situações que, mesmo que não tivessem vivenciado, tinham relação direta
com sua experiência cotidiana.
2 - Karen Finley tem criado, desde os anos 1970, solos autobiográficos que põem em questão os limites entre o pessoal e o
público, entre realidade e ficção. Alguns de seus trabalhos já foram considerados imorais ou pornográficos por expor
questões sexuais consideradas tabus, como perversões e violências sexuais. Peggy Shaw é fundadora do grupo teatral
lésbico Splitt Britches, que atua desde 1981 dentro de um contexto feminista sobre comunidades marginais e queers. Ela
cria uma personagem butch-femme, um disfarce fora e dentro do palco que discute a essencialização dos papéis sociais,
teatrais e das narrativas sobre sexualidades. Penny Arcade apresenta em seus solos o mundo underground da cidade de
Nova Iorque do qual faz parte e de como a sociedade capitalista vem “limpando” esses lugares considerados submundos.
Segundo a artista, como Sherazade, ela conta histórias para sobreviver. (Ver BERNSTEIN, 2001).
131
Não é por acaso que os três exemplos citados por ela são mulheres trazendo,
muitas vezes, experiências de violência sexual ou de orientação homossexual. O tema
da sexualidade veio à tona em diferentes momentos da disciplina. Acredito que os
exercícios realizados em sala colaboraram para aflorar memórias ligadas ao universo
familiar e infantil e, para algumas alunas, surgiram memórias de violência sexual. Duas
delas se interessaram em desenvolver suas performances a partir destes temas.
Entretanto, o tema da violência sexual não foi tratado apenas em sua forma física, mas
também como as próprias mulheres entram na lógica do discurso dominante
transformando seus corpos em objetos de consumo ou de trabalho doméstico. Tirar a
mordaça e falar sobre esses temas, muitas vezes considerados tabus, foi a tônica desses
trabalhos.
Durante o exercício de narrativas, Alba de Freitas contou a lembrança de
violência sexual que sofreu na infância e que seria tema de uma de suas performances.
Apesar de não ter participado até o final da disciplina, ela foi responsável por
intensificar a discussão sobre violência sexual em sua turma. Em um encontro sobre o
programa de sua performance, todas as mulheres presentes, inclusive eu, relataram
alguma situação de violência sexual que tinham vivido, deixando claro que ainda
vigora a lei do silêncio e, consequentemente, a tentativa de apagamento dessas
memórias.
Quando eu tinha por volta de cinco a seis anos eu saí de casa com meu irmão
mais velho para ir a uma padaria que ficava lá perto de casa. No caminho um
homem, que na minha lembrança não era velho, devia ter uns 26 anos,
abordou nós dois com uma história que ele tinha umas bonecas e uns
brinquedos em algum lugar, que eu não me lembro bem se era na casa dele,
sei lá. Mas ele disse que daria esses brinquedos para a gente, mas que eu,
somente eu, a menina, poderia ir com ele buscar. Eu não me recordo bem
desse momento, mas no final das contas eu fui com esse rapaz e ele me levou
para o meio do mato. [...] Eu só lembro dele tirando a minha roupa.
(FREITAS, 2010)3.
3 - As citações das alunas são partes de seus diários de bordo, relatórios e programas das performances, material autorizado
por elas para divulgação da pesquisa.
132
mixagem com outro áudio com dados de pesquisa sobre a situação da violência sexual
no Brasil, trechos do código penal sobre estupro e informações sobre o disque
denúncia.
EXPERIMENTO 01: Áudio 01 e Áudio Mix intercalados tocando em todo o
ambiente (praça, de preferência). Performer vestida de criança (vestido
branco, como os de batizado, sapatilhas, meias e o cabelo amarrado “maria-
chiquinha”) com máscara branca, sem volume de feições. As partes do corpo
que não são tampadas pela roupa, estão pintadas com urucum, ou qualquer
produto que possa colorir o corpo mas posso sujar facilmente qualquer coisa
em que encoste. AÇÃO: Andar pelo ambiente fazendo brincadeiras
levemente sexualizadas (sentar no colo para brincar de cavalinho, sentar para
brincar de pernas abertas mostrando a calçinha, etc.) somente com os
homens, procurando sempre encostar neles e deixá-los sujos com o produto
que esta no corpo. (FREITAS, 2010)
V.1, N.1, DEZ (2012)
No próprio áudio, Alba de Freitas já esclarece seu interesse com a ação. Depois
de narrar a agressão que sofreu quando criança, ela fala do silêncio que impera sobre
esses abusos: “Na minha casa ninguém nunca falou sobre isso. Eu não tenho coragem
de perguntar nada sobre o assunto para os meus pais.” Para ela, essa lei do silêncio –
fruto da hipocrisia social sobre o tema sexual – não só culpabiliza a vítima – em sua
maioria crianças, adolescentes e mulheres – como colabora para que os agressores
fiquem na impunidade: “Não falamos abertamente nem sinceramente sobre sexo e as
violências ficam encobertas em todos esses preconceitos e tabus.” (FREITAS, 2010).
“Um dia saindo da faculdade às 17h, fui abordada por um homem armado, ele me
arrastou para um terreno vago. Então...” A instalação Você sente prazer com isso?, de
Thábatta Ferreira foi montada no banheiro do Camarim 19. Em seus azulejos, ela
escreveu trechos de narrativas de violência sexual sofridas por mulheres em
Uberlândia, algumas, inclusive, no entorno da universidade, que foram recolhidas por
ela para a performance. Sobre esse mesmo azulejo, era projetada a cena de estupro do
filme Irreversível4, que se repetia infinitamente. Todo o espaço do camarim era
iluminado apenas pela luz do projetor e o público tinha que se espremer para ver e ouvir
a cena pela porta do banheiro, como o voyeur de um crime que se repete infinitamente.
4 - Direção de Gaspar Noé. França (2002). Contado de trás para frente, o filme narra a busca por vingança de Marcus e
Pierre, depois que Alex (Monica Bellucci), namorada de Marcus, é estuprada violentamente.
133
A escolha de Thábatta não surgiu de uma experiência pessoal ligada ao tema, mas
do medo de que essa violência, sofrida por outras mulheres, viesse a acontecer com ela
ao sair da universidade, fato que a impedia de circular no entorno da UFU depois de
determinado horário. Durante a preparação para a performance, ela tentou recolher, por
escrito, as narrativas de violência que já tinha ouvido oralmente, às vezes por terceiros.
Ao fazer isso, ela se deu conta de que impera a lei do silêncio, na qual as vítimas,
constrangidas ou traumatizadas, negam-se a narrar essas experiências. Assim, as
narrativas escritas por Thábatta foram reelaboradas, a partir das lembranças das
histórias tantas vezes recontadas e de outras narrativas que ela recolheu em jornais ou
na internet. Assim, não se trata de narrativas autobiográficas, mas de como a performer,
partindo da memória coletiva, as reestrutura e dá novo significado a essas narrativas.
Além das narrativas, Thábatta decidiu incluir imagens e sons da cena do estupro do
filme Irreversível porque, apesar de ficcionais, sempre lhe causaram grande incômodo.
Desta forma, sua instalação discute tanto o silêncio imposto socialmente às vítimas
como também o silêncio de quem vê e nada faz, situação do filme e dos espectadores
que são voyeurs de uma violência que se repete indefinidamente em algum lugar bem
perto. Apesar da dificuldade que a aluna teve em se colocar biograficamente e também
fisicamente na ação, em suas reflexões relata a importância do processo para ela:
134
Faço grandes relações de minhas escolhas para essa disciplina com os textos
lidos e discutidos em aula principalmente os que tratavam de performances
autobiográficas, que apesar de minhas escolhas (violência sexual), não ter
acontecido comigo, o tema esta sempre presente em minha vida, seja com
amigos, conhecidos, família, etc., [...] fico feliz em ter conseguido realizar
minha performance só e com todo o grupo [durante a performance coletiva
final], que foi excelente a meu ver, pois apesar de ter me angustiado muito ao
fazê-la, fiquei muito feliz depois que queimei todos os relatos que tinha e
acabei com tudo aquilo que me afligia naquele momento, sinto como se
tivesse me libertado de todo um sofrimento que me angustiou todo o
semestre. (FERREIRA, 2010)
V.1, N.1, DEZ (2012)
5 - Considerado fenômeno do funk carioca do século XXI, a primeira mulher fruta foi Andressa Soares, a Mulher
Melancia, a partir do sucesso como dançarina da dança do Créu, composição do funkeiro MC Créu, dança e letra de alta
conotação sexual. A partir de seu sucesso solo, incluindo capas de revistas masculinas, várias mulheres aderiram à
associação de seu corpo com frutas da estação, numa metáfora bem direta do corpo feminino feito para a degustação
masculina. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Andressa_Soares> e <>. Acesso em: 25 jan. 2011.
136
Mulher Melão, Mulher Jaca, entre outras, Luciene se transformou na Mulher Salada de
Fruta, usando uma saia e um bustiê feitos de diversas frutas, com uma frase imperativa
na barriga e nas costas: “desfrute-me” e uma coroa de abacaxi na cabeça, numa
referência a nossa primeira mulher fruta: Carmen Miranda. Ela pensou sua
performance como intervenção urbana, mas ainda receosa das reações, resolveu fazer
um primeiro experimento dentro do campus. Caminhou como Mulher Salada de Fruta
pelo bloco do Curso de Teatro, acompanhada pelos colegas de disciplina, depois
circulou pelas ruas do campus, sendo observada por vários funcionários e estudantes,
que comeram seu figurino.
Apesar de Luciene não ter partido de um tema autobiográfico, considera que os
exercícios de sala de aula foram importantes para sua escolha:
Através de sua fala e de como ela reelaborou sua performance, fica claro que
Luciene de Andrade conseguiu criar um elo entre os exercícios de sala de aula, a
performance, sua reflexão e dos participantes, entendendo todo o processo como
momentos de experimentações. Assim, partindo de seus interesses pessoais, ela teve a
possibilidade de transformar sua proposta inicial a partir do confronto consigo mesma e
com o outro.
V.1, N.1, DEZ (2012)
performers cobram de si mesmas outra forma de se colocar frente a questões que lhe
dizem respeito. Procuraram, através desses experimentos, refletirem sobre qual o papel
que suas ações, artísticas ou não, têm no coletivo.
Quando se tirou a mordaça e se falou de temas como sexismo, homofobia,
opressão familiar e social, muitas vezes vivenciados e silenciados, criou-se ações
liminares, que contribuíram não apenas para o compartilhamento dessas experiências,
mas também para se pensar novas formas de se relacionar com essas questões através da
arte.
Baseando-se na afirmação de Foucault (2002, p.10) de que “o discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por
que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”, pergunto-me se essas
cenas, ao discutirem construções identitárias como gênero e sexualidades existentes em
nossa sociedade, também promovem o apoderamento dessas alunas-artistas de novos
discursos e espaços de poder.
O que nos constitui? Incorporamos construções identitárias como de gênero e
sexo porque são objetos de nossa percepção? Por que foram inscritas em nossos corpos
através das experiências cotidianas? Nossos atos são apenas a repetição dessas
memórias? Acredito que é o olhar crítico sobre essas performances – do cotidiano e da
arte – que abre uma brecha para se sair do círculo vicioso das linguagens
normatizadoras e naturalizadoras.
143
Ao pensar sobre as construções de sexo e gênero, Judith Butler (2008, p. 27; 206)
aponta para duas formas de se entender como o corpo é construído nesses termos:
“meio passivo sobre o qual se inscrevem significados culturais, ou então como
instrumento pelo qual uma vontade de apropriação ou interpretação determina o
significado cultural por ‘si mesmo’”. Nos dois casos, o corpo é mero instrumento ou
meio de significados culturais. Então, ela apresenta outra possibilidade de se entender
essas relações, ao propor que “cultura” e “discurso” enredam o sujeito, mas não o
constituem. Assim, a ação do sujeito não é completamente determinada, abrindo-se
brechas para se criar novas performances, já que “o sujeito culturalmente enredado
negocia suas construções, mesmo quando estas constituem os próprios atributos de sua
própria identidade”.
Desde os anos de 1970 as chamadas “performances de identidade”, que partem
de material autobiográfico, tiveram papel significativo para dar visibilidade à discussão
sobre gênero, sexualidades e diferenças étnico-raciais. A performance, pelo seu caráter
de “comportamento restaurado”, tem a possibilidade de, ao repetir os atos, propor uma
disjunção, pois o ato nunca repete o original. Nesse sentido, a teoria de Butler (2008)
sobre a performance de gênero, mas que influenciou todo um discurso sobre
performances que trabalham com construção identitária ou politicamente engajadas,
colabora para pensar que, a partir da repetição, da citacionalidade, há espaço para a
crítica: “A possibilidade de agenciamento inovador está sempre presente, não baseada
num sujeito preexistente limitado por leis regulatórias, mas no ‘deslize’ inevitável que
surge da repetição reforçada e da citação da performance social.” (CARLSON, 2009, p.
194).
Com essa disciplina pretendi refletir sobre a importância da linguagem da
performance e da memória autobiográfica no processo de formação do artista cênico. E,
com isso, retomo a questão-título: Performance se ensina? Valentín Torrens (2007), ao
organizar um livro sobre Pedagogia da Performance, ajuda a pensar sobre essa questão.
Para ele, a função dos procedimentos propostos seria mais de dinamizar, de colaborar
para que os participantes conseguissem dar forma ao que já era latência em cada um, já
que para ele, a performance não teria como objetivo reformar a arte, pois seu início e fim
é o homem.
Em seu livro, Torrens apresenta programas de cursos universitários e oficinas
sobre performance em diferentes continentes, do norte e do sul. Ao ler os programas dos
cursos, dois fatos chamaram minha atenção: primeiro que o caminho percorrido por
144
mim na disciplina foi muito próximo de alguns citados, o que me faz pensar não em
uma metodologia, mas em procedimentos recorrentes unindo teoria, material
audiovisual e prática que, ao mesmo tempo em que insere o participante nessa
linguagem artística, apresenta exercícios que colaboram para o desenvolvimento de
seu projeto autoral. Cada artista-docente imprimirá um foco, geralmente ligado as suas
pesquisas, mas por ser uma arte corporal, os exercícios físicos são essenciais para a
quebra de padrões fixos, inibições, como indicam BBB Johannes Deimling e Angelika
Fojtuch sobre as atividades em suas oficinas que incluem improvisações e exercícios de
percepção:
Não tente aprender uma técnica, mas sim de superar a timidez, reduzindo inibições,
explorando os limites pessoais, estar pronto para uma nova experiência e percepção do
corpo no espaço e no tempo. O que importa é compreender e utilizar o próprio corpo
como um instrumento. (In TORRENS, 2007, p. 227)
Referências
BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito.
Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
145
BERSTEIN, Ana. A performance solo e o sujeito autobiográfico. Sala Preta, São Paulo,
n. 1, p. 91-103, 2001.
COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva: Edusp, 1989.
FÉRAL, Josette. La actuacion, ¿se enseña? In: Teatro, teoría y práctica: más allá de las
fronteras. Buenos Aires: Galerna, 2004. p. 203-218.
FREITAS, Alba Valéria de. Programas das Performances com textos em áudio, 2010.