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CRIAÇÃO E CENA CONTEMPORÂNEA:

POSSIBILIDADES DE AÇÃO VOCAL A PARTIR DOS VIEWǧ


POINTS
CREATION AND CONTEMPORARY SCENE: POSSIBILITIES OF VOCAL ACTION FROM
VIEWPOINTS PRACTICE

Narciso Telles
Professor do Curso de Teatro e do Programa de
Pós-Graduação em Artes da Universidade
Federal de Uberlândia – UFU. Pesquisador do CNPq.

Marcella Prado Ferreira


Acadêmica do Curso de Licenciatura e
Bacharelado em Teatro, UFU. Pesquisadora PIBIC/CNPq.

Resumo: O presente texto aborda aspectos vocais na cena teatral contemporânea sob a perspectiva do tra-
balho com os viewpoints. A pesquisa se deu a partir de experiência e estudo dos parâmetros básicos do som
(como frequência, timbre e intensidade) na ação vocal a partir dos espetáculos ‘Canoeiros da Alma’ e ‘Elas
num tempo irrompido’.
Palavras-chave: viewpoints; ação vocal; teatro contemporâneo.

Abstract: This text focuses on the vocal aspects of contemporary theatrical scene from the perspective of the
viewpoints work. The research took place from experiencing and studying the basic parameters of sound
(such as frequency, intensity and timbre) on the vocal action of the spectacles ‘Canoeiros da Alma and ‘Elas
num tempo irrompido’.
Keywords: viewpoints; vocal action; contemporary theatre.

Introdução norte-americana, idealizou os Seis Viewpoints


(Espaço, Forma, Tempo, Emoção, Movimento

N
os anos de 1970, um movimento e História), sua própria maneira de estruturar
inovador no contexto da dança a improvisação da dança, a partir desses
emergiu em Nova Iorque instigando princípios, no tempo e no espaço.
e mobilizando muita gente, desde estudantes Anne Bogart, professora associada
universitários a professores, coreógrafos, da Columbia University, conheceu Mary em
diretores, artistas em geral. A rejeição pela 1979, quando cursaram a faculdade juntas.
dança virtuosa e “dotada da psicologia e do Apropriou-se da estrutura organizada por esta
drama convencional” (NUNES, 2008), levou e a aprimorou em sua prática como diretora de
esses artistas a buscarem novos meios de teatro, juntamente com Tina Landau – também
construir sua própria arte. Foi nesse contexto professora e diretora norte-americana. Em
que Mary Overlie, dançarina e coreógrafa 1992, Bogart e Tadashi Suzuki, fundaram

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em Nova Iorque a SITI Company – Saratoga viewpoints um pensamento fragmentado a


International Theatre Institute, onde Anne respeito do trabalho atorial, tampouco do
continua desenvolvendo sua prática. que se refere à sua ação vocal – da voz como
Os viewpoints, desenvolvidos por dissociada do corpo, por exemplo. Tão logo os
Anne, para o teatro, como procedimento princípios são introduzidos no jogo, um a um
de treinamento atorial e criação cênica, para que se desperte a consciência e o domínio
são divididos em Físicos e Vocais. Os sobre eles, têm início as práticas em que serão
Físicos subdivididos em Tempo (Resposta explorados simultaneamente, sem que o foco
Cinestésica, Tempo ou Andamento, Duração de atenção se volte para um só. Em jogo estes
e Repetição) e Espaço (Relação Espacial, elementos não são/estão dissociados.
Forma, Gesto, Topogra ia e Arquitetura). O desejo de pesquisar sobre o trabalho
E os Vocais são: Timbre, Altura, Dinâmica, vocal do ator se deu por três principais
Aceleração/Desaceleração e Silêncio, além motivos: 1) a necessidade de experimentar os
de abordar a maioria dos Físicos. Eles foram viewpoints vocais a partir da experiência com
articulados numa estrutura pedagógica, a im os viewpoints ísicos no grupo de pesquisa,
de sensibilizar e potencializar o trabalho do hoje con igurado como um coletivo artístico
atuador (ator, performer, dançarino etc.) de no qual trabalhamos – o Coletivo Teatro da
forma libertadora e, com isso, permite que ele Margem1; 2) por uma dificuldade pessoal, de
se perceba imerso em uma criação autônoma e lidar com o instrumento voz; 3) por notar que a
livre (aberta). cena teatral contemporânea ainda carece de uma
O procedimento dos viewpoints é linguagem concreta na relação corpo-voz.
fundamentado por idéias atemporais e que
O diálogo – coisa escrita e falada – não
pertencem aos princípios naturais da tríade pertence especi icamente à cena, per-
tence ao livro; [...] Digo que a cena é um
movimento/tempo/espaço. O princípio lugar ísico e concreto que pede para
fundamental que perpassa todas as etapas do ser preenchido e que se faça com que
ela fale sua linguagem concreta.
procedimento é o de relação. A partir deste,
todos os outros são explorados embasados
no tempo e no espaço, em jogos de improviso Digo que essa linguagem concreta, des-
tinada aos sentidos e independente da
e composição. O atuador se apropria desses palavra, deve satisfazer antes de tudo
aos sentidos, que há uma poesia para
pontos de atenção (“pontos de vista”, na os sentidos assim como há uma poesia
tradução literal para viewpoints), podendo para a linguagem e que a linguagem

utilizá-los com maior ênfase e consciência em


1 Coletivo artístico surgido em setembro de 2007,
seu trabalho. na cidade de Uberlândia (MG), a partir do grupo
de pesquisa coordenado pelo prof. Dr. Narciso
Apesar da estrutura didática em que os Telles, que desenvolve pesquisa docente na
princípios são introduzidos aos atuadores, área de Artes Cênicas, acerca dos viewpoints, na
Universidade Federal de Uberlândia. (cteatrom.
uma a um, não há no trabalho com os blogspot.com)

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Criação e cena contemporânea: possibilidades de ação vocal a partir dos viewpoints


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ísica e concreta à qual me re iro só é do som, por si, capaz de produzir imagens,
verdadeiramente teatral na medida
em que os pensamentos que expressa sentidos, sensações, impressões.
escapam à linguagem articulada (AR- No entanto, a investigação não se
TAUD, 1993, p. 32).
restringe à exploração desse “som puro”,
o tem como princípio fundamental para o
Artaud não despreza o uso da palavra
entendimento e domínio do instrumento voz
pelo teatro, mas desmisti ica o texto como
pelo ator, mas aborda também como a palavra
fundamental para a realização deste
pode ser explorada nesse contexto sonoro,
fenômeno. O que ele faz aqui é defender a
“independentemente de seu sentido concreto”,
especi icidade cênica: uma linguagem que
como reforça Artaud:
impacte o público, que lhe toque de forma
não racional, não intelectual, mas sensível. [...] Sei muito bem que também as
palavras têm possibilidades de sono-
Uma comunicação que se dá através do corpo, rização, modos diversos de se proje-
da ação ísica e vocal (ainda que por [in] tarem no espaço, que chamamos de
entonações. E, aliás, haveria muito a
ação e silêncio, pois se tratam também de dizer sobre o valor concreto da ento-
nação no teatro, sobre a faculdade que
possibilidades ísico-vocais) do atuador, que
têm as palavras de criar, também elas,
não depende de ser decodi icada em palavras. uma música segundo o modo como são
pronunciadas, independentemente de
A cena, como “lugar ísico e concreto”, seu sentido concreto, e que pode até ir
possui elementos su icientes que falam por si. contra esse sentido – de criar sob a lin-
guagem uma corrente subterrânea de
Um desses elementos é o som. Pode compor impressões, de correspondências, de
o quadro cênico a sonoridade corporal (como analogias; (...) (1993, p. 31-32).

a voz), instrumental, eletrônica, dentre


outras. A presente pesquisa se restringe às E ele ainda expõe como seu sentido,

possibilidades sonoras da voz, portanto, não o da palavra, pode ser utilizado: para

serão aprofundados aqui outros tipos de gerar contraste, tensão, ironia, a partir do

sonorização da cena. contraponto entre o sentido sonoro atribuído

Os viewpoints foram escolhidos como à palavra e o sentido literal desta. Assim

procedimentos para essa investigação pela como uma situação de reforço ou ilustração,

vontade de continuar a pesquisa atorial e atribuindo a esses sentidos (do som e da

por permitirem ao ator um trabalho de ação palavra) justaposição.

vocal desvinculado da palavra, da linguagem Como a voz pode ser explorada num

articulada, pois partem dessa idéia de processo de criação? O que pode servir de

exploração do som puro. Ondas sonoras, estímulo na pesquisa vocal do ator? Também a

quando captadas pelo ouvido, são conduzidas voz pode ser um estímulo para o ato criativo?

até o cérebro e interpretadas por ele. Isso faz O trabalho vocal exerce alguma in luência
sobre o trabalho ísico? E o trabalho ísico
sobre o vocal? São algumas das perguntas que

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norteiam essa busca pelas possibilidades de metodológica, possibilita exercer escolhas no


expressão sonora da voz e que tento respondê- processo de aquisição de conhecimento.
las ao discorrer essas palavras. Talvez seja Jorge Larossa Bondia de ine o termo
necessário, para equivaler à pesquisa e fazer experiência como “o que nos passa, o que
jus ao que experimentamos nesse processo, nos acontece, o que nos toca. Não o que
que o conteúdo aqui disposto se concretize se passa, o que acontece, ou o que toca”. E
na materialidade ísico-vocal, ao invés desta continua: “a cada dia se passam muitas coisas,
tentativa em decodi icá-lo e transcrevê-lo. porém, ao mesmo tempo, quase nada nos
acontece” (2002, p. 21). Para ele, o sujeito
Experiência e os Ateliês de Criação moderno encontra-se submerso no mundo da
informação. No excesso de opinião e na falta
Nos espaços universitários de formação de tempo e excesso de trabalho.
do artista-docente no Brasil a tensão entre Por sua vez, o sujeito da
experiência
teoria e prática ainda persiste. Várias
estruturas curriculares apresentam-se como [...] se de ine não por sua atividade,
mas por sua passividade, por sua re-
campos distintos do ensino/aprendizagem cepção, por sua disponibilidade, por
teatral. Um ‘lugar do pensar’ e o outro um sua abertura. Trata-se [...] de uma pas-
sividade feita de paixão, de padecimen-
‘lugar do fazer’. A experiência do Coletivo to, de paciência, de atenção, como uma
receptividade primeira, como uma dis-
Teatro da Margem tem mostrado no exercício ponibilidade fundamental, como uma
de uma PráticaPensamento na qual os abertura essencial. (BONDIA, 2002,
p.24)
criadores fazem e pensam sobre o fazer de
forma concomitante e contínua. A prática
O saber da experiência é aquele que
de escrita auto-etnográ ica é realizada pelos
se dá entre o conhecimento e a vida, ou
atores para o registro escrito do processo
seja, é o que adquirimos na medida em que
de criação, isto oferece várias leituras de um
respondemos ao que nos acontece ao longo
mesmo universo:
da vida. É deste modo que compreendemos
[...] os moradores do entorno de um rio. a [trans]formação do pro issional da cena e o
Esse rio não é o mesmo para cada um
deles [dos atores]. Pode representar sentido do teatro nos espaços de educação.
a vida, morte ou até mesmo a indife- A experiência, sobretudo levando-
rença, e o Coletivo Teatro da Margem,
apresenta-o, desvelando as possibili- se em conta o objeto da pesquisa realizada,
dades de como uma mesma experiên-
cia pode possuir diferentes versões.
assemelha-se ao conceito de repertório
(LEITE & HIGA, 2010, p. 13) acionado por Diana Taylor para os estudos
da performance: “El repertorio, por otro
Parece-nos interessante a percepção lado, tiene que ver com la memória corporal
de que a experiência, como prática e atitude que circula a través de performances, gestos,

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narración oral, movimiento, danza, canto Como material de referência para
– em suma, a través de aquellos actos que análise utilizamos os espetáculos Canoeiros da
se consideran com um saber e ímero y no Alma e Elas Num Tempo Irrompido, resultados
reproducible” (TAYLOR, 2003, p. 3). cênicos dos ateliês de criação do Coletivo
O material coletado/vivenciado Teatro da Margem.
na pesquisa, ou seja, o repertório de Nos ateliês trabalhamos as relações
procedimentos adquiridos pela vivência entre escuta/diálogo/percepção dos atores, do
atorial nos ateliês de criação, possibilita espaço buscando ampliar as possibilidades de
ao pesquisador, após estar imerso nesse relação e criação de cenas e/ou movimentos
processo, que se distancie e re lita sobre sua com as informações contidas no ambiente
prática e, simultaneamente, sobre seu objeto. com a presença do aluno e as relações que este
Do processo de coleta e seleção do estabelece em jogo.
material produzido nos ateliês de criação, Os procedimentos de trabalho a partir
passou por um processo de “selección, do espaço, da repetição, da criação de ações
memorización o internalización, y ísicas por meio de um circuito individual e/
transmisión” (TAYLOR, 2003, p. 4). A mediação ou coletivo proporciona ao aluno, pela via
do material adquirido na pesquisa prática da prática, a aquisição de conhecimento
é feita pelo pesquisador, quando este traz de elementos contidos na arte teatral para
à consciência as vivências psico ísicas, que que posteriormente passe ao trabalho de
acontecem apenas no momento presente, composição. Segundo Tina Landau (1996, p
em que este se encontra envolvido no fazer/ 26.) “a composição é a prática de selecionar e
ensinar/aprender. combinar componentes da linguagem teatral
em um trabalho de criação de cenas, um
Canoeiros da Alma & Elas num tempo método para revelar nossos pensamentos e
irrompido sentimentos sobre o material que estamos
trabalhando para a criação de cenas curtas”.
Os princípios vocais abordados por Anne Buscamos no roteiro de dramaturgia
Bogart na prática dos viewpoints são: Timbre, ‘Canoeiros da Alma’, de Luiz Carlos Leite a
Altura e Dinâmica (parâmetros básicos do fonte de trabalho para nossa montagem.
som), Aceleração/Desaceleração, Silêncio Segundo Bogart a fonte de trabalho constitui-
(intrínseco à existência sonora), e os mesmos se de uma série de atividades realizadas no
princípios de Tempo (Resposta Cinestésica, início do processo de criação (BOGART, 1995).
Andamento, Duração e Repetição) e Espaço O roteiro tinha como temática a vida diária
(Relação Espacial, Forma, Gesto e Arquitetura) dos moradores ribeirinhos e sua relação com
abordados pelos viewpoints ísicos, com o rio. Decidimos então, fazer uma imersão
exceção do espacial Topogra ia. nas cidades de Araçuaí e Itinga, localizadas

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na Região do Vale do Jequitinhonha, para a Primeiramente, faz-se necessário um


coleta de material. Durante 02 dias realizamos breve comentário sobre cada princípio:
uma antropologia do sensível visando coletar
elementos de diversas ordens: corporais, - Altura: trata-se da frequência das
imagéticos, sonoros, naturais, verbais, sociais, ondas sonoras. Quanto mais alta a frequência,
históricos destas localidades que compunham ou seja, quanto mais ondas tem o som,
o ambiente do roteiro dramatúrgico. A mais agudo ele será. E quanto mais baixa
pesquisa de campo ofereceu aos alunos a for a frequência, quanto menos ondas tiver,
perspectiva da compreensão da alteridade, mais grave o som. Na Figura 1 temos dois
no contato com uma ‘minas’ bem diferente da grá icos de frequência: o grá ico ‘A’ representa
região do Triângulo Mineiro, pois a “criação freqüência baixa (som grave); o grá ico ‘B’
pressupõe a necessidade de conhecer algo, que freqüência alta (som agudo).
não deixa de ser conhecimento de si mesmo”
(SALLES, 1998 p. 30) e com este material
retornarmos a nossa sala de trabalho.
As composições foram realizadas
utilizando os viewpoints e o material que fora
colhido na pesquisa de campo. Neste momento
foram introduzidos: água, bacias, imagens
religiosas, cânticos de trabalho, roupas, entre Figura 1
outros. Todo o material era re-elaborado a
cada composição apresentada. Nossa intenção - Dinâmica (ou Intensidade): é

não era de reproduzir as imagens do Vale, referente à amplitude da vibração da onda

mas colocá-las sobre uma nova perspectiva de sonora. Dinâmica está relacionada ao volume

criação. Acolhíamos o acaso e incorporávamos do som, portanto quanto maior a amplitude

os desvios. da onda, mais forte o volume, a intensidade.

Nesses ateliês os viewpoints vocais Quanto menor a amplitude, mais fraca a

não foram especi icamente explorados, intensidade, o volume do som. Em alguns

mas a participação em outras o icinas, livros de teoria musical, intensidade é a força

relacionadas ao trabalho vocal do ator, e a do som (forte/fraco e seus desdobramentos)

experiência anterior com os viewpoints ísicos e dinâmica é o movimento dessas forças

possibilitaram a apropriação e compreensão (um som composto por intensidades fortes,

dos princípios abordados por Anne. Logo, a fracas, medianas). Na Figura 2 temos grá icos

análise dos aspectos vocais referentes a esses de intensidade: o grá ico ‘A’ representa

espetáculos se dará sobre o resultado cênico e intensidade forte; o grá ico ‘B’ intensidade

não sobre o processo criativo dos mesmos. fraca.

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disse John Cage, segundo Bogart (2005),
“que um som é tão alto quanto o silêncio”.
Não deve ser empregado com banalidade,
tampouco rompido por razão ín ima. Sobre
a essencialidade do Silêncio para a produção
sonora, bem nos fala Wisnik:

[...] pode-se dizer que a onda so-


Figura 2 nora é formada de um sinal que
se apresenta e de uma ausência
- Timbre: é o “colorido” do som, a que pontua desde dentro, ou
qualidade sonora que, nos instrumentos, está desde sempre, a apresentação
do sinal. (O tímpano auditivo
relacionada à caixa acústica de cada um (ao
registra essa oscilação como
seu formato, o material que é feito, ao tamanho uma série de compressões e
etc.). Em nós, seres humanos, são chamados descompressões.) Sem este lap-
so, o som não pode durar, nem
de ressonadores ísicos, ou lugares/espaços
sequer começar. Não há som
de ressonância. As cavidades nasais, garganta, sem pausa. O tímpano auditivo
abdômen, peito... Há quem faça ressonar os entraria em espasmo. O som é
presença e ausência, e está, por
dedos do pé, isso depende do quão integrado
menos que isso apareça, per-
o corpo-indivíduo se apresenta e da intenção meado de silêncio. Há tantos ou
posta por ele no som. As nuances timbrísticas mais silêncios quanto sons no
som, e por isso se pode dizer,
de cada pessoa corresponderá à sua anatomia
com John Cage, que “nenhum
(formação, como o corpo é) e isiologia som teme o silêncio que o extin-
(funcionamento desse conjunto anatômico) gue”. Mas também, de maneira
reversa, há sempre som dentro
– diretamente in luenciadas pela formação
do silêncio: mesmo quando não
histórica do corpo: resultado da ação cultural, ouvimos os barulhos do mundo,
social, política, ideológica sobre o indivíduo. fechados numa cabine à prova
de som, ouvimos os barulhismo
- Aceleração/Desaceleração: são
do nosso próprio corpo produ-
desdobramentos de tempo. É a variação tor/receptor de ruídos. (WIS-
contínua do Andamento da fala, que pode ser NIK, 1989, p. 16)
iniciada no andamento mais lento até atingir
o mais rápido (Aceleração) ou do mais rápido - Resposta Cinestésica: é a reação
para o mais lento (Desaceleração). simples e direta à ação externa ao indivíduo.
- Silêncio: não deve se passar por No caso, estímulo e resposta devem ser
um período de espera inativo, de “falta sonoros (a princípio). Vale lembrar que o
do que fazer”. O Silêncio é um potente Silêncio também é um modo de ação – criativo
campo expressivo, tanto quanto o som. Já e proativo.

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Interações entre Corpo e Voz no Espaço Narciso Telles e Marcella Prado Ferreira

- Andamento: refere-se ao pulso que e extremidades) entre os corpos (humanos


caracteriza a ação, a velocidade em que ela e materiais) e também referentes à inserção
é executada. É geralmente trabalhado em deles no ambiente.
cinco níveis: muito lento, lento, normal, - Forma: pode ser um desenho linear,
rápido, muito rápido, o que não impede luido, macio, redondo em que o som (ou
de serem explorados desdobramentos ou palavra – real ou inventada) é emitido, ou
passagens entre eles. Ressalto que Aceleração/ então uma forma chanfrada, entalhada (como
Desaceleração são dinâmicas de Andamento, cortes, aberturas feitas para esculpir madeira),
e não um andamento em si. Acelerar ou acentuada, em picos.
desacelerar signi ica alterar o Andamento da - Gesto: Gestos Vocais são sons
ação. com início, meio e im. Eles podem
- Duração: nada mais é do que por ser Comportamentais – Gestos Vocais
quanto tempo sustenta-se uma determinada cotidianos, que são observáveis no dia-a-
ação. Por exemplo, pode-se optar por uma dia, em locais públicos, como a rua, bancos,
longa pausa (Silêncio), caracterizando bibliotecas etc., ou mesmo na vida particular.
situações de suspense, tensão, lembrança, Podem informar sobre tempo, lugar,
re lexão... Como optar por um curto intervalo, personalidade, condições ísicas da pessoa,
com a intenção de um soluço, de uma idéia ou ainda expressar intenções, signi icados
repentina que surge, de constrangimento. especí icos (como negação – “tsk, tsk”). Os
Outro exemplo: a pausa delongada também sons respiratórios (inalação/expiração)
pode gerar idéia de constrangimento, o que também são caracterizados como Gestos
vem antes e/ou depois é que irá diferenciar Vocais Comportamentais, desde que sejam
uma situação da outra. intencionais e não apenas a ação involuntária,
- Repetição: envolve todos os outros bem como pigarrear, tossir, engolir compõem
princípios do trabalho vocal, mas a exploração essa categoria. E há os Gestos Vocais
inicial pode restringir-se à pesquisa com Expressivos. Estes são mais abstratos,
os parâmetros básicos do som (Altura, exprimem sentimento, emoção, idéia e não
Intensidade, Timbre, Andamento). É uma pertencem ao comportamento cotidiano. Que
pesquisa realizada em conjunto, pois a Gesto Vocal Expressivo poderia exprimir a
Repetição a ser feita é de algum princípio idéia de Liberdade?
que outrem tenha utilizado (por exemplo, - Arquitetura: interfere basicamente na
uma Intensidade fraca), mas com seu som ou repercussão do som. Trata-se da exploração
palavra pessoal. Ou até, repetir o som/palavra da sonoridade vocal no espaço, em como ela
do outro, dando-lhe nova con iguração sonora. se propaga e ressoa. Tem ligação direta com
- Relação Espacial: trata-se das relações o princípio de Relação Espacial, já que as
criadas a partir das distâncias (proximidades distâncias in luenciarão na propagação do

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Criação e cena contemporânea: possibilidades de ação vocal a partir dos viewpoints


Interações entre Corpo e Voz no Espaço
som. Arquitetura envolve texturas, alturas, Neste espetáculo pudemos observar
comprimentos, larguras, distâncias, cantos, um constante jogo com esses princípios vocais.
paredes, chão, objetos, tudo o que compõem e Em uma das cenas, a das “Narrativas”, uma
está disposto no espaço, inclusive o vazio. Mais atriz encerra sua história com um afogamento,
adiante, podem-se acrescentar, a esse trabalho que só termina após um, relativamente longo,
de experimentação, formas de soar a voz a período de Silêncio, em que se instaura um
partir de estímulos que a Arquitetura desperta clima suspenso. Esta suspensão é quebrada
no indivíduo e não só perceber como os sons com cautela, pelos outros oito atores que
disseminam-se no determinado ambiente. chamam por “Ana”, a afogada. Esses chamados
A exploração desses princípios pode ganham coloridos diferentes com ajuda de
se dar a partir da escolha de um som e, então, objetos (balde, bacias, chão, para onde o “Ana”
experimentá-lo passando por todos os pontos é projetado), intervalos menores entre um
de atenção aqui abordados, ou de uma palavra chamado e outro, Intensidades mais fortes,
(que pode ser ilógica, sem nexo, composta outras mais fracas, Durações longas e curtas (e
por sílabas sonoras inarticuladas entre si, alternadas entre o começo e o im da palavra),
bem como uma reconhecível, pertencente há os diferentes Timbres de um ator para outro
algum idioma), ou ainda de falas inteiras. O (que nesse momento trabalham com seu
interessante é observar e perceber como cada registro timbrístico “normal”, cotidiano).
um desses elementos pode alterar sentidos, Intimações, repressões, apelos, chamadas
situações, características de personagem suaves pela presença/aparecimento de “Ana”
(como o registro vocal ou um comportamento começam a ser identi icados. A única palavra
especí ico) a partir de um mesmo subsídio (o presente nesse momento é “Ana” e por meio
som ou a palavra ou a frase escolhida). da Repetição, associada aos princípios citados
O início da pesquisa vocal é ainda agora, a cena ganhou uma sonoridade
importantíssimo para a apropriação desses plural. Para tentar (sem êxito) ilustrar o
princípios pelo ator e para que ele perceba, instante: “Ana. Ana. Anaaa”, “Ana?”, “Ana!”,
desvinculado de sentidos linguísticos ou “Aaaaaana.”, “Aaaanaaaa”.
psicológicos que a palavra possa acarretar Tão logo o chamado se torna presente
logo de entrada, o que de sensações, imagens, é interrompido pela chamada da “Feira”
ambientes, impressões as sonoridades da – “Ana. Ana. BANAANAAA.” – cena em que
voz podem gerar. De modo que, ao dominar os nove atores falam simultaneamente do
os elementos, o ator possa, com con iança e começo ao im, ofertando seus produtos
liberdade, “brincar” com as palavras e jogar ou serviços ao público e entre si. “Banana”
com seus sentidos e não-sentidos, ampliando surge do meio dos “Ana’s” com um ímpeto
as possibilidades de cena. de Intensidade, de forma que o volume forte
conduz a cena imediatamente para outro

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Interações entre Corpo e Voz no Espaço Narciso Telles e Marcella Prado Ferreira

lugar, em contraponto à transição anterior (do O Silêncio, ou pausas, são frequentes, em


afogamento para o chamado), que ocorreu de maior ou menor extensão. Podendo, assim,
forma mais suave. caracterizar momentos de atenção no jogo,
Na “Feira”, assim que a transição entre concentração para as próximas tacadas, tensão
as cenas se dá, todos os atores começam a ou suspense (naturais a essa atividade), dentre
“vender” seus produtos/serviços, como numa outras situações. O Silêncio é frequentemente
feira mesmo, todos ao mesmo tempo, sem in ligido pelos berros, ruídos, risadas,
esperar que um ou outro termine de falar para que ora demonstram indignação, ora são
que você, então, comece. A cena passou por comemorativos, ora desa iadores, e por Gestos
algumas alterações pontuais desde a estréia Físicos e Vocais de jogadas combinadas entre
até a última apresentação realizada. Antes parceiros e de desconforto com o ambiente
todos já iniciavam as falas com a Intensidade “silencioso”. Ou será que eu deveria dizer
forte em que deveriam permanecer até o que os sons é que eram interrompidos pelo
inal. Atualmente, começam juntos (depois Silêncio?
do “BANAANAAA”), mas com intensidades
mais fracas que aumentam de súbito, um ator
a cada vez. Após elevar o volume, ele deve
ser mantido até a próxima transição de cena,
a não ser nos momentos em que o ator se
aproxima do público para lhe fazer a oferta.
Este é um exemplo de como se utilizar da
Relação Espacial, ao enfraquecer a intensidade
no aproximar e fortalecer no distanciar
das pessoas. A Repetição aqui abrange os
ímpetos de intensidade e as sonoridades Imagem n. 1: Cena ‘Carteado’: Na foto:
(inclusive da fala) que esses “feirantes” ecoam, Observa-se a cena ‘ carteado’ do espetáculo
Canoeiros da Alma do Coletivo Teatro da Margem.
julgando-as e icientes para atrair os possíveis Direção Narciso Telles. Em cena os atores: Lucas
consumidores, como estratégias implícitas de Dilan, Priscilla Bello, Afonso Mansueto e Vinícius
Fonseca (2008). Local: Laboratório de encenação/
marketing do produto. interpretação - UFU- Foto: Lilian Paiva
A cena que inicia o espetáculo, o
“Carteado”, é marcada por diálogos curtos, Um momento em que a Resposta
aparentemente banais ou próprios da Cinestésica é claramente utilizada, no contexto
atmosfera do jogo. Propositalmente intimista, sonoro vocal do espetáculo, é no momento das
obriga o espectador a se aproximar da mesa “Narrativas”, em que cada ator, intercalados,
de jogo caso ele queira observar o que se passa relata sobre os desejos, angústias, prazeres,
e até mesmo ouvir com clareza os diálogos.

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Criação e cena contemporânea: possibilidades de ação vocal a partir dos viewpoints


Interações entre Corpo e Voz no Espaço
dores, saudades de morar ou não na beira do O segundo espetáculo do Coletivo, Elas
rio. É, talvez, o instante em que mais se fala no Num Tempo Irrompido também pode auxiliar
espetáculo e também um dos momentos de na exempli icação de alguns vps de voz.
abertura para os atores, de frescor, onde eles A variação de Timbre teve participação
podem interagir livremente, relacionando- especial nesse trabalho. Durante uma cena
se com as narrativas em execução. Para não em que é citado o poema Tempo, de Viviane
atrapalhar a narrativa do parceiro, já que o Mosé, uma das atrizes passa por uma fase de
intuito é acrescentar ao trabalho e não destruí- envelhecimento e depois rejuvenescimento.
lo, as interações geralmente acontecem como No momento de sua fala, ela se encontra em
respostas ísicas ou vocais sutis, no entanto “estado de velhice”, de modo que a postura
pontuais. corporal se altera, logo, também o Timbre
Uma das “Narrativas” é a de uma (a coloração do som, possibilitada pelos
velha benzedeira, interpretada por uma atriz ressonadores ísicos) – este combinado com
bem jovem. É o que chamamos no Coletivo do intencionalidade e o que a postura oferece
momento de respiro do espetáculo. Há uma –, a Altura da voz é mais baixa (som grave),
tranqüilidade em suas falas, característica a Intensidade tem que permanecer audível
de pessoas de mais vivência, mais idade e, (quando a voz grave é trabalhada é preciso ter
nesse contexto, ribeirinhas. As nuances que um cuidado com o volume, para que ele não
a atriz confere aos detalhes signi icativos ique fraco, se não for a intenção). As falas são
garante uma sonoridade que acalma, mas marcadas pela respiração – como um Gesto
não deixa dormir, prende o foco de atenção, a Vocal da velhice, além dos sons carregados
curiosidade, o interesse, desperta olhares para do expirar e inspirar, as palavras soam em
o mistério que fora ambientado, o de como Formas chanfradas, quase silábicas e precisam
“ouvir a natureza e achar pedras (preciosas) da ajuda do ar da expiração para conduzi-las
só de olhar”. Chama de volta a atenção para a até o mundo que as aguarda. O Andamento
história com picos de Intensidade, trabalha é lento até que se inicie o rejuvenescimento,
com um registro tímbrico diferente do seu então as falas ganham uma pequena dinâmica
cotidiano, para oferecer o registro vocal da de Aceleração, em pequenos trechos,
velha sábia, um som que parece sair detrás caracterizando descoberta/surpresa/espanto.
do céu do palato mole (no interior da boca). No começo, os intervalos de Silêncio entre
Prolonga a Duração de algumas imagens falas e respirações e também no meio de
através da extensão e de um Andamento mais algumas frases exprimem a di iculdade de um
lento na pronúncia de determinadas palavras corpo, já gasto, em se expressar e algumas
ou expressões, como os nomes das tais pedras vezes a indignação pelo tempo que passa e
preciosas. carrega sua forma juvenil. No decorrer da
transição do estado de velhice para o estado de

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Interações entre Corpo e Voz no Espaço Narciso Telles e Marcella Prado Ferreira

juventude as pausas conotam mais surpresa, leves, para o in inito, pelo buraco feito no chão
dotada de contentamento, do que di iculdade com a voz da menina-moça.
de fala ou desafeto.
Em uma das cenas de “Devaneio”, outra
atriz brinca com os fraseados, as cadeiras
dançantes em sua volta (conduzidas pelas
outras três atrizes), os níveis/planos (alto,
médio e baixo), e sua amiga imaginária, que
ela rememora. Compartilha com o público
sua lembrança, enquanto presenti ica em
suas falas a criança de mais ou menos seis
anos que um dia fora. As palavras são luidas,
redondas, macias como se a própria menina
Imagem n. 1: Espetáculo Elas Num Tempo Irrompido
gravitasse suavemente, como se o ar a - Na foto: Observa-se cena do espetáculo Elas num
conduzisse. Às vezes acentua, pontua palavras tempo irrompido, do Coletivo Teatro da Margem.
Direção Camila Tiago. Em cena as atrizes: Marcella
enfatizando-as, tornando suas imagens mais Prado Priscilla Bello, Nádia Higa e Marina Ferreira
incisivas e como se fosse de novo a criança, (2009). Local: Teatro Rondon Pacheco, Uberlândia.
Foto: Luana Magrela.
certa de seu lugar, de sua brincadeira, de seu
desejo. Ela é capaz de se reportar à infância
e nos apresentar esse mundo através de sua Em processos de criação as sonoridades
ação, ísico-vocal. E como termina? Com um vocais podem ser exploradas juntamente às
jogo Arquitetônico. A moça se lança no chão explorações ísicas, de modo que, ao inal,
enquanto diz “Vivi aquela amizade mágica Ação Física e Ação Vocal não se apresentem
e cada vez que a recordo, mais ela se aviva desconectadas. A voz é uma produção
e mais ela cresce (...)” como se estivesse corporal, precisa da anatomia e da isiologia
se aproximando de um fundo buraco, com corpórea para existir e funcionar. Mas se os
uma Aceleração sutil na fala e um gradual princípios de Ação Vocal forem trabalhados
aumento na Intensidade, também sutil, até a parte, por exemplo, num trabalho textual
“cavar” de fato o buraco no chão e se despedir de mesa, quando o ator entrar em cena
de todos que a assistem para seguir com a lidará com o aspecto Físico, em movimento,
amiga, e então diz, com a face entre as mãos e possivelmente não estará preparado para
fechadas em concha e apoiadas no chão: “(...) uni icar suas ações ( ísicas e vocais) no
no MEU MUNDOOOOOOOOOOOOOOOO”, mesmo fazer. Além do que, o repertório e as
concretizando com a voz o salto no ori ício descobertas ísicas do ator só têm a contribuir
misterioso. O toque inal é, para mim, como se com sua pesquisa vocal, e vice-versa. Eles
a amiga imaginária e a menina escorregassem podem oferecer estímulos para atos criativos

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Criação e cena contemporânea: possibilidades de ação vocal a partir dos viewpoints


Interações entre Corpo e Voz no Espaço
um ao outro. As alterações ísicas (anatômicas, como ao vocal. E ele complementa que “a voz
isiológicas, de comportamento, postura etc.) está sempre nos ensinando sobre nós mesmos,
interferem diretamente, como percebemos a nossos hábitos sociais e biológicos, nossos
pouco, na produção sonora (nos Timbres, na comportamentos éticos e políticos, en im,
respiração, nas Formas da pronúncia e outros). sobre nossas vidas” (2007, p. 13).
A voz pode despertar sensações, memórias, O teatro pós-dramático, “redescobre a
imagens que sirvam de material para a voz por meio dos dispositivos eletrônicos e
pesquisa de Ações Físicas. corporais” (LEHMANN, 2007: 258), rompendo
Os estímulos para a pesquisa vocal do com a falta de autonomia por parte da
ator não se limitam aos estímulos ísicos, semiótica auditiva, limitada ao signi icado do
pelo contrário, esses são apenas uma texto. Assim,
possibilidade. As diversas sonoridades, não
[...] reduzida ao transporte do
só vocais, podem acionar esse instrumento
sentido, a palavra é despojada
atorial sonoro. Desejos, receios, memórias, de sua possibilidade de circuns-
texturas, ambientes, objetos, um in inito crever um horizonte sonoro
que só pode ser construído no
de possibilidades se abre ao pesquisador
teatro. [...] Ao fazer da presença
da voz. Se o princípio de Relação estiver da voz a base de uma semiótica
presente e ativo na pessoa, em sua conduta, auditiva, ele [o teatro pós-dra-
mático] a separa do signi icado,
então ela estará aberta e pronta para iniciar
compreende a criação de sig-
sua experimentação. Basta que se permita nos como gesticulação da voz,
afetar-se por tudo o que a cerca e a integra. escuta o eco nas abóbadas dos
suntuosos templos literários.
Se permitirá afetar e não só afetar-se.
Trata-se aqui de uma audioa-
Assim, as sonoridades vocais de cada pessoa nálise do inconsciente teatral
terão especi icidades de acordo com suas por trás das palavras, o grito do
corpo; por trás dos sujeitos, os
características psico ísicas.
signi icantes vocais em que eles
A voz, quando entendida como corpo,
se apóiam. (LEHMANN, 2007, p.
ou seja, como um processo da ação das 258)
diferentes esferas da organicidade (as-
pectos musculares, ossatura, sentidos,
afetividade, memória, etc.), adquiri Lehmann defende a voz (não só ela)
uma propriedade que reconhece a como potência capaz de gerar ambientes
complexidade e as sutilezas particula-
res de sua criação. (ALEIXO, 2009) sonoros, signos, a partir da gesticulação
(gestos), num contraponto entre a fala
Pela experiência que realizamos percebo articulada (a reprodução da palavra
que não há como ignorar a memória corporal engessada em seu signi icado) e a ação vocal.
do atuador – o histórico de vida inscrito no Esta consegue atingir onde as palavras não
corpo –, tanto em relação ao trabalho ísico, alcançam: o que está “por trás dos sujeitos”, e

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Interações entre Corpo e Voz no Espaço Narciso Telles e Marcella Prado Ferreira

está diretamente relacionada e conectada à viewpoints, embebida por uma necessidade


ação ísica – “o grito do corpo”, que permite: de “problematizar a conexão corpo-mente
na formação do artista e em busca de
[...] mediante a distorção com timbres,
frequências mais altas, depois nova- uma conduta mais sensível, perceptiva e
mente em alturas “humanas”, median-
te a diversi icação das vozes corporais
compartilhada, por parte do ator” (NUNES,
individuais e sua combinação com 2008, p. 107)
ruídos e outras vozes, alcançar uma
pluralidade sem um centro ixável, A cena teatral contemporânea exige do
um destronamento do eu – o sujeito ator um trabalho que possa afetar o público,
como objeto, como vítima sacri icial do
impulso que o atravessa, não em sua que possa tocá-lo, atravessá-lo, interferir em
identidade mais pessoal. Quando a voz
deixa audível suas articulações sonoras seu ser de alguma maneira, e não que apenas
transversalmente à expressão de senti- passe, sem passar por ele, nele. Na busca
do individualizada, revela-se aquela ar-
timanha em que ela, para com Barthes, por aquilo que dê conta dos sentidos, que
“investiga como a linguagem trabalha
e se identi ica com esse trabalho [...]:
preencha o espaço da cena, que impacte o
a dicção da linguagem” (LEHMANN, público, que seja presente, real e concreto,
2007, p. 258).
sem que tenhamos que decodi icar em
palavras. E que se estas forem usadas, que
O que Bogart propõe, com os viewpoints,
escapem às prisões dos sentidos psicológicos e
é essa fuga ao sentido literal da palavra. É a
linguísticos.
fuga à palavra “em-si-mesmada”. Há mais uma
Os procedimentos acionados na cena
preocupação com a qualidade e a produção
teatral contemporânea fazem com que as
sonora da voz, com o que o som vocal pode
relações de ensino/aprendizagem no campo
produzir de impactos – afetos, interferências
teatral também possibilitem o surgimento de
nos sentidos –, do que com a palavra, limitada
novas perspectivas de trabalho nos espaços
ao seu sentido concreto. Para tentar viabilizar
de ensino. Esta atividade poderá desencadear
isso, Anne estruturou os princípios com os
um processo criativo intenso conforme o
quais se pode explorar as capacidades vocais,
envolvimento dos alunos e do professor.
a partir da conscientização de parâmetros
Torna-se um procedimento de trabalho que
básicos do som (Timbre, Altura, Dinâmica),
visa ao estudante o aprendizado da linguagem
de aspectos derivados do tempo (Andamento,
teatral pelo fazer artístico e a partir do
Aceleração/Desaceleração, Repetição,
material de estudo selecionado pelo professor,
Duração, Resposta Cinestésica) e do espaço
que poderá ser tanto da tradição artística
(Forma, Gesto, Arquitetura e Relação Espacial)
(textos teatrais ou literários), documentos
e do Silêncio – fundamental à existência
históricos ou colhidos na cultura popular. No
sonora.
qual o processo de [trans]formação do aluno
Foi em meio a essas in luências que ela
de teatro o expõe à vulnerabilidade e ao risco
aprimorou para o teatro os princípios dos

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Criação e cena contemporânea: possibilidades de ação vocal a partir dos viewpoints


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Figuras 1 e 2

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