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DOI: 10.21604/2177-8841/moringa.

v6n2p11-22 | E-ISSN 2177 - 8841

SOBRE COREOGRAFIA EM ROTEIRO

About Choreography in Script

Juliana M. R. de Moraes
Centro Universitário Belas Artes - São Paulo

Resumo: Se, tradicionalmente, coreografia define movimentos de corpos


humanos organizados no tempo-espaço, recentemente o conceito passou por
atualizações: como um sistema de relações ainda calcado no movimento, mas
não necessariamente humano, englobando comportamentos sociais, fluxos de
informações, dinâmicas migratórias etc.; como um sistema de regras que
organizam elementos compositivos, dentre os quais inclui-se o movimento de
forma não hierárquica. Este artigo reflete sobre as implicações dos conceitos de
coreografia na criação da peça inédita Roteiro, aproximando-se de regras mais do
que de formas de se mover.
Palavras-chave: Coreografia; Movimento; Regras.

Abstract: If, traditionally, choreography defines organised movements of human


bodies in space-time, recently the concept has undergone updates: as a system of
relations foregrounding motion, but not necessarily human, encompassing
migratory social behaviour, information flows, migrational dynamics etc.; as a
system of rules that organize compositional elements, among which movement but
in a non-hierarchical manner. This article reflects on the implications of the
concepts of choreography in creating the piece Script, understanding it as rules
rather than ways of moving.
Keywords: Choreography; Movement; Rules.

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Durante o ano de 2013, a nos quais se inserem, as lutas diárias


Companhia Perdida mergulhou em e a particularidade das escolhas que
novo processo criativo dirigido por derivam em estilos próprios. São
mim, que deu origem ao trabalho vozes diferentes, mas igualmente
ainda inédito Roteiro. Apresentado importantes, pois se o artista fala de
em dois dias de ensaios abertos, em dentro, muitas vezes elementos de
dezembro do mesmo ano, a peça suas criações só se tornam visíveis
foge do formato tradicional de dança quando olhados de fora. Citarei
por não se compor de seqüências palavras de Jonathan Burrows, David
predeterminadas de movimentos, Hinton, Peter Brook, Ruth Amarante,
nem por jogos de improvisação. Ao Karen Pearlman, Ana Sanchéz-
longo deste texto, tentarei Coldberg, Bojana Cvejic e Susan
argumentar que o processo que Leigh Foster — trazendo-as para o
culminou em Roteiro pensa contexto do estudo de caso de
coreografia como um sistema Roteiro.
tridimensional de relações, e que Em seu livro Choreographig
essa peça se alicerça sobre regras Empathy, a coreógrafa e teórica
simples derivadas dos dispositivos americana Susan Leigh Foster
de dependência e constrição, além escreve:
de uma tensão constante entre o
coletivo e o individual. Através do O termo “coreografia” atualmente
diálogo com artistas e teóricos que é usado amplamente como
admiro, refletirei sobre o processo e referente à estruturação de
movimento, não necessariamente
os caminhos percorridos.
movimentos de seres humanos.
Acadêmicos e críticos que Coreografia pode estipular tanto
escrevem sobre coreografia os tipos de ações feitas quanto
geralmente articulam pensamentos sua seqüência ou progressão. Não
necessariamente criado por um
nos contextos social, político, único indivíduo, coreografia varia
estético, cultural, econômico etc., consideravelmente em termos de
além de refletirem sobre as quão específico e detalhado é o
ideologias de base em diferentes plano de atividades. Algumas
vezes, designando aspectos
épocas e as diversas conotações mínimos do movimento, ou
que a mesma palavra — coreografia alternativamente, rascunhando os
— toma ao longo da história. Já contornos gerais de ação dentro
textos e falas de artistas são, dos quais variações podem
ocorrer, coreografia se constitui
geralmente, mais diretos, e deles como um plano ou partitura de
podemos muitas vezes depreender acordo com o qual o movimento
como elaboram seus processos se desenvolve. (…) Prédios
coreografam o espaço e os
criativos, a maneira como pensam a
movimentos das pessoas;
dança, seus questionamentos câmeras coreografam ação
artísticos e pessoais, os contextos cinematográfica; pássaros

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executam coreografias intricadas. dança operam ao longo das


1
(…) Complexos de proteína mesmas linhas.
coreografam reparos de DNA;
representantes em call centers
executam coreografias O entendimento de que a
improvisadas; famílias fazendo
terapia participam de coreografia;
edição no cinema opera como
serviços na web coreografam coreografia também é defendido pela
interfaces; e até a existência é bailarina e videomaker baseada na
coreografada. (2011, p. 2) Austrália, Karen Pearlman: “A
coreografia é a arte de manipular os
movimentos: reelaborando tempo,
Dentro desse conceito espaço e energia em formas e
expandido de coreografia, estruturas afetivas. Em seu trabalho
compreendemos a colocação do com ritmo, os editores fazem algo
diretor de videodança inglês, David semelhante” (2012, p. 218).
Hinton, muito conhecido por ter Agora, gostaria de citar frases
dirigido os filmes Dead Dreams of a que selecionei de um livro bastante
Monochrome Men (1990) e Strange despretensioso, e delicioso de ler, do
Fish (1994), do grupo inglês DV8 coreógrafo e bailarino inglês
Physical Theatre. Hinton concebeu e Jonathan Burrows, intitulado O
dirigiu, em 2000, um filme chamado manual do coreógrafo. A primeira vez
Birds, no qual editou vôos e que o vi dançar foi em um ensaio, em
movimentos de pássaros gravados 1999, no Jerwood Space, em
para documentários da BBC de Londres, quando eu cursava o
forma a criar, através da montagem, mestrado no Centro Laban. Ele
uma dança de imagens. dançava uma peça de Rosemary
Butcher, minha professora na época.
Acho que fazer filmes de dança Burrows é bailarino muito famoso,
são, provavelmente, os filmes saído do Royal Ballet, e dançava
mais interessantes que você
poderia fazer. Em um nível muito uma peça com três outros bailarinos
fundamental, fazer um filme e ingleses, incluindo Lauren Potter
fazer uma dança são uma espécie (conhecida por dançar o dueto da
muito similar de atividade, ambos parede em Strange Fish, do DV8
tratam de dar estrutura para a
ação. Se você pensar em filme Physical Theatre). Ficamos sentadas
apenas como uma linguagem no canto da sala, tentando nos fazer
formal, e esquecer a atuação e a invisíveis para não atrapalhar —
fala, você pode olhar para
éramos olhos, algumas anotando
qualquer filme como um filme de
dança. Todos os filmes captam coisas, eu mesma num silêncio
imagens em ação e tentam profundo para captar o máximo
colocar essas imagens em
conjunto de forma rítmica e 1
expressiva. Nesse sentido, filme e
http://www.kinodance.com/russia/films_progr
am2_2006.html. Acesso em 26.02.2014

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possível de imagens para minha coreografia (p. 84-85). O ritmo


lembrança futura. E devo dizer que, com o qual você começa sua peça
terá um efeito na sua habilidade
dos quatro bailarinos, Burrows era o de fazer com que ela continue. Se
que mais me chamava a atenção. E você começa muito rápido pode
hoje, dos quatro corpos, lembro-me ser difícil, ainda que não
com mais clareza do dele se impossível, dar continuidade. Se
você começa devagar, você vai
movendo. Desde aquele ensaio, precisar de um material forte para
Burrows entrou para o arquivo de manter nossa atenção. O ritmo
meus artistas favoritos, e, quando com o qual você começa é uma
parte importante do contrato que
uma amiga me apresentou seu livro
você estabelece com a platéia
lê-lo foi como voltar a vê-lo naquele nesses momentos iniciais. A
dia. Agora, vamos às frases (juntei- sensação de desenvolvimento da
as todas num único parágrafo): peça será lida pela platéia em
relação à energia emanada desse
ímpeto inicial (p. 85-86).
Coreografia é uma negociação
Coreografia é uma forma de
com os padrões que seu corpo
organizar uma performance que
está pensando (p. 27). Coreografia
toma para si parte da
é sobre fazer escolhas, incluindo a
responsabilidade pelo que
opção de não escolher nada. Ou
acontece, o suficiente para que o
talvez coreografia seja: organizar
artista fique livre para performar
objetos na ordem certa que torna
(p. 105).
o todo maior do que a soma das
partes. Ou ainda: O sentido ou
lógica a que se chega quando O ponto de vista de Burrows é
você coloca as coisas uma ao lado
da outra e esse acúmulo faz
diferente dos de Hinton e Pearlman,
sentido para o público. Esse algo citados anteriormente, que entendem
que se acumula parece inevitável, coreografia como organização de
quase indiscutível. Parece uma movimentos, mesmo que numa
história, mesmo quando não há
história (p. 40). Esta é uma outra edição de filme. Aproxima-se mais de
possível definição de coreografia: algumas frases que citei de Foster,
uma maneira de manter as coisas especialmente quando ela associa
acontecendo (p. 83). Coreografias coreografia a um plano ou uma
de cinco minutos quase não
precisam de coreografia. Peças de partitura, entretanto, para Foster,
vinte minutos chegam a uma plano e partitura existem para que o
lógica e formato próprios. Vinte movimento se desenvolva.
minutos costumava ser a duração
Burrows associa coreografia a
mais comum para peças de
dança. Peças de dança são formas de organização do material
difíceis de assistir e vinte minutos (objetos, coisas) principalmente no
é suficiente algumas vezes. Peças tempo — e esse material não precisa
de dança de uma hora são algo
diferente. Todos nós tentamos
ser necessariamente movimento.
fazer peças de dança de uma hora Aliás, a palavra movimento inexiste
e a maioria de nós falha a maior nas muitas frases acima, o que nos
parte das vezes. Uma peça de leva a pensar que coreografia
uma hora precisa de muita

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poderia se aplicar a infinitas coisas, também não é complicado de ver, e


incluindo imagens fotográficas, sua escrita não se faz cifrada,
trechos de vídeos, cenas teatrais, retórica, nem rebuscada. Em suas
palavras, objetos, e (por que não?) palavras simples e despretensiosas,
ao movimento. Entretanto, ao ele limpa o conceito de coreografia
assistirmos às peças de Burrows, do movimento sem, entretanto,
vemos o quanto ele se interessa pelo higienizar a dança do movimento2.
movimento — diferentemente de Agora, uso as frases
muitos coreógrafos contemporâneos, selecionadas de Burrows para me
que optam pela pausa e complicam a ajudar a pensar sobre Roteiro. O
inserção de suas obras no universo processo de criação teve início,
da dança, aproximando-se da como é de costume atualmente na
performance ou da live art — , as economia dos editais, em um projeto.
obras de Burrows podem ser Ou seja, palavras digitadas no papel
facilmente caracterizadas de dança foram as primeiras coisas ou objetos
justamente porque, nelas, ele e seus a existirem:
parceiros se movem, bem, muito, e
geralmente de acordo com O intuito maior deste projeto é dar
sequências pré-determinadas. Mas continuidade à pesquisa da
então por que o movimento não entra Companhia, que vem traçando um
percurso coreográfico consistente
na sua concepção de coreografia?
através de suas criações. Se em
Talvez porque para ele coreografia (depois de) Antes da Queda
seja mais ligada às formas de (2009-2011) foram usadas
organização, os contratos com o imagens fotográficas da artista
americana Francesca Woodman
público e os ritmos de variação: para criação de movimentos e
aquilo que segura tudo junto, a dramaturgia, em Peças curtas
trama, a teia, a sustentação do todo, para desesquecer (2012) a
o que dá continuidade à peça, o que Companhia voltou-se para as
memórias das próprias intérpretes
permite chegar a uma forma e lógica como recurso de criação,
próprias. alicerçando-se no que denominou
Eu gosto desse jeito de pensar, de sensorimemórias. Agora, a
pois amplia o conceito de coreografia Companhia Perdida deseja
explorar mais à fundo estratégias
para além da ideia de uma de composição que vêm se
organização de movimentos. tornando sua marca coreográfica:
Ademais, o sentido deixa de ser
2
narrativo, expressivo ou simbólico André Lepecki, em seu livro Exhausting
para se tornar um sentido derivado dance: performance and the politics of
movement, argumenta que a negação do
da estrutura (“parece uma história, movimento feita por alguns coreógrafos dos
mesmo quando não há história”). A anos 90, como Jérôme Bel, Vera Mantero e
Xavier Leroy, deriva de uma crítica à
estrutura possibilita um sentido. modernidade. Aprofundo-me nessa questão
Burrows não é complicado de ler, no segundo capítulo do meu livro Dança,
frente e verso (2013).

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repetição, texturas de movimento, exemplo, pensar que você tem que


vocabulário próprio para cada estar sempre à direita do outro faz
nova peça, estruturas semiabertas
de composição, escritura com que todo mundo, num grupo, se
coreográfica a partir de roteiros mexa o tempo todo). Entretanto,
gerais a serem preenchidos no como diretora, logo percebi que
tempo presente da cena. Ao essas regras divertidas não tinham a
explorar as estratégias de
composição acima descritas sem ver com o que me interessa
um tema pré-existente (como fez poeticamente. Nessa época,
até o momento), a Companhia Samanta Roque, uma das bailarinas
Perdida se lança agora a mais um
da Companhia Perdida, emprestou-
novo desafio.
me um livro sobre o grupo literário
Oulipo3 que ajudou a iluminar meus
Se, muitas vezes, palavras
interesses: os escritores desse grupo
escritas em projetos soam como
acreditavam que a liberdade da
cartas de intenção jogadas à deriva
escrita seria derivada de regras
na esperança de serem pescadas
bastante sérias de constrição, como
pelos jurados das comissões
escrever um romance sem a letra “e”
avaliadoras, olhando para trás, posso
ou escrever nove versões sobre o
dizer que o parágrafo acima
mesmo episódio, cada uma em estilo
prenunciou, um ano antes, o que
diferente. A disciplina derivada da
aconteceria em Roteiro: a
constrição me pareceu apropriada e,
Companhia Perdida não criaria mais
a partir de então, ao invés de regras
com um tema à priori, mas o tema
que somente alimentassem ações,
seria a própria coreografia. Por isso,
passei a buscar regras de constrição,
as frases de Burrows, que admiro há
correlação e dependência.
muitos anos, se fazem presentes
Em uma das cenas de Roteiro,
agora e não nos muitos textos que já
um intérprete senta-se numa cadeira,
escrevi sobre processos de criação
começa a entoar uma canção
anteriores. Assim como ele separa a
conhecida e executar movimentos
coreografia de um tema, uma
prosaicos. Um segundo intérprete
expressão ou uma simbologia, minha
entra na cena e começa a
intenção era separar a criação da
pressionar, somente com uma das
Companhia Perdida de tudo que não
mãos, o corpo do que canta com
fossem regras, formas de
diferentes tônus e tempos. A regra
sustentação, aquilo que mantém tudo
consiste no bailarino sentado permitir
junto.
O início do processo foi 3
Grupo fundado em 1960 por Raymond
penoso. Solicitei que os bailarinos Queneau and François Le Lionnais, do qual
fizeram parte integrantes ilustres como
trouxessem propostas de regras que Georges Perec e Ítalo Calvino. Inclui
alimentassem ações, e percebemos escritores, a maioria franceses, e
que essa ideia forma a base de matemáticos, que buscam novas estruturas e
padrões a serem usados principalmente em
muitas brincadeiras infantis (por literatura.

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que canto e movimento reproduzam chão. O tempo da reação coletiva é


a qualidade do toque com variações determinado pelo tempo do canto do
de altura, velocidade, intenção, indivíduo. Novamente, a cena só
direção, etc. Quanto mais direta a funciona se os intérpretes
informação, mais clara a cena. É compuserem de dentro e lutarem
preciso que o primeiro intérprete contra a previsibilidade. Os ensaios
inicie sozinho para que o público consistem em afinar a escuta coletiva
apreenda a informação sobre a qual para que um indivíduo não
a cena se desenvolve. Além disso, sobreponha seu desejo ao grupo, ao
uma canção conhecida permite que mesmo tempo em que a participação
as variações pelo toque sejam individual se faz imprescindível.
claramente notadas. O espectador Assim como na cena da cadeira, o
compreende a regra nos primeiros espectador compreende as regras
minutos, e a seguir é papel dos nos primeiros minutos, e a
intérpretes compor de dentro da sustentação da cena se dá pelo ritmo
cena, para que esta não caia em um de variação.
uso previsível do tempo. Nesse caso, Em Roteiro, a individualidade
a coreografia se dá pela clareza da é dependente de um senso de
regra e pelo sucesso da responsabilidade coletiva — como
interpretação, que ocorre, no caso do partes que, quando organizadas, dão
bailarino sentado, pela rapidez com a forma a um organismo. O sujeito que
qual o corpo escuta e reage e, no age somente pela reação a eventos
caso do segundo bailarino, pela de fora gera uma sensação de
variação rítmica e de qualidade que angústia, como se a individualidade
ele imprime pelo toque. fosse sempre suprimida pelo
Em workshop realizado em coletivo. Como contraponto, há
fevereiro de 2014, um dos alunos momentos nos quais duplas agem de
comentou que essa cena sintetiza mãos dadas, movendo-se em
uma série de regras claras, e que sincronia em pulso transmitido pelo
encontrar essa síntese era como aperto das mãos ou pela escuta do
achar a agulha no palheiro. Ou seja, ritmo vindo de fones de ouvidos.
o desafio coreográfico de Roteiro Durante os ensaios, comecei a
estaria na escolha certa dos chamar esses momentos de frestas
elementos e na habilidade de fazer de humanidade, pequenos
com que a linguagem derivada da vislumbres nos quais desejos
estrutura seja lida pelo espectador. individuais jorram como fontes
Uma outra cena consiste no d’água em meio a ambiente rochoso.
grupo caminhar pelo espaço, cada A escolha de quais regras
um por si, e, quando um dos organizam uma nova coreografia é
bailarinos entoa uma nota, os outros um processo delicado, pois define os
devem caminhar até ele e levá-lo ao contratos de relação com o público,

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entre os intérpretes, entre estes e a para conseguir organizar o material e


direção, o figurino, a trilha, a relação retirá-lo do estado indulgente em que
com o espaço e o tempo, etc. É um se encontrava). Já em Roteiro, como
processo inicialmente intuitivo, que o material surge da disciplina e da
começa com maior abertura a clareza das regras, os espectadores
proposições diversas mas que, uma se envolveram com o trabalho
vez definido o caminho, fica claro o mesmo nos ensaios abertos, pois a
que pertence ou não à geografia estruturação da linguagem da peça
espaço-temporal gestada. se dá à vista, passo a passo, como
Infelizmente, justamente por serem um roteiro que se vai seguindo.
intuitivas, muitas vezes, não consigo Impressionou-me a diversidade de
justificar, em palavras, minhas interpretações, tanto leituras mais
escolhas como diretora, e dependo abstratas quanto mais figurativas.
da confiança de quem trabalha Houve aqueles que se interessaram
comigo — posição de enorme especialmente pela capacidade da
responsabilidade, pois posso indicar respiração e da voz, aliadas a regras
para onde navegar, mas não posso claras de composição e
garantir que haverá terra à frente. gestualidade, de alterar o estado do
Peter Brook, no seu livro de corpo dos intérpretes, levando cada
memorias, O ponto de Mudança, cena a uma direção diferente, porém,
chama de intuição amorfa esse sempre dentro de certa unidade da
começo de trabalho, e cita como qual se vislumbra um todo conceitual
papel do diretor definir um senso de e poético coerente. Outros
direção. interessaram-se pelo fato das regras
Nesse sentido, mostrar o serem tematizadas dentro do próprio
trabalho ainda em processo, em trabalho, que se estabelece a partir
ensaios abertos, pode ser produtivo, de roteiros claros a serem seguidos
e, no caso de Roteiro, os pelos intérpretes, ou seja, o título não
espectadores foram bastante decorre somente de uma licença
receptivos às cenas apresentadas, poética, mas da própria estrutura da
confirmando que minhas intenções obra. Houve também os que leram o
faziam algum sentido. trabalho de forma muito aproximada
Comparativamente, nos ensaios ao que me toca particularmente
abertos de nosso processo de dentro dele: as pequenas frestas de
criação anterior, Peças curtas para humanidade vislumbradas em
desesquecer, o material era tão apertos de mão, aconchegos de
embrionário e pessoal que grande corpos, respirações sincronizadas,
parcela dos espectadores questionou tentativas frustradas de se fazer
o porque de estarem assistindo escutar, sempre em meio ao poder
àquilo (o que me fez trabalhar muito da regra, do que deve ser seguido,
com o grupo de criadores-intérpretes das organizações comportamentais

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que pressionam a vida e muitas seria o resultado de uma


vezes a abafam. sobreposição de relações
A primeira vez que me construídas aos poucos, ao longo de
aprofundei na ideia de que um processo criativo. Tive a
coreografia se ligava a um sistema oportunidade de assistir às duas
de relações (e não a movimentos peças citadas no SESC Pinheiros, a
colocados em sequência) foi durante primeira em 2011 e a segunda em
meus estudos de mestrado no Laban 2013. É sabido que ambas foram
Centre de Londres. Ajudou-me ler a concebidas para o grande anfiteatro
tese de doutorado de minha ao ar livre do Festival de Avignon, En
orientadora, Ana Sánchez-Colberg, Atendant, para o anoitecer, e
cuja pesquisa consistia em analisar o Cesena, para o amanhecer, a
trabalho de Pina Bausch. A partir de primeira tendo estreado em 2010 e a
estudos semióticos de diferentes segunda em 2011 — e que as peças
peças de Bausch, Sánchez listou os devem ser compreendidas como um
dispositivos coreográficos díptico. É inegável que a coreógrafa
(choreographic devices) mais usados cria uma geografia espaço-temporal
pela artista: repetição, simetria, profundamente coerente, um sistema
deslocamento, transposição, do qual diversos elementos fazem
desenvolvimento, aumento, parte, convergindo uns nos outros
diminuição, variação, adição, em complexa imbricação. Ela leva
subtração, substituição, reiteração, para o palco diversas linguagens
fragmentação, expansão, (canto, música, dança) e as conecta
alongamento, desintegração, de forma que o todo se torna maior
aceleração e desaceleração (1992, do que a soma das partes; “parece
p. 53). Ainda que bastante gerais, uma história, mesmo quando não há
esses termos me foram úteis para uma história” (BURROWS, 2010,
começar a pensar quais estratégias p.40).
coreográficas seriam de meu Em Roteiro, o processo de
interesse, e, no início de minha lapidar as regras de relação que
carreira, aprofundei-me no uso da sustentam as cenas me fez lembrar
repetição. da fala da bailarina brasileira Ruth
Ao escrever sobre as peças Amarante sobre o trabalho com Pina
En Atendant e Cesena, de Anne Bausch:
Teresa de Keersmaeker, a teórica e
performer sérvia Bojana Cvejic diz Nós passamos um bom tempo
que a artista “se mantém fiel a seu repetindo improvisações, e destas
ela peneira ainda mais; e no final,
entendimento subliminar de que uma bem no finalzinho, ela diz: ‘tente
estrutura coreográfica múltipla pode juntar isso com isso, isso com
ser construída camada por camada” aquilo, tente fazer com outra
(2013, p. 10). Ou seja, coreografia pessoa’. Aí ela começa a fazer um
dominozinho; neste ponto o

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trabalho é só dela, o trabalho final, mesma coisa com as propostas de


de composição. (In FERNANDES, regras trazidas para os ensaios.
2000, p. 162)
Se a intenção desse processo
criativo foi criar sem tema pré-
Como dito anteriormente, no estabelecido, ao longo dos ensaios,
início dos ensaios, solicitei que os as cenas derivadas das regras e
bailarinos trouxessem propostas de suas manipulações começaram a
regras para ação coletiva. Uma das imprimir impressões e motivos, que
regras trazidas consistia em: todos foram ganhando espaço e sendo
deveriam se deslocar pelo chão e, aprofundados. Para a divulgação do
quando um indivíduo emitisse som workshop oferecido em fevereiro de
agudo, todo o grupo deveria se 2014, veiculamos o seguinte
aproximar dele; se alguém emitisse parágrafo:
som grave, todos deveriam se
afastar. Ao testarmos a ideia,
Pesquisa-se a ação individual e
percebemos que o deslocamento no coletiva a partir de roteiros
nível baixo exigia esforço físico rigidamente pré-estabelecidos,
demasiado, o que dificultava a que tensionam a relação entre
reação ao som. Além disso, parecia liberdade e condicionamento,
entre criação e interpretação.
haver muitas regras contidas na Busca-se o movimento maçante e
mesma proposta. Percebemos, repetitivo que estremece afetos,
empiricamente, que deveríamos represa a fala e desafina o canto.
simplificar a ideia mantendo, todavia, Em meio a isso, avistam-se frestas
de humanidade e compaixão na
o conceito de que o som emitido por persistência do toque, na
um indivíduo causava uma mesma insistência da respiração e no
reação coletiva. Simplificamos para movimento que continua apesar
do cansaço.
que qualquer som emitido causasse
atração do grupo (não importando se
agudo ou grave), e passamos a nos A partir de agora, quando
deslocar no nível alto. Essas dermos continuidade à Roteiro, para
mudanças afinaram a cena, deram que a peça suba ao palco,
clareza para a relação de provavelmente teremos que assumir
dependência estabelecida e, a partir essas ideias, que vieram de um
daí, pudemos criar desdobramentos. longo processo de pesquisa. Ao
Ruth Amarante nos conta que Pina invés de iniciar com um tema pré-
Bausch não levava diretamente para estabelecido, começamos sem nada
o palco aquilo que o bailarino trazia e a pesquisa acabou por nos levar a
para os ensaios, ela peneirava, tematizar a própria questão da
editava, burilava, afinava, restrição pela regra como mote de
desmembrava e desenvolvia o criação em coreografia, no quanto os
material para que, somente depois, corpos seguem e reagem às
ele fosse levado à cena. Fizemos a diferentes formas de constrição,

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Sobre coreografia em roteiro

correlação e dependência que


estruturam o todo, e no quanto esses
mesmos corpos encontram frestas
para resistir a comportamentos
maçantes e embrutecedores.

Recebido em 23 de Julho de 2014


Aceito em 10 de Fevereiro de 2015

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Referências

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