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INTRODUÇÃO
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No grupo, a improvisação é vista como um modo de produção de
discurso sobre o mundo e como uma prática da Dança Contemporânea que
tem formas, estruturas e linguagens específicas. A prática da improvisação
em dança se dá, portanto, com base na organização de elementos estudados
com e pelo corpo, que podem ser acessados nos processos de composição em
tempo real realizados pelo grupo (a exemplo do espetáculo “Sobre Pontos,
Retas e Planos”), como fragmentos que auxiliam na construção de uma
dramaturgia da dança no aqui-agora3. Conforme suscita Mundim (2012, p.
114), acerca dos procedimentos de trabalho do grupo de pesquisa:
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congado, os reisados, os pastoris, as cirandas, o samba de roda, o jongo,
a capoeira, o cavalo-marinho e o cacuriá), assim como as experiências
e estudos realizados de modo teórico e prático no Grupo de Estudos
Dramaturgia do Corpoespaço4, buscando não fixar uma ideia ou conceito
sobre o tema, mas sim possibilitar um diálogo mais íntimo entre esses dois
universos: a improvisação nas danças brasileiras e a improvisação nas
danças contemporâneas.
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danças pelo interior do Brasil. Entretanto, é nítido que os registros
realizados por esses pesquisadores/folcloristas são muito mais detalhados e
minuciosos em relação às músicas do que em relação às danças, aos corpos
e aos seus brincantes. Chama atenção a maneira como essas danças foram
descritas, analisadas e tratadas por esses pesquisadores, que as viam sempre
pelo prisma eurocêntrico, categorizando-as como coreografias, enredos e/
ou passos, tendo sempre o intuito de decodificá-las.
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Como segunda proposta, sugiro que a reflexão sobre as danças
brasileiras ocorra menos pela forma como se executa a dança e mais pela
organização e produção de símbolos apresentados em cada uma de suas
expressões. Nesse ponto, corroboro com o pensamento de Domenici (2009)
sobre a complexidade existente nas cadeias de signos implicados em cada
uma dessas danças e a emergente necessidade de compreendê-los em sua
densidade. Entendo, assim como a autora, que o engajamento corporal
dos dançantes/brincantes produz símbolos e significados à medida que os
saberes-fazeres se tornam “significados corporificados”.
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cultural cultiva. Não há uma exigência de execução de uma única forma de
realização do movimento ou da ação, sendo as diferenças encaradas como o
modo peculiar de cada um “brincar” ou “dançar”. Segundo Domenici (2009,
p. 10), o aprendizado dessas danças acontece por meio da “[...] compreensão
de princípios gerais, de traços principais, como dinâmicas, qualidades,
padrões tônicos, entre outros”, que determinam as “dinâmicas corporais”5
de cada manifestação cultural e de cada sujeito implicado na manifestação.
5 Eloísa Domenici (2009) aponta que adotar o termo “dinâmicas corporais” em detrimento
do termo “passos” quando se propõe a tratar os elementos característicos da movimentação
dos brincantes nas manifestações culturais brasileiras é uma maneira de tentar dar conta
da diversidade e complexidade do movimento e das corporalidades nas danças populares
brasileiras.
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Dessa maneira, “Cantar-dançar-batucar não é apenas uma forma, mas
uma estratégia de cultuar uma memória, exercendo-a com o corpo em sua
plenitude. Uma espécie de oração orgânica” (LIGIÉRO, 2011, p. 130).
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“jogar” e “jogam”, criando um ambiente de alegria e divertimento. Isso só
é possível porque outra característica fundamental do jogo é a garantia da
liberdade, sendo obrigação ou dever apenas quando está ligado ou constitui
“uma função cultural reconhecida, como no culto e no ritual” (HUIZINGA,
2007, p. 11).
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Assim como o jogo, o improviso se dá em momentos muito
específicos das danças brasileiras (e isso também é bastante distinto em
cada manifestação cultural). Há momentos em que é permitido improvisar,
assim como há momentos em que o improviso não é bem visto. Se no cavalo-
marinho o improviso é a base da construção da manifestação, na congada,
por exemplo, há poucos momentos em que se pode improvisar.
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manifestação, de cada grupo, de cada sujeito. Compreendo repertório, assim
como Diana Tylor (2013), como a prática de memórias incorporadas que se
dão à medida que a vivência/experiência da própria manifestação cultural
vai grafando no corpo dos sujeitos os saberes específicos de sua cosmovisão.
Os repertórios são as marcas, os rastros deixados pelos saberes-fazeres que,
constituídos de forma mais efêmera, podem se apagar, esquecer, silenciar,
esvaziar na medida em que se constituem como laços fortes, pois deixam
impregnados no corpo-memória apenas o imprescindível para a manutenção
da tradição (seja coletiva ou individual)7.
7 Diana Tylor (2013, p. 57) faz a seguinte reflexão sobre a ideia de repertório: “Parte do
que a performance e os estudos da performance nos permitem fazer, então, é levar a
sério o repertório de práticas incorporadas como um importante sistema de conhecer e
de transmitir conhecimento. O repertório, num nível muito prático, expande o arquivo
tradicional usado pelos departamentos acadêmicos nas humanidades”.
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O IMPROVISADOR SE FAZ NA RODA: O SABER-FAZER DA
IMPROVISAÇÃO NAS DANÇAS BRASILEIRAS
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simbólicas básicas e específicas que caracterizam a dança de sua manifestação
cultural. Assim, quanto mais complexa e difícil a execução da dança, maior
é a capacidade de improvisar do sujeito.
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específicas de uma determinada manifestação cultural, como a resistência
física, a destreza e desenvoltura corporais e vocais, a fluência, a rítmica
(corporal ou musical), as oralidades, etc.
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A eficácia está assim relacionada ao rendimento do sujeito na sua
ação, objetivando alcançar os resultados esperados e ultrapassar os limites
com base na virtuosidade do dançante/brincante. Nas danças brasileiras,
a eficácia está associada às condições técnicas que o corpo tem de alcançar
as qualidades requeridas em cada manifestação cultural e em cada tipo
de dança. Corroboro com Oliveira (2006) quando aponta, em seu estudo
sobre o Cavalo-Marinho, a eficácia como o elemento preponderante para
a construção e comunicação plena dos códigos estipulados pela expressão
cultural. Assim, o papel da eficácia está em possibilitar que os símbolos
e signos impressos pela manifestação cultural possam resultar em uma
apreensão consciente (por aquele que observa) de seus saberes-fazeres.
De acordo com Turner (1974), as mensagens simbólicas emitidas pelos
sujeitos de uma dada manifestação estão fundamentadas nos elementos que
constituem a própria consciência que eles têm dessa manifestação.
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corporificados com base no repertório dos sujeitos que delas participam e de
suas coletividades. É exatamente nesse contexto que a vivência/experiência
se coloca como operadora para a construção de sentidos pelo corpo dos
dançantes/brincantes; afinal, acredito que a experiência/sentido9, como
proposta por Jorge Larrosa Bondia (2014), constrói-se nos atravessamentos e
impregnações que se dão no corpo e pelo corpo.
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espetáculos. Contudo, somente no ano de 2011, após o ingresso como docente
na Universidade Federal de Uberlândia, é que pude ter o contato, por meio
do Grupo de Pesquisa Dramaturgia do Corpoespaço, com a improvisação e
com a composição em tempo real como elementos constituintes do espetáculo.
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Nos procedimentos de trabalho do grupo de pesquisa há, baseada na
relação com a improvisação, a construção de um lugar de convívio afetivo
que se aproxima dos modos-de-fazer das festas populares brasileiras. Existe
nesses dois universos, por exemplo, um intenso e respeitoso processo de
negociação entre as individualidades e a coletividade, a fim de se construir
uma prática coletiva capaz de dar conta da complexidade do discurso e de sua
emissão, seja ele corporal ou oral. Outra semelhança se encontra nos modos
de se relacionar, pois ambos priorizam as formas mais horizontalizadas de
cooperação entre os sujeitos, garantindo que as hierarquias (sim, elas existem
e dialogam todo o tempo com as várias vozes dos sujeitos implicados na
experiência do convívio em grupo) funcionem de forma menos rígidas e
formais, sendo assim mais maleáveis e dinâmicas. Sobre o modo de trabalho
do grupo de pesquisa, Mundim (2012, p. 114) diz:
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Compreendi que esses nós eram causados pela instabilidade dos
conceitos e ideias sobre improvisação que eu trazia de modo bastante
enrijecido e fixado na minha corporalidade; e que desatá-los seria um exercício
de revisão desses conceitos e uma incansável reorganização epistêmica e
ontológica do modo como eu via a improvisação. Gradativamente, percebi
que os pontos de contato entre as dinâmicas corporais das danças brasileiras
e os exercícios técnico-criativos desenvolvidos pelo grupo se davam
exclusivamente pela abertura e engajamento do corpo na relação com o
movimento. Assim, acionando metáforas, sensações, lugares, percepções,
imagens, sonoridades e oralidades, fui construindo um vocabulário
entremeado pelas memórias corporificadas com base nas danças brasileiras
e suas nuances de movimento, bem como pelo novo vocabulário corporal
desenvolvido nos exercícios técnico-criativos em improvisação, em uma
relação profunda de entrega aos laboratórios propostos pelo grupo.
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do corpo, que se estabelece na encruzilhada traçada pelo encontro dessas
duas perspectivas (danças brasileiras e danças contemporâneas). Esse é
um dos apontamentos que fundamentam a proposição de elaboração da
metáfora corpo-encruzilhada11.
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Refletindo sobre essa relação na prática artística, percebo que a
composição em tempo real acontece com a presentificação desse corpo-
memória, desses repertórios, dessas encruzilhadas, acionados por um
dançar/jogar/improvisar que traz à tona uma relação de vivacidade,
ludicidade, afetividade e de prazer na conexão estabelecida entre os
improvisadores (intérpretes-criadores) e entre estes e o público, construindo
no aqui-agora uma poesia em movimento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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criando novas estruturas de produção de sentido e de organização do corpo
em movimento no espaço. É nessa perspectiva que afirmo que a relação entre
memória, repertório e presença é ponto fundamental para a construção de
um discurso e de uma poética na improvisação, que só pode acontecer e ser
acessada no momento do aqui-agora.
Em se tratando da improvisação e da composição em tempo real,
as experiências cênicas de criação e composição são, sempre, espaços de
construção de discursos poéticos que permitem o deslocamento dos sentidos
literais para os metafóricos por meio de traduções e transcriações que
potencializam a relação entre o artista/improvisador/intérprete-criador
e seu espectador. Ao entender essa dimensão da composição em tempo
real, não é difícil compreender que a relação entre os discursos das danças
brasileiras e das danças contemporâneas se faz, necessariamente, no corpo
do sujeito que dança. O corpo é, assim, o ponto nodal dessa relação e dessa
construção. Ele é o ponto nodal da encruzilhada. O corpo-encruzilhada.
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Faço um convite para que nos coloquemos em uma prática artística afetiva
e permitamos que a construção poética do nosso dançar seja uma forma de
plantar e colher amor e poesia em forma de movimento. Quem topa? Vamos lá?
REFERÊNCIAS
OLIVEIRA, Érico José Souza de. A roda do mundo gira: um olhar sobre o
Cavalo Marinho Estrela de Outro (Condado-PE). Recife: SESC, 2006.
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