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O DANÇAR/JOGAR/IMPROVISAR NAS DANÇAS

BRASILEIRAS: POÉTICAS DE UMA ENCRUZILHADA


Jarbas Siqueira Ramos1

INTRODUÇÃO

A minha relação com o universo da dança se deu pela intermediação


com as “danças brasileiras” ou “danças populares brasileiras”. Vivendo
as práticas festivas e ritualísticas de várias manifestações/expressões
culturais espalhadas por toda a região do Norte de Minas Gerais e Vale do
Jequitinhonha é que pude apreender as relações intrínsecas que acontecem
entre corpo, memória, tradição e contemporaneidade por meio da dança,
sendo material basilar das propostas de pesquisa e docência que tenho
realizado e desenvolvido ao longo da última década.

Em outra perspectiva, o contato com a improvisação em dança,


ocorrido a partir do encontro com o Grupo de Pesquisa Dramaturgia do
Corpoespaço, na Universidade Federal de Uberlândia2, foi fundamental para
que eu pudesse compreender alguns modos de operação e organização dos
corpos dos sujeitos nas manifestações/expressões culturais, especialmente
nos processos festivos e ritualísticos. Trabalhando com esse grupo de
pesquisa, pude observar na minha prática artística algumas nuances das
experiências e vivências com as danças brasileiras na maneira de pensar-
fazer a improvisação em dança.

1 Professor Assistente do Curso de Dança da Universidade Federal de Uberlândia – UFU.


Doutor em Artes Cênicas pelo PPGAC/Unirio. Mestre em Artes Cênicas pelo PPGAC/
UFBA. Mestre em Desenvolvimento Social pelo PPGDS/Unimontes. Graduado em
Artes/Teatro pela Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes. Tesoureiro da
Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas – Abrace (gestão
2015-2016). Membro do Grupo de Pesquisa Dramaturgia do Corpoespaço e do Conectivo
Nozes. Ator, dançarino, produtor cultural e pesquisador da cultura brasileira. E-mail:
jarbasramos@ufu.br.
2 O Grupo de Estudos Dramaturgia do Corpoespaço, proposto pela professora,
pesquisadora e artista Ana Carolina Mundim, é vinculado ao Curso de Dança da
Universidade Federal de Uberlândia – UFU e tem como objetivo o estudo da improvisação
em dança com base nas noções de dramaturgia do corpo, corpoespaço e composição em
tempo real. Para maiores informações sobre o grupo, suas ações e produções, acesse o blog:
conectivonozes.blogspot.com.br.

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No grupo, a improvisação é vista como um modo de produção de
discurso sobre o mundo e como uma prática da Dança Contemporânea que
tem formas, estruturas e linguagens específicas. A prática da improvisação
em dança se dá, portanto, com base na organização de elementos estudados
com e pelo corpo, que podem ser acessados nos processos de composição em
tempo real realizados pelo grupo (a exemplo do espetáculo “Sobre Pontos,
Retas e Planos”), como fragmentos que auxiliam na construção de uma
dramaturgia da dança no aqui-agora3. Conforme suscita Mundim (2012, p.
114), acerca dos procedimentos de trabalho do grupo de pesquisa:

Estudamos, em nossos corpos, conteúdos de ordem


técnico-criativa: mecanismos e recursos que contribuem
para o desenvolvimento artístico e profissional dos
envolvidos na pesquisa e que nos dão suporte para
elaboração de um trabalho cênico que permita a
transformação de jogos criativos em jogos-espetáculos,
com suas composições poéticas em tempo real.
Estudamos para redimensionar nossos modos de ver o
mundo, conviver com ele e interferir nele. [...] Buscamos
as possibilidades afetivas em nossas micro relações
e micro ações, capazes de reverberar em outras micro
relações e outras micro ações.

Neste artigo, proponho uma aproximação desses dois universos:


as danças brasileiras e a improvisação em dança. Busco refletir sobre
as possibilidades de interseção entre esses dois campos com base na
compreensão dos processos de improvisação nas manifestações/expressões
culturais brasileiras. A intenção deste texto é, assim, refletir sobre o improviso
nas danças brasileiras, buscando apresentar uma leitura sobre a prática da
improvisação e o lugar do improvisador nessas danças; suscitar a dimensão
do corpo nas práticas culturais brasileiras; e apontar relações possíveis entre
os modos peculiares do improviso nas danças brasileiras e os processos de
improvisação em danças contemporâneas.

Para a realização dessa proposta, parto das vivências/experiências


realizadas junto a manifestações culturais brasileiras (especialmente o

3 Para maiores informações sobre os procedimentos técnico-criativos, as práticas artísticas


e os estudos teóricos realizados pelo Grupo de Pesquisa Dramaturgia do Corpoespaço,
leia: MUNDIM, Ana Carolina (org.). Dramaturgia do corpo-espaço e territorialidade: uma
experiência de pesquisa em dança contemporânea. Uberlândia: Composer, 2012.

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congado, os reisados, os pastoris, as cirandas, o samba de roda, o jongo,
a capoeira, o cavalo-marinho e o cacuriá), assim como as experiências
e estudos realizados de modo teórico e prático no Grupo de Estudos
Dramaturgia do Corpoespaço4, buscando não fixar uma ideia ou conceito
sobre o tema, mas sim possibilitar um diálogo mais íntimo entre esses dois
universos: a improvisação nas danças brasileiras e a improvisação nas
danças contemporâneas.

Partindo da minha experiência, sem contudo se restringir a ela, o


que desejo é abrir um espaço de diálogo sobre as maneiras pelas quais as
danças brasileiras vêm sendo recorrentemente tratadas e trabalhadas no
universo da formação acadêmica em Dança, especialmente neste momento
de expansão dos cursos superiores pelo Brasil afora. Assim, o leitor pode
encontrar aqui rascunhos, rabiscos, traços e rastros de uma experiência que
pode inspirar aqueles que desejam experimentar novos atravessamentos,
novas encruzilhadas.

DOS PROCEDIMENTOS DE OBSERVAÇÃO: PERSPECTIVA


EPISTEMOLÓGICA DAS DANÇAS BRASILEIRAS

As “danças brasileiras” ou “danças populares brasileiras” são um


conjunto de várias expressões/manifestações culturais que se encontram
espalhadas pelo território nacional e que se congregam, por meio do
movimento e em uma íntima relação com as sonoridades e oralidades, todo
um conjunto de saberes-fazeres culturais e simbólicos de cada tradição.
Ainda que algumas dessas expressões sejam “constantes sociais” (caso, por
exemplo, dos Reisados, que podem ser encontrados por todo o Brasil), elas
resguardam características peculiares de cada lugar e de cada realidade
sociocultural.

Essas “danças brasileiras” foram o centro do projeto modernista do


início do século XX, quando intelectuais como Mário de Andrade, Câmara
Cascudo, Arthur Ramos, Sílvio Romero, entre outros, empenharam-se no
registro tanto dos aspectos musicais como das “coreografias” de diversas

4 Desde o ano de 2014, participo ativamente do Grupo de Pesquisa Dramaturgia do


Corpoespaço e do Conectivo Nozes, grupo artístico que surgiu como extensão do grupo
de pesquisa.

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danças pelo interior do Brasil. Entretanto, é nítido que os registros
realizados por esses pesquisadores/folcloristas são muito mais detalhados e
minuciosos em relação às músicas do que em relação às danças, aos corpos
e aos seus brincantes. Chama atenção a maneira como essas danças foram
descritas, analisadas e tratadas por esses pesquisadores, que as viam sempre
pelo prisma eurocêntrico, categorizando-as como coreografias, enredos e/
ou passos, tendo sempre o intuito de decodificá-las.

Durante um longo tempo, o entendimento das danças brasileiras


passava por essa noção eurocêntrica de Dança, que as compreendia como
um encadeamento sequencial de passos ordenados no tempo e no espaço,
conforme a rítmica musical a ela associada. Entretanto, tenho entendido,
assim como vários pesquisadores das danças brasileiras na atualidade,
que essa noção não dá conta de toda a complexidade que envolve a
organização, realização e execução dessas danças, tanto na sua dimensão
corporal como na dimensão simbólica. Assim, a necessidade de adotar uma
postura epistemológica que permita dar sentido e significação às danças
que se colocam fora do eixo eurocêntrico, como as danças brasileiras, tem
se tornado uma emergência para os pesquisadores que se debruçam sobre
esses materiais e essas realidades.

A adoção de outra postura epistemológica passa, inevitavelmente,


pela reformulação e reorganização do pensamento e do discurso sobre o
tema de estudo, nesse caso, as danças brasileiras. É também uma maneira de
se colocarem uma posição mais aproximada e aprofundada no que se refere
às dinâmicas e aos estados corporais das práticas em dança nas diversas
manifestações/expressões culturais brasileiras. Para tanto, aponto três
propostas de organização dessa observação.

A primeira proposta que faço é a de um deslocamento da ideia


preestabelecida sobre as danças brasileiras, na busca por um entendimento
de que a abordagem deve considerar a diversidade de práticas culturais,
rituais e festivas que congregam por meio da dança formas peculiares
de organização dos saberes-fazeres dos mais diversos grupos culturais
brasileiros. Soma-se a isso a noção relativista de que cada realidade e cada
cultura são culturalmente específicas e que, por esse motivo, podem suscitar
formas diversificadas de produção de sentido.

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Como segunda proposta, sugiro que a reflexão sobre as danças
brasileiras ocorra menos pela forma como se executa a dança e mais pela
organização e produção de símbolos apresentados em cada uma de suas
expressões. Nesse ponto, corroboro com o pensamento de Domenici (2009)
sobre a complexidade existente nas cadeias de signos implicados em cada
uma dessas danças e a emergente necessidade de compreendê-los em sua
densidade. Entendo, assim como a autora, que o engajamento corporal
dos dançantes/brincantes produz símbolos e significados à medida que os
saberes-fazeres se tornam “significados corporificados”.

A terceira proposta parte da necessidade de entender as corporalidades


pelo lugar do dançante/brincante e, dessa forma, produzir um pensamento
que priorize a descolonização do corpo. Para tanto, a intenção é que haja
a construção de um olhar mais sinuoso e metafórico sobre as danças
brasileiras, compreendendo que elas são formadas pelas diversas maneiras
de significação e ressignificação da dança pelo próprio dançante/brincante.
Segundo Domenici (2009), por essa perspectiva, é possível olhar as danças
brasileiras com o mesmo interesse que se olha as danças estrangeiras, além
de suscitar outras possibilidades de compreensão das danças brasileiras, por
exemplo, pelos estados corporais, pelas metáforas ou pelas dramaturgias
dos corpos em movimento.

Ao assumir uma nova postura epistemológica, buscando entender


e analisar de modo mais profundo, orgânico e dinâmico as dimensões
corporais e simbólicas que envolvem as danças brasileiras, procuro
compreender as inúmeras variantes existentes no interior dessas danças,
considerando que elas podem admitir diferenças e contrastes, sejam eles de
movimento, acentuação rítmica, tonicidade corporal, desenhos do corpo nos
espaços, como assevera Domenici (2009), ou mesmo do modo de apreensão
do universo simbólico e da cosmovisão do grupo e/ou da manifestação pelo
corpo do seu dançante/ brincante.

Nesse ínterim, o aprendizado das danças brasileiras acontece à


medida que o dançante/brincante cria uma relação com a manifestação e
com seu mestre, vivenciando-a e experienciando-a. Não se trata, entretanto,
de um aprendizado do modelo, de uma cópia de movimentos ou de uma
reprodução das ações do outro. Nas danças brasileiras, cada sujeito dança
a seu modo, respeitando as restrições e hierarquias que cada manifestação

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cultural cultiva. Não há uma exigência de execução de uma única forma de
realização do movimento ou da ação, sendo as diferenças encaradas como o
modo peculiar de cada um “brincar” ou “dançar”. Segundo Domenici (2009,
p. 10), o aprendizado dessas danças acontece por meio da “[...] compreensão
de princípios gerais, de traços principais, como dinâmicas, qualidades,
padrões tônicos, entre outros”, que determinam as “dinâmicas corporais”5
de cada manifestação cultural e de cada sujeito implicado na manifestação.

Com base nessa postura epistemológica, colocando a observação das


danças brasileiras em um lugar de compreensão da totalidade interligada de
suas dimensões corporais (movimento, dinâmicas, qualidades, tonicidades)
e simbólicas (cosmovisão de mundo), outros aspectos importantes das
danças brasileiras nos saltam aos olhos, como a relação intrínseca com o
jogo, a brincadeira e o improviso.

O DANÇAR/JOGAR/IMPROVISAR DAS DANÇAS BRASILEIRAS

Ao abordar as culturas brasileiras em meus estudos (e, dessa maneira,


abordar as práticas de danças brasileiras), dois pensamentos têm sido
fundamentais para sustentação das reflexões empreendidas. O primeiro se
refere à ideia de que as práticas culturais encontradas pelo Brasil devem
ser entendidas como culturas de encruzilhada, pois são fruto de intensos
processos de transformações/traduções/transcriações culturais baseados
na relação (nem sempre amistosa) entre as culturas africanas, europeias e
indígenas em solo brasileiro. O segundo pensamento tem a ver com a ideia
proposta por Zeca Ligiéro (2011) acerca do “cantar-dançar-batucar” como
uma forma de expressão que abarca uma totalidade de ação dos produtores
das manifestações culturais brasileiras. Nesse contexto, entendo que as
práticas rituais/votivas das culturas brasileiras se caracterizam por não
separarem os elementos que as compõem (canto, dança, batuque, materiais
visuais, enredo etc.), formando assim um todo indivisível e inseparável
que constitui o universo semântico e simbólico de cada manifestação.

5 Eloísa Domenici (2009) aponta que adotar o termo “dinâmicas corporais” em detrimento
do termo “passos” quando se propõe a tratar os elementos característicos da movimentação
dos brincantes nas manifestações culturais brasileiras é uma maneira de tentar dar conta
da diversidade e complexidade do movimento e das corporalidades nas danças populares
brasileiras.

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Dessa maneira, “Cantar-dançar-batucar não é apenas uma forma, mas
uma estratégia de cultuar uma memória, exercendo-a com o corpo em sua
plenitude. Uma espécie de oração orgânica” (LIGIÉRO, 2011, p. 130).

É pensando nessas duas dimensões (as culturas de encruzilhada


e o cantar-dançar-batucar) e em todos os atravessamentos causados pelas
relações estabelecidas nas práticas e processos rituais/festivos de cada
manifestação cultural que busco entender a relação íntima e indivisível do
dançar/jogar/improvisar nas danças brasileiras. Considero, nesses termos,
que a noção de dança está associada à dimensão da brincadeira e que, em
muitas manifestações, os termos dançar, brincar e jogar querem dizer a
mesma coisa.

Nas danças brasileiras, o jogo surge como elemento constituinte do


modus operandi de cada manifestação. Se em algumas práticas ele é a base
fundamental para a construção da expressão dançada, como no cavalo-
marinho, no bumba meu boi ou na capoeira, em outras práticas ele se
encontra travestido em formas sutis de sua expressão, como nas oralidades
dos congados ou nas umbigadas dos sambas de roda.

Nesses termos, concordo com o pensamento de Johan Huizinga (2007),


quando aponta ser possível considerar o jogo e sua capacidade lúdica como
a principal forma de organização dos sujeitos em sociedade. Para o autor, o
jogo foi o elemento básico capaz de assegurar a organização das sociedades
e a construção de sua cosmovisão, pois “é um fator distinto e fundamental,
presente em tudo o que acontece no mundo”. Segundo Huizinga (2007), a
característica que define o jogo é o divertimento. Trata-se, no entanto, de
um divertimento lúdico, que associa a capacidade racional e operacional
do sujeito à sua dimensão criadora. Assim, o jogo é fundamental para o
desenvolvimento da percepção estética do mundo.

Outra característica do jogo é que ele é uma atividade humana


baseada em sistemas de regras, arbitrárias ou imperativas, que orientam a
forma de atuação dos sujeitos. Aqui, falo com base em uma perspectiva que
entende a prática das danças brasileiras como um momento específico da
ação humana, um recorte no tempo e no espaço cotidiano e a abertura de um
tempo-espaço extracotidiano e específico para cada manifestação cultural.
Esse espaço, entendido por Caillois (1990) como um tempo-espaço próprio
do jogo, é estabelecido à medida que os “jogadores” sentem a vontade de

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“jogar” e “jogam”, criando um ambiente de alegria e divertimento. Isso só
é possível porque outra característica fundamental do jogo é a garantia da
liberdade, sendo obrigação ou dever apenas quando está ligado ou constitui
“uma função cultural reconhecida, como no culto e no ritual” (HUIZINGA,
2007, p. 11).

O jogo é, portanto, elemento fundamental das danças brasileiras.


Quando dança, o brincante/dançante joga. Joga com o espaço, com o tempo,
com a sua memória e com a do outro. Joga com o outro. Dançando, o jogo
acontece; e na medida em que o jogo se desenrola, a dança vai ganhando
forma, estrutura e sendo corporificada. Huizinga (2007, p. 11) aponta
que “todo jogo é capaz, a qualquer momento, de absorver inteiramente o
jogador”; assim, posso afirmar que o mesmo vale para as danças brasileiras,
pois a dança pode contagiar de tal forma que tanto o dançante quanto o
observador podem ser capturados pelas imagens e memórias, sendo
absorvidos pela dança e pela própria manifestação.

Nessa dimensão, e considerando a capacidade de estabelecer o jogo


como um atributo tanto coletivo como individual, o ato de improvisar se
refere aos modos singulares de se colocar na relação com o outro. Entendo a
improvisação nas danças brasileiras como um processo de comunicação em
que o corpo que dança estabelece uma permanente troca de informações com
os sujeitos que participam da manifestação cultural, sejam eles os próprios
produtores da dança ou os espectadores. Assim, o ato de improvisar é uma
ação polissêmica, que parte da experiência corporal de cada sujeito (mas que
só se completa na interlocução com os demais sujeitos da manifestação) e
que pode ser pensado quando o improvisador apresenta a sua capacidade
e qualidade na execução dos mais complexos modos de produção da
comunicação sobre a cosmovisão do grupo ou sociedade.

Ao improvisar, os sujeitos revelam a forma como compreendem e


interpretam os códigos da sua manifestação cultural, recriando e transcriando
as memórias coletivas que formam a cosmovisão do grupo. Improvisando/
jogando, o sujeito refaz a sua dança, não como outra forma de organização
das danças brasileiras, mas como uma possibilidade de construção de novos
discursos e de novas propostas de jogo na relação com o outro. Improvisar
é, portanto, uma estratégia utilizada para se colocar de modo diferenciado
na relação com o mundo circundante.

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Assim como o jogo, o improviso se dá em momentos muito
específicos das danças brasileiras (e isso também é bastante distinto em
cada manifestação cultural). Há momentos em que é permitido improvisar,
assim como há momentos em que o improviso não é bem visto. Se no cavalo-
marinho o improviso é a base da construção da manifestação, na congada,
por exemplo, há poucos momentos em que se pode improvisar.

O improviso acontece na medida em que há uma relação de


confiabilidade tanto do mestre para com o dançante/brincante quanto deste
em relação à sua performance6 como improvisador. Quanto mais se tem
domínio dos códigos que compõem a manifestação, maior a confiança na
realização do seu improviso e maior a complexidade presente na execução de
sua dança. O improvisador é, assim, o sujeito capaz de aglutinar os saberes-
fazeres da manifestação cultural utilizando-os de modos diversificados em
sua performance dançada.

É nesses termos que a dança acontece no contexto cultural brasileiro,


pela relação do dançar/jogar/improvisar. Assim, há uma integração entre
movimentos, musicalidades, visualidades e textualidades/oralidades
que caracterizam a prática performativa do dançante/brincante de cada
manifestação cultural, resguardando a maneira particular de expressão de
cada uma dessas danças. Na capoeira, por exemplo, o movimento ocorre na
mesma dinâmica em que a música se coloca na roda, criando uma correlação
tanto no que se refere à rítmica empregada pelo toque dos instrumentos,
às textualidades apresentadas em cada canção e às dinâmicas corporais
apresentadas por cada sujeito. Dessa forma, movimento, musicalidade e
textualidade são complementares e inseparáveis, pois a dança somente
ocorre quando essas três dimensões acontecem no mesmo tempo-espaço.

Retomando a argumentação inicial, em que aponto as dimensões da


encruzilhada e do dançar-cantar-batucar como elementos constituintes do
que apresento como sendo o dançar/jogar/improvisar das danças brasileiras,
entendo que esse conjunto se processa na dimensão do repertório de cada

6 Ao utilizar o termo performance, refiro-me, nesse momento, à forma de execução da


ação e não à linguagem da performance como arte. Assim como aponta Shechner (2003), o
termo performance pode se referir desde a capacidade/qualidade de ação ou atuação de um
carro, à atuação de um artista na criação e apresentação de uma obra artística. No caso da
obra artística, o realizador da ação é chamado de performer.

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manifestação, de cada grupo, de cada sujeito. Compreendo repertório, assim
como Diana Tylor (2013), como a prática de memórias incorporadas que se
dão à medida que a vivência/experiência da própria manifestação cultural
vai grafando no corpo dos sujeitos os saberes específicos de sua cosmovisão.
Os repertórios são as marcas, os rastros deixados pelos saberes-fazeres que,
constituídos de forma mais efêmera, podem se apagar, esquecer, silenciar,
esvaziar na medida em que se constituem como laços fortes, pois deixam
impregnados no corpo-memória apenas o imprescindível para a manutenção
da tradição (seja coletiva ou individual)7.

A improvisação ocorre à medida que o repertório é acessado pelos


dançantes/brincantes no momento em que dançam. Nesse ínterim, as
memórias coletivas e a memória individual criam uma dinâmica espiralada
no corpo do dançante/brincante, recriando/transcriando movimentos no
tempo-espaço, aglutinando tanto comportamentos restaurados quanto
novos procedimentos conforme os cruzamentos de memórias vão ocorrendo
no tempo da própria ação. Ao dançar/jogar/improvisar, o sujeito constrói
novos significados para a sua forma de expressão dançada.

Enfim, entendendo a indivisibilidade dos elementos constituintes


de qualquer manifestação cultural brasileira, a improvisação pode
acontecer tanto nas dinâmicas do movimento do corpo que dança como na
musicalidade e/ou na oralidade do dançante/brincante. Na manifestação
do Cavalo-Marinho da zona da mata pernambucana, as figuras surgem na
medida em que são evocadas tanto pelo movimento do corpo quanto pela
oralidade e musicalidade que as caracterizam. Na congada, a improvisação
pode acontecer na entonação dos cantos, na musicalidade do instrumento
ou nas estruturas de movimento do corpo do dançante/brincante. Na
capoeira, nos reisados, nas cantigas e em todas as demais formas de
expressão das danças brasileiras, a mesma relação ocorre, produzindo
significados específicos conforme as próprias dinâmicas das manifestações e
das realidades corporais dos sujeitos nelas implicados.

7 Diana Tylor (2013, p. 57) faz a seguinte reflexão sobre a ideia de repertório: “Parte do
que a performance e os estudos da performance nos permitem fazer, então, é levar a
sério o repertório de práticas incorporadas como um importante sistema de conhecer e
de transmitir conhecimento. O repertório, num nível muito prático, expande o arquivo
tradicional usado pelos departamentos acadêmicos nas humanidades”.

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O IMPROVISADOR SE FAZ NA RODA: O SABER-FAZER DA
IMPROVISAÇÃO NAS DANÇAS BRASILEIRAS

O dançar/jogar/improvisar “se faz na roda”. A metáfora da roda


é utilizada aqui para entendermos tanto sobre o locus operandi da relação
tempo-espaço das danças brasileiras quanto sobre os aspectos rituais que
envolvem a cosmovisão de cada grupo e de cada sujeito. A terminologia
da roda ou os termos correlatos, por exemplo, “giro”, são constantemente
utilizados nas manifestações brasileiras como elemento para delimitação do
tempo-espaço onde ocorrerá o ritual, a festa. Isso pode ser percebido em
algumas situações: enquanto na capoeira o jogo só se inicia quando “se faz a
roda”, nas folias de reis a caminhada entre as casas para as visitas ao menino
Deus nascido são nomeadas de “giro”. O estabelecimento desse tempo-
espaço sagrado/secular é que garante uma das características fundamentais
das danças brasileiras: a performatividade.
É na roda, no giro, que os sujeitos dançantes/brincantes se colocam
para o olhar do outro. É pela circularidade que se estabelece a relação de
eterno retorno ao ponto inicial. É nesse tempo-espaço que o mundo gira e
volta sempre para o mesmo lugar: o ponto inicial da vida. É na roda, no giro,
na gira, na circularidade da vida que ocorre o dançar/jogar/improvisar.
Compreendendo, assim, que o dançar/jogar/improvisar é elemento
preponderante para o desvelamento da capacidade de improvisação nas
danças brasileiras, posso afirmar que o ato de improvisar acontece na medida
em que o brincante/dançante mergulha no jogo/dança da sua manifestação
cultural. Nesses termos, quanto maior o aprofundamento na vivência do
ritual/festa, quanto maior a imersão na experiência do momento do aqui-
agora, maior a possibilidade de a improvisação acontecer.
Ainda que haja liberdade para a realização do improviso, especial-
mente nos momentos de encontros para preparação da festa/ritual, é no-
tória a existência de uma hierarquia para a realização da improvisação nas
danças brasileiras, especialmente quando essa acontece para uma determi-
nada audiência. Nesses casos, os grupos escolhem, nomeiam ou apontam
aqueles que são reconhecidos como os melhores improvisadores para se
apresentarem ao público.
Nas danças brasileiras, o bom improvisador é aquele que consegue
extrapolar os limites da dança e manter, na sua performance, as estruturas

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simbólicas básicas e específicas que caracterizam a dança de sua manifestação
cultural. Assim, quanto mais complexa e difícil a execução da dança, maior
é a capacidade de improvisar do sujeito.

Pensando com base nas noções antropológicas suscitadas por Marcel


Mauss (1974), em seus estudos sobre as técnicas corporais, e por Richard
Schechner (2003), no que se refere à construção da ideia de Performances
Culturais, é possível considerar que o dançante/brincante improvisador
agrega de modo mais eficaz e com maior virtuosidade e destreza todos os
elementos constituintes da manifestação cultural, criando, desmantelando,
recriando e transcriando todos os modos de comunicação e todos os signos
de sua expressão cultural.

Ao improvisar, a intenção do dançante/brincante é realizar a sua


ação com o mais alto grau de qualidade física, sensitiva, emotiva, sígnica e
comunicativa. O que define um sujeito como grande improvisador é o seu
desempenho diante dos espectadores, seja aqueles de sua comunidade ou
aqueles que se encontram à sua margem. Assim, um bom improvisador é
um sujeito capaz de realizar a sua dança com um alto grau de complexidade.
É pensando nas questões que envolvem o desempenho do improvisador nas
danças brasileiras que considero pertinente estabelecermos uma reflexão
sobre esses dois aspectos conceituais apresentados: o virtuosismo e a eficácia.

Segundo Mauss (1974), o virtuosismo está relacionado à capacidade/


habilidade técnica do sujeito de realização e cumprimento de uma
determinada ação, seja ela cotidiana ou extracotidiana. Ainda considerando
o pensamento de Mauss (1974), o virtuosismo se torna evidente quando
o corpo do sujeito apresenta uma técnica corporal8 capaz de diferenciar a
sua organização e estrutura somática daquelas empreendidas pelo corpo
cotidiano. Nas danças brasileiras, ele se dá, portanto, na medida em que é
exigido do dançante o domínio de qualidades, capacidades e/ou habilidades

8 Ao abordar o termo “técnicas corporais”, o faço mediante a leitura e interpretação


da noção desenvolvida por Marcel Mauss em seus estudos sobre o corpo nas práticas
cotidianas e extracotidianas. Nesses termos, refiro-me a técnicas não como um tipo único
e exclusivo de treinamento, mas como modos bem distintos de organização do corpo para
se alcançar a qualidade do movimento que cada dança pede. Como exemplo, penso nas
qualidades do corpo musical para se alcançar o movimento de pulsação na congada, na
força exigida para realização do maracatu, na ginga e sinuosidade para se jogar a capoeira,
no giro intermitente das coureiras no tambor de crioula, na flexibilidade articular dos
passistas de frevo, e assim por diante.

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específicas de uma determinada manifestação cultural, como a resistência
física, a destreza e desenvoltura corporais e vocais, a fluência, a rítmica
(corporal ou musical), as oralidades, etc.

O virtuosismo também está associado às formas como os sujeitos


organizam suas memórias corporais e as colocam para o olhar do outro. De
acordo com Armindo Bião (2007), em seus estudos sobre a Etnocenologia, isso
se refere à capacidade de criar, instaurar e compartilhar estados alterados de
corpo e consciência, colocando-se de modo mais ou menos espetacular para
o olhar do outro em uma incessante busca de superação dos seus limites
(físicos, emotivos, psicológicos) e de sua capacidade de desempenho durante
a ação improvisada. Para Oliveira (2006), o virtuosismo está associado
à capacidade que o dançante/brincante tem de colocar em evidência
o seu movimento, a sua musicalidade, a sua vocalidade e a sua atuação,
demonstrando o alto nível de qualidade corporal durante a realização do
ritual/da festa, independentemente da dificuldade que possa existir para
a sua execução. Nessa perspectiva, um dançante/brincante virtuose busca
sempre a excelência na realização daquilo que se propõe.

Em relação à eficácia, os pensamentos de Marcel Mausse e Richard


Schechner são distintos e complementares em suas observações. Enquanto
Mauss (1974) a compreende como uma capacidade de organização das téc-
nicas corporais para que sejam empregadas exclusivamente quando ne-
cessárias, retardando, inibindo e conservando os movimentos em relação
à emoção avassaladora do momento do acontecimento; para Schechner
(2003), a eficácia se refere à capacidade de se alcançar o efeito desejado du-
rante a ação performativa, cumprindo com o mais alto grau de satisfação
e rendimento todos os padrões corporais, estéticos, éticos esperados para
a execução da ação.

Em ambas as perspectivas, o corpo eficaz é aquele que realiza as


suas ações sem desperdícios e sem uso desnecessário de sua técnica. Um
sujeito eficaz possui habilidades suficientes para saber dosar o uso de
suas capacidades e qualidades corporais a fim de alcançar e ultrapassar as
expectativas construídas sobre sua ação. Quanto maior a consciência do
sujeito no uso de suas técnicas e no emprego de seu virtuosismo, maior a
capacidade de tornar a sua ação eficaz e, com isso, distinguir-se dos demais
sujeitos, tornando-se um bom executante.

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A eficácia está assim relacionada ao rendimento do sujeito na sua
ação, objetivando alcançar os resultados esperados e ultrapassar os limites
com base na virtuosidade do dançante/brincante. Nas danças brasileiras,
a eficácia está associada às condições técnicas que o corpo tem de alcançar
as qualidades requeridas em cada manifestação cultural e em cada tipo
de dança. Corroboro com Oliveira (2006) quando aponta, em seu estudo
sobre o Cavalo-Marinho, a eficácia como o elemento preponderante para
a construção e comunicação plena dos códigos estipulados pela expressão
cultural. Assim, o papel da eficácia está em possibilitar que os símbolos
e signos impressos pela manifestação cultural possam resultar em uma
apreensão consciente (por aquele que observa) de seus saberes-fazeres.
De acordo com Turner (1974), as mensagens simbólicas emitidas pelos
sujeitos de uma dada manifestação estão fundamentadas nos elementos que
constituem a própria consciência que eles têm dessa manifestação.

Entendo que o virtuosismo e a eficácia não se opõem à espontaneidade


dos dançantes/brincantes e, desse modo, são preponderantes para que aconteça
a improvisação nas diversas danças brasileiras. A liberdade improvisacional,
aliada à virtuosidade e à eficácia, conduz o improvisador ao seu limite e, assim,
ele se torna capaz de recriar, transcriar e retroalimentar a própria manifestação
e seus códigos. Ainda que algumas manifestações culturais possam apresentar
estruturas mais codificadas que outras, não há inviabilidade para a existência
e produção do improviso e a permanência mais ou menos efetiva do caráter de
liberdade improvisacional nas danças brasileiras.

Assim, é possível afirmar que o dançar/jogar/improvisar é um


conjunto inseparável e indivisível das formas de organização das mani-
festações culturais brasileiras, sendo elemento constituinte das estruturas
de produção das diversas danças e dos vários corpos em movimento pelo
Brasil afora.

DA IMPROVISAÇÃO NAS DANÇAS BRASILEIRAS À COMPOSIÇÃO


EM TEMPO REAL NAS DANÇAS CONTEMPORÂNEAS:POÉTICAS
DA ENCRUZILHADA

Como já afirmei, dançar/jogar/improvisar nas danças brasileiras é


uma forma de se “colocar na roda”. Nessa roda, a liberdade improvisacional
deve ser vista como uma possibilidade de construção de significados

24
corporificados com base no repertório dos sujeitos que delas participam e de
suas coletividades. É exatamente nesse contexto que a vivência/experiência
se coloca como operadora para a construção de sentidos pelo corpo dos
dançantes/brincantes; afinal, acredito que a experiência/sentido9, como
proposta por Jorge Larrosa Bondia (2014), constrói-se nos atravessamentos e
impregnações que se dão no corpo e pelo corpo.

As experiências vivenciadas nas manifestações culturais brasileiras,


especialmente o congado, as folias de reis e a capoeira, foram fundamentais
para a organização da minha corporalidade. Parto do pressuposto de que o
contato e o relacionamento com essas manifestações e as diversas dinâmicas
corporais delas provenientes possibilitaram a constituição de um repertório
corporal baseado em complexos processos de significação e ressignificação
dessas experiências, deixando no corpo marcas que são constantemente
atravessadas (indivisível e simultaneamente) pelas várias técnicas corporais
apreendidas nas inúmeras práticas cotidianas e extracotidianas, tanto na
arte como na vida ordinária.

Nesse contexto, a relação que estabeleço com a improvisação é reflexo


desse repertório de memórias corporificadas pela experiência com as danças
brasileiras. Assim, é nítido que a maneira como me movo, as decisões que
tomo, as direções que aponto, os discursos/enunciados que apresento e as
estruturas que utilizo no momento em que danço estão diretamente ligados
às experiências subjetivas, metafóricas e sensório-motoras corporificadas
nesse universo.

Desde a relação estabelecida com as danças brasileiras até o contato


com outras linguagens da dança (especialmente as danças contemporâneas),
a improvisação esteve como lugar de investigação, organização, produção e
criação artística e pedagógica, seja nos processos de preparação de atores e
dançarinos, seja nos processos de elaboração estética de personagens e/ou

9 O autor propõe pensar o par experiência/sentido como elemento fundamental para


o processo educacional. O autor faz a seguinte afirmação em relação à sua ideia de
experiência: “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o
que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém,
ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que passa está organizado
para que nada nos aconteça. Walter Benjamin, em um texto célebre, já observava a pobreza
de experiências que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a
experiência é cada vez mais rara” (LARROSA, 2014, p. 18).

25
espetáculos. Contudo, somente no ano de 2011, após o ingresso como docente
na Universidade Federal de Uberlândia, é que pude ter o contato, por meio
do Grupo de Pesquisa Dramaturgia do Corpoespaço, com a improvisação e
com a composição em tempo real como elementos constituintes do espetáculo.

Nessa direção, o encontro com o grupo de pesquisa e, consequente-


mente, o mergulho no universo da improvisação em Dança Contemporânea
foram atravessamentos marcantes e fundamentais tanto para a compreensão
dos processos formativos impregnados no meu corpo dançante como para
o entendimento do meu repertório. Quando se entrecruzam as experiências
da improvisação nas danças brasileiras, as memórias corporificadas e as prá-
ticas e processos criativos da improvisação na relação com o grupo de pes-
quisa, o meu lugar de improvisador e intérprete-criador emerge em uma for-
ma muito peculiar de lidar com os processos de composição em tempo real10.

Em se tratando dos processos criativos na composição em tempo


real, concordo com o seguinte apontamento de Ana Carolina Mundim
(2012, p. 105):
Criar a cena em tempo real não significa partir de
“lugar algum”. De seus laboratórios corporais, os
intérpretes-criadores reúnem vocabulário, repertório,
possibilidade de estados corporais e uso do espaço e
tempo que servirão de referencial para a improvisação
a ser realizada em cena. A composição em tempo real
exige do intérprete-criador, além de um domínio de
seu próprio corpo, uma potencialização das relações
coletivas e das ferramentas de composição, uma atitude
de realizar escolhas e a confiança nas decisões tomadas.
Conectar-se com o entorno, dialogar com as propostas
por ele oferecidas (sons, gestos, lugares, situações,
etc.) e perceber o outro (artista ou espectador) com a
inteireza de um corpo que sabe posicionar-se mediante
as ocorrências da vida tornam o intérprete-criador uma
escritura poética em movimento.

10 Segundo Mundim (2012, p. 105), “A composição em tempo real exige do intérprete-


criador, além de um domínio de seu próprio corpo, uma potencialização das relações
coletivas e de ferramentas de composição, uma atitude de realizar escolhas e a confiança
nas decisões tomadas. Conectar-se com o entorno, dialogar com as propostas por ele
oferecidas (sons, gestos, lugares, situações, etc.) e perceber o outro (artista ou espectador)
com a inteireza de um corpo que sabe posicionar-se mediante as ocorrências da vida
tornam o intérprete-criador uma escritura poética em movimento”.

26
Nos procedimentos de trabalho do grupo de pesquisa há, baseada na
relação com a improvisação, a construção de um lugar de convívio afetivo
que se aproxima dos modos-de-fazer das festas populares brasileiras. Existe
nesses dois universos, por exemplo, um intenso e respeitoso processo de
negociação entre as individualidades e a coletividade, a fim de se construir
uma prática coletiva capaz de dar conta da complexidade do discurso e de sua
emissão, seja ele corporal ou oral. Outra semelhança se encontra nos modos
de se relacionar, pois ambos priorizam as formas mais horizontalizadas de
cooperação entre os sujeitos, garantindo que as hierarquias (sim, elas existem
e dialogam todo o tempo com as várias vozes dos sujeitos implicados na
experiência do convívio em grupo) funcionem de forma menos rígidas e
formais, sendo assim mais maleáveis e dinâmicas. Sobre o modo de trabalho
do grupo de pesquisa, Mundim (2012, p. 114) diz:

O lugar de convívio afetivo é um exercício constante


de potencialização das afinidades e de reconhecimento
dos distanciamentos, de negociação dos distintos
estados e de respeito aos diferentes humores. É o lugar
de preservação das diferenças com respeito, cuidado
e diálogo. É o lugar onde as vaidades e as verdades
absolutas precisam ser diluídas em prol de um universo
coletivo. Isso não significa deixar de se posicionar, de
discutir, de argumentar. Significa compreender que
cada um é sujeito que não se encerra em si. Portanto, é
o lugar de onde o ‘eu’ só existe na percepção do ‘outro’.

A minha relação com a composição em tempo real proposta pelo gru-


po de pesquisa teve um início conturbado. A princípio, estava acostumado a
lidar com o modo quase estruturado do momento em que ocorre o improviso
nas danças brasileiras (apesar de cada improvisador e cada momento de im-
provisação serem e se colocarem distinta e sobrepostamente como uma nova
e efêmera forma de lidar com os símbolos e significados da manifestação cul-
tural), sendo essa a tônica de todo o processo criativo que vivenciava ou de-
senvolvia. No contato com a improvisação e composição em tempo real nas
danças contemporâneas, tive que me colocar decididamente em uma relação
aberta com o outro, em um processo de negociação em que há uma liberdade
tão grande para se exercer a sua dança, mas ao mesmo tempo limitado pela
proposição que o outro traz para o jogo e pela forma como ele ocupa o espaço
em relação à cena, e isso se tornou um imenso nó a ser desatado.

27
Compreendi que esses nós eram causados pela instabilidade dos
conceitos e ideias sobre improvisação que eu trazia de modo bastante
enrijecido e fixado na minha corporalidade; e que desatá-los seria um exercício
de revisão desses conceitos e uma incansável reorganização epistêmica e
ontológica do modo como eu via a improvisação. Gradativamente, percebi
que os pontos de contato entre as dinâmicas corporais das danças brasileiras
e os exercícios técnico-criativos desenvolvidos pelo grupo se davam
exclusivamente pela abertura e engajamento do corpo na relação com o
movimento. Assim, acionando metáforas, sensações, lugares, percepções,
imagens, sonoridades e oralidades, fui construindo um vocabulário
entremeado pelas memórias corporificadas com base nas danças brasileiras
e suas nuances de movimento, bem como pelo novo vocabulário corporal
desenvolvido nos exercícios técnico-criativos em improvisação, em uma
relação profunda de entrega aos laboratórios propostos pelo grupo.

As qualidades corporais apreendidas dos elementos da improvi-


sação nas danças brasileiras permanecem como base no corpo-memória.
Dentre os elementos trabalhados, alguns foram fundamentais para a mi-
nha experiência, como a ludicidade, a virtuosidade, a eficácia e a integra-
lidade/indissociação entre movimento, musicalidade e oralidade, pois até
hoje perpassam os processos e práticas que vivencio ao dançar, indepen-
dentemente do contexto em que eu esteja ou da linguagem estético-ar-
tística escolhida. O reconhecimento dessas qualidades e o estudo desses
elementos como materiais criativos passaram a ser fundamentais para a
construção, organização e representação de um corpo vivo no ato da pró-
pria composição em tempo real. Assim, entendo que os laboratórios de
experimentação e criação do grupo de pesquisa foram importantes para a
construção de um “saber encarnado” em relação aos procedimentos artís-
ticos na interface entre as danças populares e as danças contemporâneas,
seja na improvisação e composição em tempo real, seja nas demais formas
de expressão que delas emergem.

O que percebo é que a relação entre as danças brasileiras e a


composição em tempo real apresenta características que vão além do
processo de interlocução entre os conceitos, procedimentos ou modos de
se fazer da improvisação. Para artistas que se lançam a experienciar essa
prática, a relação se constitui como a base para a produção de uma poética

28
do corpo, que se estabelece na encruzilhada traçada pelo encontro dessas
duas perspectivas (danças brasileiras e danças contemporâneas). Esse é
um dos apontamentos que fundamentam a proposição de elaboração da
metáfora corpo-encruzilhada11.

Entendo a encruzilhada como o espaço tangencial, o lócus operacional


do atravessamento de duas ou mais vias de acesso. A encruzilhada ocorre
no ponto nodal, o ponto de encontro ou ponto de interseção entre essas vias.
Quando me refiro ao corpo-encruzilhada, o faço com base na elaboração
metafórica que propõe um deslocamento de atenção para o corpo-espaço
como ponto nodal de encontro de vias distintas, como a memória, a
performatividade, o repertório etc. Aqui, podemos pensar que o ponto
nodal da improvisação nessas distintas vias de saberes-fazeres se dá no
corpo-encruzilhada.

Operacionalizar os elementos da composição em tempo real nessa


encruzilhada é, sobretudo, ativar as qualidades, mecanismos, sensações e
percepções do repertório desse corpo-memória, permitindo vivenciar o
instante presente do dançar/jogar/improvisar e, nesse fluxo, criar situações,
imagens, emoções e relações capazes de articular e materializar um discurso
poético em uma dimensão coletiva.

Penso a poética como elemento estético capaz de gerar reações


emotivas, sensitivas, afetivas e críticas a um sistema de significação e
expressão, recriando e transcriando novas maneiras de se colocar no mundo
(JAKOBSON, 2003; CAMPOS, 1975). Nessa perspectiva, entendo que a
poética do corpo é elemento capaz de criar deslocamentos, fricções, reversões
e desestabilizações nos procedimentos de leitura estética do mundo, tanto
mais quando se associa a este os processos de interlocução entre as dinâmicas
corporais e repertórios incorporados do corpo-encruzilhada e, no contexto
deste texto, as qualidades estéticas da relação entre danças brasileiras e
composição em tempo real.

11 Esse termo/conceito foi elaborado na construção da minha tese de doutoramento


em artes cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio. Para maiores informações sobre o assunto,
consulte a seguinte referência: RAMOS, Jarbas Siqueira. Questões epistemológicas sobre
o corpo-encruzilhada. Disponível em: <http://portalabrace.org/viiicongresso/resumos/
jornada/RAMOS%20Jarbas%20Siqueira.pdf>. Acesso em: 14 set. 2016.

29
Refletindo sobre essa relação na prática artística, percebo que a
composição em tempo real acontece com a presentificação desse corpo-
memória, desses repertórios, dessas encruzilhadas, acionados por um
dançar/jogar/improvisar que traz à tona uma relação de vivacidade,
ludicidade, afetividade e de prazer na conexão estabelecida entre os
improvisadores (intérpretes-criadores) e entre estes e o público, construindo
no aqui-agora uma poesia em movimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como disse no início do texto, a minha intenção não foi criar


generalizações sobre a prática artística da improvisação e suas inúmeras
possibilidades de atuação tanto nas danças brasileiras como nas danças
contemporâneas. O objetivo foi o de refletir sobre o imbricamento,
atravessamento, encruzilhada entre os dois campos da Dança acima
especificados, tendo como ponto de partida a minha experiência nesses dois
universos e como ponto central de análise a improvisação e a composição
em tempo real.
Nesse contexto, quatro questões surgiram como condições necessárias
para a produção dessa reflexão: 1) a necessidade de se estabelecer um deslo-
camento epistemológico que produza novas formas de olhar/pensar/dizer
as danças brasileiras no contexto do campo da Dança; 2) o entendimento de
que nas danças brasileiras o processo de dançar/jogar/improvisar é um todo
indivisível e inseparável e que se constitui à medida que os sujeitos se colo-
cam na relação com o outro; 3) não há um único modo de se dançar/jogar/
improvisar, pois essa relação é estabelecida conforme a experiência de cor-
po-vida de cada sujeito; 4) os processos de imbricamentos, atravessamentos
e encruzilhadas, que surgem na improvisação com base na relação entre as
danças brasileiras e as danças contemporâneas, são reflexos dos modos como
cada sujeito constrói sua poética ao dançar/jogar/improvisar.
Pensar a relação do dançar/jogar/improvisar como uma dimensão
poética, ética e estética, tanto coletiva como individual, é buscar
uma compreensão da relação entre as danças brasileiras e as danças
contemporâneas como uma possibilidade humana de expressão, criação,
existência e resistência. Quando associada à improvisação e à composição
em tempo real, a dimensão poética se coaduna com a dimensão política,

30
criando novas estruturas de produção de sentido e de organização do corpo
em movimento no espaço. É nessa perspectiva que afirmo que a relação entre
memória, repertório e presença é ponto fundamental para a construção de
um discurso e de uma poética na improvisação, que só pode acontecer e ser
acessada no momento do aqui-agora.
Em se tratando da improvisação e da composição em tempo real,
as experiências cênicas de criação e composição são, sempre, espaços de
construção de discursos poéticos que permitem o deslocamento dos sentidos
literais para os metafóricos por meio de traduções e transcriações que
potencializam a relação entre o artista/improvisador/intérprete-criador
e seu espectador. Ao entender essa dimensão da composição em tempo
real, não é difícil compreender que a relação entre os discursos das danças
brasileiras e das danças contemporâneas se faz, necessariamente, no corpo
do sujeito que dança. O corpo é, assim, o ponto nodal dessa relação e dessa
construção. Ele é o ponto nodal da encruzilhada. O corpo-encruzilhada.

Ao me referir ao corpo-encruzilhada, termo/noção que tenho


utilizado para elaborar uma reflexão sobre a dimensão do corpo no interstício
entre as práticas rituais e a cena, busco acionar essa relação entre memória,
repertório e presença na relação com o corpoespaço. Entendo, assim, que
o corpoespaço-encruzilhada é o lócus tangencial em que convergem todos
os elementos (o virtuosismo, a eficácia, a performatividade, as memórias
incorporadas etc.) que compõem e definem o processo de dançar/jogar/
improvisar nas danças brasileiras e nas danças contemporâneas.

Enfim, como todo e qualquer processo artístico, a construção desse


lugar efêmero e instável da composição em tempo real nos convida a
continuar refletindo, presentificando, sentindo, gerindo e construindo um
percurso que não se encerra no fim da improvisação, pois o fim é sempre a
possibilidade um novo começo. Concordo com Mundim (2012) quando diz
que esses outros percursos traçados pelas ações dançadas na composição em
tempo real são modos sutis de existir, insistir e coexistir.

Assim, faço um convite para que possamos experienciar o dançar/


jogar/improvisar com base na interlocução entre as danças brasileiras e
a composição em tempo real. Faço um convite para que nos permitamos
olhar para as manifestações culturais brasileiras e compreendamos os
atravessamentos e encruzilhadas que se dão no nosso corpo que dança.

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Faço um convite para que nos coloquemos em uma prática artística afetiva
e permitamos que a construção poética do nosso dançar seja uma forma de
plantar e colher amor e poesia em forma de movimento. Quem topa? Vamos lá?

REFERÊNCIAS

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questões de etnocenologia. Salvador: P&A, 2007.

CAILLOIS, Roger. O jogo e os homens: a máscara e a vertigem. Trad. José


Garcez Palha. Lisboa: Cotovia, 1990.

CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável e outros ensaios. 3ª


ed. São Paulo: Perspectiva, 1975.

DOMENICI, Eloísa. A pesquisa das danças populares brasileiras:


questões epistemológicas para as artes cênicas. In: Cadernos do GIPE-CIT.
Universidade Federal da Bahia – UFBA, Programa de Pós-Graduação em
Artes Cênicas. Nº 23. Salvador: UFBA/PPGAC, 2009.

HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. Trad.


João Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 2007.

JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. 19ª ed. Trad. Isidro


Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 2003.

LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Trad. Cristina


Antunes, João Wanderley Geraldi. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.

LIGIÉRO, Zeca. Corpo a corpo: estudo das performances brasileiras. Rio de


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MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Trad. Lamberto Pulcinelli. São


Paulo: EPU, 1974.

MUNDIM, Ana Carolina (org.). Dramaturgia do corpo-espaço e


territorialidade: uma experiência de pesquisa em dança contemporânea.
Uberlândia: Composer, 2012.

OLIVEIRA, Érico José Souza de. A roda do mundo gira: um olhar sobre o
Cavalo Marinho Estrela de Outro (Condado-PE). Recife: SESC, 2006.

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