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ENTRE RAÍZES, CORPO E FÉ:

poetnografias dançadas

Among roots, bodies and faith: danced poethnographies

Renata de Lima Silva


Professora Adjunta do Curso de Licenciatura em Dança
Universidade Federal de Goiás – UFG

Marlini Dorneles de Lima


Professora do Curso de Licenciatura em Dança – UFG
Doutoranda no Programa de Pós-Graduacão em Artes
Universidade de Brasília – UnB

Resumo: O objetivo deste artigo é explicitar e discutir a metodologia de trabalho Núcleo de


Pesquisa e Investigação Cênica Coletivo 22 (SP/GO) a partir de articulações que aproximam, ao
mesmo tempo que diferenciam, os campos da arte e antropologia. A discussão é feita a partir do
processo em elaboração de uma performance que investiga a história de vida de mulheres que
habitam e significam o cerrado brasileiro.
Palavras-chave: dança; processo de criação; cultura popular brasileira.

Abstract: The aim of this paper is to explain and discuss, from the standpoints of anthropology
and art, the methodology of research of Núcleo de Pesquisa e Investigação Cênica Coletivo 22
(SP / GO – Brazil). The discussion is based on the creative process in a work in progress
performance surveing the lives and stories of native women of Brazilian Cerrado.
Keywords: dance; creative process; Brazilian popular culture.

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Renata de Lima Silva e Marlini Dorneles de Lima

O Núcleo Coletivo 22 é o por poéticas para a cena da dança,


encontro de artistas-pesquisadores que, pautada em elementos da cultura
através da dança em profunda interação popular, na performance do cotidiano de
com a música e o teatro, materializam mulheres do cerrado (raizeiras,
suas inquietações e desejos em forma de benzedeiras e parteiras) e no
arte, propondo-se a estudar a imbricamento da discussão sobre corpo,
performance de manifestações da cultura e arte.
cultura popular brasileira e compor Neste contexto de estudo, a
trabalhos artísticos a partir da primeira questão que se coloca é o que
construção de dramaturgias do corpo. se entende por estudo da cultura popular
O Núcleo nasceu em trabalhos na pesquisa sobre processos de criação
de pesquisa artística realizados na em dança. E logo depois, como perceber
Unicamp, entre 1999 e 2001, a performance do cotidiano de mulheres
atualmente reúne um grupo em São do cerrado sem correr o risco de um
Paulo e outro em Goiânia, vinculado ao olhar exotizador.
Curso de Licenciatura em Dança da O olhar do artista-pesquisador
Universidade Federal de Goiás-UFG. para a cultura popular, mesmo que
Neste contexto, articula pesquisas respaldado por procedimentos da
acadêmicas, de graduação e pós- pesquisa antropológica, é norteado pelo
graduação, projetos de extensão e princípio do “saber sensível”, isto é, por
produções artísticas, como é o caso do questões de ordem estética, sejam elas
estudo apresentado neste escrito, fruto técnicas, poéticas e/ou simbólicas. É
de experimentações do Núcleo e este olhar que se volta para o cerrado
desdobrado em pesquisa de brasileiro, mais especificamente o
doutoramento, em desenvolvimento, no estado de Goiás, em busca de motivos
Programa de Pós-Graduação em Artes para fazer o corpo dançar. Uma dança
da Universidade de Brasília (UNB). que evoque corpos e histórias dos outros
Na esteira de outros projetos do e que dialogue com o inventário
Núcleo Coletivo 22, “Entre Raízes, pessoal. Em outras palavras, que
Corpos e Fé”, consiste em uma busca promova o encontro, o estranhamento, o

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reconhecimento e a criação de desempenhando papéis de grande


poetnografias dançadas, no sentido de importância em determinadas
poetizar a existência e o ser mulher que comunidades, como é o caso das
habita o cerrado com suas práticas raizeiras, benzedeiras e parteiras.
corporais, crenças e fé. Perceber essas mulheres é também
É a partir dos desafios do apreender seus contextos, pois uma
cotidiano que o corpo organiza sua pesquisa deste tipo, perpassa aspectos
corporeidade e efetiva a performance da históricos, sociológicos e
realidade vivida como corpo que cria antropológicos, aliados a experiência
cultura e é dialeticamente construído estética.
por ela. Assim, nessa relação porosa
entre corpo e espaço se define “Elas em mim e o eu no outro” – uma
corporeidade, aqui entendida na abordagem metodológica
perspectiva de Le Breton (2007, p. 7)
“como fenômeno social e cultural, Em pesquisas com o enfoque no
motivo simbólico, objeto de fazer artístico, a abordagem
representações e imaginários”. metodológica é fundamentalmente o
caminho que faz com que a expressão
A ideia de corporeidade se artística, neste caso a dança, em sua
constitui nas imagens que
práxis, aconteça. Aqui tratamos
definem o corpo e dão sentido
especificamente da trajetória escolhida
à sua extensão invisível, os
sistemas de conhecimento que para materializar o que denominamos
procuram elucidar-lhe a neste estudo de poetnografias
natureza, os ritos e símbolos dançadas, isto é, as dramaturgias do
que o colocam socialmente em
corpo construídas no ato e efeito de
cena, compondo unidades
absorver do cotidiano e/ou rituais,
incrivelmente variadas. (LE
BRETON, 2007, p. 28)
elementos para criação de dança por
meio de pesquisa de campo e de
É nessa perspectiva que surge o investigação em laboratórios de criação.
interesse em perceber o cerrado Estes procedimentos e abordagens
desenhando corpos de mulheres que se metodológicas estão ancorados no
inscrevem entre o ritual e o cotidiano, estudo “Corpo Limiar e Encruzilhadas”

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(SILVA, 2012), do qual abordaremos artigo na formação em Dança na


mais adiante. Unicamp.
É importante que se diga que Enquanto Inaicyra Falcão dos
esse percurso de processo de criação é, Santos discute a noção de “Corpo e
em certa medida, trilhado em um Ancestralidade” (SANTOS, 2006),
caminho já sinalizado por outros artistas Graziela propõe a metodologia
e pesquisadores que se dedicaram a “Bailarino-pesquisador-intérprete”
pesquisa artística tendo como referência (RODRIGUES, 1997), na qual
a cultura popular brasileira. Nesse apresenta a ideia de “inventário
sentido, vale a pena citar o trabalho de pessoal”, caracterizado pelo
Graziela Rodrigues e Inaicyra Falcão autoconhecimento a partir de memórias
dos Santos, ambas professoras do afetivas e pelo acionar de um
Instituto de Artes da Unicamp, sem, imaginário ancestral.
todavia, ignorar o fato de que na história Outro aspecto é a pesquisa de
da Dança no Brasil nomes como Eros campo no processo de criação em dança
Volúsia, Mercedes Batista, Clayde como um “cohabitar com a fonte” como
Morgan, entre outros, pensaram de definiu Rodrigues (1997), defendendo
forma precursora os primeiros passos de uma vivência corporal efetiva no
uma dança moderna brasileira calcada território pesquisado. Processo que se
na tradição popular. diferencia de uma etnografia por
São nos trabalhos de Graziela valorizar, sobretudo, aspectos
Rodrigues e Inaicyra Falcão dos Santos cinestésicos que ficam registrados no
que se alicerçam dois importantes corpo como impressões, sensações e
aspectos pertinentes para esse estudo. potências de movimentos.
Primeiramente, a importância de se Por sua vez, Inaicyra Falcão em
compreender e adentrar o contexto da sua metodologia de ensino propõe a
cultura popular a partir de sua própria experiência com a mímese de trabalho
ancestralidade e história pessoal, braçal, isto é, não mediados por
aspecto ressaltado por ambas em suas tecnologias modernas, como por
propostas de trabalho, vivenciado de exemplo “lavar roupa no rio” e “cortar o
forma direta por uma das autoras deste mato com facão”, como um canal de

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conexão com a ancestralidade. A Corpo e performance


experiência corporal de ações realizadas
na performance do cotidiano (ações de A ideia de atualização do
trabalho), por meio de técnicas passado vai ao encontro da teoria sobre
corporais apreendidas tradicionalmente, “comportamento restaurado”,
isto é, não formalizadas em desenvolvida por Richard Schechner
conhecimento produzido em instituições (apud LIGÉRO, 2012), que ao pensar
de ensino e nem mediadas por sobre as relações entre antropologia e
tecnologias modernas, é segundo a performance e, mais especificamente,
professora, uma maneira de acionar a sobre os estudos da performance,
ancestralidade. Neste contexto, a atentou-se para as relações entre ritual,
ancestralidade é pensada não apenas jogo e performance. O autor
como um passado definido por um elo compreende performance, seja ela
familiar e sim em termos de um passado artística, esportiva ou da vida diária,
histórico, mítico e cultural. Deste modo, como ritualizações de sons e gestos, que
a corporeidade em questão é vista como são comportamentos duplamente
uma atualização (recriação) do passado, exercidos, codificados e transmissíveis,
por meio de uma memória coletiva que gerado em interação entre o jogo e o
se apresenta como tradição, em outras ritual. Neste contexto, os rituais são
palavras, a ancestralidade, não como vistos como memórias em ação.
uma volta ao passado, mas como Para Schechner (apud LIGIÉRO,
atualização da tradição (SILVA, 2010). 2012) o processo ritual é performance e
Considerando procedimentos nessa qualidade é capaz de anunciar,
como esses abordados pelas autoras ilustrar e registrar o tempo, o espaço e
citadas acima, pensamos aqui, que o também as fronteiras culturais e
material vivenciado, observado e pessoais. Nesse sentido, Martins (2002)
apreendido em campo é confrontado acredita que o corpo no ritual pode ser
com o inventário pessoal nos considerado o lugar de inscrição de
laboratórios de criação, para dar forma a saberes, de histórias e vivências
poetnografias dançadas, instaurando expressadas pelo gesto. Nas palavras da
um espaço de reflexão e fruição entre a autora: “(…) o que no corpo e na voz se
antropologia e a arte. repete é uma episteme. Nas

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performances da oralidade, o gesto não Schechner (apud LIGIÉRO,


é apenas uma representação mimética 2012) explica que os rituais podem ser
de um aparato simbólico, veiculado pela sagrados ou seculares, isto é, ligados à
performance, mas institui e instaura a crenças religiosas ou expressos em
própria performance.” (MARTINS, cerimônias civis, na vida diária e em
2002, p. 72). outras atividades de caráter não
Nas duas abordagens sobre religioso. No entanto, o autor alerta para
performance: na de Schechner (2002) - o fato de que nem sempre essa divisão é
que considera desde o cotidiano até a pura e genuína, o que se aplica com
cena teatral; Como na de Martins (2002) ênfase no contexto das culturas
que numa perspectiva voltada populares brasileira, em que as
especificamente para a questão da fronteiras entre o sagrado e o profano
tradição popular, abre essa discussão a são muitas vezes permeáveis. Como é o
partir de sua pesquisa e vivência com caso das comemorações religiosas que
congado mineiro, o lugar do corpo na acabam em “vadiações”1, e da crença
performance aparece relacionado com a religiosa ou fé mística, que se
noção de memória, isto é, caminho pelo presentificam em várias instâncias da
qual são realizadas as grafias do corpo, vida diária.
que não apenas repete os hábitos, mas O estudo do corpo e do gesto em
que os revisa, representa e ressignifica. determinado grupo social ou
Por essa via, chega-se a noção manifestação cultural para fins de
de corpo como um locus de saber pesquisa artística não prescinde de um
dinâmico por onde são tecidas, no olhar sensível e cuidadoso para os
campo simbólico, as questões culturais. simbolismos e poéticas impressas tanto
Nesse sentido aproximamos a nos rituais sagrados como nos
ideia de comportamento restaurado, cotidianos e nas suas entrelinhas. É
apresentada por Schechner (2002), com nesse sentido que procuramos observar
a concepção de tradição e e compreender a atuação das
ancestralidade que pode se aplicar ao benzedeiras, parteiras e rezadeiras, que
contexto da cultura popular brasileira. 1
Vadiação é um conceito presente em manifestações
populares brasileiras, como a capoeira, o samba e cavalo
marinho, para designar o aspecto lúdico da prática.

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habitam e significam o cerrado, ao atravessado por relações de poder e de


mesmo tempo em que são habitadas e saber. Sendo assim, utilizamos a ideia
significadas por ele. de cerrado, apesar desta poder ser
considerada uma expressão frágil do
De dentro e de fora do cerrado ponto de vista conceitual, mas que tem
Após as queimadas, o cerrado renasce servido como um parâmetro para
das cinzas e os ramos das plantas queimadas
formação das identidades dos povos da
rebrotam e crescem tortos.
região central do Brasil.
(OLIVEIRA, 2009, p. 26)
A ideia de cerrado, palavra que

De onde se olha para o cerrado? etimologicamente significa fechado,

De dentro e ao mesmo tempo de fora. É denso, compacto, é uma espécie de

inevitável que em um estudo como esse, campo que não é formado apenas de

que se configura ao mesmo tempo como capins, mas também de arbustos e

processo de criação artística e pequenas árvores tortas, de cascas

investigação acadêmica, o pesquisador grossas e folhas duras. É uma região

abandone a pretensa neutralidade para que possui uma estação seca com

se inserir na cena também como sujeito muitas queimadas e um período de

da pesquisa. chuvas intensas.

Olhamos para o cerrado de O cerrado tem um lastro forte da

dentro, por residirmos na cidade de ação dos paulistas bandeirantes e como

Goiânia. De fora por sermos de outros o sertão nordestino foi marcado pela

estados e de um entrelugar, por ser cultura do gado. Tem suas

Goiânia, uma capital modernizada, identificações construídas entre as

muito embora ainda preserve traços da noções identitárias do caboclo, caipira e

vida rural. sertanejo. A cultura goiana é construída

É importante destacar que a na interação entre cultura indígena e

opção de utilizar, neste estudo, o termo portuguesa e, também, recebeu

cerrado em detrimento de sertão não influências da cultura do negro africano

quer desconsiderar o fato de que ambos (Ribeiro, 1995), que se nota tanto pela

os termos, são apropriações diferentes quantidade de quilombos como em

que podem designar o mesmo espaço. O manifestações populares como o

processo de construção de uma região é moçambique, o congo e a sussa.

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Raízes, cascas, folhas, óleos, No passado e no presente, bem


resinas, argilas são alguns dos recursos como no passado que ainda atua no
naturais que a gente do cerrado soube presente do estado de Goiás, tem-se
manipular para transformar a matéria notícias de mulheres que
em conhecimento e saberes populares, desempenharam e desempenham
juntamente com rezas e crenças que importantes papéis que assinalam essa
construíram o catolicismo popular. relação entre natureza e cultura
Conforme consta na Farmacopéia queremos conhecer e ressaltar: as
Popular do Cerrado (2009:42) “A parteiras, raizeiras e benzedeiras.
medicina popular é exercida no cuidado Pensar o corpo e seus
com a família, principalmente pelas atravessamentos com a natureza, em
mulheres e, em forma de atendimento outras palavras, a corporeidade nas
de saúde nas comunidades, por diversas interconexões entre cultura e natureza é
categorias de conhecedores proporcionar o diálogo entre diferentes
tradicionais”. Destaca-se aqui uma áreas de conhecimento com a vida, do
importante ação e participação de jeito que ela é vivida por seus atores
mulheres, que vale lembrar, são muitas sociais. É deste contexto, que surge à
vezes, ignoradas nos estudos investigação cênica “Entre raízes,
historiográficos. corpos e fé”, em que uma figura
A “ausência” de elementos da arquetípica de uma anciã traz a baila
história feminina na cultura material da identificações de mulheres que no
região norte de Goiás, no século XIX, Cerrado benzem, fazem partos e
constatada por Parente (2005), permite manipulam ervas.
dizer que as experiências concretas e as Esta investigação cênica, para
práticas cotidianas das mulheres foram além de algo que vai desembocar em
subestimadas, porque os procedimentos produto artístico, é também um recurso
de registro, dos quais a história é metodológico da pesquisa acadêmica,
tributária, são fruto de uma seleção que em que uma figura semi-ficcional
privilegia o mundo público, sobretudo o assume o papel de criar um imaginário
econômico e político, reservado aos para o contexto histórico, cultural e
homens. geográfico em que determinadas

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identificações corporais são criadas, a Esse olhar para a dança que


exemplo de Seu Firmino, personagem perpassa pela relação do “elas em mim e
semi-ficcional criado por Silva (2010)2. o eu no outro” bem como pela busca de
“Entre raízes, corpos e fé” é, compreender o cerrado olhando de dentro

então, um estudo cênico que aborda a e de fora, de perto e de longe e nos

corporeidade de mulheres do cerrado entrelugares, tem como objetivo,

como um fenômeno social em sua aprofundar as discussões sobre uma dança


brasileira contemporânea.
totalidade, compreendido numa relação
Procurando escapar do plano
entre organismos que envolvem a
ideológico que delimita fronteiras
perspectiva subjetiva, cultural e política.
políticas e que procura legitimidade na
As benzedeiras, raizeiras e
ideia de identidade como algo unificado e
parteiras que hoje podemos encontrar
homogêneo, em estudo anterior, realizado
pelo cerrado brasileiro são mulheres que
por uma das autoras desse artigo, a dança
advêm de uma tradição que se
brasileira contemporânea é situada como
consolidou como tal tanto para
um potente catalisador da pluralidade
solucionar problemas imediatos da vida
cultural brasileira e do diálogo híbrido
de uma comunidade, como forma de com a arte na contemporaneidade
suprir as carências de saúde pública e (SILVA, 2012).
representantes oficiais da Igreja, como Lançar um olhar sensível para as
também herança de saberes advindos culturas populares, bem como para a
das tradições indígenas que se performance do cotidiano de mulheres
confundiram e mesclaram tanto com o do cerrado, marcadas por saberes
catolicismo português como com tradicionais, é buscar compreender a
elementos da cultura afro-brasileira. noção de tradição atuante na cultura de
forma viva, isto é, no modo de conceber
Por uma dança brasileira e viver daqueles que produzem e usam
contemporânea esses bens simbólicos. É neste sentido
que:
2
Silva (2010/2012) traz à tona elementos da pesquisa de Embebedar a dança contemporânea
campo sobre Capoeira Angola e alguns Sambas de
Umbigada, abordando aspectos históricos e sociais a essas dessa potência é estabelecer uma via de
manifestações inerentes, sem deixar de considerar questões
da subjetividade da criação artística e aspectos do inventário comunicação de mão dupla: apropriar-
pessoal.
se de códigos representativos da

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manifestação popular – que é de de existência, como observou o referido


domínio público – para reelaborá-los
autor a partir de seus estudos acerca dos
em determinada linguagem artística,
rituais de passagem.
que através da publicação
(apresentação) volta ao público em Levando em consideração a
uma nova situação, contrastando o abordagem de Schechner (in: Ligiério,
reconhecível e o incógnito (SILVA, 2012) que amplia a noção de ritual, para
2012, p. 73).
além dos rituais de passagem,
abarcando também o que tratou como
Nesta perspectiva, podemos
rituais seculares, a noção de Corpo
considerar também que o diálogo das
Limiar diz respeito ao estado corporal
artes cênicas com elementos das
por onde transita as noções de passado e
culturas populares é, também, uma
de presente, de sagrado e de profano, do
possibilidade de ampliação do potencial
eu e do outro.
comunicativo da dança contemporânea,
Se no estudo retrocitado (SILVA,
que com isso se abre para possibilidades 2010/2012) o Corpo Limiar foi
estéticas adaptando-se a diferentes
observado nas rodas de capoeira, jongo,
contextos. tambor de crioula e samba de roda, que
Sem ignorar o fato de que a
são espaços por onde transitam
dança brasileira contemporânea pode polaridades agenciadas pela força da
acontecer por meio de diferentes
tradição popular – a encruzilhada, o
metodologias e se debruçando sobre desafio agora se anuncia no ato e efeito
diferentes objetos de estudo, nos
de expandir a noção de encruzilhada
propomos aqui a pensar a criação nessa para além do lugar/momento marcado
linguagem, a partir de referências do
pela ação lúdica do jogo ou da dança,
cerrado brasileiro, por meio das noções alcançando um lugar mais próximo do
de Corpo Limiar e Encruzilhas (SILVA, cotidiano.
2012). Para Martins (1997), a
O termo “limiar” foi livremente Encruzilhada – encontro de ruas ou
adaptado a partir da noção de trilhas onde se faz oferenda pra Exu e
“liminariedade” discutida por Turner sua falange – é tratada não como um
(1974), a respeito do estado subjetivo de lugar concreto, mas como metáfora da
estar no limite entre duas possibilidades

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noção de tempo-espaço e, mais do que O corpo em performance na


isso, como um ponto nodal que encontra dança brasileira contemporânea é
no sistema filosófico-religioso de construído a partir da experiência na
origem iorubá uma complexa Encruzilhada, que, por sua vez, a
formulação: um lugar de interseções. restaura e a reinventa, provocando uma
Ora, se a Encruzilhada, como tensão entre divergências e
está definido em Silva (2010), é convergências, pluralidades e unidades,
justamente o lugar em que passado e matrizes e disseminações do fenômeno
presente se sobrepõem e, ainda, onde pesquisado.
perpassam questões relacionadas ao A Encruzilhada é, também, um
sagrado, ela pode também ser pensada locus tangencial (MARTINS, 2012),
não apenas como o tempo-espaço de assinalado como instância simbólica, da
festas e vadiações, mas, também, de qual se processam vias diversas de
rezas, partos e benzeduras. O corpo em elaborações discursivas que coabitam.
cena não é exatamente um Corpo limiar Neste contexto, como pensar o trabalho
e nem a cena é uma Encruzilhada, mas das parteiras, benzederias e raizeiras
queremos reivindicar para arte essas como corpos de encruzilhada? E como
identificações, que são relidas e extrair dessas Encruzilhadas elementos
reinterpretadas pelo artista, que pode para a criação de “outras encruzilhadas”
poetnografar na dança as singularidades da cena contemporânea?

e alteridades das mulheres do cerrado, É estimulado por essa provocação

inventando “outras encruzilhadas”. que o Núcleo Coletivo 22 vem


construindo sua trajetória ao longo de
12 anos de atuação entre a cena artística

Entre o cotidiano e a Encruzilhada e a pesquisa acadêmica, passando pelos


trabalhos “Em Qualquer Lugar” (2001),
Não há lugar achado “Desvio da Serpente” (2002),
Sem lugar perdido “Mandinga da Rua” (2004), “De folhas,
Casam-se além as falas de um lugar águas e pedras” (2005), “Baiô”(2006),
No encontro da memória
“Através” (2010), “Moringa” (2011),
Com a matriz
(Ruy Duarte)
Rubro (2012) e “Passagem”
(2012/2013), sem tentar responder essa

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questão, mas experimentando a compreensão do fenômeno da


possibilidades que se iniciam na Encruzilhada é potencializada mediante
preparação corporal. a uma pré-sensibilização do artista-
A preparação corporal do pesquisador por meio da Instalação
Coletivo 22 é compreendida como um Corporal, pois a compreensão do
processo dilatador do corpo do artista- fenômeno, neste caso, não se dá apenas
pesquisador por meio da Instalação pela observação, pois os dados e
Corporal. O corpo instalado é um corpo informações são qualificados pela
“diferenciado”, sensivelmente experiência estética, como cheiro
preparado para uma abordagem emanando da erva manipulada pela
extracotidiana do movimento corporal, raizeira, a oração proferida pela
por meio de um conjunto de exercícios benzedeira na tentativa de cura e o
que tanto ativam uma consciência do toque da parteira na hora da puxação4.
próprio corpo, como o domínio do Esses dados coletados, só fazem
movimento. sentido se impregnados de seus
A Instalação Corporal também é contextos e se forem de fato
utilizada como uma porta de entrada apreendidos na Encruzilhada. Isto
para experimentação de “padrões de porque, assim como o Corpo Limiar não
movimento” (DOMENICI, 2009)3 é o corpo do cotidiano, a Encruzilhada
oriundos de manifestações tradicionais não é o cotidiano propriamente dito.
brasileiras, tais como a capoeira, o São como fendas que se abrem em meio
tambor de crioula, o samba de roda, o à realidade criando segundas realidades
jongo e o batuque paulista. Esses (SILVA, 2010). Assim, Dona Flor
padrões de movimento são tratados como raizeira indo à feira ou limpando a casa
elementos fundamentais para não são ações de Encruzilhada. A
compreensão do Corpo Limiar, pois são encruzilhada se estabelece quando
também chaves de acesso aos rituais de chega o pai aflito a porta da casa de
Encruzilhada. Dona Flor, que larga a vassoura, e
A vivência em campo que busca caminha no meio da madrugada,
3
No texto “Por uma epistemologia da dança popular
brasileira”, em que a autora Eloisa Domenici propõe a 4
substituição da ideia de “passo de dança” para padrões de Puxação é a técnica utilizada pela parteira para
movimento, reconhecendo a esfera de jogo e improviso que diagnosticar a posição do bebê no partejar.
envolve o dançar nesse contexto.

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levando seus chás de cravo com folha é vivido e captado em termos de


de laranjeira e raiz de gervão e sua fé sensação na Encruzilhada podem, no
para conduzir o parto e pegar o menino laboratório de criação, ser uma ponte de
que nasce em suas mãos. acesso para acionar a memória da
Presenciar esse momento é Encruzilhada.
vivenciar a Encruzilhada, Por exemplo, a roda de capoeira
acompanhando o Corpo Limiar se fazer é em si um fenômeno de Encruzilhada.
e desfazer no espaço. Ao fim do parto a Essa experiência no campo pesquisado,
mãe agradece e se despede. Dona Flor que aqui talvez possamos qualificar
agarra novamente a vassoura e se como um campo vivido fica impregnada
entrega ao fazer rotineiro. Os chás de na memória afetiva do artista-
ervas e toda a condução do partejar não pesquisador. Essa memória pode ser
ficam presos no passado, ficam acionada no laboratório de criação pela
impregnados no corpo do artista- Instalação Corporal, que quer dilatar a
pesquisador que ao revisitar essas percepção e impulsionar o movimento
memórias arranca de si próprio e, também, pela motivação temática.
poetnografias dançadas. Neste caso, a ginga da capoeira pode ser
Embora o cotidiano não seja a utilizada como uma motivação temática.
Encruzilhada propriamente dita, é no Ela não é o lugar que se quer chegar, em
meio do cotidiano que a Encruzilhada se termos de forma, e nem o lugar de onde
abre, se desvela, como uma aresta se parte. Ela é o meio do caminho entre
singular. Sem dúvida, o Corpo Limar o corpo diferenciado e a memória do
que atua na Encruzilhada restaura uma campo vivido e, ainda, da poetnografia
série de comportamentos do cotidiano dançada - que se constrói na
para esse outro lugar/momento do ritual. reconfiguração da própria ginga.
Deste modo, o dia-a-dia de Dona Flor A ginga que se reconfigura
tanto oferece elementos para a assume nova plasticidade no espaço a
compreensão da Encruzilhada, como medida que combina alguns elementos:
“motivações temáticas” para o processo 1) Técnicos: oferecidos pela Instalação
de criação. O que estamos chamando Corporal (SILVA, 2012); 2) Formais:
de motivações temáticas, embora padrões de movimento da ginga
tenham um caráter diferenciado do que propriamente dita; 3) Poéticos: a

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memória afetiva do campo vivido. o campo de pesquisa e a concepção de


No caso da capoeira, que é uma poetnografias dançadas.
ação de Encruzilhada marcada pela Se a Antropologia apresenta a
presença do jogo e da dança, podemos necessidade de compreender as relações
ver esses três aspectos se articularem a socioculturais por meio de ritos,
partir do próprio padrão de movimento comportamentos, saberes, técnicas e
para dar origem a poetnografias práticas, considerando o ponto de vista
dançadas. Por outro lado, a vivência das pessoas que nessa realidade vivem,
com as mulheres do cerrado nos o estudo no campo pesquisado é
oferecem elementos para a criação de condição sine-qua-non. Da mesma
poetnografias dançadas, através de forma que se o artista-pesquisador
técnicas corporais presentes no busca construir sua arte a partir do
cotidiano, como também elementos diálogo com saberes tradicionais, a
simbólicos utilizados nos saberes e vivência em campo se torna também
fazeres e, também, nas concepções de fundamental. No caso da dança
mundo. brasileira contemporânea, talvez esse o
“campo pesquisado” fosse melhor
Reflexões Finais dimensionado na ideia de “campo
vivido”
A Etnocenologia, a Antropologia A diferença entre o trabalho do
Teatral e os Estudos da Performance são antropólogo e do artista não se dá
alguns campos de estudo que dão pistas necessariamente no modo de apreensão
sobre as relações entre antropologia e do fenômeno no campo, visto que a
arte. Sem inserir esta discussão em um Antropologia se constitui de diferentes
desses campos especificamente e abordagens e tendências metodológicas,
inevitavelmente perpassando por todos, e sim no modo de interpretar os dados
a discussão que gira em torno do coletados. Enquanto o antropólogo vai
processo de criação de “Entre raízes, buscar alcançar, na medida do possível,
corpos e fé” coloca duas grandes a realidade daquele contexto, o
questões: a relação do pesquisador com pesquisador da dança vai criativamente
reinventá-la. A intenção não é a de

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ENTRE RAÍZES, CORPO E FÉ

torná-la irreconhecível e sim a de fugir cotidiano. Traços, rastros e ruídos5 de


da mera reprodução, que pode reduzir a Seus Firminos e Donas Flores.
cena a um reduto de estereótipos. Daí a
necessidade do artista-pesquisador Recebido em: 05/05/2014
vivenciar o campo sendo afetado por ele Aprovado em: 15/07/2014
e não apenas se agarrar em elementos
superficiais, como podem ser as Referências Bibliográficas
motivações temáticas sem a experiência
DOMENICI, Eloisa Leite. A pesquisa
da Encruzilhada.
das danças populares brasileiras:
Vale lembrar que a arte dança,
questões epistemológicas para as artes
muito mais com advento da dança
cênicas. Cadernos GIPE-CIT (UFBA),
contemporânea, não depende do
v. 23, p. 7 a 17, 2009.
envolvimento com outras realidades
culturais para acontecer. No entanto, FARMACOPÉIA POPULAR DO
essa abordagem é aqui discutida com o CERRADO, Coordenação: Jaqueline
intuito de problematizar alternativas Evangelista Dias e Lourdes Cardozo
para se pensar a criação e o ensino da Laureano. Goiás: Articulação Pacari
dança não apenas a partir de parâmetros (Associação Pacari), 2009.
hegemônicos e colonizadores. Isso não
significa, de forma alguma, negar os LE BRETON, David. A sociologia do

referenciais europeus e norte- corpo. Trad. Sônia M.S. Fuhrmann.3°

americanos já introjetados e nem outras Ed. Petropolis:Vozes, 2007.

influências estrangeiras, significa


LIGIÉRIO, Zeca. (org.) Performance e
evidenciar a diversidade do mundo e dar
Antropologia de Richard Schechner. Rio
voz e movimento a corpos muitas vezes
de Janeiro: Mauad X, 2012.
silenciados pela história.
As poetnografias dançadas são,
então, pedaços de realidades
reinventados que trazem em seu seio 5
A ideia de rastros e ruídos aparece em alguns escritos do
pesquisador de Antropologia da Performance John Cowart
identificações encontradas em Dawsey. Cf.: DAWSEY, J. C. De Que Riem os “Boias-
Frias”? Walter Benjamin e o Teatro Épico de Brecht em
manifestações da cultura popular e em
Carrocerias de Caminhões. Tese de livre-docência. São
performances que se abrem em meio ao Paulo: PPGAS/FFLCH, Universidade de São Paulo,1999.

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