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SUL DA CENA, SUL DO SABER

South of scene, south of knowledge

Veronica Fabrini
Professora do Departamento de Artes Cênicas
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP
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Resumo: Busca-se pensar o teatro como lócus privilegiado para a experiência de pontos
cruciais das epistemologias do sul, concebidas por Boaventura Sousa Santos: a abertura para
saberes ofuscados pelo modelo hegemônico do “Norte”, a ecologia de saberes e a tradução
intercultural. Isto nos leva a rever o estatuto do corpo enquanto natura-prima do teatro e as
colaborações com que práticas tradicionais frequentemente revitalizam o teatro. A
metáfora do sul, seja da cena ou do saber, busca uma compreensão e uma experiência mais
profunda da alteridade, fundamental ao teatro.
Palavras-chave: teatro, tradução intercultural; imaginário; cena; epistemologia.

Abstract: This essay assumes theater as a privileged locus for the experience of a few
crucial points of the south epistemologies, as conceived by Boaventura Sousa Santos:
openness to Knowledge overshadowed by the hegemonic model of the "North", ecology of
knowledge and intercultural translation. This leads us to review the status of the body
theater´s prima natura and the collaborations with traditional practices that often revitalize
theater. The south metaphor of the scene leads us to the south of knowledge, seeking a
deeper comprehension and experience of otherness, fundamental to theater.
Keywords: theatre, intercultural translation, imaginary, scene, epistemology.

Antes de iniciar esta breve Uma delas é a urgência do


reflexão sobre o estatuto reconhecimento do saber sensível
epistemológico do teatro, é enquanto episteme, ou ainda, como
importante localizar o lugar onde ela tantas vezes reivindicou a
nasce, demarcando o território no fenomenologia bachelardiana1, o
qual germinaram questionamentos reconhecimento de uma sabedoria da
sobre os impasses que o teatro matéria. Em seus estudos sobre a
encontra dentro dos estudos Poética dos Quatro Elementos e a
acadêmicos. Como atriz e diretora, falo Imaginação Material, o filósofo francês
desde a materialidade da cena e de sua faz convergir poética e epistemologia,
potência em acontecimento no “aqui e retomando o saber oriundo de um
agora” da performance cênica. Esta corpo-a-corpo com a matéria, com o
perspectiva – de dentro da cena – traz
1Ver os escritos de Gaston Bachelard (1994,
consigo duas implicações inalienáveis. 1989, 2001, 1991 e 1990), que abordam a
Poética dos quatro elementos.

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mundo. A segunda premissa, de igual deve ser transmitido de forma clara,


importância, é o reconhecimento da iluminado pela luz apolínea do
episteme das imagens, ou seja, o conhecimento. Enquanto
reconhecimento de que a imagem per conhecimento transmitido, tomemos
si, sem necessidade de recorrer a como experiência modelar de nossa
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conceitos, é capaz de gerar civilização ocidental, a academia de
conhecimento. Imaginação e Platão, berço da filosofia, cujo próprio
materialidade são, pois, os dois pilares nome diz: a amiga da sabedoria. Por
que sustentam o que chamo de teatro, sua origem grega, é possível pensar o
quer essa palavra nos remeta ao teatro como o irmão obscuro da
“lugar de onde se vê”, do grego filosofia. Em sua origem comum,
théatron (θέατρον), ou ao lugar de temos dois deuses irmãos: Apolo e
“manifestação do divino”, Dionísio, sabedoria e êxtase. Pitonisas
theaomai (θεάομαι), palavra grega que e bacantes são suas porta-vozes e, no
quer dizer olhar com atenção, fluir do tempo, do decifrar enigmas às
perceber, contempla. Esse segundo disputas dialéticas, o embate de
sentido é lembrado com menos antinomias e a forma do diálogo são
frequência, porém é fundamental. Não ações conhecidas de ambos.
é simplesmente “ver” no sentido Recorrermos a esse parentesco divino
comum, mas como uma experiência de – do deus solar e de seu irmão telúrico
intensidade, olhar que busca enxergar – para repensar o conhecimento como
em profundidade, olhar admirado que fruto dessa divina fraternidade, ou
busca descobrir o significado mais seja, do conhecimento que se destila
profundo: um mergulho ao sul daquilo da sabedoria e do êxtase. Podemos
que se vê. Sendo o teatro o lugar da também dizer que este parentesco é
aparição dos fantasmas é o lugar onde uma metáfora que nos ajuda a pensar
coabitam o visível e o imaginário. o teatro na universidade: o lugar de
Todavia, o lugar de onde eu falo onde eu falo.
é também o lugar do conhecimento Seguindo a afinidade entre
acadêmico, lugar da filosofia enquanto teatro e filosofia, há na obra Heráclito,
epistémetis, enquanto de Heidegger (1998), ainda outro
competência theoriké, onde o saber sentido que a aproxima, em sua

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origem filológica, da ideia de teatro. paradigmático personagem de


Diz o filósofo que epistéme deriva do Shakespeare, Hamlet, é justamente a
verbo epistasthai – colocar-se e estar tensão entre ação e reflexão. Isso é
diante de algo de modo que nesta ação facilmente observável (e dificilmente
de “estar diante de”, algo se mostre bem atuado) em célebres falas como 13

assim como é. Ainda que a palavra seja “empreitadas refletidas demais


atualmente ligada à ideia de um logos, perdem o nome de ação”, ou “e assim,
a ação de colocar-se diante de algo a consciência faz de todos nós
para que algo se mostre e seja covardes”. E mais: que o grande
recebido como é encontra forte modelo usado por Hamlet para a
afinidade, tanto com théatron quanto solução de seu conflito (a imobilidade
com theaomai. da reflexão) é o teatro – “A peça é o
Se a filosofia é o amor pela lance, lá apanharei a consciência do
sabedoria, por essa sabedoria que rei”.
sabe (no sentido de sabor) que não Mas deixemos Elsinore ou
está apenas localizada “da-boca-pra- Wittemberg e voltemos ao nosso caso,
fora”, mas que exige o interior escuro ou seja, ao teatro em ambiente
e úmido da intimidade da “boca-pra- acadêmico, nas universidades
dentro”, o teatro será sempre seu brasileiras. Quando falamos de
duplo. É de Dionísio que vem a filosofia, de qual filosofia estamos
contraparte que lhe confere vigor, que falando? Qual filosofia aprendemos?
não permite que o “amor à sabedoria” Qual(is) modelo(s) epistemológico(s)
seque – esturricado ao sol e nossas universidades adotam? Com
aprisionado pelos labirintos do certeza aqueles escritos pelos
conhecimento. vencedores, pela racionalidade branca
Há uma bela metáfora em europeia que chegaram até nós como
Hamlet Machine, de Heiner Muller, “O” conhecimento, tomado – por
para isso: “Meus pensamentos são vezes, sem dar-nos conta – como único
chagas no meu cérebro. Meu cérebro é com validez ou mesmo como único
uma cicatriz”. Interessante lembrar meio através do qual outros saberes
que o grande conflito do podem ser validados. No que concerne

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a potência do teatro em gerar português Boaventura Sousa Santos,


epistemes (e isto implica no teatro na naquilo que ele nomeia epistemologias
academia), este fato apresenta-se do sul – daí esta pequena apropriação
como um problema. que nomeia nosso artigo como Sul da
De onde vem aquilo que cena. Em sua coletânea de mesmo
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aprendemos na academia e que nome, Boaventura nos mostra a
tomamos como verdade, como válido falência do conhecimento em não
porque, afinal, é o modelo poder resolver os grandes problemas
hegemônico? Não estamos nós sob de justiça social global (e aqui é
uma avassaladora colonização fundamental que pensemos no teatro
epistêmica? Quais autores devem como inseparável da sociedade) sem
constar na bibliografia das teses, que que haja uma justiça cognitiva global.
devem ser citados nos editais para Em outras palavras, para o sociólogo o
projetos teatrais vinculados à problema contemporâneo não é de
pesquisa, que devem ser citados para ordem social ou política, mas cultural
que aquilo que se diz ou que se e epistemológico – e isso diz respeito
escreve seja “validado”? Será que diretamente ao teatro e,
devem? O teatro, domesticado pela especialmente, ao teatro na academia.
academia depois de haver sido Afirma Boaventura que não pode
fagocitado por ela, não estará haver justiça social global sem uma
perdendo sua dimensão justiça epistemológica global. O
verdadeiramente artística, poética e sociólogo propõe, a partir da
transformadora, a dimensão diversidade do mundo, “um
polivalente e irradiadora das imagens, pluralismo epistemológico que
das metáforas? Não estaria perdendo reconheça a existência de múltiplas
sua dupla natureza de matéria e visões que contribuam para o alar-
imaginação? gamento dos horizontes da
Comecemos pela dimensão do mundaneidade, de experiências e
conhecimento, pela questão das práticas sociais e políticas
epistemologias e vamos ver como dela alternativas” e nos lembra que:
passamos ao teatro. Comecemos
Historicamente, do conhecimento e
abordando as ideias do sociólogo da sua produção foram eliminadas as

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relações sociais, as respectivas É partindo dessa urgência que


práticas e os contextos sócio -
culturais, eliminação que conduziu à ele propõe o conceito de
afirmação mistificante e ilusória de
uma ideologia de neutralidade epistemologias do sul. Cito:
científica. Efectivamente, a
epistemologia dominante
fundamenta-se em contextos culturais A “epistemologia do sul” que venho
e políticos bem definidos: o mundo propor visa à recuperação dos
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moderno cristão ocidental, o saberes e práticas dos grupos sociais
colonialismo e o capitalismo. Neste que, por via do capitalismo e do
sentido, a produção do conhecimento, colonialismo, foram histórica e
o modo como se faz, onde se faz e o sociologicamente postos na posição
que se faz não é exterior aos de serem tão só objecto ou matéria-
contextos sociais e políticos que o prima dos saberes dominantes,
prefiguram e configuram. Afirmar, considerados os únicos válidos. Os
pois, a exclusividade de uma conceitos centrais da epistemologia
epistemologia com pretensões do Sul são a sociologia das ausências,
universalizantes tem um duplo a sociologia das emergências, a
sentido: por um lado, a redução de ecologia de saberes e a tradução
todo o conhecimento a um único intercultural. Não se trata
paradigma, com as consequências de verdadeiramente de uma
ocultação, destruição e menosprezo epistemologia, mas antes de um
por outros saberes e, por outro, a conjunto de epistemologias. Ao
descontextualização social, política e contrário das epistemologias do
institucional desse mesmo Norte, as epistemologias do Sul
conhecimento, conferindo-lhe uma procuram incluir o máximo de
dimensão abstracta mais passível de experiências de conhecimento do
universalização e absolutização e que mundo. Nelas cabem, assim, depois de
possa servir de quadro teórico legiti- reconfiguradas, as experiências de
mador de todas as formas de conhecimento do Norte. Abrem-se
dominação e de exclusão. pontes insuspeitas de
intercomunicação, nomeadamente
A revolução das tecnologias de com as tradições ocidentais que
informação e comunicação permite foram marginalizadas, desacreditadas
tornar visíveis as contradições do ou esquecidas pelo que no século XIX
capitalismo, as formas cada vez mais passou a vigorar como o cânone da
subtis e simbólicas de dominação e, ciência moderna. (SANTOS, 2008, p.
com maior acuidade, permite também 11)
a visualização da diversidade cultural
e epistemológica do mundo. Estas
condições possibilitam a crítica de um O uso do sul é antes metafórico
regime epistemológico dominante e,
simultaneamente, a identificação e do que geográfico, nos levando a
urgência de alternativas
epistemológicas, ainda que os pensar que existe um sul dentro do
obstáculos múltiplos à sua afirmação
e concretização também se tornem norte, e ainda “deixar a imagem
visíveis. (SANTOS, 2009, p. 183-184)
sonhar”, como diria a poética do
devaneio de Gaston Bachelard, e
indagar qual seria o sul da cena ou
qual seria o sul do corpo. Temos uma

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pista que Boaventura nos sugere: o sul ocorreu de múltiplas formas,


correspondentes às múltiplas formas
é antipatriarcal (portanto, resiste ao do positivismo e do empirismo lógico.
(...) Em suma, respostas acadêmicas
falocentrismo), anticolonial e anti- para problemas acadêmicos cada vez
mais redutores dos problemas
imperialista (resiste às invasões existenciais que estavam na sua
predatórias). Que este sul alimenta-se origem, cada vez mais irrelevantes
para dar conta deles. (SANTOS, 2008, 16
das epistemologias feministas (que p. 15)

fizeram a crítica da produção da


Quais seriam esses saberes
ciência e da filosofia, mostrando os
invisibilizados por essa hegemonia e o
preconceitos de gênero) e das novas
que teriam eles a ver com o teatro? Eu
epistemologias reveladas pelo
diria que são os saberes que nascem
pensamento pós-colonial. Enfim, para
da experiência de estar no mundo, da
que possamos pensar o teatro em sua
abertura aos afetos (o constante
complexidade temos que assumir e
deixar-se afetar) e, portanto um modo
gozar a existência da infinidade de
de estar no mundo ancorado,
saberes que foram excluídos dos
enraizado na totalidade complexa do
saberes validados pelas ciências ou
corpo – e isso é estar em cena! Corpo
pela racionalidade filosófica – ou pelo
que, em primeira instância, é natureza,
pensamento ortopédico e a razão
mas uma natureza “almada”.
indolente, para usar os termos de
Exemplifico o que quero dizer com
Boaventura – gerados e dominantes
isto a partir de um trecho utilizado no
no Norte.
espetáculo “Cartas do Paraíso”,
Designo como pensamento encenado pela Boa Companhia2 sob
ortopédico: o constrangimento e o
empobrecimento causado pela minha direção. Trata-se de uma carta
redução dos problemas a marcos
analíticos e conceituais que lhes são de Manuel da Nóbrega, escrita em
estranhos. Com a crescente
institucionalização da ciência- 1551, a respeito de sua visão sobre o
concomitante da passagem assinalada pecado em que viviam os gentios – os
por Foucault, do “intelectual
universal” ao “intelectual específico” – índios que aqui viviam nos idos de
a ciência passou a responder
exclusivamente aos problemas postos 1500. O trecho encontra-se no livro
por ela. (...) Como acontece, em geral,
com qualquer hegemonia, a Espelho Índio, do antropólogo e
hegemonia da ciência estendeu-se
para além da ciência, submetendo a analista junguiano Roberto Gambini:
filosofia, a teologia e as humanidades
em geral a um processo de 2Cartas do Paraíso, Boa Companhia, Prêmio
cientifização, um processo que Miriam Muniz 2009.

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“Perguntei se ele tinha comunicação ou entre as coisas e seu mana. São


com Deus que fez o céu e a terra e que culturas que compreendem e
reina nos céus, ou com o demônio que vivenciam múltiplos planos de
estava nos infernos. Respondeu-me existência. Nesses planos, um rio é um
com pouca vergonha, que ele era deus rio, em sua concretude de margem e 17

e que havia nascido deus (...) e que o fluxo, mas é também um Deus. Suas
Deus dos céus era seu amigo, e lhe águas abrigam tanto os peixes que
aparecia nas nuvens, nos trovões, nos pescam como as Iaras e outros seres
relâmpagos e em outras muitas fantásticos. Evidente parentesco com
coisas” (apud GAMBINI, 2000, p. 128). o teatro, onde as coisas sempre são
Para os habitantes de Pindorama outras coisas sem deixar de serem elas
(assim como para o filósofo Espinoza), mesmas. No teatro é possível essa
Deus sive Natura, ou seja, Deus ou existência múltipla, onde uma coisa é
Natureza indica que ambos são a muitas coisas: Zulmira e a atriz que a
mesma substância – Deus é Natureza. representa, o convés de um navio e o
Nesta epistemologia ao sul da linha do palco vazio, uma cadeira e o Reino da
equador (a dos índios que aqui viviam Dinamarca, um dia em um minuto, ou
e vivem) há uma contiguidade entre o ainda, como dizia Brecht, “em um
plano sagrado (ou imaginário) e o objeto há muitos objetos”.
plano material, daí a concomitância de A experiência da cena, do atuar,
planos, daí outra relação ética com o é antes de tudo um exercício de
mundo. Para se dominar um povo, há alteridade, de diferença. O “como se”,
que se dominar o imaginário que lhe desde Stanislavisky no campo da
insufla vida. E como uma das formas atuação até James Hillman no campo
de dominar esse imaginário e, da psicologia profunda, nos instiga e
consequentemente calar essa nos ensina as múltiplas formas de ver,
epistemologia, o modo utilizado pela perceber, pensar, sentir, de agir no
Companhia de Jesus foi... o teatro. mundo. Também nos ensina que, na
As epistemologias do sul não cena, tudo fala: um lenço com
sofreram a cisão esquizofrênica entre morangos bordados (em Otelo, de
natureza e cultura, entre corpo e alma, Shakespeare), uma gaivota empalhada

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(em A Gaivota, de Tchecov), um retornou, durante pouco tempo, na


nossa, e que teve sua glória em
unicórnio de vidro (em À Margem da Florença com Marsilio Ficino. Estou
me referindo à alma do platonismo,
Vida, de Tennessee Williams), um que significa nada menos que o
mundo almado. (...) a anima mundi
jarro ou um par de botinas (em aponta as possibilidades animadas
Dorotéia, de Nelson Rodrigues). Qual a oferecidas em cada evento como ele é,
sua apresentação sensorial como um 18
afinidade íntima entre Nina e a rosto revelando sua imagem interior
– em resumo, sua disponibilidade
gaivota, entre Desdêmona e o lenço para a imaginação, sua presença como
realidade psíquica. (HILLMAN, 2010,
bordado, entre Laura e o unicórnio, p. 89)
entre o jarro e Dorotéia ou entre as
botinas e Das Dores? Como dissemos Anima Mundi pede para ser vista

anteriormente, o teatro – enquanto como cena, confirmando as sábias

theaomai – nos convoca a ver o mundo palavras de Shakespeare ou Calderón

além do sentido comum, além da ou Artaud sobre a equivalência entre o

literalidade, mas como uma teatro e o mundo. Nela, o mundo não

experiência de intensidade, de busca é um código a ser decifrado, mas é

de profundidade. A cena do theaomai antes, uma presença a ser encarada –

pede um olhar inquiridor que busca theaomai ou epistasthai . Como os

descobrir o significado mais profundo, objets trouvés de Tadeus Kantor, num

um mergulho ao sul daquilo que se vê. mundo almado o objeto presta

Como lançar-se verdadeiramente a testemunho de si mesmo na imagem

essa experiência se estamos que oferece e sua profundidade está

engessados por epistemologias que há na complexidade dessa imagem. Nas

muito nos ensinaram que isso é palavras de Hillman, “cada objeto é um

primitivo, ingênuo, perigoso? James sujeito, e sua autorreflexão é sua

Hillman, este grande pensador da autoexibição, seu brilho”. Ou, ainda:

dimensão profunda da psique nos dá Sou animado por essa anima como
uma pista: um animal. Reentro no cosmo
platônico, que sempre reconhece que
a alma do indivíduo nunca pode
Em vez da noção de realidade avançar além da alma do mundo,
psíquica fundamentada num sistema porque elas são inseparáveis, uma
de sujeitos particulares animados e sempre implica na outra. Qualquer
objetos inanimados, quero propor alteração na psique humana ressoa
uma visão predominante em muitas como uma alteração na psique do
culturas (chamadas primitivas e mundo. (2010, p. 92)
animistas pelos antropólogos
culturais do Ocidente) que também

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No teatro reconhecemos a fundamentarem seus princípios de


realidade numa verdade única, num
potência vivificadora nos recorrentes único processo de dedução da
verdade, num modelo único do
encontros dos teatros “do Norte” com Absoluto sem rosto e por vezes
inominável, estabeleceram seu
formas tradicionais ou arcaicas de universo mental, individual e social
manifestações cênicas: Brecht e o em fundamentos pluralistas, portanto,
diferenciados. Aqui, toda diferença 19

teatro tradicional japonês; Artaud e os (alguns mencionam um “politeísmo


de valores”) é percebida como uma
Taraumaras, no México – ou em seu figuração diferenciada com
qualidades figuradas e imaginárias.
encontro com as máscaras de Bali; Portanto, todo “politeísmo” ipso facto
é receptivo às imagens (iconófilo)
Grotowisky e o teatro indiano; Peter quando não aos ídolos (eidôlon, em
Brook e os Griots, na África; Eugenio grego, significa “imagem”). Ora, o
Ocidente, isto é, a civilização que nos
Barba e o Sul da Itália. Essas formas sustenta a partir do raciocínio
socrático e seu subseqüente batismo
cênicas nascem em culturas imersas cristão, além de desejar ser
considerado, e com muito orgulho, o
numa natureza almada, desconhecem único herdeiro de uma única Verdade,
quase sempre desafiou as imagens. É
a cisão cartesiana, o pensamento preciso frisar este paradoxo de uma
ortopédico, a razão indolente, ou – civilização, a nossa, que, por um lado,
propiciou ao mundo as técnicas, em
recuando mais na linha da história – constante desenvolvimento, de
reprodução da comunicação das
não sofreram a perseguição das imagens e, por outro, do lado da
filosofia fundamental, demonstrou
imagens. Continuam criando, uma desconfiança iconoclasta (que
“destrói” as imagens ou, pelo menos,
dançando para e com seus deuses e suspeita delas) endêmica. (DURAND,
antepassados, com seus daimons, no 2004, p. 7)

terreno onde a fé e a festa são


As imagens, no entanto, resistem
celebradas com o corpo, num mundo
no teatro e o teatro resiste nas
repleto de imagens. Já no Ocidente,
imagens. O teatro é a lugar da aparição
essa tradição enfrentou e enfrenta
dos fantasmas, da manifestação do
resistências com largo rastro
universo ficcional – não como
histórico, sendo gradativamente
“mentira” ou como ilusão, mas como
abandonada e expulsa das
manifestação objetiva das imagens,
epistemologias hegemônicas. A esse
dos daimons. Isso é mais evidente nas
respeito, comenta Gilbert Durand:
formas populares, nas formas
Todas estas tradicionais, essas mencionadas há
civilizações não-ocidentais, em vez de

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pouco, que renovam e insuflam vida de estar no mundo, são levadas em


no teatro erudito, o teatro conta; se essa “troca” coloca os artistas
“inteligente”, o teatro quase sempre dessas formas tradicionais como
bem subvencionado – quer por sua também qualificados para receber
inserção enquanto pesquisa nos subvenções ou, ao menos, alguma
20
ambientes acadêmicos, quer enquanto visibilidade que os proteja da extinção.
projetos culturais. Embora não consiga nomear com
Lembrando as epistemologias do clareza – dada minha admiração pelos
sul, propostas por Boaventura – que nomes citados – há um desconforto,
visam a recuperação dos saberes e das uma sensação de dívida, de que falta
práticas dos grupos sociais que, “por algo, pois conheço seus nomes
via do capitalismo e do colonialismo, (Grotowisky, Brook ou Mnouchkine),
foram histórica e sociologicamente mas suas fontes permanecem
postos na posição de serem tão só imprecisas e seus atores, anônimos.
objecto ou matéria-prima dos saberes Que se sabe dos contextos nos quais
dominantes, considerados os únicos estão ou estavam inseridas? É
válidos” (SANTOS, 2008, p. 11) –, cabe importante sublinhar que aqui não
perguntar o quanto de uma postura falo de indivíduos, mas de todo um
colonialista (ou seja, de apropriação e contexto. O que sabemos sobre os
uso) pode estar presente nas griots que inspiraram Brook, ou sobre
apropriações que o teatro faz da os deuses para os quais dançam os
vitalidade desses “outros teatros”. E, bailarinos kataquali? As
se ela está presente, como detectá-la e epistemologias do sul me colocam essa
combatê-la? questão quando buscam resgatar
Admiro e reconheço o trabalho experiências invisibilizadas. Há que se
de Grotowisky, Eugenio Barba, Peter fazer uma sociologia das ausências
Brook e Ariane Mnouchkine, apenas para recuperar uma epistemologia
para citar os consagrados. Mas, plural, ou ainda, retomando
pergunto-me se as fontes que os Boaventura, é necessário uma
alimentaram estão também tão “ecologia de saberes”. Mas como fazer
vivificadas quanto seus teatros; se as para a compreensão desses outros
formas, de tais fontes, de conhecer e saberes? Para tanto se faz necessária a

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tradução intercultural. Ambas práticas sublinhar que uso a palavra imagem


(ecologia de saberes e tradução assim como é entendida pela
intercultural) são, de certa forma, psicologia profunda de Gustav Jung,
constitutivas do fazer teatral. Estão pela psicologia arquetípica de James
emaranhadas nele quando somos Hillman e pelas ciências do 21

desafiados a dar corpo ao Arquiteto ou imaginário, com suas raízes em


ao Imperador da Assíria. Em termos Bachelard e desdobramentos de
da práxis cênica, em maior ou menor Gilbert Durand3. Há em Jung e
grau, temos que lidar com o saber do Hillman, uma equivalência entre
ofício material (trabalho corporal, imagem e alma, assim como a íntima
trabalho com os materiais que conexão entre ambos e o instinto. Para
compõem as visualidades, enfim o ambos, o ato de imaginar é ele próprio
trabalho concreto das dinâmicas da um ato de “fabricação da alma” – daí o
cena) em constante jogo e diálogo com trabalho da imaginação ativa ser a
o ofício intelectual e sensível. Da prática fundamental em Jung. Através
mesma forma, quer nosso desafio seja dela a alma fala, a alma se faz ouvir:
uma peça de Plínio Marcos, Sófocles por meio das imagens. Há uma
ou o Mahabharata, ou nossas mudança de perspectiva (do conceito
pesquisas para encenação envolvam o da filosofia, para a imagem poética),
candomblé, o circo-teatro ou o ritual pois não sou eu que possuo uma alma,
de morte dos índios bororos, a ou uma psique ou um inconsciente. É
tradução inter (ou intra) cultural é um ela – psique, alma ou inconsciente que
ponto que deve ser tratado com me possui. Já em Durand e Bacherlad,
atenção e respeito ético. perspectiva semelhante é apontada,
Se, emprestando a célebre frase porém no campo da cultura, das
de Wittgenstein, o limite do meu produções simbólicas e da arte.
mundo é o limite da minha língua, 3 Como referencia a complexa questão da
para alcançar outros mundos preciso imagem, sublinhamos a perspectiva
fenomenológica e hermenêutica de C.G. Jung
aprender outras línguas. Porém, antes em Homem e seus símbolos. De Hillman,
sugerimos a leitura Healing Fiction, de Gilbert
da língua há a imagem, a fonte da qual Durand Estruturas Antropológicas do
imaginário e de Bachelard, A Poética do
brota a linguagem. É importante Devaneio e A água e os Sonhos.

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Voltemos à imaginação – a esse representação, não está “no lugar de


“fazer da alma” – tão essencial ao nada”. É sim uma realidade de outra
trabalho teatral. É no teatro que ordem. Esta outra ordem não é
experimentamos o paradoxo da estranha às epistemologias do sul,
imaginação – ser e não ser ao mesmo acostumadas com a concomitância de
22
tempo. Mnouchkine insiste que a planos: é Mateus – personagem do
imaginação é um músculo e deve ser Cavalo Marinho – e é Seu Pedro,
exercitado. Nós, quando estamos em pescador que “brinca” com a ficção e
cena vivenciamos esse paradoxo: tem com ela uma relação de duplo.
estou no mundo real e no mundo Um exemplo da festa: Mateus (o
imaginário. Estou objetivando minha “personagem”) para Seu Pedro não é
subjetividade, pois em cena, o “o um ser ficcional, mas sim um outro
máximo de objetividade retórica é nele, ou ainda, usando uma expressão
necessário para se alcançar o máximo de Bachelard, “um não-eu meu”. Um
de subjetividade poética” (como dizia exemplo da fé: Maria Padilha
meu mestre Marcio Aurelio4). Dou incorporada em Tânia, mulher
forma a Hécuba, Desdêmona ou comum, manicure do bairro. Entre a
Alaíde. O teatro requer, revela e presença de Maria Padilha – a
oferece – através da imagem – uma entidade – no corpo de mulher
dupla realidade: ao mesmo tempo ator comum, para esta visão de mundo (ou
e figura ficcional, ao mesmo tempo para esta outra epistemologia), qual
matéria e imaginação. das duas é mais real? Você assiste a
A imagem, como tal, não está ambos e os vê dançar, falar. São eles e
localizada propriamente nem na não são eles. Você vê através deles,
matéria que lhe dá forma, nem é uma além deles e muito mais. Qual teatro
abstração do pensamento. A imagem – não deseja essa qualidade de
ou a alma – é o reino do “entre”, reino presença? No entanto, para boa parte
dos daimons ou, como coloca Hillman das epistemologias do Norte (uma
em Healing Fiction, o reino da ficção. E hegemonia no ambiente acadêmico)
que fique claro: isso não é esta é uma maneira de se estar e de
conhecer o mundo – qualificada como
4Marcio Aurelio Pires de Almeida, Professor primitiva, alienígena, material para ser
Assistente do Instituto de Artes – UNICAMP.

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SUL DA CENA, SUL DO SABER

estudado pelas etnologias: etno- No mundo antigo, o coração era o


órgão da percepção. O coração era
teatro, antropologia teatral, imediatamente relacionado às coisas
pelos sentidos. A palavra em grego
etnocenologia... E os modos de pensar para percepção ou sensação era
aisthesis, que significa, em sua origem,
por elas, engendrados ou próprios de “inspirar”, “conduzir” o mundo para
seu contexto de origem, são – no dentro (...) o coração era o órgão da
sensação e também o órgão da 23

máximo – uma etno-filosofia5, assim imaginação (...) e sua função era


apreender as imagens. A função do
como a arte por eles produzida é uma coração era estética.
Sentir e imaginar o mundo não se
etno-arte. separam na reação estética do
coração como em nossas psicologias
Acredito que a presença do posteriores, derivadas dos
teatro na academia tem por missão escolásticos, dos cartesianos e dos
empiristas britânicos. (...) o coração
intervir nesta descolonização do saber percebe tanto sentindo como
imaginando: para sentir intensamente
na qual a imaginação e a imagem têm devemos imaginar e, para imaginar
com precisão, devemos sentir. (2010,
um papel fundamental. Isto não p. 93-94)
implica apenas numa tomada de
posição intelectual, mas é também Hillman ainda afirma que “A

uma tomada em direção a uma beleza é inerente e essencial à alma,

posição ético-afetiva e uma descida ao então a beleza aparece sempre que a

sul da cabeça, uma descida ao coração. alma aparece” (p. 46) e que “A beleza é

Em Anima Mundi, Hillman nos uma necessidade epistemológica”, ou

diz: seja, uma forma de conhecer o mundo,


“um modo como os Deuses tocam
5 A esse respeito comenta Hamid Dabashi, nossos sentidos, alcançam o coração e
professor de Literatura Comparada e Estudos
Iranianos na Columbia University, no artigo nos atraem para a vida” (p. 47). O
Can non-Europeans think?: “Why is it that if
Mozart sneezes it is "music" (and I am quite coração, lugar dos afetos, é também
sure the great genius even sneezed
melodiously) but the most sophisticated lugar da imaginação e, portanto, da
Indian music ragas are the subject of
alma. Lugar da beleza. E o poeta
‘ethnomusicology’? Is that ‘ethnos’ not also
applicable to the philosophical thinking that vence: Tudo vale a pena se alma não é
Indian philosophers practice - so much so that
their thinking is more the subject of Western pequena.
European and North American
anthropological fieldwork and investigation?”. Finalizando, a proposição de
Disponível em:
http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/ Boaventura para um avanço
2013/01/2013114142638797542.html#.USD
epistemológico, como vimos, requer
0dUNSEhk.facebook (acesso em 18/02/2013).

João Pessoa, V. 4 N. 1 jan-jun/2013


Veronica Fabrini

uma ecologia de saberes. Nesse saborear... O teatro, a meu ver, é o sul


balanço ecológico, a posição do teatro da filosofia. Isso acontece em dois
na academia precisa de uma virada níveis: primeiro, no nível acadêmico,
radical. no qual ainda as epistemologias do
No plano da racionalidade Norte são hegemônicas e regem – quer
24
objetiva, o teatro é aceito no seleto por validação intelectual ou por
hall da filosofia. Até mesmo Dionísio é subvenção financeira – as pesquisas
convidado a dançar nessas searas. em arte. O segundo nível é o da
Mas, que note bem: dance e se cale, produção artística, pois muitas
pois é sempre um olhar de fora, um subvenções passaram a ser julgadas,
olhar fetichista do filósofo que o ao menos no Brasil, pela intelligentsia
acolhe. Um olhar que o desmaterializa, acadêmica, onde o conceito sobre o
pois para a racionalidade filosófica a trabalho (o que é possível escrever
matéria é “escura” e, assim, para a nos projetos) acaba suplantando o
racionalidade contemporânea, a trabalho artístico em si. O resultado
matéria “não sabe”. Para esta, o disso são produções cada vez mais
conceito é válido, é operante, eficaz, conceituais, distantes da expertise da
esclarecedor e as metáforas, as prática, cada vez mais sem alma e,
imagens, são perigosos descaminhos. portanto, cada vez menos capazes de
Há entre a filosofia (me refiro nos mover afetivamente, o que requer
àquela moldada pelas epistemologias três ingredientes fundamentais, tanto
do norte) e o teatro uma relação de para a cena quanto para uma
poder fortemente hierarquizada. compreensão das epistemologias do
Como se a filosofia se alimentasse do sul: corpo, coração e imaginação. Este
teatro como matéria prima de um seria o caminho para o sul.
saber – porém, quem “sabe” é a Caminhando para o sul da cena,
filosofia. E aqui podemos intercambiar caminhamos também ao sul do saber,
à vontade a palavra “filosofia’ buscando uma compreensão e uma
(utilizada de modo genérico), pela experiência mais profunda da
palavra “academia”, referente à alteridade, fundamental ao teatro.
instituição universitária. A filosofia
“coloniza o teatro”; o teatro se deixa

João Pessoa, V. 4 N. 1 jan-jun/2013


SUL DA CENA, SUL DO SABER

Artigo recebido em 14 de março de SANTOS, Boaventura. A filosofia à


venda, a douta ignorância e a aposta
2013.
de Pascal. Revista Crítica de Ciências
Aprovado em 12 de abril de 2013. Sociais, N. 80, Março-2008, pp. 5-10.

SANTOS, Boaventura e MENESES,


Referências bibliográficas Maria Paula. Epistemologias do sul, 25
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13/2009, pp. 183-189.
BACHELARD, Gaston. A Psicanálise do
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O ar e os Sonhos. São Paulo:
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vontade. São Paulo: Martins Fontes,
1991.
A terra e os devaneios do
repouso. São Paulo: Martins Fontes,
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coração e a alma do mundo.
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SANTOS, Boaventura. Epistemologias


do SUL. São Paulo: Editora Cortez.
2010.

João Pessoa, V. 4 N. 1 jan-jun/2013

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