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1. RESUMO
O presente trabalho propõe refletir sobre um processo criativo impulsionado pela pesquisa
de campo em diálogo com estudos sobre corpo e religiões afro-diaspóricas e afroindígena.
No processo de revisão bibliográfica procuramos entender o ritual da jurema em seu
aspecto sincrético com outras religiosidades, tendo como principais referências Assunção
(2006) e Sampaio (2016). A segunda fase da pesquisa, foi a imersão no campo, afim de
descrever e compreender os modos de dançar, as qualidades de movimento, os aspectos
tônicos e a organização corporal das danças rituais da jurema com enfoque sobre os
processos de incorporação e distinção desse estado daqueles que seriam de nosso interesse
acessar. Realizamos 12 visitas à campo com duração de até um dia cada. A terceira fase da
pesquisa partiu para os laboratórios práticos para desenvolver o processo criativo e um
resultado coreográfico a partir dos estados corporais acessados. Foram realizados 10
laboratórios totalizando 20 horas de prática. Em cada laboratório buscou-se trazer a
emergência de múltiplos estados corporais, a partir da memória corporal, imagens e
anotações das experiências vividas no campo, objetivando construir uma dramaturgia para
cena. A experiência de campo corroborou com a ideia de que a Jurema se constitui pela
aliança entre o mundo dos vivos e dos mortos num continuum de existência. Aprofundar o
entendimento dos estados corporais disparados a partir do campo nos levou outras autorias
sobre o tema. A principal reflexão dessa pesquisa foi a compreensão diversa sobre o que
denominamos de corporalidade irradiada. Termo cunhado a partir da experiência de
campo, laboratórios práticos e da leitura de estudos de autoras como Barbara (2013);
Vicente (2019) e Cunha (2019). Devido ao contexto do Covid-19 o resultado cênico não
pôde ser apresentado, mas contamos ainda com a possível adaptação virtual da
performance.
3. Title:
4. Abstract:
The present work proposes to reflect on a creative process driven by field research in
dialogue with studies on Afro-Diasporic and Afro-indigenous body and religions. In the
bibliographic review process we try to understand the ritual of jurema in its syncretic
aspect with other religiosities, having as main references Assunção (2006) and Sampaio
(2016). The second phase of the research was immersion in the field, in order to describe
and understand the ways of dancing, the qualities of movement, the tonic aspects and the
body organization of the ritual dances of the jurema with a focus on the processes of
incorporation and distinction of this state those that would be of interest to us to access.
We made 12 field visits lasting up to one day each. The third phase of the research went to
the practical laboratories to develop the creative process and a choreographic result from
the accessed body states. 10 laboratories were carried out, totaling 20 hours of practice. In
each laboratory, we sought to bring about the emergence of multiple bodily states, based
on body memory, images and notes of the experiences lived in the field, aiming to build a
dramaturgy for the scene. The field experience corroborated the idea that Jurema is
constituted by the alliance between the world of the living and the dead in a continuum of
existence. Deepening the understanding of bodily states fired from the field led us to other
authors on the subject. The main reflection of this research was the diverse understanding
of what we call irradiated corporeality. Coined term from field experience, practical
laboratories and reading studies by authors like Barbara (2013); Vicente (2019) and Cunha
(2019). Due to the context of Covid-19 the scenic result could not be presented, but we still
have the possible virtual adaptation of the performance.
6. Introdução
Tabela 1. Discriminação de local, data e tipo de ritual com relação às visitas a campo.
O Ilê Axé Xangô Ogodô, tenda de Jurema do Caboclo Sete Flechas, é uma nação
Jurema Umbanda Nagô fundada em 1993. Está localizado na Rua Elói Inácio de
Albuquerque, n° 16, no bairro de Mangabeira II da capital João Pessoa (PB). Liderado pelo
Babalorixá Obadimeji Pai Beto de Xangô[1], autointitulado guardião da Jurema Sagrada e
presidente da Federação Cultural Paraibana de Umbanda, Candomblé e Jurema. Segundo
Melo (2011, p.57) o pai de santo afirma que o nome da casa pode ser interpretado como
“casa da força do Orixá Xangô Agodô”. O terreiro, centro, ilê ou casa, como pode ser
chamado, por muito tempo foi apenas a moradia de Pai Beto, não existindo lugar
específico para as atividades religiosas. Com o passar do tempo, desde a iniciação do
primeiro filho de santo em 1999, viu-se a necessidade de criar e expandir o local para as
atividades, em função da demanda por desenvolvimento espiritual (MELO, 2011). O
espaço do terreiro atualmente encontra-se em reforma, mas não difere tanto da planta baixa
feita por Rodrigo da Silva Melo em 2011 (FIGURA 1).
De modo geral, o ritual de jurema pode ser visto em duas categorias: Uma Jurema
dita indígena ou de caboclo, mais próxima do que Assunção (2006) chamou de um catimbó
original, com as variantes étnicas de cada povo, e a “Jurema de Mestre”, “Jurema de
Mesa”, ou “Jurema Urbana” que é a praticada nos terreiros (L’ODÒ, 2017, p.27). Segundo
L’ODÒ (2017) embora ambas se cruzem completamente no tocante ao imaginário e
concepção cosmológica, têm diferenças na prática ritualística.
Nesse contexto urbano, há três tipos de rituais de jurema realizados nos terreiros, de
forma conjunta, quando a casa realiza mais de um tipo, ou única, quando apenas um tipo
de ritual é realizado na casa, são eles: Toque de Jurema, Jurema de chão e Jurema de
mesa.
O ritual de toque no Ilê Axé Xangô Agodô tem uma característica marcante dos ilús
(tambores) com a dança. Os tambores são antes de tudo considerados sagrados, portando
cada qual um nome próprio. A sincronização desses dois elementos promove o alcance do
ápice da integração psicofísica. Isto pode ser traduzido como um domínio profundo do eu,
no sentido das multiplicidades de eus que perpassam o universo de matrizes africanas e
indígenas (CUNHA, 2019; BARBARA, 2019). Na perspectiva do candomblé, “os eus
sagrados são eus profundos e escondidos que a iniciação revela e integra ao todo da
pessoa” (BARBARA, 2019, p. 105). A música e o movimento são formas de geração da
energia necessária para esse alcance. Tanto no Candomblé como na Jurema iniciar-se é
renascer, expandir e multiplicar as possibilidades de ser, experimentando “a complexidade
e multiplicidade da vida interior” que “é reparadora e abre um grande espaço de liberdade
interior, que aumenta quando os fragmentos são integrados” (BARBARA, 2019, p.105).
Por isso, a gira para pessoas iniciadas ou não é tida como espaço de desenvolvimento
espiritual, pois, num ambiente propício e acolhedor através desses elementos constituintes,
a música, a dança e o canto, se dá “uma grande possibilidade ao ser humano para integrar
sua multiplicidade” (BARBARA, 2019, p.105).
O ritual do toque se torna, portanto, demasiado interessante para nossos intuitos de
pesquisa, pois a elaboração desses elementos constituintes e a forma em que são utilizados
na Jurema cultuada no ilê Axé Xangô nos dão pistas para investigação de nosso processo
criativo em dança.
Figura 1. Planta baixa do Ilê Axé Xangô Agodô. (Fonte: MELO, 2011, p.58)
Fig
ura 2. Salão do terreiro. (Fonte: MELO, 2011, p. 60)
A integração complexa entre visualizar e ouvir padrões rítmicos são marcas de uma
herança africana e indígena que nos mostram a composição de uma semântica indivisível
entre som e corpo. Esse é um ensinamento muito importante ao se refletir proposições de
mundo afro-indígeno-centradas. Nessas visões de mundo, não se pode compreender música
e dança isoladamente, nem descrevê-las de modo simplesmente acústico, mecânico e
motor. “A música transcende o fenômeno acústico e entra no mundo da motricidade
corpórea” (BARBARA, 2002, p. 126). “A experiência musical é sobretudo uma
experiência corporal” (BARBARA, 2002, p.127).
Barbara (2002) comenta sobre como os tocadores do candomblé podem ser capazes
de fazer alguém cair em transe pelo uso de variações no tambor que se ligam à tensão
muscular dos dançarinos, segundo ela “a intensidade dos tambores deve sustentar o ardor
muscular dos dançarinos” (BARBARA, 2002, p.125). Me é muito familiar essa noção de
sustentação energética pela música extrapolando a exaustão muscular e balizando uma
sintonia corporal nas manifestações populares do coco de roda, do cavalo marinho e dos
maracatus que participo, nos rituais de terreiro e nos laboratórios de corpo dessa pesquisa.
Sobre esse efeito da música no corpo, Cunha (2019) trabalha a noção de ritmo
como força vital na gênese do movimento. Ela amplia a percepção da música para além da
transformação das ondas sonoras pelo sistema auditivo, para levar em conta todos os
sentidos acionados e a vibração provocada nas demais partes simultaneamente. A esse
estado entre estados no espaço corpomente que ainda não é um transe, mas que é um
estado de permeabilidade da música nos corpos ela sugere como um ‘estado de ritmo’
(CUNHA, 2019). BARBARA (2002, p.121) complementa essa ideia afirmando que “o
ritmo, então, é considerado energia cinética, energia que capta e propulsiona a vibração do
movimento pessoal e do outro”. Os cantos de invocação de descida das entidades também
cumprem uma função de energia cinética na tradição juremeira. Isso é extremamente
relevante para nós na busca por uma compreensão da relação da ingestão da bebida
sagrada, do toque e da dança para o ritual da Jurema. Mais uma vez o corpo movimento é
substantivo de transcendência e fluxo absoluto. Em CUNHA apud MBEMBE, 2005, p. 02
esse “corpo como local de transgressão entre o transcendental e o empírico, o material e o
psíquico” e o reforço da música e do movimento produzindo “efeitos psíquicos, somáticos
e emocionais nos órgãos e membros” são noções muito pertinentes ao universo da Jurema.
A combinação da ingestão da bebida, do toque e da dança é o tripé que garante o
estado de transe e entusiasmo na gira, isto quer dizer que “beber e não dançar, nem cantar
não tem o mesmo efeito que dançar, cantar e beber” (ACSELRAD, 2019, p. 245). A partir
das experiências como subcorrente percebi o quanto a prerrogativa dos elementos da
dança, do toque e do canto são importantes para o acesso aos estados corporais que
observei, como também para saída deles. Há um estado que chamo de sintonização que
sinaliza o momento pré-incorporação numa expressão de interioridade, onde os rodantes
parecem estar sintonizando uma rádio (VICENTE, 2019), em que faço relação ao que se
descreve no estado de ritmo como uma zona ocupada pelo corpomente em trânsito com as
forças de contrastes: dentro-fora do corpo, familiar e desconhecido, consciência e
inconsciência, pessoal e coletivo, corpóreo e extracorpóreo (CUNHA, 2019, p.48) e
também próximo ao estado de erê de que fala Barbara (2002) como um semi-transe, um
estado ponte entre o estado de santo profundo e a consciência ordinária da pessoa em que
os bloqueios e recalques da pessoa são resolvidos e podem emergir do inconsciente
livremente. Nesse momento, em todas as pessoas que já presenciei incorporar, o fechar os
olhos somado ao cantar, ritmar e dançar quando o ritual permite, são a cadeia de ações que
levam ao transe profundo. Nesses momentos aquelas pessoas que não podem ou não
devem incorporar por alguma razão, parecem “desligar” do ritual manipulando a ordem e
intensidade dessas ações. Pode-se manter os olhos abertos e cantar sem usar palmas ou o
passo, não cantar, mas manter o passo e as palmas, fechar os olhos, mas não cantar, nem
dançar, nem bater palmas.
Na jurema de chão que observei no dia 22 de junho de 2019, os(as) filhos(as)
estavam sentados no chão, ou em pequenos tamboretes, troncos ou cadeiras, marcando-se o
canto, a palma e o maracá. Não haviam tambores. Dentre os rituais apresentados, pai beto
explica que as cerimônias do ilê são denominadas de Toque de Jurema, Festas e Jurema
de chão (MELO, 2011, p. 72). O toque e o chão têm diferentes funções, mas se destinam
ao desenvolvimento mediúnico e doutrina espiritual dos(as) filhos(as), também chamados
de iaôs. Os orixás são cultuados nas cerimônias de toque para orixá e festas (MELO,
2011). As festas servem para obrigação de orixá ou jurema, conclusão de obrigação das
pessoas iniciadas ou homenagem a entidades específicas.
Há registros em que a jurema de chão é considerada a forma mais antiga de culto;
outros registros declaram ser a jurema de mesa; é consenso, porém, que tanto na jurema de
chão, quanto na de mesa, são realizadas as feitiçarias mais fortes (ACSELRAD, 2019). Pai
Beto de Xangô relata que a jurema de mesa é a forma mais antiga do culto e que pouco se
realiza atualmente. Por sua vez, a Jurema de mesa diferencia-se da Jurema de chão pela
presença do objeto da mesa como uma espécie de altar e pelos tipos de entidades evocadas.
Ainda segundo ele, alguns rituais antigos denominam-se de mesa quando há algo que imite
o objeto no centro da roda, podendo ser tapetes, palhas, toalhas ou esteiras onde se compõe
de diversas maneiras a mesa, com garrafadas de jurema, frutas, folhas secas e verdes,
pedaços de troncos, estátuas, maracás e a princesa*. Assunção (2010, p. 86) também
descreve forma de cultos em que a mesa apresenta-se dessa forma. Ainda que, na definição
da jurema de chão não haja a presença da dança como uma categoria que se destaca,
quando o processo de incorporação ocorre os virantes (outra denominação para os médiuns
que incorporam) podem levantar-se, porém, se os guias que chegam e não passaram pelo
ritual de iniciação ainda, não podem se levantar, serão servidos por outras participantes do
culto (MELO, 2011, p.72). Segundo uma filha antiga do terreiro de pai beto “o ritual de
chão representa uma herança dos antepassados. Por conta da perseguição eles faziam os
cultos escondidos, dentro das matas, em cima de folhas e joelhos no chão”. No ilê, esse
tipo de culto é muito utilizado para a facilitar o aprendizado dos cânticos e facilitar a
concentração dos médiuns. A Jurema de chão de Pai Beto, ao contrário do que diz
Acselrad (2019) sobre a diferenciação dos cultos, também são sessões públicas.
Segundo Pires (2010) a jurema foge de uma sistematização teológica por sua
“religiosidade extremamente fluida e mutável que se adapta ao seu meio e às necessidades
dos juremeiros e das espiritualidades”, tratando-se, como substância, de uma aliança entre
o mundo dos vivos e dos mortos num continumm de existência. Esta seria uma primeira
metáfora encontrada na cosmovisão juremeira: “(...) a pessoa é tida como um agregado de
relações com a espiritualidade seja ela forças da natureza como os orixás ou espíritos
ancestrais como os mestres, caboclos e encantados da jurema” (PIRES, 2010, p.95). É o
que o autor chama de um devir jurema buscado pelos juremeiros proporcionado pelo entre-
lugar de dois mundos. A agência humana e a influência sobrenatural são faces de uma
mesma moeda que atuam no cotidiano dos adeptos da religião. A vida se relaciona com a
morte enquanto partes complementares e não polares.
Essa característica da vida cotidiana entrelaçada com o mundo espiritual também
pode ser outro aspecto que impede uma sistematização teológica na história da jurema,
junto a capacidade de organização informal das casas (ASSUNÇÃO, 2010, p. 100). Os
serviços espirituais não fazem exigência de locais opulentos e luxuosos, ou mesmo de um
arranjo complexo de liturgia, reflete-se, antes de tudo, a mobilidade física e geográfica da
população seguidora. Os(a) mais antigos(as) mestres(as) juremeiros(as) realizavam suas
curas nos quintais de casa, traço que se confirma na história de um terreiro mais recente
como o Ilê Axé Xangô Agodô.
Por outro lado, L’ODÒ (2017) foi em busca de uma teologia da jurema,
conceituando o que chamou de Juremologia. O autor descreve alguns elementos que nos
servem de entendimento sistematizado do imaginário-simbólico desta religião: 1) pensar a
Jurema como espaço mítico sagrado, árvore sagrada e bebida sagrada, como sustentação
mística e material teológica principal para dar motivo à existência da religião; 2) pensar a
“ciência da Jurema” como elemento chave de ligação fundamental entre o homem/mulher;
3) o diálogo do sagrado com o material o através das entidades e divindades; 4) o
juremeiro e a juremeira como intermediários das coisas e dos espíritos, os que fazem a
religião existir de fato e os que perpetuam a tradição; 5) as ervas e seus poderes místicos de
cura holística como matérias do uso litúrgico; 6) a fumaça dos cachimbos como elemento
de comunicação e manipulação da força da ciência da Jurema; a manipulação mágica da
realidade; 7) a filosofia/cânticos que são a base sagrada da moral, ética e orientação
teológica, social e comportamental geral dos juremeiros e juremeiras; 8) a comunidade. A
aliança entre os terreiros de Jurema, que juntos formam a “Cidade” grande de força e troca
de saberes que se retroalimentam umas às outras.
L’ODÒ (2017) concorda com aqueles autores ao falar que é uma forma de pensar
complexa e de difícil consenso, difícil teologização, essa da experiência transcendental de
que trata a jurema. A “viagem à jurema” é uma experiência bastante referenciada pelos
praticantes, relativa a ingestão do vinho sagrado, que fornece a ciência tão buscada por
seus adeptos na experiência transcendental (L’ODÒ, 2017). Essa visão muda
completamente a relação que podemos ter com a morte, pois ela deixa de ser uma fonte de
aflição, medo ou fim de linha, para atuar como fonte de sabedoria e um lugar de trânsito e
continuidade da vida. O contexto mitológico da Jurema envolve enterrar pessoas
importantes para a comunidade, embaixo dos troncos das árvores sagradas para que sendo
lembradas e cultuadas permanentemente, ainda permaneçam encantadas[2] e atuantes
(L’ODÒ, 2017, p.25). Podemos constatar essa noção da sacralidade da árvore através de
um ponto: no pé da jurema, tem uma flor. No pé da jurema, tem uma flor. Sou eu aquela
princesa e o meu nome é Leonor.
O processo de doutrinamento da Jurema é similar ao do candomblé quando se trata
da relevância do corpo e da crença para conceber um conhecimento encarnado dessas
tradições. Segundo Barbara (2002) é o corpo o único espaço apto a levar a marca do
tempo, a contar a história, da passagem, do destino. Por esta razão, o comportamento de
transe também é entendido como uma assimilação disciplinada dos modelos de
comportamento e condutas daquele seio por meio das cantigas, toque e mitos. É isso que
gera o fortalecimento e estreitamento progressivo do vínculo entre a pessoa feita no santo e
seu orixá, guias e mestres(as) (BARBARA, 2002). Esse conhecimento iniciático não é
simplesmente assimilado, ele deve ser vivido para que se tenha domínio dos mistérios e
segredos da religião ao longo do tempo. Contudo, segundo L’odo (2017), as iniciações na
Jurema, não seguem a mesma lógica do sentido de iniciação no candomblé. As
consagrações e até o Tombo da Jurema, que seriam rituais de “iniciação” não servem para
colocar a ciência dentro da pessoa como acontece com o axé no candomblé, a ciência já
nasce com ela e será fortalecida. A força própria da Jurema é essa força que não parte de
uma lógica material, mas sim, da relação com os espíritos que a habitam, já que se entende
que o tronco da árvore abriga esses corpos espirituais (PIRES, 2010).
Podemos entender esse mesmo princípio como um Corpo Semente da jurema onde
a sabedoria dos mundos vai se desenvolver, para isso essa “semente” deve ser plantada
metaforicamente tratando-se o corpo como árvore que passa por estágios de
amadurecimento de semente a gerador de frutos integrado com a terra e demais elementos
da natureza. A Jurema, portanto, é uma prática visivelmente repleta de elementos
simbólicos indígenas como a medicina retirada da flora, o maracá, uso de cachimbo –
ligado ao termo catimbó – e charutos, e a fumaça (expelida ou absorvida) para fins de
exorcismo e limpeza, elementos presentes em todas as formas do culto.
O conhecimento botânico, a relação com a natureza e sua sacralidade, as pessoas
mais antigas como sujeitos guardiões do conhecimento da sociedade e das curas dos males
e a ingestão da bebida sagrada, já enfatiza as particularidades, ao mesmo tempo em que
demarca a heterogeneidade do campo da jurema, em suas diferentes formas de realização,
para além de achar elementos africanos ou brancos que a compõe. L’odo (2017, p.188)
avalia que a especificidade da cosmovisão da Jurema é, portanto, “um imaginário de
crença no poder das árvores e plantas sagradas, que tem sua representação física na Terra,
mas que também existem como espaços espirituais detentores de Ciência no mundo
espiritual”.
No corpo metafórico do rodante estão confluindo muitos domínios: o espiritual, o
estético, a ancestralidade, o cosmogônico, a materialidade corpórea, o mitológico, a
tradição. (LARANJEIRA, 2013, p.234). A corporalidade do(a) Iaô incorporado
materializa todo esse universo em ação corporal através de movimento, da fala e do
trânsito de informações que naquele estado fluem entre dois mundos (ou mais).
Ao observar a chegada e despacho das entidades no corpo dos rodantes e pela
experiência pessoal, o trânsito entre o corpo de pombo-gira e caboclo produz uma
percepção diferente de movimentação. Na sequência do ritual as primeiras entidades a
serem invocadas são as protetoras, de limpeza e abertura de caminhos. Pelos cânticos, na
cerimônia de jurema, primeiro temos consecutivamente, Exus e Pombo-giras, estas,
companheiras de Exu. Após essas entidades serem despachadas, na sequência, são
evocadas as outras falanges de guias da jurema, por exemplo, caboclos, caboclas e mestres.
“A ordem de evocação das falanges depende da decisão do sacerdote, contudo, em
cerimônias de festa, a entidade homenageada é evocada por último” (MELO, 2011, p.73).
A força impressa nos movimentos de Exus e Pombo-giras apresentam uma
sinuosidade, particularmente elaborada pelas mulheres. A postura pombo-gira me remete a
um aspecto felino, mas oscilante entre uma certa languidez e uma imponência, um modo
mais arrastado de se colocar no espaço, mais macia, sinuosa, pendular, ereta, a musculatura
do peitoral e a abertura das costelas parece ganhar destaque. O modo de andar mais
arrastado, se contratas com formas de giro rápidas e risadas extravagantes. A sensualidade
opõe-se à formas rápidas de deslocamento que deixa rastros de vento. Ao presenciar a
saída de Exu Caveira ou Tranca Rua pelo Pai de Beto percebi que todas as entidades
presentes “sobem” e não é permitido que nenhum filho(a) da casa esteja incorporado. A
essas entidades é atribuída a característica de “abertura de caminhos, proteção e conquistas
amorosas”, o que reforça as características apresentadas em suas movimentações. Após
esse momento, o ritual seguiu a sequência de evocação de caboclos (as), finalizando com
mestres(as), após um intervalo para os participantes trocarem de roupa. Exus e pombo-gira
também são entidades protetoras, de um contexto urbano, de ruas e encruzilhadas, são
entidades que cuidam do trânsito e da passagem entre-mundos. Pombo-gira também é uma
guia ligada ao prazer, ao empoderamento, às forças de encanto, atração, deslumbre,
arrebatamento.
Já a qualidade de caboclos, caboclos, em geral, também me remete a uma qualidade
felina, mas numa atitude de guarda, proteção, sorrateira, forte, de ordem e de audição
expandida. Para isso, a musculatura das costas parece saltar. Ao tentar traduzir a postura
dessa entidade sinto uma grande exigência da musculatura da região lombar. Os(as)
caboclos(as) incorporados(as) dançam conforme suas características pessoais. Mas
normalmente os guias mais antigos tem uma corporeidade menos ágil e mais controlada. A
chegada dessas entidades sempre marca um momento de saudação entre os presentes que
se dá pelo cruzamento dos braços em “x” com o punho cerrado e alternância das cabeças
de um lado e outro durante o cumprimento. Caboclos mais jovens por sua vez demonstram
suas habilidades com saltos e variações de passos, com o movimento dos braços em arco e
flecha. Geralmente apresentam um ar desafiador ou desbravador como se também
estivessem a se esconder ou fugir. Isso resulta quase sempre numa caminhada em nível
médio com a coluna bastante curvada para frente, mas não é regra. Os pés estão marcando
ritmo do maracá numa transferência de peso entre um e outro, mas também marcam uma
espécie de carreira, com dois passos para direita e mais dois para a esquerda. É muito
comum que a entidade produza sons, desde gritos guturais, a sussurros, até onomatopeias
que parecem formar pequenas sílabas que se repetem como “rip”, “Rruu”, “heep”. Os
passos marcam…
Em minha perspectiva são guias que têm funções semelhantes mas produzem
corporalidades distintas. As linhas dos guias diferenciam-se entre si, quando incorporadas,
por apresentarem características diferentes nos modos de falar, andar, vestir, agir e nos
tipos de conselhos que oferecem. Apesar destas características genéricas que constituem a
linha da entidade, dentro da mesma falange (linha) há características próprias de cada
entidade. Desse modo, “ quando sai da camarinha, cada guia de jurema está usando trajes
que remetem à sua linha. Por exemplo, os caboclos, se vestem com grandes cocares,
portam arcos e flechas; os Exus vestem capas, roupas vermelhas e pretas e podem portar
bengalas” (MELO, 2011, p.65).
Como dito, o som produzido pelos tambores juntamente com a dança e a ingestão
da bebida são fontes cruciais para o estado de transe. Porém, há muitas experiências de
transe em que a manifestação pode ocorrer fora de ritual. Diz que a entidade é forte ou que
pode estar punindo a pessoa por alguma razão. “Esses transes não aconteceram em
presença da música, ou em contexto ritual, mas foram desencadeados por estados
emocionais de forte tensão em pessoas predispostas a esse tipo de experiência espiritual”
(BARBARA, 2002, p.114). Com isso identifica-se o movimento dançado como alterador
de percepção do corpo, tempo e espaço (ACSELRAD, 2019). Acselrad apud Gil (2019,
p.158) afirma que “Quem bebe e não dança, raramente atinge a intensidade da experiência
ritual vivida pelos adeptos da jurema que dançam”. Vi por diversas vezes o pai de santo
chamar atenção dos ogãs a respeito da música quando esta parecia atravessada,
descompassada ou decaída de intensidade. Isso afetava o modo como os corpos na gira
reagiam também. Por vezes, o ritmo acelerado e intenso resultava em giros rápidos sobre si
mesmas em várias pessoas. Em diversos momentos tive a sensação de controle da
irradiação por bloquear as ações de fechar os olhos, não permitir que movimentos
repetitivos se decorressem, não estar em movimento e permanecer sentada. Uma recusa de
ritmar.
É possível observar que os integrantes estão de posse desses domínios e operam de
forma semelhante no controle da hora da descida das entidades, especialmente os
momentos em que não é permitido incorporar. Apesar dessa semelhança no controle, existe
uma diversidade de comportamentos no fenômeno da incorporação, que se dá com ou sem
perda total de consciência. Há expressões faciais e posturas corporais muito diferenciadas.
Por exemplo, entidades mais velhas trazem uma expressão facial mais arqueada para baixo
da boca. Como afirmado por Pai Beto, a incorporação depende das possibilidades corporais
e nível de desenvolvimento mediúnico dos rodantes. Ele ressalta a importância da
individualidade desse processo porque depende das características pessoais da pessoa, do
nível mediúnico dela e do laço com seus guias. Na casa de Pai Beto, existem normas
estabelecidas por ele para organização geral, que estão escritas em um cartaz na parede,
para que todas as pessoas possam seguir independente do cargo que ocupem. A segunda
dessas normas diz: Não observar as formas dos irmãos incorporar. Tamanha é a
importância do desenvolvimento individual desse processo.
Com isso, pude notar que o desenvolvimento mediúnico é um aprendizado que
envolve a troca de conhecimentos entre os dois mundos, terreno e espiritual. Os guias não
doutrinados estão aprendendo também. O agenciamento dessa relação não se estabelece
por uma ordem hierarquizada do mundo sobrenatural sobre o mundo físico e a completa
dominação deste sobre o primeiro. Mais um reforço para a ideia de continuidade da
existência e da relação possível do nosso mundo com outros. Por isso, o entendimento de
ancestralidade e o culto dos antepassados são pilares fundantes das cosmologias afro-
indígenas. Na concepção do candomblé o morto chega a ser integrado socialmente para
exercer sua função na sociedade (BARBARA, 2002).
9. Conclusões
10. Referências
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Rochester: Inner traditions, 2002.
AMARAL, Rita. A fina ciência da Jurema. Ponto Urbe [Online], 4 | 2009, posto online
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http://journals.openedition.org/pontourbe/1738; DOI: 10.4000/pontourbe.1738).
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