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GRUPO DE TRABALHO: CORPO E CULTURA

OS GUARANI MBYA E O CORPO COMO SUJEITO DA CULTURA …................................................. 2


LILIAN GANZERLA (FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO)

DANÇA DE ANA: ANÁLISE DA EXPRESSIVIDADE DO CORPO NO FILME LAVOURA ARCAICA DE LUIZ


FERNANDO CARVALHO............................................................................................................. 11
TAMARA VIVIAN KATZENSTEIN (CAV); PATRICIA NUNES FERNANDES

CORPOS PLURAIS NA CENA CONTEMPORÂNEA: DANÇA E ANCESTRALIDADE AFRO-BRASILEIRA


NO ESPETÁCULO NEGRUME DE ITAPIPOCA-CE …........................................................................ 20
JOSÉ RINARDO ALVES MESQUITA (UNILAB); LUÍS TOMÁS DOMINGOS (UNILAB)

CORPO NEGOCIAÇÕES: A FESTA DO COCO DOS QUILOMBOS IPIRANGA E GURUGI DO MUNICÍPIO


PARAIBANO DO CONDE …......................................................................................................... 29
PETICIA CARVALHO DE MORAES (USP)

O CORPO EM SACRIFÍCIO: CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE O CONSUMO ALCOÓLICO EM


BILL WILSON ….......................................................................................................................... 39
YRISMARA PEREIRA DA CRUZ (FACULDADE LEÃO SAMPAIO)

ACHADOS DA RUA: CORPO, CIDADE E FOTOGRAFIA …............................................................... 49


ELANE ABREU (UFRJ)

GOVERNAMENTALIDADE COMO PRÁTICA DE SUBMISSÃO DO CORPO À BIOPOLÍTICA …............ 60


ELINALVA P. DE CARVALHO (UFMA)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CARIRI – UFCA
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OS GUARANI MBYA E O CORPO COMO SUJEITO DA CULTURA

Lilian Cardoso1

Resumo
Esta pesquisa procura compreender o corpo como sujeito e instrumento para elaborar um estudo
sobre cultura, tendo como base o corpo Guarani Mbya, analisado por meio de suas técnicas
corporais para a transformação na busca de uma terra sem mal, ponto principal de sua cosmologia.
O corpo, por suas afecções, é elaborado aqui como produto e produtor da cultura.

Palavras-chave: Guarani Mbya, performance, ritual, corporalidade, experiência.

O corpo, aqui nesta pesquisa, é utilizado para transportar-se para uma determinada cultura,
no caso, a dos guarani Mbya2, e também é instrumento para elaborar um estudo da cultura. A
utilização das técnicas corporais nos Mbya ajuda a compreender o corpo como um agente em
transformação, sendo o primeiro e o mais natural instrumento do ser humano; ou, mais exatamente,
o primeiro e mais natural objeto técnico e ao mesmo tempo meio técnico do ser humano (MAUSS,
1974: 217). Esta clássica de Marcel Mauss é síntese de como abordo as técnicas corporais nos
Mbya: o corpo sendo o instrumento natural utilizado pela vida social como suporte e meio de
expressão das representações coletivas. Transcendo a ideia de que o corpo é um objeto em relação à
cultura, “mas é o sujeito da cultura; em outras palavras, a base existencial da cultura” (CSORDAS,
2008: 102). A noção de corpo e pessoa Mbya é elo para entender sua experiência humana nas
diferentes esferas e dimensões, é o fundamento da base existencial de sua cultura.
O corpo Mbya está relacionado ao seu modo de viver, que denominam nhandereko3, por
meio de técnicas corporais geradas na tradição oral, técnicas que buscam por um contato com as
divindades, um eterno caminhar ou nomadismo – pela busca de uma terra sem mal, uma relação
benéfica com a natureza e por rezas - entre canto e dança, para o fortalecimento de seu modo de
viver tradicional, com intuito de não serem contaminados pela cultura do juruá4. Assim, as técnicas
1 Bolsista CNPQ na Fundação Escola de Sociologia e Politica de São Paulo - FESPSP.
Email: lilianganzerlacardoso@gmail.com
2 Os Mbyá são um subgrupo da nação Guarani que, junto com Kaiowá e Nhandéva, compõem uma importante
família do tronco Tupi. Estendem-se por Paraguai, Brasil, Argentina e Uruguai. Cabe lembrar que esta divisão dos
Guarani - em três grupos - aparece a partir de Egon Shaden (1974).
3 Nhandereko é tradução por “nosso modo de viver”, compreende a “cultura” Mbya.
4 Juruá é como chamam os não indígenas. Segundo Maria Inês Ladeira (1992) não se sabe quando este termo
começou a ser utilizado. Sua tradição literal e, portanto, seu sentido original, era “boca com cabelo”, em referência
aos pêlos faciais dos colonizadores europeus.

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corporais Mbya incluem espaços sagrados e cotidianos, que são complementares, utilizam suas
técnicas na Opy5, na caça, no plantio, na alimentação, no nascimento e na morte, por exemplo.
Meu convívio com os Guarani Mbya da cidade de São Paulo 6 inicia em 2007, por meio de
um grupo de juventude que atuou em projetos culturais junto a comunidades indígenas. Os anos de
convivência me deram a oportunidade de desenvolver projetos (acadêmicos ou não) e aprender na
prática, um pouco, sobre seu modo de viver, o nhandereko. Entender o corpo como sujeito da
cultura – e não apenas como o objeto – fez com que eu o utilizasse como meio técnico para este
estudo: estudar com o próprio corpo os outros corpos, em uma ação de “ser afetada” (FAVRET-
SAADA, 2005). Foi o “deixar-me afetar” que trouxe uma pesquisa que dialoga pelo corpo, uma
pesquisa de experiências vividas em campo - e não só observadas, uma pesquisa que traz o corpo
como um sujeito que é “necessário para ser”, tanto para pesquisador como para pesquisado, e não
somente um objeto de pesquisa.
O corpo é o transporte aqui selecionado para adentrar uma cultura, bem como ser
representante de outra:
(...) trago como questão de fundo pensar sobre o lugar que ocupam pesquisador e pesquisado
no processo de produção etnográfica, com a finalidade de problematizar a própria
metodologia empregada – a observação participante – e o lugar da pesquisadora performer no
diálogo construído. (...) Nas palavras de Schechner (1985) o pesquisador está lá para ver, e
ele é visto. Sua presença “é um convite para a atuação”. O que o diferencia dos demais
performers é a sua ambiguidade. Ele é um “não performer” e um “não-não performer”: não é
um espectador, nem um não-espectador. Ele está entre (“in between”) dois papéis, assim
como entre duas culturas. No campo, ele representa – querendo ou não – sua cultura de
origem; de volta para casa, representa a cultura que estudou. (FERREIRA, 2007: 39)

A experiência do intercambio de afetos, por meio do corpo, quando se entende que este é
sujeito da cultura, é vista aqui como uma “faculdade de intercambiar experiências” (Benjamim,
1994), um transporte entre culturas realizado pelo corpo e suas técnicas, pois “vislumbro que tudo
retorna ao corpo, pois é nele que inscrevemos o mundo” (FERREIRA, 2007: 27).
“Uma” – primeira – noção de corpo guarani
Segundo o mito de criação do mundo, que nos contam os Mbya e pode também ser acessado
por uma literatura poética de Cadogan (1959), vivemos em uma terra ruim (yvy vai) criada após um

5 Opy pode ser traduzido como “casa de reza”, é o espaço físico e simbólico para realizar rezas, por meio de canto e
dança, e também para reuniões de interesse político e social da comunidade Mbya.
6 Estive com frequência nas terras indígenas (TIs) da cidade de São Paulo: TI Barragem/Krukutu, localizada nos
subdistritos de Parelheiros e de Marsilac, que atualmente conta com seis aldeamentos (Tenondé Porã, Krukutu,
Kalipety, Guyrapaju, Brilho do Sol e Yrexakã); e TI Jaragua, localizada no subdistrito do Jaragua, que conta com
três aldeamentos (Pyau, Ytu e Itakupe)

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cataclisma que destruiu a primeira terra (yvy tenonde). Na existência da primeira terra (yvy
tenonde), seus habitantes tinham um corpo imperecível, ou seja, não morriam, mas transcendiam
para uma terra habitada por divindades, conhecida como terra sem mal (yvy marãey). Seus corpos
eram expostos a provas em que em estado de leveza ascendiam a esta terra sem mal ou, aqueles que
sucumbiam diante das provas de leveza do corpo, eram ascendidos por meio da metamorfose em
forma de animal. Já a terra ruim que vivemos, também conhecida como terra nova (yvy pyau) trouxe
outra condição corporal para seus habitantes: a possibilidade da morte, ou seja, da perecibilidade do
corpo. A terra ruim foi povoada com as imagens dos habitantes que ascenderam à terra sem mal,
tudo que há nesta terra nova é um reflexo daquilo que está originalmente na terra das divindades, a
terra sem mal (yvy marãey). A diferença entre a primeira terra e a terra em que vivemos hoje é que,
na primeira, independente do estado alcançado por cada ser, todos os corpos tinham como destino a
terra sem mal, seja com seus corpos transcendidos na leveza ou metamorfoseados em animais.
Há uma diferença na duração do corpo, ou da morte: na primeira terra (yvy tenonde)
poderiam ascender para a terra sem mal (yvy marãey) sem passar pela morte, caso deixassem seus
corpos leves o suficiente para tal feito ou, se não conseguissem desta forma, transformando em
animais. Agora, na terra ruim (yvy vai), a morte é uma possibilidade.
A concepção de criação do mundo guarani Mbya passa por dois estágios diferentes da noção
do corpo, principalmente em relação a sua duração e condição, dividido em estágio original e
imagem. Este mundo atual, em que vivem os Mbya – e que todos nós vivemos – é um mundo
imperfeito (yvy vai) habitado pelas imagens daqueles que vivem na terra sem mal (yvy marãey).
Apesar de ser considerada ruim esta terra atual, os corpos Mbya não estão condenados a um fim em
si mesmo, mas têm a possibilidade de movimento e transformação por meio de uma engrenagem
principal: a busca pela terra sem mal (yvy marãey), a terra em que transcenderam os habitantes da
primeira terra (yvy tenonde), a terra em que vive tudo o que é original da imagem refletida nesta
terra ruim.
Yvy marãey é composta por elementos originais que não se esgotam. E esta virtude não reside
no aspecto quantitativo, mas na qualidade de perenidade de seus elementos. Este pensamento
define os modos de relação com o ambiente do uso natureza e da agricultura, onde a noção de
abundância esta associada à possibilidade da renovação dos ciclos, e não ao armazenamento e
comprometimento das espécies naturais. (LADEIRA, 1992: 96).

A busca por esta terra sem mal define a noção de corpo Mbya, é esta busca que define a relação de
seus corpos com a natureza, de seus corpos com o modo de vida e de seus corpos com seus próprios

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corpos. Na tradição guarani existem técnicas corporais que podem ser desenvolvidas para diminuir
a diferença que há entre corpo original, da terra sem mal (yvy marãey), e corpo imagem, da terra
imperfeita (yvy vai). Existe a possibilidade de superar a diferença, a ponto de integrar-se com a
originalidade, ou seja, transcender a yvy marãey, a terra onde não há mal algum e que reina a
perenidade.
A Terra sem Mal: um espaço sem lugares marcados, onde se apagam as relações sociais, um
tempo sem pontos de referência, em que se abolem as gerações. É o aguyje, a completude; no
conjunto dos homens cada um vê restituído a si próprio, suprimida a dupla distância que os
fazia dependentes uns dos outros e separados dos deuses – lei de sociedade, lei de natureza: o
mal radical. (CLATRES, H., 1978: 113)
Assim como Ladeira (1989; 1992; 1999; 2002) já afirmou, eu reitero que a busca de yvy marãey é o
que fez com que este povo utilizasse de um território amplo, acrescento que este território utilizado
se trata, além de um espaço geográfico, principalmente de um espaço corporal. O nomadismo, visto
como ação natural do povo guarani, não esteve atrelado ao simples fato da procura de subsistência,
mas também a uma busca cultural, ponto chave para o seu nhandereko. A ação corporal do
caminhar é ação importante para um território simbólico a ser alcançado pelos Mbya, a ação
corporal do caminhar é objeto e meio técnico de sua cultura – seu modo de viver – e principalmente
é sujeito de sua cultura.
O termo aguyje que aparece no trecho reproduzido de H. Clastres (1978) me foi traduzido
por um xeramõi7 como o “caminho para a leveza do corpo”. Alguns termos guarani parecem ser
impossíveis de tradução, por carregarem um significado que vai além do mundo visível, para ajudar
na compreensão o xeramõi relatou técnicas corporais que são necessárias para alcançar o aguyje,
que abarcam passar por provações e preparar o corpo, técnicas estas que estão relacionadas a reza,
dança, canto, alimentação, comportamento, uso do tabaco – cujo consumo é feito no petyngua8. Em
Cadogan (1959) o termo aguyje aparece traduzido como “perfeição” também utilizado desta forma
por outros importantes autores como H. Clastres (1978). A tradução apresentada por Viveiros de
Castro (1986) como “maturação” parece ser muito adequada, principalmente porque o termo
também pode ser usado para referir ao estado de amadurecimento de um fruto, que dá a entender de
que os seres que habitam esta terra são “verdes – crianças, como diriam os Areweté -; é preciso a
morte e o cozimento divino para que amadureçam, cresçam ou se tornem completos” (Viveiros de
Castro, 1986: 597). Ou seja, aguyje é a forma de amadurecer para estar completo, o caminho para
7 Xeramõi é maneira de chamar todos os anciões – e Xijari para as anciãs. Os também são utilizados para se referir as
lideranças espirituais.
8 O petyngua é um cachimbo, instrumento principal para as rezas e técnicas de cura.

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alcançar a terra sem mal (yvy marãey). A condição do corpo para a busca da terra sem mal é o
centro da cultura guarani, pois yvy marãey é de onde vêm as “almas de seus filhos na terra, seu
alcançar é o próprio retorno às origens em condições novas” (Ladeira, 1999: 97).
Na minha convivência com os Mbya, aprendi sobre o desenvolver de técnicas corporais para
o aguyje, que são regras, resguardos e práticas passadas de geração para geração, tendo sempre
como foco o amadurecimento do corpo. Nascer, por exemplo, para os Mbya, depende de regras que
envolvem não apenas a mãe, mas diversos parentes que estão à volta daquele nascimento. As
técnicas corporais em relação ao nascimento estão regradas na alimentação restrita da mãe, na
impossibilidade de relacionamento extraconjugal dos pais e em resguardos de reclusão, após o
nascimento. Parece ser a noção de corpo - e as técnicas corporais para aguyje – uma ação da
coletividade e não da individualidade, como no caso do nascer, a criança depende das técnicas
corporais dos que aqui já estão para se tornar um deles.
Para muitas das técnicas que desenvolvem é necessário lidar com o corpo visível e não-
visível, como no ato de caçar. Para os Mbya, cada ser possui seu dono, este dono zela pelo animal,
vegetal ou mineral, quando há consumo destes seres é necessário que haja diálogo e pedido de
licença ao dono. Alguns donos tendem a ser mais temidos pelos Mbya, pois caso sejam
desrespeitado podem causar doenças ou malfazejos naquele indivíduo que lhes atormentar. Além
disso, caso o dono do animal se enfureça, pode causar uma “maturação” corporal negativa, em que
um Mbya será transformado no corpo do animal. Isto acontece quando não cumprem as técnicas
corporais solicitadas perante a caça e seu dono, técnicas que compreendem caçar na época do certa
do ano, pedir licença ao dono do animal, utilizá-lo de forma benéfica e sem desperdícios, banhá-lo
com a fumaça do petyngua e acima de tudo respeitá-lo. Caso não respeitem a caça e seu dono
devidamente e não cumprirem as técnicas corporais destinadas a esta relação podem sofrer a
transformação da forma humana para a animal, tipo de “maturação” corporal negativa é conhecida
como jepota.
Cantos e danças, que compõem a reza Mbya, também são técnicas corporais para alcançar o
aguyje, a “maturação” corporal que traz possibilidade de não perecer, alcançar a terra sem mal e
ficar longe da possibilidade do jepota, a transformação em animal. Na Opy pude vivenciar, por
diversas vezes, práticas de exaustão, por meio de canto, dança e uso do petyngua, técnicas usadas
para que seus corpos encontrem o estado de leveza. Um xeramõi contou-me que “no tempo em que
o juruá não havia chegado, os xeramõi não saiam da Opy para nada, apenas ficavam lá dentro em

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contato com Nhanderu9, esperando o próximo sonho” que poderia lhes dizer qual caminho seguir
em busca da terra sem mal (yvy marãey). A Opy sempre foi o lugar de reconhecimento e busca do
Mbya, a Opy é um corpo central da comunidade e um local físico para a busca do aguyje. É neste
local que se “fortalece a pessoa” e, além do individuo, “fortalece a comunidade”, ou seja, traz o
sentimento comum. É na Opy que os corpos se movimentam de maneira comum e que as vozes
cantam em uma mesma toada, são corpos que juntos são sujeitos de sua busca e que, em comunhão,
estão passíveis de transformação.
Este sentimento comum sempre foi principio da busca da terra sem mal, pois “não basta que
um indivíduo isolado atinja o objeto de seu desejo místico, é preciso que esse processo se estenda à
totalidade dos indivíduos” (Borges, 2008: 52). A “maturação” que os corpos devem alcançar para o
aguyje tende a ser um desejo da coletividade e não uma busca somente individual. O corpo torna-se
um sujeito da coletividade e, portanto, base existencial de uma cultura.
Corpo, um sujeito
É certo nas sociedades Ameríndias, das terras baixas do continente sul-americano, o corpo
idealizado para além do corpo físico, construído com sentidos e significados cosmológicos. Assim
como os Mbya, estes outros grupos indígenas apresentam a capacidade de transformar-se, ou seja, o
corpo não é fixo. A cosmologia e, com isso, a concepção desta “maturação” corporal, varia de grupo
a grupo. Porém, a importância comum nestes grupos é de que a noção de pessoa e a consideração ao
lugar do corpo humano “são caminhos básicos para uma compreensão adequada da organização
social e cosmologia destas sociedades” (Seeger, Damatta, Viveiros de Castro, 1979: 3). E, ainda
mais, a consideração ao lugar do corpo humano são caminhos básicos para a compreensão adequada
da base cultural.
No caso dos Mbya, seu corpo é imagem da população originária que habitou a terra primeira
(yvy tenonde), população que hoje habita a terra sem mal, sendo que seu corpo imagem encontra-se
separado deste mundo primordial mas ainda está em busca de reencontrar com a originalidade, ou
seja, reencontrar-se em yvy marãey, portanto “a noção de pessoa Mbya configura-se, nos sentidos da
experiência, como o ser-estar entre o divino” (Ciccarone, 2001: 93), constroem sua noção de pessoa
e do lugar de seu corpo em busca de um estado que já lhe pertenceu em outro tempo, sendo uma

9 Nhanderu é uma forma de nomear o criador do mundo. Também pode ser chamado de Nhanderu Papa Tenonde –
nosso pai último (Cadogan, 1959), Nhanderu Guaxu – nosso grande pai, Nhanderu Ete – nosso pai verdadeiro,
Nhanderu Yma – nosso pai primordial (Ladeira, 1992), entre outras possibilidades de nomeação para a(s)
divindade(s)

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espécie de ser humano-deus, aquele que, em estado de liminaridade, é imagem do corpo original
que habita a terra sem mal. Para esta missão que lhes foi destinada, de ter a imagem do corpo
original é necessário “um alto grau de investimento de controle na expressão do corpo, pois é nos
seus corpos (...) que se reproduzem e se representam os deuses e a sociedade” (Ciccarone, 2001:
92).
Após 515 anos de massacre aos povos indígenas, seria impossível não contar com
transformações culturais – e corporais – em sua concepção de pessoa. A “maturação” tornou-se
algo quase inalcançável visto que algumas técnicas corporais, como a alimentação tradicional, não
são cumpridas, devido a grande urbanização a qual estão submetidas as terras indígenas de São
Paulo, que lhes colocam em falta de espaço para produzirem seu próprio roçado e, com isso, no
consumo de alimento industrializado. Também são exposto a uma crescente violência das periferias
onde estão inseridas suas terras indígenas na metrópole, porém, ainda assim, conseguem inscrever
em seu corpo técnicas tradicionais que não puderam ser apagadas, como as rezas diárias que
realizam na Opy.
Os Guarani Mbya, às custas do contato antigo e intenso com os brancos, caracterizado por
perseguições culturais e físicas, desenvolveram vários mecanismos para guardar e viver suas
tradições culturais e religiosas, garantindo sua reprodução enquanto povo e etnia. Seus
métodos não excluíram o convívio inevitável com o branco, com quem sempre procuram
manter um relacionamento amistoso. A demonstração de respeito aos costumes e religiões
alheios, o modelo de trajar-se copiando da população regional significavam, mais do que a
submissão a um processo contínuo de aculturação, uma estratégia de auto preservação. Desta
forma, sob o traje que encobre diferenças profundas, os Guarani tentaram, embora nunca
renegando sua condição de índios, com tolerância e intencional opacidade, resguardar-se de
novas feridas. (Ladeira, 1989: 58)

É como se seus corpos fossem guardiões de sua sabedoria ancestral, que acessa uma
memória coletiva de sua história e trajetória. Visto que o corpo, para os guarani, assim como para
outros grupos ameríndios, não se resume ao corpo físico, mas a totalidade da pessoa, este é um
lócus de sobrevivência de sua cultura. Por serem corpos passíveis de transformações, estão sendo
performados de acordo com as possibilidades que esta terra ruim dispõe, são um conjunto de
afecções performadas nesta contemporaneidade que pressupõe o intenso contato com a cultura não
indígena, mas mesmo assim ainda caminham – simbolicamente – para a terra sem mal. Apesar de
não realizarem mais seu nomadismo profético no espaço geográfico, inscreveram um espaço
corporal que ainda busca o aguyje
O corpo Mbya como sujeito de sua cultura mostra transformações tradicionais e

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contemporâneas: os Mbya estão expostos a violência urbana ao mesmo tempo em que guardam a
sua tradição cosmológica. É no corpo que atuam estas inscrições, o corpo torna-se indicador das
novas experiências sociais de seu mundo atual em conjunto com a antiga busca da “maturação”
corporal. Portanto, vimos o corpo como um produto da cultura como também um produtor desta
base cultural, um corpo que se projeta ao mundo como também é projetado pelo mundo. O corpo
como transporte de significados e refazedor de seus significados, como a eterna busca Mbya, que
hoje não utiliza mais as andanças em espaço geográfico, mas resignifica por meio da transformação
corporal. Se o corpo está no mundo deste o início como base existencial da cultura (CSORDAS,
2008), é ele o transporte da cultura e o performer de si mesmo.

Bibliografia
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Janeiro: Relume Dumará, 2002.

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DANÇA DE ANA: ANÁLISE DA EXPRESSIVIDADE DO CORPO NO FILME LAVOURA
ARCAICA

Tamara Vivian Katzenstein10


Patrícia Nunes Fernandes11

Resumo
Essa pesquisa transdisciplinar, visa resgatar a importância do corpo e suas simbolizações pré-
verbais e pretende compreender as idiossincrasias da expressividade tradicional social versus a
expressividade subjetiva individual, examinando duas cenas em que a dança aparece no filme
Lavoura Arcaica de Luiz Fernando Carvalho, articulando-se o arquétipo feminino de Ninfa de Aby
Warburg (2015) ao de Pombagira da tradição afro-brasileira.

Palavras-chave: Dança, Cinema, Corpo

“Diz-nos a ciência que a mudança é um elemento essencial da existência. As estrelas que


vagueiam pelo céu nascem e morrem. Crescem e desaparecem, colidem umas com as outras, ou
ainda, destroem-se pelo fogo. A mudança está em toda parte.”. (LABAN, 1978, p. 145).

Este paper se debruça sobre o estudo da dança conforme utilizada no filme Lavoura Arcaica
de Luiz Fernando Carvalho (2001). Baseado no livro de mesmo nome de Raduan Nassar (1989)
tem-se a dança como expressão de desejo e de liberdade do corpo, mostrada como ápice da trama,
de 2h39 à 2h45, em um espasmo de alegria e agonia. Surge apresentando a pulsão que busca
expressar-se, em uma investida psíquica para trazer à consciência os fatores fundamentais da
existência ressaltada pela câmera lenta no final, em contraponto à dança ritual, comunal, ancestral,
exposta dos 24 minutos e 20 segundos a 33 minutos e 06 segundos. O corpo produz imagens que
trazem questões pré-verbais e a figura aqui brota sob o ponto de vista não apenas material, mas
qualitativamente no seu potencial simbólico e histórico como representação, formando novas
harmonias que excitam a fantasia e o lirismo. Unindo ancestralidade e novas formulações, chega-se
à possibilidade da mudança que é realizada pelo indivíduo da experiência, que conhece a tradição e
permite-a interferir no seu presente (BENJAMIN,1987,p.14).

10 Professora no CAV/São Bernardo. E-mail.katzensteint@yahoo.com.br


11Psicóloga independente E-mail.patricianunesfernandes@gmail.com

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Sabe-se que tanto a dança quanto o cinema são artes do movimento, sendo que aqui
concorda-se com Rudolf Laban, que vê a questão do movimentar-se ligando-a com o sentido de
mudança, que advém de uma necessidade interna construída no tempo. Ao dançar, o indivíduo
proclama necessidades atávicas e naturais, como transformação de um estado a outro, em uma
dialética de síntese de contrários, como expressão do self. Conforme Laban, a raiz desta inquietação
relaciona-se com a consciência das falhas individuais que faz o sujeito buscar sua superação (1978).
A consequência das lacunas, quando questionadas, estimula a procura da transformação, sendo a
possibilidade de nova adequação ao mundo.
Essa questão surge poeticamente em Grande Sertão: Veredas, onde se acrescenta a
constatação que o processo pode ser harmonioso ou não: “Mire veja: o mais importante e bonito, do
mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas
vão sempre mudando. Afinam ou desafinam”. (ROSA, 1994, p. 20). Também a dança, em uma
visão paradoxal, em Lavoura Arcaica apresenta, ao mesmo tempo, um questionamento e uma
exposição como um tom que desafinou frente ao social, como se verá a seguir.
Tanto a cultura árabe quanto a latino americana tem em comum usar a dança e o corpo
feminino como provocação e espaço da sexualidade, servindo de ambiente para essa brecha da
cultura.
No filme, em um primeiro momento, a dança é ritualista, garantindo os valores da cultura
árabe e da família (de 24 minutos e 20 segundos a 33 minutos e 06 segundos), em um segmento em
que a sexualidade presente na dança é regulada socialmente. Em um segundo momento (2h39 a
2h45), porém, em um emergir mais profundo do arquétipo de Ninfa (WARBURG apud DIDI-
HUBERMAN, 2013), apresenta a possibilidade do dionisíaco aflorar, trazendo seus paradoxos,
manifestando um corpo que se assume sexualizado e individuado. Pode-se inferir também, a
revelação da imagem descrita nos rituais afro-brasileiros da Pombagira que supõe uma possessão
que libera o feminino (BIRMAN, 2005). Enquanto uma diferenciação entre essas duas formulações,
a Ninfa incorpora, nesse arquétipo, a ideia da prostituição sagrada, aspecto não aceito pela
Umbanda.
Ninfa é uma imagem recorrente na arte e percebida por Aby Warburg, une aspectos internos
e externos, sendo assim descrita por Didi Huberman:
heroína do encontro movente/comovente: uma “causa externa” que suscita um “movimento
efêmero nas bordas do corpo, mas um movimento tão organicamente soberano, tão
necessário e destinal quanto transitório... A Ninfa compreende-se a articulação possível

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entre a causa externa – a atmosfera, o vento - e a causa interna, que é, fundamentalmente,
desejo” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 220-221).

Se na primeira coreografia têm-se aspectos reprodutíveis, clássicos até, em um segundo


momento vê-se uma dança bem mais primitiva e pulsional, evocando danças rituais dionisíacas e
orgiásticas que se presentifica enquanto retorno do reprimido, através de uma descarga, expondo a
crise interna ao grupo, denunciando a existência trágica frente ao peso do social. A explicitação do
afeto é suavizada pelo balançar do tecido que, ao movimentar-se, gera uma circulação libertadora.
A Ninfa é uma imagem além da pretensão da pureza e expõem muitas vezes um sacrifício e
uma violência, cumprindo um papel de dualidade: possuída e possuidora, casta e provocante,
violada e ninfomaníaca, meiga e imagem da obsessão, sendo que, no seu potencial de obsessão, é
capaz de expor o horror. Conforme Warburg, essa figura em seu duplo sentido traz o impulso de
vida e o perigo mortal. “A Ninfa dança, com certeza. Mas gira em torno de um buraco negro” (apud
DIDI-HUBEMAN, 2013, p.307). Para Warburg, a manifestação da Ninfa tem o preço do terremoto,
de uma dilaceração do solo.
Ana traz o conflito entre o desejo e a família, a tradição e o novo, entre o Brasil e a cultura
árabe, entre o futuro e o standartizado. A lei, implacável, tal qual o raio, tem o dever de apagar o
fogo do desejo, mas ao fazê-lo expõe o destino já sem retorno e trágico desta família. Enquanto
André, o protagonista masculino do filme, verborrágico convulsiona seu prazer e culpa; Ana, sua
irmã e contraparte feminina, dança, transformando seu recato e submissão em fúria sexual
dionisíaca digna de uma Pombagira.
A Umbanda, religião afrodescendente criada no Brasil, tem por características principais o
sincretismo religioso e os rituais de possessão, abarcando elementos do catolicismo, espiritismo e
cultos africanos, sendo uma expressão espiritual atravessada de contradições, por sua origem na
classe média urbana no inicio do século 20.
A Pombagira é uma entidade dessa religião associada à forma feminina de Exu, sendo esse
uma entidade propiciadora, cheia de pulsão e energia. Nada chega ao Astral sem que Exu seja o seu
intermediário, mensageiro do Àiyé (Mundo) e o Orun (Astral). A Pombagira, em geral, não parece
ter este papel, apesar de que as duas entidades se parecem muito na esfera da liberação sexual e da
pulsão de vida e do desejo. Essa entidade esta à associada à prostituição e quando se manifesta é
sempre para salvar alguém dessa condição "degradada" (BAIRRÃO; BARBOSA, 2008). Ela é

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concebida no que se chama de “lado esquerdo” onde habitam os seres marginalizados, passíveis de
surgirem durante as possessões o que, em uma linguagem junguiana é chamada de lado obscuro da
personalidade ou sombra. Ao tratar de religiões, o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung elucida que ela
tem a função de trazer uma comunicação subliminar do inconsciente ao consciente, aproximando os
seres humanos da própria natureza. (JUNG, 2002, pág. 53-63). Para a Umbanda a Pombagira é o
espectro da mulher fatal, agressiva e sexualmente promíscua. Movimentando-se, gira
freneticamente com um dos pés apoiado no chão e o outro nas pontas dos dedos. Ligada ao sexo e
ao álcool, proferindo altas gargalhadas, olhares erotizados, sua interferência pode estar relacionada
a desvirtuar casamentos e desfazer famílias (MAGGIE, 2001.p.96-99). Segundo Jung, um arquétipo
é uma imagem primordial que não tem a principio uma forma pré-definida, mas que se expressa
durante uma narrativa (2002). Sendo assim, ele pode ser entendido e estudado nesse caso tanto por
Warburg ou na tradição afro-brasileira, que levantam aspectos similares da feminilidade, sendo
expressões descritas diferentemente do mesmo arquétipo.
No filme, Ana pode representar claramente a manifestação desse arquétipo nas duas danças.
No caso da primeira, Ana aparece comportada, respeitando os preceitos da família, demonstrando
uma sensualidade que cabe ao momento, manifestando talvez sua persona sem, no entanto, deixar
de transbordar o lado da sombra que pode-se observar através dos pés descalços, que giram
exatamente como os descritos nas possessões da Pombagira no terreiro (um nas pontas e outro
apoiado) na contramão dos demais.
Já na segunda dança, depois de consumado o incesto, a moça é tomada sob o assombro da
manifestação da sombra, e ao deparar-se com as quinquilharias da caixa de André, traz à tona
aspectos da prostituta que a toma com volúpia, com movimentos agressivos, regados à bebida e
girando na contramão dos preceitos do Dabke, que gira para a direita (COELHO et al., 2012),
possivelmente sucumbindo ao referido “lado esquerdo” da Quimbanda, onde residem seres
marginalizados e sentimentos obscuros. (ÁVIL; LAGES, 2008). Gargalhando, confrontando os
preceitos ao bater com as mãos no chão, foge do encontro das mulheres da família que,
desesperadas, tentam amainar a manifestação arquetípica. Ana apresenta o paradoxo ao expor a
verdade, que concorda com Leloup, ao afirmar que: “Sem dúvida o corpo é o traidor por excelência
de nossas próprias mentiras.” (2008, p. 15).
Autor de ascendência árabe, Raduan Nassar descreve na sua novela trágica, a história de
imigrantes, seus costumes e a relação entre os integrantes. Isso pode ser visto pela imagem da mesa

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durante as refeições cujos lugares dos filhos são milimetricamente demarcados em ordem de
nascimento, denuncia a importância da disciplina para essa família, submetidos às severas regras do
patriarca, por exemplo, (dos 17 minutos aos 18 minutos).
André, personagem principal e narrador, apresenta-se nos primeiros momentos do filme e do
livro, como o filho que reflete, deflagra as irregularidades de uma família que faz de tudo para
manter as tradições, mas que esconde segredos que “falam” por meio de sutilezas.
A cultura libanesa é demarcada com força na primeira dança, dos aos 24 minutos e 20
segundos a 33 minutos e 06 segundos, no Dabke, folguedo tradicional do Líbano que tem por
tradução literal “carimbo dos pés” ou bater os pés no chão. Conforme Chamma (2010) é sempre
executada em rituais familiares e ocasiões festivas como foi o exemplo mostrado na película. O
líder geralmente segura um lenço e é suposto como uma árvore, fazendo alusão à bandeira nacional,
com os braços no ar, ereto e orgulhoso. No caso, Ana, a protagonista feminina, toma-lhe o pano e o
balança como uma planta frutífera e sensual, porém dentro dos padrões, envolta por elementos que
a circundam na proteção do parentesco. Nesse momento, André a observa de longe, fora do círculo
e parece febril, em uma aura pré-convulsiva que, no início do filme, se confunde com um ato
masturbatório e não descarta de sê-lo. Ao idealizar Ana, André repete com os pés o gesto que desde
criança “amainava a febre dos meus pés na terra úmida” (NASSAR, 1989, p.11). É um gesto trágico
aqui entendido como o combate interno entre desejo e dor, gerador da desordem. Duelo que leva a
momentos de exagero e com eles à hybris dionisíaca provocadora do enfrentamento da fortuna
gerada por questões inconscientes ou conforme canta Amália Rodrigues em Maldição: “É lucidez,
desatino, De ler no próprio destino, sem poder mudar-lhe a sorte” 12.
A expressão cultural é contida na imagem do corpo que representa sobre o que se expressa.
A cena da dança inicia no nível dos pés onde vemos pessoas descalças e outras com sapatos: Ana
descalça e a maioria calçada, contrapondo-a a André que, ao longe, também está com seus pés nus.
Os pés, segundo O livro dos símbolos (RONNBERG, 2012) é a ligação com a Mãe terra que nutre a
vida de forma concreta e ancestral, opostos à cabeça, símbolo do vento e das ideias. O espaço onde
eles estão é o lugar do ser e simbolicamente é um órgão erotizado e fetichista. Se as mãos na
evolução do macaco ao humano sofreram uma diferenciação das quatro patas e liberaram, os pés
continuam se ligando ao instinto animal, à matéria, e ao corpo. Os sapatos, sua cobertura e proteção,
surgem posteriormente e simbolicamente trazem o sentido de civilização, pois: “À medida que a
12 Composição: Alfredo Duarte – Letra de Armando Vieira Pinto

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cultura humana se desenvolveu, os sapatos passaram a ser associados à autoridade, posse,
sexualidade e estatuto.” (RONNBERG, 2012, p. 550).
Em O Corpo e Seus símbolos, Leloup lembra que para Freud, os pés tratam-se de símbolos
fálicos e os sapatos, representantes do órgão sexual feminino, fazendo alusão à figura fetichista des-
ses nas histórias como em Cinderela. O autor diz que a expressão planta dos pés clama por raízes e
lembra ainda que pés, em grego Paidos, é a origem da palavra pedagogia, fazendo uma referencia
ao “cuidar dos pés” como sendo a base da história e o pedagogo o cuidador dos pés das crianças
(2012, p. 28).
Não é apenas no momento de prazer que os pés ganham significados nas cenas das danças: o
próprio Dabke, cujo significado bater os pés no chão ou carimbo dos pés no chão (COELHO ET
AL., 2008) pode demonstrar a referência às raízes que Leloup (2012) cita em seu livro. É como se,
ao dançar com os pés firmes ao chão, a família garantisse suas tradições e Ana, na sua contramão,
assumisse a postura de forma transgressiva, sem os sapatos e, na segunda dança, além de seu de-
sempenho erotizado, faz alusões arquetípicas, gira para o lado contrário ao da tradição, indo além de
suas raízes.
Em Totem e Tabu, Sigmund Freud (2006) aponta que o incesto gera, simultaneamente, hor-
ror e desejo e está presente, segundo ele, em todas as sociedades em todas as épocas. O totemismo
sugere severas punições às pulsões sexuais advindas dessas relações, pois o sujeito desejado recebe
o estatuto de objeto impossível. “A violação de um tabu, transforma o próprio transgressor em
tabu.” (FREUD, 2006, p. 39). Esse valor humano é referido por Nassar através do Alcorão-Surata
IV, 23: “Vos são interditadas vossas mães, vossas filhas e vossas irmãs.” (1989, p. 143).
André em um primeiro movimento foge, pois ao desejar a irmã ele próprio se designa como
transgressor ou doente: “Era Ana a minha enfermidade, ela era minha loucura, meu arrepio, a minha
lâmina, meu sopro, o assédio impertinente dos meus testículos.” (NASSAR, 1989, p.107).
A segunda dança de Ana – A revelação
Segundo Laban, o corpo expressa a relação entre o indivíduo com seu meio e na dança ele se
ultrapassa, pois nela, o inconsciente se liberta e se expressa, sendo um exemplo clássico do deleite,
auxiliado pela música que traduz em ação o prazer, dando forma aos sentimentos e ajudando o
sujeito a ter uma postura criativa de resolução de problemas (LABAN, 1978).
Isso pode ser claramente visto na segunda dança (de 2h39minutos a 2h45minutos) que
aparece como uma revelação do desejo, do desabrochar feminino, do caminho do “pecado”

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expondo o tabu para Ana e para a comunidade que, em horror, tenta em gestos desesperados
“cobrir” o desejo com os lençóis. Ana se joga para a dança da morte, deixando para traz seu recato,
enfeitando-se com os adornos das prostitutas da caixa de André e em um misto de cigana,
Pombagira ou Ninfa, em um ritual dionisíaco, banha-se com vinho despertando o asco e a violência
traçada pelo próprio pai que se sente ultrajado: “Ferido em seus preceitos, que fora possuído de
cólera divina (pobre pai), era o guia, era a tábua solene, era a lei que se incendiava.” (NASSAR,
1989, p.191).
A dança de Ana que, a princípio, segundo a nomenclatura labaniana, compunha-se de
movimentos flexíveis, leves, sustentados e flutuantes, com uso do espaço de forma direta, passa em
um segundo momento a ser forte rápida com movimentos diretos e em um misto de movimentos,
formas e estética, comunica seu grito do extravasamento da feminilidade para além de sua cultura e
dos tabus sociais, chegando para revelar o “não dito”, revelando a todos o segredo dos quartos
fechados, que chegam à sala, com toda a força do desejo. A tragédia familiar se deflagra e é ceifada
na mesma medida.
Resultados e Considerações Finais
Stanley Keleman diz que a saúde está ligada à capacidade pulsativa, à possibilidade do
corpo em contrair-se e expandir-se (LIBERMAN, apud KELEMAN, 2008, p. 31). Ana pulsa,
mesmo dentro de uma família patriarcal e castradora, e seu corpo demonstra a necessidade de
ampliar-se e diminuir-se em um ritmo que encontra terreno fértil ao deparar-se com os adornos das
prostitutas. Incesto consumado (de 1h e 40 minutos a 1h e 54 minutos), o filme encerra sua história
em um ato trágico, onde Ana encontra um corpo sem organização social, vivendo sua sensualidade
expressa no feminino que descobre na dança condições de manifestar o indizível onde impera o
desejo.
O filme tem em suas danças uma expressão das possibilidades de adequação do social às
normas do “totem”, conforme cunhado por Freud (2006).
A preservação da cultura, mantida num ritual não programado em um gesto de sacrifício,
garante a continuidade da família e da lei. O filicídio impetrado pelo pai foi a única forma da
família não se desagregar, apesar de imposto de forma cruel e dura, em um gesto apolíneo, de
caráter purificatório, conforme estudo de Claudio Castro Filho (2014) sobre a morte impetrada por
progenitores na arte. Um pai, criador da vida, teve por destino trágico, como bastião da cultura,
impetrar a morte, já que mais do que um ser animal, ele é um ser da cultura. Diferente dos filicídios

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impetrados por Medeia de Eurípides ou Margarida de Goethe, mas aqui também no intuito de
sustentar a civilização, o pai precisou cortar sua carne, para manter o mundo das ideias maior do
que o estatuto do sangue. O filme termina articulando ideias de amadurecimento e sabedoria do
respeito ao tempo da natureza.
Através da lágrima de André, símbolo de um novo nascimento, segue-se em frente, apesar
da dor dada pelo círculo de nascimento, sexualidade e morte.

Referências Bibliográficas
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Disponível em: <HTTP://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
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JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Rio de Janeiro: Ed vozes, 2002.
LABAN, Rudolf. Domínio do movimento. São Paulo: Summus, 1978.
LAVOURA ARCAICA. Direção: Luiz Fernando Guimarães. Produção: VideoFilmes, 2001.
Duração: 163 minutos.
LELOUP, Jean-Yves. O corpo e seus símbolos. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2012.

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LIBERMAN, F. O corpo como bomba pulsátil in Delicadas Coreografias- instantâneos de uma
terapia ocupacional. São Paulo: Summus Editorial, 2008.
MAGGIE, Yvone. Guerra de Orixá-um estudo de ritual e conflito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2001
NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. Cia das Letras, 1989.
RONNBERG, Ami (org.) O livro dos símbolos. Colônia. Alemanha: TASCHEN, 2012.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994.
WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras,
2015.

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CORPOS PLURAIS NA CENA CONTEMPORÂNEA: DANÇA E ANCESTRALIDADE AFRO-
BRASILEIRA NO ESPETÁCULO NEGRUME DE ITAPIPOCA-CE

José Rinardo Alves Mesquita13


Luís Tomás Domingos14

Resumo
O presente artigo propõe-se a fazer o entrelaçamento entre dança e ancestralidade africana na
perspectiva de um corpo divino-profano. A partir do cenário do espetáculo de dança contemporânea
“Negrume”, produzido pela Cia de Dança Balé Baião de Itapipoca-CE, faremos uma análise desse
corpo negro contemporâneo, ritualizado e atravessado por suas memórias ancestrais. Esta pesquisa é
de natureza qualitativa. As discussões apresentadas sinalizam uma relação estreita entre a dança
desenvolvida na companhia em questão e elementos da ancestralidade africana no Brasil.

Palavras-chave: corpo, dança, ancestralidade.

O presente texto emerge de uma série de reflexões acerca das relações entre corpo, dança e
ancestralidade africana. Saberes ancestrais gravados na memória de um povo por meio da
linguagem da Dança afro-brasileira contemporânea que se ritualiza num corpo plural e transversal,
divino-profano, um campo de constituição cultural e identitária, “um portal, que, simultaneamente,
inscreve, significa e é significado, sendo projetado como continente e conteúdo, local, ambiente e
veículo da memória” (MARTINS, 2002, p.89).
Inicialmente fizemos um levantamento bibliográfico de autores que nos trouxessem
argumentos teóricos que solidificassem nossa pesquisa. Além das pesquisas bibliográficas
consideramos também como método relevante, experiência pessoal/prática na convivência com uma
Companhia de Dança Contemporânea da cidade de ItapipocaCE através de um espetáculo cênico de
dança chamado: “Negrume”. Por meio de vivências, entrevistas semiestrutradas e observação
participante, conseguimos coletar dados relevantes para investigação da pesquisa.
Desta forma, pretende-se discutir as relações existentes entre dança e ancestralidade afro-
brasileira a partir de um corpo-plural na contemporaneidade no cenário do espetáculo cênico
Negrume. Esta pesquisa é de natureza qualitativa e tem como sujeitos os artistas bailarinos da Cia.
Balé Baião de Dança Contemporânea de Itapipoca-CE. A questão central surgiu da necessidade de
reflexão sobre esse modo de pensar-fazer Dança Contemporânea no Ceará e suas experiências com
13 Mestrando – Unilab, e-mail: rinardomesquita@yahoo.com.br.
14Professor Doutor pela UNILAB, email: luis.tomas@unilab.edu.br.

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o sagrado numa perspectiva da ancestralidade africana no Brasil.
A dança é uma das artes mais antigas da humanidade, uma forma de estar no mundo por
meio dos movimentos que se traduzem no corpo, revelando e desvelando sentidos e sentimentos. A
dança é uma expressão do ser humano que existe
desde os tempos mais remotos. Todos os povos, em todas as épocas e lugares dançaram.
Dançaram para expressar revolta ou amor, reverenciar ou afastar deuses, mostrar força ou
arrependimento, rezar, conquistar, distrair, enfim, viver! (TAVARES, 2005, p.93).

Em Viana (2005) o corpo possui uma respiração interna que, por meio da dança, consegue
“responder à exigência do espírito artístico”. (p.73). O autor coloca que todo movimento gera um
campo de força energética capaz de estabelecer contato conosco e com o mundo, segundo Viana
(2005, p.79) “(...) somos o centro do espaço que nos cerca e nele existimos como indivíduos, como
pessoas, como seres humanos, estabelecendo nossa relação com o mundo”. A arte, e dessa forma a
dança, é uma troca.
Nas danças africanas, por exemplo, vemos essa troca de forma muito mais aprofundada nas
relações sociais. Para Domingos (2010), os elementos da cooperação, da corporeidade, da
ancestralidade, da dança, da religiosidade estão simbioticamente imbricados como valores e
princípios éticos da cosmovisão africana. Tudo está interligado como numa grande teia de
relações, dança-se para a morte, para a vida, para o trabalho. Na tradição africana

O trabalho, o amor, a dança, os mortos-vivos, a palavra (o sopro dos ancestrais) são


mensagens que o munthu, o homem africano banto atribui a ele mesmo, no tempo e espaço,
para ser, estar e viver, apreciando, usufruindo subjetivamente e objetivamente a totalidade
do Universo. A experiência do homem africano se apresenta como uma colaboração do
homem com a natureza através das sínteses de todas as forças existentes no Cosmos. Desta
forma o homem está reconciliado consigo mesmo, com sua história, seus antepassados, sua
linhagem, seus contemporâneos étnicos e sua comunidade da aldeia. (DOMINGOS, 2011,
p.5)

Ou seja, em Gomes (2006, p. 260-266 ) “ corpo é visto e vivido na cultura” , compreendido


em um ambiente social subjetivamente “conflitivo”, confirmando a visão de Domingos (2010,
p.103-104) que diz que “não se pode querer entender a complexidade das manifestações e
expressões culturais negras no Brasil se não falarmos em corpo e movimento”. Pois neste corpo há
um saber inscrito, que por sua vez produz cultura, valores e simbologias. Um corpo-território de
culto, mitos e ritos, “um centro para onde convergem elementos ancestrais” (SODRÉ, 1997, p.32).
Uma dança contemporânea, ou afro-brasileira contemporânea se apodera de todos os

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elementos das culturas de arké, “que está no passado e no futuro, é tanto origem como destino”
(SODRÉ, 1988, p.153), convive dessa forma com várias temporalidades.

1. Dança Contemporânea: Múltiplos olhares

Abordar o tema Dança Contemporânea, requer, antes de qualquer coisa, fazemos uma
análise do termo contemporâneo. E, como a dança, dentro de um sistema maior de arte faz parte
dessa dimensão da contemporaneidade?
O conceito de contemporaneidade segundo Agamben (2012) está relacionado a um
deslocamento de tempo, pois é ao mesmo tempo em que se pertence a um tempo, distancia-se do
mesmo, num processo de anacronismo e dissociação constantes. “(...) quem percebe no mais
moderno e recente os índices e as assinaturas do arcaico pode dele ser contemporâneo. Arcaico
significa: próximo da arké, isto é, da origem. Mas a origem não está situada apenas num passado
cronológico”. (AGAMBEN, 2012, p. 69).
Ou seja, é um movimento a um só tempo de ruptura e continuação. Para Cauquelin (2005)
há uma bifurcação do termo contemporaneidade com relação à arte contemporânea e arte atual. Para
autora, uma arte atual seria àquela que está numa localização temporal – presente, sem maiores
preocupações em distinguir tendências artísticas. Já a arte contemporânea designa o misturado,
heterogêneo, um retorno às formas artísticas experimentadas, uma lógica de organizar um tempo
suspenso não linear. Um conjunto de técnicas, estilos e tendências diversas.
Neste sentido, pensar a dança contemporânea, não é tão simples assim. Para Bardawil (2011,
p.3) “na contemporaneidade, tudo habita em tudo, tudo se contagia de tudo. Aceleração e excesso
são os signos atuais do cotidiano”. Ou seja, as novas formas de pensamento e de vivência que nos
atravessa influenciam sobremaneira nosso fazer-pensar dança hoje. Para a autora não se pode
perguntar o que seja a dança contemporânea, mas o que ela pode. Ela não é um estilo, mas um
modo de organizar o pensamento em dança. Tomazzoni (2006) estabelece alguns fatores
primordiais para se compreender a contemporaneidade na dança: o corpo como dramaturgia
singular com outros vocabulários e sintaxes, movimento e corpo sem padrões definidos, o
pensamento está no corpo e o corpo se faz pensamento, uma maneira de pensar a dança. Esses
quatro fatores nos ajudam a compreender melhor a produção em dança contemporânea.
A cena contemporânea, neste sentido, permite múltiplos olhares, múltiplas leituras. Pelas

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considerações dos autores percebe-se que na dança contemporânea temos corpos plurais na
transformação e transgressão do cotidiano. Como argumenta Gadelha (2010, p.20)

A dança contemporânea apresenta, à primeira vista, o corpo sob dois aspectos importantes.
De um lado, o corpo que dança engaja-se numa experiência corporal ‘extra-habitual’, não
comum ao corpo. (...) De outro lado, é trabalhado nele mesmo que o corpo deve dançar. (...)
pensar o corpo não mais através ‘do que ele permite’, mas ‘do que ele pode’.

O corpo plural aqui pensado refere-se a um corpo que agrega em si mesmo, uma diversidade
de afetações e experimentações corporais. Corpos desterritorializados, nômades, criativos, centros
de pesquisa e experimentação. Portanto, a dança contemporânea trás em si diferentes estilos,
técnicas, procedimentos, abordagens e movimentos, tudo a serviço de pensar esse corpo enquanto
ator principal do processo de construção da cena. Como nos afirma Gadelha (2010, p.20)

Como conjunto das artes contemporâneas, esta dança segue uma referência auto-reflexiva,
inscrita em sua própria prática de dança; ou seja, em sua maneira de praticar o corpo na
dança. Ela transmuta a arte coreográfica notadamente porque reconsidera sob um angulo
radicalmente novo seu principal ator: o corpo que dança. O corpo, nessa nova prática, é
considerado como jamais ele havia sido antes.

Há uma pluralidade de contribuições advindas de outras artes que constitui o caráter híbrido
da dança contemporânea: o teatro, a pintura, as artes visuais, a música, as artes maciais, a literatura,
o cinema. Neste sentido, ela não precisa estar presa a uma forma, um estilo, uma técnica específica
de produção. Ela desestabiliza velhos conceitos para criar outras possibilidades de pensamento.
Como nos diz Bezerra e Porpino (2007, p.283), “a dança contemporânea problematiza, desestabiliza
e desconstrói velhos conceitos para criar novos sentidos. Acrescentando-lhes a possibilidade de
novas leituras”. Por isso, ela não cabe em uma definição única, pois abarca diferentes poéticas em
dança, para gerar novas formas de pensamento.
Esse novo pensamento é emancipador, autônomo, singular, inclusivo e coletivo.
Diferentemente do balé clássico, com seus corpos rígidos, presos a regras e técnicas, seguidas por
uma orientação exterior, a dança contemporânea é marcada pela liberdade, pela espontaneidade,
pelo diálogo, pela quebra de sincronia, pela incorporação do silêncio ou da música e por uma
variedade de situações comprometidas com um corpo-dança emancipado, livre, “capaz de contribuir
para a formação humana e para o desenvolvimento da expressão crítica e criativa”. (ASSUMPÇÃO,

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2002, p.3).

1 Ancestralidade e Dança

O fundamento sociológico da ancestralidade está na relação com o outro, na ética das trocas
e convívio com as diferenças. E esse diferente de mim, segundo Pardo (1996), é alguém
absolutamente diferente, sem relação alguma com o que possa ser semelhante comigo, um outro que
não pode jamais ser eu mesmo.
A dança entra nesta dimensão da ancestralidade africana enquanto elemento fundamental
para formação e reconhecimento de uma forma singular de ser e viver. “...nas danças de possessão...
o próprio corpo se torna a cena ou espaço da dança” (GIL, 2013, p.47). No pensamento de Viana
(2005), há uma forte relação entre pensamento e dança, pois para ele a pessoa que dança deve
atribuir sentido e estar inteiro no ato de dançar.
Para Oliveira (2009, p.4) ancestralidade é vista como uma epistemologia, um modo próprio
de organizar a vida, um princípio e uma lógica, “ela é uma epistemologia que nasce do movimento,
da vibração, do acontecimento... é um signo que perpassa as manifestações culturais dos negros no
Brasil”. Situamos ancestralidade aqui na mesma visão de Oliveira (2009, p.2) quando afirma que “ a
cultura da ancestralidade pode ser encontrada em qualquer parte do planeta, mas por motivos
históricos e ideológicos, fiz opção pela ancestralidade africana e pelo recorte de pensar a África que
interessa ao Brasil... pensada a partir da diáspora”.
Na experiência dessa ancestralidade africana o sagrado convive com o profano a partir da
realidade corporal. É o que nos diz Sodré (1988, p.31) quando afirma que “o indivíduo é assim,
duplo: parte localiza-se no espaço invisível (orun) e parte, no corpo visível”. Convive com
polaridades, bem/ mal, feminino/masculino, divino/profano, realidades justapostas vividas e
experienciadas numa corporalidade e corporeidade dançante. Os deuses e ancestrais das religiões de
matriz africana são humanos e divinos, a experiência do sagrado se dá na festa, nos ritos e na
relação integrativa com a terra, com os elementos da natureza, os vegetais, minerais, águas e no
homem/mulher.

2 Negrume: poéticas de um corpo divino-profano.

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O espetáculo de Dança-teatro Negrume, produzido pela Companhia de Dança
Contemporânea Balé Baião nasceu, segundo o Coreográfo e fundador da Companhia:
Como resultado de uma investigação corporal que unifica técnicas de dança afro
contemporânea, contato-improvisação e teatro físico, desenvolvida pela Cia Balé Baião de
Dança Contemporânea no litoral oeste do Ceará, junto com três dançarinos
afrodescendentes de Itapipoca, cidade onde reside a Cia. O convívio e a relação da Cia
Balé Baião com quilombolas cearenses desde 2008, destacando as comunidades de
"Nazaré" na serra de Itapipoca e "Águas Pretas" da cidade de Tururu CE, gerou o
interesse em trazer pra cena as verdades físicas e a potência do “gesto simples”, elementos
perceptíveis no dia-a-dia das crianças e dos velhos dessas comunidades, sobretudo o
gestual lúdico e ritualístico revelado nas rodas de conversa, nas rodas de oração e festa:
brincadeiras e crenças coabitam no mesmo espaço,dialogam e interagem incessantemente.

A obra de arte Negrume, produzida pelo Balé Baião surge dentro da atmosfera de uma
cidade povoada de mitos, crenças, procissões, maracatus, terreiros de umbanda e candomblé, rodas
de torém – dança indígena-, samba, festas populares, por isso incorpora elementos ritualísticos e
profanos. Para o Coreógrafo do Negrume
Muito mais que evocar códigos ou paços que nascem de danças tradicionais negras, o foco
da obra é constituir corpos que manifestam as ancestralidades e contemporaneidades afro-
mestiças, suas implicações históricas, ritualísticas, sociais e culturais, fugindo dos
arquétipos de “Negro Vitima” e “Sofredor” para configurar outros corpos negros, outras
presenças, outros estados corporais, outras histórias e memórias, em especial a beleza
negra, a resistência quilombola e a relação com as divindades da natureza.

Corpos negros, contemporâneos, atravessados por memórias gestuais em acolhimento das


divindades que irão se manifestar. Segundo um dos bailarinos do espetáculo Negrume os
movimentos “nascem da raiz (pés), pélvis (ventre gerador da vida primitiva) e dos periféricos
(braços e pernas) para ganhar universos, espaços e fluxos espaciais”, revelando e “(...) criando
assim, relações com o divino que nos habitam”. Uma ancestralidade como experiência ética e
estética, por meio de uma ressignificação de corporeidades singulares de cada bailarino intérprete-
criador.
Para o coreógrafo, a obra
Parte das danças de Orixás e Caboclos que são redimensionadas pelos dançarinos-
intérpretes-criadores. Do começo ao fim do trabalho me utilizo de gestos e códigos que
pairam no universo da Umbanda, na qual sou participante desde 2012 como pesquisador e
aderente da religião.

A poética se insere durante todo o percurso do espetáculo, com sons e falas que
evocam um corpo-encantamento, um corpo-ritual, plural e cosmológico, ligado a tudo e todos,
colaborando com a idéia de Breton (2013, p.37) quando afirma que “(...) o corpo e o cosmos estão

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indistintivamente mesclados, constituídos dos mesmos materiais, segundo as diversas escalas de
grandeza”.

Considerações finais

Pensar numa poética corporal a partir de matrizes africanas e afro brasileiras é trazer para a
cena as diversas corporeidades brasileiras vivenciadas nos terreiros, nas diversas expressões da
manifestação do sagrado na contemporaneidade.
A dança proposta no espetáculo Negrume se apodera de elementos da ancestralidade
africana e afro brasileira na medida em que evoca, no corpo e pelo corpo, uma simbiose de
movimentos e gestos ancestrais encontradas nos animais, nas plantas, nos vegetais e nas danças dos
orixás- Candomblé e dos caboclos - Umbanda. Eles acionam outros estados corporais, outras
histórias, outras memórias, legitimando, dessa forma, a vivência das culturas de arké, na medida em
que convive com várias temporalidades, indo às origens e ressignificando-as na contemporaneidade.
Nas influências com a dança dos orixás e dos cablocos, nos terreiros de Umbanda e
Candomblé, busca um corpo-limiar que transita por um corpo ancestral e contemporâneo. Pelos
processos criativos em dança afro-brasileira contemporânea os bailarinos intérpretes criadores
buscam uma identificação e um reconhecimento da natureza identitária étnico-racial de sua
existência.
Corpo passa a ser território ocupado de existências reinventadas, cuja beleza e potência
encontra-se em suas performances e criações diárias. Pelo caráter autônomo, singular e poético,
cada bailarino e bailarina vão constituindo seu jeito próprio de estar no mundo. Um corpo-arte,
inventivo, criativo, sensível e afetivo. Por meio desse corpo, elementos da ancestralidade africana
vão sendo identificados no processo de produção artística, seja por meio das danças das religiões de
matriz africana, pelo senso de coletividade, pela respeito à diversidade, à ligação com o cosmo.

Referências
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CORPONEGOCIAÇÕES: A FESTA DO COCO DOS QUILOMBOS IPIRANGA E
GURUGI DO MUNICÍPIO PARAIBANO DO CONDE
Peticia Carvalho de Moraes15

Resumo
Este artigo versa sobre resultados parciais de minha pesquisa de mestrado, onde dialoguei com
autores dos Estudos Culturais, da Antropologia da Performance e das Artes/Dança. Busquei
observar a Festa do Coco em acontecimento, e principalmente a brincadeira do coco de roda, das
comunidades quilombolas Ipiranga e Gurugi, na Paraíba, para compreender onde se encontram as
potências da festa e como são realizadas as negociações neste lugar.

Palavras-chave: Festa do Coco, coco de roda, dança, cultura popular, corpo.

Da Viagem (ou Da Introdução)


Eu tava em casa, quando alguém me avisou, no Ipiranga vai ter
Coco, que Jurandir me chamou. Antigamente, negro não tinha
valor, vamos brincar minha gente, Novo Quilombo chegou!
(Grupo de Coco de Roda Novo Quilombo).

Não pode haver suposição de coerência preconcebida ou de


comunidade ou identidade coletiva. Em vez disso, o acabar
junto do lugar exige negociação.
(Doreen Massey, 2008, p.204)

No ano 2009, as comunidades quilombolas Ipiranga, Gurugi I e Gurugi II, pertencentes ao


município paraibano do Conde, iniciaram uma festa de ocorrência mensal chamada “Festa do
Coco”. Esta, por sua vez, acontece, necessariamente, em torno de uma brincadeira de roda: o coco
de roda. A brincadeira em forma de festa já havia sido realizada anteriormente pela comunidade,
porém algumas gerações nasceram sem conhecer essa prática específica.
No contexto da cultura popular, brincar o coco era e continua a ser uma prática realizada
durante o ciclo das festas juninas, porém na comunidade Ipiranga, juntamente com os moradores do
Gurugi I e II, a festa sempre é realizada no último sábado de cada mês.
Minha primeira viagem à Paraíba para visitar a festa foi em julho de 2013. Nesta época a
festa era realizada em um barracão cimentado ao lado de um bar. O bar pertencia ao marido da
mestra do coco de roda, Dona Lenita, que havia falecido. A festa já não acontecia há 3 meses
porque a comunidade estava em luto.
Seria possível utilizar páginas e mais páginas para descrever a beleza e a simplicidade da

15 Mestranda em Estudos Culturais na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH
– USP) sob a orientação de Valéria Cazetta. Email: peticiac@gmail.com.

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festa, as pessoas que a frequentam e como realizam a brincadeira do coco de roda. Porém, o que me
pareceu ser mais potente na festa era o corpo em acontecimento e as negociações realizadas por ele.
Parecia possível entender, através da festa, o que Massey (2008) fala sobre acabar junto, sobre uma
coletividade que se forma pelas negociações e pelas partilhas e não por uma identidade comum.
Para realizar a pesquisa da Festa do Coco nos quilombos da Paraíba foi necessário entender
que a minha presença na festa alterava o espaço, pois este é produto de relações sociais. "Chegar a
um novo lugar quer dizer associar-se, de alguma forma ligar-se à coleção de estórias entrelaçadas
das quais aquele lugar é feito." (MASSEY, 2008, p.176). Foi necessário também entender que eu
não estava lidando com um objeto de pesquisa, mas com um encontro de trajetórias. Além disso, foi
necessário perceber que os lugares mudam, que a festa e a comunidade prosseguiam sem a minha
presença.
"O que se pode fazer é encontrar os outros, alcançar onde a estória do outro chegou agora,
mas onde esse agora é ele próprio constituído por nada mais do que aquele encontro." (p.184). Não
era possível participar da festa de maio entendendo-a como uma continuação da festa de abril.
Muitas coisas haviam acontecido durante este intervalo, muitas outras variáveis estavam
envolvidas. Novos participantes geram novas relações e um novo jogo; nisso o ser humano é
sempre outro, sempre novo.
Da Brincadeira, Do Corpo e De suas Negociações

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Figura 1- Fotografia: Peticia Carvalho

O movimento simples realizado na roda da brincadeira é um movimento de deslocamento


com transferência de peso. O foco do movimento encontra-se no pé direito que se desloca,
alternando-se do centro para frente e do centro para trás, com movimentos leves e rápidos. Algumas
pessoas executam o movimento com uma dinâmica espacial mais retilínea, em uma ação de esforço
que Laban (1978) chamaria de pontuar, outros, de forma mais curvilínea, com o esforço de sacudir.
Neste movimento, que poderíamos chamar de passo básico do coco de roda da comunidade
Ipiranga, é possível perceber muitas outras diferenças na execução entre os participantes:
 o deslocamento frente-trás pode se alterar para um deslocamento nas diagonais, do centro
para a diagonal esquerda baixa e do centro para a diagonal direita baixa;
 pode haver uma mudança de peso, transformando o pontuar em socar e o sacudir em chico-
tear;
 pode-se utilizar o pé esquerdo como foco do movimento e fazer do pé direito o pé de base,
de sustentação; entre outras variações.
Os braços ficam livres para improvisar e bater palmas. Mas é possível simplesmente mantê-
los relaxados nas laterais do corpo; ou, levado pelos pés e pelo olhar, projetar-se espacialmente,
brincando de se encontrar com os parceiros que dançam ao seu lado esquerdo e direito. Descrever a

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movimentação realizada no coco de roda pode parecer fácil e simples, porém, essa descrição não dá
conta da complexidade de estar em jogo. A brincadeira do coco de roda é um ato performático.
Entendo performance através da definição de Richard Schechner: “comportamento
ritualizado condicionado/permeado pelo jogo.” (SCHECHNER, 2012, p.49). Dentro desse
pensamento a performance é uma área de estudo que abarca comportamentos muito mais amplos do
que os que estão contidos no universo da arte.
É preciso pensar os movimentos realizados nas manifestações populares permeadas pelo
jogo não como um arquivo de passos, como um banco de passos, mas como um repertório por meio
do qual um arquivo de passos é incorporado a um contexto e também a um momento único em que
é executado e, por isso, a noção de arquivo é tomada aqui no sentido de memórias e recriações.
Nenhum repertório pode ser simplesmente reproduzido, nem mesmo pelo contexto que o criou.
A brincadeira do coco de roda provoca os primeiros afetos no participante quando ele ainda
está como espectador do jogo: é bem comum que, na primeira brincadeira da Festa do Coco, seja
convidado somente o Grupo de Coco de Roda Novo Quilombo para brincar. O misto de afetos
gerados pelos encontros estabelecidos no local, com o jogo, com as pessoas e com o espaço, define
atitudes, ainda internas, que produzem intensidade e sentido (ROLNIK, 2011). Esses afetos geram
os primeiros desejos de fazer ou não parte do jogo e também as primeiras leituras sobre o que seria
a Festa do Coco.
Mesmo sendo executado em pé, o coco de roda possui uma relação com o peso voltado para
o chão. Os vetores do movimento para os lados, frente e diagonais, estão sempre voltados para
baixo, e o corpo é levado a se movimentar predominantemente em nível médio. Os giros no centro
da roda são executados com as pernas flexionadas, formando uma espiral que continua
invisivelmente para baixo. A poética do peso se articula pelo controle e pelo abandono (LUOPPE,
2012). Louppe afirma que, para libertar o peso é necessário o balanço ou a queda. A brincadeira do
coco é totalmente executada em balanço, com movimentos pendulares.
Turner (2012) e Schechner (2012) acreditam que a movimentação sincronizada e fluida pode
contribuir para a sensação de communitas, pois através dela me relaciono com o outro como igual e
sou absorvido por essa relação no aqui e agora. Desse modo, o local e a experiência ganham sentido
pela intensidade vivida pelo corpo. “O espaço do corpo é esse meio espacial que cria a
profundidade dos lugares.” (SELLIGMAM-SILVA, 2003, p.65). A roda vira, então, um grande
“útero”, gerando movimento, interação e vida por meio da qual “os corpos são atravessados ou

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atingidos pelo que fazem ou pelo que aprendem.” (LOUPPE, 2012, p.32).
Descrever a movimentação realizada ao participar da roda, na brincadeira do coco, poderia
se limitar a dizer que os esforços utilizados são, na maior parte das vezes, rápidos e livres, tendo
uma predominância do peso leve e uma variação entre espaço direto e flexível. Porém, estes
esforços pouco nos contam sobre a diversidade existente no acontecimento e transformam o jogo
em simples sistematização coreográfica. Além disso, exclui diversas pessoas que participam da
brincadeira, mas se utilizam de esforços completamente opostos. “As mudanças de velocidade, a
amplitude do espaço percorrido e a abertura simultânea a todas as direções possíveis libertam-se dos
itinerários fechados da vida quotidiana.” (LOUPPE, 2012, p.189). Cada experiência torna-se muito
particular:
Nesta festa, durante a brincadeira, pude dançar diversas vezes com o senhor João. Ele é um
senhorzinho já bem idoso e integrante do Grupo de Coco de Roda Novo Quilombo. Dançar
com ele é uma experiência impar. Primeiramente, pois, caso ele inicie uma brincadeira com
você, inicio esse que se dá pelo olhar, a brincadeira já começa na própria roda. Além do
olhar, o que inicia a brincadeira na roda é o encontro dos pés direitos de duas pessoas,
uma pessoa com as pernas cruzadas e outra com as pernas abertas, formando assim,
parceiros com quem está na lateral esquerda e direita da roda em relação a cada
brincante. A criação desses parceiros na roda não é tão comum, mas acontece com algumas
pessoas durante a brincadeira. Entretanto, dançando com o senhor João, essa parceria
formada ainda compondo a roda, adquiriu uma intensidade tão grande quanto estar no
centro da roda. Ao virar-se para ele, meu corpo agora se virava totalmente para a
lateral e o centro dos corpos quase se encontravam, como se fossemos dar uma
“umbigada” (termo usado pela cultura popular para definir o movimento onde os quadris
de duas pessoas se encontram através da inclinação da coluna vertebral). Essa relação de
encontros e desencontros durou muito tempo e adquiriu muita intensidade. Na maior parte
das vezes, o desenrolar da brincadeira terminou indo para o centro da roda, onde a
aproximação e distanciamento se tornaram maiores, mas permaneceu o encontro do centro
dos corpo a todo momento. A relação lado-lado estabelecida pela maioria dos
brincantes do centro da roda, modificou-se para frente e trás ou lado e frente. O
quadril era levemente projetado para frente nos quase-encontros entre os dois corpos
e isso fazia com que todo o corpo fosse envolvido no movimento. (28 de março de 2015.
Diário 6 do Acontecimento).

A reprodução de passos simples, realizados na roda, é o que desperta acolhimento, a


possibilidade de qualquer pessoa fazer parte da mesma. Mas o desejo que move o participante a
entrar no centro da roda é outro, não somente o de pertencimento, mas também o de ser desafiado, o
de experimentar e até mesmo criar. Percebe-se, então, que, apesar da característica de estar em jogo
ser pautada pela reprodução do passo básico – que em si já possui muitas variações, de pessoa para
pessoa –, o ápice da brincadeira está em não reproduzir/repetir o movimento, está no momento em
que se amplia o espaço e se ganha visibilidade, características importantes para desafiar o corpo a ir

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além da copia.
As mudanças na qualidade do movimento geradas pela entrada do participante no centro da
brincadeira ocorrem devido à ampliação do espaço e a nova relação estabelecida por meio das
duplas de participantes. Com a ampliação do espaço, o deslocamento se torna possível para todas as
direções. Essa variação em múltiplas direções chega a gerar giros, que parecem ser um dos grandes
desafios do centro da roda: girar e manter o ritmo. Já a relação em dupla e não mais em roda, com
um único parceiro em frente e não mais parceiros nas laterais, provoca movimentações de
aproximação e afastamento, deslocamentos em uma mesma lateral, causando um espelhamento do
movimento e deslocamento em diferentes laterais, criando oposições. Também é possível se
deslocar enquanto o parceiro gira ou girar conjuntamente.
Mesmo que a materialidade da brincadeira do coco seja o corpo, e este possua infinitas
possibilidades de movimento, o fato de ser uma brincadeira, um jogo, envolve regras e formas de se
colocar em jogo. É possível que em um primeiro momento, as regras possam parecer limitadoras do
movimento, mas, são elas, e Ostrower (2007) afirma isso, que geram ainda mais possibilidades de
criação. Isso se dá devido ao fato de que, quando se trata de criação, oferecer ao homem todos os
materiais existentes, possivelmente o levará a fazer e se utilizar daquilo que ele já está acostumado.
Mas a limitação é sempre um desafio a ser superado; ela pode tanto gerar um estado de criação,
como de impotência. E por isso alguns preferem não entrar no jogo.
Percebo, então, três mobilizações de desejo na brincadeira: somente assistir a Festa do Coco;
estar na roda; e, por fim, entrar na roda. O que quer que mova o desejo de somente assistir a
brincadeira, é fruto da liberdade gerada pela festa, que não cria uma imposição da participação,
comum a alguns cultos e rituais. Porém, a brincadeira parece feita para ver de dentro, ou melhor,
fazendo parte da roda. Parece ser ali o único lugar possível de ser um apreciador, sendo também um
brincante, pois a brincadeira não é espetacular e abusa da repetição.
O fato da brincadeira do coco não ser espetacular não quer dizer que ela não mobilize
formas de visibilidade, possibilidades de ser apreciada, de ser vista de fora. Fora da roda é possível
ver pessoas de costas brincando, e é como eles fossem cercas/fronteiras e o espectador estivesse
admirando uma paisagem em movimento. Para assistir o jogo realizado pelas duplas, o apreciador
de fora da roda é, a todo o momento, interrompido por um novo corpo que passa.
A brincadeira do coco de roda é “justamente a coisa que aqui está.” (SELLIGMAM-SILVA,
2003, p.87). Sellingmam-Silva relata que, ao perguntar a Cunningham como se dançava, sua

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resposta era sempre: “Fazendo-o” (p.29), pois cada pessoa apreende o movimento de maneira
singular e sempre se move em direção ao outro, faz-se visível. O movimento antimimético é, então,
o primeiro motivo que pode levar um pesquisador a perceber a brincadeira do coco de roda como
acontecimento. Porém, conceber a brincadeira do coco como acontecimento deve-se também à
centralidade e ápice da brincadeira residir na criação: o corpo performativo se coloca em ação
produtiva, ultrapassando o reprodutivo.
Assim, a brincadeira do coco acontece também na tensão entre o que é meu e o que é do
outro, entre a minha expressão individual e a expressão coletiva. Pareceu necessário, então, atentar-
me para os acontecimentos, pois eles transformam sem cessar a estrutura do jogo no aqui-agora. O
desejo cria agenciamentos, que, por sua vez, leva a outros agenciamentos, “porque o desejo não se
esgota no prazer, mas aumenta agenciando-se. [...] Dançar é experimentar.” (ROLNIK, 2011, p.70).
Quanto à experiência gerada pelas festas, jogos, rituais e pela arte, seria importante utilizar o
conceito de invivido. Para Pelbart (2013) a experiência invivida não é a experiência trivial, “mas
aquela em que a vida atinge o máximo de intensidade, abolindo-se.” (p.207). Este autor concebe a
experiência não como algo que acontece sem querer, mas como algo fabricado pelo próprio homem
e, por isso, sempre singular. Como toda criação, essa experiência fabricada gera suas consequências
na realidade. Rancière (2012) aponta para o paradoxo dessa experiência: ela é sempre singular, mas
me sinto semelhante ao outro quando a vivencio em um acontecimento coletivo. Assim, vivências
antiestruturais coletivas geram experiências invividas singulares e communitas ao mesmo tempo. É
um espaço que Rolnik (2011) chamaria de espaço de a(fe)tivação. A ativação do corpo se dá pelo
afeto e o afeto se dá pela ativação do corpo.
O momento de adentrar a roda com um parceiro é um momento de tensão, isso porque estar
no centro da roda é assumir tanto o foco das atenções, tendo maior visibilidade, bem como assumir
uma relação mais íntima com o outro, atentando-me às suas características particulares de corpo em
movimento. Este momento íntimo também possibilita a troca de aprendizados e outras
impregnações inconscientes do como fazer. Os novos comportamentos produzidos dessa relação
podem ser assumidos como repertorio de movimento e ser restaurados com outro parceiro,
rearranjados numa nova relação. Por isso o acontecimento é sempre resultado de um devir e sempre
gera devir. "Espaço e tempo, juntos, resultado desse múltiplo devir. Então, o 'aqui' é nada mais (e
nada menos) do que o nosso encontro e do que é feito dele.” (MASSEY, 2008, p.201). A Festa do
Coco é um evento provisório e experimental, na qual o grupo vivencia a política do estar junto.

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Rolnik (2011), em seu livro “Cartografia Sentimental”, apresenta as diversas imagens e
cenas vividas pelas aspirantes-a-noivinha, seus encontros e personagens que se diferenciam
“também, pelo tanto que cada uma consegue ampliar o alcance da força gerada no encontro.”
(p.48). É essa força, tão subjetiva, gerada nos encontros, que levam duas pessoas a compor e brincar
com o corpo no centro da roda e é esta mesma força que define o tempo de duração desse encontro
e o quanto este encontro deixará marcas nas experiências dos que por ali passam – cada um com sua
“forma humana singular de estar no mundo, que é, por sua vez, uma ética (um modo de conduzir-
se) e uma estética (um estilo)” (LAROSSA, 2002, p.27). Assim forma-se o corpo político dos
brincantes do coco de roda nas comunidades Ipiranga e Gurugi. Cada brincante agindo no mundo a
partir de uma coleção de informações e compartilhando das coleções de informações do outro,
fazendo politica em uma dimensão profunda e, muitas vezes, anterior a criação do discurso.
Para Rolnik (2011), o afeto gera atração e repulsa entre os corpos, é um fluxo que atua entre.
A ação gerada provoca um movimento de desterritorialização (rumo ao desconhecido, ao estranho)
e territorialização (o espaço começa a fazer sentido, ganha credibilidade). Esta ação gera
micropolíticas, diferentes modos de produção de subjetividade. As diferentes micropolíticas estão
ligadas ao grau de intimidade que cada um se permite.
Essas micropolíticas mudam nosso modo de pensar, perceber, sentir e agir. Elas podem
ampliar nossa sensação da intimidade com o local e com as pessoas, gerando relações de
communitas (TURNER, 2012) e também de partilha do sensível (RANCIÈRE, 2009). Para
Rancière (2009), toda partilha do sensível é composta de um comum compartilhado e de partes
exclusivas. Na Festa do Coco encontram-se as regras do jogo, o espaço antiestrutural e sensação de
communitas como comuns compartilhados, e as identidades, experiências, corpos e mobilizações de
desejos como partes exclusivas de cada participante. E ainda pode-se perceber que a noção de
comunidade ampliada da Festa do Coco, comunidade formada no momento do acontecimento por
todos os participantes da festa, acaba também por ampliar a partilha do sensível desta festa.

Da Viagem de Volta (ou Das Considerações Finais)


Participar de uma Festa do Coco é participar de um acontecimento único, e estes
acontecimentos me levam a questionar qualquer modelo possível existente de como fazer uma festa,
uma manifestação popular ou de como dançar o coco de roda.
Após participar da festa algumas vezes, pude entender que não são somente as negociações

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aparentes e verbalizadas que geram diferenças nas festas, mas todas as corponegocioações
realizadas no momento da brincadeira: os olhares, os não olhares, as presenças, as ausências, os
desejos, as tentativas, as procuras... Essa camada do indizível, das relações estabelecidas por outras
vias, e pelo silêncio, também colaboram para a criação e imaginação do espaço e da brincadeira.
A “palavra” corponegociação surgiu das experiências vividas e observadas na Festa do
Coco. Ela aponta para o que há de mais potente e para a única coisa verdadeiramente necessária ao
se lançar à brincadeira do coco de roda: estar disposto a negociar através do corpo indizível. Estar
disposto a deixar que a dança te dance; que o outro te dance na mesma intensidade em que se dança
a dança e se leva o outro para dançar.
Na corponegociação a percepção é múltipla e íntima, pois se negocia através de inúmeras
sensações sinestésicas, mobilizando o emocional e o sensório com maior intensidade do que o
racional (LOUPPE, 2012). O afeto gera atração e repulsa entre os corpos, é um fluxo que atua entre.
Os acontecimentos descritos por mim neste texto não apontam para o que é a dança do coco
de roda ou para o que é a Festa do Coco, mas para a dança, a festa, a brincadeira que se construiu
através das corponegociações entre eu, pesquisadora, e o outro. Me fiz brincante para com os
brincantes e acabamos juntos.
Esta é a complexidade do coco de roda: o ato de dançar é sempre singular nas características
do movimento, mas este singular é resultado de muitas negociações/impregnações do outro.

Referências Bibliográficas
Livros:
LABAN, Rudolf. O Dominio do Movimento. São Paulo: Summus, 1978.
LOUPPE, Laurence. Poética da Dança Contemporânea. Tradução Rute Costa. Lisboa: Orfeu
Negro, 2012.
MASSEY, Dorren B. Pelo Espaço: Uma Nova Politica da Espacialidade. Tradução Hilda Pareto
Maciel e Rogério Haesbaert. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 21ª.ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
PELBART, Peter Pál. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: N-1
Edições, 2013.
RANCIÉRE, Jacques. O Espectador Emancipado. Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2012.

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________________. A Partilha do Sensível: Estética e politica. Tradução de Mônica Costa Netto.
São Paulo: EXO experimental org.; Editora 34, 2009.
ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto
Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2011.
SCHECHNER, Richard. Performance e Antropologia de Richard Schechner. Seleção de ensaios
organizados por Zeca Ligiéro; tradução Augusto R. da Silva Junior... et al. Rio de Janeiro: Mauad
X, 2012.
Artigos:
LARROSA, J. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Tradução de João Wanderlei
Geraldi. Revista Brasileira de Educação. ANPED, n.19, jan-abr 2002.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Arte, dor e Kátharsis ou variações sobre a arte de pintar o grito.
Alea, Rio de Janeiro , v. 5, n. 1, Julho 2003 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S1517-106X2003000100003&lng=en&nrm=iso>. Acessado em 25 de
Agosto de 2014.
TURNER, Victor. Liminal ao Liminóide: Em brincadeira, fluxo e ritual. Um ensaio de
simbologia comparativa. Mediações Londrinas, v. 17, n. 2, p 214-257, jul/dez 2012.
Palestras:
FARIAS, Edson. As Faces Contemporâneas da Cultura Popular (palestra). Centro de Pesquisa e
Formação do SESC, São Paulo, SP, 21 de janeiro de 2015.
Filmografia:
O NOVO Quilombo Chegou. Direção: Darlan da Rocha. Fotografia e edição: Chico Sales.
Paraíba, 2012. 20 min aprox.

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“O CORPO EM SACRIFÍCIO”: CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE O
CONSUMO ALCOÓLICO EM BILL WILSON

Yrismara Pereira da Cruz16


Raul Max Lucas da Costa17

Resumo
O presente trabalho objetiva estudar o lugar do corpo no alcoolismo a partir de uma visão
psicanalítica. Para isso, será feito uma análise do que Bill Wilson, sendo ele um dos fundadores da
irmandade Alcoólicos Anônimos, aborda sobre a relação que o mesmo teve com o álcool e
consequentemente a implicação desde ao seu corpo. A análise de trechos da fala da Bill se deu
através do livro Alcoólicos Anônimos, especificamente o capítulo denominado "A história de Bill".

Palavras-chave: corpo, alcoolismo, psicanálise.

O presente trabalho faz parte dos resultados parciais do projeto de Iniciação Científica
intitulado: Alteridade, Sobriedade e Espiritualidade Entre Membros de Alcoólicos Anônimos em
Juazeiro do Norte-CE: Um Estudo Psicanalítico, que objetiva analisar o laço grupal e sua função na
manutenção da sobriedade entre alcoólicos anônimos na cidade de Juazeiro do Norte-CE. A
relevância do mesmo consiste em compreender o funcionamento dos grupos de ajuda mútua a partir
da perspectiva psicanalítica e sua contribuição para a saúde coletiva.
Este trabalho objetiva estudar a concepção do corpo do alcoolista a partir de uma visão
psicanalítica. Para isso, será feito uma análise do que Bill Wilson aborda sobre a relação que o
mesmo teve com o álcool e consequentemente a implicação desde ao seu corpo. A análise de
trechos da fala da Bill se dará através do livro Alcoólicos Anônimos (2010) especificamente o
capítulo denominado "A história de Bill".
Vale destacar que a expressão "Corpo em Sacrifício" é abordado por Gilles Deleuze, em sua
entrevista denominada "O Abecedário de Gilles Deleuze" cedida pelo o mesmo a Claire Parnet, ele
destaca que atitudes como beber, se drogar são atitudes bem sacrificais, visto que se oferece o corpo
em sacrifício. Deleuze ressalta que se bebe porque há algo forte demais, que não se poderia suportar
sem o álcool, com isso, a questão não é suportar o álcool, é, talvez, o que se acredita ver, sentir,

16 Faculdade Leão Sampaio. E-mail: yrismaracruz@hotmail.com


17 Faculdade Leão Sampaio. E-mail: raulmaxpsi@yahoo.com.br

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pensar, e isso faz com que, para poder suportar, para poder controlar o que se acredita ver, sentir,
pensar, se precise de uma ajuda: álcool, droga, etc.
O termo alcoolismo é oriundo da nosologia psiquiátrica e seu aparecimento na literatura
médica situa-se no século XIX. Foi em 1849 que houve o reconhecimento do alcoolismo como
doença autônoma, onde o termo alcoolismo pela primeira vez passou a descrever os danos físicos
que tal afecção provocava. Assim, o alcoolismo passou a significar uma doença que perturbaria
funções cerebrais, sensoriais e musculares, gerando danos a vários órgãos. Portanto, a denominação
corresponderia não ao órgão afetado, mas a sua causa, o álcool (CARNEIRO, 2010).
Nesta época, o alcoolismo estava associado às classes operárias que usavam os espaços de
consumo alcoólico como locais de sociabilidade. Os efeitos de seu consumo eram contraditórios,
pois por um lado as bebidas podiam chegar a limitar a capacidade de trabalho e a produtividade dos
que se excediam tornando-os inoperantes e por outro lado, a bebida servia como um consolo e
anestésico eficaz para ajudar uma parcela majoritária dos trabalhadores a suportar condições brutais
de existência (CARNEIRO, 2010).
Desta forma, a perspectiva do alcoolismo como um vício moral prevalecia sobre a
concepção da doença orgânica. Onde alguns estudiosos da época associa o uso excessivo de bebidas
como algo que perpassava a interface da moral, e outros buscavam explicações científicas em que o
alcoolismo era considerado ora como doença do sistema nervoso, como uma doença mental e
hereditária, ora como uma doença da vontade. Como consequência dessas concepções, geraram-se
medidas de estigmatização, internamento e exclusão. Em muitos casos, a hospitalização/asilamento
se tornou obrigatória (CAMPOS, 2004).
Na atualidade, de acordo com o DSM-5 (2014), o alcoolismo ou o transtorno por uso de
álcool é definido por um agrupamento de sintomas comportamentais e físicos, os quais podem
incluir abstinência, tolerância e fissura. A abstinência de álcool caracteriza-se por sintomas de
abstinência que se desenvolve aproximadamente 4 a 12 horas após a redução do consumo que se
segue a uma ingestão prolongada e excessiva de álcool, podendo gerar falta de sono, inquietação e a
busca por a bebida mesmo sabendo as consequências adversas. A fissura por álcool é indicada por
um desejo intenso de beber, o qual torna difícil pensar em outra coisa. Por fim, os sujeitos com
transtorno de álcool apresentam problemas de ordem física, psicológica, social ou interpessoal.
Vale destacar que a visão sobre o alcoolismo é diferente de acordo com o ponto de vista
teórico e clínico abordado. Ressalta-se, portanto, que a visão da psicanálise sobre o alcoolismo se

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diferencia da medicina e da psiquiatria ao priorizar a subjetividade.
Freud18, em seus escritos pré-psicanalíticos considerava o alcoolismo como uma
manifestação da histeria masculina, considerando que o homem em estado de embriaguez, chora, ri,
grita, dorme, além da recorrente agressividade. Tais manifestações seriam traços comuns a própria
histeria na época associada com frequência às mulheres. Outro aspecto em comum entre álcool e
histeria era o início de seu consumo na adolescência tempo de estruturação marcado pelas
transgressões e labilidade identificatória. A adolescência é também o período de definição da
diferença sexual, daí a demanda adolescente por referências simbólicas e imaginárias sobre seu
sexo. Há na atualidade uma relação estreita entre juventude e o abuso de bebidas.
Enquanto prática masculina, o beber e o alcoolismo estavam indissociavelmente ligados ao
trabalho. Freud identifica que a incapacidade para o trabalho entre os alcoolistas não se devia tanto
ao abuso de álcool em si, mas a posição histérica de impossibilidade. Dessa maneira, a repetição do
beber, também aponta para o fracasso de uma posição fálica frente ao feminino, fazendo uma
parceria entre e o homem e a bebida que pode tomar a via da pulsão de morte19.
No que refere-se ao ato da compulsão de beber para uma visão psicanalítica vale destacar
que Freud relaciona a compulsão alcoólatra como sendo a expressão dos desejos recalcados, experi-
mentados oralmente. Esse agir próprio da pulsão de morte demonstra que o alcoolista busca uma sa-
tisfação plena, um prazer inatingível, sendo barrado, porém, por seu corpo. Dessa forma, por ser
uma modalidade de agir efetivada pela repetição, a compulsão alcoólica possui um alvo que nunca é
alcançado: a transgressão à castração (BIRMAN, 2012).
Freud (1996) escreve em Mal Estar da Civilização: “O serviço prestado pelos veículos into-
xicantes na luta pela felicidade e no afastamento da desgraça é tão altamente apreciado como um
benefício, que tanto indivíduos quanto povos lhe concederam um lugar permanente na economia de
sua libido. Devemos a tais veículos não só a produção imediata de prazer, mas também um grau al-
tamente desejado de independência do mundo externo, pois sabe-se que, com o auxílio desse
“amortecedor de preocupações”, é possível, em qualquer ocasião, afastar-se da pressão da realidade
e encontrar um refúgio num mundo próprio, com melhores condições de sensibilidade. Sabe-se
igualmente que é exatamente essa propriedade dos intoxicantes que determina o seu perigo e a sua

18 FREUD, Sigmund. Histeria. In: FREUD, Sigmund (1888). Edição Standard Brasileira das Obras Completas de
Sigmund Freud. Vol. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
19 FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer. In Freud, Sigmund (1920) : Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud. Vol. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

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capacidade de causar danos.”
Com a releitura de Jacques Lacan 20 sobre a obra freudiana a posição alcoolista passou a ser
compreendida a partir da noção de falo como significante e elemento definidor da diferença sexual.
O falo, para além de sua representação anatômica peniana, consiste no próprio significante do dese-
jo. Ao homem, por questão de cultura e estrutura, o significante fálico se apresenta como definidor
das práticas masculinas.
Lacan (1998) mais adiante desenvolve a noção de gozo como desenvolvimento teórico da
ideia freudiana de pulsão de morte. O gozo pode implicar em situações de prazer enredadas ao des-
prazer. O gozo refere-se também a situações de excesso tendo o corpo como lugar de manifestação.
O desejo, enquanto falta, é o que faz barrar o gozo promovendo o advento do sujeito. Mito totêmico
freudiano ilustra de forma significativa de que a passagem do natural para o cultural, da horda para
a civilização, só é possível com a instituição da lei que limita o gozo. Seguindo Freud, Lacan ressal-
ta que a bebida pode servir ao alcoolista como objeto de satisfação, daí sua fidelidade ao álcool em
detrimento da parceira amorosa.
No que refere-se a felicidade, construção ideativa valorizada pelo humano como objetivo da
vida, se pensada sob a égide dos princípios, passa a ser buscada através de uma negativa: evitar o
desprazer, embora Freud afirme que não há nada preparado para que ela seja alcançada nem no mi-
crocosmo, nem no macrocosmo. Diante desse quadro, fazem-se necessárias construções de alterna-
tivas para contornar o desprazer da não satisfação direta das pulsões, pois “A vida, tal como a en-
contramos, é árdua demais para nós, proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas im-
possíveis. A fim de suportá-la, não podemos dispensar as medidas paliativas” (Freud, 1930/1996, p.
83). As construções da civilização viriam auxiliar a organização dessas possibilidades alternativas,
fornecendo formas de satisfação adequadas ao projeto de cultura.
O programa do princípio do prazer oferece uma orientação, visando à diminuição da tensão,
funcionando, consequentemente, por contraste - a satisfação é possível devido a uma insatisfação
anterior. Desse modo, a satisfação obtida logo deixa de satisfazer, pois sua permanência a faz perder
o efeito de contraste (Freud, 1930/1996). As possibilidades de felicidade são, portanto, restringidas
por sua própria constituição. O sentimento de infelicidade, entretanto, parece mais corriqueiro:

O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à de-
cadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como
20 LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

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sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de des -
truição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros
homens (Freud, 1930/1996, p. 85).

Sendo o corpo umas das fontes de sofrimento resultante do mal-estar na civilização, vale
destacar que estudar o corpo em psicanálise é estudar o corpo pulsional. Após o texto Além do
Princípio do Prazer (1920) a teoria freudiana ampliou, progressivamente a compreensão do corpo
para além da lógica da representação. O corpo é, portanto, palco e personagem das relações
complexas que se estabelecem entre o psíquico e o somático.
Desta forma, o corpo aparece como sendo habitado pela pulsão, a pulsão sendo aquela que
alimenta o corpo libidinal. A ênfase se coloca, portanto, na característica de ser a pulsão um
representante psíquico das excitações que se originam no interior do corpo (PIMENTA, 2007).
Sendo assim, de acordo com Santiago (2001) o sujeito para psicanálise é alguém que busca
constantemente um equilíbrio através da realização da pulsão e qualquer coisa que cause desprazer
é reconhecido como algo a ser abolido, pois o sujeito é um caçador infatigável de prazer e renunciar
a isto é de grande custo. Portanto, o prazer é uma forma de suprimir o desprazer e as experiências
dolorosas caem para o sujeito como uma renúncia ao prazer. Então, de um lado o homem quer
economizar o sofrimento e desprazer, e, ao mesmo tempo, gozar intensamente.
No entanto, Freud (1996) afirma ser quase impossível vivermos a vida como ela se
apresenta, em função das diversas dificuldades, decepções e exigências que a cultura impõe. Nessa
direção, ele aponta sete saídas possíveis ao mal-estar, soluções inventadas pelos sujeitos para se
proteger da dor de existir inerente ao mal-estar estrutural da civilização. Inclui o amor, a religião, a
atividade científica, a arte, o delírio, a sublimação e os narcóticos como forma de amenizar o mal-
estar.
Assim, Freud (1996) localiza a intoxicação como a solução mais eficaz ao mal-estar, pois,
ao influir sobre o organismo e alterar a química deste, promove efeitos no corpo. A droga ameniza
os efeitos da exigência civilizatória. Porém o uso de drogas como uma resposta, que objetiva
reduzir o mal-estar, tem seus prós e contras. Apesar de causar prazer, apresenta um grande perigo,
pois pode levar ao afastamento da realidade e ao isolamento.
Sendo assim, o alcoolista encontra no álcool a química que tampona sua falta, o gozo que
lhe parece eterno enquanto dura o efeito da droga. A sensação de plenitude cessa quando finda a
ação química da mesma. O mal estar aparece e com ele a ânsia por mais álcool, recomeçando o

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circuito alcoólico: álcool –mal estar– mais álcool, repetição compulsiva em torno da droga. Assim,
o alcoolismo parece ser a tentativa de corrigir a castração, por uma relação que não é marcada por
nenhum limite. A tentativa de fazer valer um “gozo Outro” (um gozo pelo Outro), isto é, uma forma
de gozo que nada deve à castração. Um gozo sem limite, que pode ir ao termo, ou seja, à morte
(GALVÃO, 2000).
De acordo com Galvão (2000) o alcoolista procura através do álcool fazer com que o objeto
esteja presente mesmo quando este desapareceu, por isso esconde garrafas no seu armário. Porém,
mesmo se o objeto desapareceu quando não esta necessitando dele para consumir, continua tendo a
necessidade da sua presença, apesar da cadeia significante à qual está remetido não falar disso. Se
este objeto, álcool, vem a desaparecer, provoca nele uma crise de angústia, que pode bascular no
delírio. Não ter mais esta coisa a seu alcance, é insuportável para o alcoolista. Com isso, parece que
o consumo do álcool se faz na tentativa de incorporar o objeto, tê-lo finalmente preso ao corpo,
visto que o corpo está tatuado, marcado pela cadeia significante. Buscando essa operação
impossível de ter esse objeto no corpo, o alcoolista ingere cada vez doses maiores, marcando assim
um encontro com a morte, quando então conseguiria o seu intento, a incorporação do objeto.
Mediante a presente discussão trata-se de um trabalho de revisão bibliográfica qualitativa, a
qual será feito análise de trechos da fala de Bill Wilson com o objetivo de associá-la ao que a
psicanálise aborda sobre a concepção do corpo do alcoolista. Para isso, os materiais consultados
para a análise dos trechos da fala de Bill foram obtidos a partir da literatura de escritos freudianos e
lacanianos, assim como foi feito levantamento de artigos nas fonte de dados BVS-PSI e SCIELO.
Foram utilizados para a construção do presente trabalho, artigos, livros, dissertações e teses
psicanalíticas assim como de áreas afins.
A pesquisa foi realizada por meio da combinação das seguintes palavras-chave: Álcool,
Psicanálise, Alcoolismo e Corpo, sendo todos os termos digitados no idioma português.
Adicionalmente, a busca realizou-se nos meses Junho e Julho de 2015, investigando publicações do
período 2000-2014.
Os trechos da fala para a análise como já foi referido é de Bill Wilson, a qual foi obtida no
livro Alcoólicos Anônimos. Vale destacar que o ano de 1935 marca o surgimento na cidade
americana Akron, Ohio da irmandade de bebedores anônimos idealizada por Bill Wilson, um
investidor falido de Wall Street e por Robert Smith, médico-cirurgião, ambos consideravam-se
alcoolistas ou alcoólicos. Bill Wilson e Robert Smith reuniram um pequeno grupo de bebedores

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habituais e criaram a Fundação do Alcoólico, instituição destinada a realizar um tratamento
alternativo ao alcoolismo a partir da abstinência e de um programa de sobriedade. Somente em
1939, o nome Alcoólicos Anônimos surgiu a partir do lançamento do livro homônimo, conhecido
também como o “grande livro” ou ainda o “livro azul”, que condensava as diretrizes e as metas do
AA. O livro apresentava a definição de alcoolismo, o modo de funcionamento dos reuniões de AA,
relatos pessoais, orientações a familiares e a empregadores, a postura agnóstica e o programa
espiritual da irmandade.
Desde seu surgimento, uma das especificidades do AA com relação aos tratamentos para
alcoolistas reside numa proposta terapêutica desvinculada da medicina e da religião. O princípio
consiste na formação de um grupo de alcoolistas ou alcoólicos praticantes que almejam a
abstinência alcoólica a partir de um programa espiritual organizado em 12 passos e em 12 tradições.
O anonimato de seus membros na vida social se apresentou como uma condição de filiação e
funcionamento da irmandade. Na série de livros, livretes e folhetos que compõe a “literatura” do
AA os nomes de seus principais fundadores foram abreviados para Bill W. e Dr. Bob. Bill Wilson
justificou o anonimato nas origens do AA como uma forma de precaução pessoal e trabalhista:
É importante permanecermos anônimos porque somos, atualmente, muito poucos para
atender o enorme número de pedidos pessoais que possa resultar desta publicação. Por
sermos, na maioria, profissionais liberais ou homens de negócios, não poderíamos, em
tal eventualidade, continuar a nos dedicar a nossas ocupações. Gostaríamos que todos
compreendessem que nosso trabalho como alcoólicos não é nosso ganha-pão.21

Para se iniciar a análise dos trechos da fala de Bill no capítulo denominado "A história de
Bill", o mesmo destaca: "...a bebida com o tempo deixou de ser um prazer: tornou-se uma
necessidade...tudo ao meu redor era areia movediça. Eu havia encontrado um adversário
imbatível. Eu fora dominado. O álcool era meu senhor" (ALCOÓLICOS ANÔNIMOS, p.40, 2010)
este trecho da fala de Bill relacionando com o que a psicanálise aborda sobre a relação do alcoolista
com o álcool pode ser visto como a busca pelo gozo, visto que o gozo refere-se também a situações
de excesso tendo o corpo como lugar de manifestação. O desejo, enquanto falta, é o que faz barrar o
gozo promovendo o advento do sujeito. Seguindo Freud, Lacan ressalta que a bebida pode servir ao
alcoolista como objeto de satisfação, daí sua fidelidade ao álcool em detrimento da parceira
amorosa (LACAN, 1998).

21 ALCÓOLICOS ANÔNIMOS. São Paulo: JUNAAB, 2010. (publicação original: 1939). P.11.

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Charles Melman (2000), descreve o alcoolismo como discurso que se modula por uma
submissão particular à mulher, enquanto detentora e distribuidora de um gozo cuja totalização seria
para ele sempre recusada ou dissimulada. Gozo marcado pela prevalência de uma fixação oral,
constantemente reaguçada durante a vida. A fixação neste lugar, se presta também à representação
imaginária do gozo por um fluxo, líquido ou verbal, fora de descontinuidade e fora do limite. Por
não reconhecer aqui outro limite senão o fisiológico, o do corpo, o gozo se choca com este, (o
corpo) como se fosse um obstáculo difícil a ser vencido. A ânsia pelo gozo esbarra nos limites do
corpo, que resiste, agarrando-se à vida. Esse processo mortífero, se estende para aqueles que estão
próximos, a família, e principalmente para seu corpo, a liquidar.
No que refere-se a esse processo mortífero vale trazer esse trecho da fala de Bill "As pessoas
temiam por minha sanidade. Eu também. Eu quase não comia quando bebia, e estava vinte quilos
mais magro" (ALCOÓLICOS ANÔNIMOS, p.46, 2010).
Valas (2001) destaca que a introdução no corpo de substâncias farmacodinâmicas, dopantes,
estupefacientes e outros produtos diversamente terapêuticos ou tóxico pode modificar o
funcionamento do aparelho homeostático do corpo próprio, estimulando o sujeito a solicitá-lo mais.
Com a repetição dos abusos, o corpo se esgota e pode ser levado a morte, ligada a um
prejuízo fisiológico irreversível. Passamos aqui do registro do corpo gozando de si mesmo ao gozar
do outro, no sentido objetivo desse genitivo. Nesse aspecto, o sujeito só pode gozar do corpo do
Outro tomando como objeto se ele poupa esse corpo. Além de certo limiar, efetivamente, para gozar
dele seria necessário cortá-lo em pedaços. Mas, nesse caso, de qualquer forma o sujeito não tem
acesso ao "gozar do" corpo, no sentido subjetivo desse determinativo (VALAS, 2001).
Com isso, no que refere-se ao sacrifício do corpo em busca desde gozo e de como essa busca
gera sofrimento tanto na instância psíquica como fisiológica, Bill destaca: "chegou então, a noite
em que a tortura mental e física era tão infernal que senti medo de mim atirar pela janela com
cortina e tudo...um medico me deu um forte sedativo. No dia seguinte eu estava tomando gim e
sedativos. Essa combinação quase me matou" (ALCOÓLICOS ANÔNIMOS, p.46, 2010).
O álcool apresenta-se assim, como sendo uma possibilidade de gozo narcísico e
fundamental, numa busca pelo reconhecimento como sujeito. Portanto o alcoolista luta de duas
formas distintas: por um lado ocorre a reclamação desenfreada por um acesso ao gozo, e do outro
uma luta política coletiva onde se formula a reivindicação do poder. Para Melman (2000), o
alcoolismo surge como uma forma outra de gozar e ainda como uma tentativa de fugir à castração

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por uma outra via a oral, possibilitando ao sujeito não ter mais limite algum.
O objeto visado neste gozo infinito sentido pelo alcoolista continua sendo o falo. Por isso
para o autor a clínica do alcoolismo tem a característica de ser “falicizada”. Isso explica porque
essa toxicomania é muito tolerada e considerada apenas como sendo da ordem patológica. Isso quer
dizer que essa tolerância se deve ao fato de que o objeto visado é sempre o mesmo, o falo. Portanto,
há um certo grau de cumplicidade na sociedade para com quem bebe, pois o alcoolista apresenta-se
como alguém que não tem medo, não conhece limites, e tem a disposição de ir até o fim no que
pretende (MELMAN, 2000).
Desta forma, o álcool em relação à sua exigência sacrifical é :
impiedoso, intratável. Corpo. Vida. Máquina de guerra déspota, ele não temporiza, não
discute; eu ou nada! Eu ou o caos! Eu-caos. Morte lenta. Garantida. O álcool ignora os
"direitos humanos", não se comove com a morte biológica... O corpo-álcoolotra milita por
uma estética da alegria alcoolizada, uma espécie de amém-desejo calcado na efemeridade,
mas que ainda é vida, enquanto durar o gesto e a repetição do sacrifício ( LINS, 2013 p.
174).

Lins (2013) destaca que não é a droga que faz o toxicômano, nem o álcool que faz o
alcoólatra. A complexidade das práticas compulsivas de dependência, que engajam muitas vezes
prejuízos corporais, significa um sofrimento que serve do corpo e das drogas para expor. De fato,
tanto o toxicômano quanto o alcoólatra, ambos como singularidades diferenciáveis, sentem-se
muitas vezes encurralados num estigma social que chama equivoco voluntario, a saber, o
toxicômano e o alcoólatra não produzem a droga e o álcool, mas o inverso acontece, o mercado é
que produz.
Desta forma, é notório que o uso de álcool causa uma implicação direta ao corpo do sujeito
alcoolista, visto que o gozo sendo barrado no mesmo e a satisfação em sua plenitude não sendo
alcançada gera sofrimento ao sujeito, que cada vez mais faz uso do álcool na tentativa de prazer
pleno. Com isso, os danos vão tanto em um sentido patológico assim como na alteração do
funcionamento do aparelho homeostático. Visto que a cronificação alcoólica leva o etilista a uma
espécie de esgotamento de sua possibilidade de diferença entre desejo e demanda, tornando-se puro
objeto de uma compulsão insensata de demanda alcoólica.

Referências Bibliográficas
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ACHADOS DA RUA: CORPO, CIDADE E FOTOGRAFIA
Elane Abreu22

Resumo

Este trabalho tem o objetivo de compreender a relação entre corpo, cidade e fotografia através da
análise de imagens de quatro artistas-fotógrafos: Brassaï, Weegee, Daido Moriyama e Miguel Rio
Branco. Estas imagens se referem ao corpo em distintas relações com o urbano - seja nos
submundos, nas ruas, nos recantos da diversão noturna e da boêmia. Esses espaços trazem à tona
tipos humanos reelaborados pelas fotografias, tendo, como figuras-chave, a prostituta, o
boêmio/bêbado e o mendigo. Um mosaico imagético de alteridades é sugerido, indo de aparições de
personagens a fragmentos visuais de corpos anônimos.

Palavras-chave: cidade, fotografia, corpo.

Introdução
A cidade acolhe as marcas, expressões, desejos e experiências dos seus transeuntes. Essa
mesma cidade apresenta seus diversos personagens, inscrições e texturas, sugerindo um infindável
conjunto imagético no qual a fotografia vem atuar. Dirigimo-nos, neste texto, a algumas imagens do
corpo humano que comparecem nas propostas visuais de quatro artistas-fotógrafos estudados -
Brassaï, Weegee, Daido Moriyama e Miguel Rio Branco -, com o fim de entrever de que forma a
carnalidade da cidade é elaborada, ou melhor, reinventada nos recortes fotográficos.
Compreendemos essa ideia de carnalidade relacionada não apenas com o corpo humano vivo e
íntegro, mas também com aqueles atingidos pela ação do tempo e suas corrosões, pela calamidade e
a morte. Nesse entendimento, sob quatro pontos de vista fotográficos, a nudez corpórea se
transmuta em olhares estéticos heterogêneos.
As imagens sobre as quais discorremos aqui fazem referência ao corpo em distintas relações
com o urbano - seja nos submundos, nas ruas percorridas, nos recantos da diversão noturna e da
boêmia. Interessa-nos pensar os diálogos que essas imagens travam entre a pele do homem e a das
ruas e quais propostas conceituais surgem desse encontro. Sem buscar enaltecer o corpo humano em
detrimento das outras formas de vida, destacamos a importância da constituição perceptiva das
imagens, dependente de um corpo pensante - podendo ser, no ato fotográfico, o do próprio fotógrafo

22 Doutora em Comunicação e Cultura pela ECO - UFRJ; Professora de Comunicação Social da Faculdade Cearense –
FaC. E-mail: elaneabreu@gmail.com.

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ou do observador. Além disso, o corpo humano fotografado, sua inscrição reconhecível na imagem
e no seu mundo, é o que buscamos aqui pensar sem esquecer sua dimensão física e carnal nas ruas.

Corpos mundanos: nudez humanista e sórdida


O corpo comparece nas fotografias como parte de uma gramática de personagens urbanos
que, da modernidade à contemporaneidade, vai deixando suas marcas na percepção da cidade. Sua
aparição, por exemplo, é notória nos submundos noturnos fotografados por Brassaï na década de
1930, onde a prostituta, os casais, o trapeiro, o malandro e o policial são protagonistas de uma
narrativa urbana. Entra em jogo uma construção cênica desses personagens nas ruas, onde situações
de luz são encontradas e trabalhadas conforme o recanto fotografado. Nessa arte cenográfica, a
contribuição do meio fotográfico para a percepção visual do “outro” na cidade é decisiva.
A fotografia - seja devido aos restos de uma tradição humanista de atribuição de um nome e
de um papel a cada indivíduo na sociedade, ou à empatia da fotografia como um meio que
sempre incorpora o outro - trouxe um conjunto imaginário de personagens, sem o qual seria
impossível visualizar o espetáculo urbano. A este respeito, a fotografia contribuiu, tanto em
quantidade como em qualidade, para o legado da pintura e seus tipos de personagens do
retrato. Como um meio pictórico, a fotografia também fornece um elo com as artes
performativas - na rua como no estúdio (EBNER, 2008, p.192-193). 23

Do burguês ao maltrapilho, a câmera opera no trabalho de extrair retratos e delinear seus


papéis sociais24. Na rua, essa diversidade de indivíduos põe o fotógrafo dentro da meticulosa tarefa
de salientar corpos protagonistas. A figura da prostituta, para aqui destacarmos um dos personagens
narrados por Brassaï, aparece num sugestivo jogo de luz e sombra. Com cabelo arrumado, cigarro
na boca, bolsa debaixo do braço, vestido comportado, a mulher recebe uma luz clara e intensa,
contrastando com a escuridão do logradouro carcomido e silente que lhe faz pano de fundo. Sua
imponência, no modo como é registrada pelo fotógrafo, também enfatiza o apelo à sensualidade
feminina. Como numa vitrine a céu aberto, essas mulheres povoaram o imaginário das ruas de

23 Tradução de: Photography - whether due to the remnants of a humanist tradition of allocating a name and role to ev-
ery individual in society, or to photography’s empathy as a medium that always incorporates the other - has brought to-
gether an imaginary ensemble of characters without which it would be impossible to visualise the urban spectacle. In
this respect, photography has contributed, both in quantity and in quality, to the legacy of painting and its portrayal of
character types. As a pictorial medium, photography also provides a link to the performative arts - in the street as in the
studio.

24Um exemplo representativo quanto aos tipos humanos na fotografia é o trabalho do alemão August Sander, que
registrou distintos tipos sociais em séries de retratos no século XX. Seu clássico livro Face of our time demonstra o
empenho de um colecionador de rostos.

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alguns recantos soturnos de Paris, onde esperavam aqueles que pudessem deleitar-se com sua
“carne”.
Não apenas na construção de uma sensualidade exibida nas esquinas, Brassaï também atuou
na presença dinâmica das mulheres nos cabarés 25. E, nessas casas dedicadas ao entretenimento
noturno dos homens, o corpo nu feminino é enfático em aparições diante da câmera. É o caso de
uma fotografia em que o corpo despido da prostituta insinua posar sem pudor ante a lente do
fotógrafo. Frontalmente, de braços levantados e apoiados em ambos os lados de uma porta, o corpo
nu da meretriz está por completo no enquadramento da imagem. Apenas com um lenço à altura da
cintura, que nada esconde do seu sexo, e no porte de saltos altos, toda sua forma e extensão
corpórea estão ali ofertadas ao exame minucioso do olho. Esta exibição, que poderíamos também
relacionar ao corpo exposto numa vitrine, é exclusivamente concedida. No interior das maisons, o
olho indiscreto da câmera fez parte também de um olhar de intimidade conquistado pelo fotógrafo.
Sua proximidade com a nudez, assim como com a dinâmica dos frequentadores do local, fizeram
parte do mundo vivenciado por Brassaï na sua Paris, corporal e noturna.
Neste contexto de uma cidade misteriosa, underground, paralela e, ao mesmo tempo
anônima, resistente a uma visibilidade diurna e a uma atitude blasé (SIMMEL, 1987) – automática e
indiferente aos estímulos –, estão os hábitos soturnos e ambientes boêmios, e o papel do fotógrafo
de penetrar o olhar nestes mundos. Pelo fascínio e, ao mesmo tempo, intimidade terna com os
personagens que elege em sua visibilidade noturna e misteriosa, Brassaï aciona uma nudez
humanista na sua cidade-luz. Essa nudez inclui o corpo submundano em imagens de encanto
cênico, nas quais personagens parecem ainda exalar algum prazer de suas condições de vida. O
humanismo surge não apenas no corpo nu da prostituta, como vimos, mas no foco de outros
personagens da noite que compartem de um olhar fotográfico íntimo (o livro The secret Paris of the
30’s mostra esses personagens, tais como os mendigos e os malandros). A luz e a sensualidade desse
universo underground da cidade contrastam, por exemplo, com a nudez sórdida de Weegee.
Sob o que intitulou “cidade nua”, Weegee retrata a crueza dos crimes de uma grande cidade
às cenas de boêmios e moribundos nas ruas de Nova York. Destacamos aqui os corpos que vão

25 Muitos nomes existiram para estes bordéis - maison close, maison de tolérance, maison publique, maison d’illusions,
ou somente maison - e muitas de suas fachadas não eram identificadas por nomes e, sim, por números em estilos art
nouveau, art deco, dentre outros (BRASSAÏ, 1976).

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desde mortos e bêbados a pessoas dormindo em condições adversas. É claro o ímpeto de fotografar
os deslizes e atos desviantes da vida cotidiana, dando-lhes a tenebrosa claridade do disparo do flash
da câmera. Percebemos esse destaque mais enfático nas imagens noturnas, quando um clarão alveja
os corpos e cenas. A luminosidade indiscreta, noite adentro, acompanha a inquietude dos chamados
investigativos que o fotógrafo recebia para cobrir os eventos, independentemente da hora do
ocorrido. Suas imagens mexem com os sórdidos apelos de uma cultura do tablóide, pela qual
imagens chocantes rendem notícias espetaculosas. Porém, o que dele extraímos é a presença de
personagens narrativos encontrados nas tramas da cidade, para além de um olhar estrito do repórter
fotográfico. Sublinhamos o contador de histórias Weegee nos flagrantes urbanos que realiza.
A nudez relacionada aos corpos caídos nas ruas não traz o nu humano, em sentido literal. Ela
traça o diálogo do fotógrafo com a sordidez da grande cidade, sendo esta elaborada pelos fortes
clarões que dirige a seus fotografados. Nesta nudez sórdida de Weegee, está o corpo morto como
atrativo fotográfico. Vítima de crime ou tragédia de outra procedência, a evidência da morte está
estampada na imagem do corpo coberto de sangue. Registrando com prontidão o estado da vítima, a
morte ainda recente e já lavrada faz da imagem um instantâneo veloz e póstumo. A nudez do
acontecimento é assim ofertada ao observador no impacto corpóreo com o morto, de onde surge a
violenta faceta da cidade. Em momentos conscientemente escolhidos, a vida urbana surge no seu
cotidiano vil e faminto, sem, contudo, deixar de expressar a destreza do fotógrafo na elaboração
dessa selvageria.
Ainda que possuísse um vínculo profissional com a cobertura midiática do crime, a cidade
de Weegee não deixa de fora o seu empenho na captura de momentos singulares da rua, sem o
necessário apelo sensacionalista dos tablóides. Dentre suas figuras frequentemente fotografadas,
estão os bêbados ou moribundos das ruas, que aparecem esparramados nas calçadas. De chapéu
caído, em estado inconsciente ou dormindo, um homem comparece justamente na calçada do
departamento de polícia, tal como demonstra uma precisa imagem do fotógrafo. Nela, não é a morte
sanguinária que está friamente deflagrada como na imagem do crime, mas o sono profundo de um
possível bêbado que, com vestimenta em desalinho, caiu sobre a calçada e lá permaneceu. A atenção
se dirige aqui aos hábitos mundanos que também compõem a vida libertina na cidade, apesar das
regras de conduta e punições que possam existir. Dormir na rua, Weegee adverte, não significa
apenas dizer que não se tem casa, porém, mais que isso, que o espaço público pertence a quem o
deseje, inclusive para quebrar o controle e a norma.

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Enquanto a luz da Paris de Brassaï envolve as imagens de uma atmosfera suave, por vezes
nebulosa, mas nunca agressiva, os flagrantes urbanos de Weegee são marcados com luz intensa,
indiscreta, destacando um clarão no primeiro plano e obscurecendo o plano de fundo. É nessa
compreensão que a nudez comparece em ambos em inclinações distintas. A sordidez de uma cidade
repleta de eventos, de instantâneos, de choques, é o que seduz a câmera inquieta de Weegee. Nas
ruas, é perceptível a atração pelo imprevisto e as surpresas dos encontros com o “outro” em
momentos de distração, sendo estes registrados com uma forte e impiedosa luz. Este forte disparo
luminoso, inclusive, é um dos fatores que colaboram para a constante intranquilidade dos
fotografados - ainda que estejam dormindo. Sua nudez é sórdida. Em Brassaï, por outro lado, não
há sobressalto. Os corpos são ali visitados e olhados sem a necessária velocidade dos
acontecimentos enérgicos de uma grande cidade. Há uma atmosfera intimista, clássica, tons de luz
mais suaves de acordo com a ambientação. A temporalidade da cidade não é a do caos nem da
selvageria de um cotidiano automático. O feminino é observado por uma lente que não o
desestabiliza, mas, pelo contrário, o conforta em imagens íntimas. Por esses traços, a nudez que se
desprende da Paris noturna é humanista.
Não buscamos limitar a leitura dos corpos fotografados nesses adjetivos. Extraímos esses
qualitativos, contudo, de ideias suscitadas pelas imagens, tendo em mente suas construções
narrativas acerca das cidades e seus corpos aparentes. A instabilidade do corpo nos espaços urbanos
que, para nós, não deixa de dialogar com o desejo, a morte, os riscos, a sucumbência, traça elos de
diferentes intensidades narrativas. O corpo também se faz superfície de inscrição de significados
culturais, é textura do mundo, e o embate entre a multiplicidade mundana e sua singularidade
complexifica as “fronteiras indefinidas da pele de um corpo singular e da pele do mundo”26
(VILELA, 2009, p. 17). A inventividade do corpo em trabalhos fotográficos traz para nós essa
sobreposição de peles que ora acolhe, ora irrompe a rudeza urbana.
Numa leitura barthesiana, Eugénia Vilela (2009, p.20) comenta que “por atos como escrever,
fotografar ou testemunhar, quem os faz dialoga com as ideias de seu corpo, para submergir-se na
significância”27. Uma compreensão sempre particular do sujeito que atua (e seu corpo), de como se
imagina como indivíduo, é o que direciona a significância do seu texto. Esta leitura que a autora
toma de Barthes, em O prazer do texto, destaca o gesto de liberdade do texto “em uma arte de
26 Tradução de: “fronteras indefinidas de la piel de un cuerpo singular y de la piel del mundo”.
27 Tradução de: “por actos como escribir, fotografiar o testimoniar, quien los hace dialoga con las ideas de su cuerpo,
para sumergirse en la significancia”.

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conduzir o próprio corpo”28 (2009, p.21). Criar sentidos, nessa direção, pelo ato de fotografar
admite essa tensão de um sujeito corpóreo com o mundo. “E é porque o corpo forma parte do
mundo que a totalidade do mundo não pode inscrever-se no corpo” 29 (2009, p.23). Assim como
somos corpos-fragmentos de uma totalidade, cada fotógrafo é um corpo que singulariza seu
percurso pela cidade, sendo impossível apreendê-la em totalidade. Por fotografias, a cidade se
constitui por muitos olhares, nunca totalizantes. É nessa compreensão que observamos os cliques
narrativos de Brassaï e Weegee, ambos, respectivamente, singularizando a nudez visível de Paris e
Nova York.

Corpos-fragmentos: o ácido e o decrépito


O corpo que se expressa no olhar fotográfico admite radicalmente sua forma-fragmento nas
imagens dos fotógrafos contemporâneos que elegemos. Daido Moriyama, em seus recortes
dispersos, fareja a cidade como um cão em suas andanças urbanas. A especificidade de um lugar
fotografado ou de uma narrativa se dilui ao passo que uma visibilidade descontínua, prenhe de
pedaços de lugares, corpos e materiais soltos, é alçada em suas imagens. Miguel Rio Branco, artista
que também dá visibilidade desconexa a corpos e materiais, traz à tona uma composição urbana que
não se define na especificidade narrativa de uma cidade ou de um lugar retratado. É de um certo
estado de desmantelamento que suas imagens nos falam, prescindindo de um contexto citadino
identificável. Dos olhares desses fotógrafos, de tal modo, insurgem cidades de corpos fragmentados,
que não se sustentam no elo necessário com tipos ou personagens. Buscaremos pontuar o porquê ao
discorrer sobre algumas de suas imagens.
Uma menina de vestido branco e descalça corre sobre entulhos de uma passagem estreita.
Não se sabe para onde vai, do que foge ou se afasta, ou do que busca se aproximar. A visão
inclinada do quadro fotográfico, o corpo que corre de costas e não mostra o rosto, o ambiente
decrépito em que ele aparece, são elementos que compõem uma atmosfera enigmática, densa e
inapreensível. Essa imagem evoca uma dimensão furtiva dos espaços urbanos, marcada pelo
movimento e pela passagem de corpos, de construções e situações vividas. A menina que se afasta
do olhar do fotógrafo e, consequentemente, do nosso olhar de observador, tem sua passagem
inscrita na imagem sem pose ou entrega à consciência de um olho que a vê. O olhar ácido de
28 Tradução de: “en un arte de conducir el propio cuerpo”.
29 Tradução de: “Y es porque el cuerpo forma parte del mundo que la totalidad del mundo no puede inscribirse en el
cuerpo”.

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Daido, em forte contraste de preto e branco, realça os grãos do ambiente. Os destroços espalhados
no chão não deixam de suscitar um estado perturbador quando confrontados com a carnalidade do
corpo. Há uma estreiteza de horizonte num corredor opressivo, de construção mambembe e cheio de
entulhos, sobre o qual a menina avança, mas não há futuro nessa corrida. É sobre destroços que ela
segue.
Numa outra apreensão fugidia da presença humana, encontra-se o corpo nu de uma mulher
no espaço impregnado de colagens de páginas de revistas sobre paredes de tinta gasta. A imagem
dessa vez é de Miguel Rio Branco, que situa seu olhar diante desse corpo feminino que se move
junto a um lenço vermelho. O rosto é deixado de fora do quadro fotográfico ao passo que pescoço,
seios e genitália, com leves desfoques advindos do movimento corporal, restam aparentes no
primeiro plano. Permanecem estáticas e nítidas as paredes que acolhem esse corpo, compondo o
plano de fundo. Trata-se de um tempo que pousa e se fixa nas colagens midiáticas junto ao azul da
tinta que se descama das paredes. A imagem, mais do que indicar um corpo que se insinua para a
câmera, faz questão de deixar visível as marcas de múltiplas camadas do ambiente físico. São as
superfícies que entram em jogo, sendo a pele humana uma delas. As cores e texturas compõem o
olhar decrépito do artista, que tem o ruinoso e o áspero como fortes elementos de sua poética.
“É no corpo onde ressonam os acontecimentos do mundo”30 (VILELA, 2009, p.23).
Tentemos pensar agora em como este mundo, aqui buscado nas marcas da urbanidade, ressona
nesses corpos-fragmentos fotográficos. Vimos que as imagens de Brassaï e Weegee acolhem corpos
humanos em diálogo com o contexto narrativo dos lugares e este dá carga significativa às imagens -
Paris e suas prostitutas, Nova York e seus moribundos entoam visibilidades urbanas em que o
contexto e a criação de personagens agregam sentido. Os enquadramentos incompletos de
Moriyama e Rio Branco, por outro lado, dão carga sensória a recortes corporais e materiais, sendo a
localidade do registro prescindível. A visibilidade dos mundos urbanos é traçada por fragmentos
furtivos, não encadeados, nos quais ressoam superfícies de ambientes quaisquer. É o olho particular,
subjetivo31, que constrói as sensorialidades urbanas, sendo o quadro fotográfico um acúmulo
singular de múltiplas peles - a menina que corre sobre entulhos rumo ao escuro, vista por

30 Tradução de: “Es en el cuerpo donde resuenan los acontecimentos del mundo”.

31 Trazendo aqui o subjetivo conforme o pensamento de Agamben (2007, p.27): “Uma subjetividade produz-se onde o
ser vivo, ao encontrar a linguagem e pondo-se nela em jogo sem reservas, exibe em um gesto a própria irredutibilidade
a ela”.

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Moriyama; a mulher/prostituta que se move com seu lenço vermelho num quarto de paredes
deterioradas e cheio de colagens, de Rio Branco. Vem à tona a acidez nas contrastadas imagens do
fotógrafo japonês, enquanto a decrepitude ressalta nas imagens do artista brasileiro.
Essas imagens cuja presença humana é latente, em suas aproximações e diferenças, são
apenas alguns exemplos pinçados da obra fotográfica de cada artista. E até aqui, na busca de uma
assinatura do corpo humano na cidade, vale ressaltar um aspecto: pelo olho da câmera, Brassaï e
Weegee trazem corpos-personagens em cenas articuladas, enquanto Moriyama e Rio Branco
decompõem corpos-fragmentos do grande mosaico anônimo urbano. Nestes últimos, as prostitutas
ou moribundos, dentre outros personagens da rua, ressurgem em recortes oblíquos, furtivos e
obscuros. Certa inteireza de significado parece não importar a eles, radicalizando assim o gesto
fragmentário de olhar a cidade. Mutila-se não apenas a aparição corpórea, mas também sua
significância temporal para a cidade, constituída de passagens, desaparições, finitudes,
sucumbências. A imagem e o humano transcorrem no tempo. “É o correr da imagem que cria o
tempo, e o humano transcorre nesse deslizar da imagem sobre o ‘real’, fazendo dele veículo da
vida” (MIRANDA, 2008, p.12). Somos acometidos, pois, de aparições de corpos passageiros na
deslizante vida urbana. E é como se víssemos dilacerar a clareza humana das tipologias, não nos
desvencilhando totalmente delas, mas problematizando-as, borrando suas fronteiras.
O fascínio que tipos urbanos exerce na percepção visual da cidade, conforme destaca Florian
Ebner (2008), ainda ressoa em fotógrafos contemporâneos. “Os arquétipos da rua”, como intitula o
autor, são retrabalhados em imagens com condições técnicas ainda mais precisas e controladas
(como estúdios, por exemplo). Contudo, essa reaparição arquetípica, nas imagens de Rio Branco e
de Moriyama, acontece sem pose ou composição cênica do ambiente, levando a crer em apreensões
visuais desinteressadas, em contraste com a elaboração de portraits fotográficos, por exemplo. Não
se trata de cristalizar arquétipos, mas de inseri-los e dissolvê-los na dinâmica sem ordenação dos
outros corpos, matérias e superfícies mundanas.
Olhando a imagem de um mendigo dormindo, de Rio Branco, revisitamos o tema também
trabalhado por Brassaï. Semelhanças ressurgem: a roupa escura, as mãos sujas, a pele enrugada, são
alguns traços em comum. Reparamos, portanto, que o recorte de Rio Branco não mostra imponência
do retratado. Parede, roupa e cabelos, de tão escuros, contrastam apenas com a cor da pele e
mantêm o mendigo na sua condição ignóbil, sendo um fragmento dentre outras carcaças urbanas. O
mesmo não ocorre com o velho mendigo pelo olhar de Brassaï. Seu retrato, cuja expressão de

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austeridade o assemelha a uma figura da alta burguesia, distingue-o e o enaltece. De cartola,
sobretudo e segurando seu cajado, traduz-se de forma imponente para câmera. Não fossem detalhes
que atentamos ao nos aproximarmos da imagem, tais como a cartola amassada, as unhas sujas e o
vil cajado, o retrato poderia ser facilmente confundido com o de um homem de privilegiada escala
social. Ângulo, luz e enquadramento, acompanhados do vestuário, elevam a importância deste
personagem da rua. Ademais, lembrando os que dormem na rua, outra fotografia de Weegee dialoga
também, à diferença do mendigo de Brassaï e de Rio Branco, com os personagens encontrados ao
acaso. Em desalinho, corpos jovens e bem vestidos dormem na calçada e no banco de praça,
indicando a nudez sórdida das poses encontradas. Como se misturasse a condição do burguês com a
do mendigo, a imagem acena para a rua como esse palco de papéis sociais díspares e sobrepostos.
Noutra cena fotografada, atentamos para os detalhes dos personagens e cenário. No quarto
de bordel, a meretriz está cabisbaixa, com nádegas à mostra, sentada num bidê. Um homem
aparenta vestir as calças, sinalizando sua possível saída após o ato sexual. Cortinas floridas adornam
o quarto, assim como um espelho emoldurado sobre a pia. Uma toalha, sobre a mesma pia, foi ali
deixada, logo ao lado da meretriz, que se higieniza sobre o bidê. A composição visual logo nos
insere numa cena dos interiores profanos. Seguem erguidos as paredes, os espelhos, as cortinas, o
bidê, ao passo que caem moralmente os corpos. Essas porções íntimas da cidade, observadas pelo
olhar moderno de Brassaï, comunicam a lástima humana aliada aos submundos do prazer. Certo
glamour do ambiente se evade no corpo sentado e penoso da meretriz.
Por outro olhar, dessa vez na rua, num plano aberto, carros passam sobre o asfalto onde está
uma figura humana, aparentemente no ato da urina. Não sabemos de onde ela surgiu, nem por que
se despiu ali. Há, na liberdade corpórea e humana da rua, a abertura para atos não normativos, tal
como este de usar o espaço para fins excrementícios, não previstos. Nessa linha tênue entre um
corpo biológico e um social, a nudez entra como aspecto de nossa faceta animal, borrando as
fronteiras do moralmente correto. Numa rua que está movimentada próximo a uma faixa de
pedestres, Moriyama não nos define o contexto exato, nem de que personagem se trata, abrindo
espaço, nessa apreensão fortuita, para imaginarmos o que esse corpo seminu lança à observação.
Diz Bragança de Miranda (2008, p.12), sobre a dilatação/contração do tempo imagético, que toda
imagem, “obra de arte” ou de pensamento, “é sinal da contracção ou expansão desse espaço, da
presença do humano ou da sua ausência, mantendo-se tudo indecidido, mas procurando uma
solução”. É na junção de asfalto, veículos, trânsito, corpo, que, na imagem citada, o humano se

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refugia, diminuto em relação ao ambiente.
Esta mudança de olhar, do protagonista ao diminuto, do cênico ao encontrado ao acaso, traz
a assinatura dos corpos nas fotografias em distintas temporalidades e sensibilidades. Nesta
percepção, vale destacar que os tipos humanos “arquetípicos” não deixam de se fazer presentes. É o
olho do fotógrafo, contudo, que, no campo de possibilidades estéticas, elege ou não os rostos de sua
cidade como parte narrativa e expressiva. Superfícies, grãos, objetos, destroços e materiais
encontrados, em Daido e Miguel, são igualmente importantes na constituição sensória urbana.

Considerações finais
Dos submundos, bordéis, calçadas e asfaltos, surgem contatos com a vulnerabilidade
corpórea, indo de estéticas modernistas dos personagens de rua a fragmentos desconexos da carne
do mundo contemporâneo. O elo dessas imagens é o de uma urbanidade prenhe de desejos e riscos,
sugando e capturando corpos humanos – o corpo nu da meretriz (Brassaï e Rio Branco), o anônimo
seminu na rua, a menina que corre sobre entulhos (Moriyama), o mendigo (Brassaï e Rio Branco), o
bêbado na calçada (Weegee) são exemplos/figuras do que se torna vulnerável nas ruas. No solo das
cidades, a heterogeneidade dos corpos - vivos, mortos, jovens, velhos, acordados, dormindo,
famintos, devassos - passa, no cruzamento de olhares que aqui propomos, pela construção ficcional
fotográfica, recortada, fragmentada. A própria fotografia nos conduz, assim, a pensá-la como lugar
de expressão da degeneração corpórea e imagética da cidade, sem a necessária promessa de um
ideal único e homogêneo.
Revolvem-se personagens, condições sociais, atributos da linguagem fotográfica, e a textura
urbana que se evidencia traz essa sobreposição de presenças humanas. O acúmulo da carne humana
nas imagens, desde corpos nus e sedutores a corpos desprezíveis, propõe-nos um mosaico urbano de
alteridades. Se, por um lado, o prazer, o erótico habita a nudez feminina ou a faminta atração das
cenas de crime (nudez humanista e sórdida), por outro, uma atmosfera furtiva, ácida e decrépita de
corpos e vestígios atrai o olhar fotográfico de Rio Branco e Moriyama. Sem negar a história que
certos personagens já adquiriram na percepção citadina, ressalta-se que a sedução fotográfica por
um desmantelamento da representação corporal ganha intensidade nos fotógrafos contemporâneos
estudados.

Referências

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AGAMBEN, G. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.
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London: Tate Publishing, 2008.
MIRANDA, J. A. B. Corpo e imagem. Lisboa: Nova Vega, 2008.
MORIYAMA, D. Daido Moriyama: The world through my eyes. Skira: Milão, 2010.
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(orgs.). Maldicidade: marco zero. São Paulo: Imprensa Oficial e Museu da Imagem e do Som,
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WEEGEE. Naked city. Nova York: Da Capo Press, 1945.

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GOVERNAMENTALIDADE COMO PRÁTICA DE SUBMISSÃO DO CORPO À
BIOPOLÍTICA
Elinalva P. de Carvalho32

RESUMO:
Investiga a prática governamental definida por Michel Foucault como uma arte de governar, como
esse poder político se aperfeiçoou demonstrando que ele se caracteriza por práticas adquiridas sob
uma concepção da “razão de Estado” operando por meio de sistemas de submissão que aplicados ao
corpo funcionam como ferramentas de dominação e construção da espécie.
PALAVRAS-CHAVES: Governamentalidade. Corpo. Biopolítica. Razão de Estado.

INTRODUÇÃO

Em um primeiro momento busca-se conhecer os conceitos que permitiram a Michel Foucault


construir a noção de governamentalidade33 pautada na razão de Estado, quer dizer uma nova
racionalidade governamental, uma nova maneira de regulamentação política de submissão do corpo
para assim mantê-lo controlado “não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que
operem como se quer”. (FOUCAULT, 1999, p. 164).
Para entender a formação desse processo34 dispomos das análises de Michel Foucault para
melhor compreender o tema proposto. Apresentamos o conceito de biopolítica, governament e suas
derivadas traduções: governabilidade, governamentalidade, governamento. Traduções que se
encontram sob uma ótica foucaultiana, principalmente a palavra governamentalidade. Como suporte
teórico ao desenvolvimento deste artigo usaremos principalmente as seguintes obras: Em defesa da
sociedade 1975-1976, Segurança, território e população 1977-1978, O Nascimento da biopolítica
1978-1979, onde Foucault analisa o exercício de um poder sobre a vida, no qual por intermédio dos
dispositivos de segurança, controla a vida e a torna um interesse para o mercado. Nestes cursos
Michel Foucault nos remete para o entendimento da formação e desbloqueio das artes de governar,
fundamenta os conceitos de biopolítica, biopoder, a noção de população e a governamentalidade.
Assim, traçar a genealogia do vocábulo governament implica compreender o sentido em que foram

32 Graduanda do Curso de Licenciatura em Ciências Humanas/Sociologia pela Universidade Federal do Maranhão. E-


mail: elyyna04@hotmail.com. Orientador: Dr. Wandeílson Silva de Miranda.
33 No Curso no Collège de France, Segurança, território, população na aula 1º de Fevereiro de 1977-1978 que Michel
Foucault introduz o neologismo de governamentalidade.
34 Processo pelo qual o corpo passou a ser objeto das estratégias do poder sobre a vida.

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empregados na linguagem foucaultiana.
Esta noção implica em um poder que administra “coisas”. Foucault toma emprestado de
Guillaume de La Pierre a concepção de Governo como, “a correta disposição das coisas, das quais
alguém se encarrega para conduzi-las a um fim adequado” (FOUCAULT, 2008a, p. 127). “Coisas”
que para Foucault diz respeito tanto aos homens quanto os processos do meio, leva-se em conta as
variações da vida. Neste aspecto Michel Foucault se deteve a estudar os vários significados que a
própria palavra governar e governo apresentam. Governo pode ser entendido no sentido de
“dirigir”, era empregado tanto à ação do Estado quanto dos indivíduos, governo dos homens,
governo das crianças, governo das almas.
Na Modernidade a palavra governar em sentido estrito se restringiu necessariamente ao que
compete o Estado e adquire um valor essencialmente político, ou seja, referente às atividades que
foram pensadas e institucionalizadas para aumentar o alcance do poder do Estado sobre os
indivíduos, “um governo sob sua forma política” (FOUCAULT, 2008a, p. 119). Essa configuração
na análise de Foucault que se organiza sob as práticas de governo e refere-se à instituição, seria
substituído, segundo Alfredo Veiga-Neto (2002, p.19) pela palavra governamento para evitar
redundâncias sendo esta, uma “ação de governar”. Neste sentido sugere “que o vocábulo governo
(...) passe a ser substituído por governamento nos casos em que estiver sendo tratada a questão da
ação ou ato de governar”.
Foucault ao analisar sobre o funcionamento de um novo tipo de poder que se instituía sobre a
vida da população propõe um novo vocábulo, gouvernamentalité, até então não encontrado em
outras traduções. Neologismo que foi traduzido como governamentalidade, no entanto alguns
pesquisadores divergem quanto à tradução, pois não era conhecida nos campos do saber político ou
na literatura, nem se encontra dicionarizada nos principais dicionários da língua portuguesa.
A grafia no português já se encontrava como governabilidade e foi mantida para evitar
diferentes conceituações na etimologia e contexto empregados na língua portuguesa. Veiga-Neto
apresenta considerações em defesa do uso de governamentalidade, pois a partir das análises de
Foucault, governamentalidade compreende práticas que servem para designar um tipo de
engajamento do poder, ou seja, um conjunto de procedimentos no qual o poder governamental se
efetiva. Enquanto governabilidade era entendida no sentido de governável, ou seja, aquele que é
governado, que se deixa governar.
O intuito dessa reflexão a respeito da melhor maneira de proceder em relação a palavra

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governamentalidade é entender a ambiguidade em torno da tradução para o português, tomando as
palavras de Veiga-Neto (2002, p. 34) “Isso nada tem a ver com buscar os supostos e assim
chamados ‘verdadeiros significados’ das palavras; (...). Isso tem a ver, simplesmente, com a busca
de mais rigor e mais clareza para os nossos discursos”.
Trata-se, portanto, de uma nova reflexão política, onde esta configuração do poder dispõe de
técnicas, estratégias que entram em funcionamento com o desbloqueio das artes de governar ligada
como diz Foucault a economia política:
Em suma, a passagem de uma arte de governar para uma ciência política, de um regime
dominado pela estrutura de soberania para um regime dominado pelas técnicas de governo,
ocorre no século XVIII em torno da população e, por conseguinte, em torno da economia
política. (FOUCAULT apud VEIGA-NETO, 2002, p. 19)

Michel Foucault retrata toda uma genealogia do poder: do poder soberano ao poder
biopolítico para chegar ao atual “Estado moderno” onde o contexto político e econômico sofre uma
ruptura e emerge dentro desse novo panorama político o homem, que aparece como sujeito
biopolítico na modernidade, ou seja, objeto da própria política que opera agora na vida das
populações.
Nas palavras de Michel Foucault que retrata o desenvolvimento desse poder sob dois
processos onde o corpo passou para o limiar político. O primeiro trata-se de uma “anátomo-política
do corpo humano”, ou seja, refere-se às disciplinas vinculadas ao corpo. O segundo, uma política
voltada ao corpo no âmbito biológico, uma “biopolítica das populações” onde o Estado (ou
governamentalidade) passou a intervir:
A “anátomo-política” é o “momento histórico” das disciplinas em que:
Nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades,
nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo
mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. (FOUCAULT,
1999 p. 164)

O corpo no âmbito biológico significa:


A assunção da vida pelo poder: se vocês preferirem, uma tomada de poder sobre o
homem enquanto ser vivo, uma espécie de estatização do biológico ou, pelo menos,
uma certa inclinação que conduz ao que se poderia chamar de estatização do biológico.
(FOUCAULT, 2005, p. 28)

Foi a partir do século XVIII que o corpo passou a interessar como um mecanismo de
produção, ou seja, o corpo do indivíduo se encontra entrelaçado com o próprio poder, o corpo
imbuído numa perspectiva política. Dessa forma, um corpo que era submetido a suplícios e

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fabricado por meio de disciplinas foi inserido dentro da biopolítica que passou a regulamentar a
vida em seus mínimos detalhes, desde natalidade, longevidade e morbidade entrariam nos processos
de intervenção da política do Estado, pois é na população que se manifestaria esses fenômenos que
prejudicaria no funcionamento da vida e do poder, dessa forma a população se torna um “problema
político”.

BIOPOLÍTICA E A GOVERNAMENTALIDADE: UM NOVO HORIZONTE POLÍTICO

Foucault procurou compreender esse processo de ruptura e continuidade entre o poder


disciplinar e a biopolítica, por meio da máxima que remete ao antigo direito do soberano de “fazer
morrer ou de deixar viver” para uma nova configuração do poder “que não vai apagar o primeiro,
mas vai penetrá-lo, perpassá-lo, modificá-lo, e que vai ser um direito, ou melhor, um poder
exatamente inverso: poder de ‘fazer’ viver e de ‘deixar’ morrer”. (FOUCAULT, 1999. p. 287).
Poder esse que vai se caracterizar por uma especificidade: gira em torno da funcionalidade da vida.
Esse panorama histórico que conduz a vida para a esfera política analisado por Michel
Foucault nos remete a um discurso teórico sobre o que ele irá denominar de biopolítica. Essa nova
forma de governo concentra-se na vida como meio de estabelecer estratégias políticas e controle
cada vez mais preciso sobre os processos biológicos. Quando se identifica uma série de problemas
em torno da população, desde questões da saúde aos desafios econômicos, a política gira em torno
não simplesmente do “homem-corpo”, mas do “homem-vivo”, “ao homem ser vivo; no limite, se
vocês quiserem, ao homem-espécie”. (FOUCAULT, 2005, p. 289). Nesse momento na história, que
o conceito de biopolítica formulado por Foucault entra em foco:
É um conjunto de processos como a proporção dos nascimentos e dos óbitos, a taxa de
reprodução, a fecundidade de uma população, etc. São esses processos de natalidade, de
morbidade, de longevidade que, (...), constituíram, acho eu, os primeiros objetos de saber e
os primeiros alvos de controle dessa biopolítica. (...). É a observação dos procedimentos,
mais ou menos espontâneos, mais ou menos combinados, que eram efetivamente postos em
execução na população. (FOUCAULT, 2005, p. 290)

Dessa forma, tudo em torno da população torna-se alvo de intervenção da biopolítica que
inclui “a forma, a natureza, a extensão, a duração, a intensidade das doenças reinantes numa
população”. (FOUCAULT, 2005, p. 290). Para controlar tudo que prejudicasse, diminuísse ou
enfraquecesse o corpo, controlando qualquer fenômeno que ameaçasse a vida em sua totalidade “é a
natureza dos fenômenos que são levados em consideração”. (FOUCAULT. 2005. p. 293), como no
caso das doenças epidêmicas, endêmicas, insalubridade, esgotos e tudo que se manifesta dentro de

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um território, pois tratar desses fenômenos é garantir a boa saúde da população necessária como
força produtiva.
De acordo com essas considerações consta-se que a biopolítica é um processo que calcula e
entra nas esferas de saberes sobre a vida e sua manifestação a nível biológico e populacional, essa
política sobre a vida gerenciada por mecanismos e táticas:
Vai se tratar, sobretudo, é claro, de previsões, de estimativas estatísticas, de medições
globais; vai se tratar; igualmente, não de modificar tal fenômeno em especial, não tanto tal
indivíduo, (...), mas, essencialmente, de intervir no nível daquilo que são as determinações
desses fenômenos gerais, desses fenômenos no que eles têm de global. (FOUCAULT,
2005.p. 293)

Para manter a validade dessa intervenção biopolítica como um poder regulamentador Michel
Foucault identificou uma tecnologia política que dava respaldo às ações biopolíticas, ao qual
chamou de governamentalidade, deste modo Michel Foucault a entendeu como:
O conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, analises e reflexões, os
cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem especifica, embora muito
complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a
economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. Em
segundo lugar, por “governamentalidade” entendo a tendência, a linha de força que, em
todo o ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito, para a preeminência desse tipo de
poder que podemos chamar de “governo” sobre todos os outros – soberania, disciplina – e
que trouxe, por um lado, o desenvolvimento de toda uma série de aparelhos específicos de
governo e por outro lado, o desenvolvimento de toda uma serie de saberes. Enfim, por
“governamentalidade”, creio que se deveria entender o processo, ou antes, o resultado do
processo o Estado de justiça da Idade Média, que nos séculos XV e XVI se tornou o Estado
administrativo, viu-se pouco a pouco “governamentalizado”. (FOUCAULT. 2008a. p. 143-
144)

Dessa forma, sobre a governamentalidade proposta por Foucault implica uma série de
condições especificas que possibilitaram sua expansão para o meio onde se desenvolve a população.
Essas condições dizem respeito a todo o aparato estratégico, no qual a função política do poder foi a
gestão administrativa da própria vida.
Para o desenvolvimento dessa arte de governar a vida, apontamos em primeira instancia
técnicas de poder centradas no corpo individual, cujo objetivo era fazer com que os corpos se
tornassem dóceis, uteis e submissos.
Nesta sociedade do século XVIII, a qual Foucault denominou de sociedade disciplinar, onde
os mecanismos de controle se aplicavam a formatação das habilidades do corpo, em adestrar as
“multidões confusas” por meio das disciplinas. Tais disciplinas pretendiam “fabricar” sujeitos
obedientes para o sistema capitalista nascente, ou seja, estas técnicas disciplinares do exercício do
poder fizeram surgir a anátomo-política, que por sua vez age especificadamente sobre o corpo do

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indivíduo atuando nos mínimos detalhes do comportamento por meio das normas disciplinas
condizentes com cada instituição: escola, caserna, hospital, etc. As disciplinas não eram apenas
mecanismos de formatação para manter o corpo submisso, mas visava a construção de uma relação
política, onde o corpo humano, como diz Foucault, foi desarticulado e recomposto para
desempenhar o trabalho com a máxima eficácia.
Quando o poder sobre os indivíduos não se limitou a adestrar o corpo individual, mas sobre
um conjunto que constitui uma massa global, desenvolveu-se a segunda tecnologia de controle que
passou a agir sobre o corpo-espécie.
A biopolítica não anulou as outras formas de poder, mas as aperfeiçoou como uma técnica
política que visa regulamentar o comportamento da espécie humana. A natureza especifica desse
poder sobre a vida possibilitou uma maior inserção dos indivíduos ao controle biopolítico, ou seja,
um poder que se exerce sobre tudo que diz respeito a população: como natalidade, longevidade,
saúde, higiene, migração etc., pois conforme focaliza Foucault (2009, p. 152) estamos recobertos
“pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida”.

A AÇÃO GOVERNAMENTAL NO PENSAMENTO DE FOUCAULT

Com o surgimento do conceito de população, elemento fundamental que possibilitou a


emergência de estratégias biopolíticas, passou-se a desenvolver mecanismos de controle, forma pelo
qual determina-se a existência e os modos de vida agora submetidos aos aparelhos políticos
desenvolvidos pelo governo. A vida dos sujeitos exposta a riscos tornou-se o centro das
intervenções e das investidas do poder, ou seja, o poder investe na saúde, na higiene, no
saneamento, problemas estes que passam a ser central para a administração governamental. O
elemento central nessa discussão levantada por Foucault é a ampliação do poder de um cálculo
sobre corpos individuais, para um esquadrinhamento médico da população, ou seja, da própria
espécie.
Mas o que é governar? De acordo com Michel Foucault “Governar sobre o princípio da razão
de Estado35 é fazer que o Estado possa se tornar sólido e permanente, que possa se tornar rico, que
possa se tornar forte diante de tudo que possa destruí-lo”. (FOUCAULT, 2008b, p.06). Dessa
maneira o Estado vai se constituir nas bases da biopolítica, não um órgão hierarquizado, concebido
como o centro das estruturas do poder, como tencionavam as teorias jurídicas de soberania, mas

35 É precisamente uma prática, ou antes, uma racionalização de uma prática que vai se situar entre um Estado
apresentado como dado e um Estado apresentado como algo a se construir e a se edificar. Cf., Michel Foucault,
Nascimento da biopolítica, p.06.

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cujo aparelho estatal se vincula às relações de poder.
Nas palavras de Foucault (2008a, p. 138) “graças à percepção dos problemas específicos da
população (...) que o problema do governo pode enfim ser pensado, refletido e calculado fora do
marco jurídico da soberania”. A partir deste deslocamento, a condução, as ações dos sujeitos,
passam imediatamente a pertencer à gestão governamental, assim, é o próprio corpo dos sujeitos
(enquanto corpo-social) que adentra nos mecanismos do poder. Podemos então afirmar que a
biopolítica é uma ação de intervenção e melhoramento do organismo populacional agindo conforme
a governamentalidade para regulamentar os processos de intervenção da biopolítica, pois com a
introdução da governamentalidade o poder da biopolítica se amplia, não apenas investe, mas
principalmente intervém na vida. De acordo com Foucault:
Agindo diretamente sobre ela [população] por meio de campanhas ou também,
indiretamente, por meio de técnicas que vão permitir, por exemplo, estimular, sem que as
pessoas percebam muito, a taxa de natalidade, ou dirigindo nesta ou naquela região, para
determinada atividade, os fluxos de população. (FOUCAULT, 2008a, p. 140)

Sob este aspecto a ação governamental inclui uma inovação na arte de governar, uma técnica
biopolítica aplicada na gestão da sociedade visando o controle das populações. Foucault manteve
sua análise não na “prática governamental real, tal como se desenvolveu”, mas “quis estudar a arte
de governar, isto é, a maneira pensada de governar o melhor possível e também, ao mesmo tempo, a
reflexão sobre a melhor maneira possível de governar”. (FOUCAULT, 2008b, p. 04). Ou seja, as
estratégias desenvolvidas pelo poder, de como governar, como manter equilibrada as tecnologias do
poder que se exercem sobre os indivíduos, pois funcionam como instrumento de construção dos
sujeitos36.
Nessa perspectiva o corpo dentro das pretensões do Estado passa para uma nova dimensão
política, torna-se centro dos cuidados da administração do Estado. O indivíduo ganha importância
em termos econômicos, ou seja, interessa a utilidade desse corpo para manter o poder estatal.
Enquanto a ação governamental aumenta o poder político do Estado, o indivíduo-corpo diminui sua
força política, ou seja, para Foucault o indivíduo reduz-se a utilidade e docilidade em termos de
obediência biopolítica, pois “é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que
pode ser transformado e aperfeiçoado”. (FOUCAULT, 1999, p. 163). Dessa forma trata-se de uma
manipulação detalhada dos gestos e dos comportamentos. Essa política viria a ser o reflexo da

36 A questão das tecnologias do eu e os modos de existência será de grande importância para a fase dos estudos
foucaultianos desenvolvidos no final dos anos 70 até sua morte. Porém, como nossa análise restringe-se ao problema da
biopolítica não analisaremos tal problema levantado por Foucault.

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manipulação dos discursos no poder biopolítico, pois, esta dimensão da razão governamental
abrange diversas formas pelas quais os sujeitos seriam conduzidos à administração das tecnologias
políticas de governo.
Neste sentido, por arte de governar ou governamentalidade Foucault entende que seria um
conjunto de fatores ligados ao funcionamento do poder no qual dentro desse projeto mencionado
por Foucault (2008b, p. 145) vivemos na era da “governamentalidade”, uma forma de exercer o
poder, pois para ele não foi a sociedade que se tornou estatizada, mas o Estado que se
governamentalizou, modo pelo qual foi possível a sobrevivência do Estado, ou seja, só existe como
tal porque houve o desbloqueio das artes de governar tendo a população como objetivo do poder
político. Assim, segundo Foucault:

O grande crescimento demográfico do século XVIII (...), a necessidade de coordenação e


de integração ao aparato de produção e a urgência de controlá-lo, como mecanismos de
poder mais sofisticados e adequados, possibilitaram a emergência da “população” (com
variedades numéricas de espaço e cronologia, longevidade e saúde), que ela emergisse não
só como problema, mas como objeto de observação, análise, intervenção, modificação etc.
um projeto de tecnologia da população começa a ser desenhado: estimativas demográficas,
o cálculo de pirâmides etárias, diferentes expectativas de vida e níveis de mortalidade,
estudos das reciprocas relações entre crescimento da população e crescimento da riqueza,
(...). (FOUCAULT, 1980, p.171 apud MAIA)

Com a noção de governamentalidade a biopolítica passou a ser pensada em sua forma


racionalizada, isto é, uma racionalidade governamental que promove a vida, esta racionalidade
inclui uma reflexão no exercício das tecnologias de governo por meio do qual a biopolítica ampliou
seu domínio sobre os corpos.

CONCLUSÃO
As pesquisas do filósofo Michel Foucault sobre as configurações do poder e suas diferentes
problematizações o levaram a analisar, diante de uma ruptura no contexto político, o modo como o
poder se ativou, se estabeleceu e se estendeu sobre a vida dos indivíduos. A partir do século XVIII
Foucault identifica uma série de mecanismos que possibilitaram a ascensão desse poder no qual
também foi possível o desbloqueio da arte de governar os homens. Entre tais mecanismos, algo que
Foucault identificou como biopolítica, existe: uma prática governamental; um elemento condutor de
sua força e uma estratégia política que legitima o poder do Estado. Tal organização de governo é
para nós quase imperceptível, pois o poder tornou-se pulverizado, capilar, regendo a espécie
humana e encontrando na população seu objeto de produção e potencialização.

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A biopolítica na análise de Foucault implica uma gestão administrativa dos processos
biológicos de uma população que sob a ótica da governamentalidade organiza o campo social. E,
toda a cultura, se encontra nesse projeto governamental no qual criam expressões, constroem
identidades, pois o poder se apoia na vida dos sujeitos, portanto produz “regimes de verdades”.
Assim, sob essa abordagem, a governamentalidade não se vincula especificamente a estrutura
do Estado, mas é uma forma de exercer estrategicamente o poder e pela qual desenvolve novas
práticas que intervém nas manifestações vitais do comportamento do homem e assim conduz a
população numa rede de conexões políticas no qual a população é administrada politicamente pela
prática governamental.
Dessa forma, o controle governamental é possível diante de elementos como: o aparecimento
da população, os problemas observados em torno desse corpo populacional, doenças, natalidade,
mortalidade, etc., de algum modo as tecnologias de governo da biopolítica condicionam a vida a
seus propósitos. Assim, a ação governamental implica limitar a ação dos indivíduos por meio de
uma organização de saberes que vão interligar os sujeitos ao controle das táticas da
governamentalidade biopolítica, aquilo que vai manipular as vontades e induzir decisões, ou seja,
vivemos em sociedades que regulam, gerem nossa consciência, corrigem as condutas no corpo
social de modo a tecer uma verdadeira rede de controle sobre todos os fenômenos da vida.

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