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Lilian Cardoso1
Resumo
Esta pesquisa procura compreender o corpo como sujeito e instrumento para elaborar um estudo
sobre cultura, tendo como base o corpo Guarani Mbya, analisado por meio de suas técnicas
corporais para a transformação na busca de uma terra sem mal, ponto principal de sua cosmologia.
O corpo, por suas afecções, é elaborado aqui como produto e produtor da cultura.
O corpo, aqui nesta pesquisa, é utilizado para transportar-se para uma determinada cultura,
no caso, a dos guarani Mbya2, e também é instrumento para elaborar um estudo da cultura. A
utilização das técnicas corporais nos Mbya ajuda a compreender o corpo como um agente em
transformação, sendo o primeiro e o mais natural instrumento do ser humano; ou, mais exatamente,
o primeiro e mais natural objeto técnico e ao mesmo tempo meio técnico do ser humano (MAUSS,
1974: 217). Esta clássica de Marcel Mauss é síntese de como abordo as técnicas corporais nos
Mbya: o corpo sendo o instrumento natural utilizado pela vida social como suporte e meio de
expressão das representações coletivas. Transcendo a ideia de que o corpo é um objeto em relação à
cultura, “mas é o sujeito da cultura; em outras palavras, a base existencial da cultura” (CSORDAS,
2008: 102). A noção de corpo e pessoa Mbya é elo para entender sua experiência humana nas
diferentes esferas e dimensões, é o fundamento da base existencial de sua cultura.
O corpo Mbya está relacionado ao seu modo de viver, que denominam nhandereko3, por
meio de técnicas corporais geradas na tradição oral, técnicas que buscam por um contato com as
divindades, um eterno caminhar ou nomadismo – pela busca de uma terra sem mal, uma relação
benéfica com a natureza e por rezas - entre canto e dança, para o fortalecimento de seu modo de
viver tradicional, com intuito de não serem contaminados pela cultura do juruá4. Assim, as técnicas
1 Bolsista CNPQ na Fundação Escola de Sociologia e Politica de São Paulo - FESPSP.
Email: lilianganzerlacardoso@gmail.com
2 Os Mbyá são um subgrupo da nação Guarani que, junto com Kaiowá e Nhandéva, compõem uma importante
família do tronco Tupi. Estendem-se por Paraguai, Brasil, Argentina e Uruguai. Cabe lembrar que esta divisão dos
Guarani - em três grupos - aparece a partir de Egon Shaden (1974).
3 Nhandereko é tradução por “nosso modo de viver”, compreende a “cultura” Mbya.
4 Juruá é como chamam os não indígenas. Segundo Maria Inês Ladeira (1992) não se sabe quando este termo
começou a ser utilizado. Sua tradição literal e, portanto, seu sentido original, era “boca com cabelo”, em referência
aos pêlos faciais dos colonizadores europeus.
A experiência do intercambio de afetos, por meio do corpo, quando se entende que este é
sujeito da cultura, é vista aqui como uma “faculdade de intercambiar experiências” (Benjamim,
1994), um transporte entre culturas realizado pelo corpo e suas técnicas, pois “vislumbro que tudo
retorna ao corpo, pois é nele que inscrevemos o mundo” (FERREIRA, 2007: 27).
“Uma” – primeira – noção de corpo guarani
Segundo o mito de criação do mundo, que nos contam os Mbya e pode também ser acessado
por uma literatura poética de Cadogan (1959), vivemos em uma terra ruim (yvy vai) criada após um
5 Opy pode ser traduzido como “casa de reza”, é o espaço físico e simbólico para realizar rezas, por meio de canto e
dança, e também para reuniões de interesse político e social da comunidade Mbya.
6 Estive com frequência nas terras indígenas (TIs) da cidade de São Paulo: TI Barragem/Krukutu, localizada nos
subdistritos de Parelheiros e de Marsilac, que atualmente conta com seis aldeamentos (Tenondé Porã, Krukutu,
Kalipety, Guyrapaju, Brilho do Sol e Yrexakã); e TI Jaragua, localizada no subdistrito do Jaragua, que conta com
três aldeamentos (Pyau, Ytu e Itakupe)
A busca por esta terra sem mal define a noção de corpo Mbya, é esta busca que define a relação de
seus corpos com a natureza, de seus corpos com o modo de vida e de seus corpos com seus próprios
9 Nhanderu é uma forma de nomear o criador do mundo. Também pode ser chamado de Nhanderu Papa Tenonde –
nosso pai último (Cadogan, 1959), Nhanderu Guaxu – nosso grande pai, Nhanderu Ete – nosso pai verdadeiro,
Nhanderu Yma – nosso pai primordial (Ladeira, 1992), entre outras possibilidades de nomeação para a(s)
divindade(s)
É como se seus corpos fossem guardiões de sua sabedoria ancestral, que acessa uma
memória coletiva de sua história e trajetória. Visto que o corpo, para os guarani, assim como para
outros grupos ameríndios, não se resume ao corpo físico, mas a totalidade da pessoa, este é um
lócus de sobrevivência de sua cultura. Por serem corpos passíveis de transformações, estão sendo
performados de acordo com as possibilidades que esta terra ruim dispõe, são um conjunto de
afecções performadas nesta contemporaneidade que pressupõe o intenso contato com a cultura não
indígena, mas mesmo assim ainda caminham – simbolicamente – para a terra sem mal. Apesar de
não realizarem mais seu nomadismo profético no espaço geográfico, inscreveram um espaço
corporal que ainda busca o aguyje
O corpo Mbya como sujeito de sua cultura mostra transformações tradicionais e
Bibliografia
BENJAMIM, Walter. Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
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Museologia e Patrimônio. Vol. I. Nº. 1. Rio de Janeiro: MAST, 2008.
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USP, 1959.
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Guarani. São Paulo: PUC, 2001.
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FERREIRA, Francirosy. Entre arabescos, luas e tâmaras- performances islâmicas na cidade de
São Paulo. São Paulo: USP, 2007.
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GENNEP, Arnold van. Os ritos de passagem. Petrópolis. Vozes: 2011.
LADEIRA, Maria Inês. Mbya Tekoa: o nosso lugar. São Paulo em Perspectiva,São Paulo: Seade,
v.3, n.4, 1989.
________. O caminhar sob a luz: O território Mbyá a beira do oceano. São Paulo: PUC, 1992.
________. “Yvy marãey; renovar o eterno”. In: Suplemento Antropológico. V. 34, 2. Assunção,
Resumo
Essa pesquisa transdisciplinar, visa resgatar a importância do corpo e suas simbolizações pré-
verbais e pretende compreender as idiossincrasias da expressividade tradicional social versus a
expressividade subjetiva individual, examinando duas cenas em que a dança aparece no filme
Lavoura Arcaica de Luiz Fernando Carvalho, articulando-se o arquétipo feminino de Ninfa de Aby
Warburg (2015) ao de Pombagira da tradição afro-brasileira.
Este paper se debruça sobre o estudo da dança conforme utilizada no filme Lavoura Arcaica
de Luiz Fernando Carvalho (2001). Baseado no livro de mesmo nome de Raduan Nassar (1989)
tem-se a dança como expressão de desejo e de liberdade do corpo, mostrada como ápice da trama,
de 2h39 à 2h45, em um espasmo de alegria e agonia. Surge apresentando a pulsão que busca
expressar-se, em uma investida psíquica para trazer à consciência os fatores fundamentais da
existência ressaltada pela câmera lenta no final, em contraponto à dança ritual, comunal, ancestral,
exposta dos 24 minutos e 20 segundos a 33 minutos e 06 segundos. O corpo produz imagens que
trazem questões pré-verbais e a figura aqui brota sob o ponto de vista não apenas material, mas
qualitativamente no seu potencial simbólico e histórico como representação, formando novas
harmonias que excitam a fantasia e o lirismo. Unindo ancestralidade e novas formulações, chega-se
à possibilidade da mudança que é realizada pelo indivíduo da experiência, que conhece a tradição e
permite-a interferir no seu presente (BENJAMIN,1987,p.14).
Referências Bibliográficas
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<http://alnguarabe.blogspot.com.br/2010/08/dabke-V>. Acessado em: 13 de junho de 2015.
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LABAN, Rudolf. Domínio do movimento. São Paulo: Summus, 1978.
LAVOURA ARCAICA. Direção: Luiz Fernando Guimarães. Produção: VideoFilmes, 2001.
Duração: 163 minutos.
LELOUP, Jean-Yves. O corpo e seus símbolos. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2012.
Resumo
O presente artigo propõe-se a fazer o entrelaçamento entre dança e ancestralidade africana na
perspectiva de um corpo divino-profano. A partir do cenário do espetáculo de dança contemporânea
“Negrume”, produzido pela Cia de Dança Balé Baião de Itapipoca-CE, faremos uma análise desse
corpo negro contemporâneo, ritualizado e atravessado por suas memórias ancestrais. Esta pesquisa é
de natureza qualitativa. As discussões apresentadas sinalizam uma relação estreita entre a dança
desenvolvida na companhia em questão e elementos da ancestralidade africana no Brasil.
O presente texto emerge de uma série de reflexões acerca das relações entre corpo, dança e
ancestralidade africana. Saberes ancestrais gravados na memória de um povo por meio da
linguagem da Dança afro-brasileira contemporânea que se ritualiza num corpo plural e transversal,
divino-profano, um campo de constituição cultural e identitária, “um portal, que, simultaneamente,
inscreve, significa e é significado, sendo projetado como continente e conteúdo, local, ambiente e
veículo da memória” (MARTINS, 2002, p.89).
Inicialmente fizemos um levantamento bibliográfico de autores que nos trouxessem
argumentos teóricos que solidificassem nossa pesquisa. Além das pesquisas bibliográficas
consideramos também como método relevante, experiência pessoal/prática na convivência com uma
Companhia de Dança Contemporânea da cidade de ItapipocaCE através de um espetáculo cênico de
dança chamado: “Negrume”. Por meio de vivências, entrevistas semiestrutradas e observação
participante, conseguimos coletar dados relevantes para investigação da pesquisa.
Desta forma, pretende-se discutir as relações existentes entre dança e ancestralidade afro-
brasileira a partir de um corpo-plural na contemporaneidade no cenário do espetáculo cênico
Negrume. Esta pesquisa é de natureza qualitativa e tem como sujeitos os artistas bailarinos da Cia.
Balé Baião de Dança Contemporânea de Itapipoca-CE. A questão central surgiu da necessidade de
reflexão sobre esse modo de pensar-fazer Dança Contemporânea no Ceará e suas experiências com
13 Mestrando – Unilab, e-mail: rinardomesquita@yahoo.com.br.
14Professor Doutor pela UNILAB, email: luis.tomas@unilab.edu.br.
Em Viana (2005) o corpo possui uma respiração interna que, por meio da dança, consegue
“responder à exigência do espírito artístico”. (p.73). O autor coloca que todo movimento gera um
campo de força energética capaz de estabelecer contato conosco e com o mundo, segundo Viana
(2005, p.79) “(...) somos o centro do espaço que nos cerca e nele existimos como indivíduos, como
pessoas, como seres humanos, estabelecendo nossa relação com o mundo”. A arte, e dessa forma a
dança, é uma troca.
Nas danças africanas, por exemplo, vemos essa troca de forma muito mais aprofundada nas
relações sociais. Para Domingos (2010), os elementos da cooperação, da corporeidade, da
ancestralidade, da dança, da religiosidade estão simbioticamente imbricados como valores e
princípios éticos da cosmovisão africana. Tudo está interligado como numa grande teia de
relações, dança-se para a morte, para a vida, para o trabalho. Na tradição africana
Abordar o tema Dança Contemporânea, requer, antes de qualquer coisa, fazemos uma
análise do termo contemporâneo. E, como a dança, dentro de um sistema maior de arte faz parte
dessa dimensão da contemporaneidade?
O conceito de contemporaneidade segundo Agamben (2012) está relacionado a um
deslocamento de tempo, pois é ao mesmo tempo em que se pertence a um tempo, distancia-se do
mesmo, num processo de anacronismo e dissociação constantes. “(...) quem percebe no mais
moderno e recente os índices e as assinaturas do arcaico pode dele ser contemporâneo. Arcaico
significa: próximo da arké, isto é, da origem. Mas a origem não está situada apenas num passado
cronológico”. (AGAMBEN, 2012, p. 69).
Ou seja, é um movimento a um só tempo de ruptura e continuação. Para Cauquelin (2005)
há uma bifurcação do termo contemporaneidade com relação à arte contemporânea e arte atual. Para
autora, uma arte atual seria àquela que está numa localização temporal – presente, sem maiores
preocupações em distinguir tendências artísticas. Já a arte contemporânea designa o misturado,
heterogêneo, um retorno às formas artísticas experimentadas, uma lógica de organizar um tempo
suspenso não linear. Um conjunto de técnicas, estilos e tendências diversas.
Neste sentido, pensar a dança contemporânea, não é tão simples assim. Para Bardawil (2011,
p.3) “na contemporaneidade, tudo habita em tudo, tudo se contagia de tudo. Aceleração e excesso
são os signos atuais do cotidiano”. Ou seja, as novas formas de pensamento e de vivência que nos
atravessa influenciam sobremaneira nosso fazer-pensar dança hoje. Para a autora não se pode
perguntar o que seja a dança contemporânea, mas o que ela pode. Ela não é um estilo, mas um
modo de organizar o pensamento em dança. Tomazzoni (2006) estabelece alguns fatores
primordiais para se compreender a contemporaneidade na dança: o corpo como dramaturgia
singular com outros vocabulários e sintaxes, movimento e corpo sem padrões definidos, o
pensamento está no corpo e o corpo se faz pensamento, uma maneira de pensar a dança. Esses
quatro fatores nos ajudam a compreender melhor a produção em dança contemporânea.
A cena contemporânea, neste sentido, permite múltiplos olhares, múltiplas leituras. Pelas
A dança contemporânea apresenta, à primeira vista, o corpo sob dois aspectos importantes.
De um lado, o corpo que dança engaja-se numa experiência corporal ‘extra-habitual’, não
comum ao corpo. (...) De outro lado, é trabalhado nele mesmo que o corpo deve dançar. (...)
pensar o corpo não mais através ‘do que ele permite’, mas ‘do que ele pode’.
O corpo plural aqui pensado refere-se a um corpo que agrega em si mesmo, uma diversidade
de afetações e experimentações corporais. Corpos desterritorializados, nômades, criativos, centros
de pesquisa e experimentação. Portanto, a dança contemporânea trás em si diferentes estilos,
técnicas, procedimentos, abordagens e movimentos, tudo a serviço de pensar esse corpo enquanto
ator principal do processo de construção da cena. Como nos afirma Gadelha (2010, p.20)
Como conjunto das artes contemporâneas, esta dança segue uma referência auto-reflexiva,
inscrita em sua própria prática de dança; ou seja, em sua maneira de praticar o corpo na
dança. Ela transmuta a arte coreográfica notadamente porque reconsidera sob um angulo
radicalmente novo seu principal ator: o corpo que dança. O corpo, nessa nova prática, é
considerado como jamais ele havia sido antes.
Há uma pluralidade de contribuições advindas de outras artes que constitui o caráter híbrido
da dança contemporânea: o teatro, a pintura, as artes visuais, a música, as artes maciais, a literatura,
o cinema. Neste sentido, ela não precisa estar presa a uma forma, um estilo, uma técnica específica
de produção. Ela desestabiliza velhos conceitos para criar outras possibilidades de pensamento.
Como nos diz Bezerra e Porpino (2007, p.283), “a dança contemporânea problematiza, desestabiliza
e desconstrói velhos conceitos para criar novos sentidos. Acrescentando-lhes a possibilidade de
novas leituras”. Por isso, ela não cabe em uma definição única, pois abarca diferentes poéticas em
dança, para gerar novas formas de pensamento.
Esse novo pensamento é emancipador, autônomo, singular, inclusivo e coletivo.
Diferentemente do balé clássico, com seus corpos rígidos, presos a regras e técnicas, seguidas por
uma orientação exterior, a dança contemporânea é marcada pela liberdade, pela espontaneidade,
pelo diálogo, pela quebra de sincronia, pela incorporação do silêncio ou da música e por uma
variedade de situações comprometidas com um corpo-dança emancipado, livre, “capaz de contribuir
para a formação humana e para o desenvolvimento da expressão crítica e criativa”. (ASSUMPÇÃO,
1 Ancestralidade e Dança
O fundamento sociológico da ancestralidade está na relação com o outro, na ética das trocas
e convívio com as diferenças. E esse diferente de mim, segundo Pardo (1996), é alguém
absolutamente diferente, sem relação alguma com o que possa ser semelhante comigo, um outro que
não pode jamais ser eu mesmo.
A dança entra nesta dimensão da ancestralidade africana enquanto elemento fundamental
para formação e reconhecimento de uma forma singular de ser e viver. “...nas danças de possessão...
o próprio corpo se torna a cena ou espaço da dança” (GIL, 2013, p.47). No pensamento de Viana
(2005), há uma forte relação entre pensamento e dança, pois para ele a pessoa que dança deve
atribuir sentido e estar inteiro no ato de dançar.
Para Oliveira (2009, p.4) ancestralidade é vista como uma epistemologia, um modo próprio
de organizar a vida, um princípio e uma lógica, “ela é uma epistemologia que nasce do movimento,
da vibração, do acontecimento... é um signo que perpassa as manifestações culturais dos negros no
Brasil”. Situamos ancestralidade aqui na mesma visão de Oliveira (2009, p.2) quando afirma que “ a
cultura da ancestralidade pode ser encontrada em qualquer parte do planeta, mas por motivos
históricos e ideológicos, fiz opção pela ancestralidade africana e pelo recorte de pensar a África que
interessa ao Brasil... pensada a partir da diáspora”.
Na experiência dessa ancestralidade africana o sagrado convive com o profano a partir da
realidade corporal. É o que nos diz Sodré (1988, p.31) quando afirma que “o indivíduo é assim,
duplo: parte localiza-se no espaço invisível (orun) e parte, no corpo visível”. Convive com
polaridades, bem/ mal, feminino/masculino, divino/profano, realidades justapostas vividas e
experienciadas numa corporalidade e corporeidade dançante. Os deuses e ancestrais das religiões de
matriz africana são humanos e divinos, a experiência do sagrado se dá na festa, nos ritos e na
relação integrativa com a terra, com os elementos da natureza, os vegetais, minerais, águas e no
homem/mulher.
A obra de arte Negrume, produzida pelo Balé Baião surge dentro da atmosfera de uma
cidade povoada de mitos, crenças, procissões, maracatus, terreiros de umbanda e candomblé, rodas
de torém – dança indígena-, samba, festas populares, por isso incorpora elementos ritualísticos e
profanos. Para o Coreógrafo do Negrume
Muito mais que evocar códigos ou paços que nascem de danças tradicionais negras, o foco
da obra é constituir corpos que manifestam as ancestralidades e contemporaneidades afro-
mestiças, suas implicações históricas, ritualísticas, sociais e culturais, fugindo dos
arquétipos de “Negro Vitima” e “Sofredor” para configurar outros corpos negros, outras
presenças, outros estados corporais, outras histórias e memórias, em especial a beleza
negra, a resistência quilombola e a relação com as divindades da natureza.
A poética se insere durante todo o percurso do espetáculo, com sons e falas que
evocam um corpo-encantamento, um corpo-ritual, plural e cosmológico, ligado a tudo e todos,
colaborando com a idéia de Breton (2013, p.37) quando afirma que “(...) o corpo e o cosmos estão
Considerações finais
Pensar numa poética corporal a partir de matrizes africanas e afro brasileiras é trazer para a
cena as diversas corporeidades brasileiras vivenciadas nos terreiros, nas diversas expressões da
manifestação do sagrado na contemporaneidade.
A dança proposta no espetáculo Negrume se apodera de elementos da ancestralidade
africana e afro brasileira na medida em que evoca, no corpo e pelo corpo, uma simbiose de
movimentos e gestos ancestrais encontradas nos animais, nas plantas, nos vegetais e nas danças dos
orixás- Candomblé e dos caboclos - Umbanda. Eles acionam outros estados corporais, outras
histórias, outras memórias, legitimando, dessa forma, a vivência das culturas de arké, na medida em
que convive com várias temporalidades, indo às origens e ressignificando-as na contemporaneidade.
Nas influências com a dança dos orixás e dos cablocos, nos terreiros de Umbanda e
Candomblé, busca um corpo-limiar que transita por um corpo ancestral e contemporâneo. Pelos
processos criativos em dança afro-brasileira contemporânea os bailarinos intérpretes criadores
buscam uma identificação e um reconhecimento da natureza identitária étnico-racial de sua
existência.
Corpo passa a ser território ocupado de existências reinventadas, cuja beleza e potência
encontra-se em suas performances e criações diárias. Pelo caráter autônomo, singular e poético,
cada bailarino e bailarina vão constituindo seu jeito próprio de estar no mundo. Um corpo-arte,
inventivo, criativo, sensível e afetivo. Por meio desse corpo, elementos da ancestralidade africana
vão sendo identificados no processo de produção artística, seja por meio das danças das religiões de
matriz africana, pelo senso de coletividade, pela respeito à diversidade, à ligação com o cosmo.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? E outros ensaios; tradutor Vinícius Nicastro
Honesko. – Chapecó, SC: Argos, 2009. 92p.
ASSUMPÇÃO, Andréa Chistina Rufino. O balé clássico e a dança contemporânea na formação
humana: caminhos para emancipação. In pensar a prática n.6, 1-19, jun/jul 2002-2003.
Resumo
Este artigo versa sobre resultados parciais de minha pesquisa de mestrado, onde dialoguei com
autores dos Estudos Culturais, da Antropologia da Performance e das Artes/Dança. Busquei
observar a Festa do Coco em acontecimento, e principalmente a brincadeira do coco de roda, das
comunidades quilombolas Ipiranga e Gurugi, na Paraíba, para compreender onde se encontram as
potências da festa e como são realizadas as negociações neste lugar.
15 Mestranda em Estudos Culturais na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH
– USP) sob a orientação de Valéria Cazetta. Email: peticiac@gmail.com.
Referências Bibliográficas
Livros:
LABAN, Rudolf. O Dominio do Movimento. São Paulo: Summus, 1978.
LOUPPE, Laurence. Poética da Dança Contemporânea. Tradução Rute Costa. Lisboa: Orfeu
Negro, 2012.
MASSEY, Dorren B. Pelo Espaço: Uma Nova Politica da Espacialidade. Tradução Hilda Pareto
Maciel e Rogério Haesbaert. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 21ª.ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
PELBART, Peter Pál. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: N-1
Edições, 2013.
RANCIÉRE, Jacques. O Espectador Emancipado. Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2012.
Resumo
O presente trabalho objetiva estudar o lugar do corpo no alcoolismo a partir de uma visão
psicanalítica. Para isso, será feito uma análise do que Bill Wilson, sendo ele um dos fundadores da
irmandade Alcoólicos Anônimos, aborda sobre a relação que o mesmo teve com o álcool e
consequentemente a implicação desde ao seu corpo. A análise de trechos da fala da Bill se deu
através do livro Alcoólicos Anônimos, especificamente o capítulo denominado "A história de Bill".
O presente trabalho faz parte dos resultados parciais do projeto de Iniciação Científica
intitulado: Alteridade, Sobriedade e Espiritualidade Entre Membros de Alcoólicos Anônimos em
Juazeiro do Norte-CE: Um Estudo Psicanalítico, que objetiva analisar o laço grupal e sua função na
manutenção da sobriedade entre alcoólicos anônimos na cidade de Juazeiro do Norte-CE. A
relevância do mesmo consiste em compreender o funcionamento dos grupos de ajuda mútua a partir
da perspectiva psicanalítica e sua contribuição para a saúde coletiva.
Este trabalho objetiva estudar a concepção do corpo do alcoolista a partir de uma visão
psicanalítica. Para isso, será feito uma análise do que Bill Wilson aborda sobre a relação que o
mesmo teve com o álcool e consequentemente a implicação desde ao seu corpo. A análise de
trechos da fala da Bill se dará através do livro Alcoólicos Anônimos (2010) especificamente o
capítulo denominado "A história de Bill".
Vale destacar que a expressão "Corpo em Sacrifício" é abordado por Gilles Deleuze, em sua
entrevista denominada "O Abecedário de Gilles Deleuze" cedida pelo o mesmo a Claire Parnet, ele
destaca que atitudes como beber, se drogar são atitudes bem sacrificais, visto que se oferece o corpo
em sacrifício. Deleuze ressalta que se bebe porque há algo forte demais, que não se poderia suportar
sem o álcool, com isso, a questão não é suportar o álcool, é, talvez, o que se acredita ver, sentir,
18 FREUD, Sigmund. Histeria. In: FREUD, Sigmund (1888). Edição Standard Brasileira das Obras Completas de
Sigmund Freud. Vol. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
19 FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer. In Freud, Sigmund (1920) : Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud. Vol. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à de-
cadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como
20 LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
Sendo o corpo umas das fontes de sofrimento resultante do mal-estar na civilização, vale
destacar que estudar o corpo em psicanálise é estudar o corpo pulsional. Após o texto Além do
Princípio do Prazer (1920) a teoria freudiana ampliou, progressivamente a compreensão do corpo
para além da lógica da representação. O corpo é, portanto, palco e personagem das relações
complexas que se estabelecem entre o psíquico e o somático.
Desta forma, o corpo aparece como sendo habitado pela pulsão, a pulsão sendo aquela que
alimenta o corpo libidinal. A ênfase se coloca, portanto, na característica de ser a pulsão um
representante psíquico das excitações que se originam no interior do corpo (PIMENTA, 2007).
Sendo assim, de acordo com Santiago (2001) o sujeito para psicanálise é alguém que busca
constantemente um equilíbrio através da realização da pulsão e qualquer coisa que cause desprazer
é reconhecido como algo a ser abolido, pois o sujeito é um caçador infatigável de prazer e renunciar
a isto é de grande custo. Portanto, o prazer é uma forma de suprimir o desprazer e as experiências
dolorosas caem para o sujeito como uma renúncia ao prazer. Então, de um lado o homem quer
economizar o sofrimento e desprazer, e, ao mesmo tempo, gozar intensamente.
No entanto, Freud (1996) afirma ser quase impossível vivermos a vida como ela se
apresenta, em função das diversas dificuldades, decepções e exigências que a cultura impõe. Nessa
direção, ele aponta sete saídas possíveis ao mal-estar, soluções inventadas pelos sujeitos para se
proteger da dor de existir inerente ao mal-estar estrutural da civilização. Inclui o amor, a religião, a
atividade científica, a arte, o delírio, a sublimação e os narcóticos como forma de amenizar o mal-
estar.
Assim, Freud (1996) localiza a intoxicação como a solução mais eficaz ao mal-estar, pois,
ao influir sobre o organismo e alterar a química deste, promove efeitos no corpo. A droga ameniza
os efeitos da exigência civilizatória. Porém o uso de drogas como uma resposta, que objetiva
reduzir o mal-estar, tem seus prós e contras. Apesar de causar prazer, apresenta um grande perigo,
pois pode levar ao afastamento da realidade e ao isolamento.
Sendo assim, o alcoolista encontra no álcool a química que tampona sua falta, o gozo que
lhe parece eterno enquanto dura o efeito da droga. A sensação de plenitude cessa quando finda a
ação química da mesma. O mal estar aparece e com ele a ânsia por mais álcool, recomeçando o
Para se iniciar a análise dos trechos da fala de Bill no capítulo denominado "A história de
Bill", o mesmo destaca: "...a bebida com o tempo deixou de ser um prazer: tornou-se uma
necessidade...tudo ao meu redor era areia movediça. Eu havia encontrado um adversário
imbatível. Eu fora dominado. O álcool era meu senhor" (ALCOÓLICOS ANÔNIMOS, p.40, 2010)
este trecho da fala de Bill relacionando com o que a psicanálise aborda sobre a relação do alcoolista
com o álcool pode ser visto como a busca pelo gozo, visto que o gozo refere-se também a situações
de excesso tendo o corpo como lugar de manifestação. O desejo, enquanto falta, é o que faz barrar o
gozo promovendo o advento do sujeito. Seguindo Freud, Lacan ressalta que a bebida pode servir ao
alcoolista como objeto de satisfação, daí sua fidelidade ao álcool em detrimento da parceira
amorosa (LACAN, 1998).
21 ALCÓOLICOS ANÔNIMOS. São Paulo: JUNAAB, 2010. (publicação original: 1939). P.11.
Lins (2013) destaca que não é a droga que faz o toxicômano, nem o álcool que faz o
alcoólatra. A complexidade das práticas compulsivas de dependência, que engajam muitas vezes
prejuízos corporais, significa um sofrimento que serve do corpo e das drogas para expor. De fato,
tanto o toxicômano quanto o alcoólatra, ambos como singularidades diferenciáveis, sentem-se
muitas vezes encurralados num estigma social que chama equivoco voluntario, a saber, o
toxicômano e o alcoólatra não produzem a droga e o álcool, mas o inverso acontece, o mercado é
que produz.
Desta forma, é notório que o uso de álcool causa uma implicação direta ao corpo do sujeito
alcoolista, visto que o gozo sendo barrado no mesmo e a satisfação em sua plenitude não sendo
alcançada gera sofrimento ao sujeito, que cada vez mais faz uso do álcool na tentativa de prazer
pleno. Com isso, os danos vão tanto em um sentido patológico assim como na alteração do
funcionamento do aparelho homeostático. Visto que a cronificação alcoólica leva o etilista a uma
espécie de esgotamento de sua possibilidade de diferença entre desejo e demanda, tornando-se puro
objeto de uma compulsão insensata de demanda alcoólica.
Referências Bibliográficas
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Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
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Jorge Zahar, 2001.
Resumo
Este trabalho tem o objetivo de compreender a relação entre corpo, cidade e fotografia através da
análise de imagens de quatro artistas-fotógrafos: Brassaï, Weegee, Daido Moriyama e Miguel Rio
Branco. Estas imagens se referem ao corpo em distintas relações com o urbano - seja nos
submundos, nas ruas, nos recantos da diversão noturna e da boêmia. Esses espaços trazem à tona
tipos humanos reelaborados pelas fotografias, tendo, como figuras-chave, a prostituta, o
boêmio/bêbado e o mendigo. Um mosaico imagético de alteridades é sugerido, indo de aparições de
personagens a fragmentos visuais de corpos anônimos.
Introdução
A cidade acolhe as marcas, expressões, desejos e experiências dos seus transeuntes. Essa
mesma cidade apresenta seus diversos personagens, inscrições e texturas, sugerindo um infindável
conjunto imagético no qual a fotografia vem atuar. Dirigimo-nos, neste texto, a algumas imagens do
corpo humano que comparecem nas propostas visuais de quatro artistas-fotógrafos estudados -
Brassaï, Weegee, Daido Moriyama e Miguel Rio Branco -, com o fim de entrever de que forma a
carnalidade da cidade é elaborada, ou melhor, reinventada nos recortes fotográficos.
Compreendemos essa ideia de carnalidade relacionada não apenas com o corpo humano vivo e
íntegro, mas também com aqueles atingidos pela ação do tempo e suas corrosões, pela calamidade e
a morte. Nesse entendimento, sob quatro pontos de vista fotográficos, a nudez corpórea se
transmuta em olhares estéticos heterogêneos.
As imagens sobre as quais discorremos aqui fazem referência ao corpo em distintas relações
com o urbano - seja nos submundos, nas ruas percorridas, nos recantos da diversão noturna e da
boêmia. Interessa-nos pensar os diálogos que essas imagens travam entre a pele do homem e a das
ruas e quais propostas conceituais surgem desse encontro. Sem buscar enaltecer o corpo humano em
detrimento das outras formas de vida, destacamos a importância da constituição perceptiva das
imagens, dependente de um corpo pensante - podendo ser, no ato fotográfico, o do próprio fotógrafo
22 Doutora em Comunicação e Cultura pela ECO - UFRJ; Professora de Comunicação Social da Faculdade Cearense –
FaC. E-mail: elaneabreu@gmail.com.
23 Tradução de: Photography - whether due to the remnants of a humanist tradition of allocating a name and role to ev-
ery individual in society, or to photography’s empathy as a medium that always incorporates the other - has brought to-
gether an imaginary ensemble of characters without which it would be impossible to visualise the urban spectacle. In
this respect, photography has contributed, both in quantity and in quality, to the legacy of painting and its portrayal of
character types. As a pictorial medium, photography also provides a link to the performative arts - in the street as in the
studio.
24Um exemplo representativo quanto aos tipos humanos na fotografia é o trabalho do alemão August Sander, que
registrou distintos tipos sociais em séries de retratos no século XX. Seu clássico livro Face of our time demonstra o
empenho de um colecionador de rostos.
25 Muitos nomes existiram para estes bordéis - maison close, maison de tolérance, maison publique, maison d’illusions,
ou somente maison - e muitas de suas fachadas não eram identificadas por nomes e, sim, por números em estilos art
nouveau, art deco, dentre outros (BRASSAÏ, 1976).
30 Tradução de: “Es en el cuerpo donde resuenan los acontecimentos del mundo”.
31 Trazendo aqui o subjetivo conforme o pensamento de Agamben (2007, p.27): “Uma subjetividade produz-se onde o
ser vivo, ao encontrar a linguagem e pondo-se nela em jogo sem reservas, exibe em um gesto a própria irredutibilidade
a ela”.
Considerações finais
Dos submundos, bordéis, calçadas e asfaltos, surgem contatos com a vulnerabilidade
corpórea, indo de estéticas modernistas dos personagens de rua a fragmentos desconexos da carne
do mundo contemporâneo. O elo dessas imagens é o de uma urbanidade prenhe de desejos e riscos,
sugando e capturando corpos humanos – o corpo nu da meretriz (Brassaï e Rio Branco), o anônimo
seminu na rua, a menina que corre sobre entulhos (Moriyama), o mendigo (Brassaï e Rio Branco), o
bêbado na calçada (Weegee) são exemplos/figuras do que se torna vulnerável nas ruas. No solo das
cidades, a heterogeneidade dos corpos - vivos, mortos, jovens, velhos, acordados, dormindo,
famintos, devassos - passa, no cruzamento de olhares que aqui propomos, pela construção ficcional
fotográfica, recortada, fragmentada. A própria fotografia nos conduz, assim, a pensá-la como lugar
de expressão da degeneração corpórea e imagética da cidade, sem a necessária promessa de um
ideal único e homogêneo.
Revolvem-se personagens, condições sociais, atributos da linguagem fotográfica, e a textura
urbana que se evidencia traz essa sobreposição de presenças humanas. O acúmulo da carne humana
nas imagens, desde corpos nus e sedutores a corpos desprezíveis, propõe-nos um mosaico urbano de
alteridades. Se, por um lado, o prazer, o erótico habita a nudez feminina ou a faminta atração das
cenas de crime (nudez humanista e sórdida), por outro, uma atmosfera furtiva, ácida e decrépita de
corpos e vestígios atrai o olhar fotográfico de Rio Branco e Moriyama. Sem negar a história que
certos personagens já adquiriram na percepção citadina, ressalta-se que a sedução fotográfica por
um desmantelamento da representação corporal ganha intensidade nos fotógrafos contemporâneos
estudados.
Referências
RESUMO:
Investiga a prática governamental definida por Michel Foucault como uma arte de governar, como
esse poder político se aperfeiçoou demonstrando que ele se caracteriza por práticas adquiridas sob
uma concepção da “razão de Estado” operando por meio de sistemas de submissão que aplicados ao
corpo funcionam como ferramentas de dominação e construção da espécie.
PALAVRAS-CHAVES: Governamentalidade. Corpo. Biopolítica. Razão de Estado.
INTRODUÇÃO
Michel Foucault retrata toda uma genealogia do poder: do poder soberano ao poder
biopolítico para chegar ao atual “Estado moderno” onde o contexto político e econômico sofre uma
ruptura e emerge dentro desse novo panorama político o homem, que aparece como sujeito
biopolítico na modernidade, ou seja, objeto da própria política que opera agora na vida das
populações.
Nas palavras de Michel Foucault que retrata o desenvolvimento desse poder sob dois
processos onde o corpo passou para o limiar político. O primeiro trata-se de uma “anátomo-política
do corpo humano”, ou seja, refere-se às disciplinas vinculadas ao corpo. O segundo, uma política
voltada ao corpo no âmbito biológico, uma “biopolítica das populações” onde o Estado (ou
governamentalidade) passou a intervir:
A “anátomo-política” é o “momento histórico” das disciplinas em que:
Nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades,
nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo
mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. (FOUCAULT,
1999 p. 164)
Foi a partir do século XVIII que o corpo passou a interessar como um mecanismo de
produção, ou seja, o corpo do indivíduo se encontra entrelaçado com o próprio poder, o corpo
imbuído numa perspectiva política. Dessa forma, um corpo que era submetido a suplícios e
Dessa forma, tudo em torno da população torna-se alvo de intervenção da biopolítica que
inclui “a forma, a natureza, a extensão, a duração, a intensidade das doenças reinantes numa
população”. (FOUCAULT, 2005, p. 290). Para controlar tudo que prejudicasse, diminuísse ou
enfraquecesse o corpo, controlando qualquer fenômeno que ameaçasse a vida em sua totalidade “é a
natureza dos fenômenos que são levados em consideração”. (FOUCAULT. 2005. p. 293), como no
caso das doenças epidêmicas, endêmicas, insalubridade, esgotos e tudo que se manifesta dentro de
Para manter a validade dessa intervenção biopolítica como um poder regulamentador Michel
Foucault identificou uma tecnologia política que dava respaldo às ações biopolíticas, ao qual
chamou de governamentalidade, deste modo Michel Foucault a entendeu como:
O conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, analises e reflexões, os
cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem especifica, embora muito
complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a
economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. Em
segundo lugar, por “governamentalidade” entendo a tendência, a linha de força que, em
todo o ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito, para a preeminência desse tipo de
poder que podemos chamar de “governo” sobre todos os outros – soberania, disciplina – e
que trouxe, por um lado, o desenvolvimento de toda uma série de aparelhos específicos de
governo e por outro lado, o desenvolvimento de toda uma serie de saberes. Enfim, por
“governamentalidade”, creio que se deveria entender o processo, ou antes, o resultado do
processo o Estado de justiça da Idade Média, que nos séculos XV e XVI se tornou o Estado
administrativo, viu-se pouco a pouco “governamentalizado”. (FOUCAULT. 2008a. p. 143-
144)
Dessa forma, sobre a governamentalidade proposta por Foucault implica uma série de
condições especificas que possibilitaram sua expansão para o meio onde se desenvolve a população.
Essas condições dizem respeito a todo o aparato estratégico, no qual a função política do poder foi a
gestão administrativa da própria vida.
Para o desenvolvimento dessa arte de governar a vida, apontamos em primeira instancia
técnicas de poder centradas no corpo individual, cujo objetivo era fazer com que os corpos se
tornassem dóceis, uteis e submissos.
Nesta sociedade do século XVIII, a qual Foucault denominou de sociedade disciplinar, onde
os mecanismos de controle se aplicavam a formatação das habilidades do corpo, em adestrar as
“multidões confusas” por meio das disciplinas. Tais disciplinas pretendiam “fabricar” sujeitos
obedientes para o sistema capitalista nascente, ou seja, estas técnicas disciplinares do exercício do
poder fizeram surgir a anátomo-política, que por sua vez age especificadamente sobre o corpo do
35 É precisamente uma prática, ou antes, uma racionalização de uma prática que vai se situar entre um Estado
apresentado como dado e um Estado apresentado como algo a se construir e a se edificar. Cf., Michel Foucault,
Nascimento da biopolítica, p.06.
Sob este aspecto a ação governamental inclui uma inovação na arte de governar, uma técnica
biopolítica aplicada na gestão da sociedade visando o controle das populações. Foucault manteve
sua análise não na “prática governamental real, tal como se desenvolveu”, mas “quis estudar a arte
de governar, isto é, a maneira pensada de governar o melhor possível e também, ao mesmo tempo, a
reflexão sobre a melhor maneira possível de governar”. (FOUCAULT, 2008b, p. 04). Ou seja, as
estratégias desenvolvidas pelo poder, de como governar, como manter equilibrada as tecnologias do
poder que se exercem sobre os indivíduos, pois funcionam como instrumento de construção dos
sujeitos36.
Nessa perspectiva o corpo dentro das pretensões do Estado passa para uma nova dimensão
política, torna-se centro dos cuidados da administração do Estado. O indivíduo ganha importância
em termos econômicos, ou seja, interessa a utilidade desse corpo para manter o poder estatal.
Enquanto a ação governamental aumenta o poder político do Estado, o indivíduo-corpo diminui sua
força política, ou seja, para Foucault o indivíduo reduz-se a utilidade e docilidade em termos de
obediência biopolítica, pois “é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que
pode ser transformado e aperfeiçoado”. (FOUCAULT, 1999, p. 163). Dessa forma trata-se de uma
manipulação detalhada dos gestos e dos comportamentos. Essa política viria a ser o reflexo da
36 A questão das tecnologias do eu e os modos de existência será de grande importância para a fase dos estudos
foucaultianos desenvolvidos no final dos anos 70 até sua morte. Porém, como nossa análise restringe-se ao problema da
biopolítica não analisaremos tal problema levantado por Foucault.
CONCLUSÃO
As pesquisas do filósofo Michel Foucault sobre as configurações do poder e suas diferentes
problematizações o levaram a analisar, diante de uma ruptura no contexto político, o modo como o
poder se ativou, se estabeleceu e se estendeu sobre a vida dos indivíduos. A partir do século XVIII
Foucault identifica uma série de mecanismos que possibilitaram a ascensão desse poder no qual
também foi possível o desbloqueio da arte de governar os homens. Entre tais mecanismos, algo que
Foucault identificou como biopolítica, existe: uma prática governamental; um elemento condutor de
sua força e uma estratégia política que legitima o poder do Estado. Tal organização de governo é
para nós quase imperceptível, pois o poder tornou-se pulverizado, capilar, regendo a espécie
humana e encontrando na população seu objeto de produção e potencialização.
REFERÊNCIAS
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______ Em defesa da sociedade: Curso dado no Collège de France (1975-1976). Tradução. Maria
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