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OXÍMORO

Joelma Santos

OXÍMORO
Copyright © 2019,
Porto de Lenha Editora & Joelma Santos

Título original: Oxímoro

Todos os direitos reservados.


Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida por qualquer processo
eletrônico ou mecânico, fotocopiada ou gravada sem autorização
expressa da editora ou da autora.

PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS, SALVO


EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE

Design de capa: Mariana Teixeira


Agradecimentos

Agradeço imensamente ao meu Deus e às energias que me guiam e


protegem, aos meus pais, Mariza e Geraldo, aos meus gatos, denguinhos da
mamãe, Nina e Monet, aos meus amigos, Hanallaia, Luiza, Abraão, Pedro
Lucas, Binho, Alice, Mari, Lari e May, ao meu amor de todas as vidas, à
Porto de Lenha Editora por possibilitar que esta história fosse eternizada, e a
cada leitora e leitor que escolheu passar alguns minutos do seu tempo
ouvindo a Ana Júlia.
Epígrafe

Se eu morresse amanhã... (Estilização de "Se eu morresse amanhã", Álvares


de Azevedo)

Se eu morresse amanhã
levaria comigo o canto dos pássaros
O doce sorriso de uma criança
A delicadeza da rosa
A maciez dos lábios teus.
Se eu morresse amanhã
carregaria o lirismo da poesia
O ufanismo do noite e dia
Os sorrisos de quem outrora era feliz.
Se eu morresse amanhã
seria com alegria no peito
Com o acalento do olhar faceiro
que me desperta a paixão e o desejo
de quem goza e transpira sem fim.
Se eu morresse amanhã
teria comigo o tesão do teu cheiro
A memória do toque suave
Os sussurros ao pé do ouvido
enamorados ao anoitecer.
Se eu morresse amanhã
deixaria contigo o órgão pulsante
do meu peito que fora levado
por ti para longe e já não sabe
bater sem te sentir.
Se eu morresse amanhã
andaria abraçada comigo a saudade
do teu corpo, gosto, coito.
A esperança de te reencontrar de novo
nessa vida ou em outras que estarão por vir.
Se eu morresse amanhã...

Joelma Santos
UM

JÁ ouvi dizer que o amor é coisa de gente besta, e também que é o


tipo de sentimento que poucas pessoas nesta vida conhecem. Digo do amor
entre uma mulher e um homem, um homem e um homem, uma mulher e uma
mulher, enfim; o gênero pouco me importa. O que me interessa é o tal do
sentimento. Amor.
Pois veja, eu não sou mulher de muitas palavras ditas em alto e bom
som; eu gosto mesmo é de escrever. E como não conheço outra forma, resolvi
botar em algumas páginas ou capítulos, sei lá, um pouco ou muito da nossa
história de amor.
Acho que você não vai sismar se eu disser ao mundo, porque Deus já
sabe, o modo como descobrimos, reencontramo-nos um no outro. Por mais
que agora estejamos perdidos novamente. Se sismar, problema seu; pois sabe
que não sou mulher de pedir permissão, meu bem.
Aviso a leitora e ao leitor que não vou me apegar a palavras bonitas.
Se assim saírem, a culpa é do lirismo, não minha.
E já adianto que também não tenho papas na língua; vou escrever aqui
o que me der vontade. Posso começar pelo fim ou pelo começo, esquecer o
desenvolvimento, pouco importa, o livro é meu mesmo.
Antes que eu me esqueça, informo que não vou especificar o nome de
ninguém. Na crise econômica em que se está, é bom prevenir-se de um
processo... Mas se quiser me chamar por algo, chame-me de Ana Júlia. Esse é
o nome que me deram na minha vida, antes dessa, e como a mulher que eu
fora é o completo oposto da mulher que hoje eu sou, creio que se achega bem
ao nome da obra. Se quiser, trate o meu bem por Hugo, que fora o nome que
ele recebera na outra vida. O homem que ele fora não é muito diferente do
homem que conheci meses atrás, logo a escolha da antroponímia não é para
combinar com o título da obra, apenas porque é assim que eu quero. Ana
Júlia e Hugo. Ana e Hugo.
Provavelmente eu faça umas descrições dos corpos, do espaço, porque
de vez em quando essas enrolações até que caem bem numa narrativa.
O ponto final já tá querendo se fazer presente, mas acho bom que de
antemão a leitora e o leitor tome conhecimento de que toda essa prosa se
passa na Bahia. Não em Salvador, ou pelo menos não somente, que o estado
não limita-se a sua capital.
Dito isto, se quiser continuar rolando os olhos pelas próximas
páginas, a responsabilidade é toda sua.
DOIS

GOSTO da linguagem que adoto aqui, livre. Sem a necessidade de


deixar de lado meu regionalismo em detrimento da dita "língua comum".
Se tem um negócio que me irrita é gente que usa a língua portuguesa
pra se amostrar. Tipo àqueles que metem em qualquer canto umas palavras
daquele livro sagrado que possui não sei quantas traduções, achando que
assim passa-se por sujeito culto, de respeito.
Pois veja, eu lia Castro Alves e Gregório de Mattos quando tinha seis
anos, passei boa parte da minha adolescência metida com Alencar, Lispector
e Assis; sou praticamente uma seguidora fiel de Bakhtin, Fiorin, Saussure e
Labov; e cá entre nós, uma parte de mim é bastante gerativista. Mas nem por
isso conjugo a segunda pessoa do singular enquanto falo com meus amigos,
colegas e o caixa do supermercado. Oxente.
É preciso saber usar e onde usar a língua portuguesa, véi. Isso sim é
ser culto. Nem gosto dessa palavra, mas vou deixá-la assim mesmo...
Você se lembra, meu bem, daquele dia em que estávamos no terceiro
andar daquele hotel no Corredor da Vitória?
A leitora e o leitor não se incomode quando eu me referi diretamente
a Hugo — acho que vou tratá-lo assim também. É que eu gosto de pensar que
um dia, Deus é quem sabe, ele possa ler este livro. E confesso que é mais
fácil escrever quando penso que ele está lendo isso. Logo a leitora e o leitor
não sisme, porque quem escreve, têm dessas manias de buscar umas maneiras
que façam a narrativa fluir melhor.
Pois bem, eu estava lendo O Arco e a Lira de Octavio Paz;
precisamente o capítulo em que ele aborda o Ritmo. Quando começo a ler
uma obra, dependendo de com quem eu esteja falando, tenho o hábito de citar
algumas passagens da referente obra e expor minhas percepções sobre o
trabalho do autor. Agora, eu nem me lembro muito bem, mas eu recitei com
meus olhos cravados nos seus, claros como o raiar dum novo dia, umas
definições de Ritmo descritas por Paz. Você me presenteou com aquele seu
sorriso manhoso e disse que eu era muito inteligente. Contestei, dizendo que
na verdade, eu sou só uma mulher que lê pessoas inteligentes e vive repetindo
o que eles dizem. Você sorriu docemente para mim, eu retribui; e nossas
línguas ansiosas voltaram a se enroscar, construindo as nossas próprias
definições de Ritmo e Linguagem.
TRÊS

ANTES de adentrar outras questões, acho bom que a leitora e o leitor


tome conhecimento sobre como eu e Hugo nos conhecemos, ou melhor, nos
reencontramos.
Novembro de 2017. Nós estávamos hospedados em um hotel, situado
no Corredor da Vitória, Salvador, para participarmos de um sarau literário.
Como já disse, não vou expor os outros que nos cercavam, não ainda... Basta
a leitora e o leitor saber que foram mais de trinta jovens escritores de
diferentes cidades deste meu território baiano; e cada um deles, fizeram parte
direta ou indiretamente da minha história com Hugo.
Quando eu o vi, sentado em uma poltrona a alguns centímetros de
mim, fiquei incomodada. Ele me intrigou de um jeito que não sei explicar. Eu
quis manter distância, e ao mesmo tempo, estar bem perto. Oxímoro.
Hugo também me olhava desconfiado, e mais tarde eu soube que ele
tivera pensamentos parecidos com os meus.
Nós nos falávamos educadamente, ainda desconfiados, e quando um
falava algo e o outro estava por perto, ouviamo-nos atentamente, sem perder
uma única palavra.
Antes de perceber que estava apaixonada, a maior certeza que eu tive
foi do quanto admirava e respeitava a pessoa que eu sei que ele ainda é. Sua
humildade e simplicidade, sua empatia pelo outro e a pureza da sua arte
fizeram com que eu amasse o ser humano antes do homem.
Três dias mais tarde, quando eu estava num dos quartos do terceiro
andar, conversando com outros já bons amigos escritores, você entrou no
quarto, acompanhado por um outro amigo, e me lançou um olhar de surpresa,
ao mesmo tempo de felicidade; e eu, não sei bem porquê, fiquei sem jeito.
Você sentou-se na beirada da cama, participando da conversa um
tanto quanto sem graça. Então, reparando que um dos nossos amigos estava
aconchegado e recebendo cafuné de uma outra amiga, você pediu,
timidamente, para deitar-se em meu colo. Eu contestei brevemente, porque
não gosto muito de contato físico, mas logo consenti.
Quando meus dedos, inseguros, acariciaram seus cabelos negros e
macios, eu soube; estava perdida em você. Minhas mãos foram para as
laterais do seu rosto, sentindo sua pele quente; e seus olhos fecharam-se com
o meu toque. Você então, vergonhoso, começou a roçar seus dedos
carinhosos em minha coxa esquerda, e estávamos de tal forma que um não
conseguia afastar as mãos do outro. Nossos amigos olhavam-nos surpresos, e
nós não sabíamos explicar o que estava acontecendo. O que eu soube foi que,
mesmo se eu quisesse, eu não mais conseguiria ficar longe de você.
Hugo, cordelista que é, contaria esse momento melhor do que eu. Mas
por falta de narrativa melhor, contente-se pois com o que eu lhe digo.
No dia seguinte, por auxílio de um dos nossos amigos e sem
planejarmos nada, nossos lábios encaixaram-se pela primeira vez. Uma
sensação de descoberta e reconhecimento.
Uma energia forte, amarela alaranjada, envolvia-nos. Seus olhos
sorriam para os meus, e eu questionava a Deus o por quê de ele estar nos
unindo naquele momento.
Nós sabíamos que íamos sofrer depois. Sabíamos que em poucos dias
estaríamos distantes um do outro, incomunicáveis. Sabíamos que não
sabíamos quando íamos, se íamos, nos reencontrar novamente. Mas ainda
assim preferimos aproveitar todo o tempo que tínhamos juntos. Preferimos
viver o nosso amor.
Você me dizia com sua voz rouca; sua barba afagando minha pele,
que se Deus nos uniu naquele momento, é porque havia um motivo. E que se
fosse da vontade dele, nós nos reencontraríamos novamente.
Você não é espírita como eu, mas sim católico, entretanto sentia
também que não era aquela a primeira vez que o amor florescia em nós.
Eu reconheci em você o homem de todas as minhas vidas. Mesmo
sendo tão opostos, oxímoros, nos dávamos muito bem. Como se tivéssemos
sido concebidos um para o outro, e fomos.
Eu acho que você gostaria desta palavra, Hugo, oxímoro. Talvez até a
encaixasse num dos seus cordéis. Mas eu só tomei conhecimento dela
algumas semanas após a viagem, enquanto lia a tradução de um dos romances
da minha escritora norteamericana favorita, Brittainy C. Cherry. Sim, você
iria gostar. Oxímoro; relação de oposição, ambiguidade, totalmente opostos.
Assim como nós dois somos. Opostos perfeitos. Oxímoros.
QUATRO

FAZ mais de quatro meses que eu e Hugo estamos longes um do


outro. Quatro meses que não sinto o calor do seu corpo junto ao meu. Quatro
meses que não sinto seus lábios saciarem a minha fome. Quatro meses que
não sinto o suor que transpira dos seus poros em meus dedos. Quatro meses
que não ouço sua voz rouca ao pé do ouvido chamando-me de "Nega",
daquele jeito que só ele sabe. Quatro meses que ele levou meu coração junto
consigo, deixando-me apenas com uma grande interrogação no peito.
Li há algum tempo que "Alguns infinitos são maiores que outros [...]".
Pois repare que olhando sem ver, quatro meses é pouco tempo. Mas quando
se está longe, contra sua vontade, de quem se ama, leitora e leitor, quatro
meses tornam-se décadas a cada lágrima e minutos dedicados ao silêncio do
espírito.
Se ao menos eu soubesse como você está, meu bem... Parece absurdo
pensar que num mundo, em tese, globalizado, duas pessoas que se amam não
tenham como se comunicar. Mas eu lhe garanto, leitora e leitor, que essa é a
mais pura verdade. Existem motivos fortes para isso, porém não posso contá-
los porque não é uma questão que me pertence.
Enfim... Não bastasse toda essa saudade, minha mente vive
questionando-se com as mesmas perguntas sem respostas: Será que você já
me esqueceu? Será que você sente saudades de mim como eu sinto de você?
Será que você já se entregou a outra ou outras mulheres?
Pois veja, como cantara Caetano "[...] Não importa com quem você se
deite/Que você se deleite seja com quem for [...] ", e sou sincera ao usar da
arte de Veloso para expressar o que penso.
Eu não me importo, Hugo, que você entregue seu corpo a outra, desde
que essa outra te ame e saiba apreciar e dar o prazer que você merece.
Afirmo, leitora e leitor, que o meu amor não é egoísta. Reconheço às
necessidades do corpo e não as ignoro. Repare que eu não me imagino sendo
tocada por outro que não ele; mas isso sou eu. Porque eu sei que se isso
acontecer, não será nada além de alguns instantes de gozo, sem sentimento. E
eu acho que não sei me entregar sem sentir, entende? Mas, caso faça, eu já sei
que de alguma forma vou me sentir vazia. Porque eu sei que o que eu quero e
preciso nenhum outro homem além dele pode me dar. E não falo do sexo
somente, mas da conexão de corpo e alma; a sensação de ter seu espírito fora
do corpo para conectar-se energeticamente ao espírito do seu outro. Isso não
é coisa que se encontre em qualquer um; é coisa única. Vivida e revivida
apenas com a outra parte que lhe pertence. Chame de alma gêmea, se quiser.
Eu gosto de sinceridade, Hugo, você sabe disso; e repito, eu não me
importo se você estiver neste momento tendo prazer com outro corpo que não
o meu, contanto que esse outro corpo te faça feliz. E também não vou me
culpar se num futuro próximo ou distante eu me permita ser tocada por outro
que não você. Porque ainda que esse outro me faça feliz, eu sei que ele não
será capaz de trazer o meu coração de volta. Eu sei que ele não vai me fazer
sentir além do prazer carnal. Assim como eu acredito que é ou será para você,
se por acaso já tiver buscado ou busque em algum momento sentir o
aconchego nos braços e no corpo de outra mulher.
CINCO

EU disse que não citaria os nomes dos outros que cercavam a mim e
Hugo, e não vou. Mas neste andar da prosa, leitora e leitor, sinto a
necessidade de falar sobre dois amigos muito queridos; nossos padrinhos,
como Hugo dissera algumas vezes, e eu também.
Mirante, vou chamá-lo assim, dizia que não são se apaixonava
facilmente; que isso do amor vinha para ele com o tempo.
Amargosa, vou chamá-la assim também, acreditava no amor que
surgia só com um olhar, mas também ressaltava que para dar certo, o casal
precisaria ter ideais e gostos em comum.
Pois bem, Mirante e Amargosa ficaram muito próximos. E se não
fosse a prudência de ambos, palavra que a mim e Hugo malmente se aplicava,
teria, talvez, desenrolado entre eles uma bonita história de amor.
Semanas após a viagem, quando questionei a Mirante os motivos que
o fizeram manter-se prudente com relação a Amargosa, entre eles estava essa
questão de que com ele o amor só vinha com o tempo.
Eu poderia ter-lhe dito que ele só pensava assim porque ainda não
havia conhecido a paixão. Porque o amor pode sim ser construído com o
tempo, mas a paixão quando é pra ser, leitora e leitor, não há prudência que
dê jeito. A razão é deixada de lado e só o que importa é o um e o seu outro. E
não são os dias, meses ou anos que definem o sentimento, apenas o sentir, o
querer estar. A lógica não explica. Você só sente, e vive o sentimento danado
que é a paixão. Se quiser, claro. Eu poderia ter dito isso a Mirante, porém
preferi apenas aceitar sua opinião.
Um dia, Deus é quem sabe, ele se dará conta disso sem precisar usar
das palavras, que modéstia à parte ele sabe utilizar muito bem, bastará que ele
se entregue ao sentir. Assim como eu e Hugo nos entregamos sem
preocuparmo-nos muito com o amanhã.
SEIS

QUANDO só o beijo já não é suficiente. Quando as palavras


sussurradas ao ouvido penetram os poros da pele. Quando os olhares
devoram-se. Quando o cheiro na nuca te faz choramingar baixinho. Quando
as palavras não fazem sentido, e só o corpo fala. Essas coisas, leitora e leitor,
foram o que eu e Hugo sentimos quando nos entregamo-nos um ao outro.
Não vou adentrar nos mínimos detalhes, porque esse momento
sagrado é algo que só pertence a mim e a Hugo. Mas vou lhes contar uma
coisa ou outra. Acredito que ele não se incomode, e se assim fizer, problema
dele.
Pois bem, comecemos pelo tempo... Era uma noite normal, nem
quente nem fria. Nós estávamos um tanto quanto chorosos, eu
principalmente, porque nossa separação forçada já estava quase se fazendo
presente.
Não foi nada premeditado, e talvez por isso tenha sido tão bom. Ainda
que eu prefira acreditar que foi bom porque foi com ele.
Seu beijo suave e ardente, suas mãos macias possuindo o meu corpo,
seu hálito quente em minha carne sedenta, seu suor misturando-se ao meu,
seus dedos demorando-se em meus cachos, suas pernas enroscadas às
minhas, seus olhos cravados nos meus, a união física dos nossos corpos;
significação máxima do amor. Ou, como dissera Gregório,
"[...] O Amor é finalmente
um embaraço de pernas,
uma união de barrigas,
um breve tremor de artérias.

Uma confusão de bocas,


uma batalha de veias,
um reboliço de ancas,
quem diz outra coisa, é besta."
(MATTOS, Gregório de. Definição de amor)
Na verdade, a significação pouco me importa. O que me interessa é o
sentir. O desejo de estar com ele e ainda querer ficar um pouquinho mais. O
querer rápido e lento. A vontade de chegar logo ao fim e de recomeçar uma e
outra vez. As palavras gritadas que não foram ditas, mas expressadas num
cravar de unhas gulosas e carentes.
Seja isso a expressão do amor, a fome do gozo, ou os dois, o que me
importa é que eu fui dele e ele foi meu. O que me importa é que, seja lá quais
forem os caminhos que a vida nos reserva, nós nos amamos sem medo, sem
culpa, sem pensar em nada além do prazer um do outro. Do prazer em ver o
outro ter prazer. Vicariamente.
SETE

VIVER não é um negócio fácil. Eu não sei como é a sua vida, leitora
e leitor, mas a minha é normalmente um problema atrás do outro. Seja a falta
de dinheiro, a vontade de desistir de tudo, as perguntas que rondam a minha
cabeça, quase sempre sem respostas; a vontade de chorar, e por aí vai.
Eu posso afirmar com toda a certeza da minha alma que os dias em
que estive com Hugo foram os melhores desta minha vida. Eu não me
preocupava muito com os outros ou com os meus problemas; só estar com ele
importava.
Perdi a conta de quantas vezes questionei a Deus do porquê ele estava
me dando tamanha felicidade se em pouco tempo ela seria levada de mim.
Bom seria se a felicidade fosse um estado permanente...
Não que eu paute minha felicidade em alguém além de mim. Não é
isso. É que eu sou muito negativa, sabe? E eu acho que eu preciso de alguém
que me ajude a ser mais leve. Alguém que me faça esquecer de pensar, de ser
tão racional. E Hugo fazia isso como ninguém.
A leitora e o leitor pode achar o que vou dizer a seguir muito
dramático, mas não me importo: eu não consigo enxergar a felicidade nessa
minha vida se Hugo não estiver ao meu lado para construí-la comigo.
Eu já disse que certas coisas sobre mim e Hugo eu não posso lhes
contar. Uma coisa ou outra talvez, mas não tudo. O que posso deixar claro é
que dois motivos fortes nos separam: família e distância.
A minha família precisa de mim e a de Hugo precisa dele, e para nós
ficarmos juntos, um precisaria abrir mão de estar próximo dos seus; o que no
momento é inviável.
Muitos quilômetros nos separam. Cada um numa ponta da Bahia. E
nem eu nem ele têm condições de arcar com os custos da viagem para a
cidade um do outro.
Tem uma coisa, meu bem que nós não reparamos. Tanto a minha
cidade quanto a sua têm seus nomes referenciados a rios que cortam a região.
E tanto os rios da sua cidade quanto os rios da minha são utilizados
indevidamente por mãos gananciosas que não olham além dos seus próprios
bolsos. A diferença é que você luta contra eles, eu não.
Que bom seria se eu pudesse apreciar a felicidade de assistir a um pôr
do sol ao seu lado. Vendo o alaranjado se perder no céu do sertão, sentir seu
suor grudado na minha pele, beijar você até o dia se fazer noite e te amar
além da madrugada... Isso sim seria felicidade para mim. Mas me parece uma
felicidade tão distante...
Acredito que as palavras escritas até aqui lhe pareçam confusas, sem
nexo.
Pois bem, eu não prometi uma prosa bonita. Nem disse que a minha
história de amor com Hugo teve um final feliz. Se é que existe um final.
Acho que nem eu sei mais o que estou escrevendo.
Vou me deitar um pouco. Tentar esquecer a tristeza do peito e sonhar
com os dias em que a felicidade fazia morada nessa minha vida.
OITO

AS memórias são um território esquisito, leitora e leitor. Numa hora


elas me levam de volta para os dias felizes em que vivi com Hugo, e na outra
leva-me para os momentos que eu gostaria de esquecer.
O tempo é também um troço complicado. Já faz quase seis meses que
não tenho notícias de Hugo. E contar-lhes nossa história é, de certo modo,
uma forma de nos eternizar. Mas receio que daqui há alguns meses o danado
do tempo me faça olhar para essas páginas e me achar a mulher mais besta
deste mundo. Escrevendo sobre alguém que, talvez, nem se lembre mais de
mim.
Pois veja, as memórias que hoje me confrontam são pertencentes ao
dia em que eu e Hugo nos vimos pela última vez. Vou pois dar corda há
memórias um pouco mais antigas, para a leitora e o leitor entender o contexto
da prosa.
Um dia antes, eu e Hugo nos afastamos previamente. Não me
pergunte o porquê. Basta saber que nos afastamos. Fim do contexto.
No dia seguinte, logo cedo; 07h18, mais ou menos, despedi-me dos
amigos muito queridos que tive o privilégio de conhecer (reencontrar) ali.
Deixei de lado minha antipatia por contato físico e abracei, bem forte, todas e
todos aqueles que conquistaram de algum modo um espaço nas minhas
memórias e no meu coração.
Eu estava na recepção, à espera do carro que me levaria até a
rodoviária, quando Hugo parou em frente a mim e pediu um abraço. Claro, eu
não pude recusar. Aninhamo-nos bem forte, sentindo pelo que pareceu ser a
última vez, o cheiro e as batidas do coração um do outro. Nossos lábios
afastaram-se quase que sem querer. O choro deu-me um nó na garganta, mas
eu consegui prendê-lo por um tempo.
O carro chegou, eu o adentrei juntamente com outros dois
companheiros de viagem, e, ao virar o rosto, vi Hugo, parado em frente à
calçada, observando com um semblante triste o carro que partia. Não
consegui mais deter as lágrimas; e chorei, por todo o trajeto, até chegarmos a
rodoviária.
Foi como se meu coração tivesse ficado com ele. Como se uma parte
de mim tivesse sido arrancada contra a minha vontade.
Até então, leitora e leitor, foi esse o dia em que mais sofri nessa vida.
Foi uma dor tão grande. Uma dor que vez ou outra reabre suas feridas e
sangra, sem dó. Uma dor que não desejo a ninguém desse mundo.
NOVE

À esta altura, a leitora e o leitor arrependeram-se de dedicar alguns


minutos para ler tal prosa. Ainda que eu tenha deixado claro, desde o início,
que esta não era uma história de amor convencional, acredito que você tenha
criado certa expectativa quanto a um desfecho floreado, com promessas de
amor eterno. O amor, talvez, seja sim para toda esta e outras vidas, mas o
floreio, creio pois que a leitora e o leitor terá de buscar naqueles velhos
clichés que acham-se em quase todos os romances publicados nas últimas
décadas.
Pois bem, quando eu e Hugo nos afastamos de fato; retornando cada
um para a sua cidade, fora como se nada ao meu redor fizesse sentido. A vida
acadêmica já não me interessava, escrever era quase como um sacrifício, os
amigos, queria-os o mais longe possível. Considerava-me tóxica; uma
companhia insuportável.
Precisava lembrar-me de fazer as obrigações mais tolas possíveis:
"Você precisa beber água, Ana... Você precisa comer, Ana... Você precisa
tomar um banho, Ana... Você tem que estudar, Ana... Agora você precisa
dormir, Ana... Por Deus, Ana Júlia, pare de chorar!"
Era assim quase todos os dias. Eu não andava, arrastava-me. Parecia
uma morta-viva.
Por pouco mais de três meses, sobrevivi em estado de inércia.
Chorava quase todos os dias.
Por esse ângulo, leitora e leitor, amar não é nada bonito. Não quando
se está longe de quem se ama.
As responsabilidades para com os outros e comigo mesma foram o
que me fizeram continuar respirando. A esperança de ter Hugo ao meu lado
num futuro próximo também. Mas isso agora parece-me um desejo tão
distante...
Creio que outra vez essa prosa volta a ficar desconexa.
Para fins de conversa, basta que a leitora e o leitor saibam que por dez
dias eu estive perto do homem de todas as minhas vidas. E há quase seis
meses, eu revivo cada um desses dias; como uma viciada em crise de
abstinência.
DEZ

É difícil terminar uma prosa. Principalmente uma prosa que não


sabemos como terminar.
Eu poderia tentar escrever algo bonito. Mas este livro tem se tornado
uma tortura.
Após o ponto final, vou distanciar-me dessas páginas. Esquecer que
essa narrativa me pertence.
Meus dedos começam a ficar cansados. O teclado parece querer que
eu delete tudo o que escrevi até aqui. Mas eu persisto.
Talvez, num futuro não muito distante, eu e Hugo nos reencontremos
mais uma vez. Conversaríamos sobre tudo o que se passou até ali.
Mataríamos a saudade, sem pressa. Viveríamos numa casa simples, sem
muito luxo, mas felizes.
Talvez eu emprenhasse... Você seria um bom pai. Eu tentaria não
aborrecer-me com as birras da criança. E quando nosso dengo dormisse, nos
amaríamos em silêncio, absorvendo os gemidos um do outro.
Sim, é um final bonito. Deixarei pois, leitora e leitor, essa prosa por
aqui, antes que a realidade venha-me como um soco.
Biografia
Joelma Santos nasceu em 31 de julho de 1999, é baiana, espírita,
feminista negra, graduanda em Letras – Língua Francesa e Literaturas pela
Universidade do Estado da Bahia e escreve desde os sete anos de idade. Em
2016 começou a publicar seus livros na plataforma on-line Wattpad, tendo
seu romance mais popular mais de 100 mil leituras.

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