Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Introdução
A tese que tenho defendido é que a filosofia africana (que deve ser sempre
compreendida no plural e para além da disciplina da Filosofia), na qualidade de campo
de produção de conhecimento e política de mudança social, coloca-se como um caminho
de superação da crise ecológica-planetária, vista como uma crise ontológica. Por ser uma
1
Doutor em Sociologia, Docente no curso de Bacharelado em Humanidades e no Programa de Mestrado
Interdisciplinar em Humanidades, Instituto de Humanidades e Letras/Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, São Francisco do Conde, Bahia, Brasil; líder do Grupo de
pesquisa África-Brasil: Produção de conhecimento, Sociedade civil, Desenvolvimento e Cidadania Global;
pesquisador do Centro dos Estudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra (CLADIN-
Unesp), da Rede para o Constitucionalismo Democrático Latino-Americano/Brasil, Member of United
Nations - Harmony with Nature e integrante e fundador do Instituto da Diáspora Africana no Brasil
(IDDAB). Contato: basilele@unilab.edu.br.
crise local-global-complexa, as respostas têm que ser igualmente locais-globais-
complexas.
Nesse sentido é que se deve trabalhar com teorias e políticas assentes nos
pressupostos de intersecionalidades e complexidade. No caso de meus estudos, categorias
como raça, classe, gênero, migração, geração, espiritualidade e meio ambiente são
cruciais e devem ser tratadas numa perspectiva da complementaridade.
O que é Ntu? A resposta a essa pergunta tem que partir das bibliotecas africanas
que nos informam que é um termo usado entre alguns povos da África central e austral
que traduz a sua cosmovisão.
Kagame (1956) e Ramose (2011) são dois filósofos africanos que se debruçaram
sobre os significados do Ntu do ponto de vista da filosofia da linguagem. Para Kagame
(1956), o Ntu é o sufixo que é utilizado pelos povos africanos, no caso ele estudava os
banyaruanda, para nomear o Ser. Este, para ele, se traduz nessas quatro categorias Ki-Ntu
(Coisa), Ha-Ntu (Espaço-Tempo), Ku-Ntu (Modalidade do Ser) e Mu-Ntu (Ser Humano).
Ramose (2011) vai corrigir Kagame afirmando que esqueceu de uma outra
categoria primordial que é Ubu-Ntu. Ubu é o prefixo que traduz o movimento-força ou
energia presente nas quatro categorias mencionadas. Essas em si são as “entidades” que
traduz a manifestação do “Ser”. Nesse sentido, Ubu-Ntu é o Ser-sendo, o Ser-Força-em-
movimento. A física moderna comprovou essa verdade metafisica defendendo que toda
Matéria é feita de energia. Essa é composta de átomos e partículas. Como se sabe a teoria
de big bang continua a sustentar a ideia de que o que deu início ao Universo seria a
explosão da energia primordial (HAWKING, 2015). E cada vez mais a ciência moderna
vem mostrando quanto à Energia está na base de tudo o que existe (NTUMBA, 2014).
2
Ser-Preexistente. Todavia, não é um Ser imóvel; é o Ser-Devir a partir do qual tudo o que
existe procede, sem se confundir com Ele: o Noun, visto como Água primordial.
3
O ponto comum entre a macumba e o batuque, em primeiro lugar é que comportam
significados plurivalentes que fogem a lógica racista da razão indolente. São ambos
instrumentos músicas, danças, expressões da ontologia biocêntrico-cósmica africana.
Expressam e são parte do Ubuntu-Bisoidade na sua qualidade do movimento pleno. Por
isso, qualquer nomeação não lhe cabe. São traduções artísticas, políticas, sociais, culturais
e religiosos dos povos africanos que os inventaram.
Solano Trindade (2007), na minha leitura, com o seu poema citado quer deixar
esse recado: macumba é um canto, uma estética de amor. Macumba é amorização consigo
mesmo e para com Outro. Mveng (1974), estudioso da arte negra, afirma que essa é uma
liturgia cósmica da celebração da Vida sobre a Morte. Ou seja, o encontro com Outro: o
Sagrado, o Ancestral, a Natureza, o Universo, o/a Muntu é um encontro com o Nós-
Cósmico libertador.
A crise atual, como dito, é uma crise ontológica, global e planetária, por isso é
uma crise ecológica no sentido de mexer negativamente com todos os sistemas vitais
(BOFF, 1999; MORIN, 2011). Visto do ponto de vista das populações africanas
(entendida sempre como do continente e das diásporas, no nosso caso a diáspora negra
no Brasil), a crise é epistemológica (epistemicídio), social, cultural, estética, política,
4
ética, psicológica, espiritual e ambiental. Afeta de modo particular: pessoas não brancas,
negras, indígenas, mulheres, LGBTI, crianças, suas culturas, seus territórios e meios
ambientes.
5
empresas capitalistas, as famílias tradicionais e seu modo de reprodução no contexto
capitalista ou socialista (o socialismo realmente existente) (MÉSZÁROS, 2006).
6
sentido de que como as vidas negras são condenadas à morte por uma única razão de ter
nascido e nascido em corpos negros. Flauzina (2017) sinaliza isso muito bem no seu
estudo revelando como isso se passa no Brasil dentro da cumplicidade entre as instituições
estatais, judiciário e a polícia para controlar os corpos de negros. O encarceramento em
massa de corpos da juventude negra se coloca como a melhor opção feita pela elite
dominante brasileira.
7
Do ponto de vista da teoria africana de Ubuntu-macumba-bisoidade, a dominação
contra pessoas negras é vista como o nkindoki, ou melhor dominação-kindoki racial, isto
é, forças negativas contra o/a ntu (palavra bantu sem gênero), isto é, negação de qualquer
manifestação da vida (ntu-vida). Nkindoki, entre os bakongo é o contrário do nkisi
(inquice). Trato o primeiro como feitiço-do-mal e o segundo como feitiço-do-bem. O
kindoki-doracismo nega a vida-ntu e o nkisi promove a vida-ntu na sua plenitude.
Como sair da crise ecológica do ponto de vista dos povos oprimidos? Acionar as
epistemologias libertárias e, particularmente, a epistemologia do Ntu que é parte das
epistemologias negras do Sul global subalterno. Olhar pela história negra de resistência e
pelas bibliotecas negras para ter respostas. Fazer uso da razão cosmopolita/intercultural
contra a razão indolente, que é reducionista, simplista, racista, sexista e instrumentalista
(MORIN, 2011; SANTOS, 2003; SODRÉ, 2017).
Desse ponto de vista, compreendo que fazer a ciência é como se fosse fazer um
axexé, ebó, nkisi. Da mesma forma que os nganga nkisi (médico, zelador do nkisi),
babalorixá, ialorixá zelam pelo Nkisi, pelo Axé, o cientista ubuntuista faz a ciência com
razão, consciência e ética. O fim da ciência para ele/ela é a emancipação cósmica. Como
ele/ela parte do princípio da biocentricidade ou ontologia biocenótica, realidades que
ele/ela estuda devem ser abordadas com cuidado. A ética do cuidado para com o Outro é
fundamental. Por isso, é um/a zelador/a da verdade seduzida e não instrumental.
8
Dentro das discussões epistemológicas, uma disciplina para se firmar como
ciência tem que anunciar o seu objeto ou campo de investigação, o seu método e a/as
teoria/as que a sustentam. Tem mais uma outra dimensão que tem a ver com os princípios
que devem guiar as atividades cientificas.
9
filosofias ancestrais ou contemporâneas como Ubuntu, Bisoidade, Macumba, Batuque,
Exu.
1. Nós já temos os diagnósticos sobre o que causa a crise que nos afeta:
conhecemos seus agentes, a sua maneira de processar e a quem beneficia.
10
complementaridade radical entre o sagrado-ancestral, o muntu-pessoa e o universo-
natureza.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: Notas sobre a política. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
AMADIUME, Ifi. Reiventing Africa: Matriarchy, religion and culture. 2th. Ed. London/New
York: Zed Book, 1997/2001.
BÂ, Amadou Ampaté. Amkoullel, o menino fula. 2 ed. São Paulo: Palas Athenas: Casa das
Àfricas, 2003.
_____. A noção de pessoa na África Negra. Tradução para uso didático de: HAMPÂTÉ BÂ,
Amadou. La notion de personne en Afrique Noire. In: DIETERLEN, Germaine (ed.). La notion
de personne en Afrique Noire. Paris: CNRS, 1981, p. 181 – 192, por Luiza Silva Porto Ramos e
Kelvlin Ferreira Medeiros.
______. Tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (Ed.). História Geral da África, I: Metodologia e
pré-história da África. 2 ed. Revisada. Brasília: UNESCO, 2010, p. 167-212.
BOFF, Leonardo. Saber cuidar Ética do humano, compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999.
DIAGNE, Soulemane Bachir. L’encre des savants: Réfléxions sur la pilosophie africaine.
Paris/Dakar : Présence Africaine/CODERSIA, 2014.
DIOP, Cheikh Anta. L´unité culturelle de l´Afrique noire. Paris : Présence Africaine, , 1959/1982.
FALOLA, Toyin. The power of african cultures. New York : University of Rochester, 2008.
11
FIGUEIREDO, Angela; GOMES, Patrícia Godinho. Para além dos feminismos: Uma experiência
comparada entre Guiné-Bissau E Brasil. Estudos Feministas, Florianópolis, 24(3): 909-927,
setembro-dezembro/2016.
GUTTO, Shadrack B. O. Toward a new paradigm for pan-African knowledge production and
application in the context of the African Renaissance. In: International Journal of African
Renaissance studies: Muli-, Inter- and Transdisciplinarity, University of South Africa Press, v. 1,
n. 2, p. 306-323, 2006.
IMAN, Ayesha M.; MAMA, Amina; SOW, Fatou (Dir.). Sexe, genre et société: Engredrer les
sciences sociales africaines. Dakar/Paris: CODESRIA/Karthala, 2004.
KI-ZERBO, Joseph. Para quando a África: Entrevista com René Holenstein. Rio de Janeiro:
Pallas, 2006.
FALOLA, Toyin. The power of african cultures. New York : University of Rochester, 2008.
JAHN, Janheinz. Muntu: las cultura de la negritud. Trad. Daniel Romero. Madrid, 1970, p. .113-
122. Tradução para uso didático feita por Marcos Carvalho Lopes a partir da versão em espanhol
dos dois primeiros subtítulos do “capítulo 4”.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidade e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2003.
HAWKING, Stephen. Uma breve história do tempo. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.
HAMA, B.; KI-ZERBO, J. “Lugar da história na sociedade africana”. In: KI-ZERBO, Joseph
(Ed.). História Geral da África, I: Metodologia e pré-história da África. 2. ed. Revisada. Brasília:
UNESCO, 2010. p. 23-35.
KI-ZERBO, Joseph. Para quando a África: Entrevista com René Holenstein. Rio de Janeiro:
Pallas, 2006.
12
______. Filosofia do Ubuntu: Valores civilizatórios das ações afirmativas para o
desenvolvimento. Curitiba: CRV, 2014.
____. Bioepistemolologia do Ntu: Meu(s) diálogo(s) com Dagoberto José Fonseca. FONSECA,
Dagoberto José; MALOMALO, Bas´Ilele; FERREIRA, Simone Loiola (Orgs.). Intelectualidade
coletiva negra: memórias, educação e emancipação. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2018, p. 69-
120.
MBEMBE, Achille. «Necropolítica / Sobre el gobierno privado indirecto», traducción del francés
al español por Elisabeth Falomir, Editorial Melusina, Santa Cruz de Tenerife, 1 2011.
MAZRUI, A.; AJAYI, J. F. Tendências da filosofia e da ciência na África”. In: MAZRUI, Ali. A.
(ed.). História Geral da África, Vol. VIII: África desde 1935. Brasília: UNESCO, 2010, p.761-
815.
MÉSZÁROS, István. O século XXI: o socialismo ou barbárie. São Paulo: Boitempo, 2006.
MOORE, Carlos. Racismo e sociedade: novas bases epistemólogicas para entender o racismo.
Belo Horizonte: Mazza, 2007.
MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 2 ed. São Paulo: Cortez; Brasília:
UNESCO, 2011.
MVENG, E. L´art d´Afrique noire: liturgie cosmique et langage religieux. Yaoundé: Clé, 1974.
NAKOULIMA, Pierre Gomdraogo. A crise ecológica como exigência de um novo paradigma. In:
HOUNTONDJI, Paulin. O antigo e o moderno. A produção do saber na África Contemporânea.
Luanda: Pedago/Mulemba, 2012, p. 83-98.
____. La complementarité radicale du politique et du réligieux. In: Centre d´études des Religions
africaines. Religions traditionnelles africaines et projet de société. Actes du cinquième Colloque
International C.E.R.A (Kinshasa, du 24 au 30 novembro 1996), Facultés Catholiques de Kinshasa,
Cahiers des Religions Africaines, vol. 31, n. 61-62, 1997, p. 47-64.
____. Le réel comme procès multiforme: pour une philosophie du Nous processuel, englobant et
plural. Paris : Edilivre-Aparis, 2014.
13
OBENGA, Théophile. L´Égypte, la Grèce et l´école d´Alexandrie: histoire interculturelle dans
l´antiquité aux souces égyptiennes de la philosophie grecque. Paris: Khepera/L´Harmattan, 2005.
OYEWUMI, Oyeronke. The invention of Woman: Making na african sense of wester gender
discourses. Mineapolis: University of Minnesoto Press, 1997.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In:
SANTOS, Boaventura de Sousa (Org). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo
multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 429-461.
RAMOSE, Mogobe. Sobre a legitimidade e estudo da filosofia africana. In: Ensaios Filosóficos,
Volume IV - outubro/2011, pp. 9-25. Disponível em:
http://www.ensaiosfilosoficos.com.br/Artigos/Artigo4/RAMOSE_MB.pdf. Acessado em 17 fev.
2016.
SODRÉ, M. A verdade seduzida: Por um conceito de cultura no Brasil. 3 ed. – Rio de Janeiro:
DP & A editora, 2005.
SYLLA, Abdou. Criação e imitação na arte africana tradicional. In: ÁFRICA e africanidade de
José Guimarães: Espíritos e universos cruzados. São Paulo: Museu Afro-brasileiro, s.d, p. 21-84.
VANSINA, Jan. As artes e a sociedade após 1935. In: MAZRUI, Ali (ed.). História Geral da
África, VIII: África desde 1935. 2 ed. Revisada. Brasília: UNESCO, 2010, p. 697-760.
THOMPSON, Robert Farris. Flesh of Spirit. Arte e filosofia africana e afro-americana. São Paulo:
Museu Afro-brasileiro, 2011.
TRINDADE, Solano. Poemas antológicos. São Paulo: Editora Nova Alexandria, 2007.
14