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Cosmovisão Africana

Ano 2017

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Cosmovisão africana
Liliane Pereira Braga1

Todos os povos possuem uma narrativa quanto ao surgimento do mundo e à relação


entre a humanidade e o universo2 no qual se inserem e que é regido por suas
próprias leis (o cosmos).

Para povos da África subsaariana, seres humanos estão interligados à natureza e ao


mundo invisível e esses elementos precisam estar em equilíbrio, constituindo uma
percepção de mundo ‘holística’. As formas de manutenção desse equilíbrio passam
pela relação de respeito e reverência a todas as formas de vida (animada ou
inanimada) que, por sua vez, são dotadas de energia divina, que provém do plano
que não se vê, mas que é sentida por todos os seres. Por isso, tudo que é vivo
(possui energia de vida) deve ser manipulado a partir de princípios éticos que são
aprendidos apenas pela vivência, e não de forma teórica.

Aprender é experienciar – de forma individual, por meio de processos iniciáticos,


para, depois, viver coletivamente e continuamente tais aprendizados que nunca
cessam sempre proporcionados pelo contato com mais velhos. Por meio da iniciação,
cada coisa é aprendida em seu tempo, propiciando o desenvolvimento da
personalidade simultaneamente a um papel social como parte de uma coletividade.
Conhece mais desses segredos quem vivem por mais tempo. Ao partirem deste plano
visível, deixam seus ensinamentos concretos, mas continuam relacionados às
comunidades com as quais conviveram, e podem favorecer o seu andamento
provendo bem-estar e equilíbrio - agora de um lugar onipresente - desde que a
relação com essas pessoas que migram para o plano invisível (formado por
antepassados e ancestrais3, patronos e fundadores da tradição africana) continue

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Doutoranda em História Social pela PUC-São Paulo, onde é pesquisadora do Centro de Estudos
Culturais Africanos e da Diáspora. Mestre em Psicologia Social pela mesma instituição. Atualmente é
formadora contratada de DOT Núcleo de Educação Étnicorracial da SME-SP.
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O termo é empregado aqui na acepção de que cada povo tem a sua visão de mundo única sem, no
entanto, subentender que todos os povos devam seguir uma única visão de mundo, tal qual imposto
pela colonização euro-ocidental aos povos ameríndios e africanos e, posteriormente, pelo imperialismo
norte-hemisférico aos demais povos do planeta.
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Existem os antepassados qualificados e os antepassados simples. Os qualificados são aqueles que
conseguiram ascender, por causa de seus feitos notáveis, a uma condição de divindade, tornando-se
ancestrais. Os simples são aqueles antepassados que se preservaram humanos, porém destacados
pelo empenho em aumentar a Força Vital de suas famílias e comunidade (OLIVEIRA, 2006).

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sendo alimentada. E só sabe como alimentá-la aquelas pessoas que passam por tais
aprendizados, em uma contínua retroalimentação de saberes.
Por ser individual e no seu próprio tempo, tais aprendizados são vivenciados por meio
de iniciação: cada etapa da vida é guiada, para que o processo de individuação do
sujeito se dê por etapas condizentes a sua idade no plano visível4, permitindo que as
pessoas encontrem e integrem o seu lugar social. O acesso às informações e os seus
efeitos no indivíduo é o que permite o desenvolvimento – cada Ser desenvolve sua
personalidade de forma autônoma, aprendendo a ser responsável pelos próprios
atos, o que o torna respeitado por parte dos demais membros da comunidade em
uma relação que coopera na manutenção do equilíbrio do grupo.

O culto aos ancestrais é uma das bases da cosmovisão de mundo africana. Neste, os
aprendizados provêm da ancestralidade. Essa cosmovisão se reflete na concepção
de universo, de tempo, na noção africana de pessoa, na fundamental importância da
palavra e na oralidade como modo de transmissão de conhecimento, na categoria
primordial da Força Vital. Os protagonistas do tempo vivido são os descendentes dos
ancestrais que, ouvindo-os, respeitando e cultuando-os, devem abrir caminhos para
novos tempos. A tradição é o fundamento da atualização.

1. Cosmovisão

Cosmovisão africana: princípio da energia vital ou axé


Defino Cosmovisão como, uma perspectiva na qual a sociedade humana é vista
como parte da natureza. Participam e se comunicam com a natureza integradamente.

Nessa perspectiva é entendido que tudo que é vivo, que existe, tem energia/força
vital: planta, água, pedra, gente, animal, ar, tempo, tudo é sagrado e está em
interação, portanto coexiste o princípio do Axé (termo usado na nação Keto), o
principio do ngunzo (termo usado na nação Angola).

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Na reorganização social pela qual africanxs passaram com os processos da escravidão atlântica, a
iniciação tem o seu papel social transmutado para o âmbito religioso, sem perder a função de propiciar
o desenvolvimento individual e social do sujeito; já não mais por etapas condizentes à idade do
indivíduo no plano material, mas, ainda assim, entendendo que aquelxs que passam por processos
iniciáticos são “mais velhxs” (detêm mais conhecimentos) que xs que ainda não passaram ou que
passam mais tardiamente pelos ritos propiciatórios de iniciação.

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Por esse aspecto é que devemos adotar a mesma conduta frente aos outros, ao
mundo e a nós mesmos, a mesma atitude diante de animais, vegetais, minerais ou
divindades - se existe, se é sagrado merece respeito.

Elementos que integram a cosmovisão africana


Universo, Força Vital, Palavra, Tempo, Pessoa, Socialização, Morte, Família e
Ancestralidade.

Cosmovisão africana no Brasil


Ensinamentos da cosmovisão africana estão concentrados nos espaços sagrados
(terreiros de Candomblé, Umbanda, Batuque, Tambor de Mina, Xangôs, etc), nas
comunidades quilombolas, como também em outros espaços que reúnem de forma
sistematizada elementos dessa cosmovisão, conformando a identidade nacional
(hospitalidade, alegria, calorosidade, ginga, etc).

2. Universo e Pessoa na Concepção da cosmovisão do Negro-Africano

Universo
O visível constitui manifestação do invisível e sob toda manifestação viva reside uma
força vital. Nessa noção de universo, todos os seres constituem uma única rede de
forças. O sagrado permeia os setores da cosmovisão de vida africana – nesse
contexto não há distinção formal entre o sagrado e o não sagrado, entre o espiritual e
o material.

Pessoa
A pessoa, na concepção da cosmovisão do negro-africana, é resultante de uma
justaposição coerente de partes, de elementos individuais herdados – da linhagem
familiar e clânica – e simbólicos, que a posicionam no ambiente cósmico, mítico e
social.

Ribeiro (1996) nos lembra que a pessoa integra um ciclo da vida circular (remetendo-
nos ao valor civilizatório da circularidade): a criança vai se transformando até chegar
a adulto; este se transforma até chegar a velho; este, por sua vez, se transforma,
inclusive atravessando o portal da morte, para alcançar a condição de antepassado; o
antepassado renascerá como criança.

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3. Aspectos Civilizatórios

Valores e princípios chamados de aspectos civilizatórios, são transportados da África


para o Brasil, conformando a construção identitária dos afro-brasileiros.
Valores civilizatórios africanos e afro-brasileiros dentro dessa cosmovisão5:
• Circularidade (em detrimento de dualidade/binarismo)
• Oralidade (culturas de tradição oral)
• Corporeidade
• Ludicidade
• Musicalidade
• Cooperatividade/ comunitarismo
• Memória
• Religiosidade
• Ancestralidade

Oralidade

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Material da Ação Educativa

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Como define Diagne (2012), civilizações africanas tradicionais são civilizações de
oralidade. Em uma cultura de base oral, produzem-se fenômenos notáveis, que estão
ausentes ou que não têm a mesma função numa cultura de base escrita. Entre tais
fenômenos está o recurso frequente às imagens, aos símbolos e signos, as
metáforas, a encenação, que sob a forma de uma história traz ensinamentos a reter.
Digo isso e aponto que a dramatização (via corporalidade, gestualidade, oralidade e
memória) não é um envelope supérfluo de suporte pedagógico adaptado ao contexto
oral.

Memória
A escritora e doutora em educação Vanda Machado (2013) fala da memória a partir
da noção de que o pensamento africano não separa, não hierarquiza: corpo mente
memória, tradição, sentidos, imaginário, símbolos, signos, espiritualidade e as
vivências cotidianas, tudo faz parte de uma tradição na sua multidimensionalidade
que não se presta a explicações reduzidas, a categorias que fragmentam sentidos.
Complementar a essa perspectiva está a de Maria Antonieta Antonacci, historiadora
fundadora do CECAFRO (PUC-SP) e autora do livro “Memórias ancoradas em corpos
negros” (2014), em cuja série de artigos articula ideias em torno de memórias que se
atualizam por meio das narrativas corpóreas de africanos e seus descendentes.

Cooperatividade / Comunalidade
A cultura africana é coletiva. Considera o homem como parte de um todo, que opera
para e na coletividade. O que tem valor em África é a riqueza em homens. As
civilizações africanas podem ser consideradas humanistas em contraposição ao
materialismo das civilizações europeias. Na África, possuir bens é sinônimo de
possuir seres humanos e gozar dos seus trabalhos. Enquanto que, na Europa, ter
algum bem é ter terras e gozar dos seus produtos.

Família
A família é o núcleo central da sociedade africana, cuja estrutura social é formada por
clãs ou famílias-aldeia e, mesmo as divindades obedecem às linhagens familiares. As
etnias definem suas identidades a partir da família, por meio da qual são regidos os
âmbitos espiritual e material da vida, através da produção. Esta, intimamente ligada
com a concepção sagrada de mundo, é regida também pela ancestralidade.

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Ancestralidade
A ancestralidade é o que estrutura a visão de mundo presente nas religiões de
matrizes africanas. Sem a ancestralidade não haveria tradição e sem a tradição não
haveria identidade. Como define Oliveira,
O eu não é nada sem a sua tradição, porque está vinculado ao seu passado, à
memória daqueles que vieram antes e regulam a vida de seus descendentes
distribuindo sua força e harmonia. Portanto, podemos dizer que o conceito de
ancestralidade está diretamente ligado ao conceito de identidade, um não existe sem
o outro. (OLIVEIRA, 2006)

Espiritualidade/Religiosidade
A espiritualidade e a religiosidade de matriz africana congregam todos os elementos
da cosmovisão africana e são guiadas pela noção de crescimento da força vital de
suas comunidades. Como nos lembra Oliveira (2006), no Brasil, o Candomblé – com
as suas raízes Bantu, Iorubá e Fon6 – atualiza a experiência ética africana, integrando
a gama de religiões afro-brasileiras que são comunitárias e pragmáticas e cuja
finalidade é proporcionar bem-estar social.

Jogo de Búzios
Trazemos o jogo de Búzios numa relação intrínseca com práticas culturais africanas e
com jogos de tabuleiro e assim fazemos uma relação com o Mancala Awelé. No
nosso principio o tabuleiro de Mancala, tem seus signos e símbolos de alta relevância
para a cultura africana, consequentemente para nós afro-brasileiros. Inclusive em
alguns países do Continente africano o jogo Mancala já foi utilizado como jogo de
adivinhação a exemplo do Quênia, como apontou a pesquisadora Eliane Costa
Santos na palestra de abertura desse curso sobre a visão de criação do mundo dos
povos Masai, da região do Quênia no qual estava incluso o mancala .

Aqui, falaremos do jogo de Búzio, incluímos algumas informações sistematizadas


pela laboriosa pesquisa do antropólogo Júlio Braga em sua tese defendida na
Universidade Federal do Zaire7, “O jogo de búzios: um estudo da adivinhação no
Candomblé” (1988), uma vez que esse é o mais notável jogo de matriz africana
presente no Brasil. No aspecto dessa pesquisa, o jogador é um sacerdote, o que

6
A nação bantu trouxe seus inquices; a nação ioruba, os orixás e a nação fon, os voduns (BARROS,
2011).
7
Atual República Democrática do Congo.

6
difere e muito, do jogador do Mancala de algumas regiões, em especifico na África
contemporânea e diáspora.
Segundo Júlio Braga, o jogo de búzios constitui uma das formas de consulta a
divindades para manutenção do equilíbrio entre o mundo de seres animados e
inanimados e o mundo invisível. Por meio do jogo de búzios, a solução de um
determinado problema deve ser encontrada sem que se perca de vista o sentido da
relação entre o homem e a sociedade. O adivinho serve de conciliador do homem
com ele mesmo; do mundo sagrado com o mundo profano.
O autor informa ainda que, por meio do jogo, a vida do consulente é
simbolicamente projetada no microuniverso representado pela configuração dos
búzios lançados. Cabe ao sacerdote decifrar os sinais provenientes das divindades
consultadas. Vários elementos contribuem para que o adivinho possa encontrar a
solução que mais interessa ao consulente e que corresponda às determinações
sagradas. Mas, basicamente, os sacerdotes, ou pais e mães de santo memorizam as
configurações mais frequentes formadas pelos búzios, assim como seus respectivos
significados, o que lhes permite uma rápida leitura do conjunto das configurações que
se formam pela totalidade dos búzios lançados.

Bibliografia
ANTONACCI, Maria Antonieta. Memórias ancoradas em corpos negros. São Paulo:
Educ, 2014.
BAPTISTE, Munguele Kiyungu Jean. Dinamismo Cultural Bantu e Religião: o resgate
das estruturas simbólicas bantu. 197f. Dissertação de Mestrado – Ciências da
Religião, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2003.
BARROS, Marcelo (org.). O Candomblé bem explicado: Nações Bantu, Iorubá e Fon/
Odé Kileuy e Vera de Oxaguiã. Rio de Janeiro: Pallas, 2011.
BRAGA, Júlio. O jogo de búzios: um estudo da adivinhação no Candomblé. São
Paulo: Brasiliense, 1988.
DIAGNE, Mamoussé. Lógica do escrito, lógica do oral: conflito no centro do arquivo.
In HOUNTONDJI, Paulin (org.). O antigo e o moderno: a produção do saber na África
contemporânea. Magualde: Pedago; Luanda: Universidade Agostinho Neto, 2012.
MACHADO, Vanda. Pele da cor da noite. Salvador: EDUFBA, 2013.
OLIVEIRA, Eduardo David de. Cosmovisão africana no Brasil: elementos para uma
filosofia afrodescendente. 3.ed. Curitiba: Editora Gráfica Popular, 2006.
RIBEIRO, Ronilda Yakemi. Alma africana no Brasil: os iorubás. São Paulo: Editora
Oduduwa, 1996.
São Paulo (SP). Secretaria Municipal de Educação. Orientações Curriculares:
expectativas de aprendizagem para a educação étnico-racial na Educação Infantil,
Ensino Fundamental e Médio - Educação Étnico-Racial. São Paulo: SME / DOT,
2008.

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