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Segunda Edição

2022
EXU NAS ESCOLAS- UMA PROPOSTA EDUCACIONAL
ANTIRARACISTA

2022, Editora Cooperativa Parentes, Fortaleza, Ceará.

Editora Responsável: Daniela Campelo Lima


Ilustração da Capa: Wellington dos Santos Lima
Projeto Gráfico: Diagramação e revisão: Equipe Cooperativa
Parentes

Pereira, Linconly Jesus Alencar.

E X U N A S E S C O L A S - U M A P R O P O S TA E D U C A C I O N A L
ANTIRRACISTA/
Linconly Jesus Alencar Pereira. 2. ed. Fortaleza, CE/Brasil. Editora
Cooperativa
Parentes, 2022.

142p,; 15x21 cm.


ISBN Impresso: 978-65-997018-2-5 / ISBN E-book 978-65-88478-22-6

Copyright [2022] by Linconly Jesus Alencar Pereira.

1. Exu nas Escolas 2.Transgressão 3.Educação Antirracista I.Título.

CDD:370

A responsabilidade pelo conteúdo dessa obra é exclusivamente do autor.


E-mail da Editora: editoraparentes@gmail.com
DEDICATÓRIA

Aos ancestrais.
Às crianças de terreiro.
Aos meus filhos Gabriel e Jackson.
A Maria Helena, minha avó que me ensinou a contar
histórias.
A Afrânio e Fátima, genitores que sempre estiveram ao
meu lado em todos os instantes.
À Lyndson, Afrânio Segundo e Lorena, irmãos e Irmã
que eu tenho a alegria de compartilhar uma vida com
felicidade.
Ao meu Babalorixá Leonardo Ty Oxum, por ser luz e
grande orientador em todos os momentos.
Axs filhxs do terreiro-escola Ilê Axé Oba Oladeji.
Ogans, Ekedes,Ebomis, Yawos e Abians, todxs que juntxs
me inspiram todos os dias para transgredir as barreiras
existentes.
A jovem esu por compartilhar grande parte dessas
ideias comigo no decorrer dessa caminhada.

Babá Linconly Jesus Alencar Pereira


SUMÁRIO SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...........................................................................11
IKORITA - ABRINDO CAMINHOS ...........................................11
NRIN NI OPOPONA – CAMINHANDO NA ESTRADA ...........17
IBERE – O INÍCIO .....................................................................27

1º CAPÍTULO - UM (RE)ENCONTRO COMO LEGADO


ANCESTRAL ............................................................................37
1.1 Diáspora das populações africanas ......................................44
1.2 Tecnologias de resistências - das senzalas aos terreiros .....46
1.3 Paradigma ancestral. Por que Exu nas escolas? – Primeiras
Reflexões ....................................................................................54

2º CAPÍTULO - O TERREIRO TAMBÉM É UMA GRANDE


ESCOLA ....................................................................................65
2.1 A interconexão entre a ancestralidade do orun e a memória
cultural ancestral no aiye ............................................................71
2.2 O processo de cosmobiointeração ancestral dinamizado
por exu ........................................................................................78
2.3 Nos quatro caminhos de uma encruzilhada .........................84
2.4 Ligação com o caos (rudurudu) de Exu ................................86
2.5 Ligação com o conhecimento (imo) ......................................91
2.6 Ligação com o corpo sagrado (ara mimo) ............................96
2.7 Ligação com a magia (idan)..................................................98

3º CAPÍTULO - EXU NAS ESCOLAS - O CAMINHO DE


CONSTRUÇÃO PARA UM NOVO CENÁRIO
CIVILIZACIONAL....................................................................103
3.1 O que é Exuística? Exu tem tudo a ver com a educação ...109
3.2 Referenciais didático-metodológicos...................................119
3.3 Didática da circularidade.....................................................121
3.4 A minha sala de aula é uma encruzilhada de
possibilidades ...........................................................................126
3.5 O/a professor/a se transforma em Exu ...............................129
3.6 Considerações – Começo – Meio – Começo......................133

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ..........................................137


INTRODUÇÃO
IKORITA - ABRINDO CAMINHOS

Peço licença, permissão e benção aos meus


ancestrais, e Mojubá1 para Exu2, o senhor dono das
encruzilhadas, das brincadeiras, o grande mensageiro
que transita entre o espaço sagrado onde habitam os
seres visíveis e os invisíveis, para dar início a esta
caminhada. Venho convidar a todos/as vocês para que
juntos possamos transpor as inúmeras barreiras que
existem nas nossas mentes, na nossa história, na
escola e até dentro dos muros dos terreiros, afinal a
colonialidade e as estratégias de alienação estão muito
bem estruturadas para que fiquemos perdidos na
inércia ou imersos nesse estado de dominação da atual
modernidade. Falo do início da segunda década do
século XXI.
Caminho entre o fluxo e o refluxo das ações
disruptivas, pois assim como Exu, busco a
desconstrução, desestruturação de padrões, de
modelos absolutistas, uma tarefa nada fácil, mas
extremamente necessária, tendo em vista a
materialização de verdades absolutas acerca do legado

1
Existem muitos significados para a palavra Mojubá, nós a utilizamos neste
livro através das expressões: “Salve”, “Apresento o meu humilde respeito”,
“Eu te saúdo” ou “Eu te reverencio”.
2
O significado real da palavra Exu é esfera, entretanto, várias explicações
que possibilitam o aprofundamento desse contexto serão feitas no
decorrer deste livro, bem como um intenso processo de desconstrução da
imagem satanizada que ainda existe.

11
e das tradições dos nossos ancestrais, por isso trago
Exu para as escolas. Ele é um dos grandes agentes que
consegue facilmente estabelecer as conexões
necessárias para todo o desmantelamento das
estruturas racistas, brancas,misóginas, sexistas,
transfóbicas, binárias, cartesianas e judaico-cristãs que
estão tão bem suplantadas nos imaginários sociais e
ainda tão fortes dentro das escolas.
É preciso que Exu seja assentado na porteira de
cada escola brasileira para que todos os conhecimentos
e saberes ancestrais dos nossos antepassados entrem
na sala de aula. Falo dos conhecimentos dos povos
originários e das comunidades tradicionais que não
conseguem adentrar ao currículo, nem no livro didático
ou muito menos nas práticas pedagógicas dos
professores e das professoras que não conseguem
implementar a Lei Federal 10.639/03, que inclui os
conteúdos de história e cultura africana e afro-brasileira
nos currículos escolares da educação básica e ensino
superior.
Levar todo esse conjunto de saberes para dentro
das escolas é possibilitar o reconhecimento de
identidades que até hoje foram silenciadas, negadas,
acorrentadas, o que me faz chegar a essa encruzilhada,
que reconheço como um território potente para
projetarmos outro contexto civilizatório, mas neste
momento, assumindo o protagonismo das nossas
próprias histórias. Afinal, para nós povos de terreiro, as
encruzilhadas são espaços comandados por Exu,
locais de reinvenção, um cenário muito potente para

12
referenciarmos a construção de uma nova convivência
planetária.
A primeira ação reparatória que precisamos
desenvolver é o reposicionamento da imagem de Exu e
a desconstrução de toda a estratégia alicerçada para a
sua demonização. O simples ato de falar o seu nome já
pode ser o motivo de medo para alguns, grandes
desentendimentos entre amigos de religiões diferentes
ou brigas para religiosos mais radicais ligados às
matrizes cristãs. A dívida dos colonizadores com Exu é
gigantesca e estamos aqui para reivindicá-la. Exu não é
demônio, não é satanás, aliás essas figuras não estão
presentes dentro da cosmologia Nagô-Yorubá3, nem
dentro dos terreiros de candomblés e iremos esmiuçar
mais a frente toda a estratégia nefasta referente a essa
associação.
Exu é o orixá do movimento, da potencialização da
vida, dos desejos, da comunicação, responsável por
fazer o caos virar ordem e a ordem retornar ao caos,
assim quando necessário. Ele é o princípio esférico da
multiplicação ao infinito, assim é a sede da humanidade
por conhecimento. “Exu é a boca que tudo come”, um
aforismo que representa a fome do conhecimento. Ele é
o responsável pelo fluxo da vida entre os planos
espirituais ou Orun, que estão diretamente
interconectados ao plano material ou Aiye.

3
As palavras de origem Yorubá serão aproximadas do vocabulário escrito e
oral usados dentro dos muros do terreiro, com o intuito de facilitar a sua
compreensão dos/das leitores/as em seu cotidiano, uma vez que sua
escrita original talvez dificultasse o entendimento.

13
Mesmo ainda no começo deste livro, já é possível
perceber as potências de Exu? Vamos caminhar mais
adiante? Precisamos alargar os horizontes de
compreensão de tudo que está ou não dando certo no
universo escolar, por isso os levarei para as escolas e
convido a todos e todas a fortalecerem essa jornada
para que a nossa história possa ser recontada.
Evidenciaremos, nesse livro, uma ação direta dos
nossos esforços para mostrara você leitor/a os
conteúdos ancestrais de uma forma não proselitista.
Esse movimento teve que ser extremamente
desenhado,tendo em vista o intuito de descolinizar as
imagens estereotipadas e com isso evidenciar que nos
espaços de terreiros, nós não temos o papel de
converter ninguém, uma vez que as nossas
comunidades são estruturadas nas práticas de
iniciação. Exu nas Escolas não se trata de ensino
religioso, mas sim uma proposta educativa
antirracista potencializadora de vidas.
Exu vai para as escolas para que possamos
desenvolver uma educação transgressora, decolonial e
emancipatória, com a ação direta de desnudar as
práticas cotidianas conteudistas e bancárias ainda tão
presentes na escola. Somente Exu tem a força para
desestruturar o projeto da branquitude, das elites que
são herdeiras das grandes fortunas, dos grandes
conglomerados internacionais que nos fazem levantar
essa grande onda de reposicionamento epistêmico,
rompendo as hegemonias. A força de potencializar as
narrativas africanas, afro-brasileiras e indígenas

14
presentes nos terreiros de candomblés, umbandas,
juremas e das diversas tradições presentes no território
brasileiro, nos permitem evidenciar todas as
epistemologias guardadas e silenciadas até então, mas
que sempre foram e são utilizadas para a manutenção
da vida do nosso povo. Trazer à tona as tecnologias
presentes nos espaços do terreiro e evidenciá-las nas
escolas torna-se fundamental para a afirmação da
Exuística, uma ciência que tem como agente
dinamizador das suas perspectivas de análises Exu,
mas não vamos adiantar o passo, vou primeiro
apresentar a vocês a estruturação dos capítulos que
virão para que possamos dar comida a essa
encruzilhada do conhecimento com a permissão de
Exu.
No primeiro capítulo, intitulado Um(re)encontro
como legado ancestral, apresento o processo de
diáspora das populações africanas que foram trazidas
forçadamente para o Brasil, sua luta e resistência, bem
como a compreensão do percurso de organização e
estruturação dos primeiros terreiros. Aponto a
necessidade de caminharmos para um novo paradigma
científico em que possamos avançar nas nossas
análises de investigação, de modo a tornar a
ancestralidade um pilar fundamental para escurecer as
tramas das ciências, desestruturando os alicerces do
racismo que ainda é um grande mal planetário.
No segundo capítulo, vamos adentrar a esses
espaços para compreender as epistemologias que
fundamentam as nossas práticas cotidianas, colocando

15
em evidência que o espaço do terreiro também é uma
grande escola. Um mergulho necessário, pois, essa
fundamentação filosófica nos permitirá avançar na ideia
de interconexão entre a ancestralidade do Orun e a
memória cultural ancestral no Aiye dinamizada através
da cosmobionteração. Nesse espaço, utilizo a metáfora
dos quatros caminhos de uma encruzilhada: a ligação
com o caos (rudurudu) de exu, a ligação com o
conhecimento (imo), a ligação com a magia (idan), a
ligação com o corpo sagrado (ara mimo). Darei
visibilidade a quatro caminhos dessa encruzilhada
epistêmica, como principais, mesmo sabendo da
existência de outros, para que possamos materializar
investigações futuras, tendo em vista que essa ideia de
estruturação é apenas inicial.
No terceiro capítulo dessa obra, projetamos a
chegada de exu nas escolas para que possamos
estruturar o caminho de construção para um novo
cenário civilizacional. Nessa perspectiva de
(re)pensarmos novos rumos didáticos metodológicos e
afirmamos que na projeção desse novo cenário
civilizatório exu tem tudo a ver com a educação e será
através da didática da circularidade que
catalisaremos as nossas ações transgressoras. Nesse
capítulo, firmamos as estruturas de mais um marco
reivindicatório, só que agora, em um contexto educativo
que nos possibilitará perceber que a minha sala de
aula é uma encruzilhada de possibilidades e diante
desse caminho traçado o/a professor/a se transforma
em Exu.

16
NRIN NI OPOPONA – CAMINHANDO
NA ESTRADA

Até agora fui direto ao ponto. Fiz questão de


esmiuçar as minhas intenções no desenvolvimento
dessa proposta de transgressão epistêmica,
justamente para tentar elucidar efetivamente as dúvidas
que circundam a construção e execução desse tema,
me fazendo, a partir de agora, descrever a caminhada
que percorri para a sua estruturação.
Transitar entre esses dois lugares, o Terreiro e a
Universidade, me permite relativizar minhas análises e
potencializar a minha vivência cotidiana no primeiro
para dar sentido ao segundo. A intenção é de esmiuçar o
entrelaçamento entre esses lugares não descartando o
lócus do Terreiro, nem minha vivência cotidiana, mas
sim potencializá-la evidenciando os saberes não
apenas de forma sintética, mas agora compreendendo-
os de forma orgânica e ancestral, em uma dinâmica de
confluência de energias, ou seja, em uma grande
conexão de Axé (força vital) pulsante.
Assim, descrevo boa parte dessa estrada já
andada. Trago para essas páginas a minha trajetória
trilhada nestes caminhos entre o território sagrado do
terreiro e o da Universidade, detalhando os sentimentos
e as aprendizagens. Os passos afirmados, ou seja, já
percorridos durante a minha carreira docente me
permitem afirmar que esse percurso não foi tranquilo,
não foi estruturado em uma perspectiva linear, mas sim
de uma intensa descolonização depois do meu

17
processo de iniciação no Candomblé (religião de culto
aos Orixás).
Constatar a minha incompreensão diante da
amplitude deste tematorna-se fundamental, para que
vocês percebam que mesmo depois de toda caminhada
durante as graduações e pós-graduações que cursei,
eu ainda continuava imerso em uma atmosfera de
tentativas de acertos e erros que me fizeram chegar até
aqui.Continuarei no processo de amadurecimento em
busca de mais respostas ao longo de todo a vida
acadêmica, pois o processo de descolonização deve
ser uma prática constante em nossas realidades.
Apenas com a vivência cotidiana dentro do terreiro e os
ensinamentos dos bons conselheiros/as como Exu, os
Orixás, os caboclos/as e entidades como mãe Maria
Conga e Preto Velho da Mata Escura é que pude
decodificar as ideias que vocês encontrarão nas
páginas a seguir.
Falo de palavras de conforto, conselhos e
ensinamentos aprendidos ao som de falas mansas
proferidas por essas entidades, da magia presente na
fumaça dos cachimbos; ou as metáforas aprendidas
através dos saberes do Senhor Tranca Rua das Almas,
das Padilhas, Pombagiras e Ciganas4 que sempre
4
Padilhas, Pombagiras e Ciganas são as mulheres das encruzilhadas.
Aquelas que rompem com os padrões e estruturas sexistas e misóginas
dos seus contextos de vida material aqui na Terra (plano físico) e quando
retornam através dos seus trabalhos na Umbanda vão ser responsáveis
pelo empoderamento dos corpos femininos. As mulheres das
encruzilhadas são as feiticeiras, parteiras, curandeiras, adivinhas e
mulheres Damas, que hoje realizam nos terreiros trabalhos de saúde
coletiva e curas de amor.

18
trouxeram paz diante das minhas batalhas pessoais e
adversidades da vida.
O ato de virar/incorporar no Orixá(divindade
cultuada pelos Yorubás) ou entidades da Umbanda
(religião brasileira resultante da mistura de elementos
de religiões africanas, indígenas, orientais e europeias
(catolicismo e espiritismo kardecista),além de
descarregar a própria matéria/corpo das mazelas da
vida, trazem a calma as mentes mais intranquilas e aos
corpos mais cansados, fosse apenas cansaço físico ou
mental da velocidade do cotidiano moderno. É
importante dizer que dentro do terreiro, o mundo gira em
outra velocidade, porque aqui o tempo é sagrado. O
tempo é compreendido como um Orixá, diferente da
perspectiva Ocidental que nos demanda a contradição
diante da pressa imposta pela sociedade capitalista.
No Terreiro o Tempo sagrado ou Orixá Iroko,
associado as gameleiras brancas, assume sobretudo, o
caráter educativo, dando significado a vida e a saúde
mental. Nesse mesmo rumo, associo a compreensão
de Tempo aos ensinamentos que me foram passados
pelos Pretos e Pretas Velhas (entidades que têm como
principal lição de vida a humildade,simplicidade,
generosidade e ações de cura...) que tantas vezes me
falaram que tudo na vida tem o seu devido tempo para
dar certo. Foi essa compreensão de tempo sagrado que
me permitiu chegar aqui e entender que nos caminhos
da ancestralidade os passos devem ser dados de forma
certeira e que mesmo para afirmarmos uma proposta
educacional transgressora como é “o Exu nas Escolas”

19
temos que ser prudentes e estratégicos, elementos
fundamentais que me proporcionam base para chegar
até esse lugar e deixar emergir minha voz que ecoa
nesta escrita.
Hoje, sei que a materialização de todo esse
trabalho já estava esboçada no Orun (planos
espirituais), todo esse plano já estava muito bem
traçado, mas ele chega, agora,em suas mãos aqui no
Aiye (plano material) através da ressignificação da
minha vida no terreiro-escola Ile Axé Oba Oladeji – a
Casa do Rei que veio para multiplicar a riqueza, um
Terreiro de Candomblé Ketu situado no município de
Maracanaú, região metropolitana da cidade de
Fortaleza, no Ceará.
Sempre visualizei o grande desafio que seria
desconstruir a crosta satanizada atrelada a imagem de
Exu e às religiões de matrizes africanas e afro-
brasileiras, a luta de enfrentamento contra o racismo
estrutural, religioso e epistêmico, bem como a
necessidade de repensar, através do universo
cosmológico dos Terreiros, novas epistemologias.
A Pandemia vivenciada no contexto mundial
ocasionada pelo Coronavírus, nos impôs a necessidade
do distanciamento social e em um contexto planetário
as estruturas sociais tensionaram a emergência de
várias questões em caráter de urgência, como por
exemplo, o levante de uma grande onda de
enfrentamento ao Racismo Estrutural.
É preciso refletir e buscar novas maneiras de
viver, de ler e de interpretar o mundo, e neste período de

20
pandemia, enquanto estava isolado do convívio da
comunidade religiosa e da universidade, mergulhei
nessa pesquisa. Como estratégia de comunicação com
o mundo fora do terreiro, mergulhei nas redes sociais e
na produção de conteúdo digital para o meu canal no
Instagram @linconlyjesus, dialogando com
Babalorixás(pais de santo), Yalorixás(mães de santo),
adeptos/as de terreiros de todo o Brasil. Meu intuito foi o
de sair da bolha do espaço acadêmico e levar para as
redes sociais o diálogo a partir das investigações que
vinha desenvolvendo.
Convidei para essa encruzilhada do
conhecimento, colegas professores/as que se
propuseram a falar, cantar, sentir e perceber o mundo,
expandindo os seus sentidos. Todo esse processo de
5
alargamento e conexão dos meus cosmosentidos me
proporcionou visualizar novos caminhos para começar
a construir essas ondas de microrevoluções para um
mundo que quero ajudar a construir. Toda essa
movimentação não é nada fácil. Vivemos em um
momento histórico, em que a humanidade inteira busca
novas formas de construir as relações sociais em
ambiente virtuais, em que as fragilidades emocionais
eclodiram com força total devido ao isolamento e
distanciamento social. Esse é o contexto em que nasce
este livro.
Essa grande onda gerou uma série de

5
A abordagem a que me refiro ao longo de todo o texto é a compreensão de
alargamento da ideia de cosmosentidos e cosmopercepções da
OYĚWÙMÍ (2002).

21
possibilidades para a implementação da Lei
10.639/2003, que alteram a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação – LDB – Lei 9.394/96, nos artigos 26 A e 29 B.
O reposicionamento cognitivo desses conteúdos se
intensifica quando colocamos Exu na porta das escolas.
Para que a cultura africana, afro-brasileira e indígena
consiga entrar e se reposicionar dentro da sala de aula,
na efetivação de uma prática pedagógica em que a
valorização desses saberes, tradições e filosofias
sejam desenvolvidos na efetividade.
Essas barreiras estão muito bem alicerçadas
dentro da estrutura social e no currículo, na formação de
professores/as, na gestão escolar e em nossas práticas
pedagógicas. Romper com o silenciamento referente
aos conteúdos trazidos de África e ressignificados
dentro dos muros dos terreiros é dar um grande grito na
encruzilhada do conhecimento, em que as tramas da
ciência eurocêntricas provocam até hoje o apagamento
das nossas epistemologias.
Assim, minha voz ultrapassa os muros do Terreiro.
Falo das minhas vivências cotidianas, dos saberes e
ensinamentos que aprendi com os/as mais velhos/as no
decorrer de décadas de iniciação no Candomblé e no
contato direto com a demais religiões de matrizes
africanas e afro-brasileiras. Parto das minhas
pesquisas desenvolvidas enquanto Babalorixá,
investigações realizadas para a resolução de questões
do dia a dia no Terreiro, sendo esse espaço ancestral,
um grande centro educativo, uma verdadeira escola.
Suas salas de aula são as sombras das árvores, a

22
cozinha do Orixá, o barracão, as vivências coletivas
durante o desenvolvimento das práticas ritualísticas em
que os/as filhos/as de Orixás aprendem, congregam e
retroalimentam seu Axé, fortalecendo suas conexões
ancestrais.
6
Utilizo as rodas de Xirê e as giras de Umbanda
como ambientes propícios para o desenvolvimento de
práticas educativas, o que me possibilita intensificar o
cantar-dançar-batucar (LIGIÉRO,2011) como ação
revolucionária, necessária e responsável para a
descolonização de corpos e mentes engessados pelos
sistemas de dominação/opressão e que agora serão
ressemantizados de acordo com as vibrações
energéticas dos Orixás e Encantados/as (entidades
presentes no panteão da Aruanda,plano espiritual da
Umbanda) , promovendo uma intensa conexão
ancestral.
Assumo o protagonismo da minha própria história,
contando essa trajetória que foi e é caminhada todos os
dias entre o Terreiro e a Universidade, só que agora
reivindicando o legado dos meus ancestrais e do povo

6
Xirê - Trata-se da organização ritual que vai para além das danças dos
Orixás, constituindo a estrutura social das casas, a ordem ritualística
iniciada sempre por Exu e finalizada por Oxalá, mas também o
sustentáculo político-espacial como estratégia de sobrevivências dos
saberes e tradições dos grupos étnicos africanos no contexto da diáspora.
Através dessa organização social, as matrizes culturais africanas e afro-
brasileiras fundiram-se nos terreiros dando corpo e retroalimentando a
força vital das populações de africanos e seus descendentes no Brasil.
Gira de Umbanda é a denominação dada aos rituais religiosos nos
encontros regulares num centro de Umbanda, realizados com intenção de
propiciar desenvolvimento espiritual, limpeza, descarrego, etc.

23
da encruzilhada. Acredito que só assim, deixarei esse
diálogo mais fluído, pois nessa encruzilhada epistêmica
trabalho com Exu, o grande filósofo que potencializa a
vida e que, através de suas metáforas, me ensina todos
os dias os conhecimentos ancestrais que são tão
potentes para a minha existência.
Meu intuito é o de promover um grande giro
epistemológico e com isso transgredir e dialogar com
pesquisadores/as que saíram dos terreiros e foram para
as Universidades assim como eu, pois esse foi o
d e síg n i o d o s/a s Ori xá s. Pa ra a q u e l e s/a s/e s
pesquisadores/as que ainda nos veem, nós Povo de
terreiro, apenas como fonte de pesquisa, objetos de
análises, falo que essas ações foram pensadas por Exu
e que dessa forma, intensificaremos a aproximação dos
saberes e conhecimentos ancestrais do terreiro para a
melhor percepção e aplicação por parte dos
professores e professoras da educação básica e das
Universidades. O meu desejo é que esses conteúdos
cheguem verdadeiramente ao chão das salas de aulas,
intensificando a luta antirracista.
Convido todo o povo candomblecista, umbandista,
juremeiro e das demais religiões de matrizes africanas e
afro-brasileira para repensarmos juntos/as o espaço do
terreiro, para que este seja compreendido também
como espaço educativo, terreiros-escolas,
ressignificando suas condições de existência e
promovendo a autonomia do nosso povo, com base no
legado dos/as nossos/as ancestrais para possamos
também potencializar um novo projeto de sociedade

24
que nos contemple, que nos inclua verdadeiramente.
Finalmente, invoco para essa roda de Axé e
potencialização da vida, todos/as aqueles/as leitores/as
que percebem que está mais do que na hora dos
saberes dos povos originários e tradicionais criem
raízes nas práticas pedagógicas dos espaços escolares
e nos currículos para passamos intensificar as
estratégias de implementação da Lei 10.639/2003.

25
IBERE – O INÍCIO
(Re)nasci no ato da minha iniciação para o Orixá
Xangô, Dono da oratória, Senhor da justiça, o próprio
trovão. Aquele que se transforma em fogo nos
momentos de fúria, o Rei de Oyo, na Nigéria africana,
onde sua dinastia comanda esse território até hoje.
Durante a minha feitura/iniciação para esse Orixá,
no “ato de virar” ou incorporar, eu me reconectei com os
meus ancestrais. A feitura ou iniciação, como
denominamos no cotidiano do terreiro foi um divisor de
águas em minha vida. Esse processo de reconexão, de
(re)encontro foi para além disso, um momentode
encantamento em que a magia preta ancestral é
potencializada através dos elementos da natureza. A
terra, o fogo, o ar, as águas doces e salgadas, os seres
vivos e não vivos proporcionam a percepção do quanto
é significativo a ruptura das amarras da colonialidade.
Durante esse período de transfiguração do corpo
dos/as iniciados/as, tudo vai acontecendo conforme os
dias e rituais desenvolvidos e que expandem os
cosmosentidos e cosmopercepções(OYĚWÙMÍ,
2002)fazendo com que o corpo colonizado e profano
passe a ser sentido/compreendido como microcosmo
de Axé, a energia vital pulsante.
Por muitos anos, escutei e ainda escuto a célebre
frase de muitas pessoas que batem nas portas dos
terreiros: “eu não nasci para o Orixá é muita
responsabilidade”. Realmente esse processo de
(des)construção de valores estereotipados e as

27
rupturas com os valores de uma sociedade
ocidentalizada de forma consciente é a abdicação de
um modo de vida falido e aniquilado pelo capitalismo,
que com seu fetichismo frenético nos aliena aos
modelos e caixas dos padrões do mundo moderno.
Nesse sentido, torna-se ação prioritária para
continuarmos nesse planeta, agirmos com base no
legado dos ancestrais, aprendendo com base nesses
ensinamentos, filosofias e modos de vida, novas
perspectivas para a transformação do presente, para
que possamos visualizar um futuro. É fundamental que
possamos elucidar também que ninguém nasce para o
Orixá, mas sim, eles e elas nos (re)encontram aqui, no
Aiye, porque esse acordo já foi feito no Orun.
Percebi que a sacralização do meu corpo também
me projetou a uma série de questionamentos, conflitos
e tensionamentos que até então eu não compreendia.
Como antes da iniciação eu não tinha a vivência das
realidades que cercam a vida dos/as iniciados/as, eu
não conseguia compreender o incômodo que o meu
corpo causaria nas pessoas a partir daquele momento.
Na busca de materializar essa percepção, trago o relato
de uma yawo (adepta já iniciada) do meu terreiro que
descreve muito bem as suas vivências ao finalizar o
processo de iniciação e retornar para casa.

[...] bem quando eu me iniciei, eu passei por


vários processos, na questão do racismo
religioso. No momento que a gente sai do
roncó, a gente sai como uma nova pessoa,
como uma criança de volta para a vida, meio
que atordoada do que vai encontrar lá fora,

28
visto que o tempo do recolhimento é um espaço
que convivemos apenas com as pessoas do
terreiro onde a realidade é outra. Eu sou do
Crato e o terreiro é em Fortaleza, são quase
700 km de distância. Quando eu tive que
retornar para casa, eu voltei, logicamente, com
todas as indumentárias. Estava de branco, com
a cabeça raspada e tive que voltar com um
pano de cabeça, com contraegum, alguns fios
de conta e tive que entrar no ônibus. Então, já
presenciei os olhares de estranhamento das
pessoas, os cochichados dentro do ônibus com
aquele estranhamento total. Não podia comer
qualquer tipo de coisa, pois estava de preceito
e aí em cada parada para se alimentar, tinham
os olhares de estranhamentos, mas o pior foi
quando eu retornei para o trabalho. Eu dava
aula em uma escola de educação infantil e a
dona do estabelecimento ficou sabendo e
automaticamente eu fui convidada a me
desligar da equipe. Eu tinha acabado de ser
contratada e estava no processo de mandar
fazer a farda. A mulher estava louca para falar
comigo em caráter de urgência para me colocar
para fora. Ela não me disse o porquê, mas
fiquei sabendo em momento posterior que era o
fato dela ser evangélica e tinha descoberto que
tinha uma macumbeira na escola dela, então
eu fui convidada a sair com a desculpa que o
quadro estava completo e não precisava mais
dos meus serviços. (YASKARA, 2021)

Exemplificar esse processo através do relato de


Yaskara é extremamente necessário para aqueles/as
que não são iniciados ou que não tem a proximidade
com o cotidiano dos terreiros, tendo em vista que essa é
uma realidade frequente vivida por todos/as que estão
nos seus momentos de preceito religioso (pós-ritual no
terreiro, mas já em convivência com a comunidade

29
externa, porém com restrições, sejam ela de roupas,
alimentares, etc).
O simples ato de cumprir o processo ritualístico
fora do terreiro trajando branco, com a cabeça coberta,
fosse por um oja (pano de cabeça) ou boné, usando os
fios de contas chamava atenção, despertando reações
mais adversas, desde a associação a doenças e
tratamentos médicos ou a ação direta de ataques
psicológicos, morais ou físicos. Compreendo, hoje, que
toda essa estruturação é consequência do racismo
estrutural e que reverbera para os povos de terreiro
como racismo religioso.
A demarcação da identidade afroreligiosa através
das roupas, indumentárias, fios de contas, guias ou
colares são ações de extensão dos nossos modos de
vida, mas também fazem parte da demarcação política
ancestral. Me refiro a um corpo político, mas que
tensiona as preconcepções ou preconceitos apenas
pelo fato de ser visto nos amplos espaços da sociedade
e que pelo simples fato de existir daquela forma pode
ser o estopim para xingamentos como “está
repreendido”, “sangue de cristo tem poder”, “xô
satanás”, “está amarrado em nome de Jesus”. É meus
amigos, acredito que todos aqueles que
passaram/passam por seus momentos rituais ou
colocam o seu corpo para jogo nos roles (vivências nas
ações do cotidiano, jogo de corpo, situações de
enfrentamento ou superação)fora do terreiro já
passaram por isso e sofreram com as consequências
desse tipo de racismo.

30
Os tensionamentos, às vezes, param por aqui,
mas quando prosseguem podem chegar a agressões
de várias espécies, violências físicas, psicológicas ou a
perseguições sejam elas nas escolas, residências por
parte de vizinhos/as ou no trabalho ocasionando em
desligamento de empresas, transferências de setores,
enfim. As pessoas de terreiro têm isso como vivência
cotidiana, conhecem muito bem essa realidade como
podemos visualizar na fala de YASKARA (2021).
Todo esse processo também acontece de forma
muito intensa na escola, por isso percorreremos ao
longo dessa obra o caminho de construção de novas
bases epistemológicas e didático metodológicas que
partiram do terreiro para a escola. Tornar evidente essa
caminhada para a construção de um outro sentido com
base na ancestralidade é peça fundamental para
combatermos o racismo religioso. O primeiro passo foi
dado quando evidenciamos a materialização da
perspectiva de ancestralidade na fala do professor Tom
Jones em uma live no ano de 2020 em que discutíamos
educação popular: candomblé e ancestralidade.
Tom nos possibilitou a compreensão de que o
terreiro tem o papel fundamental de reconstrução de
uma ancestralidade mítica quando nos aproximamos ao
longo de uma trajetória religiosa dos nossos Orixás.
Para além da compreensão e evidenciação dos nossos
ancestrais sanguíneos, a ancestralidade mítica
presente dentro dos terreiros nos dá base para
mergulharmos em um outro contexto cosmológico para
a sustentação da vida aqui no Aiye (plano material).

31
É importante para entender esse ancestral
mítico, como algo muito importante para a
constituição da tessitura da ancestralidade do
lugar de onde vêm da população negra que foi
usurpada da África e foi escravizada no Brasil,
por exemplo. Não é, porque a todo momento
muda-se tudo, muda nome, você não tem lugar,
você perde todas as suas referências... Então,
você precisa construir essas relações, e aí eu
volto a lógica da ancestralidade na
encruzilhada, porque os caminhos são vários.
Tantos caminhos aparentes quanto os
caminhos que não estão aparentes, e a escola
é diferente do terreiro. Ela precisa ser diferente
do terreiro, embora bebendo de elementos que
o terreiro pode ensinar. Porque ela pega o
saber e os sedimenta, né?Ela sedimenta os
saberes. Ela organiza de outra forma, ela torna
esses saberes didáticos ou pedagógicos, numa
lógica. Sim, é trazendo essas palavras
pedagógicas, conceituais da área da
Educação, mas eu preciso saber como é que
eu faço. Ela já está ali, eu preciso dar a
oportunidade para que as necessidades sejam
vistas e valorizadas. (PEREIRA; JONES,
2020)

O grande problema enfrentado atualmente, na


implementação das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 é
justamente a incompreensão ou associação direta de
todo esse universo das diversas ancestralidades
míticas presentes em todo o Brasil, aos estereótipos
presentes nas religiões de matrizes africanas. A ideia de
demonização e satanização de qualquer elemento
impede que seja evidenciado todos os conhecimentos
que são produzidos nesses espaços, como por
exemplo, conseguimos evidenciar nas falas de Tom.

32
A escola não é, não está ali para ensinar
religião, mas quando eu tenho uma criança que
se sente intimidada de dizer que ela é amiga de
Nanã há algum problema naquela escola. [...] E
aí eu me lembrei, o terreiro ao qual eu pertenço
fica em Olinda. É um espaço cheio de crianças
filhas e filhos dos meus irmãos, e a gente tem
uma criança, chamada Luanda que é filha de
Luane, é uma meninazinha assim, deste
tamanho, tem 5 anos, essa é um dos exemplos.
O terreiro que é esse espaço também de
aprendizagem onde nós todos somos
responsáveis pela Luanda. Não é só a mãe
dela e o pai dela, somos todos nós ali, como
comunidade. Ela tem um empoderamento de
quem ela é. Ela adora vestir roupa de terreiro.
Ela bate cabeça pro Orixá e ela se apresenta,
sabe como? Eu sou Luanda de Xangô.
Entende? Então, essa criança quando for para
escola, se essa escola não for um lugar que
acolha essa ancestralidade, a Luanda de
Xangô, em algum momento, vai se sentir
intimidada de dizer quem ela é. Ela vai sentir
intimidada de dizer e pode inclusive se diminuir,
retraindo esse orgulho de que ela é uma
criança de terreiro desde sempre, desde que
nasceu, né? Porque ela quando muito
bebezinha precisou fazer uma cirurgia no
coração, tirou o coração do peito para poder
consertar uma coisinha que estava ali,
precisando de ajuste e ela aprendeu, vem
aprendendo desde pequenininha que foi Oxum
que cuidou dela. Então, quando as outras
crianças virem a marca no peitinho dela aqui, a
marca da cirurgia e perguntarem, e ela disser
que foi Oxum que cuidou dela... Se a escola
não estiver aberta para essa outra perspectiva
de ancestralidade, a Luanda de Xangô vai ter
uma experiência não positiva com a escola.
Então, eu preciso contar outras narrativas,
acho que foi Samuel se eu não me engano, que

33
perguntou. Sabe Samuel, é preciso contar
outras narrativas que não sejam apenas as
narrativas eurocêntricas. Eu não tô falando
aqui de texto literário, apenas, mas é trazer
para criança o orgulho de quem ela é, de onde
ela vem e das relações que ela estabelece de
todas elas, não é? E aí construir uma boa
relação com a escola, com a família, com aquilo
que ela experiencia e saber que esta criança de
5 anos, que Luanda vai para escola com
saberes, ela não está vazia de conhecimento.
Ela carrega no seu corpo, ela carrega no seu
crespo. Ela carrega na sua roupa, na sua
família uma herança ancestral e carrega no seu
Ofò na sua palavra ao dizer que é de Xangô ao
dizer que Oxum cuidou dela enquanto ela
estava na mesa cirúrgica. Ela carrega saberes
que a escola precisa acolher. (PEREIRA;
JONES, 2020)

E é com base no exemplo de Luanda de Xangô


que evidenciamos o grande tensionamento dessa obra
que é o processo de transgressão de todas as barreiras
referentes as ancestralidades, sejam elas sanguíneas
ou míticas. As escolas têm por obrigação a
implementação das duas leis, mas o silenciamento, a
falta de outras narrativas ou bases epistemológicas que
contemplem os referenciais africanos, afro-brasileiros
ou indígenas, ou apenas os trabalhos pontuais nas
datas comemorativas não dão conta desse enorme
desafio.
Crianças como a Luanda de Xangô, logo são
vítimas do racismo religioso e com isso silenciadas
dentro das salas de aula, entrando em uma grande
contradição, porque enquanto sua identidade dentro do
terreiro é potencializada, na sala de aula ela é calada,

34
negada, estigmatizada e consequentemente Luanda de
Xangô não se identificará e terá sequelas de todo esse
processo para a vida toda. Dependendo das situações
de violências ou negligências por parte da escola,
Luanda será expulsa do sistema escolar e infelizmente
essa é uma realidade vivenciada cotidianamente pelas
nossas crianças e jovens de terreiro. Por isso, essa obra
não é escrita apenas para educadores e educadoras,
mas para todas as pessoas que se encontram assim
como eu, na encruzilhada do conhecimento entre o
terreiro e a escola, para as que não perceberam ainda
este grande hiato cultural que segrega e hostiliza, e as
que percebendo se sentem, muitas vezes, impotentes.

35
CAPÍTULO I
UM (RE)ENCONTRO COMO
LEGADO ANCESTRAL
O terreiro é um espaço de confluência. Essa
afirmação nos impele a esmiuçar algumas das diversas
questões que trazem as pessoas para essas ilhas da
África, no Brasil. Muitos/as chegam aqui porque sentem
a necessidade de se (re)encontrarem e logo atribuem
essa necessidade a uma cobrança espiritual, ou
utilizam a expressão recebi “um chamado”, pelo menos
é essa umafala muito recorrente por diversas pessoas
que buscam se reencontrar nesse universo religioso. Já
outros/as têm a curiosidade aguçada através do
encantamento, da imagem que é criada com base
nesses espaços religiosos e sentem uma vontade de
viver ou explorar as diversas curiosidades, cores e
cheiros, lendas e tradições que giram em torno da figura
mágica ancestral atribuída a esses espaços.
Muitos/as dos/as que chegam nos terreiros
buscam o equilíbrio, seja ele mental, espiritual ou físico,
ou simplesmente procuram soluções para questões
amorosas, financeiras, mas uma coisa é fato,
independente da demanda,o Axé do terreiro sempre vai
impactar a conexão da memória ancestral (categoria
que aprofundarei mais à frente) de cada um/uma que
cruzar essa porteira.
A (re)conexão com a ancestralidade que estava
adormecida e entra em cena com a ativação da
memória ancestral, nem sempre é um processo fácil ou
tranquilo, tendo em vista o doloroso exercício pela parte
de muitos de desestruturar-se, despir-se da
racionalidade e do enraizamento eurocêntrico, branco,
hétero e normativo que impede a conexão com os

39
cosmosentidos e cosmopercepções. Aqueles/as que
conseguem de alguma forma estabelecer as suas
ligações, diante desse universo complexo de emoções
e sentimentos, passam a viver com a perspectiva que
denominarei como racional ancestral, ou seja, a
racionalidade que não é captada ou muito menos
compreendida de acordo com o paradigma newtoniano-
cartesiano ainda tão presente na nossa
contemporaneidade.
A superação das barreiras existentes é
compreendida através da intensificação dos sentidos,
nessa perspectiva o corpo passa pelo processo de
iniciação para o Orixá, transmutando-se de um corpo
profano, para um corpo sagrado, ou seja, um
receptáculo de Axé. Está nascendo o yawo, aquele/a
que foi encantado no segredo ancestral dos Orixás.
Nesse processo também, a potencialização do caos
interno acontece para que a ordem seja
(re)estabelecida através de Exu Bará8, o dono do ARA
(corpo), também nasce, mobilizando as ações internas,
ampliando os horizontes dos nossos sentidos. É
importante destacar que para muitos/as esse processo
é extremamente dolorido, pois são forçados a retirar-se
das zonas de conforto da racionalidade que não
compreende as nossas práticas cotidianas de
manutenção da vida, ou que estão ainda sobre o
controle das tradições e dogmas judaico-cristãos.
A desfragmentação de todos os ensinamentos dos

8
Exu Bará – É o senhor dono do corpo, que aprofundaremos mais à frente.

40
nossos antepassados foi muito bem alicerçada por
aqueles/as que contaram/contam a história dos/as
vencedores/as promovendo a manutenção de um outro
epistemicídio. Comparo aqui, os conhecimentos que
foram perdidos, falo das vidas ceifadas, dos saberes
que foram jogados ao mar, que estavam guardados nos
corpos africanos que não cruzaram o Atlântico.
Aqueles/as que morreram e que não tiveram a chance
de em vida contar suas histórias, mas que hoje através
da compreensão da ancestralidade retornam para
contar suas histórias e romper com esse silenciamento.
O comando de toda essa estrutura de
superexploração parte dos grandes conglomerados
econômicos internacionais, que através do jogo
monetário e suas negociatas, promovem a manutenção
da colonialidade, do patriarcado, da divisão
internacional do trabalho, reforçando as bases de
exploração moderna. Tudo isso teve início com a
fragmentação das civilizações africanas no contexto da
diáspora e do escravismo criminoso, que se delonga na
dita modernidade tardia, ocasionando a falência dessa
base capitalista fetichista no contexto da pandemia
mundial do novo coronavírus.
O panorama de uma modernidade inacabada,
construído histórica e epistemologicamente a partir da
exploração dos recursos naturais e da opressão dos
povos originários, nos provoca a refletir e apontar
caminhos para uma urgente transformação das nossas
ações pessoais e coletivas, com a perspectiva de que a
raça humana possa repensar suas formas de conviver

41
com as outras espécies e ressignificar o trato com a
natureza, compreendendo o planeta Terra como nossa
grande casa.
O epistemicídio das tradições e culturas africanas,
afro-brasileiras e indígenas foi desenvolvido em um
cenário muito bem arquitetado, direcionando o nosso
olhar para a leitura de uma história única e alicerçada no
capitalismo predatório. A falta de conexão com as bases
ancestrais nos força a dinamização de um tempo sem
sentido, acelerando a cultura das relações líquidas que
promovem o desencantamento da vida, pois tem como
base a cultura fast food, pasteurizada, me fazendo
apontar esses fatores como fortes indutores ao
adoecimento da humanidade nos empurrando a um
abismo iminente.
A falta de entendimento da natureza como espaço
sagrado e a exploração dos recursos naturais têm
gerado a extinção de milhares de espécies de seres
vivos (animais e vegetais); desequilibrando os
ecossistemas terrestres, aumentando o abismo
existente entre os laços ancestrais e o nosso modo de
vida; fortalecendo as vulnerabilidades e desigualdades
sociais; intensificando o colapso planetário, nos
levando a necessidade de repensarmos nossa
existência e a perspectiva de caminharmos para um
novo paradigma civilizatório em que a ancestralidade
seja pilar de sustentação para o desenvolvimento da
humanidade.
Segundo Quijano (2000, p.93), a colonialidade é
um dos elementos constitutivos e específicos do padrão

42
mundial do poder capitalista. Se funda na imposição de
uma classificação racial/étnica da população mundial
como pedra angular deste padrão de poder. Seja no
controle da economia; controle da autoridade; controle
da natureza e dos recursos naturais; controle do gênero
e da sexualidade; controle da subjetividade e do
conhecimento; a colonialidade se reproduz em uma
tripla dimensão: a do poder, do saber e do ser.
(BALLESTRIN, 2013, p.100)
Nesse sentido, a colonialidade escraviza corpos e
mentes acorrentados em uma estrutura durável,
renovada sobretudo por meio do sistema educacional,
que tem como base a manutenção das injustiças
cognitivas. Não somos ingênuos, nos fazendo afirmar
que a manutenção da colonialidade também é
desenvolvida pelo sistema educacional que ancora
uma:
[...]lógica totalitária investida e mantida ao
longo de séculos que tem pautado a educação,
não como uma prática emancipatória, mas sim
como forma de regulação. Essa lógica
travestida de educação revela-se como mais
uma face das ações assentes no
empreendimento colonial, que tem na
raça/racismo/ gênero/ hétero patriarcado/
capitalismo os seus fundamentos. (RUFINO,
2019, p.264)

Nesta perspectiva, aponto o Terreiro como um


território para repensarmos novas possibilidades de
rupturas das bases de dominação impetradas pelo
capitalismo.Apresentando-se como espaço-tempo-
escola em uma perspectiva transgressora e

43
transformadora que tem como agente catalisador o
OrixáExu que nos abre caminho para
compreendermos, nos capítulos seguintes, as
epistemologias de terreiro que são muito potentes para
(re)configurarmos os nossos cenários educativos.
9
1.1 DIÁSPORA DAS POPULAÇÕES AFRICANAS

A diáspora africana durante o período da


colonização brasileira foi um plano nefasto muito bem
estruturado para o desenvolvimento do Brasil colônia.
Homens e mulheres foram arrancados/as dos seus
territórios, e civilizações inteiras foram forçadamente
jogadas nos porões dos navios de forma escravizada e
enviadas através do Oceano Atlântico para as Américas
e o Caribe.
Segundo Verger (2002, p.27), o tráfico de
escravizados/as africanos/as trazidos/as para o Brasil
foi dividido em quatro grandes ciclos: os primeiros a
chegarem foram os/as escravizados/as de Guiné
durante a segunda metade do século XVI, no segundo
momento foram os de Angola e os do Congo no século
XVII, no terceiro ciclo. Quase no final do século XVIII,
foram os da Costa da Mina e finalizando com o ciclo da
Baía do Benin entre 1770 e 1850, estando incluído o
período do tráfico clandestino.
O processo de devastação dos saberes,

9
Fragmentos desse capítulo são oriundos da publicação: A Intersecção
entre os Princípios Filosóficos Dinamizadores das Religiões de Matrizes
Africanas e Afro-Brasileiras presentes na Capoeira. Disponível na Revista
Capoeira.Vol. 4 | Nº. 2 | Ano 2018.

44
conhecimentos e tradições era desenvolvido com
o intuito de promover o extermínio das
identidades culturais como apresentado no
documentário Atlântico Negro na rota dos Orixás10.
Durante o tráfico das populações escravizadas, na
cidade de Uida, no Golfo do Benin, depois de
percorrerem cinco quilômetros, os homens eram
obrigados a dar nove voltas ao redor da árvore do
esquecimento e as mulheres sete, antes de serem
embarcados nos navios negreiros. Depois disso,
supunha-se que os/as escravizados/as perdiam a
memória, esqueciam seu passado e suas origens,
transformando-se em seres sem alma, sem nenhuma
vontade de reagir ou se rebelar. Diante desse cenário
de barbárie, o corpo tornou-se o único receptáculo
sagrado do conhecimento, dos saberes e tradições, em
que homens e mulheres que sobreviveram à travessia
do Atlântico traziam para o Brasil.
As populações africanas, escravizadas eram
vendidas. Esse plano de genocídio e de epistemicídio
foi estruturado, para que esses corpos fossem
esvaziados de almas e conhecimentos, para que com
isso, pudessem ser vendidos nos portos da costa

10
Atlântico Negro na Rota dos Orixás foi um documentário dirigido por
Renato Barbier, no ano de 1998. Patrocinado pelos órgãos de fomentos
(Ministério da cultura; GDF-SCE; Polo de Cinema e Vídeo do DF;
Fundação Cultural do Distrito Federal), apresenta a grande influência
africana na religiosidade brasileira, fazendo essa leitura através do
movimento da diáspora africana, bem como as origens da cultura Jêje-
Nagô, nos terreiros de Salvador e no Maranhão no Tambor de Minas.

45
brasileira e direcionadas para as atividades em áreas
específicas para a produção das fazendas agrícolas e,
na maioria das vezes, sendo isolados dos seus
familiares.
Nas propriedades dos senhores, a produção da
monocultura de bens agrícolas para a exportação era a
principal atividade dos/as negros/as escravizados/as,
além da lavoura e outras atividades de manutenção e
subsídio da fazenda e da Casa Grande. Mas era
principalmente, durante a noite que cultuavam o seu
sagrado, buscando força para resistir. Do som dos
atabaques emanava a energia que os/as mantinham
vivos/as. A musicalidade possibilitava a alimentação do
Axé (força vital), a organização dos rituais e a união das
diversas tradições, os korins (cânticos africanos) e os
itans (lendas mitológicas) preservavam os saberes
através da oralidade, tornando a senzala um espaço de
resistência, mas também o nascedouro das primeiras
manifestações religiosas e culturais afro-brasileiras.

1.2 TECNOLOGIAS DE RESISTÊNCIAS - DAS


SENZALAS AOS TERREIROS

Centrando o foco dessa narrativa no contexto


histórico e na compreensão traçada pelo condutor
desse caminho que é Exu, estruturarei esse percurso
apenas na formação das primeiras organizações
religiosas afro-brasileiras que nasceram nas senzalas.
Em uma perspectiva de evidenciar a luta e resistência
das populações escravizadas, aponto as estratégias de

46
sobrevivência e organização social em torno da
11
compreensão de família extensa que se reconfigurou
no Brasil através da ação e manutenção do Axé coletivo,
ou seja, dos terreiros que viriam, posteriormente, a se
organizar.
Nas senzalas, homens, mulheres e crianças dos
diversos grupos étnicos africanos escravizados lutavam
pela sobrevivência. Os trabalhos diários nas grandes
plantações, na casa grande, a falta de alimentação
ideal, os abusos sexuais, os castigos e maus-tratos
diminuíam a expectativa de vida dessas populações,
levando muitos/as ao suicídio ou a uma morte
prematura. A fé e o sagrado presentes no corpo que
antes era livre, na África, permitiram a manutenção da
vida, diante de tamanhas atrocidades sofridas.
As populações africanas remontam através dos
terreiros as famílias numerosas, organizando a vida de
um conjunto de povos que estava dispersos,
inicialmente, no mesmo ambiente da senzala. Essa
organização permitiu a conexão das diversas porções
ancestrais que estavam imersas na memória e na
dinâmica corporal, conectando os/as ancestrais
africanos/as ao contexto afro-brasileiro. Foi assim que
estrategicamente, os orixás foram sincretizados e
associados/as aos/as santos/as católicos/as para a
sobrevivências das suas tradições religiosas.

11
A perspectiva de família extensa que se reconfigura no cenário brasileiro
pode ser associado posteriormente ao terreiro, sendo esse espaço
exemplificado através do pacto civilizatório de sobrevivência que é o Xirê
dos Orixás.

47
A religiosidade presente nas diversas
matrizes africanas que ali estavam, utilizaram
associações e práticas sincréticas para que seus
Inkices, Orixás e Voduns pudessem ser cultuados,
minimamente, nos ambientes das senzalas. Neste
processo de associação entre as divindades africanas e
santos/as católicos, Exu o primeirode todos os Orixás
do panteãoNagô-Yorubá, foi associado ao demônio
judaico-cristão por ser o dono dos desejos, libertador do
corpo, aquele em que o símbolo mágico é o falo, sendo
assim comparado à figura do pecado. Ogum, o senhor
dos caminhos a serem desbravados, dono da
metalurgia, ferreiro nato e guerreiro de infantaria foi
associado a São Jorge da Capadócia no Rio de Janeiro,
por matar um dragão enfurecido, mas que na verdade
para nós, povos de terreiro é associado por fortalecer os
nossos caminhos para que passemos pelas guerras
mais difíceis da vida. Na Bahia, Ogum é sincretizado
com Santo Antônio, São Jorge é identificado com
Oxóssi, deus dos caçadores, relacionado a um valente
cavaleiro, vestido em brilhante armadura, montado
sobre um cavalo. Verger (2002), nos ajuda a
aprofundar nossa análise, a partir dos demais Orixás do
panteão Nagô-Yorubá, quando nos apresenta que:

[...]pode parecer estranho, à primeira vista, que


Xangô, deus do trovão, violento e viril tenha
sido comparado a São Jerônimo, representado
por um ancião calvo e inclinado sobre velhos
livros, mas que é frequentemente
acompanhado, em suas imagens, por um leão
docilmente deitado a seus pés. E como o leão é

48
um dos símbolos de realeza entre os yorubás,
São Jerônimo foi comparado a Xangô, o
terceiro soberano dessa nação. A aproximação
entre Obaluaê e São Lázaro é mais evidente,
pois o primeiro é o deus da varíola e do corpo, o
segundo é representado coberto de feridas e
abscessos. Iemanjá, mãede numerosos outros
orixás, foisincretizada comNossa Senhora da
Conceição, e Nanã Buruku, a mais idosa das
divindades das águas, foi comparada a
Sant´Ana, mãe da Virgem Maria. Oiá-Iansã,
primeira mulher de Xangô, ligada às
tempestades e aos relâmpagos, foi identificada
com Santa Bárbara. Segundo a lenda, o pai
dessa santa sacrificou-a devido à sua
conversão ao cristianismo, sendo ele próprio,
logo em seguida, atingido por um raio e
reduzido a cinzas. A relação entre o Senhor do
Bonfim e Oxalá, divindade da criação, é mais
dificilmente explicável, a não ser pelo imenso
respeito e amor que ambos inspiram.
(VERGER, 2002, p.16-17)

Segundo Verger (2002, p.09), "a passagem da


vida terrestre à condição de Orixá desses seres
excepcionais, possuidores de um Axé poderoso,
produz-se, em geral, em um momento de paixão,
cujas lendas conservaram a lembrança". Nos
possibilitando compreender que para os povos Nagôs-
Yorubás a morte só acontece quando não construímos
ou deixamos um legado para a comunidade, assim a
morte acontece com no esquecimento e na
descontinuidade do culto ancestral.
Nesse contexto, o sincretismo foi uma relação
estabelecida como estratégia de resistência das
populações africanas, possibilitando a organização
social e a manutenção do axé pessoal e coletivo através

49
da fé. Nesse cenário foi desenvolvida a associação
12
direta entre os Orixás africanos e os santos do
Catolicismo Popular, o que possibilitou, logo após a
libertação dos/das escravizados/as, em 13 demaio
de1888, a estruturação pelas populações negras de
muitos terreiros que resistem até hoje. Para manter
minha linha de análise, citarei apenas algumas dessas
casas, como as de origem Nagô-Yorubá que resistem
até os dias atuais na cidade de Salvador13,
Nesse mesmo contexto, (PEREIRA, 2012, p.19),
durante a pesquisa que realizei, durante o mestrado em
educação, cursado na Universidade Federal do Ceará,
investigando os rituais religiosos de cura na Umbanda,
pude evidenciar as estratégias de adaptação da
Umbanda na sociedade brasileira. Mesmo sabendo de
todos os elementos trazidos das diversas matrizes
africanas, ainda é considerado por muitos/as
pesquisadores/as como marco oficial de criação da
Umbanda, os trabalhos do médium Zélio de Moraes no
dia 15 de novembro em 1908, tendo:

12
Esclarecemos com o suporte nos dados por Verger (2002, p.09) que o
Orixá é uma força pura, Axé imaterial que só se torna perceptível aos seres
humanos incorporando-se em um deles. Esse ser escolhido pelo Orixá, um
de seus descendentes, é chamado seu elégùn, aquele que tem o privilégio
de ser “montado”, gùn, por ele. Torna-se o veículo que permite ao Orixá
voltar à terra para saudar e receber as provas de respeito de seus
descendentes que o evocaram.
13
É importante destacar que terreiros de várias matrizes africanas também
resistiram em outros territórios brasileiros, não sendo nosso intuito reforçar
uma iorubanização do Candomblé brasileiro, mas nessa trajetória guiada
por Exu centrarei minhas análises nesses territórios de origem Nagô-
Yorubá.

50
[...]até então com 17 anos, havia sido levado a
uma mesa espírita (sessão mediúnica) devido
a um problema de saúde que os médicos não
conseguiam curar, manifesta-se com o
Caboclo Sete Encruzilhadas. Nessa
reunião, começaram a se manifestar diversos
espíritos de negros/as escravizados/as e
indígenas nos médiuns presentes, e esses
espíritos eram convidados a se retirar pelo
dirigente da mesa, que os julgava atrasados
espiritual, cultural e moralmente. Foi então
que o Caboclo Sete Encruzilhadas
proferiu um discurso de defesa das
entidades que ali estavam presentes,
sendo discriminadas pela diferença de cor/raça
e classe social. Avisou, então, a todos os
presentes que no dia seguinte, na residência do
médium, haveria uma reunião e a criação de
uma nova religião que permitisse a
manifestação de espíritos de negros/as e
índios/as, onde essas entidades pudessem
exercer seus trabalhos espirituais e passar
suas mensagens. Criava-se, então, o “Baixo
Espiritismo” e logo a seguir os Centros
Espíritas de Umbanda, que podiam se
organizar livremente, por adeptos, que agora,
faziam parte da elite branca dominante.
(PEREIRA, 2012, p.13)

A Umbanda se constitui a partir dos elementos do


Candomblé, do Catolicismo Popular, da Pajelança
Indígena, dos Cultos Regionais e do Espiritismo de
origem francesa. Em muitas localidades brasileiras,
teve que aderir ao cientificismo do Espiritismo, para ser
aceita pela elite branca e burguesa, destituindo-se dos
conceitos de terreiros e adquirindo a roupagem dos
Centros Espíritas de Umbanda.
Segundo Cantuário (2009) e Pereira (2012), a

51
Umbanda se organiza através de linhas principais:
Ogum (generais, guerreiros, príncipes e princesas),
Oxóssi (caboclos das matas), Mar e Maresia
(Associado a Iemanjá e seus cavaleiros, marinheiros,
guerreiros do mar, marujos, sereias, príncipes/as e
os/as encantados/as), Eres (crianças), Xangô
(caboclos ligados à justiça e ao fogo), Astro (encantados
e mestres superiores), Pretos/as velhos/as (ligados aos
rituais de cura com as ervas, orações, benzeduras,
amas de leite e parteiras) e Exus (povo da rua).
Estas linhas possuem dezenas de subdivisões
chamadas de sublinhas, que não subdividem os
trabalhos das falanges (grupos de entidades), mas sim,
organizam em um grande panteão chamado de
Aruanda, plano espiritual no contexto afro-brasileiro em
que essas entidades atuam por afinidade energéticas.
Por meio da Umbanda, que está ramificada em
todo o território nacional brasileiro conseguimos
recontar a história do Brasil e das populações
subalternizadas que tem voz em suas linhas e
sublinhas, nos apresentando a diversidade étnica e
r e g i o n a l p r e s e n t e n e s s e t e r r i t ó r i o . To r n a - s e
fundamental destacar que nessas encruzilhadas em
que estão presentes os terreiros de Umbanda, o
panteão da Aruanda Sagrada vai se modificando,
tornando-se específico conforme a sua regionalidade.
Esse fenômeno é encontrado em todas as
especificidades regionais sejam elas brasileiras ou
internacionais, não sendo esse o foco de nossa análise,
mas abrindo precedentes para outras investigações.

52
É importante também destacar aqui, que
apontamos além dos Candomblé Keto e da Umbanda a
necessidade urgente desse debate chegar as demais
religiões de matrizes africanas e afro-brasileiras
espalhadas por todo o país. Não é o meu intuito
mergulhar em toda a pluralidade de expressões
presentes no território nacional como por exemplo, o
Tambor de Mina no Maranhão, o Xangô e o Nagô em
Pernambuco, o Batuque no Rio Grande do Sul e as
diversas outras nações do Candomblé, como Angola,
Jeje, Fon, Ijexá e todas as demais. Também não
buscarei discutir um enraizamento da Umbanda, mas
apresento suas vertentes como por exemplo os
terreiros e centros espíritas que desenvolvem suas
práticas e rituais religiosos a partir do contato direto com
os candomblés, a Pajelança, o Tereco, a Jurema, Mina
Nagô, dentre outras, entendendo que essas matrizes
podem dialogar de acordo com as práticas regionais
dinamizando-as.
Assim, compreender os princípios filosóficos
dinamizadores presentes em todos esses contextos
religiosos nos possibilita refletir sobre as
epistemologias de terreiro e suas contribuições para
novas práticas educativas no contexto desses espaços
religiosos e pedagógicas que direcionem olhares para a
implementação das leis 10.639/03, visando a
emancipação humana e o que tenho chamado de novas
bases civilizatórias.

53
1.3 PARADIGMA ANCESTRAL - PORQUE EXU
NAS ESCOLAS? – PRIMEIRAS REFLEXÕES

Exu é o primeiro Orixá cultuado nas casas de


Candomblés, pois é dele a missão de abrir os caminhos
de todos os trabalhos e levar as oferendas do Aiye para
o Orun. Exu abre nossos caminhos para a compreensão
do paradigma ancestral que começa a ser pensado com
a perspectiva de enegrecer as tramas da ciência ainda
tão embebidas pelas epistemologias eurocêntricas,
tendo em vista a fluidez entre o mundo dos visíveis e
invisíveis.
Exu é o Orixá que potencializa os desejos
humanos, aquele que transforma o impossível em
possível, tendo como elemento principal em seus
assentamentos o falo, pois nas sociedades africanas
essa é uma representação de procriação, de fertilidade
e progresso, de grandes famílias, ou seja, de
abundância. Exu é compreendido como o
potencializador dos nossos caminhos de vida, e pela
incompreensão desse processo e o escravismo
criminoso colocou em prática as estratégias de
esvaziamentos dos corpos africanos, como já
mencionado anteriormente. Tudo isso fez com que os
primeiros colonizadores europeus que chegaram à
África atribuíssem a esse Orixá as concepções de
maldade e demonização, sincronizando-o com a figura
do Diabo cristão.
Podemos observar isso, muito claramente, a partir
dos escritos do padre católico R. P. Baudin, da

54
Sociedade das Missões Africanas de Lyon, que foi
missionário na Costa dos Escravos e que publicou na
França o livro Fétichisme et Féticheurs (Fetichismo e
Feiticeiros). Baudin (1884), em seu primeiro livro trata
sistematicamente da religião dos yorubás e traz um
relato rico em pormenores, e precioso em informações
sobre o panteão dos Orixás e aspectos básicos do culto,
tanto que o livro permanece como fonte pioneira aos/as
pesquisadores/as contemporâneos/as, apesar desta
percepção ter sido responsável por uma concepção
racista que promove a manutenção da colonialidadeaté
hoje.
A interpretação que o padre constrói em torno da
imagem de Exu no sistema religioso dos povos Yorubás,
a partir das observações feitas numa perspectiva cristã
do século XIX, são devastadoras e infelizmente essas
imagens povoam o imaginário popular no Brasil até a
atualidade. Todo esse cenário foi fortalecido também
com a obra de Samuel AjayiCrowther, linguista
nigeriano de formação britânica que na década de 1880
traduziu a bíblia cristã para a língua Yorubá e aproximou
as narrativas e a personagens bíblicos à tradição
yorubana dos Orixás. Nessa perspectiva de ordenação,
Exu teve na forma escrita e material sua imagem
atribuída ao Diabo, assim começou o processo de
contenção da energia de Exu que se tornou peça
fundamental para as estratégias de dominação e
colonização no período da escravatura. Através dessa
obra, ele legitimou epistemologicamente as amarras do
corpo e da mente dos/das escravizados/as que foram

55
colonizados, domados e acorrentados.
O acorrentamento da energia de Exu presente em
cada corpo que foi impedido de viver em liberdade,
geraria o impedimento do seu trânsito e com isso os
desejos da humanidade não mais seriam levados para o
Orun, tornando os corpos africanos e de seus
descendentesescravizados, ou seja, estava
estruturado um plano nefasto de esvaziamentos da
energia vital, de Axé. Falo de uma massa humana de
corpos esvaziados, escassos e consequentemente
sem alma, como foi tão frisado até os dias de hoje nos
livros de história. A retroalimentação do seu Axé pessoal
e coletivo minimizaria as culturas, tradições, desejos e
conhecimentos, nessa perspectiva colonial, os sonhos
e ideais de vida estariam impedidos de serem
escutados pelo Orun, não sendo mais realizados,
desestruturando as civilizações africanas, na tentativa
de apagá-los/as. Essa trama foi muito bem pensada,
montada e executada, mas os europeus não conheciam
as mandingas de Exu, que equilibra a vida
desequilibrando, o que deu sustentação para a
sobrevivência dessas populações no contexto da
diáspora.
NessesAras (corpos), Exu Baráestava vivo e foi
ele que possibilitou que os saberes e conhecimentos
fossem guardados e posteriormente dinamizados ao
longo do processo de luta e resistência. Nas senzalas
foram estruturadas as formas de sobrevivência das
religiões tradicionais africanas que se transfiguraram
em afro-brasileiras. Mas a história, durante muito

56
tempo, foi contada pelos colonizadores, ocasionando o
apagamento da cultura e manifestações religiosas de
muitos grupos étnicos, gerando massivo processo de
epistemicídio. Esse sistema nefasto atribuiu o
estereótipo que as religiões de matrizes africanas e
afro-brasileiras carregam até hoje e que busco
desconstruir na estruturação de minhas reflexões, só
que agora com o peso de uma construção
epistemológica que parte da África e se ancora nos
terreiros como espaço de referência no contexto
brasileiro.
Os itans de Exu nos dão base para
potencializarmos esse diálogo e para um melhor
entendimento, traçaremos como estratégia para
continuarmos com essa empreitada da mitologia em
que o Olofim-Olodumare(Deus supremo) decidiu
promover a construção do mundo.

Exu no princípio, durante a criação do universo,


Olofim-Olodumare reuniu os sábios do Orun
para que o ajudassem no surgimento da vida e
no nascimento dos povos sobre a face da Terra.
Entretanto, cada um tinha uma ideia diferente
para a criação e todos encontraram algum
inconveniente nas ideias dos outros, nunca
entrando em acordo. Assim, surgiram muitos
obstáculos e problemas para executar a boa
obra que Olofim se propunha. Então, quando
os sábios e o próprio já acreditavam que era
impossível realizar tal tarefa, Exu veio em
auxílio de Olofim-Olodumare. Exu disse a
Olofim que para obter sucesso em tão
grandiosa obra era necessário sacrificar cento
e um pombos como ebó. Com sangue dos
pombos se purificariam as diversas

57
anormalidades que perturbavam a vontade dos
bons espíritos. Ao ouvi-lo, Olofim estremeceu,
porque a vida dos pombos está muito ligada à
sua própria vida. Mesmo assim, pouco depois
sentenciou: “Assim seja, pelo bem dos meus
filhos”. E pela primeira vez se sacrificaram
pombos. Exu foi guiando Olofim por todos os
lugares onde se deveria verter o sangue dos
pombos, para que tudo fosse purificado e para
que seu desejo de criar o mundo assim fosse
cumprido. Quando Olofim realizou tudo o que
pretendia convocou Exu e lhe disse: “Muito me
ajudasse e eu bendigo teus atos por toda a
eternidade. Sempre serás reconhecido, Exu,
serás louvado sempre antes do começo de
qualquer empreitada”. (PRANDI, 2001, p.44-
45)

O sacrifício do Olofim-Olodumare permitiu que a


negatividade fosse embora e que a dinâmica de criação
do mundo tivesse início. Por isso Exu é considerado o
Orixá dinamizador dos sistemas de vidas. Assim,
impedir Exu de transitar pelos sistemas, pelo cotidiano
gera o desequilíbrio, seja ele pessoal ou coletivo. É com
base nessa ideia que os sistemas de exploração
capitalista nascentes na Europa estruturaram-se na
exploração do contexto africano, escravizando homens
e mulheres, com o intuito de transformá-los/as em
braços, pernas e ventres que alimentariam o
desenvolvimento das colônias no novo mundo.
No Brasil e na África essa lógica predatória é
impulsionada pela superexploração da produção
capitalista, minando os recursos naturais e com isso
promovendo o afastamento da humanidade do seu
compromisso estabelecido com os ancestrais, de

58
sacralização da natureza, respeito e convivência
pacífica com os ecossistemas. As grandes fazendas de
monoculturas e a pecuária extensiva tem o papel de
gerar a acumulação de renda para os escravocratas
que deixam essa herança maldita para as famílias
abastadas até os dias atuais.
Falar de Exu, falar de ancestralidade e dos
paradigmas das ciências é derrubar por terra todas as
concepções que compreendem a lógica positivista e
cartesiana, com suas abordagens lineares. Mesmo as
concepções holísticas e sistêmicas não “alcançam”
esta concepção de ancestralidade em sua dimensão e
complexidade. Estamos tratando de uma trajetória não
linear, de um conhecimento que não se repete.

Olha só, Exu é o senhor do conhecimento, ele é


o senhor do conhecimento. Sim, nós temos
outros sábios no panteão, nós temos Obaluaê,
nós temos Nanã, nós temos um herói
civilizatório, Ogun, nós temos um rei sábio,
alquimista Xangô. Nós temos outros sábios,
mas, de verdade, o conhecimento nasce com
Exu, ponto! Porque o conhecimento também
está muito ligado às sinapses cerebrais, e as
sinapses são encruzilhadas. Nós temos
encruzilhadas em todo o nosso corpo, o nosso
corpo é feito de encruzilhadas, é feito de cruzo,
e a gente precisa cruzar, a gente não quer
invalidar o conhecimento elaborado até hoje,
mas a gente quer sim, cruzá-lo. Quando o
senhor fala em escola, quer dizer, pronto, o
senhor mudou tudo. Mudou o paradigma
porque o senhor acabou de tirar a igreja de
dentro do terreiro. E transformou o terreiro no
espaço educacional. E isso é maravilhoso, tem
que escrever sobre isso. Veja como é
importante a gente conversar, porque a gente

59
tem muita coisa para trocar e pra fortalecer. A
Preta Ribeiro, ela perguntou por que que eu
tenho usado o termo Magia Preta, porque eu
estou muito tentado a acreditar que nós fomos
forjados por uma língua branca colonizada.
Então, quem cunhou o termo magia negra,
quem cunhou? Foi o branco que cunhou para
satanizar a nossa magia. Então, eu estou
tentando tirar esse paradigma, não estou
usando o que ele cunhou, eu sempre estou
tentando fugir das palavras colonizadas, e
alguém falou aqui em contra colonização. Esta
é a verdadeira contracolonização. (PEREIRA;
NOGUEIRA, 2020)

A aprendizagem dentro dos sistemas


educacionais tradicionais tem insistido na repetição
como forma de ensino e aprendizagem dos diversos
conteúdos. Por outro lado, Exu não se repete nunca. Ele
sempre é o novo, ele é sempre um novo caminho da
encruzilhada do aprender. Neste processo educativo,
Exu volta ao começo, mas pega outro caminho quando
o primeiro não lhe conduziu ao novo, ele faz o erro virar
acerto. Ele matou um pássaro ontem, com uma pedra
que somente hoje atirou. Isso significa que não há limite
de espaço e tempo para Exu e assim é o processo
pedagógico com ele.
É importante pautar que foi nos terreiros, nos
quilombos e nas organizações sociais negras que os
conhecimentos africanos foram ressignificados para
que não fossem dizimados e apagados. Foi dentro
desses muros e cercados, que os saberes ancestrais
ecoaram e potencializaram suas tecnologias, filosofias
e cosmologias para que os nossos ancestrais

60
pudessem resistir e reinventar, a partir do universo que
estava ao seu redor. Nós, nos espaços de expressões
afro-brasileiras continuamos ressignificando este
processo de resistência, só que agora dialogando com o
mundo que circundam os terreiros.
Nesta perspectiva da resistência, nossos/as
ancestrais organizaram e criaram um potente pacto
civilizatório, conhecido como Xirê dos Orixás, que
aprofundaremos no decorrer dessa caminhada nos
próximos capítulos. Mas para continuarmos em uma
perspectiva paradigmática em que possamos ter voz e
corpo, precisamos rememorar o passado mítico e
ancestral, reescrever o presente para que possamos
c a m i n h a r p a r a u m a p e r s p e c ti v a c i v i l i z a tó r i a
afrofuturista, considerando nossas lutas, reflexões e
ações cotidianas de enfrentamento ao racismo
estrutural.
Nesse cenário em que a ciência assume vários
referenciais de análises para tabular suas formas de ler
e interpretar os fenômenos, sejam eles naturais ou
sociais, nós apontamos o nosso, reafirmamos a
necessidade de estruturação do paradigma ancestral.
O nosso ponto de partida é o continente africano. Todos
os saberes ancestrais africanos que sobreviveram
dentro dos muros dos terreiros foram potentes e
importantes na elaboração de estratégias de
sobrevivência das populações negras, contra as
mazelas deixadas pelo escravismo criminoso e que
hoje permanecem com a manutenção da colonialidade.
Falo de conhecimentos e constructos passados

61
através da tradição oral por milhares de anos e que hoje
me fazem avançar na estruturação de um novo modelo
de pensamento que possa ir além do que não é provado
empiricamente em uma ciência racional, cartesiana,
nascida de um modelo colonizador. Refiro-me a outras
bases e modelos de pensamento mergulhados em uma
complexidade de saberes que ainda não são
tecnologicamente compreendidos devido a limitação
das bases científicas eurocêntricas.
Trato de uma nova compreensão de existência,
que se torna fundamental para dialogarmos, que se
realiza considerando complexidade de violências das
tramas de dominação e opressão capitalista, patriarcal,
machista, racista e LGBTQI+fóbica e de manutenção
da colonialidade. Este modelo que proponho reconhece
a necessidade de ampliar nosso quantitativo de
referenciais de análises para além dos modelos
newtoniano-cartesiano, empirista, emergente,
sistêmico e holístico. Por isso, se estrutura através do
diálogo com as cosmopercepções africanas e afro-
brasileiras.
A coexistência de diversas percepções de mundo,
culturas, tradições e cosmologias implicam em
ampliarmos as formas de analisar e compreender os
fenômenos científicos. De fato, se insistirmos em
modelos científicos de análises pautados em uma
superestimação da lógica que só compreende um
modelo, o eurocêntrico ou o cartesiano,
consequentemente recairemos nos mesmos erros que
resultaram neste cenário de um iminente colapso

62
planetário. É nesse sentido que o paradigma ancestral
aqui desenvolvido nos desafia a transgredir e
reestruturar as ciências com base em uma
racionalidade que compreenda parâmetros orgânicos e
ancestrais, que nos impulsiona a lançarmos os nossos
olhares para as interconexões entre a humanidade, a
natureza e a ancestralidade.
Não se trata de descartar o que foi positivamente
construído pelo pensamento científico, mas reivindicar
o diálogo com as ancestralidades africanas, afro-
brasileiras e indígenas, possibilitando uma nova forma
de conviver e novas bases epistemológicas
fundamentadas em uma racionalidade orgânica e
ancestral.

63
CAPÍTULO II
O TERREIRO TAMBÉM
É UMA GRANDE ESCOLA
Para os/as colonizadores/as, os povos africanos
que foram trazidos forçadamente do outro lado do
Atlântico para cá, eram esvaziados de suas ciências,
culturas, religiões e identidades. Exu, porém, não
permitiu que o seu povo fosse fadado ao
desencantamento e morte, muito pelo contrário, as suas
contribuições foram extremamente dinâmicas para a
formação sociocultural do Brasil. Nos terreiros, as
populações africanas e seus descendentes
ressignificaram e reinventaram suas experiências
sociais em novas terras, com novos contextos. Parte
deste processo foi a criação do que falamos acima, do
Xirê dos Orixás, um grande pacto civilizatório entre as
diversas etnias africanas.
É a partir do Xirê dos Orixás e da Filosofia de Exu
que identificamos os princípios filosóficos e os valores
civilizatórios africanos reelaborados no espaço dos
terreiros, e apontamos estes elementos como um
importante eixo científico-cultural da experiência social
afro-brasileira. Valores como a circularidade, a
oralidade, a energia vital (o axé), a ancestralidade,
família para além dos vínculos consanguíneos,
corporeidade, musicalidade, entre muitos outros, estão
mais que vivos em diversas manifestações culturais
afro-brasileiras, mas são os terreiros as principais
salvaguardas desse continuum civilizatório.
Dessa forma, Vanda Machado (2019) aponta os
terreiros como lugar mítico de resistência política,
proteção e cuidado com o outro. São as "pequenas
Áfricas" solidificadas e reinventadas na diáspora,

67
espaços próprios na produção de conhecimentos e
arranjos socioafetivos. Assim, os terreiros são aqui
compreendidos como continuações civilizatórias da
experiência africana no Brasil.
Fábio Leite (1996), em sua análise sobre o
processo de continuação civilizatória na África e a
diáspora africana, indicam que as sociedades negro-
africanas sempre viveram suas próprias realidades no
fluxo de processos sociais abrangentes. Essas
civilizações mantiveram e mantém a sua continuidade
histórica - e não apenas a sobrevivência histórica - e
nesse processo a natureza singular de seus valores
civilizatórios é mecanismo de sua materialidade que
segue de geração a geração.
Então, são esses valores civilizatórios que se
apresentam como os principais responsáveis pela
manutenção de uma cultura sólida e viva, relacionada
com as transformações espaço-temporais e aos ciclos
socioafetivos de descendentes de africanos/as no
espaço do terreiro. Assim, os terreiros não estão
congelados no passado, pois se reinventam-se
cotidianamente. São para além do espaço do culto ao
sagrado, mas também o lugar de manifestações
culturais de matrizes africanas, dinâmicos, inventivos,
dialógicos, portadores de motrizes culturais que
mantêm vivas as tradições, transformando-as
(LIGIÉRO, 2011).
Nos terreiros os valores civilizatórios e princípios
filosóficos são dinamizados por Exu que nos ensina no
cotidiano a compreendê-los como partes indissociáveis

68
da vida. Eles também estão presentes no samba,
maracatu, tambor de crioula, na capoeira, no afoxé,
dentre tantas outras manifestações culturais afro-
brasileiras que saíram dos terreiros antes de andarem
altivos como símbolos da cultura negra no Brasil. Da
mesma forma, comidas como o acarajé, o vatapá, o
manjar de coco, o azeite de dendê, o caruru, a cocada e
outros, são alimentos que saem dos rituais sagrados
dos terreiros de Candomblé.
Preservadas em tempos de perseguição policial e
proibição por parte do Estado, diversas manifestações
culturais afro-brasileiras foram protegidas na feitura do
axé, nos espaços dos terreiros. As línguas africanas,
por exemplo, mantiveram-se preservadas dentro das
nações do Candomblé, em meio a tantas adversidades
para suas existências, demarcando espaço de
resistência racial e de afirmação política na sociedade
brasileira. O pajubá, linguagem utilizada pela população
travesti e LGBTQI+ no contexto urbano brasileiro é
definitivamente filha do Yorubá preservado nos
Candomblés de nação nagô. São estes diversos
processos de produção, reprodução, reinvenção e
preservação de uma filosofia africana e afro-brasileira
que temos chamado de Epistemologias de Terreiro.
Nesse sentido, Eduardo Quintana (2016) afirma a
importância do Candomblé para (ex) (res)istência da
população negra no Brasil:
Uma religião que, com seus mitos, itans, cantos
e danças, possibilitou aos filhos da diáspora
africana, mesmo longe de sua organização

69
espacial originária, reedificar e ressignificar
seus espaços identitários e suas
territorialidades como matriz da vida social,
econômica e política. Um movimento de
reterritorialização que permitiu a apreensão de
um novo mundo social que busca se contrapor
à escravidão. Neste sentido, a
reterritorialização operada corresponde a
formação de um novo habitus que se
operacionaliza por meio da ressignificação de
novas estruturas cognitivas e avaliatórias,
proporcionadas por novas formas de
socialização (QUINTANA, 2016, p.22)

Nos sistemas religiosos africanos, o corpo


desempenha um lugar fundamental para própria
existência dos povos e culturas.Há uma sinergia do
corpo/alma, organismo/psíquico e ambiente, numa
relação de troca e de contaminação (LIMA, 2015), onde
o corpo é o próprio sujeito de cultura que encarna o
sistema de disposição, a compreensão, a percepção, a
emoção. O corpo é o principal sujeito para a
manutenção e continuidade das práticas, seja nos
rituais e jogos ou na tríade cantar-dançar-batucar. É ele
que ao falar, ouvir, gingar, "virar no Orixá", bater tambor
e cantar os pontos, transmite os ensinamentos
ancestrais e possibilita, a partir dessa pedagogia
implícita, a existência e reinvenção de culturas
milenares no contexto da diáspora. O corpo se
movimenta e se dinamiza através dos ensinamentos
presentes nos terreiros, reelaborando essas
epistemologias dos eixos científico-cultural da
experiência social afro-brasileira. Nas palavras de
Vanda Machado:

70
(...) o povo de santo particulariza um modo de
vida cuja estruturação reúne valores que
relacionam aspectos da vivência natural com
os princípios orientadores da sua crença. Isso
significa dizer que a vida natural desses
indivíduos tende a se aproximar dos valores
considerados sagrados, que demandam da
ideia da força cósmica organizadora da
natureza [o axé] e suas manifestações
(MACHADO, 2019, p.41).

São epistemologias com imensa potencialidade


pedagógica e científica, não isolando suas imanências
exclusivas aos espaços dos terreiros. Estão em intensa
dinâmica com a comunidade de fora dos terreiros,
ressemantizados nos corpos como estratégia de luta e
resistência no cenário afro-brasileiro, desconstruindo
os estereótipos caluniosos e negativos atrelados a
esses espaços religiosos e as nossas populações como
pessoas/corpos (des)possuidores de saberes.
O terreiro é, portanto, o espaço propulsor de
princípios filosóficos e valores civilizatórios
impulsionadores da vida, de organização social, da
dinâmica, um ambiente educativo potente.

2.1 A INTERCONEXÃO ENTRE A ANCESTRA-


LIDADE DO ORUN E A MEMÓRIA CULTURAL
ANCESTRAL NO AIYE

O simples ato de pisar no chão descalço,


naturalmente, sentindo a terra, o ar, a umidade e a
vegetação tornam-se um incômodo para muitos/as que
não compreendem a ancestralidade presente nas

71
religiões de matrizes africanas e afro-brasileiras. As
pedras incomodam, a areia causa gastura nos tecidos
dos pés, se preocupam com as unhas que irão sujar... O
estranhamento com esse território é nítido para a
grande maioria dos/as abians (filhos/as do Terreiro
ainda não iniciados/as), mas no processo de iniciação
em que todos/as precisam passar, os calçados são
desfeitos logo na entrada do terreiro, aprendendo que o
respeito a terra é também um respeito aos ancestrais.
Da terra extraímos a vida e nela cultivamos nossos
alimentos. No solo estão nossos parentes já
falecidos/as, aqueles/as que já passaram pelo plano
físico do Aiye, que abriram caminhos para nossa
existência e agora seus corpos foram devolvidos à terra
para unirem-se à renovação cósmica do Axé planetário,
retornando para o Orun, tornando-se ancestrais.

Os mitos revelam que, em épocas remotas, o


Aiye e o Orun não estavam separados. A
existência não se desdobrava em dois níveis e
os seres dos seus espaços iam de um a outro
sem problemas; os Orixás habitavam no Aiyee
os seres humanos podiam ir ao Orun e voltar.
Foi depois da violação de uma interdição que o
Orun se separou do Aiye, que a existência se
desdobrou; os seres humanos não têm mais a
possibilidade de ir ao Orun e voltar de lá vivos.
(SANTOS, 1986, p.54)

No momento da violação, Orixalá (mais conhecido


entre os/as candomblecistas como Oxalá) irritado,
lançou seu cajado ritual, o opaxoro, que atravessando
todos os espaços do Orun, veio cravar-se no Aiye
separando-o para sempre, e aparecendo o sanmo (a

72
atmosfera), que se estende entre os espaços sagrados
do Orun e o Aiye, diferenciando os/as habitantes do ara-
aiye (habitante do mundo físico, material) dos ara-orun
(habitantes do além, mundo espiritual) pelo emi
(respiração, sopro da vida). Os Orixás são os seres de
origem divina provenientes do Orun, ou que pelos seus
atos entraram para a história mitológica e foram
divinizados. No espaço do Terreiro, esta tradução mítica
está presente na estética, na ritualística, no cotidiano,
no cantar-dançar-batucar traduzindo-se no corpo
dos/as adeptos/as das religiões de matrizes africanas
(BENISTE,1997; SANTOS,1986).

Alguns babalawos, sacerdotes versados nos


mistérios oraculares, descrevem o Orun como
composto de nove espaços. Ifatoogun de
Osogbo, descreve os nove espaços do Orun
dando nomes particulares a cada um deles e os
situando de maneira superposta, e no meio,
coincidindo com o espaço da terra, quatro
acima, e quatro abaixo. Os nove
compartimentos, formando um todo, estão
unidos pelo opo-Orun ao Aiye, pilar que liga o
Orun ao Aiye. (SANTOS, 1986, p.57)

Na perspectiva de remontar essa ligação no


espaço dos terreiros, os/as Orixás materializam-se no
Aiye, manifestando-se através do transe no corpo
dos/das iniciados/as, assim que sejam necessários ou
invocados/as. Durante o Xiré, as danças dos Orixás
materializam a retroalimentação energética. Entre o
cantar-dançar-batucar dos/as iniciados/as, os/as
Orixás traduzem as histórias mitológicas e estabelecem

73
um livre trânsito entre o Orun e o Aiye, desenvolvendo
uma via de mão dupla, um ir e retornar entre os planos
sagrados. Os/as filhos/as do Terreiro:

[...] realizam movimentos corporais pela


consciência do seu corpo em sinergia com o
seu domínio de mundo, as metáforas, os sinais,
os emblemas, as narrativas e as condutas
morais tecidas nos terreiros. Eles passam a
sentir essa sinergia, em especial nos rituais,
pelos estímulos sonoros dos atabaques, das
palmas das mãos, da evocação dos cânticos,
de palavras cheias de força, textura, e pelo
cheiro de ervas e perfumes, que desencadeiam
uma memória cultural. Essa memória cultural
evoca o passado, manipula o presente e
provoca o futuro. (LIMA, 2015, p. 22)

Nesse universo dinâmico de interação do plano


visível com o invisível, os/a Encantados/as e os/as
Orixás traduzem de forma performativa no corpo dos/as
iniciados/as que dança, toca e canta, um complexo
mitológico trazido da África no contexto da diáspora e
que foram sistematizados nos primeiros terreiros. Essa
memória cultural ancestral, como afirma Lima (2015),
permite a interconexão que todos/as os/as iniciados/as
têm com seus laços ancestrais e que levam para os
espaços sagrados dos terreiros. Neles estão contidas
as lembranças que não conseguimos explicar, mas
sabemos que já vivenciamos, nos remetendo à ideia de
termos passado por determinados cenários ou vivido
casos, situações com pessoas não conhecidas. É a
memória do próprio corpo que, quando dorme, conecta-
se com o Orun e com seus/suas ancestrais, traduzindo,

74
através do desdobramento do tempo e do espaço as
visões de futuro ou mensagens do que ainda não
aconteceu, para nos preparar para a vida no Aiye.
A memória culturalancestral é aquela que todos
nós, humanos, temos em conexão com os outros planos
espirituais, ou seja, as demais partes do Orun e que, na
grande maioria das vezes, não acreditamos. São
memórias que não damos tanta credibilidade até o
momento de senti-las, ou seja, de nos identificarmos
com pessoas, lugares ou cheiros, formas ou
movimentos. Nos terreiros essa memória é um canal de
identificação com o sagrado, diretamente ligado à
irradiação de mensagens do Orun, que são traduzidas e
interpretadas no Aiye como sinais dos Orixás e
ancestrais, para nos conduzir na trajetória terrena.
Diante disso, ao falar de ancestralidade apresento
três reflexões que me possibilitam
descompartimentalizar esse princípio filosófico
dinamizador da cosmologia Nagô-Yorubá. A primeira é
a ideia inicial que me foi passada pelos/as mais
velhos/as e por muitos anos e que eu mesmo repeti sem
questionar, ou seja, a ancestralidade associada apenas
aos/as parentes já falecidos/as, os/as antepassados/as
que já passaram pelo plano físico e abriram o caminho
para que hoje possamos estar aqui. Esse fator limitou
por muitos anos minha compreensão e que, em diálogo
com Santos (1986), pude compreender que a
ancestralidade neste sentido, é uma complexa relação
de interconexões entre o ir e o vir dos/as nossos/as
ancestrais, entre os planos sagrados do Orun para o

75
Aiye, continuando a missão de orientação e
transformação da humanidade a partir dos seus
ensinamentos e sabedorias.
Em um segundo momento, destaco a relação com
a natureza e, em específico, com o planeta Terra, o solo
que pisamos e onde estão depositados/as nossos/as
ancestrais, de onde retiramos nossos alimentos. Nessa
compreensão, a relação com a natureza implica em
abandonar o modo de convivência que vem adoecendo
o planeta e causando a extinção de espécies animais e
vegetais. Assim, a natureza consiste na dimensão
energética do Axé que emana da Terra, de todos os
elementos naturais e nos conecta. A natureza é o
espaço/ser/processo da retroalimentação da energia
vital, potencializada no ato de pisar no solo do Terreiro,
de tomar banho de rio e de ervas, estabelecendo a
conexão com o sagrado.
No terreiro, percebemos esse processo em
evidência, nos momentos ritualísticos que envolvem o
cantar-dançar-batucar, quando os/as Orixás e
Encantados/as vêm à Terra. O corpo do/a iniciado/a
energiza-se através desse processo de interconexão
energético, revigorando seu Axé. O Aiye e o Orun
conectam-se nos terreiros, em uma ligação que torna
esse espaço vivo, cheio de energia vital para a
renovação do Axé dos/das filhos/as de santo, pois a
terra é o nosso maior receptáculo de Axé. O simples ato
de pisar no chão dos terreiros, nos faz perceber a
intensa conexão estabelecida e com isso aprendemos a
ter a partir dessa prática diária o respeito a esse solo

76
sagrado, a bater cabeça no chão e reverenciar os
nossos ancestrais que, para esses espaços nos
trouxeram. Aprendemos na prática ancestral que nessa
ação cotidiana canalizamos e renovamos a nossa
energia vital, assim como o respeito a todo o sagrado
coletivo representado nesse território.
Finalmente, a terceira reflexão que proponho é
sobre o tempo presente. Destaco a relação de
consciência entre a humanidade que vive no presente, a
partir do aprendizado daqueles que já passaram pelo
Aiye e deixaram seu legado para que possamos
preparar a chegada das futuras gerações que ainda
estão no Orun, nos planos espirituais. Portanto, falo da
responsabilidade que temos no tempo presente de
construir um mundo melhor e para as gerações futuras.
Neste sentido, Beniste (1997) indica que todos os
aspectos da experiência humana são predestinados
pela escolha que alguém faz do seu Orí.

[...] após a modelagem de cada futura pessoa


por Orixalá, é convocado Ajalá, com a tarefa de
fornecer o Orí, cada ancestral cede as
substâncias necessárias para aperfeiçoar a
forma das cabeças. Essas substâncias são
denominadas okeipori, que passam a
acompanhar a pessoa todo o tempo de sua
existência, sendo merecedoras de respeito e
culto. Mas Ajalá, mesmo sendo Orixá, tem suas
deficiências. É esquecido e descuidado, e nem
sempre as cabeças que faz saem boas. O
resultado é que a maioria das pessoas que
escolhem por si mesmas as cabeças, sem
recorrerem a Ajalá, acabam escolhendo
cabeças ruins e imprestáveis. A interpretação
para este fato, refere-se ao produto final que é o

77
homem, que terá uma tarefa árdua e bem
complicada para enfrentar quando chegar à
Terra. Em razão disto, Olodumaré ordena
sempre à Orumilá para ensinar os seres
humanos a restabelecerem o ponto de
equilíbrio necessário em suas cabeças. Assim,
nasceram os ritos de borí, sempre
determinados por Orunmilá através dos
sistemas divinatórios. (BENISTE, 1997, p.133)

Parto dessa racionalidade ancestral, de que todos


nós somos agentes das nossas próprias escolhas, do
nosso próprio destino e dos nossos próprios caminhos,
traçados inicialmente no Orun. Nesse caso, os planos
de vida e existência que traçamos no Orun são
compreendidos no Aiye com a ajuda da memória
cultural ancestral, com a identificação que vivenciamos
cotidianamente através dos nossos cosmosentidos e
que foi muito bem planejada com o auxílio dos/das
nossos/as ancestrais.
No decorrer da maturação dessas reflexões,
compreendi, a partir da cosmologia Nagô-Yorubá, que
nossas influências corporais não são apenas
determinações genéticas ou do meio de interação social
que vivemos no Aiye, mas trata-se também de
elementos que ainda não foram
explicados/compreendidos pela ciência empírica
moderna e cartesiana.

2.2 O PROCESSO DE COSMOBIOINTERAÇÃO


ANCESTRAL DINAMIZADO POR EXU

Os colonizadores, quando chegaram à África,

78
fragmentaram todas as cosmo-percepções ancestrais
com o intuito de domar e silenciar o agente dinamizador
de todo esse processo, o OrixáExu.

Os primeiros europeus que tiveram contato na


África com o culto do orixá Exu dos iorubás,
venerado pelos fons como o Vodum Legba ou
Elegbara, atribuíram a essa divindade uma
dupla identidade: a do deus fálico greco-
romano Príapo e a do diabo dos judeus e
cristãos [...] Atribuições e caráter que os recém-
chegados cristãos não podiam conceber,
enxergar sem o viés etnocêntrico e muito
menos aceitar (PRANDI, 2001, p.47).

Sem compreender a dimensão cosmológica dos


grupos étnicos africanos e demonizando a figura de
Exu, foram banindo-o do trabalho de abrir caminhos e
potencializar a abundância comunitária. A contenção da
energia de Exu tornou-se peça fundamental para as
estratégias de dominação e colonização no período da
escravatura, pois, através dessas amarras, o corpo dos
escravizados foi colonizado, domado, acorrentado e os
desejos da humanidade não poderiam mais ser
realizados. Tudo isso ocasionou uma trama muito bem
estruturada pelo pensamento eurocêntrico, que, de
forma nefasta, atribuiu os estereótipos que os terreiros
carregam até hoje.
O impedimento do transitar de Exu de forma livre
nas dinâmicas sociais, ou seja, da contenção pelos
sistemas de opressão do equilíbrio pessoal e coletivo,
confluiu com o desequilíbrio da exploração capitalista,
promovendo a manutenção da colonialidade, do

79
patriarcado, reforçando a superexploração da natureza
e do afastamento da humanidade do seu compromisso
estabelecido com os ancestrais.
No contexto de ressignificação e estratégias de
sobrevivência no Brasil, a união dos diversos grupos
étnicos africanos e seus/suas descendentes se
intensifica nos espaços dos terreiros possibilitando a
criação de um outro modelo familiar. Assim, a
cosmobiointeração é a compreensão desse arranjo em
que essas populações remontam através da família de
Axé, ou seja, a família que vai para além dos laços
sanguíneos, um novo processo de manutenção da
energia individual e coletiva. A família organizada no
espaço do Terreiro emerge da relação direta de ligação
energética/Axé em que todos/as estão diretamente
conectados/as, porque o corpo individual, encontra-se
imerso e diretamente ligado ao corpo coletivo, através
do Axé.
Nesta perspectiva, o corpo se transforma em
microcosmo de força/Axé, divinizado nos momentos
rituais nos terreiros e é constituído de três energias:
Ori(cabeça), Exu Bará (Exu pessoal) e o Orixá (aquele/a
divindade que guarda a nossa cabeça). Essa
organização energética do corpo na perspectiva da
cosmologia Nagô-Yorubá, evidencia o equilíbrio para o
bem viver. A obtenção desse estado de equilíbrio se
inicia no ritual ao Ori, quando tratamos a nossa cabeça,
não apenas em um contexto físico. Ori é a
representação individual presente em cada indivíduo,
que nos acompanha desde antes do nosso nascimento,

80
quando projetamos nossos caminhos ainda no Orun,
durante a vida terrena desde a chegada no Aiye até no
pós-morte, quando retornamos ao Orun. Equilibrar Ori
através do ritual de Bori, louvação a cabeça é o principal
caminho para a renovação dos nossos projetos de vida
no Aiye, nos fazendo renovar esses planos com a
permissão de Ajala e dos ancestrais que são também
invocados nessas cerimônias.
A potencialização de todos os nossos caminhos
de vida e destinos é representado por Exu Bará, Orixá
individual assim como Ori. Falamos daquele que
controla e potencializa os nossos desejos, sejam eles
de mudança, crescimento, dos sentidos corporais ou
materiais, diretamente representando o destino
individual ao desenvolvimento de cada ser humano.
Santos (1986, p. 241) nos ajuda na compreensão
acerca do papel de Exu Bará, quando nos diz que “é
aquele que fala, guia e que indica os caminhos dos
indivíduos”. Assim, associar a demonização a Exu,
significa subalternizar o desejo pessoal, frente as
instituições que colonizaram nossos corpos e mentes.
Romper com estes processos consiste, portanto, na
ação de potencialização e positividade dos desejos
pessoais através de Exu Bará, que rapidamente se
conecta com a confluência cósmica e energética do
Axé, abrindo o caminho para a descolonização coletiva,
pois Exu é o grande detentor da comunicação e
conexão entre o Orun e o Aiye.
Neste processo de sacralização do corpo durante
o período de iniciação, evidencia-se a libertação do

81
corpo físico ou Ará, que se torna divinizado como
receptáculo do Axé pessoal, interconectado com o Axé
coletivo do terreiro. Nasce, então, o Orixá, depois de
sete dias de recolhimento no útero do Terreiro14, a
divindade intermediária entre as forças naturais e
sobrenaturais que toma forma no corpo do iyawo(filho/a
do Terreiro) durante o estado de possessão.
Os Orixás se manifestam através das suas
performances religiosas por meio dos corpos dos/as
iniciados/as no ritual do Xiré, materializando um
complexo mitológico africanos e afro-brasileiro
estruturado e organizado como estratégia de
sobrevivência, luta e resistência. Durante as danças e
ritualísticas do Xiré, a organização cosmológica dos/as
Orixás e suas histórias são revividas e recontadas. O
conjunto de atos e feitos realizado pelos/as filhos/as de
Orixá demarca a sua trajetória na comunidade e a sua
função religiosa. Essa cosmobiointeração nos
possibilita compreender a relação de equilíbrio ou
desequilíbrio dessas três energias Ori, Exu Bará e
Orixá.
O nascimento do Orixá, ou a conexão do corpo
do/a iniciado/a, que antes estava desconectado com o
mundo ancestral, agora reestabelece essa vinculação
direta após os ritos sagrados. Reestabelece a
interrelação de respeito e significados entre os seres
vivos e não vivos, entre as folhas sagradas, rios, mares,

14
O útero do terreiro, onde o Orixá nasce é um espaço reservado para os
rituais de recolhimento espiritual. Este espaço é conhecido como Roncó,
Rundeime ou Camarinha.

82
estradas, encruzilhadas, pedreiras, ar, fogo, matas,
florestas, manguezais e demais elementos e
fenômenos naturais do meio ambiente,
compreendendo que estes fenômenos, elementos e
espaços são templos sagrados dos/as Orixás.
Nesta cosmobiointeração durante os ritos
iniciáticos do iyawo, toda a comunidade do Terreiro
também estabelece seu ritmo de conexão com o Axé,
participando do andamento da função. O sistema
oracular do jogo de búzios é o fator disparador dessas
atividades de cada pessoa durante a função. No jogo
Exu é consultado, trazendo os recados de Orumilá,
Orixá da adivinhação, que determina o melhor caminho
a ser seguido para a vida do neófito, concedendo suas
receitas de ebós, banhos, comidas ou encantamentos
específicos para cada Orixá. Dessa forma, o sagrado
também determina o conjunto de atividades que serão
realizadas a cada dia e distribuídas entre as pessoas do
Terreiro, indicando as práticas de manutenção do Axé
para a conexão ancestral.
Nesse contexto, os/as abian (filhas/os do terreiro
ainda não iniciadas/os) se encarregam da manutenção
do espaço físico, principalmente aqueles/as que não
têm função pré-determinada dentro do espaço do
Terreiro. Serão responsáveis por varrer, limpar, pintar,
podar árvores, cuidar dos animais e plantas, enquanto
os/as iyawo farão tarefas específicas que só pessoas
que já passaram pelos ritos sagrados podem
desenvolver, seja cuidar do espaço sagrado e ritual da
cozinha de Orixá, das folhas sagradas, de preparação

83
de rituais ou auxiliar seus irmãos e irmãs mais
velhos/as, os/as ebomes, aqueles/as que já passaram
por todos os rituais de obrigações religiosas e fecharam
os ciclos dos sete anos.
Os/as ebomes auxiliam o Babalorixá ou aYalorixá,
juntamente com os Ogans - homens responsáveis pelos
toques sagrados e auxiliam nos rituais específicos de
sacralização de animais e outras atividades; e as
Ekedes, mulheres responsáveis pelo cuidado dos
igbasdos/as Orixás, das danças e dos/as filhos/as do
Terreiro. Os Oganse as Ekedes são filhos/as que não
entram em estado de possessão, pois são escolhidos
especificamente por Exu, através do jogo de búzios, ou
nos momentos de rituais do Terreiro para servir aos/as
Orixás.
Assim, a cosmobiointeração consiste na
manutenção do Axé coletivo do Terreiro, que
retroalimenta o seu Axé pessoal durante as atividades
cotidianas, dinamizadas por Exu, através de uma
conexão ancestral, determinando o conjunto de
relações que estão conectadas com a natureza e pré-
determinadas pelos ancestrais, sejam elas,
econômicas, políticas, sociais, culturais.

2 . 3 N O S Q U AT R O C A M I N H O S D E U M A
ENCRUZILHADA

Estamos percorrendo essa estrada, porque


muitos a abriram e nos possibilitaram chegar até aqui.
Nossos ancestrais, inicialmente, a desbravaram e
deixaram o seu legado para que aprendêssemos com

84
seus saberes e tradições. Hoje dialogamos com
pesquisadores e pesquisadoras que também estão
neste processo de ruptura com a hegemonia das bases
teóricas eurocêntricas e colonizadoras. Assim, os
escritos de Petit (2015), Ligiéro (2011), Leite (1996),
Quintana (2009) e outros/as se apresentam como
diálogos propícios, neste caminho de amadurecimento,
de avaliação e reflexão sobre os princípios filosóficos
dinamizadores presentes nos terreiros.
Por tratar de um universo complexo, organizei
uma estratégia de análise e compreensão desses
princípios filosóficos como base categorizada a partir de
quatro caminhos que formam uma encruzilhada e que
dialogam entre si: Ligação com o Caos (Rudurudu) de
Exu, Ligação com o Conhecimento (Imo), Ligação com
a Magia (Idan) e Ligação com o Corpo Sagrado (Ara
Mimo).
Segundo Ramose (2011, p.12), a concepção de
princípios filosóficos africanos está diretamente
atrelada à noção das experiências sociais afro-
diaspóricas, desse modo, ao falarmos dessas filosofias,
estamos ao mesmo tempo abordando/visualizando os
valores civilizatórios. Isso nos possibilita reivindicar e
impulsionar a percepção que “[...] a posse da chave
para o conhecimento deste modo é pretender possuir o
poder de determinar o destino dos outros. Isto constitui
a filosofia como um terreno prático e intelectual de luta
pelo poder sobre as vidas e destinos dos outros.

85
2.4 LIGAÇÃO COM O CAOS (RUDURUDU) DE EXU

O racismo estrutural possui um vasto


enraizamento nas relações de poder na sociedade
brasileira. Para os Povos de Terreiros essa violência é
traduzida no racismo religioso, também identificado nos
espaços de saberes, como no espaço escolar e
acadêmico, onde a figura demonizada seguiu sendo
atribuída ao Orixá Exu. Essa visão equivocada sobre
Exu se cristalizou no imaginário simbólico da sociedade
brasileira, e o condenou ao estereótipo maléfico. Dessa
forma, Exu é o Orixá mais incompreendido e caluniado
do panteão afro-brasileiro (BASTIDE, 1978).
Para os povos Yorubás, Exu é o portador das
orientações e ordens, “nada se faz sem ele, nenhuma
mudança, nem mesmo uma repetição” (PRANDI,
2001). Exu é quem ata e desata o nó e propicia o caos
na busca pela ordenação das afetividades humanas
com o cosmo. Os espaços e as regras não lhe impõem
limites pois ele escapa das distinções entre o bem e o
mal. Ele é a prática da ironia que inverte os papéis
sociais, as aparências e desfaz as ilusões (QUINTANA,
2009).
Nesse sentido, Exu é a potencialidade que remove
a grossa crosta satânica que o racismo religioso o
empregou no contato colonial, e aparece em sua forma
originária, como um poderoso articulador das relações
afetivas, ancestrais e científicas. Exu é o próprio
movimento e se multiplica ao infinito (PRANDI, 2001).
Exu é o dinamizador de todo o universo

86
cosmológico e nos permite ampliar nossos
conhecimentos e atuações. Sua capacidade de estar
em toda parte nos propicia lograr toda a potencialização
da ordem do mundo e da sociedade. Sem Exu não
haveria possibilidades de encruzilhar experiências,
ciências, emoções e cosmopercepções, nem tão pouco
de afrontar a ordem racista eurocêntrica tão presente na
sociedade brasileira e na educação (QUINTANA,
2009).
O racismo religioso é tão forte no cenário brasileiro
que apenas citar o nome de Exu nos espaços escolares
já pode acarretar reações fervorosas de ódio, medo e
ignorância atrelado a esta figura, principalmente vindo
por parte dos setores mais conservadores evangélicos
e católicos. Em Rudurudu, Exu é o Orixá mensageiro
que tem a capacidade “anticartesiana” (QUINTANA,
2009), (RUFINO, 2019), estabelecendo-se por quatro
principais princípios filosóficos centrais que descrevo a
seguir: Movimento, Ironia, Rebelião e Trangressão.
Exu é o detentor do movimento, aquele que
introduz a mudança, a desordem enquanto resistência à
ordem social estabelecida e constituída. O movimento
de Exu é caótico, aleatório, desequilibrador para os
padrões de dominação que não compreendem o gingar
ancestral presente nas performances dos corpos
africanos e afro-brasileiros, no bailar nas encruzilhadas
dos Exus e Pombagiras.
No movimento rápido do Ogode Exu, Ele
transforma o possível em impossível, caso não lhe
preste oferenda, ou barreiras em acesso para aquele/a

87
que rende seus ebos nas encruzas. A mandinga está
presente nesses movimentos transgressores que
desequilibram para reequilibrar, que trazem a confusão
dentro de casa para depois apaziguar, retirando os
empecilhos que possivelmente pudessem chegar.
Assim, o movimento dos corpos embriagados que
seduzem e despertam os desejos, das mulheres
damas, das Pombagiras, corpos que bailam e badalam
(conversam), miram os trabalhos, catam os
pensamentos e colocam a vida dos filhos e filhas nos
seus devidos lugares.
A ironia de Exu desqualifica e deprecia o poder da
colonialidade, tocando fogo na moralidade repressiva
branca, eurocêntrica, binária e doentia. Exu é
demonizado pela sua astúcia porque contradiz e
enfrenta o poder instituído socialmente, as hierarquias
dominantes, alienadoras, que promovem a manutenção
da colonialidade.
A ironia de Exu faz com que a árvore mais íngreme
ou a personalidade mais dura se curve a sua vontade e
lhe preste reverência, pois ele é o fecundador e nos dá o
poder da vida. Essa ironia está presente nas
gargalhadas de Exu, que desconcentram, amedrontam,
assustam e rompem a ideia de bem e mal, ou as pré-
noções de supostas verdades estabelecidas, presas e
enraizadas que não nos permite relativizar a realidade,
pois o que pode ter sido verdade ontem, como a certeza
da vitória epistêmica dos/as colonizadores/as, hoje Exu
desfaz facilmente, transmutando a certeza como
mentira, com o poder da tradução dos seus

88
ensinamentos.
Nesta perspectiva, Exu fala por meio dos/das
intelectuais macumbeiros/as, mandingueiros/as das
encruzilhadas, que potencializam a transgressão
através da irradiação das ideias de Exu nas linhas e
páginas que rasgam e deixam em farrapos as mentes
colonizadas. A ironia das gargalhadas das Marias,
mulheres das encruzas, damas de olhares de canto de
olho, desmontam os padrões sexistas, machistas e
misóginos que encarceraram os corpos femininos,
mutilando e adoecendo-os em uma verdade patriarcal
absoluta, falsa e moralista. Então, Ironia é sim um
princípio de liberdade.
A rebelião potencializada por Exu demonstra que
o poder não é intocável, mas digno de todos/as
aqueles/as que o conquistam em seu devido equilíbrio
cósmico. Exu estabelece essa conquista pelo trabalho.
No entanto, o trabalho não é uma caminhada egóica da
lógica capitalista, mas a ação dinamizadora do Axé
coletivo em que cada pessoa atua como célula de um
mesmo organismo; todas exercendo sua função,
trabalho ou revolução individual, rumo a transformação
coletiva.
A rebelião de Exu se realiza no trabalho
direcionado pela ação do pensamento e indução do
Axé. Tranca Rua das Almas, o grande filósofo das
encruzilhadas nos orienta: “o trabalho é meu e o
pensamento é seu”. Assim, o direcionamento do Axé
pessoal interliga-se diretamente com o pensamento
coletivo de todos/as naquele trabalho/gira/baia, unindo-

89
se coletivamente em uma grande corrente de desejos
organicamente desenvolvida para a grande rebelião e
libertação das dificuldades da vida.
A transgressão pensada através de Exu nos
possibilita romper com as justificativas eurocêntricas
brancas e racistas de um conhecimento verdadeiro,
uma matriz única. Romper com esses processos
epistemológicos é também reivindicar o gosto por viver,
é transgredir, pois uma vida malnutrida é aquela com
ausência de conhecimento.
Devemos pensar o conhecimento como uma
possibilidade de expansão da vida, com a perspectiva
de torná-la uma potência, transgredindo a existência.
Dessa forma, compreendo a ruptura proporcionada por
Exu e o processo de transgressão como uma relação
intrinsecamente associadas a mandinga, a malícia dos
capoeiristas, aos malandros e moradores/as das
encruzilhadas que transfiguram tudo isso através de
uma rasteira, uma esquiva, o molejo e o balançado,
sustentando o gingado e o samba na ponta do pé,
transgredindo e libertando o corpo, possibilitando a
invenção de novos seres para além do cárcere racial, do
desvio e das injustiças cognitivas.
Acredito que agora os nossos caminhos estão
abertos para dialogarmos além dos tecidos do espaço e
do tempo, compreendendo as estruturas sociais com
base em Exu para pensarmos o Terreiro também como
espaço político e pedagógico, detentor de um sistema
cosmológico que possibilitou a luta e resistência desses
povos.

90
Dessa maneira, os terreiros estruturados com
base nas tecnologias sociais vindas de África e
adaptadas aqui no Brasil, evidenciam o conjunto de
conhecimentos e saberes das ciências ancestrais dos
diversos grupos étnicos e que estruturamos nesse livro
como Epistemologias de terreiro.

2.5 LIGAÇÃO COM O CONHECIMENTO (IMO)

O conhecimento é uma arma. Nós, povos de


Terreiro sabemos disso muito bem. Durante muitas
gerações, os saberes africanos que foram
ressemantizados e guardados dentro dos muros
desses espaços sagrados. Esse processo não foi uma
configuração inercial, mas alicerçado na dinâmica
promovida por Exu. Esses ensinamentos, ao longo do
Tempo, foram compreensíveis apenas para aqueles/as
que estavam do lado de cá da porteira do terreiro,
vivenciando cotidianamente esses saberes ancestrais.
Nesta perspectiva, o Tempo é sagrado e não é
necessariamente percebido em sua linearidade
cronológica ditada pelas prerrogativas da lógica
capitalistae avassaladora das relações humanas. O
Tempo é vivido, sentido, cheirado, provado, no Tempo
da aprendizagem e trocas de Axé dentro dos espaços
sagrados do terreiro. Tempo também é Orixá Iroko ou
Inkice, Tempo da nação Angola, associado as
imponentes gameleiras brancas presentes dentro dos
terreiros. Tempo é o senhor da sabedoria, do mistério e
da magia.
A vivência cotidiana dentro do terreiro traduz os

91
mistérios apresentados aos corpos colonizados que
estão em processo de transmutação ancestral e de
desenvolvimento dos sentidos. As cosmopercepções
se expandem no Tempo como agente catalizador das
relações de respeito a vida humana, nos fazendo
entender que para toda ação, vamos encontrar a
transformação energética de Axé para produzirmos
uma reação no planeta. Por isso deve-se compreender
e ensinar a todos/as o respeito às outras espécies vivas
e não vivas, respeito a Terra e a Vida.
O Tempo leva significado aos aprendizados mais
simples, mas que contém a força do Axé ancestral. No
tempo dos/das pretos/as velhos/as carrega-se a
sabedoria, o segredo, a mandinga e estratégias de
resistência e sobrevivência utilizados na Vida vivida
aqui, no Aiye.
O Tempo está ligado a ancianidade dos/das mais
velhos/as, onde seus saberes estão presentes no
Tempo do Agora. O Tempo não é apenas cronológico,
mas é o das iniciações, das vivências, das
cosmopercepções que afirmam um lugar-tempo da
afrocentricidade. Assim,ele não se descontextualiza do
espaço e é compreendido na sua magnitude sagrada,
paciente, sábia e também destruidora e avassaladora
dos desejos humanos. O tempo sagrado consiste em
experimentar o mundo na conexão entre o Tempo e
espaço.
De fato, quando se adentra no roncó, abandona-
se um corpo-uso da colonialidade e se (re)nasce na
potencialidade dos/as Orixás, sensíveis aos elementos

92
da natureza, aos seres vivos e não-vivos do mundo
visível (Aiyê) e invisível (Orum). Desse momento em
diante, nos tornamos microcosmos do Axé, em um
intenso relacionamento, de forma contínua com o
macrocosmo, conectados/as a grande
cosmobiointeração do universo.
Nesse sentido, a construção desse caminho
epistemológico reivindica para esses/as descendentes
e herdeiros/as de africanos/as, o lugar de produtores/as
do conhecimento, afirmando a potencialidade desses
saberes e dessas pessoas como autores/as de suas
trajetórias dentro das Universidades, Escolas e
Terreiros. Nestas encruzilhadas de saberes, Exu é o
principal agente dinamizador que impulsiona a
circulação da energia vital da humanidade. Exu
dinamiza a vida, o universo, organiza tudo e faz circular,
nos proporcionando a compreensão do Axé e a
importância da sua retroalimentação para o bem viver
pessoal e coletivo. Axé que está desvencilhado da
colonialidade e por isso traz a autonomia e o
protagonismo dos povos de Terreiro.
Estamos em espaços de disputa e esse território
epistêmico se apresenta como uma encruzilhada entre
os terreiros, as Universidades e as Escolas. Então,
proponho o que chamo de Exu nas escolas como
estratégia para pisar nesse chão, reconhecendo a
nossa ancestralidade africana e nossa contribuição
para a elaboração de novos contextos civilizatórios.
O processo de cosmobiointeração mantém e
preserva o Axé negro africano nos terreiros. A ausência

93
da circulação de Axé, da troca ou retroalimentação,
provoca a perda de potência ou desencanto, abrindo
caminho para a negatividade e ocasiona uma série de
problemas, sejam eles de afinidades energéticas com
entidades – confusão nos caminhos de vida,
indecisões, incompreensões ou o próprio adoecimento;
seja ele físico, emocional ou espiritual.
A falta de um processo educativo ancestral dentro
dos terreiros resulta uma confusa projeção dessa
atmosfera. Por isso é primordial que esses espaços
sejam compreendidos de forma diferenciada da lógica
cartesiana, pois a vivência e a experimentação,
traduzem através das práticas educativas da oralidade
esse processo de retroalimentação energético, como
por exemplo as vivências nas cozinhas dos terreiros, o
jogo de búzios, preparações de rituais, Ebós, Boris e
obrigações rituais. Na verdade, todos esses processos
ou rituais são direcionados por Exu nos jogos de búzios
ou consultas ao Ifa(Sistema adivinhatório africano que
analisa 256 caminhos mitológicos).
No jogo de búzios pedimos a Exu que seja o
responsável pelo diálogo com Orumila(orixá do
conhecimento e da adivinhação) e nos traga os
conselhos do Orixá da adivinhação, nesse momento
são especificados os ebos que serão feitos,
potencializando as energias positivas nos dando
caminhos ou retirando, as energias negativas que
aprisionam nosso caminhar. O diálogo de Exu com
Orumila nos apresenta através do jogo de búzios ou Ifa,
o poder da palavra, do diálogo, da aprendizagem, pois:

94
[...] a palavra dotada de uma parcela da
vitalidade do preexistente, é necessariamente
uma força inerente à personalidade total, daí
que sua utilização deve ser cuidadosamente
orientada, pois que uma vez emitida algumas
de suas porções desprendem-se do homem e
reintegram-se na natureza. Nesse sentido,
deve ser lembrado que a palavra é elemento
desencadeador de ações ou energias vitais. De
fato, ao ser dirigida para atingir determinados
fins, interfere na existência pois que, uma vez
absorvida, pode provocar reações,
controláveis ou não. É por isso que o aparelho
auditivo é assemelhado aos órgãos
reprodutores femininos: ambos são capazes de
fazer gestar algo decisivo pela penetração, no
interior dos indivíduos, de um elemento vital
desencadeador do processo (LEITE, 1996, p.
3).

O Babalorixá ou Yalorixá quando abre um jogo de


búzios trará sempre a determinação de Orumilá através
de Exu que se encarrega de cobrar a execução dos
Ebos. É com base nesses ensinamentos mitológicos,
nas práticas curativas da medicina ancestral e nos
conhecimentos que nos são passados pelos/as mais
velhos/as através da oralidade que os saberes se
expandem nos terreiros e como base nessa perspectiva
conseguimos projetar a vida aqui no Aiye. Exu nos
apresenta o poder da oralidade que se traduz na práxis
do cotidiano.

95
2.6 LIGAÇÃO COM CORPO SAGRADO (ARA
MIMO)

O terreiro é um território de (re)encontro com a


ancestralidade e a libertação. As pessoas que cruzam a
porteira desses espaços sagrados adentram trazendo o
“carrego colonial” (RUFINO,2019), ou seja, o peso
traumático da colonialidade. Literalmente, seus corpos
chegam adoecidos, suas mentes abaladas, em
algumas vezes desequilibradas pela força da
racionalidade eurocêntrica e cristã, que traduz no
patriarcado as medidas do modelo de certeza e
aceitação na sociedade ocidental. Esse conjunto de
regras e padrões gera o encapsulamento das vidas,
domando-as, amordaçando, silenciando e matando
os/as diferentes.
A corporeidade dentro dos terreiros é
ressignificada, alargando os cosmosentidos e
cosmopercepções. É percebida como um instrumento
de comunicação e formação das identidades em suas
dimensões políticas, históricas, ideológicas, estéticas,
lúdicas, cognitivas e ancestrais. Para Petit (2015) o
corpo-dança-afroancestral, por meio do cantar-dançar-
batucar encontra o sagrado e traduz o real significado
da existência da vida para o/a Orixá. O bailar ancestral
reposiciona a dança de Terreiro para além do simples
movimentar-se, e no ritmado dos atabaques e agogôs,
regressa ao passado e reconta as mitologias ancestrais
no presente. O corpo-dança-afroancestral não se
desliga em momento algum, pois esse foi encantado

96
através dos rituais e está diretamente conectado a
essas cosmologias, traduzindo esses valores
civilizatórios para a coletividade.
Independente do ritmo tocado, do ritual ou da
forma como é conduzido no barracão do Terreiro, cada
corpo-dança-afroancestral desenvolve sua
performance a partir da ginga naturalde cada
iniciado/a, em sua própria velocidade ou rítmica, seja
mais acelerada ou mais lenta. Cada ginga presentes
nas danças de Terreiro revela os elementos
performáticos de fortalecimento das identidades afro-
religiosas.
Na circularidade do Xiré, todos/as estão
interconectados/as ao Axé pulsante do ritual, seja
dançando, conduzindo os/as Orixás, tocando, cantando
ou simplesmente assistindo como expectadores/as. No
momento inicial do Xiré, as mulheres adentram ao
barracão arrumadas e paramentadas em fila indiana
que segue a sequência de idade na iniciação do
Terreiro, ou de grau hierárquico que venham a ocupar.
Neste sentido, a primeira mulher a entrar no barracão,
precisamente será a que carrega mais Axé ou tempo de
iniciação, e a última da fila será a mais jovem ou menos
experiente entre as iniciadas.
O significado maior da circularidade é a
interconexão de Axé e conhecimentos entre todos/as.
Os/as mais velhos/as conduzem os/as mais novos/as
no dançar-cantar-batucar, para que os corpos-dança-
afroancestrais possam contar sobre as mitologias
africanas, ressignificadas nos terreiros.

97
Nesse instante-ritual do Xirê, os corpos chegam
ao estado de alacridade não apenas porque estão
conectados com os/as ancestrais, extraindo do solo
toda a energia vital potencializada pelo momento, mas
também porque a irradiação entre o Aiye e o Orum foi
estabelecida. O corpo em alacridade está em
cosmobiointeração, promovendo a propagação da
energia vital presente e potencializada pelo ritual.

2.7 LIGAÇÃO COM A MAGIA (IDAN)

Adentramos esse caminho de forma a cobrar dos


espaços acadêmicos o real significado do termo magia,
para que com isso possamos realizar o
reposicionamento cognitivo e epistêmico dos saberes,
tecnologias, culturas e tradições africanas que
chegaram ao ocidente. Diferente do sentido
estereotipado e pejorativo que foi atribuído pela santa
inquisição ao caçar, torturar e matar pessoas (na grande
maioria mulheres) na idade média, exorcizando ou
levando as pessoas a fogueira, a magia para os Povos
de Terreiros é a potencialização da vida e do Axé, seja
ele pessoal ou coletivo.
15
A magia preta ancestral através do conjunto de
ritualísticas presentes dentro dos terreiros permite a
reinvenção, a abertura de caminhos, motiva a
esperança, revitaliza o Axé, potencializa

15
Tive acesso a esse termo, a partir das ideias articuladas pelo Babalorixá e
professor Dr. Sidney Nogueira em vários momentos das suas lives no seu
instagram.

98
encantamentos para fortalecer a nossa existência,
defende dos males, dos/as inimigos/as materiais,
espirituais e nos ajuda a superar os desafios.
Para os Povos de Terreiro forjados pelos
conhecimentos ancestrais africanos ressemantizados
no contexto da diáspora e que vivencia cotidianamente
a cosmobiointeração, não há dissociação entre magia
preta e a ciência do cotidiano:

A gente está falando de uma sociedade


essencialmente mágica. Em que o espiritual e o
mágico explicam em todos os fenômenos
dessa sociedade. Então, as pessoas têm
manifestações corpóreas em que elas estão ali,
externando essa espiritualidade. Eu estou
falando isso porque hoje em dia, quando a
gente fala de transe, quando se fala de
espiritualidade, se acha que isso é só coisa de
preto, só coisa de africano. Então, acha que é
preto que faz feitiço, preto que faz magia, preto
que tem possessão. E eu estou contando essa
história para dizer que não somos nós. São
todos os seres humanos, desde o mundo
antigo, que fazem magia, fazem feitiço, tem
possessão, entram em transe. Em culturas
diversas, inclusive a própria Igreja Católica,
como eu já contei na minha própria história, que
entrava lá em transe na renovação carismática.
Então, é só para a gente deixar isso nítido
porque eles nos criminalizam exatamente pelo
que eles fazem, e fazem desde o mundo antigo
na sociedade branca. Só que virou uma coisa
de preto. Lidar com espiritualidade virou coisa
de preto, porque é uma espiritualidade fora da
cristandade. Se fosse uma espiritualidade, se a
nossa espiritualidade estivesse ali passando,
se ela passasse pela cristandade, como muitas
vezes acaba passando de forma palatável,
porque eles se apropriaram de um monte de

99
coisa nossa para fortalecer a magia deles e
está tudo bem. Agora, fora da cristandade, isso
significa uma disputa de poder, falar de magia é
falar de disputa de poder, porque é uma magia
não institucionalizada, então eles não têm
controle. Na verdade, não existe problema
nenhum em fazer feitiço, não existe problema
nenhum em fazer magia, não existe problema
nenhum em entrar em transe, desde que você
esteja lá institucionalizado, desde que você
esteja seguindo as regras do jogo, desde que
você esteja controlado. A partir do momento em
que você está fazendo isso fora desses
espaços hegemônicos e controladores de
poder, aí você se torna uma ameaça. Uma
ameaça que precisa ser exterminada. Então
essa é a nossa história desde 1500.
(NOGUEIRA; ROCHA, 2021)

Dessa maneira, a magia que se potencializa no


axé pessoal e transcende as barreiras da colonialidade
quando é configurada coletivamente, expandindo-se
para todas as necessidades de (re)existência. Trata-se
de um universo em que a figura do feminino, fala da
magia de encantamento, em que as mulheres negras
foram e são até hoje as grandes protagonistas e tudo
isso está muito ligado ao fato de que essas mulheres
foram as principais responsáveis por traçar e executar
as estratégias de luta e resistência das populações
escravizadas.
Dentro das casas senhoriais essas mulheres para
sobreviver, além de trabalhar também fizeram os rituais,
fizeram feitiços e magias, que a gente não imagina.
Usando, muitas das vezes, ingredientes que estão ali
dentro da casa senhorial. Afinal, elas estavam na

100
cozinha. Isso não é qualquer coisa. Como nos fala
(NOGUEIRA; ROCHA, 2021), “A cozinha é poder”.
Cozinha não é como o feminismo branco vai ver
lá no século XIX, vai dizer que a gente tem que
sair da cozinha. Que cozinha é espaço de
perda de autonomia política de mulheres. Isso
é um entendimento muito do branco. A gente
que é preto sabe o valor da cozinha. E o valor
da cozinha, óbvio, não é a cozinha que a gente
está sendo explorado pelo outro... Mas sabe o
quanto que a cozinha traz para a gente magia,
traz possibilidade de cura, traz elementos aí
para a gente resistir. Da cozinha não sai só
cozinha, sai xarope, da cozinha sai banho de
assento, da cozinha sai antibiótico, da cozinha
sai tudo. Então, essas mulheres com o domínio
da cozinha, estavam ali por exemplo, fazendo
magia para os seus homens pretos, seus
companheiros, seus tios, seus irmãos, seus
maridos, seus filhos saírem do tronco, sabe?
Então, isso é muito importante porque a gente
tem uma aliança aí. Porque quando a gente vai
para uma resistência ao sistema escravista, a
gente fala muito dos quilombos, a gente fala
também das irmandades religiosas...
(NOGUEIRA; ROCHA, 2021)

A magia foi e é uma das grandes estratégias de


luta e de resistência das populações negras. Ela é
resistência, feitiçaria é resistência. O feitiço foi e é
garantia da identidade de resistência, de práticas onde
pode-se criar pontes entre o universo real e o mítico
ancestral, utilizando-se dos conhecimentos que estão
presentes nos espaços religiosos dos terreiros. Assim, a
magia preta é a ciência dos/as antepassados/as, é
tecnologia de promoção da vida.

101
CAPÍTULO III
EXU NAS ESCOLAS: O CAMINHO
DE CONSTRUÇÃO PARA UM NOVO
CENÁRIO CIVILIZACIONAL
“Exu nas Escolas” consiste numa proposta que
reconhece a ancestralidade africana como fundadora
de uma nova pedagogia para o processo ensino-
aprendizagem e Exu, como força potencializadora de
novas práticas pedagógicas antirracistas e
descolonizadoras. Acredito que os conhecimentos que
apresentei até aqui, podem contribuir com outros
atributos e fruições cognitivas, refletindo a partir desse
novo panorama em que a educação necessitará
renovar seu projeto filosófico e consequentemente seu
Axé.
Esse fenômeno está diretamente vinculado à
experiência com que o outro tem como
natureza radical a sua condição dialógica,
diversa e inacabada. Por não ter fuga,
inscrevendo-se como um ato de
responsabilidade, a educação é logo uma
problemática ética, pois está implicada à
dinâmica inevitável de tessitura de
experiências com o outro. Assim, o conceito de
axé emerge como uma perspectiva para
inscrevermos a educação. (RUFINO, 2019,
p.271)

Lançamos mão da ideia de Ebo Epistemológico


(RUFINO, 2019) com Exu, apontando um projeto de
educação ancestral, antirracista, sulear, decolonial. O
Axé é combustível e força motora para a transformação
educacional, cognitiva e planetária.

[...] o ebó epistemológico é um conceito,


falando muito rapidamente dele, é um conceito
que aparece na pedagogia das encruzilhadas
que diz o seguinte. Nós vivemos em um mundo
desigual, nós vivemos em um mundo que é
completamente irregular, desproporcional,

105
principalmente do ponto de vista do saber-
poder, né? O conhecimento tem uma esfera de
dominação, porém, como nós podemos engolir
aquilo que nos foi colocado como único curso
possível, e devolver de maneira transformada?
O ebó é o fundamento na cultura yorubá que
está apresentado como uma tecnologia
ancestral, você infere o ebó para imantar algo
de vida, de potência. Então, não é, meramente,
a gente falar: “Isso não serve”, como que eu
posso ressemantizar isso, reajustar isso numa
lógica da potência, numa lógica da fartura, da
diversidade, da responsabilidade, do respeito?
Então, costumo dizer que a encruzilhada tem
um dilema para nós, por exemplo, a gente está
fazendo várias críticas a dominação do
ocidente, europeia, mas ela não pode excluir
esse Ocidente, e essa Europa. Ela tem que
reposicionar esse Ocidente e essa Europa.
Então, eu não estou fazendo um discurso
antiocidental, eu estou fazendo um discurso
que é fundamental que a gente pense na justiça
social, na justiça cognitiva. Porque se Exu é a
boca que tudo come, é aquele que fala em
todas as línguas, quem sou eu para falar que
tem que se excluir isso ou aquilo. Tem que se
reposicionar. Tem que ter responsabilidade.
(PEREIRA, (2012); RUFINO, 2019)

Nesse sentido, a proposta pedagógica “Exu nas


Escolas” inicia problematizando o olhar localizado na
etimologia da palavra Epistemologia, como o conjunto
de experiências cognitivas que potencializam a
produção ou manutenção de saberes, ou seja, o estudo
do conhecimento, carregando em si uma conotação
colonial e o lugar em que ela foi colocada a partir dos
mecanismos de poder. Advinda do grego, ela embarca
nas caravelas e aporta em terras "outras", impondo-se

106
como o conhecimento válido, a ciência ocidental, a
religião judaico-cristã e a civilização europeia,
descartando as demais perspectivas científicas, como,
por exemplo, a africana, a indígena e dos demais povos
que constituem a nação brasileira. No Brasil, a
evidência civilizatória e epistêmica centraliza-se no
grupo racial branco europeu como o centro de toda
civilização, ciência, religião, política e economia, logo, o
proprietário da epistemologia, construindo a base
teórica-metodológica dos projetos educativos das
políticas públicas de educação.
O eurocentrismo é uma das principais
característica do conhecimento produzido e ensinado
nas escolas e nos espaços acadêmicos, com
supervalorização dos grupos étnicos europeus em
detrimento dos demais povos. Por isso, é necessário
questionar o lugar da ciência ocidental e das
epistemologias brancas na soberania da educação
escolar. Aliás, se três grandes grupos raciais
contribuem para a formação social brasileira, por que
apenas o europeu é (super)valorizado? Buscamos
refletir essa questão apontando para as Epistemologias
dos Terreiros.

[...] as sociedades negro-africanas sempre


viveram suas próprias realidades no fluxo de
processos sociais abrangentes, que se
definem seja em relação a grupos extensos
caracterizados pelos diversos complexos
culturais, seja em relação ao conjunto de
civilizações negro-africanas, que formam, mais
do que uma simples constelação de povos, um
universo histórico elaborado pela rede de

107
relações sociais totais típicos do universo
social que define essas sociedades. Em outras
palavras, essas civilizações mantiveram e
mantém a sua continuidade histórica - e não
apenas a sobrevivência histórica - e nesse
processo a natureza singular de seus valores
civilizatórios é mecanismo de sua
materialidade. (LEITE, 1996, p.116)

Há um continuum civilizatório africano que aqui,


especificamos e reconhecemos no espaço dos terreiros
como um eixo científico-cultural na experiência social
afro-brasileira. Esses princípios baseiam a estrutura
das epistemologias de terreiro, que nos ajudarão a
visualizar todos esses saberes apontados para as
práticas pedagógicas em sala de aula. Entretanto,
precisamos dar um grande mergulho nesse oceano,
sobretudo para compreender por definitivo os terreiros
como lugares míticos, mas também espaços de
resistência política, de proteção e cuidado com o/a
outro/a, as "pequenas Áfricas" solidificadas e
reinventadas na diáspora, espaços próprios na
produção de conhecimentos e arranjos socioafetivos
(MACHADO, 2019).
De fato, os terreiros não estão congelados no
passado e reinventam-se cotidianamente. São espaços
dinâmicos, inventivos, dialógicos, portadores de
matrizes e motrizes culturais (LIGIÉRO, 2011), que os
fazem manter a tradição transformando-a. Essas
motrizes culturais dinamizam as epistemologias do
Terreiro, que fazem as tradições se manterem vivas e
pulsantes em uma relação dialógica com as
transformações sociais.

108
Há um complexo arranjo científico-cultural
fundamentado por valores civilizatórios, que solidificam
a contribuição africana na experiência social brasileira.
Nos terreiros, essas dinâmicas são parte indissociável
do cotidiano do povo de Terreiro, onde os princípios
filosóficos africanos e afro-brasileiros tornam-se
dinâmicos na rotina das práticas religiosas afro-
brasileiras. Diante disso, é possível começar a
vislumbrar a Exuística que abre caminhos para um novo
paradigma científico e outras bases epistemológicas
que não sejam exclusivamente advindas do continente
europeu.

3.1 O QUE É A EXUÍSTICA? EXU TEM TUDO A VER


COM A EDUCAÇÃO

Exuística é a ciência que estuda o Orixá Exu, suas


origens, funções, caminhos e possibilidades de
transformação do mundo, das existências e da
humanidade, reposicionando de forma positiva a sua
imagem, com a perspectiva de romper barreiras sociais,
culturais, políticas, epistêmicas e cognitivas. Essa
ciência transgressora, necessária e urgente se propõe
reparar todas as atrocidades promovidas ao longo do
contexto histórico, desde a chegada dos/as
primeiros/as colonizadores/as no continente africano,
até a luta antirracista em solo brasileiro.
Essa ciência tem como objetivo central
reposicionar Exu, diante das injustiças cognitivas que o
associaram à figura maligna e diabólica das religiões
judaico-cristãs, evidenciando a sua verdadeira função

109
como dinamizador da existência humana e mensageiro
sagrado entre o Orun e Aiye. O desejo é escurecer a
ciência e Exu abriu os caminhos para a compreensão da
sua real face como o Orixá da verdade, potencializador
da energia vital, aquele que torna possível o impossível,
que transforma o caos em ordem e a ordem em caos,
reparando o real sentido da existência humana.
Aprofundamos esse diálogo com o Babalorixá
Sidney Nogueira, com o intuito de maturar essas
reflexões a partir da live, Exu nas Escolas e a
potencialidade de práticas Exuísticas realizada no ano
de 2020.
Eu também acredito muito na educação [...]. Só
que a educação precisa ser exuística. E aí,
vamos recorrer àquele itã muito conhecido
sobre a fome de Exu. Quer dizer, o que Exu está
querendo nos dizer quando ele devora tudo, os
telhados das casas, os bois, as galinhas, as
árvores, a terra e devora inclusive a própria
mãe. Ele está nos dizendo que é preciso que
experimentemos tudo, é preciso experimentar
tudo. Que a gente pode, inclusive, devorar a
própria mãe no sentido metafórico de
incorporá-la a nós. O que Exu está dizendo é
“olha, eu devorei tudo, e eu os habito, portanto
eu devorei tudo e na sequência passei a habitá-
los para que vocês possam devorar o mundo”.
Então, o que acontece é que a escola hoje tem
reproduzido um modelo fracassado, um
modelo que fracassou. O jovem não quer mais
estar na escola, a criança não quer mais estar
na escola. A ancestralidade acaba repelindo
esse modelo escolar colonizado. (PEREIRA;
NOGUEIRA, 2020)

Nesse sentido, Exu nas Escolas apresenta a


Exuística como possibilidade de descolonização

110
didático-metodológica dos processos educativos na
escola, centrando forças para a potencialização do
desenvolvimento cognitivo dos(as) estudantes, por
meio de práticas pedagógicas que sejam
transgressoras da educação bancária, conteudista e
normatizadora. Guiado por Exu, esse processo provoca
rupturas nos padrões eurocêntricos da colonialidade,
do patriarcado e fetichismo capitalista que adoecem,
alienam e manipulam a raça humana. Exu convida a
adentrar nessa encruzilhada epistêmica, afirmando que
esse espaço é um Território de resistência ancestral,
traçando infinitas possibilidades dadas por Exu, para
que a escola contemple os Exus que nos habitam.
Essa perspectiva aponta para a necessidade de
reformulação da relação ensino-aprendizagem, para as
novas leituras e reconfigurações dos espaços
educacionais, do currículo e da formação de
professores e professoras, tendo como referência as
epistemologias de terreiro e as identidades exuísticas.
Elas consistem em projetar as filosofias educacionais
para um multiverso de possibilidades, superando a
falência e adoecimento dos modelos hegemônicos,
onde estudantes e professores/as são convidados a
gingar no centro dessa roda, com a malícia de Exu.
Escrevo no intuito de valorizar os saberes pretos
ancestrais, porque trato do meu local de partida, os
terreiros, mas não se limitem leitores/as, essa proposta
inicial tem como mote, colocar Exu na entrada da escola
para que todos os conhecimentos que até hoje foram
subalternizados possam adentrá-la.

111
Em todos os momentos, a perspectiva da
colonialidade tenta nos enquadrar nos paradigmas
científicos que não reconhecem as nossas ciências, nos
seus modelos de desenvolvimentos e extermínio e não
consideram os nossos modelos de vida,
perpetuandoprocessos educacionais que adoecem as
nossas crianças e jovens e os/as expulsam das escolas,
por isso eu insisto na necessidade de reverter essa
situação. É com extrema urgência que precisamos
promover um processo planetário de reconexão de Exu,
com a humanidade, que antes o via apenas como
inimigo, calunioso ou promotor de maldades, mas afinal
de contas é o agente fiscalizador da ordem que nos
possibilita projetar caminhos para os conhecimentos
ancestrais que darão base a um novo mundo possível.
Falo do Exu que habita em mim, daquele que
vem projetando as minhas microrevoluções e com isso
provoca todo esse processo de ruptura epistemológica,
de descolonização do meu próprio corpo e da minha
mente projetando minhas ações e reflexões,
transfigurando-se como o agente catalisador desses
trajetória pedagógica.
Exué esse fundamento principal. É através desse
processo pedagógico, realmente exuístico, que eu
consigo lançar um olhar para além do que a academia e
a escola valorizam hoje, que são dois tipos de
inteligência apenas, como já mencionei anteriormente,
a lógica matemática e a linguístico-verbal. E eu fico
pensando que Exu nos faz ir além, e trazer, para dentro
da sala de aula, esse olhar de trabalho com as

112
inteligências múltiplas, que nós possuímos, uma vez
que liberamos nossas cosmopercepções e os
cosmosentidos. Os padrões eurocêntricos que estão
estruturando a ciência moderna, que conduz os
processos cognitivos ainda não conhecem os nossos
modos de vida dentro do terreiro.
Interpretando as ideias de OYĚWÙMÍ (2002),
compreendemos que o termo Cosmopercepção é uma
forma mais inclusiva, orgânica e ancestral de descrever
as concepções de mundo por diferentes grupos
culturais. Assim, o termo Cosmovisão só será aplicado
para descrever o sentido cultural ocidental e
Cosmopercepção será usado para descrever os povos
yorubás ou outras culturas que se utilizam de outros
sentidos e combinação, como apontamos na exuística.
A partir dos Cosmosentidos abandona-se a lógica
binária do corpo e da mente, percebendo e aprendendo
o mundo por uma perspectiva mais ampliada das
relações que a humanidade desenvolve com a
natureza, com o meio ambiente, com os fenômenos
naturais e sociais na dinâmica da Cosmobiointeração,
mergulhando na percepção de axé coletivo.
O cartesianismo até hoje nos sectarizou, nos
colocou em caixinhas atribuindo ao mundo material e a
ciência ocidental todas as prerrogativas de verdade.
Dessa forma, convidamos vocês leitores/as a
caminharem conosco e a transgredirem suas análises,
pois se chegaram até aqui é porque o caminho foi aberto
em suas concepções para que pudéssemos afirmar que
vocês também fazem parte do grupo de pessoas que

113
não estão contemplados/as com os modelos de
verdades absolutas das ciências ocidentais. A categoria
ancestralidade nos força a ultrapassar esse abismo
estabelecido por essas concepções predatórias de
ciência nos forçando a projetar novas maneiras e
perspectivas de viver no planeta Terra.
Então, quando OYĚWÙMÍ (2002), nos propõe a
tensionarmos as barreiras da compreensão da
utilização do termo de análise Cosmovisão percebemos
que seu intuito é que avancemos na perspectiva de
entendimento de que o corpo africano que foi
ressemantizado nos terreiros está em um território de
interação energética, mas também o espaço dinâmico e
ancestral. Quando compreendemos essas análises a
partir da exuística, concluímos que a escola não está
preparada para ler o corpo como microcosmo de Axé,
ou seja, a escola não dá conta de potencializar a vida
das crianças de terreiro, muito menos garantir a sua
permanência nesses espaços.
Ao tratarmos de Cosmosentidos ligados a
potencialização das práticas pedagógicas estamos
direcionando nossas análises para as compreensões
das inteligências múltiplas. Os espaços dos terreiros
são potencializadores dessas abordagens, enquanto as
escolas atendem as perspectivas de projeção dos
grandes conglomerados internacionais, os terreiros
potencializamtodas as outras es truturando bases
16
potentes para o alargamento dos cosmosentidos .
16
Pretendemos aprofundar mais essa análise em outras publicações
futuras,nesse momento o nosso intuito o de abrir caminhos para
investigações futuras ou o de estimular pesquisadores/as da área da
cognição para que o façam.

114
Quando a escola descarta as inteligências múltiplas
como por exemplo a musical, cinestésica corporal,
espacial, interpessoal, naturalista e existencial, exclui
duplamente as crianças de terreiros, primeiro pela ação
direta do racismo estrutural e religioso; em segundo
pelo corpo dessas crianças e jovens não suportar o
aprisionamento disciplinar sofrido durante o processo
educativo, muito menos o enquadramento presente na
didática.
Não será essa uma nova tentativa de
acorrentamento da energia Exu existente em todos os
corpos humanos? Qual o intuito? E quando as pessoas
rompem o sistema, elas estão promovendo o quê?
Transgressão, crítica, reflexão sobre as barreiras da
colonialidade que estão nos ambientes formais de
educação, produzindo o ensino conteudista, bancário,
disciplinador pautado nos modelos eurocêntricos.
Por isso, potencializamos EXU NAS ESCOLAS.
Apenas quando o/a professor/a percebe que a sala de
aula pode ser uma encruzilhada de possibilidades.
Quando esse grito é dado nessa encruzilhada
epistêmica, por exemplo, ele ou ela pode ser um Exu, ou
seja, pode potencializar a Vida, e a existência diz que
aquilo está errado, que ele quer ou ela quer caminhar
mais, quer expandir os seus referenciais de análise e
com isso ver o mundo com outros olhos, de uma forma
em que as realidades sejam contempladas.
E aí, lanço um questionamento, qual é o medo se
têm de Exu entrar nas escolas? O Babalorixá e
professor Sidney Nogueira nos diz que:

115
Eles sabem, né. Me parece, pai, que em
alguma medida, eles sabem que Exu é um
revolucionário, Exu é a própria subversão. Não
é? Olha vamos então… que a gente está
falando em inteligências múltiplas, e a gente
está falando um pouco sobre o que Exu nos
ensina. Então nós temos aquele itã em que A
Força Criadora - eu não tenho mais usado o
nome criador, eu tenho usado Força Criadora,
até porque Olodumare não tem gênero,
portanto Ele é preexistente, e Ele é Força
Criadora. Então, A Força Criadora foi dar uma
cabaça para Exu, logo no começo da formação
do Aie. O Aie não é a terra e o Orum não é o céu.
O Aie é o mercado e o Orum é a nossa casa. Na
verdade, nós saímos de casa para vir ao
mercado fazer as trocas. Nesse exato
momento, nós estamos no mercado. Não tem
céu e terra. Não existe céu e terra. Essa é uma
tradição dos missionários, porque é uma
tradução feita com base na bíblia. Então não
tem céu e terra, o Aie é o mercado e o Orum é a
nossa casa. Porque a gente precisa sempre
voltar para casa, e voltar para o mercado.
Porque a gente vive entre a casa e o mercado.
E quem é o senhor do mercado? Exu é o senhor
do mercado. Então, quem é a gente. A gente
não morre, né, então a gente está sempre entre
a nossa casa e o mercado. Até porque na nossa
casa estão todos os nossos ancestrais, está
todo mundo lá. Então a gente volta pra casa, e
aí vem pro mercado fazer novas trocas. E um
dos itãs, quer dizer… nós somos naturalmente,
e aceitamos a possibilidade de sermos seres
mitológicos, somos seres míticos. Mitológicos,
para nós, “mitos” e “lógos” não se separam, o
“mitos” tem “lógos” e o “lógos” tem “mitos”.
Então essas coisas não são separadas, então a
nossa mitologia também é a nossa ciência,
também é uma maneira de autocompreensão,
e aí eu me lembro desse itã em que A Força
Criadora foi dar a Exu uma cabaça, e deu uma
outra cabaça, e Exu não quis nenhuma das

116
duas. Em uma das cabaças tinha o que vamos
chamar de desafios, tensões, conflitos… e na
outra cabaça tinha euforia, tranquilidade,
felicidade, fertilidade. E Exu não quis, ele quis o
quê? uma terceira cabaça. O que acontece aí…
Exu é disruptivo. Ele não vai seguir os padrões
estabelecidos, por quê? Porque ele quer ser
maior que os padrões. Porque ele sempre diz,
“eu serei maior”. Ele vai e pega uma terceira
cabaça que está no canto, abre a terceira
cabaça, joga o que está na primeira cabaça dos
desafios, das tensões e dos conflitos, dentro da
terceira que ele pegou, pega a segunda
cabaça, joga… por isso que ele é o Ibaketa. O
senhor da terceira cabaça, ou da encruzilhada,
né, como costumamos dizer. E ele mistura e
joga, porque ele está nos dizendo: “Olha, não
há separação, não há separação. É tudo um
continuum. Não existe o que vocês entendem”.
O que nós entendemos como bem, mal,
tensão, solução, problema. Isso não existe! É
tudo um continuum. E porque que eu estou
falando isso, porque me parece que esse jeito
de encarar a vida é muito mais saudável, é um
jeito muito mais saudável. Aí, nessa ideia da
terceira cabaça, imediatamente, Exu já rompeu
com os padrões estabelecidos. Ele criou uma
terceira possibilidade, e eu penso que é isso. A
escola… o modelo escolar que nós temos é um
modelo de catequese. A escola é um culto
evangélico, um culto cristão. O professor lá na
frente falando, e os alunos assistindo o culto.
Então esse jeito de educar… e ainda há quem
não suporte barulho em sala de aula, uma
conversa, uma discussão. Por quê? Porque o
pastor está falando. E aí, o pastor fala é dogma,
ele não pode ser contestado. O dono do
conhecimento. E isso tudo nega Exu. Então, o
que acontece, qual é o grande medo de a
academia aceitar Exu? Ela sabe que ela vai ter
de romper, ela vai ter de romper com os
padrões pré-estabelecidos, né, ela vai ter que
aceitar a discussão. Ela vai ter, inclusive, de

117
aceitar as tensões. E tensão não é coisa ruim.
Tensão é a tensão que vai gerar a expansão. É
a dúvida, é o conflito. Quer dizer, Exu mora na
tensão, Exu mora na dúvida, Exu mora no
conflito. Ele mora, quer dizer, é a residência
dele. E aí, se a gente… eu acho que vale muito
a pena, a gente superestimar essa experiência,
e aí a gente vai poder ver a explosão que Exu
vai gerar. Porque o senhor sabe, eu acredito
muito, nisso que estou falando, para além de
uma reflexão, eu acredito muito nisso como
magia preta. Então, se a gente levar… nós
vamos levar isso adiante, nós vamos ver o
resultado da magia preta acontecendo. Nós
vamos ver. (PEREIRA; NOGUEIRA,2020)17

Falamos de processos educativos antirracistas


para a implementação da Lei n. 10.639 de 2003e as
atuações de reparação e respeito da relação da
humanidade com a natureza e a ancestralidade. O
amadurecimento dessa compreensão e do respeito,
pautado na diversidade de culturas oriundas dos povos
originários e tradicionais, possibilitará uma nova
compreensão de respeito, e não mais de medo, em
relação à imagem de Exu, possibilitando, também, a
projeção da estruturação de caminhos para a
construção de um novo mundo a partir do
reposicionamento do Orixá Exu e dos conteúdos de
base ancestral através da Exuística.

17
Essa fala foi extraída na íntegra da Live realizada com o Babalorixá
Sidney Nogueira em 17 de maio de 2020

118
3.2 REFERENCIAIS DIDÁTICO-
METODOLÓGICOS EXUÍSTICOS

Por que Exu nas escolas? A luta antirracista é um


dever de todos(as), tendo em vista a necessidade de
ressignificação urgente da humanidade diante das
estruturas que ainda reforçam o racismo religioso na
contemporaneidade. Qualquer pessoa que se ligue à
ancestralidade negra ou afro-indígena tem que estar
diretamente ligada à luta antirracista. Compreendo que
esse espaço deve ser afirmado como lugar de
transformação social, em que as epistemologias de
terreiro possam contribuir para a construção de uma
sociedade mais justa e plural, também com base nos
valores civilizatórios africanos que foram
ressignificados no Brasil, projetando a sobrevivência da
população negra e seus descendentes.
Trago o orixá Exu para as escolas, evidenciando
que essa ação não é estruturada em cima de um
contexto proselitista como as práticas religiosas
judaico-cristãs que, até hoje, estão presentes no
cenário escolar, como as imagens de santos católicos,
símbolos ou orações “ditas” universais como o Pai
Nosso, mas que, ao mesmo tempo, não representam a
cosmologia afro-brasileira presente dentro dos
terreiros, nem o budismo, islamismo ou demais
manifestações religiosas que não partem dessas
matrizes.
Lanço mão da Exuística para evidenciar que, na
educação, a potência de Exu o transforma no grande

119
libertador das falhas didático-metodológicas, pois nós,
professores(as), conseguimos rapidamente nos
reinventar e traçar novas estratégias diante dos
conflitos e das questões que surgem no cotidiano
escolar. Mal sabem os(as) colegas educadores(as) que
quem nos possibilita esse processo é Exu, o dono das
encruzilhadas, aquele que fala a partir do local de não
finitude e nos mostra novas possibilidades.
Exu é a gargalhada, a brincadeira, a ação lúdica
que conquista o olhar infantil, seduzindo, encantando e
fazendo sonhar. É aquele que mostra ao jovem que as
ações de rebeldia e transgressão são cruciais para as
rupturas do que ainda está no subterrâneo da
incompreensão lógica e racional do mundo branco,
eurocêntrico, binário e patriarcal, não permitindo que os
saberes que estão nas periferias do conhecimento
potencializem o protagonismo das vozes presentes nos
corpos negros.
Por isso,reinvindicoo reposicionamento cognitivo
dos saberes e tradições africanas que basilaram a
construção do nosso país afirmando que Exu será
posicionado no portão das escolas para que todos os
conhecimentos dos povos originários e tradicionais
adentrem no currículo, na sala de aula e nas práticas
pedagógicas com o intuito de promover a identificação
com a ancestralidade e contarmos a real história da
construção da sociedade brasileira.
Apresento um referencial didático-metodológico
reparatório com base na desobediência e transgressão
de barreiras cognitivas da educação tradicional,

120
bancária e branca, transformando-a em dialógica, que
visa potencializar as inteligências múltiplas. Insisto em
ações contextualizadas que me possibilitem convidar a
todos(as) que tiverem acesso a essa perspectiva
inovadora a adentrarem para essa encruzilhada do
conhecimento em que ações de crítica e reflexão
podem promover a ruptura e a transformação para que
possamos estruturar uma ciência lógico-ancestral que
carregue o potencial de ressignificação do Axé
planetário.

3.3 DIDÁTICA DA CIRCULARIDADE

A circularidade é a interconexão de Axé nos


momentos ritualístico organizados(as) em formato
circular, seja durante o xiré do Candomblé ou na gira de
Umbanda, para povos de Terreiro, essa ação coletiva
permite a união para a expansão da força vital. Ao
direcionarmos esse olhar de análise para o cenário
educativo, expandimos essa interpretação quando
visualizamos o potencial do Axé pessoal e o coletivo
com o valor atribuído ao conhecimento, tendo em vista a
relação estabelecida entre todos(as) que estão em sala
de aula em virtude da grande falha, ainda tão presente
na maioria dos(as) professores(as), que é a exclusão.
A educação bancária promove a opressão e o
silenciamento, tendo em vista potencializar apenas a
participação dos(as) estudantes que demonstram
habilidades necessárias para absorverem os conteúdos
que estão sendo trabalhados, não promovendo a

121
reflexão nem a crítica, deixando de lado a grande
maioria que não consegue acompanhar o que está
sendo desenvolvido em sala de aula ou, simplesmente,
que não tem afinidade nenhuma com o conteúdo
porque este não é contextualizado com a sua realidade.
Apenas o potencial de reprodução dos(as)
melhores estudantes que se destacam é explorado
enquanto os outros permanecem silenciados,
meramente reproduzindo conteúdos, reforçando a
massa de alienação presente nas escolas. Destaco o
tamanho do desafio que nós professores(as) temos que
enfrentar tendo em vista a manutenção da colonialidade
em que a diferença de classe aumenta o abismo
existente entre as escolas dos ricos que estão
diretamente ligadas ao acesso à informação, mantendo
a cadeia de dominação, enquanto a escola dos pobres
está diretamente relacionada ao acolhimento social.
Para provocarmos a ruptura dos processos
educativos bancários, a didática da circularidade deve
ser desenvolvida de forma orgânica e ancestral. A
circularidade como princípio filosófico africano e afro-
brasileiro nos permite ir além do isolamento disciplinar e
promove a interação entre os conhecimentos da
realidade local/populares do entorno da escola, com os
saberes científicos.
A potencialização desse formato se dá quando
o(a) professor(a) transforma-se em Exu, o Orixá
dinamizador do movimento, Axé e energia vital e a sala
de aula torna-se uma encruzilhada, um território de
novas possibilidades. Nessa encruzilhada os(as)

122
estudantes assumem a transformação das novas bases
civilizatórias a partir do processo de promoção do seu
próprio conhecimento, assumindo os papéis de
autores(as) e atores/atrizes das suas próprias
epistemologias.
Um dos maiores desafios para a implementação
da Lei n. 10.639 de 2003) é justamente a falta de
compreensão de caminhos para o trabalho
interdisciplinar, tendo em vista a complexidade dos
conteúdos de base africana e afro-brasileira que não
são de forma alguma sectarizados e nem distribuídos
em caixinhas disciplinares, necessitando de um
processo de compreensão orgânica em
cosmobiointeração18, pois estes não estão
desconectados da mente, do corpo, da natureza e muito
menos do nosso pilar básico de análise que é a
ancestralidade.
A didática da circularidade vai além do ato de
ensinar, ou como ensinar, poisenvolve as atividades
práticas em cosmobiointeração, que estabelecem a
conexão, descolonizando, rompendo com as amarras
da colonialidade, potencializando a libertação do

18
A manutenção do Axé negro africana, transfigurado no cenário afro-
brasileiro dos terreiros através do processo de cosmobiointeração, nos
permite perceber como a energia vital é imantada na realidade material
através dos rituais cotidianos, ou pelo compartilhamento de
conhecimentos ancestrais, potencializando a vida. A ausência da
circulação de Axé, da troca ou retroalimentação, provoca a perda de
potência ou desencanto e abre caminho para a negatividade, ocasionando
uma série de problemas, sejam eles de afinidades energéticas com
entidades que vão confundir os caminhos de vida, indecisões,
incompreensões dos caminhos de vida ou o próprio adoecimento, seja ele
físico, emocional ou espiritual.

123
carrego colonial. Através das vivências dos(as)
estudantes e dos conhecimentos presentes em seus
cotidianos, compreendemos que os corpos são
microcosmos de energia vital pulsantes que estão
diretamente conectados ao Axé planetário. Com a
inversão dessa chave de virada, podemos potencializar
a vida, alargar os cosmossentidos, desenlaçar as
cosmopercepções, permitindo a reflexão em um
contexto amplo que emerge da transformação
proporcionada por esse processo transgressor.
Abrir caminhos para essa contextualização nos
permite evidenciar a afetividade, a sociabilidade e,
consequentemente, o desenvolvimento cognitivo. Na
didática da circularidade19, os processos educativos
estão estruturados em começo, meio e começo
(SANTOS, 2015), sem a ideia de finitude, devido à
interconexão de vida e Axé, com a realidade mente-
corpo-natureza-ancestralidade. Potencializar práticas
pedagógicas antirracistas, ligadas diretamente ao Axé
planetário, nos proporciona a base para criarmos
subsídios para um projeto de sociedade que parta
diretamente do berço da humanidade e do
conhecimento, o continente africano, ou seja, em uma
perspectiva afrocentrada.
Lanço mão da necessidade urgente de
trabalharmos a partir da projeção de um método
educativo exuístico afirmando a nossa
intencionalidade, reparando as atrocidades causadas
pela escravização dos nossos ancestrais, o
19
Didática da Circularidade – Termos cunhado pelo autor deste livro.

124
epistemicídio dos nossos saberes e o combate severo
ao racismo estrutural, religioso, ao patriarcado, o
sexismo e o binarismo. Afirmamos a vidas dos(as)
nossos(as) diante de um método exuístico de ensinar,
aprender, refletir e transformar a didática, tendo em
vista que não existe neutralidade e sim potência de vida
através da educação antirracista.
A afirmação da ruptura epistêmica provocada pelo
método exuístico nos possibilita mergulhar na relação
teoria e prática que a didática da circularidade propõe e,
com isso, estamos abrindo caminhos para o
(re)encantamento do mundo, devolvendo àciência para
20
o princípio da magia preta ancestral . O intuito é
conectar a humanidade com Exu subvertendo a lógica
cartesiana e afirmando a necessidade da compreensão
de uma lógica científica orgânica e ancestral que nos
contemple.
Nós, o povo das encruzas, quando nos
posicionamos nesses lugares de novas possibilidades e
insurgências, nos preocupamos sim com o modelo de
sociedade que vivemos, por isso apontamos o que
queremos construir, pois o futuro é ancestral e gingando
com a malícia de Exu fazemos nossa luta.

20
Magia preta ancestral – reposicionamento do conceito de magia,
estruturado por militantes do movimento negro e iniciados no candomblé
como o Babalorixá e professor Dr. Sidney Nogueira, Babalorixá e
Antropólogo Rodney William e tantos outros(as) que desenvolvem
trabalho entrecruzando suas vivências religiosas e acadêmicas,
construindo novas possibilidades educativas a partir do seu protagonismo.

125
3.4 A MINHA SALA DE AULA É UMA ENCRU-
ZILHADA DE POSSIBILIDADES

A sala de aula não deve ser um lugar de exclusão


de ninguém, contudo neste momento refiro-me
especificamente, às populações de terreiro, que terá de
ser compreendida como uma encruzilhada na qual as
possibilidades de novos processos de educação
contextualizados através da exuística possam ser
desenvolvidos para ressignificar as existências.
Posicionar Exu na porteira das escolas, é uma
metáfora, implica reivindicar que os conhecimentos e
tecnologias dos povos originários e tradicionais
adentrem nas salas de aulas evidenciando de forma
reparatória, que todos(as) os(as) responsáveis pela
estruturação e desenvolvimento da sociedade brasileira
tenham o seu devido valor, não permitindo mais que a
contação dessa história seja de forma única, a dos
colonizadores.
É preciso promover uma série de reflexões que
nos ajudarão a abrir caminhos diante da trama da
descolonização das salas de aula com a perspectiva de
aparar as raízes doentias da colonialidade presente
nesse espaço de tantas possibilidades. Dessa forma,
lanço os seguintes questionamentos: Como a sala de
aula pode promover a pertença dos saberes do terreiro
promovendo a inclusão e a manutenção dessas
populações nos ambientes escolares? Como promover
o diálogo entre os saberes ancestrais dos povos de

126
terreiro diante de uma ciência que ainda não os
compreende e que é pautada em bases racistas? Como
a sala de aula pode ser um lugar de reconexão e
promoção dos saberes orgânicos e ancestrais? Como
manter e estimular o diálogo sadio entre diferentes
religiões?
Se a sala de aula não for um lugar que acolha a
nossa ancestralidade, as crianças de terreiro vão se
sentir intimidadas de dizer quem elas são. O terreiro faz
o papel de promoção do protagonismo de identidades
afro-religiosas potentes, principalmente com as
crianças que crescem em cosmobiointeração com o
universo presente nesses territórios. Nas salas de aula,
que agora configuramos como uma encruzilhada de
possibilidades, a inclusão pautada na diversidade de
saberes é referência para não mais perpetuar a retração
e o desencantamento, e esse espaço deve acolher toda
a gama de saberes que já está presente ali. O papel do
professor(a) será o de promover a mediação do diálogo
para que as crianças de terreiro se tornem
protagonistas dos seus próprios processos educativos,
reconfigurando os conhecimentos ancestrais com os
saberes científicos, para que permaneça dentro do
universo escolar.
A sala de aula transforma-se em um cenário
propício para a potencialização das inteligências
múltiplas, em que o aprender brincando pode atrair a
felicidade e promover o encantamento. A
descolonização dos corpos e das mentes é perpassada
pela ousadia e pela novidade; dessa forma, a

127
desobediência epistêmica acontece quando o(a)
professor(a), compreende que o corpo também é
produtor do conhecimento e a sala de aula é o espaço
para ousar, para transformar todos os nossos sentidos
em componentes para a o desenvolvimento cognitivo.
Potencializar a diversidade de saberes ancestrais
e das epistemologias de terreiro no chão das escolas
configura-se como um caminho para que outras
narrativas entrem nesses espaços, de forma a
evidenciar não apenas as eurocêntricas. A permanência
e a valorização dos saberes da população de terreiro no
contexto escolar possibilitam a transformação através
de práticas pedagógicas antirracistas, fazendo com
que, ao invés de medo e silenciamento, as crianças de
terreiro tenham orgulho de quem são, de onde elas vêm
e das relações que elas estabelecem com a sociedade.
Dar voz às pessoas que até hoje são silenciadas por
conta do racismo, construindo boas relações dentro do
ambiente escolar, com a família e, consequentemente,
com a ancestralidade, é prerrogativa urgente para que
as outras crianças também cresçam aprendendo a ser
antirracistas.
As crianças de terreiro não estão vazias de
conhecimento, pois carregam no seu corpo, na sua
estética, nas suas palavras e nas suas
cosmopercepções outras formas de lerem o mundo, ou
seja, saberes que a escola precisa acolher, pois
compõem a base de formação da sociedade brasileira
que precisa ser evidenciada.
Exu já está dentro da sala de aula, os(as)

128
professores(as) têm que aprender a libertá-lo, tendo em
vista que, nessa encruza, o seu papel é o de intensificar
as rupturas dos processos educativos alienantes e
retrógrados. Sua atuação versa principalmente com o
rompimento da reprodução de conhecimentos para que
se possa criar novas e próprias, reflexões e
aprendizagens,e assim pensar e materializar a
exuística em nossas práticas pedagógicas nas escolas
ou na academia.
Exu é o comunicador, é ele quem planta a dúvida
para que possamos avançar com a produção das
nossas próprias epistemologias. É ele quem vai permitir
que esse movimento aconteça, por isso, devemos
pensar também os espaços escolares como projeção
de todos e as bases teóricas e práticas de estruturação
a partir de reposições e reelaborações culturais negras
na diáspora.

3.5 O(A) PROFESSOR(A) SE TRANSFORMA EM


EXU
Exu é um(a) professor(a) reflexivo e desenvolve
sua ação educativa a partir do processo de interação
que está diretamente associado à transformação
estabelecida pela métrica começo-meio-começo, tendo
em vista esse orixá ser o próprio princípio de
multiplicação ao infinito. Por ser o dono da
comunicação, Exu consegue entender todas as línguas,
utiliza todas as estratégias necessárias para atingir os
seus objetivos, aplica de forma fluida todas as
estratégias possíveis, superando as impossibilidades,

129
mas nunca coloca um ponto final, nos fazendo entender
que quando o(a) professor(a) trabalha os processos
educativos, estes estão em construção e em dinâmica
expansão.
Assim como Exu potencializa a vida, o(a)
professor(a) o faz na construção dos conhecimentos no
espaço escolar, quepor sua vez potencializarão as
projeções de vidas que antes estavam em
desencantamento.
O(a) professor(a) exuísta proporciona a
percepção das artimanhas da colonialidade e promove
as rupturas desses padrões padecedores. Ensina a ler e
interpretar o mundo e reconhece os referenciais
teóricos-metodológicos dos conhecimentos ancestrais
para sua prática pedagógica cotidiana. Essa dinâmica
de transgressão permite que estudantes e
professores/as escrevam os próprios caminhos,
pautando a equidade como pilar de sustentação da luta
antirracista em sala de aula e na Vida.
A transgressão e as microrrevoluções que
desenvolveremos nas nossas salas de aula serão
mediadas pelo(a) professor(a) que se transformou em
Exu. Através do diálogo, contextualizando a sociedade
e a realidade da sala de aula, será potencializado o
protagonismo dos(as) estudantes, que se
transformarão nos Exus do amanhã, levando esse
conhecimento produzidos para serem aplicados nas
suas próprias vivências cotidianas.
Os(as) professores(as) exuístas promoverão o
fazer coletivo, potencializando a relação ensino-

130
aprendizagem a partir das inteligências múltiplas,
fazendo com que o aprender seja pautado na
circularidade e na diversidade de culturas e pessoas.
Quebrar o modelo de história única de base
eurocêntrica é peça fundamental para o fazer educativo
dos(as) Exus professores(as). Eles/as, assim como
Exu, geram a comunicação e o diálogo em sala de aula-
encruzilhada de possibilidades, novas formas de
vivermos nesse planeta e, com isso, transformá-lo.
Para Exu a palavra é sagrada e a oralidade é a
forma de aprendizado com os(as) mais velhos(as), os
que tem mais axé, vivência e conhecimento. Nas salas
de aula, as formas de interpretarmos o mundo parte da
leitura, da palavra escrita que, na maioria das vezes,
não tem confluência com a realidade dos(as)
estudantes. Então o/a professor/a Exu faz do diálogo,
da palavra, da oralidade estratégia de ensino a partir do
contexto dos alunos e alunas, de maneira respeitosa,
plural e libertadora.

131
132
3.6 CONSIDERAÇÕES - COMEÇO – MEIO –
COMEÇO

As ações contra-hegemônicas nos ambientes


educacionais formais são fundamentais para a luta
contra a manutenção da colonialidade, do racismo
estrutural, religioso e dos demais sistemas de
dominação que fortalecem as relações de opressão e
subalternização das populações africanas e seus
descendentes. Especificamente, os povos de terreiro
contribuíram intensamente com a luta e resistência da
população negra e de todos(as) aqueles(as) que pelas
suas portas entrassem, nos fazendo evidenciar, neste
texto, o tamanho das contribuições que deram para a
sociedade brasileira, fortalecendo seu protagonismo e
evidenciando as inúmeras possibilidades de
implementação da Lei nº 10.639 de 2003 a partir das
epistemologias de terreiro.
Consideramos posicionar Exu nas escolas para
que, por meio da exuística, possamos possibilitar a
potencialização das epistemologias de terreiro nos
ambientes educacionais e, com isso, fortalecer a luta
antirracista, projetando a desconstrução de todo o
carrego colonial que foi estabelecido pelo
eurocentrismo. A fim de atuar sem um contexto
proselitista, mas afirmando a necessidade outra
projeção da ciência, sem a sectarização do
conhecimento, conseguimos compreender que um
aspecto orgânico e ancestral pode, sim, promover a
construção de identidades positivas para os povos

133
originários, as comunidades tradicionais e a população
negra em todo o contexto escolar.
Os processos educativos e de produção do
conhecimento, nos possibilitam intensas batalhas
cotidianas. Nós educadores/as atuamos todos os dias
com processos reflexivos, principalmente sobre o
contexto da realidade que estamos inseridos e no meu
caso esse território é extenso. Falo de realidades
continentais e ancestrais, ou seja, o trânsito entre Brasil
e África, em um turbilhão de amarras que ainda nos
aprisionam.
A descolonização curricular não é uma tarefa
fácil,dessa forma, devemos caminhar pelas frestas,
provocando rupturas, transgredindo barreiras e
padrões, potencializando a abertura de novos caminhos
e a ação de atores sociais que compreendem sua
autonomia. Esse é o papel de Exu.
Descolonizar corpos e mentes, não é apenas
uma tarefa da escola, mas sim a de todos/as aqueles/as
que compreendem os caminhos para a emancipação
humana e a criação de novas bases civilizatórias,
possibilitando um novo caminhar para o trabalho com a
inclusão e as diferenças em que outras crianças
possam ser educadas com os valores e princípios
filosóficos presentes nas diversidades africanas e afro-
brasileiras entre outras.
A leitura desse cenário, dentro da escola, requer a
projeção de um novo referencial didático-metodológico
que apontamos ainda em construção no decorrer deste
livro e que será aprofundado em investigações futuras.

134
Dessa forma, convido a todos(as) para se juntarem a
esse grande movimento de reposicionamento cognitivo
dos saberes ancestrais africanos e afro-brasileiro que
militantes do movimento negro, povos de terreiro e
intelectuais estão promovendo em cenário nacional.
Pedimos aos ancestrais e a Exu que sempre abram os
caminhos e nos deem o seu Axé para fortalecermos
essa luta.

135
136
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