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08/11/2022 18:35 Templo Espiritual Caboclo Pantera Negra: Sincretismo

15 de novembro é o dia nacional da


Umbanda?
Por Mário Filho

Imagem retirada de: https://pqvceassim.files.wordpress.com/2017/11

Segundo a Lei nº 12.644, de 16 de Maio de 2012, o dia 15 de Novembro é o Dia Nacional da Umbanda. 

Essa data se remete ao mito criacional, típico de todas as religiões, que narra os
eventos que dão o início a qualquer uma delas. O mito criacional da Umbanda dá conta
que em 15 de novembro de 1908, em Niterói/RJ, o rapaz de 17 anos chamado Zélio
Fernandino de Moraes teria “incorporado” o Caboclo das Sete Encruzilhadas e este
teria dito que no dia seguinte voltaria a “incorporar” em Zélio e criaria uma nova
religião, que se chamaria “Umbanda”. 
Muitos autores, que se fiam nesse mito criacional, afirmam que o termo Umbanda
nunca havia sido utilizado, sendo que o Caboclo das Sete Encruzilhadas teria sido o
primeiro a fazê-lo. No entanto, em 1894, Heli de Chatelain, em seu livro “Folktales of
Angola”, registrava o termo Umbanda, mostrando seu significado, como é encontrado
em qualquer dicionário Quimbundo (uma das línguas faladas pelo povo Bantu), que
quer dizer “cura”. 
Ora, sabe-se que no desenvolvimento do que hoje se chama Umbanda houve
dificuldade para se dar a ela um nome “adequado”. Primeiramente se pensou em
Embanda (uma corruptela da palavra bantu Imbanda, plural de Kimbanda, que quer
dizer “curadores”), porém, segundo o próprio Zélio, em gravação registrada, o nome
Embanda “não soava bem”. Houve, ainda, a proposta de se utilizar Alabanda, em
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homenagem ao Orixá Malê, que Zélio “incorporava” e que dizia ser um malaio
muçulmano. Assim, segundo o próprio Zélio, Alabanda significaria “a banda de Alá”,
referindo-se a Allah, nome de Deus para os muçulmanos. Ocorre que Orixá Malê só se
manifestou em 1923, portanto o termo Umbanda ainda não era o designativo adotado
para a “nova religião”. Lembro que Malê vem do idioma iorubá, Ìmàlè, que designa o
muçulmano naquela língua. 
Gilberto Velho, Maria Villas-Boas Concone, Renato Ortiz, entre outros, afirmam que a
Umbanda se desenvolve a partir dos anos 1930, o que corrobora com que escrevi até
agora. 
Ainda assim, com o tempo, essa Umbanda praticada por Zélio passou a ser chamada de
“Umbanda Branca e Demanda” (ou, também, “Umbanda Pura”). 
O que pouco se aborda, no entanto, é que momentos antes da manifestação do Caboclo
das Sete Encruzilhadas houve a manifestação de uma outra “entidade”, chamada de Pai
Antônio Curador (BRITTO, 2009), que era o espírito de um escravizado. Em que pese
esse fato não ser desconhecido da maioria dos autores umbandistas, que o registraram,
dá-se pouca importância ao que ele representava, fruto do racismo estrutural de nossa
sociedade desde sempre. Pai Antônio é o símbolo do escravo humilde, conformado
com sua posição subalterna, que diz que não poderia se sentar em cadeira, “pois lugar
de preto é no toco e para ele bastaria um toco para se sentar”. 
Por meio dessa configuração, formou-se “a tríade da simbologia umbandista que a
narrativa fundacional do Caboclo das Sete Encruzilhadas procurou consolidar: índio
valente [Caboclo das Sete Encruzilhadas], negro humilde [Pai Antônio Curador],
branco racional [Zélio Fernandino de Moraes, o espírita]. (BRITTO, 2009) 
Podemos, dos parágrafos anteriores, fazer algumas conjecturas: 1) o termo “Umbanda
Pura” nos levar a crer que havia uma “Umbanda Impura”, ou seja, uma prática que não
atendia aos anseios da elite branca carioca do início do século XX, que abominava as
práticas “fetichistas” dos pretos e que deveria ser extirpada; 2) da mesma forma que a
anterior, “Umbanda Branca” denota que existiria uma “Umbanda Preta”, que deveria
ser desconsiderada;   3) somente a prática que tivesse a chancela dessa elite, ou seja,
que fosse baseada no catolicismo popular, com suas práticas devocionais aos Santos
católicos, unida ao pretenso cientificismo do espiritismo kardecista seria “aprovada” e
chamada de “verdadeira” Umbanda. 
Como se vê, para que a Umbanda fosse legitimada era necessário que ela quebrasse sua
ligação com a África e, por consequência, com qualquer coisa que lembrasse os negros,
exceção feita à sua subalternidade, apontada especificamente no comportamento
tradicional dos Pretos-Velhos; ademais, era necessário que o mito criacional afirmasse,
sem dúvida, essa legitimação: por isso a escolha do 15 de novembro, dia da
proclamação da República, como data de sua “anunciação”, bem como a escolha de um
Caboclo como porta-voz do “mundo espiritual”, em um momento em que a literatura
romântica brasileira e o brasilianismo buscavam estabelecer, no Caboclo (indígena), o
símbolo da nação. Para temperar esse caldo, o Caboclo que teria se manifestado no dia
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15 de novembro de 1908 não era um simples indígena, mas a reencarnação de um


sacerdote jesuíta, o “Frei Malagrida”. Dessa forma, a Umbanda poderia se inserir, de
forma legítima, no universo religioso brasileiro, pois estava totalmente de acordo com
os anseios dos ideais branco-europeus: era cristã, tinha as bênçãos da Igreja Católica e
era espírita (por isso ela se chamava “espiritismo de Umbanda”, denominação pela
qual foi conhecida por muitos anos). (SILVA FILHO, 2014) Além disso, o Caboclo não
era o "selvagem", o "arredio", que lutava contra o colonizador ou contra os
Bandeirantes, mas o indígena que submeteu, que se convertera ao Catolicismo, que
abandonara sua tribo; é o "Índio Peri" do romance "O Guarani" de José de Alencar.
Assim, práticas religiosas realizadas desde o Século XVII e que influenciaram
diretamente a Umbanda, tais como a Santidade, o Calundu, o Cangerê, a Cabula, a
Nbandla e a Macumba, além, é claro do Candomblé “de Caboclo”, Candomblé “de
Nação” e o Culto Muçurumim (ou Malê) foram sistematicamente “desaparecidos”,
pois eram realizados por indígenas (a Santidade) ou por escravizados ou ex-
escravizados. Esse apagamento perdura até hoje e a imensa maioria dos umbandistas
não quer discutir esse fato, pois repetem o mesmo discurso do mito da "democracia
racial" de Gilberto Freire. Esses saberes foram vítimas do epistemicídio, que pode ser
compreendido como a morte de saberes, conhecimentos e culturas de povos, que não
são absorvidas pela cultura branca, ocidental (SOUZA SANTOS, 2007), fruto do
colonialismo e do racismo. 
Citando a filósofa Sueli Carneiro, atual Coordenadora Executiva do Instituto Geledés e
uma de suas fundadoras, podemos dizer que esse espistemicídio é “um processo
persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso a educação,
sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes
mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e
de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo
comprometimento da autoestima pelos processos de discriminação correntes no
processo educativo. Isto porque não é possível desqualificar as formas de
conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e
coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a
condição para alcançar o conhecimento “legítimo” ou legitimado. Por isso o
epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a sequestra, mutila a
capacidade de aprender etc.” (CARNEIRO, 2005, p. 7) 
Continua, a filosófa: “[o epistemicídio é] um processo persistente de produção da
inferioridade intelectual ou da negação da possibilidade de realizar as capacidades
intelectuais, o epistemicídio nas suas vinculações com as racialidades realiza, sobre
seres humanos instituídos como diferentes e inferiores constitui, uma tecnologia que
integra o dispositivo de racialidade/biopoder, e que tem por característica específica
compartilhar características tanto do dispositivo quanto do biopoder, a saber,
disciplinar/ normalizar e matar ou anular. É um elo de ligação que não mais se destina
ao corpo individual e coletivo, mas ao controle de mentes e corações.” (CARNEIRO,
2005, p. 7) 

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Renato Ortiz, no prefácio da 2ª edição do livro “A morte branca do feiticeiro negro:


Umbanda e sociedade brasileira”, afirmou que no final da década de 1970 começou a
se esboçar um “fenômeno de re-africanização”, como, por exemplo, a revalorização do
Candomblé. No entanto, o autor afirma: “é interessante lembrar que não foi para a
Umbanda que esse esforço de valorização se dirigiu. A religião umbandista, ao se
definir como nacional, de alguma maneira infligiu uma morte branca ao seu passado
negro.” 
Renato Ortiz continua: “como uma religião brasileira, a Umbanda foi obrigada a
integrar sua cosmologia às contradições de uma sociedade de classe, que assina ao
negro uma posição subalterna dentro de um mundo de dominância branca.” (ORTIZ,
1988, p. 8) 
Sendo, assim, pela Lei, hoje, 15 de novembro, é o dia Nacional da Umbanda, mas essa
data não corresponde aos fatos que envolveram a manifestação pública do Caboclo das
Sete Encruzilhadas. É mais uma reafirmação do poder da elite branca, racista, esnobe e
antropofágica brasileira.
 
 Referências bibliográficas:
      BRITTO, Cristina. O puro e o híbrido: o jogo de alteridades na formação
representacional da Umbanda Branca. In: REVISTA CALUNDU - (Re)Existência:
relatos sobre existência e resistência afrorreligiosa. Volume 3, Número 1, Jan-Jun
2019, disponível em http://calundu.org/revista, consultado em 15/11/2020.
   ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro: Umbanda e sociedade brasileira.
São Paulo: Brasiliense, 1991.
      CARNEIRO, Aparecida Sueli. A Construção do Outro como Não-Ser como
fundamento do Ser. Tese de doutoramento. São Paulo: FEUSP, 2005.
   CHATELAIN, Henri. Folktales of Angola. Whitefish: Kessinger Publishing, 1984.
   SOUZA SANTOS, Boaventura. Pela Mão de Alice. São Paulo: Cortez Editora, 1995.
   SILVA FILHO, Mário Alves da. CHEGA DE ESTULTICE: estudo etimológico das
palavras Umbanda e Kimbanda. Disponível
em: https://pensamentovoa.wordpress.com/2015/05/13/94/, consultado em 15/11/2020.

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