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Quaderns de Psicologia | 2019, Vol.

21, No 2, e1466 ISNN: 0211-3481

 https://doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1466

Pomba-giras: contribuições para afrocentrar a Psicologia


Pomba-giras: contributions for afrocentring the Psychology

Heloísa Carvalho
Dolores Galindo
Mariana Lopes
Universidade Federal de Mato Grosso

Saulo Fernandes
Universidade Federal de Alagoas

Liliana Parra-Valencia
Universidad Cooperativa de Colombia

Resumo
O manuscrito apresenta os resultados parciais de uma pesquisa mais ampla que vem sendo
realizada em terreiros de Candomblé e Umbanda, recuperando aqui, sobretudo, a pomba-
gira, uma das entidades presentes nos cultos afrobrasileiros do Candomblé e da Umbanda.
As leituras afrocentradas não se consolidaram enquanto perspectiva epistemológica na Psi-
cologia, por questionarem a supremacia branca e sua lógica colonialista, colocando em xe-
que a universalidade da experiência psicológica.
Palavras-chave: Religião; África; Afrocentricidade; Psicologia

Abstract
The manuscript presents the partial results of a more extensive research that has been
carried out in terreiros of Candomblé and Umbanda, recovering here, above all, the Pom-
ba-giras, one of the entities of the Afro-Brazilian cults of Candomblé and Umbanda. Af-
rocentred readings did not consolidate as an epistemological perspective in Psychology, be-
cause they questioned white supremacy and its colonial logic, putting in check the univer-
sality of psychological experience.
Keywords: Religion; Africa; Afrocentrality; Psychology

INTRODUÇÃO Contrapondo-nos ao eurocentrismo inscrito


num projeto colonial, procuramos argumentar
O presente artigo tem como objetivo abordar que afrocentrar o saber contribui para que a
facetas da pomba-gira, uma das entidades Psicologia possa contemplar fontes de produ-
presentes nos cultos afrobrasileiros do Can- ção de conhecimentos derivadas das experi-
domblé e da Umbanda, utilizando como su- ências dos povos da África diaspórica. Os ter-
porte uma leitura afrocentrada em Psicologia.
2 Carvalho, Heloísa; Galindo, Dolores; Lopes, Mariana; Fernandes, Saulo e Parra-Valencia, Liliana

reiros se apresentam como territórios privile- tralidade afrodiaspórica, que se constitui en-
giados de produção de saberes, expressões quanto um espaço de memória.
éticas, estéticas e políticas para o povo negro
na afrodiáspora.
AFROCENTRICIDADE E PSICOLOGIA, ALGUMAS
As Pombagiras, nos terreiros, são procuradas NOTAS
geralmente para atender pedidos amorosos
nem sempre orientados a uma moral binária, A Europa, como projeto civilizatório, imagi-
desafiam a segmentação entre bem e mal da nou o alcance de uma trajetória colonialista
moral eurocêntrica, não havendo delegação baseada no controle da natureza e na conver-
de julgamento à entidade incorporada na/no são dos povos considerados menos humanos a
médium. Desafiam a moral branca e ociden- uma lógica moderna colonial, conferindo aos
tal, baseada no dualismo entre bem e mal, não europeus uma status inferior, portanto,
fundado na culpa, operando como insurgência anterior, primitivo (Quijano, 2005). Situada
no seio das lógicas colonialistas e racistas. como parâmetros civilizatórios e civilizadores,
as práticas colonizadoras conseguiram empre-
Por sua ambivalência moral, as pombagiras, ender processos de captura por meio dos
quando contrastadas à normalização eurocên- quais outros povos precisariam se converter
trica, convocam a um exercício de afrocen- aos modos de viver europeus para alcançarem
tramento dos saberes psicológicos. Adotamos status de seres humanos, sendo emblemática
uma ontologia animista performativa (Bensu- a perseguição e escravização do povo africa-
san, 2017) a partir da qual se desdobra que as no. Durante milênios, as civilizações clássicas
Pomba-giras existem como entes do mundo, africanas estiveram entre os principais elabo-
ao invés de situá-las como reflexos de outros radores do conhecimento humano e um dos
entes, ou, tão somente, produções culturais compromissos da abordagem afrocentrada é
cuja existência resultaria unidirecionalmente estudar essa produção negada pelo ocidente
da ação de outros entes com os quais se rela- branco que se autodenominou detentor do
cionam. Pombagiras possuem seus próprios conhecimento (Asante, 2009). Parte da em-
modos de existência. Lucas Marques (2018, p. preitada colonialista consiste em negar os sa-
243), inspirado no antropólogo Bastide, ob- beres africanos, produzindo marcos de conhe-
serva que no Candomblé, “as formas não po- cimento eurocentrados por meio dos quais a
dem ser desvencilhadas das forças que as África se torna um outro do continente euro-
compõem. E tais forças, para se manterem peu, um outro da civilização.
‘vivas’, demandam um cuidadoso e ininter-
rupto trabalho ritual, propondo-nos uma es- De acordo com Molefi Kete Asante (2009), a
pécie de ecologia das práticas onde tudo, afrocentricidade confere relevância epistemo-
embora vivo, deve ser constantemente feito”. lógica ao lugar a partir do qual são tecidas
considerações. Para o autor, “é importante
Estudar as entidades do Candomblé e da Um- que qualquer avaliação de suas condições, em
banda desde uma Psicologia em afrocentra- qualquer país, seja com base em uma locali-
mento requer um processo de refinamento zação centrada na África e sua diáspora” (p.
terminológico e, sobretudo, ético que consis- 93). Frantz Fanon (2008), em sua obra Pele
te em fazer visíveis as singularidades — modos negra, máscaras brancas, frisa que na visão
de existência — que cada entidade assume no de mundo colonizadora há uma “impureza”,
Candomblé e na Umbanda, bem como as es- uma “obsessão”, uma ausência e esvaziamen-
pecificidades de cada um destes espaços de to que proíbe qualquer realidade ontológica
resistência afro-brasileiros. Buscamos situar aos saberes e práticas diferentes da razão co-
os terreiros como espaços de resistência mais lonialista. Diante do olhar do colonizador,
do que como espaços religiosos: as práticas ri- busca-se destituir o negro e a negra de exis-
tuais são religiosas, mas desbordam esta di- tência ontológica, forçando-os a se adequa-
mensão na multiplicidade de finalidades que rem aos códigos morais que lhes são impostos
assumem no cotidiano das pessoas que os fre- pela supremacia branca.
quentam e nos efeitos afirmativos junto ao
povo negro. Os terreiros recriam, de acordo Wade Nobles (2009), aludindo ao povo africa-
com as possibilidades históricas, dentro de no em diáspora, assegura que “o que nosso
condições adversas, um modo de viver a an- opressor tentou esvaziar de nossa mente foi o
cestralidade africana e atualizam uma ances- significado de ser africano” (p. 277), porém,

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por mais cruel que tenha sido o ataque contra para a “conscientização sobre a agência dos
os modos de viver dos africanos em diáspora, povos africanos”, possibilitando se reorientar
este não obteve êxito em destruir o que pulsa e se recentralizar, para atuação como agente
em cada negro(a). Segundo o autor, a altera- de uma larga história que não inicia com a es-
ção da consciência (durante os transes nas cravização. Trata-se de um processo difícil e
práticas religiosas afrodiaspóricas) é um dos que vem recebendo grande atenção da mili-
problemas fundamentais na pesquisa sobre tância negra brasileira. Vale distinguir entre
africanos, afro-americanos e diaspóricos, lugar social e lugar epistêmico, enfatizando
aflorando no campo da Psicologia Preta. Wade que nem todas as pessoas que vivem práticas
Nobles (2009) critica a psicologia ocidental de opressão se posicionam de modo a questi-
por alimentar o regime imperialista, colonia- oná-las, uma vez que, “justamente, o êxito
lista e racista que a criou. Rafael Siqueira do sistema-mundo moderno/colonial reside
Guimarães (2017) também questiona a psico- em levar os sujeitos socialmente situados no
logia por seus pressupostos universalistas, eu- lado oprimido da diferença colonial a pensa-
rocentrados. Uma ciência ainda incapaz de rem epistemicamente como aqueles que se
vislumbrar outros mundos e horizontes que encontram em posições dominantes” (Bernar-
não estejam em convergência ou subsumidos dino e Grosfoguel, 2016, p. 19). Deste modo,
às concepções ocidentalizadas. o movimento de afrocentramento convida a
uma mudança de lugar epistêmico e social, o
Uma das expressões de afrocentramento na
que traz efeitos nas práticas de poder e de
Psicologia é o movimento conhecido como
produção de saber uma vez que convoca a
Psicologia Preta que tem grande impulso com
questionar as práticas de opressão racistas.
o campo de estudo a partir da criação da As-
sociation of Black Psychologists, associação Asante (2009) ressalta cinco características
fundada em São Francisco – EUA, em 1968. De essenciais da afrocentricidade: 1- interesse
acordo com Simone Nogueira e Raquel Guzzo pela localização psicológica; 2- compromisso
(2016), a Psicologia Preta/Africana assume a com a descoberta do lugar da(o) africana(o)
árdua tarefa de recuperação da memória his- como sujeito; 3- defesa dos elementos cultu-
tórica e cultural do povo africano, potenciali- rais africanos; 4- compromisso com o refina-
zando, nesse processo, valores e saberes tra- mento léxico; 5- compromisso com uma nova
dicionais da visão de mundo Africana desde o narrativa da história da África.
Antigo Egito (Kemet), demonstrando que, pa-
Localização, no sentido afrocêntrico, relacio-
ra além de denunciar o genocídio, a desuma-
na-se ao lugar ocupado por uma pessoa, em
nização do povo preto, a partir da supremacia
dado momento da história. Assim, “uma pes-
branca eurocentrada, a Psicologia Preta apon-
soa está deslocada ou descentrada sempre
ta para a humanização dos(das) africanos (as)
que se posicionar a partir de experiências que
e afrodescendentes a partir de sua própria
não fazem parte de sua história, sempre que
história, cultura, saber e modos de viver:
operar centrada nas experiências de outrem”.
Os interesses da Psicologia negra giram em torno (Assante, 2009, p. 96). Portanto, afrocentrar
do desenvolvimento de uma disciplina que não só
passa a ser um movimento de deslocamento
estuda o comportamento de pessoas negras, mas
busca também transformá-las em agentes consci- das narrativas que refletiam as histórias e as
entes sobre si mesmos e sua própria libertação produções sociais da hegemonia branca e pas-
mental e política. Isto é adquirido por meio de: sam a localizarem-se desde África.
1) uma crítica e rejeição severa à psicologia
branca, nos termos de sua metodologia, conclu- O afrocentramento não produz, inequivoca-
sões e premissas ideológicas nas quais repousa; 2) mente, narrativas que se pretendem hegemô-
provisões de modelos afrocentrados de estudo e
terapia; 3) intervenções autoconscientes nos es- nicas, mas vozes que buscam reconhecimento
forços sociais para promoção de um ambiente e visibilidade, que se contrapõem a outras vo-
mais negro e humano. (Karenga, 1986, apud No- zes homogeneizantes. Desta maneira, a loca-
gueira e Guzzo, 2016, p. 212) lização, para Asante (2009), nada mais é do
A Psicologia Preta por seu caráter multi- que o lugar no qual a “mente” está localiza-
intertransdisciplinar (Nogueira e Guzzo, 2016) da, o que, para ele, significaria conferir à
recebe contribuições das disciplinas dos Estu- África centralidade na experiência histórico-
dos Africanos. A articulação com outros sabe- cultural dos povos africanos em diáspora, ao
res da diáspora se define pelo reconhecimen- longo do tempo. Ressalte-se que, conforme o
to de que estes conhecimentos contribuem autor, não se trata da localização geográfica,

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4 Carvalho, Heloísa; Galindo, Dolores; Lopes, Mariana; Fernandes, Saulo e Parra-Valencia, Liliana

mas psicológica, a qual permite aos indivíduos dade anti-africana. Umda das fontes de so-
promoverem sua emancipação. Trata-se de frimento e perseguição vem sendo o transe ou
um movimento por meio do qual afrodescen- incorporação, aspecto das religiões de matriz
dentes se localizam e compreendem o proces- africana, temido pela sociedade ocidental e
so colonial que atravessa as suas histórias, utilizado como argumento para ataques con-
não tomando como base o processo de escra- tra os povos de terreiro. A incorporação espi-
vização que os europeus implantaram nos úl- ritual quando abordada pela Psicologia brasi-
timos séculos. As pessoas acessam suas traje- leira — atenta às problematizações levantadas
tórias históricas e a ancestralidade africana, pela discussão afrocentrada — não pode igno-
escapando ativamente da “anomia da exclu- rar a dimensão da ancestralidade, tão presen-
são”. No Brasil, por exemplo, muitas famílias te nas culturas afrodiaspóricas.
negras desconhecem parte dos registros fami-
Para Eduardo David de Oliveira (2012), a an-
liares perdidos no processo de escravização,
cestralidade pode ser descrita como uma ex-
alguns são recuperados em inventários de
periência cultural, que configura uma ética
“bens” de senhores de escravos.
que permite uma relação trans-histórica e
Em uma perspectiva de localização, os termos trans-simbólica com povos e parentes distan-
“centro” e “afrocentrado”, bem como as ex- tes dos locais onde os negros e negras foram
pressões “estar centrada” ou ser “uma pessoa espalhados durante a colonização e escraviza-
afrocentrada” significa trazer as referências ção. A concepção de pessoa na cosmovisão
culturais e históricas desde a África, sem ne- africana Iorubá remete aos vínculos com a an-
nhum desapreço a outras culturas, evitando a cestralidade (Ribeiro, 1996). A pessoa nesta
marginalização ou invisibilização. Assim, cosmovisão não se encontra segmentada do
qualquer intelectual ou ativista afrocentrista seu grupo e coletivo, sua vida é atrelada a
concorda que “não existe um antilugar, pois uma corrente geracional de passagem que se
[...] todos os lugares são posições” (Asante, produz de forma circular: do nascimento, a
2009 p. 103). Dessa maneira, localizar-se no vida, a morte e a sua transformação em uma
afro-centro pressupõe um sujeito protagonista figura ancestral após a morte. A relação com
e articulador da promoção da liberdade e ces- os antepassados, com as memórias e a histó-
sação do etnocentrismo, saindo da posição de ria oral são marcas presentes nos povos afri-
escravização epistêmica. canos e afrodiaspóricos que reinscrevem na
atualidade os registros de uma resistência que
Asante (2009) salienta que a afrocentricidade
surge desde o atravessamento dos mares em
é um “sistema aberto” que assegura discus-
navios sob condições inumanas.
sões e debates, em várias áreas do conheci-
mento. Nessa perspectiva de investigação, Assim, a ancestralidade dialoga com a experi-
não há sistemas fechados, ou seja, há sempre ência africana em solo brasileiro, proporcio-
caminhos para serem trilhados, ainda que nando trocas de experiências, fortalecimentos
pautados pelo reconhecimento e valorização de laços e afetos, bem como a atualização
das contribuições das culturas africanas e das memórias transgeracionais de um povo.
afrodiaspóricas. Torna-se necessário, portan- Ancestralidade significa também uma catego-
to, o compromisso com um refinamento léxi- ria de inclusão: “inclusão [que] está alicerça-
co, sendo imperioso livrar-se da linguagem da na experiência negro-africana em solo bra-
que reduz africanos e africanas a uma condi- sileiro, que mantém e atualiza sua forma cul-
ção de inumanidade. Trata-se de afirmar, em tural, seja na capoeira angola, no Candomblé
decorrência, um compromisso com uma nova tradicional, na economia solidária das fave-
narrativa da história da África, considerando las, etc.” (Oliveira, 2012, p. 40), como meios
as relações culturais africanas entre si e não de pertencimento e disseminação da cultura
se resumindo ao estudo da África em contras- afrodiaspórica. Ressalta ainda que, em solo
te com a Europa. brasileiro, a dimensão da ancestralidade rei-
vindica a tradição dinâmica e heterogêna dos
Parte da discussão no campo da psicologia,
povos africanos, especialmente a tríade nagô,
relacionada à africanidade, de acordo com
jeje e bantu, tendo no mito, no rito e no cor-
Nobles (2009), concerne à oposição às limita-
po um espaço para a construção de mundos.
ções da Psicologia ocidental (branca) e à visi-
bilização do sofrimento decorrente de ser Um dos questionamentos dirigidos a uma
africano ou africana, convivendo numa reali- perspectiva afrocentrada consiste em indagar

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se esta residiria apenas numa mudança de deste manuscrito pesquisadores/as bran-


centros, de um centro europeizado a um cen- cos/as e negros/as, com distintas localiza-
tro africano. Walter Mignolo e Arturo Escobar ções, portanto. Não se deve desprezar uma
(2013) alertam para usos redutores dos ter- pergunta-chave: é possível a um(a) pesquisa-
mos afrocentrismo e nacionalismo negro que, dor(a) branco(a) efetuar uma análise afrocen-
se adotados como uma narrativa monolítica trada? Se a resposta é afirmativa, uma segun-
identitária que unifica as diferenças existen- da deriva: é possível que esse trabalho seja
tes no próprio povo negro e que concebe to- feito exclusivamente por uma equipe de pes-
das as culturas como proles da cultura africa- quisa branca? Neste trabalho, entendemos
na, termina por ser uma outra face da moeda que movimentos de afrocentramento reque-
do eurocentrismo, ou seja, um monocentris- rem, minimamente, a composição de equipes
mo. Pensamos que é possível traçar policen- de pesquisa não exclusiva ou majoritariamen-
trismos epistêmicos decoloniais por meio das te brancas nas quais a branquitude como sis-
contribuições dos diversos alertas à importân- tema de dominação esteja sempre colocada
cia das visões localizadas que constituem os em xeque. Persistimos, predominantemente,
centrismos de segmentos minoritários, a racistas na Psicologia e pouco questionarmos
exemplo do afrocentrismo que discutimos ao a branquitude como uma categoria racial pau-
alongo deste artigo e da indigenização que tada por uma distribuição desigual de privilé-
não faz parte do escopo deste trabalho. Como gios (Schucman, 2014).
afirma Asante (2016, p. 17): “a afrocentrici-
Afrocentrar em Psicologia é uma das alterna-
dade não representa um contraponto à euro-
tivas à Psicologia hegemônica (fundamentada
centricidade, mas é uma perspectiva particu-
num projeto colonialista de normatização e
lar para análise que não procura ocupar todo
normalização social de populações não bran-
o espaço e o tempo como o eurocentrismo
cas aliada ao espistemicídio de saberes não
tem feito com frequência”.
brancos), a qual julga, de modo universalizan-
Diante das opressões epistêmicas e históricas te, experiências e práticas sociais. As cosmo-
vividas pelo povo negro da diáspora africana, visões africanas e afrodiaspóricas, seus co-
buscar afrocentrar a Psicologia não é uma nhecimentos, suas relações com o tempo e
proposta etnocêntrica e nem se pretende uni- espaço são e foram historicamente silencia-
versal e muito menos hegemônica uma vez das, marginalizadas, expropriadas e desacre-
que se contrapõe à neutralização da supre- ditadas; reposicioná-las no campo epistêmico
macia branca como saber universal, mas não conduz a perceber que aquilo que entende-
visa a uma nova hegemonia e universalidade. mos por Psicologia (sem sufixações) pode ser
Nesta direção, ao pesquisador e à pesquisado- assimilado a uma Psicologia Branca. O afro-
ra que efetua um movimento de afrocentra- centramento coloca em xeque a invisibilidade
mento são importantes, ao menos, três caute- do branqueamento do saber psicológico, as-
las: 1) delimitar o que entende por afrocen- sumindo que o “pluralismo nas visões filosófi-
trar o saber e como se dão os movimentos de cas sem hierarquia deve ser objetivo de toda
afrocentramento na abordagem do tema de interrogação madura”. (Asante, 2016, p. 17),
pesquisa; 2) situar, quando cabível, o movi- o que passa por repensar o sujeito psicológico
mento de afrocentramento que realiza se ar- configurado desde matrizes eurocêntricas.
ticula a outros movimentos que, no interior
ou em diálogo com a Psicologia, visam questi-
onar a universalização do sujeito e do saber MULHERES NEGRAS E A CAÇA COLONIALISTA ÀS
psicológico a partir da assunção de que a raça BRUXAS E AOS FEITIÇOS
é um eixo estruturante das relações sociais; e Com a escravização chegaram ao Brasil, mu-
3) indicar, em havendo participação de pes- lheres negras que, na África, “estavam nas
quisadores e pesquisadoras brancos/as, como feiras, trocavam bens, não somente objetos
estes se posicionam na pesquisa dado que em materiais, mas também trocas de bens simbó-
sua proposição original o saber afrocentrado licos como: músicas, orações, receitas para
parte do povo preto e a ele se destina, caute- curar o corpo, receitas para aconchegar os
la esta que na presente pesquisa derivou que corações” (Bernardo, 2003, p. 16). Entre os
adotássemos a ideia de movimentos de afro- Iorubás, as mulheres, inclusive, ocupavam
centramento como parte de uma visão epis- cargos públicos. As Iorubás, segundo Terezi-
têmica policêntrica, uma vez que participam nha Bernardo (2003, p.33), “se submetem à

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6 Carvalho, Heloísa; Galindo, Dolores; Lopes, Mariana; Fernandes, Saulo e Parra-Valencia, Liliana

separação de suas famílias: quando jovens, de orientações ocidentais”. A leitura de Nah


deixam seus lares para ir comerciar em mer- Dove traça uma continuidade entre a experi-
cados distantes [...] compra a produção de ência da mulher negra na África e em outros
seu próprio marido, revende e permanece países que merece maiores mediações sob o
com o lucro”. Mulheres, portanto, com práti- risco de certa homogeneização. Contudo, tra-
cas sociais e culturais bastante distintas das zemos ao argumento pela referência a uma
mulheres brancas brasileiras criadas para a África clássica pouco presente nos textos psi-
domesticidade e submissão patriarcal, con- cológicos, atendendo a uma política de locali-
traste este que é notório quando recuperamos zação em afrocentramento.
a figura das mulheres negras que ocuparam as
Silvia Federici (2004), escritora e ativista fe-
ruas de alguns estados brasileiros com ativi-
minista, retrata a luta das mulheres na passa-
dades políticas e de comércio.
gem do feudalismo para o capitalismo, na
As mulheres negras, em contraste com as mu- obra Calibã e a Bruxa: mulheres, corpos e
lheres brancas, mesmo durante o período de acumulação primitiva. Inspirada na peça A
escravização se mostram independentes, au- tempestade, de Shakespeare, apresenta as lu-
tônomas e senhoras dos espaços públicos, tas antifeudais da Idade Média, resistindo à
além de serem grandes comerciantes. Foram chegada do capitalismo e contra a dominação
estas mulheres negras que se organizaram em patriarcal, onde o Calibã representa o rebelde
terreiros onde assumiram o estatuto de mães anticolonial e a figura da bruxa aparece em
de santo, sendo respeitadas e ocupando luga- segundo plano. No seu exercício teórico-
res de saber. O protagonismo das mulheres imaginativo, a autora coloca a bruxa como
negras na Bahia, por exemplo, levou a antro- centro da cena, “enquanto encarnação de um
póloga europeia Ruth Landes (2002), após et- mundo de sujeitos femininos que o capitalis-
nografia realizada durante a década de 1930, mo/patriarcado precisou destruir: a herege, a
em terreiros, a indagar onde se poderia en- curandeira, a esposa desobediente, a mulher
contrar mulheres mais livres e capazes de que ousa viver só, a obeah que envenenava a
afrontar o patriarcalismo senão entre aquelas comida do senhor e incitava os escravizados à
mulheres negras da Bahia. rebelião” (Federici, 2004, p. 30). A mulher
guardaria, portanto, uma potência de subver-
Para Cheikh Anta Diop (2014), o contraste si-
são, próxima da rebelião. Tal afirmação é fei-
nalizado entre mulheres brancas e africanas
ta ao refletir sobre a vivência das mulheres
pode ser explicado pelas diferenças entre dois
brancas e se torna ainda mais contundente
berços civilizatórios: Nórdico e o Meridional,
quando estendida às mulheres negras de san-
Norte e Sul, que podem ser representados ho-
to às quais se atribui uma proximidade com a
je pela Europa e a África. Segundo Diop
figura demoníaca e insubmissão à norma pa-
(2014), uma das características do berço nór-
triarcal. No Brasil colonial, o catolicismo po-
dico é o nomadismo e o papel nulo da mulher
pular se aliou aos manuais inquisitório, pro-
exceto para procriar, ela era apenas um peso
movendo uma caça racializada às mulheres
que os homens nórdicos tinham que carregar,
(Rocha, 2015).
é ela quem deixa sua família para se juntar ao
companheiro, sendo a filiação patrilinear e is- Segundo Carolina Rocha (2015), que estudou
so caracteriza um regime patriarcal. Já no processos inquisitoriais no Brasil, a bruxa não
berço meridional, a vida era sedentária e era apenas vista como uma pessoa que reali-
agrícola, o homem é quem deixa sua família zava magia, ela fazia pactos diabólicos, de-
para juntar-se a sua esposa, é a mulher quem vendo ser banida. Recuperando a teologia co-
detém os saberes agrícolas e se o esposo for lonial no Brasil, Rocha (2015) nos lembra que
inabilidoso nas tarefas conjugais e na caça, Santo Agostinho acenava que o ser humano
ela pode pedir que ele retorne para o seu clã possui corpo sexuado e alma assexuada, cos-
ou encontre outra esposa. Segundo Nah Dove movisão oposta às cosmologias afrodiaspóri-
(1998, p. 8), a “degradação das mulheres em cas. Ao invés das festas e rituais, como ocorre
uma cultura e o respeito às mulheres em ou- na Umbanda e Candomblé, o teatro jesuítico
tra são distinções que não devem ser ignora- visava a catequização dos corpos por meio de
das quando se analisa as dificuldades contem- uma arte colonial e colonialista. Clérigos e
porâneas para povos Africanos, especialmente celibatários medievais exaltaram a virgindade
as mulheres africanas vivendo em sociedades feminina. Ainda conforme essa autora, a “ca-

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ça às bruxas” da alta Idade Média até a época ou terreiros como forma de conservação da
Moderna teve o Malleus Maleficarum como forma cultural, mas com fundamentos modifi-
roteiro principal dos inquisidores contra as cados ao longo do processo histórico de cada
feiticeiras, desembocando numa corrente mi- grupo. Os espaços dos terreiros afirmam as
sógina, enunciando “todos os possíveis vícios tradições religiosas africanas: espaços de
e defeitos das mulheres: patrocinadoras do memória, de fortalecimento da ancestralida-
pecado no mundo; donas de uma sexualidade de e de enfrentamento do genocídio do povo
desenfreada; fracas e débeis por natureza, e, negro e epistemicídio (Grosfoguel, 2013) dos
por conseguinte mais suscetíveis aos propósi- saberes negros.
tos de Satã” (Rocha, 2015, p. 52).
De acordo com Nah Dove (1998) e Cheikh Anta TERREIROS COMO TERRITÓRIOS DE RESISTÊNCIA
Diop (1959/1990), os valores matriarcais afri- À COLONIZAÇÃO
canos tiveram impacto sobre a Europa e influ-
enciaram mulheres ocidentais, submetidas ao É nos terreiros que os Orixás, Nkísi e Voduns
regime patriarcal, durante e após a destrui- representam historicamente uma forma de
ção de Kemet, civilização Egípcia. Diop resistência cultural e de coesão social. Nina
(1959/1990) recorda práticas de extermínio Rodrigues (1977, apud Barros e Teixeira,
de mulheres acusadas de praticar o culto a 2006) pontua que os africanos e seus descen-
Dionísio, deus kemético que questionava a dentes, aliados aos terreiros e irmandades de
dualidade dos sexos e dos gêneros. Dove igrejas católicas, formavam os quilombos,
(1988) relaciona explicitamente a queima às com a finalidade de resistência política, du-
bruxas à busca por eliminar mulheres africa- rante o período da escravidão. Afrodescen-
nas e qualquer traço de matriarcal insubmis- dentes, desde os seus tempos iniciais no Bra-
so: sil, transcenderam e transcendem barreiras
sociais, para a sobrevivência de suas raízes
A consolidação do cristianismo na Europa pode
bem ter sido uma tentativa planejada para aca-
culturais (raízes estas que são também rein-
bar com influências espirituais matriarcais em ventadas ao longo das práticas sociais). Mu-
mulheres europeias. Contemporaneamente à lheres negras de santo nunca se renderam
queima das bruxas, para facilitar a expulsão dos completamente ao horizonte civilizatório eu-
povos Africanos e sua influência, a Inquisição foi
projetada pela Igreja Católica para purgar a terra
ropeu, lutaram para manter a cultura do culto
de não-cristãos, queimando os assim chamados à natureza e seus espíritos, a ligação com a
hereges (Dove, 1998 pp. 16-17) terra e a valorização dela por meio dos ori-
xás.
Nas colônias, para a expulsão dos povos afri-
canos e aniquilação da sua presença cultural Vale destacar a ligação dos(as) africanos(as)
na diáspora, a Inquisição funcionou como dis- recém-chegados(as) em terras brasileiras com
positivo de neutralização da presença das mu- a população indígena através da incorporação
lheres negras que não foram modeladas para do culto aos “caboclos”. Este culto mostra
a docilidade e subserviência (Dove, 1998), outra lógica de encontro com o diferente e a
dentre estas as mulheres de terreiro. No Bra- alteridade, oposta a razão moderna colonial,
sil, a perseguição às mulheres acusadas de na qual o diferente deve ser submetido aos
bruxaria foi tão sangrenta quanto na Europa, preceitos do mundo branco. Nas culturas
com forte impacto sobre as mulheres negras afrodiaspóricas o outro pode ser reverencia-
assimiladas a feiticeiras por dançarem, canta- do, tornado divindade para que meu mundo
rem e se moverem pelo espaço público fugin- possa sobreviver e prosperar em terras ainda
do ao controle colonial. não conhecidas.
A perseguição no Brasil colonial às feiticeiras, A escravização forçou que famílias negras fos-
pagãs e praticantes de magia reforçou a assi- sem separadas em consequência do tráfico e,
milação dos terreiros e festas ao feitiço e ao neste contexto genocida, principalmente, as
pecado. Ainda assim, os terreiros se constituí- mulheres negras assumiram o encargo de dar
ram em solo brasileiro como espaços de resis- continuidade aos saberes da cultura, cultuan-
tência à ideologia eurocêntrica colonial e pre- do seus ancestrais com a finalidade de sobre-
servação da cultura africana. Segundo Helena viver e perpetuá-los. Primeiro, a “religião” e,
Theodoro (2008), os terreiros foram instalados depois, a culinária como saída para a sobrevi-
em espaços urbanos, conhecidos como roças vência das mulheres, e consequentemente de

Quaderns de Psicologia | 2019, Vol. 21, No 2, e1466


8 Carvalho, Heloísa; Galindo, Dolores; Lopes, Mariana; Fernandes, Saulo e Parra-Valencia, Liliana

todo o povo. Segundo Sangirardi Junior afirmam que “não existe correspondência di-
(1988), os terreiros são intrinsecamente rela- reta entre os cultos aos orixás praticados na
cionados à autonomia das mulheres, pois o África e a forma que ele adquiriu no Brasil,
processo de iniciação requer afastamentos [...] na religião está presente o esforço de um
dos companheiros e espaços de liberdade. povo que procura equacionar sua visão de
mundo” (pp. 120-121). Para essas autoras, na
O tráfico de pessoas escravizadas do conti-
diáspora, a religião praticada pelos negros es-
nente africano aconteceu entre o século XVI e
cravizados funcionou como uma das formas de
o século XIX. O embarque dos cativos e cati-
resistência a sua descaracterização como se-
vas nos chamados navios negreiros se concen-
res humanos e despojamento de tudo que
trava na Costa do Ouro (atualmente, Gana) e
deixaram para trás, na África, garantindo a
na Costa dos Escravos, no Golfo de Guiné,
sobrevivência étnica. Vale salientar que a mi-
principalmente nas praias de Benin. Os prin-
tologia é a própria codificação desse conjunto
cipais grupos cativos foram os Sudaneses e
de representações que são os Orixás. Esses
Bantus. Os Iorubás e Jejes concentram-se na
não são inatingíveis, descem à terra e vêm
Bahia, motivo pelo qual a cultura jeje-nagô
curar as “feridas do corpo e da alma”.
influenciou os cultos de outros Estados, como
acontece com o Maranhão. Já os Bantus ocu- O Candomblé e a Umbanda, aos poucos, esca-
param grandes regiões do país, atingindo Per- param da repressão religiosa capitaneada pe-
nambuco, Alagoas, Rio de Janeiro, Minas Ge- los proprietários de terra. De acordo com
rais, São Paulo, Maranhão e Pará. Não há uma Sangirardi (1988), houve uma substituição da
cultura única africana, ou um único culto violência perpetrada por proprietários de ter-
afrodiaspórico. ra pela violência policial. A vida dos terreiros
integrada à vida pública, pelo menos em par-
As práticas do terreiro constituem uma alter-
te, quebra os grilhões da clandestinidade, a
nativa ao poder colonialista e, de acordo com
despeito de continuar sendo uma religião es-
Theodoro (2008), o terreiro representa a ma-
tigmatizada. Destacam Barros e Teixeira
nutenção cultural, porém, com elementos re-
(2006): “Os terreiros de Candomblé congre-
formulados e transformados, ao longo do pro-
gam negros, mulatos, brancos e estrangeiros
cesso histórico do grupo e condições adversas,
que adotam e vivenciam esta perspectiva re-
além de ser uma resistência à ideologia domi-
ligiosa” (p. 105).
nante, abarcando diferenças culturais num
mesmo território político e ocupando lugares Os terreiros têm dinâmicas próprias e especi-
imprevistos na trama das relações sociais da ficidades, por conta dos sistemas simbólicos,
vida brasileira. Na visão de Claude Lépine rituais herdados e pelo sincretismo, da mistu-
(2006), “trata-se de sociedades, de comuni- ra de várias culturas trazidas pelos africanos
dades de vida própria” (p. 139), pois um ter- em diáspora e da repressão dos colonizadores.
reiro de Candomblé tem sua organização soci- Barros e Teixeira (2006) chamam a atenção
al, sua gente, suas representações e suas es- para o fato de os terreiros desenvolverem
pecificidades, referenciadas pelos modos de uma rede de relacionamentos sociais entre si
viver africanos. e também com outros grupos de culto que fa-
zem parte das chamadas religiões afro-
A vida social dos terreiros é remetida ao cor-
brasileiras, contudo, mantendo a demarcação
po humano e, segundo José Barros e Maria
da identidade de cada “associação religiosa”.
Teixeira (2006), o corpo é o veículo de comu-
Apesar das diferenças entre os diferentes cul-
nicação com os Orixás “força da natureza,
tos de terreiro, é possível referir a um con-
que, através da possessão ritual, incorporam
junto que pode ser chamado genericamente
em seus ‘cavalos’ ou médiuns”. Esses autores
de “povo-do-santo” (Barros e Teixeira, 2006,
salientam ainda que a construção social da
p. 106) que resiste às perseguições que visam
pessoa nos espaços sagrados do Candomblé é
aniquilar a sua continuidade.
desenvolvida gradualmente, a partir do pro-
cesso iniciático.
Assim, o Candomblé e a Umbanda emergiram AS MULHERES NO CANDOMBLÉ E UMBANDA
como espaços de resistência e sobrevivência Quando africanas e africanos foram arranca-
cultural e étnica do(a) negro(a) escraviza- dos do seu chão, conduzidos para o Brasil,
do(a). Suely Carneiro e Cristiane Cury (2008) trouxeram um imenso patrimônio cultural.

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Pomba-giras: contribuições para afrocentrar a Psicologia 9

Seus costumes, valores, idiomas, seus diversos de mundo e de verdade. Neste campo de
conhecimentos e suas crenças. Apesar das guerra entre mundos, o terreiro se torna um
perseguições e proibições, de forma secreta, espaço no qual a mulher negra encontra au-
recriaram e continuaram a praticar rituais re- tonomia, reconhecimento e cosmo espiritual.
ligiosos. No Brasil, o Candomblé se constituiu Fora do terreiro, a força do patriarcado per-
como uma “comunidade eminentemente fe- manece nas relações conjugais, frequente-
minina, embora nela o elemento masculino mente, sob a forma de violência física e psi-
não tivesse excluído. Suas fundadoras torna- cológica contra a mulher.
ram-se figuras legendárias que continuam vi-
De acordo com Carneiro e Cury (2008), as Ia-
vas e atuantes na memória cultural das co-
lorixás são depositárias e transmissoras dos
munidades de candomblé” (Carneiro e Cury,
cultos, seus mistérios e segredos. Tendo co-
2008, p. 121). É importante salientar que,
nhecimento das forças da natureza e sabedo-
numa sociedade patriarcal e racista, como a
ria para manuseá-las para ajudar na solução
brasileira, a liderança dessas mulheres negras
dos problemas concretos e espirituais dos que
foi bem representativa, tomando como refe-
estão sobre sua proteção, aí se define o poder
rência a luta contra a opressão econômica e a
da mãe de santo ou do pai de santo. Quando
discriminação racial, especialmente após a
as Ialorixás e as praticantes das religiões afro-
“abolição da escravatura” (Carneiro e Cury,
brasileiras ultrapassam os muros da comuni-
2008).
dade de terreiro, sofrem com as desigualda-
Segundo Bernardo (2003), as mulheres negras des e discriminação por serem mulheres, ne-
de santo vivem a matrifocalidade de forma di- gras e praticantes numa sociedade excludente
ferenciada das mulheres brancas. Nas pesqui- e misógina.
sas realizadas pela autora, para essas mulhe-
Para Carneiro e Cury (2008, p. 125), o lugar
res, a matrifocalidade não é encarada como
da mulher no Candomblé remete a uma cos-
sofrida, pesada: acentuam a autonomia e a
mologia na qual as “Iyá mi, ancestrais míticos
satisfação. Bernardo (2003), ao fazer referên-
femininos, são a representação máxima do
cia à mãe de santo Olga de Alaketu, enfatiza
poder feminino”. Às Iyá mis também são
que no “caso das filhas da sacerdotisa, os ma-
chamadas de ajé, que em iorubá significa fei-
ridos ocupam um lugar externo ao núcleo fa-
ticeira, não sendo propriamente bruxas, mas
miliar, que é constituído pela mãe e seus fi-
as avós, as mães em cólera. São tão significa-
lhos. [...] A família de santo, por outro lado,
tivas que sem elas a vida não poderia conti-
mostra que o lugar ocupado pela sacerdotisa
nuar e as sociedades se desagregariam. Stefa-
é o centro em torno do qual gravitam seus
nia Capone (2004) assegura que as Iyá mí são
membros” (Bernardo, 2003, p. 118).
designadas coletivamente como ancestrais
Levando em consideração que as relações de femininos, as mães míticas, as Grandes Mães
gênero, na sociedade ocidental, são assimé- e simbolizam todos os Orixás femininos. Nas
tricas, Valdineia dos Santos (2012) pontua que práticas de Candomblé e Umbanda, os espa-
a mulher no Candomblé vivencia uma dupla ços dos terreiros são também espaços de bus-
pertença identitária: fora do terreiro e dentro ca de cura e do acolhimento para o sofrimen-
do terreiro. Santos (2012) sublinha que, nos to dos (as) praticantes, como apontam Maris-
espaços sagrados das religiões de matriz afri- tela Silva e Marilda Santanna (2015).
cana, as mulheres exercem diversas ativida-
Conforme Monique Augras (2006), a Pomba-
des que requerem autonomia. Há obrigações
gira é tida como um “Exu fêmea” ou “Exu mu-
que exigem sua estadia na casa; há interdi-
lher” e uma vez “incorporada, dá a seu mé-
ções sexuais, às vezes necessitam passar vá-
dium uma aparência onde a vibração do sexo,
rios dias na comunidade/terreiro. Esta dupla
da luxúria, dos desejos carnais, da lascívia”
pertença evidencia conflitos entre uma cos-
(Augras, 2006, p. 34), por isso, é tida por al-
movisão atravessada pela vida compartilhada
guns como desprezível, negativa e comprome-
em comunidade que centra na mulher as ca-
tida com o “baixo espiritismo”. As Pomba-
pacidades de manejo, ação e condições espi-
giras distam da imagem das grandes mães que
rituais de trabalho e um projeto civilizatório
são mais facilmente sincretizadas ao catoli-
centrado no patriarcado, na exploração e ex-
cismo, a exemplo de Iemanjá que, num pro-
propriação de todos(as) aqueles (as) que não
cesso de assimilação, perde características de
condizem com as referências eurocentradas
insubordinação que lhe são próprias.

Quaderns de Psicologia | 2019, Vol. 21, No 2, e1466


10 Carvalho, Heloísa; Galindo, Dolores; Lopes, Mariana; Fernandes, Saulo e Parra-Valencia, Liliana

De acordo com Rita Segato (2006, p. 47), Ie- menos, que a “Pomba-gira” ou “Bombo-Gira”
manjá é costumeiramente descrita como o (p. 30). Logo, Pomba-Gira é o Exu-Mulher ou a
“venerado orixá mãe” e, na opinião dos in- mulher ou fêmea de Exu. Seu nome cabalísti-
formantes da pesquisadora, existe uma faceta co é Klepoth (Exu Pomba-gira) denominado na
estereotipada do Orixá, cujas qualidades ne- lei da Kabalah como uma entidade da magia
gativas ficam ocultas para o grande público. negra que representa a maldade em figura de
Para Carneiro e Cury (2008), se a sociedade mulher “a encarnação do mal [...] o bode de
patriarcal reduz a sexualidade feminina à Sabbat” (Meyer, 1993, p. 89), sendo subordi-
procriação, as deusas africanas são mães e nada e trabalhando às ordens do Exu Syrach
amantes. “Esse é o caso de Iemanjá, mãe dos (Exu Calunga). No entanto, segundo esse au-
Orixás, enfeitiça os homens e os atrai ao seu tor, existem outras versões de mulheres que,
grande ventre (o mar). Ela os devora porque é quando desencarnadas, “entregam-se a sete
de temperamento apaixonado, instável, ciu- Exus” e passam a se apresentar ao Povo de
mento e possessivo” (Carneiro e Cury, 2008, Pomba-gira.
p. 130).
Não se dispõe de dados históricos que permi-
Como herança do sincretismo entre catolicis- tam situar, com exatidão, o aparecimento da
mo e cultos afro brasileiros, criou-se uma re- expressão Pomba-gira. “Em seu clássico Can-
lação entre a figura de Exu e o diabo católico, domblé da Bahia, cuja primeira edição é de
na Umbanda, mas Exu não se associa ao mal. 1948, Carneiro assinala, contudo, o nome de
Conforme Miguel Bairrão (2002), o reino dos Bonbojira, pelo qual é invocado Exu em can-
Exus guarda o escondido, o desconhecido pes- domblés de nação Congo” (Augras, 2006, p.
soal. O autor acrescenta que “lidar com a 31). Augras (2006) ressalta que, quando che-
‘esquerda’ é aprender a respeitar e elaborar gou ao Brasil, em 1961, encontrou o culto da
os aspectos pessoais e coletivos menos exibí- Pomba-gira bem estabelecido no Rio de Janei-
veis e muitas vezes os mais verdadeiros” ro; contudo, acrescenta que “raríssimos são
(Bairrão, 2002, p. 61). A vivência popular do os artigos em que a mesma é focalizada como
Exu não o associa propriamente a uma instân- figura central da investigação” (p. 32) e que
cia metafísica do mal, resguardando-o como são muitas as significações simbólicas que
representante e advogado de bens e prazeres acompanham a imagem mítica da Pomba-gira.
pessoais e imediatos. De acordo com o autor, Stefania Capone (2004) salienta que, em ge-
a entidade prezaria pelo bem de quem busca ral, a Pomba-gira recebe o estereótipo de
sua intervenção. prostituta, mas também de mulher que se re-
bela contra a dominação masculina e, por is-
Para o sociólogo Reginaldo Prandi (1996), a
so, é invocada nos trabalhos de “magia amo-
Pomba-gira é cultuada no Candomblé e Um-
rosa”, além disso, é “a mulher de sete exus”,
banda, porém, suas raízes estão no Candom-
ou seja, não é a mulher de ninguém.
blé, fazendo a interface das tradições africa-
nas e europeias, portanto, se popularizando As Pomba-giras em suas performances de gê-
no solo brasileiro. Vale ressaltar que as pes- nero nos terreiros esbanjam sensualidade, ir-
soas apelam para a Pomba-gira com o intuito reverência, agressividade e perigo, sob o pon-
de solução para os seus mais diversos proble- to de vista moral de uma sociedade moralista
mas. Nesse sentido, Prandi (1996, p. 140) as- e conservadora. Elas inauguram nos terreiros,
sinala que, “entre as populações pobres urba- corações baldios das cidades, modos de viver
nas, é comum apelar a Pomba-gira para a so- livres, autônomos e corajosos. Assim, não se
lução de problemas relacionados a fracassos e deve impor às entidades dos terreiros as per-
desejos da vida amorosa e da sexualidade, formances de gênero atribuídas historicamen-
além de inúmeros outros que envolvem situa- te às mulheres brancas e europeias
ções de aflição”. Sublinha a importância de (Oyewùmí, 2004).
estudar os cultos à Pomba-gira para entender
Adriano Nascimento, Lídio Souza e Zeidi Trin-
as “aspirações” e “frustrações” das pessoas
dade (2001, p. 109) observam, que numa
que buscam o alento para suas dores espiritu-
amostra de mais de 200 pontos cantados na
ais e materiais.
Umbanda, como funções/poderes associados
Teixeira Neto (s/d) na obra A Magia e os En- às Pomba-giras estão os seguintes atributos:
cantos da Pomba-Gira destaca que a mulher “trabalhar, comandar a madrugada, vencer
de Exu ou a fêmea do Exu é, nada mais, nada demandas, carregar mandinga”.

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Pomba-giras: contribuições para afrocentrar a Psicologia 11

A Pomba-gira assume lugar muito especial nos do, vão-se compondo e integrando médium e
terreiros, com capacidade de dominar os ho- “entidade”. Ambos “evoluem” juntos.
mens, amante do luxo, do dinheiro e de todos
Segundo Merlyse Meyer (1993, p. 89), os tra-
os prazeres.
balhos que envolvem casos de amor, no qual a
mulher se sente prejudicada, ou então pre-
POMBA-GIRAS EM DIÁSPORA tende realizar uma união, são entregues à
Pomba-gira mesmo que não coincidam com a
As Pomba-giras assumem um padrão moral monogamia. Não raras vezes, as pomba-giras
desviante da moral embranquecida, gozando são assimiladas a “destruidoras de famílias”.
de uma liberdade ilimitada. São mulheres “de Isso é bem visível nos pontos cantados nos ri-
rua”, sexuadas, alegres, livres e independen- tuais: “Pombagira é mulher de sete mari-
tes, transgredindo os padrões da moral bran- dos/Não mexa com Ela/ Ela é um perigo”,
ca. Transgridem os valores patriarcais. Mari- que chama a atenção para o poder que a
elle Barbosa e José Bairrão (2008, p. 228), a Pomba-gira representa, através de sua sexua-
partir da observação dos terreiros de Umban- lidade e força.
da, narram que nos rostos das Pomba-giras
“há constantemente uma expressão de alegria Nós distinguimos duas vertentes sobre a histo-
e divertimento, sorriem e dão gargalhadas ricidade das Pomba-giras. Numa primeira lei-
enquanto dançam. Elas dão gargalhadas, mo- tura é evidenciada a descendência africana, a
vendo o tronco e a cabeça para trás”. Em na- partir das Iyá mí. Numa segunda leitura é evi-
da se assemelham a mulheres assexuadas, denciada uma linhagem europeia alicerçada
tampouco coincidem com o sexo/gênero assi- na história da Dona Maria de Padilha, que te-
nalado a pessoa que as recebe, deslocam a ria sido amante de um rei de Castela, Espa-
heteronorma e se aproximam de outros modos nha.
de viver o sexo e a sexualidade traduzidos das Augras (2006, p. 34) faz uma leitura da Pom-
culturas africanas. São “referidas como Exus ba-gira, dando visibilidade à capa do livro de
femininos e que possuem como atributo bási- Teixeira Neto, A Magia e os Encantos da Pom-
co uma sexualidade desenfreada” (Birman, ba-Gira, fazendo a seguinte descrição: uma
1991, p. 55). dançarina de cabaré, com a mímica “bastante
No estudo de Reginaldo Prandi (1996), Pomba- obscena”, rodeada de borboletas, das quais a
gira é singular, mas é também plural. Elas são maior representaria uma vulva, a própria
múltiplas, com denominações próprias. Elas ‘pomba’. A autora nos lembra que é comum,
vêm de vários lugares, são muitas suas histó- nos terreiros, as mulheres que têm “Pomba-
rias. Quando chegam ao terreiro, deixam o Gira de frente” fazerem várias oferendas co-
ambiente cheio de alegria, com suas garga- mo dispositivo para “doutrinar a entidade” e
lhadas inconfundíveis, danças, roupas diver- “satisfazer os desejos irrefreáveis”. Desse
sas; apesar de prevalecer o vermelho e preto, modo, a oferenda visa a abrandar a “terrível
adotam também outras cores e acessórios, entidade”, permitindo uma vida mais “decen-
como: chapéu, flores na cabeça, torço, brin- te” — o que Augras vai chamar de “pasteuri-
cos, colares, pulseiras, leques, exalando uma zação” das divindades representantes do po-
diversidade de cheiros, mulheres belíssimas. der sexual feminino, com o intuito de reafir-
mar os valores tradicionais da sociedade pa-
Os filhos e as filhas-de-santo são chamados de triarcal.
médiuns, e cada médium tem seus Orixás par-
ticulares, a quem deve obediência e obriga- Augras (2006 p. 39) se refere à Pomba-gira
ções, podendo incorporar mais que uma enti- como uma figura que surge em contraposição
dade. Os(as) médiuns passam por um período à figura de Iemanjá, e que as repressões aos
de iniciação e “sessões de desenvolvimento”, aspectos sexuados do poder do feminino atu-
onde são assistidos por seus pais ou mães-de- am através da Pomba-gira. Essa entidade, “ao
santo. José Bairrão (2002) assinala que é inte- mesmo tempo que afirma a sexualidade femi-
ressante acompanhar os processos de afirma- nina, devolve-a ao império da marginalida-
ção progressiva das múltiplas identidades do de”. Pomba-gira é recuperação brasileira de
transe (o chamado desenvolvimento mediúni- forças e características de divindades africa-
co). A partir de material simbólico consagra- nas que, no Brasil, no contato com a civiliza-
ção católica, teriam passado por um processo

Quaderns de Psicologia | 2019, Vol. 21, No 2, e1466


12 Carvalho, Heloísa; Galindo, Dolores; Lopes, Mariana; Fernandes, Saulo e Parra-Valencia, Liliana

de "cristianização". A autora está se referindo CONSIDERAÇÕES FINAIS


às Grandes Mães, as poderosas e temidas Iyá
mí Oxoronga dos Iorubás, quase esquecidas no Ao longo do manuscrito, trabalhamos dois
Brasil. Elas têm o poder das Ajés, temíveis termos que podem parecer antagônicos. De
feiticeiras, tão terríveis que se evita pronun- um lado, falamos em diáspora que remete à
ciar o nome, tidas como Dona do Pássaro, pois dispersão. De outro, referimos à importância
também formam um coletivo que, na verda- de afrocentrar a produção de saberes que re-
de, expressam a síntese dos poderes da mãe mete a uma ideia de centro. Todavia, a con-
terrível e que se chama Iya Mí Oxorongá (Au- tradição é apenas aparente. A afrocentricida-
gras, 2006). de não se propõe a ser uma epistemologia
universal, diferente do paradigma eurocêntri-
As Iyá mí e as Ajés (feiticeiras) são temidas co, ela propõe a produção de um conheci-
por seu “grande poder” e por sua “agressivi- mento com foco nas questões da população
dade”, concentrando muito axé. Como Exu, africana e afrodiaspórica, escrita por e para
Iyá mí e as Ajés podem fazer o “bem” e o negros, jamais deslegitimando a experiência,
“mal”. Na forma individualizada de Iyá mí história, cultura e saberes de outros povos e
Oxorongá podem “trabalhar dos dois lados”. etnias.
Nesse aspecto, elas se assemelham à Pomba-
gira, a qual trabalha “para o bem e para o Textos que visam a afroncentrar a Psicologia,
mal”. A Pomba-gira procura atender quem faz quando escritos também por pesquisadores
o pedido, satisfazendo a vontade do(a) consu- brancos/as devem convocar a pensar o legado
lente: não julga o que lhe é solicitado. A for- colonialista dos brancos e brancas no Brasil,
ça da Pomba-gira, não à toa, é vinculada às devem levar a assumir um lugar de enuncia-
encruzilhadas, territórios cruzados nos quais ção explicitamente reflexivo nas políticas de
as produções morais podem ser deslocadas e fala, de modo que se afirme a impossibilidade
justapostas (Teixeira-Neto, s/d). de que a experiência branca se sobreponha à
experiência negra, devendo os privilégios
Mariana Barros (2010) narra que, trajadas de brancos serem explicitados e colocados em
vermelho e preto, as Pomba-giras vestem questão. Ao longo da redação do manuscrito,
roupas de mulheres transgressoras para “che- esta foi uma cautela constante. É importante
garem aqui”, revelam que estão no corpo fe- afirmar que não se trata de uma desconfiança
minino, se dizem “mulher” que vem para às avessas com relação a brancos e brancas,
atender aos pedidos e proteger a “mulher”, mas sim o reconhecimento de que estes e es-
reivindicando um espaço de destaque e res- tas trazem um histórico colonialista do qual
peito. Exclama-se a saudação nos terreiros: não é simples se apartar já que diz dos modos
Laroiê, Pomba-gira! Pomba-gira não vem so- de subjetivação e distribuição de privilégios.
mente para trabalhar, ela vem para se diver-
tir, dançar e ser apreciada nas festas promo- As Pomba-giras deixam entrever aspectos de
vidas para Exu e Pomba-gira, geralmente rea- uma ética afrodiaspórica incompatível com a
lizadas uma vez por ano, nos mais diversos moral eurocêntrica colonialista, uma ética na
terreiros das religiões afro-brasileiras (Prandi, qual bem e mal se diluem como marca da cul-
1996). A associação de Exu e Pomba-gira com tura do povo africano. Para Dove (1998), en-
o maligno é retratada sincreticamente em tende-se por africano(a), todas as pessoas
pontos cantados nos ritos para essas entida- africanas que nasceram e vivem no continen-
des, como o que segue: “A porta do inferno te, e são melaninadas, bem como aqueles e
estremeceu/O povo correu para ver quem aquelas que foram desterritorializados/as e
é/Ouvi uma gargalhada na encruza/É Pomba- viveram processos diaspóricos nas sociedades
gira e o compadre Lúcifer” (Ponto cantado europeias e/ou europeizadas que reivindicam
para Pomba-gira). Algumas mães de santo este pertencimento. Na diáspora, os terreiros
prescrevem práticas de doutrinação que vi- vêm funcionando como espaços para lidar
sam abrandar as Pomba-giras e preparar os com o trauma colonial decorrente dos proces-
corpos das médiuns para recebê-las. É uma sos de escravização, um dispositivo por meio
entidade cercada de controvérsias mesmo nos do qual se busca construir uma comunidade,
terreiros de Umbanda e Candomblé. um quilombo entre pares no qual o racismo
não é a linha de corte genocida sobre a pele.

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Pomba-giras: contribuições para afrocentrar a Psicologia 13

O que pode uma Psicologia em movimentos e Barbosa, Marielle Kellermann & Bairrão, José Fran-
ritmos de afrocentramento? Certamente, não cisco Miguel Henriques (2008). Análise do Movi-
há uma resposta unívoca a esta questão. No mento em Ritmos Umbandistas. Psicologia, Teo-
que toca ao estudo das Pomba-giras e outras ria e Pesquisa, 24(2), 225-233.
https://doi.org/10.1590/s0102-
entidades do Candomblé e Umbanda, pode-se 37722008000200013
afirmar que os movimentos de afrocentra-
mento demandam deslocamentos conceituais Barros, José Flávio Pessoa de & Teixeira, Maria Li-
que confiram singularidade e visibilidade às na Leão (2006). Código do corpo: Inscrições e
formas de subjetivação negras na diáspora. O marcas dos orixás. In: Carlos Eugenio Marcondes
de Moura (Org.), Candomblé: religião do corpo e
estudo das Pomba-giras, caracterizadas pela da alma: tipos psicológicos nas religiões afro-
dissonância da moral eurocêntrica, pode con- brasileiras (pp. 103-138). Rio de Janeiro: Pallas.
tribuir para afrocentrar a Psicologia albergan-
do o animismo banido como uma baixa epis- Barros, Mariana Leal de (2010). “Labareda, teu
temologia (Bensusan,2017) e modos de exis- nome é mulher”: análise etnopsicológica do fe-
minino à luz de pombagiras. Tese de Doutorado
tência banidos da racionalidade moder-
inédita, Universidade de São Paulo.
na/colonial
Bairrão, José Francisco Miguel Henriques (2002).
Afrocentrar a Psicologia é uma prática políti- Subterrâneos da submissão: sentidos do mal no
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HELOÍSA CARVALHO
Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal de Mato Grosso, graduada em
Psicologia.

DOLORES GALINDO
Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso. Pos-
sui Doutorado e mestrado em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

MARIANA LOPES
Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso, membro do Núcleo Indígena Preto
de Práticas Psicológicas (NIP).

SAULO FERNANDES
Professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas. Doutor em
Psicologia pela Universidade de São Paulo.

LILIANA PARRA VALENCIA


Professora da Universidade Cooperativa de Colômbia.

DIRECCIÓN DE CONTACTO
helo.carvalho@gmail.com | dolorescristinagomesgalindo@gmail.com | marianalopes@gmail.com |
saupsico@gmail.com | lilianaparrav@gmail.com |

FORMATO DE CITACIÓN
Carvalho, Heloísa; Galindo, Dolores; Lopes, Mariana; Fernandes, Saulo e Parra-Valencia, Liliana
(2019).Pomba-giras: contribuições para afrocentrar a Psicologia. Quaderns de Psicologia, 21(2), e1466.
http://dx.doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1466

HISTORIA EDITORIAL
Recibido: 09/07/2018
1ª Revisión: 16/09/2018
Aceptado: 16/04/2019

Quaderns de Psicologia | 2019, Vol. 21, No 2, e1466

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