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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS


FACULDADE DE LETRAS
ESPECIALIZAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS E ENSINO DE LITERATURA

ÁLVARO GUERRA BEZERRA DE BRITO

SOB O SIGNO DA VIOLÊNCIA: OS MODOS DE OPRESSÃO NO CONTO “DINA”,


DE LUÍS BERNARDO HONWANA

Goiânia/GO
2020
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ÁLVARO GUERRA BEZERRA DE BRITO

SOB O SIGNO DA VIOLÊNCIA: OS MODOS DE OPRESSÃO NO CONTO “DINA”,


DE LUÍS BERNARDO HONWANA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Curso de Especialização em Estudos Literários e
Ensino de Literatura, da Faculdade de Letras, da
Universidade Federal de Goiás, como requisito
parcial para a obtenção do título de Especialista em
Estudos Literários e Ensino de Literatura.

Orientador(a): Prof. Dr. Rogério Max Canedo

Goiânia/GO
2020
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ÁLVARO GUERRA BEZERRA DE BRITO

SOB O SIGNO DA VIOLÊNCIA: OS MODOS DE OPRESSÃO NO CONTO “DINA”,


DE LUÍS BERNARDO HONWANA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Especialização em Estudos Literários


e Ensino de Literatura, da Faculdade de Letras, da Universidade Federal de Goiás, como
requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em Estudos Literários e Ensino de
Literatura, avaliado pela Banca Examinadora constituída pelos seguintes professores:

____________________________________________________________
Prof. Dr. Rogério Max Canedo – UFG
Presidente da banca

____________________________________________________________
Prof(a). Dr. Átila Silva Arruda Teixeira – PUC/GO
Membro Externo

__________________________________________________
Prof(a). Dr. Marcelo Ferraz de Paula – UFG
Membro Interno

Data de aprovação:____/_____/_____
3

Dedico este trabalho a todos aqueles que de


alguma forma contribuíram para o seu
desenvolvimento.
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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................5

1. PÓS-COLONIALISMO ......................................................................................................6

2. PERCURSO DA LITERATURA EM MOÇAMBIQUE ...............................................12

3. AS MARCAS DE VIOLÊNCIA NO CONTO “DINA”, DE LUÍS BERNARDO


HONWANA.............................................................................................................................15

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................22

REFERÊNCIAS .....................................................................................................................23
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SOB O SIGNO DA VIOLÊNCIA: OS MODOS DE OPRESSÃO NO CONTO “DINA”,


DE LUÍS BERNARDO HONWANA

Resumo: Este artigo busca evidenciar as marcas da violência no conto “Dina”, do escritor
moçambicano Luís Bernardo Honwana. Para tanto, será feito uma breve contextualização a
respeito da constituição e das principais contribuições do pensamento pós-colonial à crítica
literária, conforme Thomas Bonicci (2005), Inocência Mata (2007; 2014), Ana Mafalda Leite
(1998) e Simone Pereira Schmidt (2009). Em seguida, examinaremos o processo histórico de
exploração portuguesa até a libertação de Moçambique, e como isso está ligado à constituição
da literatura moçambicana. Por fim, analisaremos o conto de modo a evidenciar as formas de
violência ali presentes como denúncia da condição colonial.

Palavras-chave: Pós-colonialismo. Violência. Literatura Moçambicana. Luís Bernardo


Honwana.

INTRODUÇÃO

Historicamente o continente africano tem sido vítima dos mais variados tipos de
preconceitos, muito em virtude de um intencional processo de desinformação. Na melhor das
hipóteses, esse processo pode ser considerado superficial. Assim, de uma forma geral, o que se
tem a respeito do terceiro maior continente do mundo é uma intensa divulgação de informações
não ligadas à realidade, como, por exemplo, considerar que a África é um país uno, não
abordando sua constituição com 54 nações com uma rica diversidade cultural, linguística e
étnica.
Construída historicamente e quase sempre representada de forma estereotipada, a
imagem propagada do continente africano pela mídia, na maioria das vezes, noticia apenas os
problemas do continente, tais como os problemas enfrentados na área da saúde, dentre eles, as
doenças provocadas pelos vírus Ebola e o da Aids, e outras doenças graves como a malária.
Outras notícias recorrentes são as da fome, da pobreza e da miséria. Quase nunca há reportagens
que divulgam e valorizam a diversidade religiosa, cultural, étnica, linguística, muito menos
sobre os escritores e as produções literárias dos países africanos.
Fruto de um processo histórico anterior, a imagem deturpada do continente africano tem
origem no colonialismo europeu, o qual propagou por muito tempo uma África como local de
atraso, do barbarismo e do primitivismo. Durante muitos anos foi com essa imagem que o
continente africano foi conhecido. Uma das consequências advinda desse contexto foi a da
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legitimação para a colonização europeia da África, uma vez que fora criada a ideia de os povos
africanos que deviam ser colonizados.
A literatura teve um papel preponderante para a construção de visão da África como um
lugar exótico, inóspito, cheio de aventuras e colonizável. Em Cultura e Imperialismo (2011),
Edward Said defende a tese que a literatura serviu para propagar a ideia de atraso civilizatório
do continente africano. Para tanto, o autor argumenta que a literatura, sobretudo o romance, foi
primordial para disseminar os ideais imperialistas.
Nesse sentido, a teoria pós-colonial, além de ser um processo ideológico e estético,
também é um discurso de questionamento dessa visão deturpada, preconceituosa e inverídica
do mundo colonizado. Assim, ao questionar a perspectiva eurocêntrica, luta-se contra o
desconhecimento, o preconceito, toda opressão e todas as formas de violência perpetuada pelo
colonialismo. Dessa forma, muda-se a chave do processo de representação, pois o pós-
colonialismo, além de dar voz ao colonizado, para que esse sujeito subalternizado possa falar
de si, das suas tradições, da sua cultura, se ocupa em compreender a dificuldade da constituição
dessa voz, das suas diversas fraturas históricas e traumas coletivos, das estratégias melancólicas
de representação do passado, de seus problemas e da sua condição como ser humano.
A teoria do pós-colonialismo responde a um ambiente de reinvindicações para as quais
é de urgente necessidade a reverberação. Desse modo, desnudando as relações desiguais
engendradas dentro do colonialismo, a teoria tenta expor as agruras da colonização, trazendo à
tona aspectos caros para a constituição política, histórica, cultural e social dessas vozes, até
então silenciadas pelo estatuto colonial.

1. PÓS-COLONIALISMO

Os estudos pós-coloniais, embora não tenham uma sistematização unívoca a respeito da


sua natureza conceitual, isso muito devido a sua polissemia epistemológica, são de urgente
necessidade para a compreensão das complexas relações entre colonizadores e colonizados.
Nessa perspectiva, Inocência Mata (2014) argumenta que não se pode falar que exista uma
teoria pós-colonial, pois suas perspectivas de estudos seriam a construção de epistemologias
que apontam para outros paradigmas metodológicos diversos de outras epistemologias tidas
como clássicas. Além disso, a mais importante mudança seria enfocar nas relações de poder,
cuja atividades são caracterizadas pela diferença, tais como, a étnica, a de raça, a de classe, a
de gênero, a de orientação sexual. Dessa maneira Mata chega à conclusão que
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Neste contexto, julgo que os destinadores das teorias pós-coloniais pretendem


que elas funcionem, também, como instrumento de análise de relações de
hegemonia e desvelamento da colonialidade do saber segundo uma estratégia
de resistência a sistemas de conformação da tendência hierarquizante da
diferença, como seja, por exemplo, o eurocentrismo (MATA, 2014, p. 31).

O termo pós-colonialismo a princípio pode suscitar uma interpretação vinculada a uma


ideia de cunho histórico-temporal, sendo assim, ele estaria relacionado a um movimento teórico
que teria surgido imediatamente após o período colonial. A esse respeito Ana Mafalda Leite
(1998, p. 11) afirma que após a Segunda Guerra Mundial, o termo “pós-colonial state” era usado
pelos historiadores para designar os países recém independentes, em uma clara acepção
cronológica do termo. Simone Pereira Schmidt corrobora essa assertiva de Leite, afirmando que
o termo pós-colonial tinha o sentido de intitular o processo de independência dos países
colonizados pela Europa. No entanto, segundo ela, a partir dos anos 1970, o pós-colonial passou
a ser utilizado por críticos literários como forma de refletir sobre os diversos efeitos da
colonização. De acordo com a autora, nesse contexto, destacam-se os trabalhos pioneiros de
Edward Said e Gayatri Spivak que, de certa maneira, dão início aos estudos pós-coloniais.
Nessa perspectiva, a maioria dos estudiosos da questão pós-colonial acredita que o pós-
colonialismo, na verdade, diz respeito a uma ampla gama de experiências resultantes do contato
entre o europeu e as sociedades por ele colonizadas. Assim, o pós-colonialismo compreenderia
todo o convívio perpetuado no processo imperial, iniciado no começo da colonização e
estendendo-se até a independência política das nações subjugadas pelos países europeus.
Portanto, logo pode-se vislumbrar as complexas relações as quais estão inseridas no bojo do
pós-colonialismo.
Mata (2007), refletindo sobre a condição do pós-colonial, afirma:

O pós-colonial pressupõe, por conseguinte, uma nova visão da sociedade que


reflecte sobre a sua própria condição periférica, tanto a nível estrutural como
conjuntural. Não tendo o termo necessariamente a ver com a linearidade do
tempo cronológico, embora dele decorra, pode entender-se o pós-colonial no
sentido de uma temporalidade que agencia a sua existência após um processo
de descolonização – o que não quer dizer, a priori, tempo de independência
real e de liberdade, como o prova a literatura que tem revelado e denunciado
a internalização do outro no pós-independência (MATA, 2007, p. 39).

Dessa maneira, observa-se que o termo pós-colonialismo passa a denotar, segundo


Schmidt, “uma ampla gama de experiências políticas, culturais e subjetivas, que se deslocam
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no tempo (pré e pós-colonial) e se situam em diferentes lugares” (SCHMIDT, 2009, p. 137).


Diante disso, implicitamente o pós-colonialismo passa a significar um discurso de resistência,
como quando, para Thomas Bonnici (2005), o pós-colonialismo significa um posicionamento
contra o imperialismo e o eurocentrismo. Além disso, também é uma forma de resistência ao
colonialismo, permitindo uma investigação nas relações de poder desde a formação da colônia
até o período de emancipação política. Acrescentando a tudo isso, Leite (1998) conclui dizendo
que o pós-colonialismo pode ser entendido

como incluído todas as estratégias discursivas e performativas (criativas,


críticas e teóricas) que frustram a visão do colonial, incluindo, obviamente, a
época colonial; o termo é passível de englobar além dos escritos provenientes
das ex-colônias da Europa, o conjunto de práticas discursivas, em resistência
às ideologias colonialistas (LEITE, 1998, p. 11).

Embora as principais obras que os críticos apontam como pioneiras para a formação do
estatuto do pensamento colonial não tenham como propósito definir nem teorizar a respeito da
construção da teoria pós-colonial, é bastante razoável perceber como a discussão presente em
tais obras corporifica as relações de opressão entre colonizadores e colonizados, e como, de
certa forma, elas se tornam denúncias a respeito do processo imperialista e ao mesmo tempo
explicam a colonização pela voz dos oprimidos nesse processo.
Em 1978, Edward Said publicou a pioneira obra Orientalismo – para muitos a obra
inaugural do pós-colonialismo – na qual o escritor palestino reflete a questão de como a ideia
de Oriente foi de certa forma construída ao longo dos anos pelas narrativas Ocidentais,
sobretudo pelas europeias: “O Oriente era quase uma invenção europeia, e fora desde a
Antiguidade um lugar de romance, de seres exóticos, de memórias e paisagens obsessivas, de
experiências notáveis” (SAID, 1990, p. 13). Tais narrativas, segundo o autor, originaram uma
visão deformada do Oriente e, como consequência, legitimaram a empreitada colonialista, uma
vez que como o próprio autor menciona, “A relação entre o Ocidente e o Oriente é uma relação
de poder, de dominação, de graus variados de uma complexa hegemonia” (SAID, 1990, p. 17).
A teórica e crítica indiana Gayatri Chakravorty Spivak – um dos nomes pioneiros do
pós-colonialismo –, a partir da crítica à autonomia do sujeito subalterno como uma premissa
essencialista como fora pensado por Gramsci, apresenta discussões em seu livro Pode o
subalterno falar?, publicado pela primeira vez em 1985 no periódico Wedge e passaram a ser
de fulcral necessidade, uma vez que Spivak propõe uma espécie de redirecionamento da
representatividade. No decorrer da obra, a autora apresenta o sujeito subalterno, o qual é
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caracterizado como um sujeito que não tem voz política ou aquele que embora tenha voz, ela
não é ouvida, fazendo assim a necessidade da presença de um intelectual para abrir espaço de
fala para este sujeito. Outros aspectos importantes abordados no texto dizem respeito à violência
epistêmica imperialista exercida sobre sujeito subalterno e nas reflexões sobre o sujeito
subalterno feminino, pois como é argumentado pela escritora, as mulheres encontram-se numa
posição ainda mais periférica e profunda na subalternidade, uma vez que, de acordo com
Spivak, a mulher é um sujeito duplamente oprimido, pela dominação imperial na divisão
internacional do trabalho e pela dominação masculina na construção ideológica de gênero
(SPIVAK, 2010).
Outro texto fundamental para a construção inicial dos estudos pós-coloniais é o livro do
tunisiano Albert Memmi, Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador (1957).
Nele o autor argumenta como as inter-relações entre colonizador e colonizados se baseiam na
opressão. Essa é uma das obras clássicas que tratam sobre o colonialismo. O autor não limita
sua argumentação entre a luta de classes e aos aspectos econômicos, mas sim reflete sobre as
identidades e as relações estabelecidas entre colonizadores e colonizados e o papel
desempenhado por cada um deles dentro do drama colonial. O livro nos auxilia a compreender
as profundas relações entre colonizadores e colonizados para que a partir da tomada de
consciência reconheça-se a urgência da superação do pensamento colonial que normalmente
está presente nas ex-colônias.
Diante dos postulados de Said, Spivak e Memmi, verifica-se que o contato entre
colonizador europeu e o colonizado foi pautado sobretudo pela questão da opressão econômica,
física e cultural. Nesse sentido, a crítica pós-colonial – influenciada pelas ideias desses autores
– passa a denunciar e combater o legado do colonialismo.
Conforme argumenta Roland Corbisier (1977, p. 5), para que se possa entender o
colonialismo é preciso observar algumas categorias, as quais, segundo ele, são essenciais para
a compreensão desse processo histórico: a totalidade, a contradição, a alienação e a dialética. A
princípio é necessário aceitar o pressuposto de que a colonização é um fenômeno social e global.
Todos países colonizados tinham uma estrutura interna coesa, na qual os recursos naturais,
sociais e culturais, segundo o autor, representavam uma estrutura orgânica que é rompida com
a presença e permanência do invasor, como por exemplo, o extermínio dos nativos pelos
colonizadores e o apagamento de suas culturas e as formas de organização da sociedade.
De acordo com Corbisier (1977), após a ocupação territorial, estabelece-se a opressão
militar, com o uso das forças armadas, revelando a primeira face da repressão militar da
metrópole, a qual consegue o domínio e a exploração da estrutura política e administrativa,
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colocando os recursos naturais e a mão de obra local à sua disposição. É desse processo que
surgem as principais figuras do processo colonizador: o colonizador e o colonizado. É sobre
esses dois polos que Corbisier (1977) argumenta que vai se estruturar o país colonizado. Ambos
são sujeitos com constituições culturais e sociais divergentes, revelando nas palavras do autor
“dois mundos inteiramente diversos, totalmente heterogêneos e irredutíveis ao outro”
(CORBISIER, 1977, p. 06). Embora totalmente diversos, esses dois mundos deverão conviver
no mesmo espaço. Segundo o autor, feita essa nova totalidade, ela se estrutura sobre esses dois
polos que se opõem e se excluem mutualmente, uma vez que eles “representam interesses
antagônicos e irredutíveis” (CORBISIER, 1977, p. 06).
Diante disso, o filósofo argumenta que na primeira fase do colonialismo, o colonizado
não tendo condições de se revoltar, acaba se submetendo ao colonizador, colaborando com ele
para o domínio e exploração. Frisa também que não basta a superioridade militar e tecnológica
do colonizador, é preciso legitimar a colonização aos olhos do colonizado. Nesse sentido,
segundo Corbisier (1977), há uma necessidade de criar uma ideologia colonialista na qual
consistirá na figura de superioridade do colonizador e de inferioridade do colonizado, causando
uma série de tensões violentas, dentre elas, o racismo.
Corbisier expõe que após a propagação da ideologia colonial estabelece-se uma nova
totalidade, a qual tudo na colônia é colonial, ou seja, tudo existente na colônia se estrutura a
partir da empresa colonizadora, tudo acontece de acordo com os interesses da metrópole.
Fruto de uma totalidade constituída por interesses antagônicos, a princípio mascarada
por aquilo que o autor chama de “aparente e provisória acomodação do colonizado”
(CORBISIER, 1977, p. 06), o colonizador passa a ser visto como superior e provoca no
colonizado uma espécie de deslumbramento. Logo, o colonizado passa a imitá-lo, deixando-se
assimilar, e, nesse momento, ocorre a alienação, a qual é levada ao limite quando o colonizado
se torna, ele próprio, um colonialista. Exemplo disso é quando um colonialista se casa com
alguém da metrópole. Segundo Corbisier (1977), essa tentativa de assimilação não é efetiva,
por dois fatores: primeiro, não é possível que haja uma colônia sem colonizados; segundo,
conforme o autor, “Ora, mesmo essas tentativas individuais nunca são bem sucedidas, pela
simples razão de que o colonizador é francês e o colonizado árabe, e o árabe jamais poderá
deixar de ser o que é, quer dizer árabe, para tornar-se o que não é, quer dizer, francês”
(CORBISIER, 1977, p. 08).
Fruto da tensão superioridade e inferioridade, o racismo tenta justificar o domínio do
colonizador sobre o colonizado. Nesse sentido, aparecem as narrativas de que “o colonizado é
por ‘natureza’ ou por ‘essência’, incapaz, preguiçoso, indolente, ingrato, desleal, desonesto, em
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suma inferior” (CORBISIER, 1977, p. 09). Dentro dessa perspectiva, segundo o autor, o
racismo torna a assimilação impossível. Ao que se refere às colônias portuguesas, durante o
meados do século XX, a questão da assimilação diverge do posicionamento defendido por
Corbisier (1977), pois, em Portugal, a ditadura salazarista incentivou a política de assimilação,
baseando-se nas teorias de Gilberto Freire acerca do Lusotropicalismo.
Quando instituído a totalidade contraditória, compreende-se a categoria da dialética
colonial. Segundo Corbisier (1977), a ideologia do colonizador se mostra contraditória, uma
vez que na metrópole prega-se o bem estar social, a democracia e valores cristãos, ao passo que
na colônia, a opressão, a violência, o racismo são as ideologias de fato praticadas. Acrescenta-
se a isso, segundo o autor, o fato de a colônia não estar imune às transformações sociais
ocorridas em outros países, haja vista que na colônia existem jornais, revistas, televisão e outros
meios de comunicação que acabam informando e influenciando as populações colonizadas.
Diante de tal contexto, com o início da percepção da injustiça que envolve essas relações
sociais, com o descompasso entre a ideologia do colonizador na metrópole e na colônia, o
colonizado começa a tomar parte da privação da qual está sujeitado e tudo isso gera como
consequência um grande sentimento de revolta. Dessa forma, para Corbisier (1977), nessa
conjectura em que as possibilidades de transformações, as quais gerariam a emancipação
política e social do colonizado, estão intransponíveis, o que segundo o autor, gera a antítese
colonial, uma vez que “o colonizador representa a negação do colonizado e vice-versa, o
colonizado representa a negação do colonizador” (CORBISIER, 1977, p. 12).
Nesse sentido, para exemplificar a relação dialética colonial, Corbisier elucida que

A partir de então, o colonizado cuja a negação implicava a afirmação (negação


como ser humano) do colonizador, isto é, sua antítese na relação dialética, vai
empreender a negação da negação, quer dizer a afirmação de si mesmo, pólo
tético na relação. Ora, assim como no momento anterior, aceitava globalmente
o colonizador, recusando-se totalmente a si mesmo, agora passa a recusar
globalmente o colonizador e a aceitar e afirmar-se totalmente a si mesmo
(CORBISIER, 1977, p. 13).

Como consequência disso, para o filósofo, a tomada de consciência da situação a qual o


colonizado está acaba gerando uma inversão da ordem que até então estava posta dentro do
contexto colonial. O colonizador não é mais visto com admiração e sua figura desperta o ódio
no colonizado, o que resulta no surgimento de uma expressão nacionalista e xenofóbica. Diante
disso, Corbisier (1977) argumenta que “a única saída é a ruptura, a revolta, a luta contra o
colonizador até sua derrota definitiva, isto é liquidação definitiva do sistema colonial” (p. 14).
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Dessa forma, diante das manifestações de inconformismo e rebeldia, a máquina


colonialista demonstra sua face até então escamoteada, a violência. A brutalidade diante do
colonizado não tem limites e acaba gerando consequências para o subjugado que vão muito
além da dor física e com efeito reforça a ideia de que o colonialismo é uma doença incurável.

2. PERCURSO DA LITERATURA EM MOÇAMBIQUE

O que hoje é conhecido como República de Moçambique é resultado de um complexo


desenvolvimento histórico marcado sobremaneira por traços culturais advindos de diversas
culturas. Fundamentalmente, três culturas contribuíram para esse processo: os bantos, povos de
origem africana; os árabes que se instalaram na Ilha de Moçambique e mantiveram relações
comerciais com as tribos negras do continente e, por fim, os portugueses, após a chegada de
Vasco da Gama, em 1498.
A esse respeito, Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco (1999) faz uma revisão da história
de Moçambique e como essas culturas marcaram e ainda fazem-se presentes no imaginário
sociocultural moçambicano. De acordo com a autora, as origens da sociedade moçambicana
datam dos anos 200 ou 300, quando povos bantos se fixaram entre o lago Niassa e o oceano
Índico. A partir do século VII, esses povos bantos iniciaram suas relações comercias com os
árabes e povos orientais, trocando ouro e marfim por tecidos, miçangas, porcelanas e fundaram
o rico “Império de Monomotapa”. Já no final do século XV, atraídos pelo ouro, os português
desembarcam em Moçambique, expulsam os orientais e “não se preocuparam, logo, em
colonizar as terras conquistadas, pois seus interesses convergiam para a pilhagem das riquezas
naturais existentes nessas terras” (SECCO, 1999, p. 11). Com isso, adentraram ao interior na
busca de riquezas e acabaram por gerar conflitos com os nativos, destruindo diversas
populações, estabelecendo um grave conflito que perdurou por muito tempo.
A colonização portuguesa em Moçambique, até o ano de 1750, foi de exploração das
riquezas naturais, primeiramente com a exploração do ouro – 1505 a 1693 – e, logo após, com
o marfim – 1693 a 1750. A partir de 1750 até 1860, foi o tráfico negreiro. Com o fim da
escravatura em 1860, Portugal detém-se nas suas colônias africanas e intensifica sua ação
colonizadora, gerando uma série de conflitos com as populações nativas, ora mais, ora menos
acentuados que perdurariam até a independência de Moçambique em 1975.
Segundo Secco (1999), antes da efetiva ação colonizadora portuguesa em Moçambique,
a literatura ali existente era baseada nas tradições orais dos povos de origem banto. A partir do
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final do século XIX, com a fundação da imprensa e a imposição da língua portuguesa como
idioma oficial, surgem as primeiras manifestações literárias escritas na língua do colonizador.
Nesse sentido, Maria Nazareth Soares Fonseca e Terezinha Taborda Moreira (2007), em
consonância com Tania Macêdo e Vera Maquêa (2007), referindo-se aos percursos e ao
processo de formação da literatura moçambicana, dão destaque ao papel preponderante
desempenhado pelos jornais naquele contexto. Assim sendo, Fonseca e Moreira (2007)
argumentam que os jornais “desempenharam um papel importante na divulgação das ideias
contrárias ao colonialismo” (FONSECA; MOREIRA, 2007, p. 47), ao passo que Macêdo e
Maquêa (2007) dizem que as primeiras produções literárias em língua portuguesa em
Moçambique foram veiculadas pelos jornais, os quais explicitavam um aspecto típico da
situação colonial, as contradições advindas da assimilação.
Fonseca e Moreira (2007), ao contextualizarem o período anterior à independência dos
países africanos colonizados por Portugal, explicam a tensão provocada pela convivência de
duas realidade a qual o escritor africano estava inserido e não podia ficar alheio e como isso
reverberava em sua escrita. Nesse sentido, as autoras declaram:

[...]o escritor africano vivia, até a data da independência, no meio de duas


realidades às quais não podia ficar alheio: a sociedade colonial e a sociedade
africana. A escrita literária expressava a tensão existente entre esses dois
mundos e revelava que o escritor, porque iria sempre utilizar uma língua
europeia, era um “homem-de-dois-mundos”, e a sua escrita, de forma mais
intensa ou não, registrava a tensão nascida da utilização da língua portuguesa
em realidades bastante complexas. Ao produzir literatura, os escritores
forçosamente transitavam pelos dois espaços, pois assumiam as heranças
oriundas de movimentos e correntes literárias da Europa e das Américas e as
manifestações advindas do contato com as línguas locais. Esse embate que se
realizou no campo da linguagem literária foi o impulso gerador de projetos
literários característicos dos cinco países africanos que assumiram o português
como língua oficial (FONSECA; MOREIRA, 2007, p. 14).

Ao referirem a essa contradições provenientes da assimilação, Macêdo e Maquêa (2007)


argumentam que os textos bilíngues publicados no jornal O Africano (1908), durante o período
inicial da literatura produzida em Moçambique, demonstram em alguma medida a ambiguidade
proveniente do modo com que Portugal conduzia sua colonização, sobretudo ao que diz respeito
à política da assimilação, o que acabou resultando em um certo processo de aculturação,
fazendo com que os povos colonizados, paulatinamente, tivessem elementos da cultura do
colonizador inseridos em sua cultura, mas sem deixar de manter elementos culturais genuínos.
14

Dessa forma, Secco (1999), ao tratar dos efeitos da assimilação, coaduna com a
argumentação de Macêdo e Maquêa (2007). Diz a pesquisadora:

A colonização portuguesa em Moçambique tentou apagar as marcas culturais


encontradas nestas terras situadas na costa oriental africana, valendo-se de
uma política de assimilação que anulava as diferenças dos povos dominados,
levando-os a se portarem como “verdadeiros portugueses.” (SECCO, 1999,
p. 12).

Desse modo, os africanos não se sentiam nem europeus e nem africanos, haja vista que
a assimilação total é impossível, conforme a argumentação de Corbisier (1977). Nesse sentido,
jornais como O Africano (1908) e O Brado Africano (1918), dirigidos por assimilados, “foram
o palco para o surgimento das primeiras atuações de autores africanos para expressar essas
contradições e as primeiras necessidades de afirmação da cultura africana” (MACÊDO;
MAQUÊA, 2007, p. 18).
A língua é o palco por excelência da contradição referente à assimilação. O bilinguismo
presente nas produções literárias desse período dá a dimensão da pluralidade cultural e
linguística presentes em Moçambique. Nesse sentido, a língua do colonizador é ao mesmo
tempo uma grande aliada, como também um grande fator de opressão, pois as denúncias da
condição colonial, pelo intermédio da língua portuguesa, em comparação com as línguas
nativas, tem um alcance maior de possíveis leitores, como também se presta a marginalização
da identidade cultural dos nativos.
No final dos anos 1940 e início dos anos 1950, de acordo com Fonseca e Moreira (2007),
Moçambique viveu um período de afirmação de um projeto literário. Segundo Secco, com a
publicação do Jornal Cultural Msaho (1952), o qual teve tiragem de apenas um número, e que
defendia a criação de uma literatura voltada às questões genuinamente moçambicanas, dá-se
um novo paradigma da literatura desse país, marcada sobretudo pela denúncia da violência, do
racismo, do colonialismo e a exploração nas minas da África do Sul. Nessa perspectiva, de
acordo com Macêdo e Maquêa (2007), a partir dos anos 1950, nomes como os de João Dias,
Luís Bernardo Honwana, Orlando Mendes, José Craveirinha, Noémia de Souza, Rui Knopfli,
dentre outros, iniciam um movimento de tentativa de criação de um espaço literário nacional.
Desse forma, conforme as autoras, esses escritores “traziam entre a língua do colonizador e a
necessidade de moçambicanidade, uma fissura que seria um terceiro espaço da cultura, lugar
de contestação e construção de utopias” (MACÊDO; MAQUÊA, 2007, p. 18).
15

De acordo com Macêdo e Maquêa (2007), a literatura não se furtou testemunhar a


colonização e seus efeitos, bem como também testemunhou a luta armada pela libertação
nacional e a guerra após a independência, ocorrida em 1975. Todos esses eventos
inegavelmente deixaram profundas marcas no povo moçambicano. Segundo as autoras, mesmo
após a independência, ainda era forte o desejo por parte de muitos escritores moçambicanos a
afirmação de valores nacionais. Dessa forma, “a definição de um modo de fazer literatura
moçambicana acompanhava a necessidade de estabelecer uma nação” (MACÊDO; MAQUÊA,
2007, p. 18). É no contexto da pós-independência que nasce o conceito de moçambicanidade.
Após o término da guerra civil em 1992, ainda era preciso construir uma nação, como
outrora já havia sido pensando nas lutas de libertação nacional. Porém a pluralidade de culturas
presentes no território moçambicano advindos das variadas etnias, as quais constituem
Moçambique, tornavam ainda mais complexa essa tarefa.

3. AS MARCAS DE VIOLÊNCIA NO CONTO “DINA”, DE LUÍS BERNARDO


HONWANA

Luís Bernardo Honwana nasceu na cidade de Lourenço Marques, atual Maputo, em


1942. Logo após seu nascimento, sua família muda-se para o interior de Moçambique, retornado
para capital em 1959, período que o jovem Honwana passa a se dedicar ao jornalismo. É nessa
época que desenvolve amizade com o poeta José Craveirinha, não restrita apenas ao âmbito
literário, como também, ao político. Exemplo disso é quando ambos são presos em 1964, ano
do início da Guerra da Independência, também conhecida como Luta Armada de Libertação
Nacional – conflito armado para libertar Moçambique do regime opressor colonial português.
Honwana e Craveirinha fizeram parte da FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique –
razão pela qual foram presos.
Também em 1964, Honwana, com 22 anos, publica seu único livro, Nós Matamos o Cão
Tinhoso. Essa antologia de contos o colocou como um dos nomes mais importantes da literatura
de seu país. Em seu livro, Honwana mostra-se como um indivíduo comprometido com a
emancipação política, pois nele dá voz aos oprimidos, aos subalternizados pela colonização
europeia, denunciando a violência e os males advindos da colonização.
Nós Matamos o Cão Tinhoso, a partir da edição de 1980, é composto por sete contos:
“Nós Matamos o Cão Tinhoso”, “Inventário de Imóveis e Jacentes”, “Dina”, “A Velhota”,
“Papá, Cobra e Eu”, “As Mãos dos Pretos” e “Nhinguitimo”. Em todas essas narrativas, é
retratado o contexto opressor vivido pelos moçambicanos durante o período colonial, revelando
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o questionamento da realidade social vigente. Para tanto, é enfatizado aspectos como a violência
material e simbólica, o racismo e todo tipo de injustiças sociais e econômicas, as quais era
submetida a população moçambicana. Nesse sentido, ao se referirem ao livro Nós Matamos o
Cão Tinhoso (1980), Macêdo e Maquêa (2007) dizem que ele é “considerado como o livro que
emancipa a narrativa com relação à poesia na literatura moçambicana, traz, nos contos que
compõem esse livro, acentos muito marcados pela política tensa do país” (MACÊDO;
MAQUÊA, 2007, p. 32). Corroborando as ideias das autoras, Santilli (1985) acrescenta que
com o livro de Honwana, a ficção de moçambicana deu “novos passos em direção à maturidade”
(SANTILLI, 1985, p. 29). A esse respeito Fonseca e Moreira (2007) argumentam que

Nós matámos o cão tinhoso, de Luís Bernardo Honwana (1980), trata de


questões sociais como a exploração e a segregação. Na sua totalidade, as
narrativas de Honwana denunciam as forças produtivas em jogo, o
autoritarismo do Estado colonial, a opressão exercida pelas instituições de
poder e pelo seu aparelho ideológico. Além disso, evidenciam certos aspectos
de conscientização social e de classe de determinadas personagens
(FONSECA; MOREIRA, 2007, p. 49).

Dos sete contos presentes no livro, nos deteremos a observar como se dão as
manifestações da violência e suas nuances dentro do contexto do colonialismo, tendo com
objeto de pesquisa o conto “Dina”, de modo a observar as flagrantes denúncias das injustiças
sociais, econômicas e raciais ocorridas naquele período e, com isso, motivando o uso da
violência e do preconceito contra os colonizados.
O conto “Dina” é narrado em terceira pessoa, o único do livro com esse foco narrativo.
Nele o narrador nos apresenta um dia de trabalho na machamba, cujo significado em língua
banto é campo para lavoura. De modo neorrealista, o conto inicia-se com a descrição das
precárias e desumanas condições de trabalho a qual está sujeito a protagonista, o velho Madala.

Dobrado sobre o ventre e com as mãos pendentes para o chão, Madala ouviu
a última das doze badaladas do meio dia. Erguendo cabeça, divisou por entre
os pés de milho a brancura esverdeada das calças do capataz, a dez passos de
distância. Não ousou endireitar-se mais porque sabia que apenas devia largar
o trabalho quando ouvisse a ordem traduzida num berro. [...]
O sol estava mesmo em cima do seu dorso nu, mas convinha suportar um
pouco mais. Contou o tempo pelo número de gotas de suor que lhe pingavam
pela ponta do nariz para um pedrinha que brilhava no chão. [...]
A dor de rins era-lhe insuportável, e muito pior agora que já tinha tocado o
dina. Quando os músculos do pescoço lhe começavam a doer pela torção a
que os submetia, mantendo a cabeça erguida, deixou cair os braços até tocar
nas folhinhas carnudas e escorregadias das ervas que devia arrancar
(HONWANA, 1980, p. 40).
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Fica evidente o posicionamento do narrador ao valer-se de um acentuado descritivismo,


marcado por uma nítida denúncia do abuso de poder por parte do capataz. No contexto da
colonização, ele representa o poder colonial e, no presente conto, é um homem branco, como
atesta o trecho: “Por que é que o branco não manda largar? – Murmurou Madala” (HONWANA,
1980, p. 42). O feitor, de maneira arbitrária, prolonga o tempo, demorando a liberar os
trabalhadores para o dina - em fanagalô, língua crioulo das minas da África do Sul, hora do
almoço –, abusando do seu poder nitidamente para massacrar os colonizados.
Apesar do distanciamento evocado pela escolha da perspectiva narrativa a qual o conto
está centrado, o que confere ao narrador uma aparente imparcialidade frente aos personagens e
as ações narradas, em alguns episódios percebe-se certa empatia do narrador ao solidarizar-se
com determinados personagens, ao passo que em relação a outros o distanciamento é verificado.
Isso faz com que o narrador posicione-se político-ideologicamente frente à exploração colonial.
As condições de trabalho na machamba eram tão degradantes e insalubres que em
determinado momento da narrativa Madala, após arrancar mais uma planta, assim que suas
raízes desprenderam-se do chão, encontra um escorpião. Nesse instante o protagonista,
assustado, pensa que “se fosse mordido por aquele escorpião teria dores horríveis durante três
dias e talvez morresse no quarto” (HONWANA, 1980, p. 41). Outro episódio do conto que
coaduna aos perigos provocados por animais peçonhentos na machamba e reforça a ideia de
insalubridade do trabalho, é quando Madala recorda que “O Pitarrossi morrera mordido por
uma cobra que o atacara quando trabalhava naquela machamba” (HONWANA, 1980, p. 42).
Logo em seguida o capataz finalmente chama os trabalhadores para almoçar. Eles
seguem o capataz em silêncio, chegando ao acampamento, lá encontram os outros grupos,
resultantes da divisão do trabalho. Existiam além do grupo da machamba, o
grupo do desbravamento, o grupo da horta e o grupo do curral. Madala escolheu um local com
sombra, próximo aos trabalhadores do curral. Ao aproximar-se eles interrompem o que estavam
falando em forma de reverência a presença de Madala. Logo em seguida, um rapaz começou a
perguntá-lo como eram as condições de trabalho na machamba, se fazia muito calor, sobre as
brutalidades feitas pelo capataz e toda sua crueldade e logo começa a declarar: “– O branco é
mau ... – continuava o rapaz. – Ele demora muito a mandar largar ... Eu vi isso quando
trabalhava na machamba ... Também não deixa as pessoas endireitarem-se por um bocado para
descansarem as costas” (HONWANA, 1980, p. 44).
Nota-se nessa passagem alguns aspectos relevantes para a contextualização do texto ao
que diz respeito à violência. Os trabalhadores da machamba em nenhum momento questionam
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a decisão do capataz em retardar o início do dina, possivelmente por medo de serem


penalizados, e nem mesmo conversam entre si, mostrando claramente a opressão que a figura
do capataz exercia naquela conjectura. A fala do rapaz do grupo do curral endossa a crueza
física e psicológica imposta aos trabalhadores da machamba.
Posteriormente a fala do rapaz do grupo do curral, aparece a personagem Djimo que
chama Madala para comer, mas na verdade ele leva a protagonista ao encontro de Maria, filha
do próprio Madala, em um local distante do capataz. O narrador supõe que Djimo nutre algum
sentimento por Maria, apesar da protagonista não acreditar na possível relação entre eles: “O
Djimo parecia gostar muito da Maria, mas o velho sabia que, como ela dormia com muitos
homens, ninguém queria casar com ela” (HONWANA, 1980, p. 45).
Madala e Maria conversam enquanto os homens do acampamento olham para moça de
forma lascívia. Djimo insiste com Madala para ir comer, uma vez que n’Guiana e Muthakati
acabaram de fazer o almoço. Nesse instante aparece o capataz com um cigarro na mão:

– Madala, não queres vir comer? – Era outra vez o Djimo. – Agora é mesmo
para comer porque o n’Guiana e o Muthakati já acabaram de fazer a comida.
– Eu fico aqui com a minha filha, Djimo.
O capataz surgiu da esquina do celeiro e aproximou-se com um cigarro na
mão:
– Olá, Maria! O que é que vieste cá fazer? Estás a engatar o Madala?... Ao
Madala não deve ser porque está muito cocuana ... Talvez seja ao Djimo...
Maria, tu estás a engatar o Djimo?...
– Eu não está engatar Djimo... – respondeu Maria, tentando falar em
português.
[...]
– Mas tu não gostarias de dormir com ele? Hein?
De olhos postos no chão, Maria não respondeu. O capataz afastou-se sorrindo
(HONWANA, 1980, p. 46).

A partir desse momento da narrativa nota-se como a presença do capataz, homem


branco, representante dos privilégios europeus em um sistema colonial, é visto como uma
constante ameaça, sobretudo pela forma violenta de agir. Isso se torna visível no zelo que Djimo
tem ao fazer que Maria não seja vista pelo capataz, receando que esse pudesse cometer qualquer
ato de violência contra ela. Mesmo com todo esse cuidado, o capataz vê Maria e vai ao seu
encontro. Nessa cena é revelado todo desprezo que o capataz, e por extensão, todo colonizador
tem em relação aos colonizados. Ao insinuar que Maria estava ali para ter relações com o
Madala, o capataz ofende toda uma tradição cultural africana a qual vê nos velhos os sinais da
ancestralidade, da sabedoria e por isso, são tratados com deferência, como pode ser visto na
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forma que Madala é tratado pelo grupo do curral. No final da cena, o capataz sai sorridente,
debochando das personagens, demonstrando não ter nenhum respeito a eles.
Logo depois da saída do capataz após ofender Maria, Madala e Djimo, esse último
insiste mais uma vez para Madala ir almoçar, dessa vez com a ajuda de Maria. A protagonista
diz que está “sem fome na barriga” e pergunta se Maria já comeu. Ela responde que comera em
uma cantina antes de vir ao seu encontro. Nesse momento há um corte temporal na narrativa e
no próximo parágrafo já nos é descrito Madala almoçando, partindo o coi – ração de farinha de
milho cozida – e o molhando no m’tchovelo – molho. Segundo o narrador, do ponto que Madala
estava podia ver sua filha num celeiro, mas não viu quando o capataz chegou novamente. Maria
e o capataz conversaram por instantes, logo em seguida o capataz sai do celeiro e pouco depois
Maria o segue.
Madala termina a refeição e procura um lugar para descansar, pois ainda havia algum
tempo até retornar para a machamba. Sem encontrar um local, ele volta-se para onde estava e
ouve do jovem do curral, de forma irônica, que sua filha estava ali atrás conversando com o
branco. O narrador nos diz nesse instante que o protagonista sente uma planta em sua perna
esquerda, a enrola na mão e a puxa com determinação. A planta “depreende-se da terra com
uma explosão surda” (HONWANA, 1980, p. 48). O capataz avançava no caminho que levava
machamba e Maria ia logo atrás:

O velho seguiu o par com a vista. Procurou no chão algo que não encontrou.
Os dedos cerraram-se-lhe em volta de uma planta imaterial. [...]
A planta que Madala segurava na mão oferecia ao seu esforço uma resistência
exagerada. Por isso o punho de Madala tremia (HONWANA, 1980, p. 49).

Nesse ponto da narrativa vê-se que a protagonista tenta conter seu descontentamento,
sua fúria, em um gesto de autocontrole, emprega toda sua revolta, sua raiva, suas forças em seu
punho. Nesse sentido, Madala sabia que qualquer tipo de revolta contra o capataz seria uma luta
perdida, pois talvez aquele não fosse o momento mais oportuno. Tudo isso ratifica a ideia de
que os mais velhos, na cultura africana, são sinônimos de sabedoria, pois para ele aquele
momento deveria agir com temperança.
Após a cena da fúria reprimida de Madala, a tensão da narrativa vai aumentando.

O homem mergulhou na machamba. Momentos depois a Maria agitou os


braços, apoiou-se aos frágeis pés de milho e acabou por desaparecer também.
No sítio por onde ela submergiu, as folhas do milho agitaram-se por um
pedaço, mas depois a ondulação desapareceu. [...]
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Na confusão verde do fundo da machamba, Maria não viu o capataz


imediatamente. Esbracejou com aflição, tentando liberar as pernas. Um braço
rodeou-lhe os ombros duramente [...]
A capulana da Maria desprendeu-se durante a breve luta e a sensação fria de
água tornou-se-lhe mais vívida. Um arrepio fê-la contrair-se.
Sentiu nas coxas nuas a carícia morna e áspera dos dedos calosos do homem
(HONWANA, 1980, p. 49-50).

O ponto de maior violência e selvageria no conto é o abuso sexual sofrido por Maria. A
filha de Madala ao seguir o capataz pela machamba não imaginava o trágico desfecho da
situação. Apesar de já ser de conhecimento de todos e até do próprio pai que Maria se prostituía,
o capataz vale-se da força e do poder conferido a ele pelo colonialismo para brutalmente
dominar a filha da protagonista após uma breve luta, na qual a vítima não teria a mínima chance
de fuga. O capataz acaba violentando-a.
Nesse meio tempo, Madala esmagava uma a uma as folhas da planta imaginária
enquanto chorava. Na machamba, Maria e o capataz tem uma discussão. Ela o questiona porque
ele fizera aquilo ali, naquela hora, pois eles estavam ali para combinar de encontraram-se à
noite. Os dois voltam da machamba, o capataz traz o pagamento a Maria. Ela não faz intenção
de receber. O capataz questiona o porquê dela não querer o dinheiro e a questiona se ela tem
medo que os rapazes descubram que ela é uma prostituta. Maria o responde dizendo que Madala
viu. O capataz fica sem entender a argumentação da jovem. A violentada revela que Madala é
seu pai. O capataz fica surpreso e sai.
Inicia-se nesse instante outro momento de grande tensão da narrativa: há uma forte
carga de violência quando o capataz volta e traz consigo uma garrafa de vinho.

– Eh rapazes – a sua voz era firme. Encarou o acampamento e berrou: – Vamos


trabalhar que já são horas! – Vamos trabalhar que já passa da uma e meia! [...]
Os homens do acampamento continuaram imóveis. Então, rapazes?! Não
ouviram?... Já tocou! Acabou o dina! – O capataz gritava com uma irritação
crescente. Olhou para a garrafa que tinha na mão: - Madala!...
Madala levantou-se e aceitou a garrafa que lhe era estendida.
– Cabrões! Cachorros! Pró trabalho, cachorros!
Todo o acampamento olhava para Madala. O jovem do grupo do curral
avançou um passo:
– Madala! (HONWANA, 1980, p. 52).

A tensão dessa passagem fica explícita quando o capataz ordena aos trabalhadores
voltarem ao trabalho e esses não o obedecem. O capataz em um acesso de raiva desfere insultos
racistas, pois ao comparar os trabalhadores a um animal que não tem direito algum, ele
implicitamente coloca os colonizados no mesmo patamar que bichos, ou seja, sem nenhum
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direito, roubando sua dignidade e humanidade. A situação vai ficando mais tensa quando o
jovem do grupo do curral dá um passo à frente. Fica por eclodir um conflito entre colonizadores
e colonizados e Madala poderia enfim extravasar toda sua fúria reprimida:

Madala relanceou o olhar pelas fisionomias ansiosas que o cercavam. A


garrafa estava toda suada e o vinho era de um amarelo sujo, avermelhado.
Bebeu-o de uma única vez, deixando que uma boa parte molhasse as barbas e
lhe escorresse pelo pescoço. Depois devolveu a garrafa ao capataz.
– Filhos da puta! Pró trabalho, já disse!...
O jovem do grupo do curral cuspiu para os pés de Madala:
– Cão!
O velho desconheceu o insulto. Voltou-lhe as costas e tomou o caminho da
machamba. O n’Guiana e o Filimone seguiram-no.
O Djimo voltou-se para os outros trabalhadores:
– Vamos... (HONWANA, 1980, p. 52-53).

Nesse instante da narrativa, no aceite do vinho ofertado pelo capataz à Madala, revela-
se uma dubiedade na relação dessas personagens. Após o estupro e a revelação de que a
protagonista é o pai de Maria, o capataz toma a atitude de lhe oferecer uma garrafa de vinho
como uma espécie de acordo, o qual o Madala aceita e não revida a agressão sofrida por sua
filha, pondo fim a qualquer expectativa de sublevação. A princípio, agindo assim, a protagonista
se colocaria em uma posição específica de colonizado, mas com outras características dentro
das relações de poder da lógica colonial: sugerimos que Madala, com sua atitude de prévio
acordo, assume uma posição de assimilado, o que talvez pudesse lhe garantir algum tipo de
benefício dentro da estrutura dessa sociedade. Essa demonstração de ausência de
ressentimentos nas relações entre ele e o capataz causa uma grande frustação em todos ali
presentes, evidenciado na atitude do jovem rapaz, companheiro de trabalho do Madala, cuspir
nos pés da protagonista.
O conto é finalizado com a descrição de Madala trabalhando na machamba como de
costume, arrancando um arbusto e colocando-o no chão. Ele então percorre com o olhar a
plantação, vê alguns companheiros por perto, dá um suspiro rouco e volta ao trabalho. Assim
termina a narrativa.
“Dina” é perpassado pela temática da violência. Em determinados momentos essa
violência é clara e flagrante, em outras ela está mais diluída. Ao estar intimamente ligado ao
contexto histórico-social, o conto trata da coisificação da pessoa, exemplificando como os
colonizadores tratavam os colonizados, de forma a bestializá-los, animalizá-los, retirando-lhe
sua dignidade, como também sua humanidade.
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Nesse sentido, Memmi (1977) esclarece que um traço das sociedades colonizadas se
refere “as relações humanas [que] resultam de uma exploração tão intensa quanto possível,
fundam-se na desigualdade e no desprezo, garantidas pelo autoritarismo” (MEMMI, 1977, p.
64). Tal aspecto fica evidente em “Dina”, sobretudo nas ações praticadas pelo capataz que ali
representa a empresa colonial. Ainda sobre as selvagerias práticas pelo capataz,
metonimicamente representando o poder da Metrópole, Jean Paul Sartre, em prefácio da
seminal obra Os Condenados da Terra (1968), de Frantz Fanon, elucida como a violência é o
meio pelo qual se conduz a relação colonizador-colonizado. Nas palavras do crítico francês, “A
violência colonial não tem somente o objetivo de garantir o respeito desses homens subjugados;
procura desumanizá-los. Nada deve ser poupado para liquidar as suas tradições [...] é preciso
embrutecê-los” (SARTRE, 1968, p. 9).
Dessa forma, ao considerar o conturbado momento de publicação, 1964, Honwana faz
de seu livro uma arma de combate contra o colonialismo. Nele o autor denuncia as mazelas do
sistema colonial português, desnudando as relações opressivas que estão expostas a sociedade
moçambicana pelo julgo lusitano. Nós Matamos o Cão Tinhoso, é um manifesto contra tudo
aquilo que o colonialismo representa. Seus contos traduzem toda a tensão pré-guerra de uma
sociedade que não suporta mais o autoritarismo, os desmandos coloniais, a arbitrariedade, a
exploração, a violência e todas formas de injustiças e opressões as quais são impostas aos
moçambicanos, restando a eles apenas a revolta contra o sistema colonial e, por conseguinte, o
conflito armado em busca daquilo que nunca deveria ser subtraído de nenhum individuo: sua
dignidade, humanidade e liberdade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao denunciar as mazelas provocadas pelo colonialismo, os estudos pós-coloniais


possibilitaram a desconstrução de uma série de preconceitos historicamente construídos. Os
sujeitos, até então subalternizados, ao revelarem as injustiças do sistema colonial, expõem os
traumas e as mais variadas sequelas que marcaram profundamente as sociedades colonizadas.
As produções literárias como “Dina”, são testemunho da crueza do processo colonial.
Madala e Maria representam todos sujeitos colonizados, ao serem vítimas das mais variadas
formas de violência, ele são inferiorizados, animalizados e desumanizados, demostrando o
desprezo do colonizador pelo colonizado. Honwana utiliza seus contos como arma para
combater a opressão colonial, questionando a ordem estabelecida até aquele momento. Ao
denunciar as variadas formas de violência e opressão praticadas pela Metrópole, o autor faz
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ecoar para além das fronteiras da colônia as condições degradantes de vida de seres humanos
cuja até o direito à humanidade lhes foi negado.
Cabe a literatura, alinhada aos princípios dos estudos pós-coloniais, denunciar o
colonialismo, expor sua verdadeira face: a violência, a opressão, o racismo e a desumanidade.
Para assim, promover a conscientização a respeito do continente e do povo africano, suas
singularidades de modo a desfazer os estereótipos historicamente construídos.

REFERÊNCIAS

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língua portuguesa. Belo Horizonte: PUCMinas. Série Ensaios, n. 16, p. 13-69, set. 2007
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24

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portuguesa do século XX: Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau. UFRJ, 1999.
SCHMIDT, Simone Pereira. Onde está o sujeito pós-colonial?: (Algumas reflexões sobre o
espaço e a condição pós-colonial na literatura angolana). In: Abril - Revista do Núcleo de
Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, v. 2, 2009. p. 136-147
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução Sandra Regina Goulart
Almeida, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.

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