Você está na página 1de 168

DANÇA DE GUERRA

arquivo e arma
(Elementos para uma Teoria da Capoeiragem
e da Comunicação Corporal Afro-Brasileira)
Julio Cesar de Tavares

DANÇA DE GUERRA
arquivo e arma
(Elementos para uma Teoria da Capoeiragem
e da Comunicação Corporal Afro-Brasileira)

Belo Horizonte - 2013


Copyright © 2012 by Julio Cesar de Tavares
Todos os direitos reservados

Coordenação Editorial e Revisão


Iris Amâncio

Projeto Gráico
Luís Carlos Gá

Editoração
Dorys Marinho e Iris Amâncio

_______________________________________________________________

Tavares, Julio Cesar de


T231d Dança de guerra - arquivo e arma: elementos para uma Teoria da
Capoeiragem e da Comunicação Corporal Afro-brasileira / Julio
Cesar de Tavares – Belo Horizonte: Nandyala, 2012.
168 p.
ISBN978-85-61191-78-8
1. Sociologia do Corpo 2. Antropologia Afro-brasileira
3. Performance Negra 4. Comunicação Não-verbal I. Título

CDD 390
CDU 394.3
_______________________________________________________________
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a expressa autorização da Nandyala Editora.

Nandyala Livros e Serviços Ltda.


Av. do Contorno, 6.000 – Lj 01 – Savassi
30.110-042 – Belo Horizonte – MG
Contatos: Tel.: (31)3281-5894
nandyala@nandyalalivros.com.br www.nandyalalivros.com.br
Ao meu pai e à minha mãe,
dedico este trabalho.
SUMÁRIO

À GUISA DE PREFÁCIO ................................................................... 9

APRESENTAÇÃO .............................................................................. 13

INTRODUÇÃO .................................................................................. 21

CAPÍTULO I – REDESCOBERTA DO CORPO


E PÓS-MODERNIDADE................................................................... 33
A redescoberta do corpo .............................................................. 38

CAPÍTULO II – CORPO E SIGNO ................................................... 47

CAPÍTULO III – ESqUEMAS CORPORAIS E SOCIEDADE ...... 55

CAPÍTULO IV– RESISTÊNCIA NEGRA E SABER CORPORAL ... 71


Capoeira e liberdade .................................................................... 71
A cultura da Diáspora africana..................................................... 78
O saber corporal .......................................................................... 82

CAPÍTULO V – CAPOEIRAGEM, VADIAÇÃO, ..............................


MALANDRAGEM .............................................................................. 87
Por que Capoeira? ....................................................................... 89
Capoeiragem e a formação discursiva não verbal .......................... 92
Unidade 1 – A Roda .................................................................... 94
Unidade 2 – O Jogo e a Ginga ................................................... 97
As características estilísticas.......................................................... 97
A Ginga é a pauta ........................................................................ 99
Unidade 3 – O Corpo ................................................................. 101
Sintetizando: o corpo como signo ............................................... 105
Unidade 4 – O Berimbau ............................................................ 110
Esboço de história da Capoeira .................................................... 114
O período Imperial ..................................................................... 114
O Período Republicano ............................................................... 119
A biopolítica do Estado Nacional Brasileiro ................................ 123

PROSPECTIVA ................................................................................... 131

BIBLIOGRAFIA ................................................................................. 141

POSFÁCIO .......................................................................................... 157

ÍNDICE ONOMÁSTICO .................................................................. 159


Dança de Guerra - arquivo e arma

à GUISA DE PREFÁCIO

A Capoeira é jogo – jamais, exclusivamente, esporte,


defesa pessoal, espetáculo, o que quer que lhe atribuam. Este
é um princípio a se estabelecer como um ponto de partida:
essa atividade de origem negro-brasileira é marcada por uma
funcionalidade artística e cultural, que não deve ser entendida
como um conjunto de “funções aplicativas” (como o artesanato,
por exemplo), e sim como funcionalidade psicológica com um
valor intrínseco próprio, de natureza ética, histórica, mítica,
terapêutica etc.
Neste Dança de Guerra, um dos primeiros trabalhos
de relexão acadêmica sobre a Capoeira, Júlio César de Tavares
acrescenta a esse “valor intrínseco” a corporeidade como uma
dimensão singular, capaz de conter história, mito, terapia, ética
e o que mais caiba. É uma dimensão importante de se frisar,
porque a pergunta freqüente sobre a identidade desse jogo – ou
seja, o que é mesmo Capoeira –, não tem resposta automática.
Mas a corporeidade é um ponto de partida seguro.
A nosso ver, não importa muito airmar que a Capoeira
carioca tem origens diferentes da dos baianos. Asseverar, por
exemplo, como um antigo praticante, que “a nossa vem daqueles
capoeiras que brigavam aí na frente dos políticos, no abre-alas.
Era outra coisa, era briga, não espetáculo, luta de demonstra-
ção. Era arte marcial mesmo, dentro daquele espírito da época.”
Isto é rigorosamente verdadeiro quando se pensa no papel que

d 9o
Julio Cesar de Tavares

tiveram os capoeiras do Rio em conlitos históricos, nas lutas


das maltas no século XIX ou, posteriormente, nos malandros
que, seja no bairro da Lapa ou nos morros, mestres da navalha,
enfrentavam os policiais.
No entanto, o que aí não está dito é que a mesma saga de
tropelias e valentia pode ser narrada a propósito dos capoeiristas
de outrora em Pernambuco ou na Bahia. Em Salvador, na beira
do Cais do Ouro (um dos pontos estratégicos citados nos pla-
nos da rebelião dos Malês em 1835), nos arredores de grandes e
pequenos portos, faziam presença os mestres da “brincadeira” e
da pancada. “No mar iam parar muitas vezes vitimados por ter-
ríveis cabeçadas os membros das patrulhas policiais que, mesmo
de sabre nas mãos, tentavam enfrentar os capoeiristas. Quando
a chegada da cavalaria modiicava a situação, os saveiros cos-
tumavam ser um bom refúgio”. E do mesmo modo que no Rio
de Janeiro, a navalha ou a faca tinham os seus mestres, já que a
Capoeira não previa agarramento.
O que tem mesmo icado patente é que, em meio à pro-
liferação dos esportes marciais de todos os quadrantes, sobre-
tudo os orientais, a Capoeira continua atraindo um número
enorme de jovens de todas as idades e de sexos diferentes. Mais
do que nunca, aliás. No Japão, na China, em Israel, em países
da África negra e da Europa, a Capoeira dissemina-se com um
entusiasmo comparável ao mesmo com que costumam ser rece-
bidos o futebol e a música popular do Brasil.
Por que isto ocorre? Possivelmente, porque ainda está
apenas no começo a compreensão da corporeidade de que fala
Júlio César de Tavares nesta Dança de Guerra. A Capoeira é um
jogo com aspectos singulares que se prestam a uma universal-
ização. E isto tem a ver com os caminhos que ela abre para o
saber corporal. Nela, a violência transmuda-se num ludismo
que envolve dança, ritmo, canto, toque, improvisação, além do
pano-de-fundo histórico e mítico da airmação existencial do
povo negro no contexto do escravagismo e do racismo de domi-

o 10 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

nação, presentes em momentos diversos da sociedade brasileira.


É, ademais, um jogo que se autonarra, isto é, conta o
tempo todo a sua própria história. Divisa-se, aí, algo de criativa-
mente educacional, porque se está apelando para a possibilidade
de narrar toda a história e a cultura de um povo (o africano e sua
diáspora), já que faz parte da Capoeira o espírito de reverência
e de veneração aos mais velhos ou aos ancestrais do jogo. Tudo
isso constitui uma possibilidade poderosa quando se considera
a atração que o corpo-capoeira exerce sobre os jovens. Dança de
Guerra é isso aí.

Muniz Sodré

d 11 o
Dança de Guerra - arquivo e arma

APRESENTAçãO

Passaram-se quase trinta anos desde quando o primeiro


manuscrito deste livro foi escrito. Naquela época, me diziam que
o tema não ajudaria o livro a se tornar vendável. Isto me conduziu
a fazer com que os originais circulassem. Primeiro, de mãos em
mãos, depois, on-line e em múltiplas direções, entre diversos
grupos e em diferentes países. Depois de todo esse tempo e
impulsionado por inúmeras indagações por não o ter publicado,
decidi, então, fazê-lo. E agora.
O fato é que, com este trabalho, a Capoeira ingressa na
universidade brasileira como peça de pesquisa de pós-graduação
no programa de Mestrado em Sociologia, na Universidade de
Brasília, em 1984. Interrompe-se o vazio e a Capoeira instala
sua presença na academia. Assim, as condições estavam abertas
para que a Capoeira fosse discutida, reletida e historicizada no
ambiente universitário. Os ventos soprados na direção multi-,
inter- e transdisciplinar, na fase da abertura democrática,
arejavam os horizontes da congelada academia e motivaram-
me a encontrar argumentos plurais, que elevassem a Capoeira à
categoria de evento “bom para se pensar”.
Os frutos dessa empreitada permanecem até hoje
com trabalhos elaborados por pesquisadores que imprimem
continuidade, constituem novos objetos e exploram novas
fronteiras desse novo campo de pesquisas emergente, que abraça
tanto as Ciências Sociais, Humanas e Aplicadas quanto as áreas

d 13 o
Julio Cesar de Tavares

de Saúde. São incontáveis os pesquisadores que, no Brasil e no


Exterior, se dedicam a essa tarefa e, se fosse citá-los, inevitavelmente,
incorreria em omissão. Parabenizo todos pelo incessante trabalho
e pela preservação da amizade e reconhecimento entre os
praticantes e mestres desta transcontinental e tricentenária arte de
mandingar, malandrear, dissimular: Iêêê !
Com a efetiva publicação deste livro, o que realmente faço é
tornar o resultado ainda mais público daquele que foi meu primeiro
trabalho de pesquisa de campo e mostrar minha reverência aos que me
ajudaram, acompanharam e abriram as portas para meu apaixonante
e iniciático processo. Período em que percorri Salvador, Brasília e
Rio de Janeiro, para acompanhar a explosão da Capoeira nos anos
1980, a formação de boa parte dos grandes mestres de hoje e dos
grandes mestres de outrora. Minha gratidão ao Mestre João Grande
e Mestre João Pequeno, Mestra Edna, Mestre Tabosa, Mestre Zulu,
em Brasília. Depois de concluído o trabalho, meus agradecimentos
e admiração contraída por aqueles de quem, na gira da Capoeira,
fui me aproximando e deles obtendo comentários sobre o trabalho:
Mestre Camisa, Mestre Garrincha, Mestre Gil Velho, Mestre Gato,
Mestre Moraes, Mestre Cobra Mansa, Mestre Peixinho e todos os
outros Mestres que a minha curta memória me impede de citar. A
todos vocês, meu muito obrigado pelo acolhimento.
Para esta publicação, preservei a maior parte do manuscrito
original. As mudanças efetivadas são aquelas necessárias para
o trabalho editorial, sem quaisquer alterações de natureza
argumentativa ou conceitual. Dito isto, as deinições de época,
argumentos e o trabalho de geração de conceitos, desenvolvido
aqui, foram preservados dentro do pensamento inicial, para
o(a) leitor(a) avaliar se é uma obra datada ou de qualquer
contemporaneidade. O que realmente atualizei foram as notas
de rodapé, complementei as informações, que tornam o corpo
do texto mais adequado, e imprimi mais precisão às referências
da época. Acrescento informações bibliográicas aos argumentos,

o 14 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

para melhor posicionar a discussão semiótica que introduzi, mas


que não passava de intuição na época e não se encontrava em um
nível suiciente de esclarecimento no original. Propositadamente,
não alterei o debate sobre a Corporeidade, que ganhou novos ares
a partir dos anos 1990, tampouco aprofundo a discussão sobre
consciência corporal, temas que serão objetos de outro livro. Novas
notas de rodapé foram criadas, para ampliar a sustentação do texto.
Torna-se relevante alertar que, para além da pesquisa e do
título acadêmico, minhas metas, naquela ocasião, eram também
outras. Por um lado, desejava incluir, na agenda do debate
acadêmico, a relexão sobre um acontecimento de potência
universal, elaborado em território brasileiro e com forte marca
intercultural das inúmeras etnias africanas. Em si mesmo, este já
era um signo, que implicava um efetivo combate contra um certo
desdém colonial reinante na academia. Por outro lado, desejava
realizar um acerto de contas como desaio político dos anos
1970, que me conduziu ao engajamento na luta pelas liberdades
democráticas. Com os ventos da abertura naqueles anos 1980,
minha atenção se deslocara da universalidade da democracia para
a singularidade dos estudos críticos da cultura, com foco voltado
para as performances afro-brasileiras. O objetivo era compreender,
em perspectiva comparada, tanto a exclusão étnico-racial – com
relevante expressão na biopolítica dos regimes de poder no Brasil
Republicano –, quanto o lugar do Brasil no contexto da diáspora
africana e as políticas cognitivas daí advindas.
Outro fator de destaque na abordagem do problema foi a
valorização de uma visão mais pragmática de mundo, assentada
na complexidade da vida cotidiana, produzindo sujeitos
encarnados de vontade e horizontes de possibilidades. Essa me
parecia a forma viável para libertação da teologia revolucionária,
que tanto contagiara minha geração na análise do social.
Assim sendo, fui buscar essa ultrapassagem em dois contextos:
primeiro, na compreensão “fria” da gramática dos eventos e

d 15 o
Julio Cesar de Tavares

práticas emanadas no mundo da vida cotidiana; segundo, no


entendimento da expressão e constituição do lado “quente”do
idioma corporal da civilização negra brasileira, componente
estruturante da vida nacional. Ao adotar essa condição analítica,
descobria a Antropologia como método, técnica, disciplina e
estado de consciência na elaboração da pesquisa, o que deu um
tempero especial na combinação com a Sociologia no meu campo
de trabalho.
Ao optar pela Capoeira e iniciar esta pesquisa, pouco havia
sido escrito sobre ela, como os clássicos sobre a cultura afro-brasileira
nas artes, quer, ainda, nas próprias Ciências Sociais e Humanas.
Além, é claro, dos estudos, na Educação Física, motivados pela
biopolítica do Estado Novo getulista de se erigirem corpos
brasileiros dentro de uma Educação Física nacional. Restava-me
investir na observação in loco, nas conversas com os pesquisados,
e reletir a partir de minha própria condição de praticante da
Capoeira, tudo como atividade em construção. Logrei incorporar
a ousadia do momento da redemocratização e dirigi-me para a
Universidade de Brasília, na fase inal dos governos militares.
Acreditava que, com essas iniciativas, estaria a conduzir um tema
profano para o consagrado campo da liturgia do saber.
Muitas das veredas abertas no trabalho resultaram das
aventuras do pensamento daquele momento, a despeito do
autoritarismo vigente – e por causa dele –, pois a criatividade
possuía forte tonicidade na academia. Por isso, agradeço
ao Programa de Mestrado em Sociologia da UnB, que me
permitiu pensar com liberdade e abdutivamente, para garantir a
combinação do rigor do trabalho da pesquisa acadêmica com o
vigor do trabalho de criação. Não saberia dizer se seria possível,
em algum outro departamento, alcançar a liberdade e a vigorosa
(in)disciplina que vivi para o exercício que se segue. Coniaram
no meu taco! Merece destaque o fato de encontrarmos, neste
texto, uma parte considerável das matrizes temáticas, teóricas e

o 16 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

conceituais, que constituíram meu percurso intelectual nestes


trinta anos subsequentes.
Ressalto que, em Dança de Guerra, emerge uma das
questões mais caras e mais ausentes quando nos dedicamos a nos
dobrar sobre a realidade brasileira. Trata-se da discussão sobre a
descolonização mental e cultural (hoje entendida de modo mais
apropriado como a temática da colonialidade) e seu corolário, o
colonialismo cognitivo. Este é um dos temas-chave deste trabalho,
em sua correlação com a biopolítica, defendido como dissertação
de Mestrado diante da banca composta pelos professores do
Departamento de Sociologia, Lúcio Castelo Branco e Bárbara
Freitag, e da professora da Escola de Comunicação, Maria
Angélica Madeira, todos da UnB, e mais a presença do ilustre
convidado Sérgio Paulo Rouanet.
No momento da elaboração deste trabalho, impossível
imaginar que a Capoeira seria registrada como patrimônio
imaterial brasileiro em 2009. Menos possível, ainda, seria
prever a circulação da categoria “patrimônio imaterial”, hoje
corrente no campo dos estudos antropológicos e históricos sobre
Patrimônio. Ou, então, imaginar a fenomenal expansão da
Capoeira, de maneira suave e cautelosa, canibalizada pelo mundo
e exempliicada como sintoma da emergente transnacionalização
da cultura afro-brasileira. Naquele início dos anos 1980, isso era
tão impossível de imaginar quanto a queda do muro de Berlim
(1989). Todavia, era sobre isso que eu escrevia, impulsionado
pela condição de “delírio” e induzido pelo contexto de utopia.
A tese central deste trabalho orienta-se por uma tomada de
posição em relação à emergência da Corporeidade, aqui entendida
como o conjunto de dispositivos disparados na constituição da
consciência e da ação dos sujeitos, que ultrapassa a caminhada
dualista. Esta é uma leitura que aposta no entendimento
da Corporeidade como uma linguagem articulada em ações
coordenadas e em múltiplas facetas até conigurar o existir dos
sujeitos. Como o(a) leitor(a) constatará, desenvolvem-se, aqui, os
d 17 o
Julio Cesar de Tavares

conceitos de memória não verbal, memória corporal, identidade


corporeogestual e redescoberta do corpo, consciência corporal,
memória corporal, identidade gestual, esquemas corporais,
ritmos, atitudes etc., a partir da experiência da Capoeira e sua
explosão mundial. Estes conceitos emergiram nesta relexão a
respeito do lugar do corpo na produção das subjetividades de
resistência em meio à rede de dispositivos de combate às agruras
do cotidiano, e levando-se em consideração a Capoeira como
parte da rede de performances que escreveram a infra-história da
Diáspora africana.
A inserção da Capoeira no mundo, provavelmente, inicia-
se com o I Festival de Arte Negra, realizado em Dakar (Senegal)
em 1968, que, com a presença do Mestre Pastinha, ao mundo
enunciava a assimetria, a movimentação ritmada, conduzida
pela “levada” do berimbau, em sincronicidade múltipla com a
combinação ininita de movimentos no chão, em pé, em voo e,
ainda, acrescida de ludicidade, brincadeira e permanente sorriso.
Depois de sua apresentação na África, a Capoeira se expande
pelos Estados Unidos no inal dos anos 1960. Até que Katherine
Durham, a dileta aluna de M. Herskovits, com seu exame
etnográico das danças religiosas do Vodu e da Santeria no Haiti
(e considerada, por Levi-Strauss, a fundadora da Antropologia
da Dança), interfere no rumo da cultura afro-brasileira. E o
fez, transcendendo a dimensão coreográica, ao aliar o corpo
do capoeirista a uma política diaspórica de reconhecimento
e visibilização, ao contratar praticantes de Capoeira para sua
companhia de dança e para auxiliá-la em aulas na Universidade
de Saint Louis.
Hoje, solidamente instalada em mais de 153 países (em
alguns, inclusive, como parte integrante de políticas oiciais
em educação), a Capoeira encontra-se em franca expansão, do
mesmo modo que ocorreu com o Jazz, Jiu-Jítsu ou Judô, o Ballet
e a Música Clássica, exemplos de grandes performances, musical
e corporal, que alcançaram expressão transnacional.
o 18 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

Pode o(a) leitor(a) imaginar que, neste preciso momento


em que trafegam, por entre estas linhas, dezenas de milhares dos
mais de duzentos mil praticantes de Capoeira, em todo o mundo,
estão cantando uma chula, tocando um instrumento e jogando
um jogo na roda de Capoeira? Pode o(a) leitor(a), ainda, imaginar
que esse jogo, com vários séculos de origem e cujos jogadores se
comunicam nesta prática por intermédio do idioma português
brasileiro, ganhou o mundo, conquistou adeptos, expandiu-se
sem que houvesse qualquer interferência do estado brasileiro para
que tal ocorresse?
Essa força da diáspora da Capoeira é testemunhada por
nossos diplomatas no Exterior e reconhecida pelo Ministério das
Relações Exteriores, que reiteram a onipresença, fulgor e vitalidade
dessa arte-jogo-luta em sua importante função na disseminação
do idioma corporal e vernacular brasileiro. Hoje, constatamos
que é, de fato, uma performance interseccional, que se ediica
como uma arte do movimento em meio a uma constelação
de muitas outras artes em performance. Certamente, aí, nesta
teia complexa de performances interligadas que a caracteriza –
corpo em movimento, música, canto, lírica poética das ladainhas
e artesania de instrumento –, que se encontra o grande poder,
magia, encanto e mistério da Capoeira. E assim, magnetizando
centenas de milhares de praticantes, se multiplica por toda a
Europa, por todos os estados dos Estados Unidos e países da
América do Sul, em vários países da Ásia e África e em todos
os países do Caribe. Sim, repito, é uma arte interseccional, que
articula e se tematiza em tantas outras artes como na literatura
(por exemplo, na obra de Jorge Amado), na sua crescente presença
no cinema, novelas, teatro, dança, artes plásticas e, ultimamente,
em jogos digitais. Dá-se o reconhecimento cabal da extensiva
força desta performance cultural afro-brasileira e de todo esforço
transnacional da comunidade capoeirista.
Este patrimônio brasileiro deve estar presente na educação
escolar, da infância à universidade, como tradicional prática
d 19 o
Julio Cesar de Tavares

afro-brasileira de extrema coordenação motora, que integra, em


harmonia e assimetria, uma combinação indissolúvel de múltiplas
inteligências. Rigorosamente, admite-se que a Capoeira denota
efetiva contribuição ao desenvolvimento de múltiplas habilidades
cognitivas. Deste modo, incorporada no repertório cultural da
pedagogia nacional, torna-se uma atualizada representação pós-
colonial da resistência à dominação e às injustiças cognitivas.
Dança de Guerra é, portanto, uma contribuição e
homenagem aos capoeiristas – estes trabalhadores do corpo, do
ritmo, da oralidade, da música –, que convertem a fantástica arte
da dissimulação numa verdadeira epidemia transnacional, que
encanta e apaixona homens e mulheres, crianças e adolescentes,
adultos e idosos, todos no mundo. Ao mesmo tempo, promove
uma permanente reinvenção nos movimentos, apuração técnica
e sensibilidade estética em corpos de sujeitos encarnados de
memória corporal singular e global.

o 20 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

O mundo é um jorro de energias. Essas energias


manifestaram-se sob vários aspectos: luz, calor, eletricidade,
magnetismo/gravitação, etc. O corpo humano, como o
de qualquer ser vivo, é também um equilíbrio de energias
universais, ou, mais claramente, é uma máquina transformadora
de energias cósmicas, absorvidas no alimento e no ar respirado.
Quando a máquina, por algum defeito, se torna incapaz
de operar convenientemente essa transformação, dá-se o
depauperamento do corpo e a morte.
José Oiticica

Este trabalho resulta de uma pesquisa demarcatória para


futuros trabalhos que daqui se desdobrarão. Seu objetivo é
apresentar um núcleo condensado de questões das quais possam
derivar um sistema de pesquisas em condições de interligar campos
de forças há muito tempo divorciadas de sua imprescindível
união com a Cultura, a Educação, o Lazer e a Arte.
A inalidade maior desta obra é fornecer pistas para se
pensar a constituição de um caminho alternativo à Educação,
visando combiná-la com o lado lúdico e ao contexto histórico
de nossa cultura. Por outro lado, este livro relete também
o anseio e as expectativas do(a) proissional de Educação
profundamente ligado ao seu traço artístico-cultural. Desse
modo, inevitavelmente, não conseguirá ser imparcial, deixando,
com todo descaramento, transbordar intenções, intuições e
suposições brotadas das experiências de vida e proissional, pois,
em Educação, ou se está no exercício permanente e em simbiose
com a vida, ou não se está, como na educastração.
A preocupação quanto à relação acima citada ancora-se
na veriicação óbvia de que a proposta de Educação em vigor
está falida e agonizante, tanto em termos da Educação Básica
(Ensinos Fundamental e Médio) quanto da Superior (Graduação
e Pós-graduação). Sinceramente, não acredito que tenha que

d 23 o
Julio Cesar de Tavares

icar pedra sobre pedra, pois o momento desta desconstrução é


agora, nesta década, de maneira que se possa fazer emergir um
projeto radical de Educação que, democraticamente, abrace a
diversidade cultural desta nação.
Primeiramente, o que me toca mais a fundo é a hegemonia
da cultura caucasiana ocidental em todo o contexto educacional,
contribuindo com a reprodução de classes dominantes, que
são de predominância branca, de origem europeia e, com
isso, preservando um culto narcisista de um tipo de beleza, de
comportamento, de atitudes, de pensamento. Enim, preservando
um tipo de linguagem e um tipo de saber “culto” e de “elite”,
como únicos e exclusivos.
Eis o objetivo da educação bancária: domesticar e conter,
por um processo de adestramento linguístico, os oprimidos social e
etnicamente através de um processo de exclusão de suas culturas, já
que, para estes setores, a escola e a universidade não lhes concedem
espaço. Atribui-lhes uma cultura, enim, outros paradigmas em
substituição aos que foram mutilados pelo estabelecimento da
hegemonia cultural que se reproduz há séculos.
No caso da população negra, este processo é muito
evidente. Depois do etnocídio imposto pelos europeus às
civilizações africanas, até hoje se mantém o desmantelamento
das estruturas psicológicas e cognitivas dos remanescentes dessas
civilizações. E a escola torna-se o principal instrumento deste
processo de razzia descivilizatória, na medida em que impõe
um saber totalmente distanciado da realidade de seu público.
A independência do Brasil de Portugal não trouxe a liberdade
mental; ao contrário, preservou, de forma sutil, as estruturas
trazidas pelo projeto colonial e embebidas no português como
idioma nacional. É a colonialidade ou o colonialismo cognitivo
que, agora, se conserva.
A Escola conigura-se, deste modo, em um dispositivo
que faz parte do dispersivo projeto de alinhamento dos corpos

o 24 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

da sociedade a uma perspectiva de corpo produtivo. Isto é,


ela enquadra-se como um equipamento que reproduz uma
determinada visão de mundo, um universo de disposições que
se tornam duráveis pela incansável reprodução realizada pelos
hábitos corporais cotidianamente processados.
É deste modo que se processa a exclusão dos saberes marginais
do projeto pedagógico oicial. Entretanto, o espaço que caberia à
História da resistência do negro, da sua rebeldia com relação aos
colonizadores dentro da História do Brasil, bem como o encontro
com sua epistemologia, encontra-se, ao contrário, ocupado pelo
culto narcisista à cultura branca e ao logos aristotélico.
Mas, por força da crescente conscientização que a comunidade
negra vem realizando, há muito tempo, já se fala em Zumbi,
Palmares, revoltas negras na Bahia, Axé etc. É claro que muito mais
em um visível esforço realizado por alguns(mas) professores(as) do
que propriamente expressão política voltada para uma democracia
racial, em busca de uma nação estruturada, quilombolamente,
por intermédio de um projeto de plurietnicidade.
Nesta exclusão dos saberes, temos, de maneira concreta,
um total distanciamento daquele que foi a principal arma dos
negros para ativar uma resistência e empreender o registro de sua
história de rebeldia: o seu CORPO. Apesar de dinamitado pelo
processo de escravidão e dominação, o corpo negro preservou e
condensou uma sabedoria pelos movimentos, pelos ritmos e pela
energia, bem como pela oralidade, que vem sendo transmitida
como que um plano conspirativo, invisivelmente instalado no
interior da própria sociedade.
Aqui se encontra o eixo maior desta obra: a compreensão de
um dos fenômenos que caracterizaria a manifestação e a reprodu-
ção dessa sabedoria dos negros africanos e da Diáspora – o SABER
CORPORAL. Este constitui o núcleo de um conjunto de atitudes
coniguradas enquanto estratégia, cuja inalidade é a ediicação de
espaços por onde a identidade sociocultural seja preservada. Na

d 25 o
Julio Cesar de Tavares

prática cotidiana, essa estratégia consistiria em uma identidade a


partir deste próprio saber, isto é, a identidade corpóreo-gestual,
na qual os ritmos corporais e a movimentação gestual tornam-se
índices de um processo de preservação das marcas de uma cultura
em permanente combate e adaptação contra sua extinção.
Deste nicho, que tem no saber corporal seu pólo principal,
se arquiteta uma bricolage dos gestos erguidos como resultado dos
mecanismos de intercâmbio e assimilação dos elementos, que con-
ferem singularidade aos diferentes grupos étnicos deinidores do
universo da população negra ao aqui se constituir. E isto como parte
de um mecanismo de sobrevivência, imposto pela colonização por
meio do silêncio cultural em que todos estavam obrigados a viver.
É importante frisar que todos os elementos assinalados
fazem parte de uma estratégia corporal, compreendida como
conjunto de procedimentos que fez alojar, no corpo do negro, as
possibilidades de realização de sua liberdade, seja ela conjuntural
(como nos momentos de lucidez, quando se revisitam as dimensões
do cotidiano perdido no tempo das sociedades históricas de que
foram transladados), seja ela histórica (como nas situações de fuga,
onde, em um clima de intensa dramaticidade, transformavam seu
corpo em arma de alta precisão), diferentemente dos momentos
lúdicos, em que o corpo se convertia no arquivo restituidor das
informações que perfaziam seu ethos, seu campo de valores.
Exatamente por ter sido sempre tratado como corpo que
encarna exclusivamente o trabalho, esse lado da cultura africana
viu-se reforçado, para que se estruturasse estrategicamente, visando
à preservação e ao fortalecimento do corpo como instrumento de
transmissão da cultura, isto é, dos hábitos socialmente adquiridos
– arquivos –, ao mesmo tempo como instrumento de organização
das defesas físicas, individual e comunitária – arma.
Pode-se dizer, portanto, que, nesse saber do eterno e
dinâmico retorno às experiências da tradição, estava contida
a estratégia de constituição da memória das armas de combate

o 26 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

ao cotidiano asixiante, que caracterizava os primórdios da


colonização. Foi esse binômio arquivo-arma que selecionou a
linguagem que veio compor o repertório e estoque de signos a
ser armazenado no próprio corpo negro. E, por intermédio dele,
tanto nas vivências que transgrediam as rígidas demarcações
estabelecidas pela escravidão, como nos momentos em que se
debatia o estigma do trabalho encarnado, icava evidente o campo
magnético que sua energia fazia gerar.
É nesta vereda que se demarca a inalidade desta relexão. Por
causa do caráter pioneiro que esta obra imprime nas discussões,
não se propõe ser, senão, um exercício topológico, com a inalidade
de estabelecer os primeiros parâmetros do terreno que se quer
sondar. O mapeamento do horizonte de questões que o trabalho
compreende pode constituir-se em um pequeno inventário de
uma situação especíica, capaz de novos saltos para, mais adiante,
caminharmos rumo às respostas às seguintes questões:
- Se há uma relação direta entre linguagem não verbal e
pensamento, é possível falar de uma memória não verbal?
- Sendo assim, haveria, então, um sentido e uma semiose
nos movimentos corporais, produzidos e criados pelas camadas
subalternizadas da população brasileira, tais como a Capoeira, o
Jongo, o Maculelê etc.?
- Poderiam essas práticas ter-se constituído por intermédio
de condensação de contextos altamente dramáticos, referidos à
resistência, à apropriação dos seus corpos?
- Se isso for possível, não estaria, nessas práticas, a inscrição de
códigos das formas de resistência ao cotidiano coercitivo, operando,
aí, como contrapoderes aos dispositivos autoritários de dominação?
- Um projeto de Educação que se queira libertário, como
deveria proceder com relação aos dispositivos de contrapoder,
acionados pela cultura popular, como no caso da Capoeira?
- Que relação existiria, enim, entre memória não verbal e a
redescoberta do corpo no mundo contemporâneo?

d 27 o
Julio Cesar de Tavares

- Que tipo de saída, das que já foram tentadas, conseguiu


apontar no sentido de uma nova cosmogonia re-humanizante de
homem?
- Consequentemente, se caminhássemos para a re-huma-
nização, na verdade, não estaríamos presenciando um retrocesso,
tendo em vista uma saída para frente, em que as velhas linguagens
seriam readotadas e novas linguagens desenvolvidas para a supera-
ção dos problemas de comunicação intercultural?
- Em todo esse quadro, não estaria sendo gerada uma nova
concepção de homem, ele mesmo, em teoria, o resultado da
coniguração dos elementos estruturais designativos do mundo
contemporâneo pós-moderno?
- No caso dos estudos históricos e culturais, como se daria
o trabalho de pesquisa diante dos objetos não documentados
verbalmente?
Essas questões constituíram-se em bússola da caminhada,
para que esta proposição não icasse perdida em terreno sem limites
claramente deinidos. Foi escolhida a Capoeira como evento
possuidor de um saber corporal. É claro que poderia ser escolhida
outra prática, mas esta foi a que melhor se encaixou no binômio
arquivo-arma, postulado anteriormente.
Procurei abordar o tema, tornando-me aderente a ele e
percebendo-o também pelo sentimento, participando de sua
dinâmica, contribuindo com ela e dela compondo o painel que
pudesse dar no primeiro esboço. A meta era aproximar-se daquela
teoria e metodologia etnográica que icou deinida, por Juana
Elbein dos Santos e M. Deoscoredes, como sendo “desde dentro
para desde fora” (DOS SANTOS; DEOSCOREDES, 1977, p.
21), todavia, a partir de uma lógica anticartesiana, que pudesse
ser assim sintetizada: “danço, sinto o corpo, logo existo”.
(SENGHOR, 1982, p. 73-82)
Essa foi a ideia norteadora de toda a empresa que se segue,
pautando-se na simbiose da linguagem institucional analítica

o 28 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

da Sociologia e Antropologia com a do próprio território nativo


que está sendo mapeado. Por esse caminho, possivelmente,
aventuramos aperfeiçoar um repertório que se acasalasse ao
universo conceitual, singularizado como corpos em movimentos
no território do jogo da Capoeira.
Só através de uma ótica multidisciplinar será possível
compensarmos o desequilíbrio das abordagens no campo das
Ciências Sociais, principalmente quando se trata de adentrarmos
terrenos virgens e quando se quer dar conta de problemas nos
campos da linguagem e da comunicação sob a ótica do político
conforme o exercício que se segue.
Os conceitos matrizes, que alimentam as ideias desta
publicação, têm sua origem nas abordagens sobre saber e prática
discursiva, realizadas por Foucault (1972), e sobre rede e rizoma,
por Delleuze (1976). Todavia, ica claro que não há nenhuma
intenção de se aplicarem suas ferramentas teóricas, mas sim,
inspirando-se nelas, desenvolvê-las mediante a sua recriação em
outras realidades.
Em uma outra escala e em nível de conexões com os
processos sociológicos, é introduzido, com certa constância,
o conceito habitus, de Pierre Bourdieu (1979;1980),
compreendido como a mediação que relaciona a tentativa de
se ultrapassar a visão dualista que entende a sociedade como
antinômica ao indivíduo. Bourdieu, com o habitus, consegue
pensar a prática da socialidade através da incorporação de uma
dada estrutura social pelos agentes que, por meio de disposições
duráveis, reproduzem os modos de sentir, pensar e agir. Outro
conceito é esquema corporal, tomado na psicomotricidade e
desenvolvido pelo neurologista Henry Head, em 1891, ganhando
várias complementações e interpretações daí em diante. Tal
conceito merece ser desenvolvido a partir de uma abordagem
com foco socioantropológico e conectado ao conceito de habitus
que Bourdieu reelaborou a partir de Mauss (1973).

d 29 o
Julio Cesar de Tavares

O plano deste livro foi estruturado como se fôssemos


conduzidos por um impulso delirante, sendo esta introdução o seu
próprio plano de voo. A decolagem começa com a caracterização
do mundo contemporâneo, com a perspectiva de se obter
uma contextualização do lugar que se quer observar, mapear
e agenciar. É este o tópico da plataforma por onde iniciamos
o delírio. Cabe explicar melhor a caracterização de delírio: ela
advém tanto da abordagem de Nietzsche (1983), como da de
Walter Benjamim (1984), no sentido de se dar vazão à atividade
imaginativa do pensamento, bem como à conirmação de que o
mais contemporâneo é o mais primevo. O que desejo denominar
com a metáfora do delírio remete, por um lado, à noção de “eterno
retorno” de Nietzsche, como exercício criativo de translado da
imaginação rumo ao que se pressupõe fundante para melhor nos
situarmos no presente. Por outro lado, ainda, delírio nos remete
àquilo que Walter Benjamin denomina de “imagens oníricas”: a
imaginação na modernidade, como que concebida sob a forma
de sonho, fosse ela a experiência social moderna. E, portanto, a
consciência do sonho leva ao despertar e recolhe das obras míticas,
na regressão, a força para a prospecção para o atual. Assim, evoca-
se o mais contemporâneo como o mais primevo.
Após esta introdução, começamos a sobrevoar várias
províncias, como no primeiro capítulo, em que se pode ler o
signiicado da ação do corpo na coniguração da corporeidade
e sua descoberta como prática política signiicante. O capítulo
segundo desenvolve uma leitura sintática da indexação
corpórea das suas implicações nos planos do pensamento e do
comportamento como enação1 cognitiva. No capítulo terceiro,

1
O termo enação foi criado pelos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela,
tomado emprestado do poeta chileno Antonio Machado. Representa o estado em ação, sendo esta
de dentro para fora, e possui no ambiente a sua referência crucial. Embora originária de dentro,
esta atividade estabelece uma profunda congruência e decisivo compartilhamento com o mundo
exterior. Assim, guiada pela percepção, a ação dos sujeitos é a compreensão da forma com a qual
o sujeito que percebe guia sua ação em uma dada situação. Resumindo, enação pressupõe que,
dos esquemas sensório-motores que vivenciamos, emergem atividades cognitivas, mas nestas ações

o 30 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

pontuo como as diferenças no uso e traçado do corpo promovem


e são promovidas por representações políticas nos cotidianos nos
quais se apresentam.
Mas é no capítulo quarto que teremos uma primeira
grande parada para observar como os dispositivos e saberes
corporais foram acionados no nível da rebeldia negra. Por im,
no quinto capítulo, traço um pequeno inventário e faço uma
cirurgia estrutural na Capoeira, com a inalidade de compreender
a constituição daqueles invariantes que se mantiveram como
traços fundamentais da tradição que ela encobre.

vivenciadas os sujeitos independentemente guiam e podem ser modulados pela percepção que o
contexto formula e nos sugere.

d 31 o
Dança de Guerra - arquivo e arma

REDESCOBERTA DO CORPO
E
PÓS-MODERNIDADE

Descobrir que o que faço é música não “uma das


artes”, mas a síntese da conseqüência da descoberta do corpo:
para isso o rock, por exemplo, se tornou o mais importante
para minha posta em xeque dos problemas-chave da criação
(o samba que me iniciei veio junto com essa descoberta do
corpo no início dos anos 60: parangolé e dança nasceram
juntos e é impossível separar um do outro); o rock é a síntese
planetário-fenômeno dessa descoberta do corpo, que sintetiza
no novo conceito de música como totalidade-mundo criativa
em emergência hoje: Jimi Hendrix, Dylan e os Stones são mais
importantes para a compreensão plástica da criação do que
qualquer pintor depois de Pollock! A menos que queiram os
artistas ditos plásticos continuar remoendo as velhas soluções
pré-descobertas do corpo ao ininito: e não é o que está
acontecendo de certa forma?
Helio Oiticica

O momento planetário caracteriza-se por uma nova dimensão,


que se estabelece de maneira sublimar e que há tempos se aloca
no espaço-tempo de nosso cotidiano. Sua característica básica está
deinida pelo processo de tecnotronização do Planeta, bem como pela
prática aglutinativa que está em curso, centrada na difusão massiva
dos meios de comunicação no plano mundial. Profunda e abrangente:
duas palavras que serviriam para classiicar o grau de mudança sofrido
pela Terra desde o início da segunda metade do século passado.
A partir da II Guerra Mundial, o campo intelectual do mundo
ocidental vive grandes transformações provocadas pelo acirrado

d 35 o
Julio Cesar de Tavares

debate antipositivista. Nascia, daí, um vigoroso suporte para os


debates, pois os herdeiros do Marxismo luckasiano vinham, há
tempos, tentando ampliar sua área de inluência. O ponto central
– o indivíduo e a sociedade –, diante das querelas dos partidos
comunistas e dos teóricos marxistas com a URSS, ganhava grande
importância, principalmente com o reforço da área de atuação do
orwelliano2 “Grande Irmão” e das transformações introduzidas pelo
crescente uso da tecnologia comunicacional na Europa e nos EUA.
As discussões sobre recalcamento, repressão, liberdade, expressão,
criação, imaginário, inconsciente e ideologia marcaram, com tal grau
de importância, a conjuntura teórica do mundo, que conseguiram,
inclusive, projetar seus resíduos nos nossos dias. Se, hoje, operamos
com tais conceitos de forma tão frequente, devemos tal fato a esse
campo de forças, que gerou tais sítios conceituais3.
2
George Orwell é o pseudônimo do escritor inglês Eric Arthur Blair, falecido em 1950. Jornalista, crítico
e romancista, é um dos mais inluentes escritores do século XX, famoso pela publicação dos romances
que expressavam seu completo desencanto com a face estalinista do socialismo e, daí, empenhar-se,
nos últimos anos de vida, a denunciar o totalitarismo. Para tanto, publicou dois livros mundialmente
conhecidos: Animal Farm (A revolução dos bichos) no ano de 1945 e o Nineteen Eigthy Four (1984),
no qual apareceu pela primeira vez o onipresente Big Brother, o Grande Irmão, no ano de 1949. Este
último, trata-se de uma novela satírica, na qual a sociedade é tiranizada pelo Partido e sua ideologia
totalitária. Esta sociedade é um mundo em guerra perpétua, com um governo onipresente que imprime
vigilância, controle público das mentes, ditado por um sistema político eufemisticamente denominado
Ingsoc (socialismo inglês). Este é dominado por uma elite que persegue todo pensamento individual e
independente e que é encabeçada pelo Big Brother, uma entidade quase divina que lidera um intenso
culto da personalidade em nome do Bem comum. Daí, a denominação de sociedade orwelliana, que nos
remete a uma sociedade portadora deste controle total e virtualmente emanado. O romance de Orwell é
de uma extraordinária atualidade.
3
O espaço conceitual pode ser deinido como um campo de possibilidade para constituição de um
repertório conceitual. Neste espaço conceitual se localizam, em diferentes escalas, os mais diversos
conceitos que podem dar conta de situações de vários tempos, que em última instância podem ser
classiicados como tempo corporal, o tempo cotidiano, o tempo histórico e o tempo cósmico. Estes
conceitos seriam índices das múltiplas determinações que pretendem informar na sua condensação.
O que estou chamando de espaço conceitual é um campo que uniica várias dimensões do tempo, o
que nos diz que o espaço derrama os tempos e os tempos esparramam-se pelo espaço como sítios,
ilhas, planos, dimensões. Nesta visão espacializada da bagagem conceitual, desempenha uma tarefa
importante a capacidade de abdução de quem pretende aprender o que está sendo dito. Conforme
nos diria Pierce, a abdução seria a forma mais adequada para construir o conhecimento, pois é o único
argumento que inicia uma nova ideia, sendo, portanto, a abdução um “argumento originário”. (apud
SEBEOK, 1991, p. 23) Identiicamos, assim, processos indutivos, dedutivos e abdutivos, na busca de
uma interação mais abrangente, inclusive de todo o conhecimento humano. Este é um dos métodos
de trabalho de construção de conceitos que, sem dúvida, atesta sua capacidade de alta rentabilidade
na economia simbólica. O trabalho, por analogia e associação, permite que o processamento das
informações acessadas em nossa memória se dê em altíssima velocidade, garantindo que se constitua em
multiface e, por aí, abordando-o multidisciplinarmente. É a intuição a principal arma para esse tipo de
trabalho. Tal tipo, coisa ou situação pode ser não só isso, como também pode ser não isso (aquilo), como
também pode ter disso e daquilo, e nem uma nem outra coisa; nem ambas.

o 36 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

Na ultrapassagem desta consideração, a vida vem sendo


caracterizada em seu micrométrio instante (signiica dizer: no seu
cotidiano), onde as coisas acontecem com postura mais vívida de sua
existência, pelo menos como coisa, objeto encarnado de sentido vazio.
Todavia, este sentido vazio foi produzido da forma mais violenta e
despótica possível, na medida em que corresponde aos dispositivos de
“poluição visual” e, consequentemente, da atmosfera semântica em
que vivemos. (Cf. STEGMÜLLER, 1977, p. 3-4)
O mundo da vida cotidiana são sinais sem luz, mas com brilho.
O brilho que o faz cintilar é como o intermitente sinal que um néon
anuncia. É isto: civilização neonlista! Nela, o homem perdeu-se:
desritualizou-se. Sua vida está sendo sorvida pela televisão, cinema,
fotograia, telemática, out-doors etc. A poluição visual (inlação de
imagens) gera um homem asixiado pela imagem do seu tempo,
aprisionado naquilo que ele produziu e, extraordinariamente,
enovelado pela cruzada de imperativos políticos, econômicos e
ideológicos, originados na ecologia semântica que o gerou.
Lygia Clark (1983) analisa este fenômeno, utilizando-se do
conceito de estrangulamento do visual. (Cf. CLARK, 1983, p. 45-46)
A necessária iniciativa dos homens, criadores por excelência, se voltaria
para a libertação das imagens que lhes aprisionam, a im de que se
soltem de suas amarras e ancorem no porto mais próximo de seu próprio
imaginário desacorrentado. Derrubar o lugar institucional e o invólucro
que elas, as imagens, possuem; enim, subverter o espaço imagético.
O mundo, inundado de imagens, só poderia resultar no que
assistimos: transmutação. O homem já é um ser mutante, conforme
sempre o foi. A referência, aqui, trata do mutante em termos culturais e
não bioisiológicos. O sentido é outro e esta diferença passa pela forma
de comunicação, veriicada no cotidiano do mundo de nossas vidas.
Diariamente, tropeçamos em símbolos icônicos. E estes subs-
tituem, assustadoramente, os símbolos gráicos, escriturais. Então,
alguma coisa nova vai surgir daí (sem que se valorize, agora, se para
o bem ou para o mal, ainda não é o momento). Sendo assim, prepa-

d 37 o
Julio Cesar de Tavares

remo-nos para esta transição para a nova comunicação predominante-


mente audiovisual que se está conigurando. (Cf. LEROI-GOURHAN,
s/d, p. 187-211)
Se percebemos mais o mundo pelas imagens – e aqui me reiro
a todos nós, crianças, adultos, idosos, seja quem for – e se elas são
moldáveis em alta velocidade (para ser mais imediato), ou seremos
sugados pelos campos magnéticos das imagens e por elas operados,
ou, então, agiremos com maior velocidade do que elas. O semioticista
Charles Sanders Pierce (1977) aponta-nos o signiicado deste aspecto,
ao parafrasear Einstein: “Se o Universo está em expansão, é em nossas cabe-
ças que podemos comprovar isto”. (PIERCE apud SANTAELLA, 1983,
p. 33) Então, as mentes também se encontram em expansão.
E se, até agora, vivemos escravizados pelos símbolos
(BAUDRILLARD, 1972, p. 202), erguendo-os até o ponto que
chegamos, com eles balizando os seus próprios campos, e se não
temos outra saída, pelo menos enquanto não desenvolvemos os canais
telepáticos, extrassensoriais para a comunicação cotidiana, então,
façamos com que os novos símbolos se contrafaçam aos existentes,
ao menos para minar a tirania que estes ixaram no espaço de nosso
imaginário. Nele, colocaremos novos símbolos e, por aí, então,
poderão ser gerados novos hábitos.
Estes são os aspectos marcantes do tempo presente: a
iconização do mundo, a ideologia imagética e o corpo como
signiicante lutuante. No mercado dos bens símbólicos deste mundo
pós-moderno, confrontamo-nos com mais um fenômeno anterior,
surgindo com muita ambiguidade e podendo colocar-se como o
referido dispositivo de contrapoder dos símbolos: a redescoberta do
corpo. (Cf. HAJINICOLAU, 1973, p. 150)

A redescoberta do corpo

Vejo este fato-fenômeno como mais um símbolo inventado. Só


que, na sua apropriação, muitas digestões se izeram. De um lado, pode

o 38 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

ele ter-se constituído em mais um bem no mercado simbólico, com um


forte efeito mercadológico existente por detrás. O jogging e as indústrias
de produtos esportivos, a indústria de cosméticos e beleza, a indústria da
jovialidade e vitalidade, assim como a indústria cultural do corpo, vêm
se beneiciando com este novo símbolo de maneira crescente. Enim, o
despertar da atenção para o trabalho impulsionado pela força da dinâmica
do mercado de bens simbólicos daí constituído.
Se entendermos esta rede de dispositivos como constitutiva de um
novo discurso sobre o corpo ou uma nova retórica, conforme ocorreu na
passagem da Idade Média para a Modernidade, como o caso da loucura
(FOUCAULT, 1972; 1973), por exemplo, somos levados a concordar que,
advinda desta nova visão, uma consciência corporal está em constituição e
adquirindo signiicados desta consciência.
A melhoria da qualidade de vida tornou-se a mola mestra dos
comícios em todo o mundo, exigindo-se o controle da energia nuclear,
da poluição e do desarmamento, por um lado; de outro, o im da corrida
armamentista e a deinição de uma estratégia de paz mundial. São estes
os pontos mais construtivos dos movimentos ecológicos com o estado do
mundo atual.
Aliás, o segmento mais jovem da população ganhou um grande
espaço na sociedade civil mundial, mesmo que não o tenha conquistado
claramente e legitimado esse espaço no Brasil. Entretanto, desde a década de
1960, foram os principais responsáveis para que icassem mais deinidos os
componentes dessa política do corpo. Uma nova posição de atitudes diante
do cotidiano signiica também uma nova posição diante do mundo. (Cf.
LEFEBVRE, 1968, 1980, p. 34-38; FREIRE e Fausto BRITO, 1984) As
manifestações da contracultura nas suas variadas linguagens apontavam as
alterações que caracterizariam as mentalidades “alternativas”.
Em 1984, vinte anos depois, já podíamos sentir seus efeitos
na geração que se encontrava por volta dos quarenta anos, que adota
tipos de atitudes, diante do mundo, diferentes das gerações anteriores.
Beatles, Rolling Stones, a Soul Music etc. são símbolos de uma nova era
da comunicação humana e das transformações comportamentais do

d 39 o
Julio Cesar de Tavares

Planeta. Depois da década de 1960, e principalmente depois de 1968, não


podemos mais falar em mobilizações de transformação comportamental
se não considerarmos o plano de causação em termos de aldeia global.
1968: ano da mundialização da vida. Ano em que o Planeta parou!
Dele, jorraram críticas e confrontos, enfrentamentos e assaltos à razão.
Onde existia ditadura, como na América Latina, o regime foi duramente
ameaçado, a ponto de se servirem os déspotas dos dispositivos totalitários.
Onde existia o chamado Socialismo, emergiram denúncias dos Gulags4,
bem como se ampliaram as oposições clandestinas, constituídas desde
antes da guerra, que revelaram seu lado sarcástico e totalitário. Onde existia
democracia, esta também não passou incólume, tendo sido solapada em
suas bases de cinismo e de hipocrisia, como no Assalto aos Céus, na França.
(HOLLANDA, 1980)
A questão política que a redescoberta do corpo processou aparece
introduzindo uma variável fundamental: a reaproximação dos corpos
por quem se colocava nos patamares mais inferiores na hierarquia da
dominação social. O movimento das chamadas “minorias” seria a grande
política deste processo da vida cotidiana nessa fase recente da História da
Humanidade.
Esse movimento político constitui-se como uma rede e seus
circuitos foram forjados por aqueles segmentos da sociedade que estavam
soterrados pelo processo de totalização e militarização que sofre o
cotidiano. São eles os agentes e atores sociais que sempre atuam nos papéis

4
O termo Gulag é um anacronismo para a instituição burocrática soviética, que operava o sistema
de campos de trabalhos forçados, desenvolvidos sob a governança de Stalin, na União Soviética
durante o período de 1931 a 1953, para onde eram enviados aqueles considerados criminosos e
inimigos do Estado. Segundo a história, cerca de 18 milhões de indivíduos passaram por estes
campos, cujos prisioneiros tornaram-se um importante recurso na construção de muitas indústrias,
ferrovias, estradas de rodagem, operações em minas etc. Milhões de prisioneiros morreram nos
campos de fome, frio e trabalho pesado. Mais detalhes, consultar http://gulahistory.org. Com a
publicação do livro he Gulag Archipelado, em 1973, de Aleksandr Solzhenitsyn, escrito entre
o período de 1958 a 1968, o termo Gulag tornou-se um conceito para identiicar todo o sistema
penal soviético. Os Gulags estendiam-se por toda a União Soviética, indo da região Norte do
Ártico à região Leste da Sibéria até o Sul da Ásia Central. Com a morte de Stalin, instala-se
uma crise na União Soviética, que facilitava o surgimento de dissidentes no período de 1960 a
1970, intelectuais que emergiram como opositores à repressão do regime. Com a intensiicação
das críticas, em 1985, um novo líder, Mikhail Gorbachev, chamou o Governo para a abertura
do regime e criação de uma sociedade socialista com liberdade. Isto mobilizou a inteira União
Soviética a promover uma crítica histórica sem precedentes dos Gulags e da repressão soviética. Tal
fato abriu o colapso do Império Soviético e da própria União das Repúblicas que o compuseram.

o 40 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

tidos como secundários, pois, para eles, icaram reservados os personagens


coadjuvantes, como que empurrados por uma sina histórica na cena
social, embora, nos bastidores, sobre eles recaíssem as tarefas mais árduas e
o trabalho mais estafante.
A respeito desses fatores, temos o inconsciente do dominador
recalcado e, neles, a dominação realiza-se na sua instância microfísica, pois,
aí, estão localizadas as unidades celulares que tornam viável o exercício da
dominação permanente. A revolta dos grupos étnico-raciais, dos jovens,
mulheres, crianças, idosos e homossexuais traz à tona a ação direta dos
indivíduos, corporiicada nos movimentos alternativos contra o Estado,
cada vez mais entendido como pressão de alto grau de totalitarismo.
A entrada das minorias sociais em cena introduziu, nas áreas urba-
nas das sociedades históricas, o conlito direto e aberto no nível das rela-
ções de gênero, sociais, geracionais, interétnicas e nacionais: trabalhadores
negros, índios, bascos, armênios, jovens, velhos, mulheres, crianças, ho-
mossexuais etc., histórica e cotidianamente submetidos pela dinâmica das
sociedades de consumo ou pela hegemonia de um poder central igualitário
e homogeneizador, castrador das diferenças.
A questão do corpo, embora não apareça de maneira clara e explícita,
está presente e emergente em todas as reivindicações desses setores: trata-se
sempre de uma luta contra a discriminação da pouca idade do corpo e da
mente, ou contra as interdições sociais com respeito ao exercício do amor
e da sexualidade, ou contra as imposições jurídicas e clericais proibitivas
aos corpos, a partir da vontade e do desejo de seus próprios responsáveis:
os corpos individuais. Trata-se, ainda, da luta contra a discriminação dos
corpos usados, envelhecidos, que, na leitura do sistema, seriam mercadorias
que entram na fase da não produtividade e, em consequência, em estado
de obsolescência. Enim, trata-se de uma resposta rebelde a toda forma de
interceptação das vontades, dos desejos e dos prazeres, que, em um processo
político-psicanalítico, vem contribuindo no sentido do desvelamento da
couraça do Estado egocrata.
Assim é que esta reaparição do cotidiano recolocou na ordem
do dia a luta pelo desejo, pela vontade de potência dos indivíduos a

d 41 o
Julio Cesar de Tavares

partir da consciência, mesmo que em grande parte inconscientemen-


te (mas, em um caudaloso movimento, arrebanhando pessoas pela
intersubjetividade, pela energização da memória coletiva corporal,
conquistada na segunda metade do século XX). Neste rastro, esta rede
alternativa vai se constituindo em toda a sociedade. Por ela travejam
os sinais de adesão pela via da simpatia (energia e identidade), gradu-
almente minando as bases totalitárias, simbolicamente instaladas no
cotidiano por meio dos signos e dos hábitos nele embutidos como
disposições duráveis.
A crescente desobediência civil, signiicada pela violência cotidiana,
é prova disso. A rebeldia individual, que tanto foi digniicante na militância
anarquista da I Internacional5 e pulverizada pela II, III e IV, todas
Internacionais, em nome da disciplina partidária, renasceu no inal do
século XX com roupa nova, icando, nesta nova fase, macrodimensionada
pela cosmovisão que a abordagem ecossistêmica conigurou.
O saldo foi a baixa na audiência das esquerdas tradicionais e o
surgimento de novas posturas políticas, que vão desde a guerra urbana até
o “desbunde” como opção política, conforme se deu no caso dos países
atingidos mais duramente pela reação das armas e do Estado. O Brasil da
década de 1970 foi um exemplo.
As críticas ao corpo social foram respondidas de forma a absorver os
corpos individuais pelo Estado. As velhas instituições, que corporiicavam
o organismo ameaçado, foram reairmadas, asseverando mais uma vitória
5
Em 28 de Setembro de 1864, teve lugar uma grande reunião pública internacional promovida
pelos operários no St. Martin’s Hall de Londres. Nela, foi fundada a Associação Internacional
dos Trabalhadores – AIT (mais tarde conhecida como Primeira Internacional). Entre seus
colaboradores, encontravam-se Karl Marx, Frederich Engels, Mijail Bakunin. Inúmeras tensões
emergiram nessa associação, resultantes das diferenças programáticas entre Marx (e demais
partidários do socialismo cientíico) e Bakunin (e os partidários do anarquismo libertário
coletivista). Os Marxistas apoiavam a organização Internacional dos trabalhadores como uma
associação internacional de partidos operários e centralizados. Possuíam um programa baseado
nas lutas sociais e na conquista do poder de Estado. Já os Bakuninistas trabalhavam em torno de
um modelo revolucionário baseado na organização associativa cooperativizada e antiautoritária,
rejeitando o monopólio da violência por um poder centralizado como é o Estado. Esta celeuma,
em termos de estratégia, caracterizou o conlito entre a ditadura do proletariado de Marx e a
anarquia de Bakunin, tendo sido consumada em 1872 com a expulsão dos anarquistas da I
Internacional. A ala anarquista majoritária, que se desliga da AIT, é denominada Federação
de Juria. Ao se desligarem sob essa liderança, organizam uma Internacional exclusivamente
anarquista, a Internacional de Saint-Imier, que sobreviveu até 1877 e de onde saíram as principais
tendências do anarquismo contemporâneo.

o 42 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

do corpus politicus e mais uma derrota do corpo social. É Claude Lefort


(1983) que nos diz: “A tentativa de sacralização das instituições pelo
discurso é comensurável à perda da substância da sociedade, na derrota do
corpo”. (LEFORT, 1983, p. 119)
Essa relação do Estado como cabeça do corpo social ameaçado,
agindo como egocrata diante de uma necessária assepsia na sociedade,
em contrapartida, trouxe um despertar da consciência para as novas
possibilidades que, por dentro das brechas do sistema, se fariam acionar.
Crescera a consciência dos corpos individuais pela nova imagem de corpo
que se queria produzir, como se descortinou o espaço-tempo que, até então,
envolvia o corpo, colocando-o em uma situação de simulacro na sociedade.
Ao se redescobrir o corpo, descobria-se o cotidiano, percebendo-o como
instância primeira por onde o social interatua e agencia suas estratégias de
poder (LEFORT, 1983, p. 114-119).
Concorreu, também, para esta descoberta, a identiicação que as
esquerdas izeram na Europa, representando um novo momento da luta
política: o momento da luta ideológica; o momento da desalienação,
resultante imediata da utilização que se fazia da proposta de se viver aqui
e agora, na ordem do dia. Desde o aqui e agora que era apresentado,
elaborava-se o xeque-mate às formulações de uma esquerda ortodoxa, que,
no seu afã doutrinarista, caía, inevitavelmente, na mecânica concepção do
econômico como sendo determinante, em última instância, de tudo que é
acontecimento ou fenômeno social.
Novas análises são elaboradas a partir do novo pressuposto
introduzido desde então: o cotidiano, estrutura elementar do existir
humano em sociedade. E pensar o cotidiano é abstrair-se (e não abster-
se) em um campo onde o referencial é o conjunto de individualidades,
capaz de criar estratégias, que contornem os limites normativos
estabelecidos pela economia geral do sistema. Cada estratégia traz
em si uma linguagem (conjunto de signos) e uma ação (ritmos do
corpo), geradoras de um habitus cotidiano. Este formaliza-se ao se
institucionalizar, constituindo-se em contraposições ao poder ou em
agenciamentos políticos.

d 43 o
Julio Cesar de Tavares

Seus lugares formam campos de força, produzindo um sistema


próprio de linguagem. Descobria-se o corpo no cotidiano e o cotidiano no
corpo. O intercâmbio foi possível, assim, em virtude da erupção irradiada
desde os anos 1960, principalmente desde quando se começou a negar e
a destruir os signiicantes despóticos, que se estilhaçaram em arte e desejo
no mundo da vida cotidiana nua e crua. A partir de então, principia-se um
viver no limite carnal, por meio da prática da consciência corporal.
Mas esse estilhaçamento do corpo em formas de espontaneidade
e de impulsividade só foi possível na medida em que habitava a linha de
tensão entre a consciência corporal e o mundo exterior. Neste, encontra-
se o corpo, dimensão molar do cotidiano, modulado e superado pela
instância histórica engenhada pela sociedade.
Desta forma, as sociedades históricas, naqueles anos 1960,
terminaram por lançarem-se em um momento iconoclasta, quando os
vitrais imagéticos do cotidiano começaram a ser quebrados. É a violência
da História na História. Projeta-se na transistoriedade ou na meta-história.
O tempo tecnológico se estabelece com o abrir a possibilidade de ser
negado e superado pelo tempo do ritmo corporal, que está na dinâmica
do aqui-agora.
Nesta caracterização das forças atuantes nas transformações por
que passamos, caberia acrescentar, também, a importância da crescente
difusão de novas áreas do conhecimento, que trouxeram contribuições de
grande porte para que se compreendesse melhor esta nave que pilotamos
diariamente durante toda a vida: o corpo. Sem dúvida nenhuma, o campo
do espaço do conhecimento vem crescendo através da constituição de novas
ilhas de questões e de novos referenciais de análise. O corpo humano, em
seu processo de redescobertas, está sendo capaz de nos apontar inúmeras
saídas até então tidas como inexistentes.
Este terremoto epistemológico, instalado a partir de novas questões,
por um lado, vislumbra novos objetos (discursos); por outro, introduz,
também, uma reviravolta no próprio campo intelectual a ponto de se
alterarem os limites demarcadores dos antigos domínios fundantes de
uma determinada ciência ou disciplina. Neste processo de mudanças no

o 44 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

plano atual, é importante que não se esqueça de acrescentar, também, o


desgaste em que se encontram o modo de apresentar a razão instrumental
como valor supremo da inteligibilidade humana e os procedimentos
tecnoburocráticos de organização e gestão do saber e do social, a despeito
do poder adquirido por esses procedimentos, pela força da necessidade de
controle.
Há uma marcha em direção ao aprofundamento do especialismo,
induzida por essa instalação do controle. Faz tempo, principalmente no
Brasil, que não temos mais, em larga escala, o proissional multidisciplinar,
o clínico geral, o generalista. Este não deve ser confundido com o
polivalente – ou seja, o “faz de tudo” –, pois o trabalho multidisciplinar
está assentado num traçado epistemológico de domínio diagonal em uma
abrangência do conhecimento. Seu resultado vai além de uma perspectiva
linear de soma de partes. O trabalho intelectual, nesta esfera, é de natureza
algebraica e não aritmética, considerando a possibilidade de ser transversal.
O exercício dos cientistas sociais, no afã das classiicações conceituais
generalizantes e da consequente perplexidade diante do surgimento de um
amplo horizonte de novos objetos de estudos, denominou o conjunto
de efeitos e transformações derivadas desta época no Ocidente, como
indicador de novos tempos, de uma nova modernidade: a sociedade pós-
moderna. Para os militantes alternativos, a classiicação adotada procura
reletir a estratégia no aqui-agora e da ação direta; por isso, o que surgia
não era propriamente uma sociedade, mas bem mais que isso: a Nova Era.
Todavia, para um grupo de intelectuais europeus diante do pós-guerra do
Vietnam e das novas mudanças no cenário europeu-americano, quer com
o neoliberalismo, quer com a força espetacular das mídias, promovendo
uma guinada na vida cotidiana sob novas tecnologias, emergiu a hipótese
de um novo Medievo. Umberto Eco e Francesco Alberoni lideravam esse
grupo. Acreditavam tratar-se, portanto, de uma nova Idade Média em
gestação, tanto que enumeraram as características que davam o tônus
(obscurantismo, retorno forte das fronteiras, práticas tribais, impérios
fortes etc...) e, por conseguinte, opunham-se à ideia de pós-modernidade.
(Cf. ECO et alli, 1984, p. 9-34)

d 45 o
Julio Cesar de Tavares

No cômputo geral, deve-se considerar que a década de 1960, de


fato, inaugurou um novo estilo de viver e uma nova concepção de aprender
o mundo. Tanto foi assim que, por exemplo, a década de 1970, aos trancos
e barrancos, caracterizou-se, diretamente, por uma intensiicação da
repressão e da utilização tecnológica em larga escala, de forma a estender
os efeitos da Engenharia Genética, da Cibernética e da Informática, cujas
consequências mais imediatas têm sido os arrojados passos dados pela
Astronáutica, Cosmobiologia, Astrofísica, a Telecomunicação e a Ciência
da Informação. Contraditoriamente, a contrarrevolução caminhou junto
à contracultura da época.
Diremos que, no plano mundial, a década de 1960, a partir do
distanciamento que hoje conseguimos obter, airma-se como o momento-
limite da humanidade, que viveu e continua vivendo a constituição de
uma nova fase histórica. Esta se enuncia como derivada da singular
interseção cotidiano/cósmico, estabelecida pela acoplagem da consciência
da existência individual dos sujeitos com a consciência da produção da
realidade social, isto é, a tomada de consciência do corpo coincide com a
tomada da consciência da cotidianidade sociocultural. É este o efeito que
resulta nesta aquisição de intensa e extensa consciência corporal sobre a
nossa presença no mundo da vida.

o 46 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

CORPO E SIGNO

El cuerpo es el cuerpo,
Está solo
Y no necessita órganos,
Jamás el cuerpo es un organismo,
Los organismos son los enemigos del cuerpo.
Las cosas que se hacen
Suceden por sí solas,
Sin el concurso di ningún órgano,
Todo órgano es parásito,
Encubre una función parasitaria
destinada a dar vida a un ser
que no debería existir.
Los órganos sólo há sido hechos para dar de comer a los seres
Mientras que éstos han sido condenados en su princípio y tinen razón alguna de
existir.
La realidad aún no está constituída porque los verdadeiros órganos del cuerpo
humano aún no han sido compuesto y colocados.
El teatro de la crueldad há sido creado para terminar esta colocación y empreender
mediante una nueva danza del cuerpo del hombre, un destrozo de esse mundo de
microbios que no es más que nada coagulada.
El teatro de la crueldad pretende emparejar en el danza a los párpados com los
codos, las rótulas, los fémures y los dedos de los pies,
Y que sea visible.

Antonin Artaud

Um exercício teórico sobre o corpo, é, assim entendo,


um trabalho de relexão que implica, antes de tudo, realizar
uma tomada de atitude e consciência diante do próprio corpo
daquele que fala; caso contrário, o discurso a seu respeito torna-
se vazio.

d 49 o
Julio Cesar de Tavares

Considero que a fala do corpo resulta do ato da fala do


próprio corpo e a ele de novo se conecta, de maneira tal que o
objeto da relexão, o corpo em questão, se reverta no próprio sujeito
da ação e conquiste o espaço no próprio texto, espraiando-se e
internando-se na narrativa, perseguindo a superação da dicotomia
instalada por determinadas disposições duráveis que, como efeito
lógico-cognitivo, nos obrigam a imaginar o corpo como fora do
ato do pensamento e o ato de pensar como uma determinante ação
incorpórea. Ou seja, não há oposição, mas, sim, enação na relação
mente/corpo. Tanto não haveria uma mente sem corpo como, do
mesmo modo, não haveria um corpo sem mente.
Em se tratando do corpo, esta questão adquire, então, uma
dimensão ainda mais complexa, pois a sociedade contemporânea
agencia, ininterruptamente, um sistema de dispositivos que conduzem
a uma fragmentação da consciência individual, arremessando, em um
bolo holístico, o indivíduo agente, tornando-o mero componente
funcional de um sistema produtivo. Deste modo, as possibilidades
de autorreconhecimento da sua interioridade existencial esgotam-se
maquinalmente no vazio simbólico da exterioridade mercantil da
sociedade em que vivemos.
Assim, como assegurar a fala do objeto/corpo, de maneira
integral, se a integridade que se espera só é possível se compreendida
em um processo dinâmico? Se o sujeito do discurso – aquele que
fala –, encontra-se bloqueado pela fragmentação própria do processo
social, até que ponto esta contradição pode ser absorvida?
O caminho, então, é fazer o objeto metamorfosear-se em
sujeito. Em uma palavra: fazer também o seu corpo pensar e falar.
Exigência imperiosa, que norteia uma das principais
preocupações desta relexão (na medida em que é parte do
conjunto de intenções que deinem a trajetória da investigação), é
a ultrapassagem do obstáculo constituído pelo mecanicamente
dicotômico entrelaçamento sujeito/objeto, ser/estar, forma/conteúdo,
mente/corpo. Mas o que signiica ultrapassar a relação sujeito/objeto?

o 50 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

Signiica considerar o corpo como síntese/texto que emite,


em linguagem não verbal, as mensagens arquivadas a partir das
experiências que se cotidianizaram e que, por intermédio dos cines da
memória corpórea, se ixaram na situação na qual aquele determinado
movimento foi registrado. Isto é, o corpo brinda-nos pelo gesto
expresso em linguagem não verbal com aquele movimento que foi
criado e elaborado na produção de sua experiência.
Portanto, dizer que o corpo é um signo é entendê-lo como
um momento liminar entre o signiicante (corpo como matéria viva
e física), o signiicado (memória de equivalência corpórea que se
manifesta na resistência, na acomodação, na participação), o sentido
(aquilo que oferece signiicação ao objeto do signiicante) e o referente
(a situação-contexto que é singular à representação). Este signo, ou
o corpo como signo, tem se metamorfoseado em vários sentidos
através dos tempos, múltiplas direções em uma constante mutação
representacional. Uso, aqui, referências de inspiração analítica na
construção da relação sígnica, oriundas de Saussure (1974) e de Pierce
(1977, p. 45-48), no entanto, atualizadas em Barthes (1974).
Daí, podemos abduzir que, a cada momento, a cada situação,
diante de determinada resposta a uma determinada ação, em um
determinado lugar, entre determinadas pessoas, o corpo ixa-se e é
ixado, marca-se e é marcado por um determinado gesto que expressa
a intenção consciente do agente do gesto. Esta intenção é ambígua,
pois, embora se trate de uma intenção, em geral voluntária, ao mesmo
tempo é uma ação que se expressa em comandos que não emergem
racionalmente, tampouco conscientemente, mas sempre de maneira
programada. O ato de comunicação, que está constituído na sua ação
(ato de seu fazer), resulta do estímulo cooperativo a uma outra ação
que lhe antecedeu. Como no encadeamento de uma corrente ou como
na sintonia de uma orquestra: ação, contra-ação, enação.
Trata-se, neste caso, de se apreender a vida social como uma
orquestração, realização de uma orquestra que forma um tecido de
redes em uma mesma partitura. (BOURDIEU, 1980, p. 89) E é essa

d 51 o
Julio Cesar de Tavares

possibilidade que assegura uma comunicação permanente, pois somente


se a orquestração funcionar é que icará garantida a emissão da mensagem
que se quer dar. Dessa forma, o corpo passa a constituir mais um canal de
comunicação, capaz de complementar o processo comunicativo.
Para que se conigure, o processo comunicacional articula os
seguintes canais: verbal, não verbal, verbal e não verbal, nem verbal
nem não verbal, observando-se que o centro emissor dos quatro canais
é o corpo. Age, portanto, como um cometa que reluz o brilho do seu
rastro imagético, uniicador, condensador de seu sentido de fundo.
Por esse caminho, um novo parâmetro é estabelecido e alcança-
se a possibilidade de um redimensionamento do signo do corpo.
Até então, ele vinha existindo como referente de um signiicado mais
em nível de cotidiano, secularizado e destituído de seus primeiros
signiicados, deslocado, fruto das metamorfoses socioculturais, lógico-
cognitivas e linguístico-semióticas.
Na coniguração que se apresenta, um outro ângulo,
macroscópico por excelência, é sugerido. O corpo aparece, então,
como conjunto signiicante, após a constituição de número “n” de
unidades sêmicas (kinésicas ou cinésicas). Assim posto, existiria o gesto,
que pode ser reconhecido como um microssigno, e o movimento, um
macrossigno. Consequentemente, o corpo se conigura como uma
ponte de intercessão: condensação de microunidades e, ao mesmo
tempo, uma unidade dispersa de um macrocorpo.
Corpo

Nem verbal, Nem Não verbal

o 52 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

Estruturado pela conjunção de unidades elementares de


signiicação – que atuam sob aspecto de uma atividade discursiva
no corpo do indivíduo agente e simultaneamente como
componente de uma estrutura maior –, o corpo, como estrutura,
age de diferentes modos, de diferentes maneiras, agenciando o
sentido e a lógica da macroestrutura na qual ele culturalmente se
insere.
Se o problema é colocado assim, podemos aduzir, daí, o
seguinte: o corpo é um signo composto por um conjunto de
microssignos (denominados de cine ou proxe), que formariam
as unidades microssigniicantes, responsáveis pela sua articulação
em sentenças. Estes microssignos são constituídos de maneira a
se articularem em sentenças por movimentos e gestos proferidos
pelo corpo. O corpo, em tal caso, estrutura discursiva, agencia
informações com a inalidade de elaborar uma atividade
geradora de eventos diferenciados na sua constituição em novos
discursos corpóreos. Os eventos culturais conjugados permitem
a existência de práticas discursivas, que, por si só, formalizam-
se no campo cultural; por intermédio dos eventos culturais por
eles mesmos gerados, os atores sociais fazem seu corpo falar o
discurso do evento, que se constitui como uma macroestrutura,
cujas unidades sígnicas são também os corpos em ação.
Estes corpos, nas formas de ação, deinem uma interação
social. Estas ações corporais atuam como ações sociais ao
traduzirem e contextualizarem as práticas de sociabilidade,
responsáveis pelo entrelaçamento dos indivíduos na vida social.
Tal entrelaçamento pressupõe uma agregação: a vida social,
desta maneira percebida, torna-se composta por vários eventos
ou situações e, nestas situações, os corpos actantes-agentes (isto
é, os corpos dos atores em ação intencional não consciente)
encontram-se produzindo atos comunicativos por intermédio
de falas (verbais e não verbais), convencional e culturalmente
programadas.

d 53 o
Julio Cesar de Tavares

Um corpo social é um organismo que adquiriu autonomia e


instituiu-se por meio da linguagem e dos discursos, que cumprem a função
de reproduzir os hábitos e as distinções sociais historicamente constituídas
(BOURDIEU, 1979, p. 546) num determinado espaço, topológica e
socialmente ocupado por indivíduos agentes, atribuídos mediante arranjos
espaciais. O corpo biológico, aqui nesta relexão, torna-se absorvido pelo
corpo social e transformado em um corpo produtivo, sobretudo diante
da informatização da sociedade, em que, cada vez mais, o corpo tende
a desempenhar um papel de meio de produção simbólico. Todavia, o
corpo, destituído de e/ou secularizado em seu caráter ritual, é impingido
à crescente rotinização no trabalho e à fragmentação da consciência
individual, marca presente nos personagens que desempenham papel
semioticamente inscrito pela cultura, desde a fase elementar da infância.
É meu corpo que fala antes mesmo de me utilizar do aparelho
fonador pelo qual vou emitindo as imagens acústicas que pronuncio, antes
de me tornar consciente do próprio corpo. O meu discurso, entretanto,
não ica só aí. Enuncio minhas intenções, em geral, de forma inconsciente,
através de meus gestos e movimentos com todo o corpo, pois este se
relaciona com determinadas situações que foram capazes de se tornar
matrizes dos movimentos que pontuam as frases verbalizadas. (VIEIRA,
1983, p. 51-76)
Tornar possível a existência exige-nos um domínio e uma
consciência do corpo, lugar primeiro do existir, com e no qual estou no
mundo apto a viver o presente vívido. É desta maneira que dou conta
do corpo como lugar que concede acesso ao meu eu, seja por meio das
situações dramáticas, seja pela via do trabalho (ação corporal e esforço), da
ação social ou da criação artística.
Se percebo, por este percurso, o processo que se estabelece e a
comunicação daí advinda, veriico que meu corpo é o principal responsável
pelo meu estar no mundo. Fica claro, também, que a realidade social só
poderá ser, efetivamente, compreendida pela percepção do jogo e dos
esquemas corporais, tradutores e veículos das ações que instituem
o mundo da vida e a realidade cotidiana.

o 54 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

ESQUEMAS CORPORAIS E SOCIEDADE

[...] son los gestos del cuerpo los que, en movimiento


e en reposo, producen la materialidade de las sociedades,
condicionan su existência y su funcionamiento. De um lado los
gestos de la actividade material, gestos de lo cotidiano vivido;
de outro, los gestos vuelvena representar esa vivência de forma
simbólica o imitativa. De uma parte una tensión muscular, un
gasto de energia, que producen de regreso um trabajo consumible;
de la outra parte una consumación de energia motriz, creada y
transmitida com ines culturales o no.
Aldona Januszewski

Cotidiano... redescobrir o cotidiano. Ao mesmo tempo,


veriiquei que o seu lugar correspondia a um momento de
interseção do mundo mais abrangente, que é o mundo cósmico.
Quanto mais tomo consciência da dimensão da realidade na qual
me encontro, mais ainda conecto-me com o mundo cósmico e
veriico que sua existência não é mais do que a decorrência da
percepção elementar que fazemos do mundo por onde a vida
acontece: mundo cotidiano. (LEFEBVRE, 1968)
De onde parto para chegar ao corpo? Por que o corpo? Foi a
busca de questões intimamente ligadas àquilo que chamamos de
“cotidiano” e “presente vívido” que me conduziu a uma relexão
pormenorizada a respeito do corpo. Por isso – volto a dizer –,
parto da vida cotidiana!...
Caberia abrir um tópico que fosse capaz de dar conta de
que o corpo é capaz de ser além de signo, quer dizer, além de
um componente especíico para a linguagem, funcionando
como condutor de signiicações inumeráveis por intermédio dos
gestos e dos movimentos. O corpo, pela signiicação que produz,

d 57 o
Julio Cesar de Tavares

enuncia, nas frases de seus movimentos, uma ordenação lógica


dos artefatos (roupas, balangandãs etc.) que compõem a sua
estrutura. Estes artefatos, como linguagem que são, correspondem
à estrutura sociocultural que forma o chão da gramaticidade, das
normas e códigos por onde os agentes coletivos (SROUR, 1978,
p. 64) interatuam.
Quando aponto para a “ordenação lógica dos artefatos”,
reiro-me ao dispositivo que construímos com o objetivo de
imprimir uma determinada ordenação aos artefatos que, no corpo,
adquiriram um papel de adorno. A maneira como eles serão
distribuídos nos indica os termos do corpo, considerados mais
relevantes em uma determinada cultura ou em uma determinada
sociedade: o seu esquema corporal. (Cf. COSTA, 1978, p. 19-24;
CHAZAUD, 1978, p. 27; LE BOULCH, 1982, p. 18)6
Para algumas sociedades, o tronco tem um papel mais
importante que a cabeça. Já em outras, não assume este destaque,
como naquelas em que são os membros. No caso da cultura africana,
os quadris adquirem a função-chave do corpo, no que é observado,
anotado e destacado por Riefenstahl (1978A; 1978B), Chesi
(1977) e Huet (1978). Podemos deduzir, a partir dos textos e fotos
das performances africanas, elaborados pelos autores mencionados,
que o corpo do ocidental seria, em geral, marcado por três partes
essenciais – cabeça, tronco e membros –, como se veriica abaixo:

6
Aqui, amplio o uso deste conceito ao tomá-lo de empréstimo da psicomotricidade e agregando,
nele, elementos sociológicos e antropológicos como componentes de seu sentido conceitual.

o 58 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

Se fôssemos dizer dos marcadores corporais quanto aos


movimentos nas culturas negro-africanas, diríamos que os quadris
apareceriam como um quarto componente conforme a igura:

No contexto das danças africanas, existe algo que diz respeito


às características estilísticas que os agentes de uma cultura são capazes
de veicular através do movimento. Há que se considerar, neste caso,
o trabalho de Alan Lomax (1969, 1972, 1975), o qual investiga o
corpo na música e na dança na África e nas Américas. Com suas
pesquisas de campo nos Estados Unidos e em grande parte da África
e do Caribe, Lomax7 identiica que os quadris devem ser considerados
uma linha de força de uma dada sociedade e, como tal, tornam-se
cruciais nos agenciamentos responsáveis pelo desenvolvimento,
reprodução, continuidade e adaptação da cultura. Neste contexto,
em acordo com Lomax, podemos falar da habilidade na execução
de movimento de quadris como uma característica particular, em
África, fortemente presente nas danças em sua forte relação com os
rituais de passagens (nascimento, casamento e morte), transições das

7
Alan Lomax (1915/2002) foi etnomusicólogo e folclorista estadunidense, responsável por
apontar um olhar sobre a dança como uma sublimação das experiências e das noções desenvolvidas
e executadas a partir das rotinas cotidiana de uma cultura. Empreendeu um magníico e extenso
trabalho de registro musical de prisioneiros negros, cantadores de blues no Sul dos Estados Unidos
e de todas as performances musicais e corporais que expressassem sobrevivências da cultura
Africana na diáspora. Para além disso, ampliou suas pesquisas para outros continentes com o
propósito de melhor explorar sua contribuição. Visite sua inovadora proposta de catalogação das
danças e músicas étnicas de todo o mundo, no JUNKBOXEGLOBAL 1998. Consultar http://
www.youtube.com/watch?v=Bx_hUrevOdw&feature=youtu.be;
http://www.youtube.com/watch?v=zsiYfk5RV_Q&list=PL9F43AE5FF7E455F6
http://www.youtube.com/watch?v=lVPLIuBy9CY&list=PL72B84C573F7598ED

d 59 o
Julio Cesar de Tavares

estações (festival das primaveras, tempo de colheita) e em festas de


iniciação e de fertilidade. A agilidade e velocidade com que os quadris
se movimentam, em muitas das sociedades africanas, resultam dos
treinos para celebração dos aspectos evidentemente conectados à
fertilidade; todavia, sua projeção na execução das rotinas cotidianas
adquire importância no equilíbrio nas subidas de ladeira quando os
pesados cestos são carregados à cabeça e as mãos devem permanecer
ocupadas com bolsas repletas de produtos do mercado. Sendo assim,
os quadris operam como suavizadores dos choques (Cf. EPSKAMP
et alli, 1993, p. 143) e constituem-se como elemento padrão da
cultura. Esta predominância dos quadris, no campo da cultura
corporal, revela-se como um eixo articulado – o que permite que
uma região do corpo adquira demasiada autonomia, a ponto de ser
denominada como “cintura solta” (de acordo com a linguagem da
Capoeira desenvolvida pelo Mestre Bimba) –, a variável somática
responsável por dribles magníicos, como os de Garrincha; ou
os requebros das passistas no carnaval, no samba; ou, então, nos
movimentos plásticos, religiosamente constituídos na Umbanda ou
no Candomblé, principalmente; ou, ainda, nas movimentações dos
capoeiras, dos breakers, do reggae, do soul ou do rock.
Cada participação em uma dessas performances promove
uma revisitação às situações capazes de recriar o ethos de
participação do corpo de forma ampliada. Aprofundar esta
questão é investir na análise do campo cognitivo, isto é, na análise
da constituição dos esquemas e da memória motora (BASTIDE,
1980, p. 33) de uma coletividade.
Mas não precisaríamos ir muito longe para identiicar que os
dispositivos cognitivos estão interligados à percepção socioespacial,
que deine as possibilidades de existência dos corpos em observação.
Cada cultura acabaria criando determinados hábitos, que atuam
como disposições duráveis (BOURDIEU, 1980, p. 88-89) e que
reletem a carga dos mecanismos sociais internalizados. Assim, em
uma cultura ou formação sociocultural, que se utiliza de regiões
corporais como os quadris conforme se veriica na África, termina a
o 60 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

cintura obtendo um papel muito mais relevante do que em outras.


Desta forma, há um valor inscrito nos artefatos, que são peças de
reforço dos sentidos que o corpo quer expressar.
Resumindo: o corpo é um componente do mundo da vida,
do cotidiano, e por ele percebemos e sentimos o mundo e as
demais pessoas em nosso convívio, que se transformam em nosso
Outro. Por intermédio do corpo, desenvolvemos e aperfeiçoamos
a comunicação com as outras pessoas, além de darmos um colorido
às nossas emissões audioacústicas pela via da gestualidade vocal; ou,
então, pela ação estética, ao criarmos símbolos que nos permitam
signiicar expressivamente a realidade. Conirma este fato a própria
maneira de os corpos se adornarem, tendo em mente a possibilidade
de reairmar determinados valores.
Os indivíduos, sobredeterminados por essas situações, evocam
uma certa representação do corpo. Desta forma, eles pronunciam-
se informados culturalmente nos limites demarcadores das
características comportamentais que ditarão suas atitudes; as técnicas
corporais tanto lhes servirão como assinaturas dos movimentos para
o dia a dia quanto àqueles imprimirão motricidade suicientemente
forte para projeção do corpo na dimensão energética da consciência
nem verbal, nem não verbal de comunicação.
Por esta dimensão, capto os sinais com os quais poderemos
restituir e reconstituir a memória coletiva (Cf. BASTIDE, 1980,
p. 45), soldada neste campo de experiência não visível. Inúmeras
práticas de vivências ritualizadas assumem, no Brasil, uma função
muito especial, que é a de manter a tradição de determinados
hábitos comportamentais pela via de certas ações corporais e da
própria comunicação não verbal que estas pressupõem.
Gestos e movimentos conectam-se, constituindo uma
linguagem a qual, pela via corporal, articula os artefatos, que
reiicam seus fetiches a partir da função de adorno corporal,
bem como asseguram e constituem dispositivos de identidade
coletiva.

d 61 o
Julio Cesar de Tavares

Assim entendida, a memória social mostra que a existência


ou a inexistência de documentos escritos jamais será justiicati-
va plausível para explicar o desconhecimento de uma ininidade
de situações desconectadas no tempo e no espaço histórico por
causa da impossibilidade de análise de um material empírico su-
icientemente consistente. Entenda-se, portanto, aqui, a memória
coletiva como sendo a memória motora, a própria documentação
escrita pelos gestos e movimentos corporais. (BASTIDE, 1980, p.
57 e LOMAX, 1969; 1972; 1975)
Isto, sem dúvida, traria contribuições para se pensar uma
História do Corpo; ou seja, a abertura de uma relexão que indague
como diferentes práticas corporais conduziram os seus agentes
a se relacionarem entre si com o próprio corpo. Por exemplo, a
compreensão de como, na Diáspora africana, formações discursivas
de interações e expressão social foram ludicamente constituídas
como ação social, visando à rebeldia e à resistência, tais como as
performances já citadas: o Samba, o Tambor de Crioula, o Jongo,
o Soul, o Rock, o Reggae e, há séculos, a Capoeira.
Possivelmente, encontraríamos, aí, a formação de categorias
empírico-emotivas. Seria, exatamente, a hora da sensação sem
racionalização. Pura emoção de sentir a sintonia da situação!
E tudo isto sem que se tivesse consciência do próprio sentir,
inclusive desconhecendo-se a possibilidade de se saber algo dele.
Seria o momento da construção de um modelo pré-categorial de
classiicação, sobretudo quando sua forma é a própria cristalização
da situação criada em movimentos sobre determinações espaço-
temporais. Neste momento, teríamos a pura consciência da
expressão do ato de viver, na sua poética autorreferência8.
A identidade dos afrodescendentes, na Diáspora, tem-se
dado por intermédio do discurso proferido pelo uso do corpo.

8
Para Antônio Damásio (1999), esta é uma questão fundamental na formação da consciência.
Este neurologista considera que a consciência se fundamenta em ações e narrações não verbais
do conhecer, que emergem com a tradução verbal daqueles eventos. Assim, o núcleo central da
formação da consciência estaria no estágio imagético-perceptivo-não verbal.

o 62 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

É pela capacidade de perceber, captar, processar, recalcar, dizer,


sentir, traduzir e enunciar mensagens pela via do corpo que, desde
quando os africanos aqui chegaram, tem permitido a construção
desta experiência de mundo que chamamos, hoje, de Diáspora
africana. O corpo, assim, torna-se tradutor das racionalizações
de experiências cósmicas (no plano das tradições religiosas e dos
múltiplos estados de consciência correspondentes àquela cultura)
e cotidianas (no plano das vivências estabelecidas no agir do corpo
no aqui-agora do mundo colonial), que derivam em ação; transita
na história dessas identidades africanizadas na Diáspora. É o que
ocorre com o Soul, o Funk, o Reggae, o Break, o Hip-hop, entre
outros, os maiores exemplos destas marcas transistóricas, numa
série ininita de expressões em várias nações do Planeta.
Estas propostas musicais, como tantas outras, atravessaram
as barreiras das nações onde tiveram origem e internacionalizaram
a sua popularidade, convertendo-se no popular internacional do
século XX. Devemos considerar que esta ação foi, de fato, favorecida
e impulsionada por uma indústria cultural de massa, admitiu
àquela informação estética transformar-se em mercadoria audível e
percebida de maneira bem familiar por multidões de consumidores
em todo o mundo, podendo, com isto, transpor possíveis obstáculos
comunicacionais. Entretanto, devemos também admitir que a
materialidade comunicativa, isto é, a substantividade da mensagem
seria recomposta por dispositivos universais de identidade étnico-
cultural, que o público consumidor deste produto, instintiva e
involuntariamente, fazia processar. Estes dispositivos seriam os
movimentos musculares e corporais que o ritmo percussionado da
musicalidade negra – the black beat – sensualmente insinua.
Como consequência, o processamento e a decodiicação
da informação estético-musical enunciar-se-iam em movimentos
corporais, em ludicidade, em ritmo, em dança; enim, em possessão
dos códigos corpóreos e gestuais, que estariam imageticamente
embutidos no formigamento do ritmo.

d 63 o
Julio Cesar de Tavares

Quero dizer, com isso, que o cotidiano encontra, no corpo,


a principal categoria das substâncias materiais do entendimento
humano e que interpenetra com sua oposição macrodimensionada
– o Cosmo –, gerando, assim, uma resultante histórica atualizada
no tempo e no espaço, correspondente à vivência imediata desta
coletividade, o público consumidor. Por esta vereda, torna-se possível
introduzir uma nova variável para se pensar as ações políticas: a
identidade corpóreo-gestual como uma variação das identidades
coletivas de que fala Habermas. (Cf. HABERMAS, 1983, p. 49-
75) A identidade corpóreo-gestual se deiniria pela possibilidade
de aproximação, simpatia e sintonia por intermédio dos ritmos do
corpo. Esta identidade é expressa na atividade co-operativa e recíproca
entre os sujeitos por meio dos “encaixes” motores de seus corpos.
Considero a movimentação corporal, criada pelo Black
Rio no inal da década de 1960, pelo Reggae já nos anos 1970,
pelo Break e Hip-hop nos anos 1980, bem como pela gestualidade
funk nos anos 1990 e início do século XXI, nas grandes cidades
do Brasil, como comprovações desse fenômeno. Mais exemplos
poderiam ser apontados, como a chegada das músicas do Caribe
(o mambo e a rumba), nos anos 1950, que também constituíram
dispositivos estimuladores do crescente sentimento de reorganização
da comunidade negra no Rio de Janeiro e em São Paulo, que, sob a
mediação da gaieira e bailes de gala (além das festas de formatura
ou de debutância), contribuíram para o fortalecimento dos clubes
de convívio de negros, cuja presença nos clubes de classe média era,
então, interditada com muito mais frequência. O Aristocrata (em São
Paulo) e o Renascença (no Rio de Janeiro) servem bem de exemplo,
como espaços conquistados que são da relação corpo e política, de
um lado, e memória coletiva e identidade corpóreo-gestual, de outro,
entre os descendentes de negros na sociedade brasileira.
Alguns estudos já abriram suas portas a essas manifestações
sociais caracteristicamente ligadas à comunidade negra. Entretanto,
uma questão ainda permanece pendente: como é que, em tais

o 64 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

manifestações ou eventos, o corpo, coincidentemente, adquiriu um


lugar de expressividade de profunda signiicação? Isto é, por que,
nestas práticas de vivências populares, o corpo se encontra como
centro de toda signiicação?
Quando digo coincidentemente, quero dizer que, também nas
raízes africanas, o procedimento é semelhante, bastando tomarmos
os exemplos das decorações corporais. Elas fazem do corpo um
lugar de expressão estética e de indicação de linguagem. O corpo é
tratado como um lugar que, no tempo e no espaço, está consciente
do cotidiano vívido, bem como da própria cosmovisão constituída na
trama. (Cf. VEYNE, 1982, p. 51-85)
É claro que esse fenômeno de linguagem se conigurará de
diferentes modos, o que irá depender profundamente da cultura em
questão. O discurso no mundo oriental, por exemplo, reveste-se de
outros esquemas corporais diferentes dos do mundo ocidental, que se
baseia em uma estrutura binária de tipo simétrico “ou é de cabeça ou
são pernas”, não tendo a cintura o molejo, o balanço e a lexibilidade
que caracterizam, por exemplo, o movimentar-se dos africanos e
de seus descendentes, que cultivam muito mais as assimetrias do
movimento.
O que chamo de movimentar-se? Como deino movimentação?
Deino-a pelo plano de impulsão, impresso e derivado da quinesfera
individual (a esfera imaginária que contém o nosso corpo e que
compreende cinco pontos: a cabeça e os nossos quatro membros).
Esta impulsão é caracterizada pelo controle que estabelecemos com
relação ao espaço-tempo, com relação a mim mesmo e com relação ao
contexto no qual o movimento se realiza. É aí que os ritmos do corpo
variam. (SCHUTZ, 1979, p. 79-110)
Nessa visada, teremos um corpo, em seu movimentar-se muito
especíico, cujos quadris caminham também, independentemente do
caminhar dos pés, da cabeça e do tronco. O conjunto é a trama dos
quatro movimentos. Portanto, a estrutura corporal perpassa todas
as macroestruturas, havendo sempre registro do corpo em cada um

d 65 o
Julio Cesar de Tavares

dos símbolos construídos. São eles a ação produtora do homem.


Deparamo-nos com um comportamento totalmente diferente
daquele do encaixe do corpo no espaço, no cotidiano da vida, no
presente vívido.
Uma grande diferença, entretanto, merece destaque na
medida em que, para a civilização europeia, o corpo é, em grande
parte, permanentemente negado como lugar de airmação do ser.
A síntese aristotélica, que São Tomás de Aquino empreende, já
traz um sinal para que se encaminhe a negação do corpo, uma
vez que ele invalida a audição, por sua relação direta com a carne,
privilegiando a imagem. Outro fato é a dança, que não se integrou
às liturgias cristãs da Idade Média, mesmo tendo existido alguma
exceção, como na Catedral de Sevilha após o século XVI, durante
a Semana Santa. (BOURCIER, 1981, 36)
O importante é assinalar que, na Idade Média, no que
toca aos hábitos eclesiais, foi introduzida uma nova retórica para
o corpo (BOURCIER, 1981, p. 46-59), que se conigura na
ruptura com a evolução das coreograias, que se constituíram em
todas as culturas precedentes. Estas são reinventadas, passando
a dança a ser uma sequência mensurada com passos medidos,
transformando-se em apenas um divertimento encapsulado,
perdendo seu caráter religioso e ritualístico. A razão disto estaria,
possivelmente, no fato de a dança recorrer ao corpo, aos seus
poderes, exatamente em um momento em que o corpo estava
sendo negado.
De certa forma, o que pode ser enunciado como o fato
social de maior relevância com relação ao corpo é a inauguração
de uma nova retórica para o corpo. Tal fato só começou a se
desintegrar a partir do século XV, quando alguns pintores, como
Brueguel e Boch, recuperaram o corpo em uma nova dimensão
para o espaço estético. Neste, o corpo aparecia ligado às fantasias
e fantasmagorias do inconsciente, burlando os limites do real
no cotidiano medieval. Mais tarde, o projeto escultural de

o 66 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

Michelangelo e de Da Vinci apresentaram mais elementos que


dissolveram, gradativamente, a velha retórica do corpo.
É importante frisar que a reentrada do corpo no campo
visual do Ocidente surgiu com o processo de apropriação capitalista
do mundo, ainda que de forma um tanto lenta. Mas, de qualquer
maneira, o (re)conhecimento do corpo responde ao processo
originário de acumulação capitalista. Faz parte deste processo a
expropriação das chamadas populações nativas, como é o caso das
civilizações pré-colombiana, ameríndia e africana.
Em todos esses espaços-tempos históricos, ou melhor
dizendo, nessas formações econômico-socioespaciais, temos o
mesmo procedimento: o roubo dos produtos do trabalho, ou
da força de trabalho (conforme os serviços forçados nas minas
de diamantes ou de ouro do Sudão, na África) ou, então, em
última instância, o sequestro e a expropriação dos corpos destas
civilizações para a escravidão. O mais interessante, ainda, é que
este “(re)conhecimento” do corpo, do qual falei anteriormente,
corresponde também ao momento do Renascimento cultural da
Europa, à constituição da Modernidade, possível por meio da
incorporação da produção artística das populações tidas como
“primitivas” do Novo Mundo.
Os produtos do trabalho criativo destas populações,
considerados como peças valiosas, como os tótens, as máscaras,
o artesanato, o corpo, enim, tudo se constituía em fator da
acumulação originária e, por este caminho, em dinheiro para
inanciar os trabalhos dos artistas que, por encomenda da Igreja, da
Monarquia ou dos comerciantes bem-sucedidos, podiam ver suas
obras executadas.
Assim, tanto a expansão marítima europeia e o tráico de africanos
para o Novo Mundo e Europa quanto o Renascimento e a Modernidade
constituíram-se em dispositivos de extorsão da criação artístico-civilizatória
das civilizações nativas nas áreas conquistadas e colonizadas, servindo de
plasma para a transformação sociocultural da Europa.

d 67 o
Julio Cesar de Tavares

Tal informação permite-nos dizer que o corpo era,


reconhecidamente, uma conquista daquela civilização primitiva, pois
caracterizava-se como um lugar, no cotidiano, que assegurava o existir
do grupo por meio de cada um de seus membros. Essa conquista
maior foi apropriada em nome da Modernidade.
Já no século XIX, a abordagem de Marx quanto à teoria
do valor e o fetichismo da mercadoria trouxe um toque muito
especial no sentido de esclarecer o lado “mercadoria” que os corpos
tomaram. Trata-se do conceito de alienação, que, tomado de Hegel
e revestido por Marx com outra roupagem, reintroduzia o problema
da apropriação indevida feita pelo capital em nome da liberdade do
trabalho, em substituição à apropriação realizada pela Igreja, que se
justiicava em nome da salvação, tendo-se a Santa Inquisição como
o grande exemplo. Além de Marx, outros alemães visitaram a mesma
temática, como Nietzsche e Freud. Também os anarquistas tocaram
no problema, como Bakunin e Malatesta, os quais viam, no amor
livre, a primeira conquista que o indivíduo faria em relação ao seu
corpo e como superação da alienação.
Mas é na segunda metade do século XX quando, de fato,
tivemos grandes conquistas no que diz respeito a uma radical relexão
sobre o corpo, como o trabalho de Antonin Artaud (1974; 1975;
1983; 1984), que, preocupado em pensar uma nova proposta para
o teatro, procedeu ao levantamento do papel do corpo como lugar
de expressividade a ser reconquistado em nome de uma revolução
integral, que faria o caminho de regresso ao logos pré-socrático.
O conceito de revolução integral, cunhado por Artaud, emergiu
com força e profundidade na década de 1960, com a revolução dos
costumes, desencadeada a partir da Europa. A juventude mundial foi
conduzida a desempenhar papel decisivo, ao introduzir uma mudança
nos hábitos e no comportamento, indo desde uma transformação da
posição diante do mundo cósmico, até uma nova proposta de atitude
diante de si no cotidiano.

o 68 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

RESISTÊNCIA NEGRA E SABER CORPORAL

[...] pelo simples fato de sua isiologia, o Negro tem


comportamentos mais vívidos, no sentido de suas expressões
serem mais diretas, mais corretas tanto no âmbito da sensação
quanto da excitação, mantendo-se sempre em sintonia com as
forças originais do objeto. Não devemos, por isso, perder de
vista nem a hereditariedade psíquica nem a experiência social do
Negro africano. A impressão é retida no presente vivo para ser
transformada em sensação e representação, gerando assim mais
uma vez o comportamento devidamente ajustado com o texto
social que lhe compete. Ora, então o Negro – e negro africano,
para voltarmos a ele – reage assim mais ielmente à excitação
do objeto: casa-se com o ritmo deste. Esse sentido carnal do
ritmo – dos movimentos, das formas, das cores – é uma das
características que lhe são mais especíicas, pois o ritmo é a
essência da energia. É ele que está na base da imitação, que tem
um papel determinante na “atividade criativa’” do homem: na
memória, na linguagem, na arte.

Leopold Sédar Senghor

Capoeira e liberdade

Para iniciarmos nossa incursão no universo da Capoeira,


talvez devêssemos falar como diz Nestor Capoeira, grande
capoeirista e divulgador da arte-luta na Europa, em entrevista
ao jornal O Globo, em 3 de maio de 1978: “A Capoeira
corresponderia à síntese das instituições negras aniquiladas pela
colonização portuguesa.”

d 71 o
Julio Cesar de Tavares

A sobrevivência da Capoeira já é um elemento indicador da


sua importância. A travessia histórica cumprida por esse evento
cultural não foi tão simples quanto parece demonstrar a alegria
daqueles que, em festa, se arrodeiam em torno de um berimbau e
batucadores, em uma tarde calorenta do Rio de Janeiro, Salvador
ou de outras capitais brasileiras, dando início à “vadiação”
(conforme era denominada a execução do jogo), na realização do
homo ludens.
A manutenção de tal prática demonstra como a
comunidade negra mantém-se acesa e ativa na conservação das
instituições que concentram sua história e sua cosmogonia, ainda
que aparentemente, não revele nenhum desses aspectos e até
que deixe transparecer uma certa dispersão para com seus bens
culturais, mesmo que a consciência desse processo não se anuncie
de forma muito clara.
A resistência, razão dessa maneira de proceder, e a “manha
do jeito de ser” são, por si mesmas, heranças da principal tática
de luta introduzida pelos negros no combate à escravidão e à
colonização portuguesa, visando, evidentemente, à preservação de
seus próprios corpos contra o permanente projeto domesticador e
“aniquilador”, implementado pelo colonizador europeu.
Assim, também nos diz Benedito Peixoto:

Foi com astúcia que trataram de se preparar para enfrentar


situações difíceis nas fugas planejadas, utilizando um tipo de
luta rápida e decisiva, que dava oportunidade de enfrentar
muitos sem precisar segurar nenhum nem se deixar agarrar.
Ainda, astuciosamente foi introduzida a música com o ob-
jetivo de disfarçar o aspecto de luta desta farsa. (PEIXOTO,
s/d)

Pensar, organizar e movimentar um projeto de liberdade,


que pudesse constituir uma alternativa de modo, em que o negro
só tem espaço em posição de cega obediência, é, de fato, tarefa

o 72 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

de grande diiculdade. Por isso, os sentidos deveriam ser dotados


do maior grau de invisibilidade. As armas, neste processo, eram
basicamente duas: o corpo, peça bioisiológica e, acima de
tudo, fragmento de um coletivo de onde se é parte integrante
e inseparável, (neste grupo comunitário, onde seu corpo foi
forjado, ele detém a memória, que é a sua e a coletiva também),
assim como a energia9, a sintonia com todo o campo energético,
transcendental e cosmogônico, que revertia a visão de mundo.
Foi nesse trabalho invisível que a Capoeira se desenvolveu.
Institui-se como pano de fundo do drama da civilização africana,
compulsoriamente transladada para o Novo Mundo pela
dinâmica da acumulação originária do mundo capitalista. Seus
atores, os capoeiristas, inicialmente deveriam ter sido guerreiros
acrobatas, conforme veriicamos existirem, até hoje, na África.
Como guerreiros, eram possuidores de profunda intuição, que os
orientava nas fugas em territórios desconhecidos, além, é claro,
de sua avassaladora coragem. Em suas fugas, dirigiam-se para
diversos pontos e, neles, organizavam nichos – os quilombos –,
dos quais se tem notícia desde o século XVI.
Este fato indica, por si só, que os negros não eram passivos,
como muitos ainda acreditam, e que sua índole facilitava a
dominação.

Eram submetidos, mas não eram servis. Estavam sempre


tentando libertar-se. A Capoeira constitui uma arma para
o momento de luta necessário a essa libertação. E como de
outros meios não dispunham, senão de seus próprios corpos,
trataram de prepará-los da maneira mais apta a enfrentar fei-
tores ou capitães-do-mato. (PEIXOTO, s./d.)

O sistema escravista mercantil atendeu às necessidades


de exploração e assentamento em rica região, como o Brasil,

9
Esta concepção vital pode ser encontrada em Sergy (1967, p. 19)

d 73 o
Julio Cesar de Tavares

desprovida de mão de obra e, portanto, sem condições de


produzir, por extensas áreas, mercadorias que pudessem resultar
em capital acumulável. Outros atores em cena eram, de um lado,
o proprietário do patrimônio latifundiário e, de outro lado, o
trabalhador escravizado.
Para o primeiro, a sujeição do trabalho escravo ao capital
em gestão não estava consubstanciada na apropriação privada dos
meios de produção, mas, sim, na posse efetiva e exclusiva, isto
é, no monopólio do próprio trabalho, “transigurado em renda
capitalizada”, sugeriu José de Souza Martins. (MARTINS, 1978,
p. 20) Para o segundo, sua sujeição ao capital não se dava na hora
de produção e sim na hora da mercantilização enquanto escravo.
Isto pode ser facilmente constatado no caso da agricultura, pois
“antes de ser o produto direto, ele (o escravo) tem que ser objeto
de comércio. Para isso, tem que produzir lucro já antes de começar
a produzir mercadorias e não apenas depois”. (MARTINS, 1978,
p. 21)
Nesse sentido, ainda segundo J. S. Martins, “o escravo tinha
dupla função na economia da fazenda. De um lado, sendo fonte de
trabalho, era o fator privilegiado da produção. Por esse motivo, era
também, de outro lado, a condição para que o fazendeiro obtivesse
dos capitalistas (emprestadores de dinheiro), dos comissários
(intermediários na comercialização do café), ou mesmo dos bancos,
o capital necessário, seja para o custeio, seja para a expansão de
suas próprias fazendas. O escravo era o penhor de pagamento de
empréstimo”. (MARTINS, 1978, p. 21)
Em síntese, o escravizado deve ser compreendido como
uma força de trabalho transformada em capital que gera renda
quando inserido no processo de produção. Sua inserção realiza-
se mediante aquisição no mercado, permitindo uma acumulação
ao traicante e, ao seu comprador, um investimento na produção.
A “peça” era, a partir daí, transformada em capital ixo ou renda
capitalizada. Há, portanto, uma metamorfose desumanizante,

o 74 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

alienante, neste sistema de relações que corresponde ao seguinte


trânsito: de um ser humano em mercadoria; de mercadoria em
força de trabalho em si; de força de trabalho em si em capital ixo,
como se fosse uma máquina descartável (Quebrou? Joga-se fora).
Enim, do corpo comunitário (Cf. GIL, 1980, p. 48) ao corpo
produtivo. (Cf. DELEULE, 1973, p.16)
Neste circuito, todos lucravam (menos o escravizado):
o fazendeiro comprador da peça, porque conquistava um
instrumento de dinamização da sua acumulação de capital; a
Igreja, que recebia dízimos de todos os comerciantes, portanto,
quanto mais alto o lucro, melhor para a instituição; e, inalmente,
o Estado português, que, através da Coroa, cobrava tributo
pelo apresamento de negros em solo africano, área do império
ultramarino.
Na complexidade gerada pela escravidão mercantil, tanto no
que compete à realização interna quanto à realização externa do
capital, brotava uma complexa ordenação societária, como a dos
seus mecanismos de legitimidade. É no âmbito da legitimidade que
entram as formas de repressão e as formas de resistência e seus
respectivos universos simbólicos.
A repressão física era o principal instrumento acionado
para submeter os negros. Desde seu apresamento nas guerras ou
nas obtenções por intermédio das trocas, icava estabelecida a
interdição do contato com o próximo da sua comunidade. Ficava
interditada a comunicação, na medida em que os escravizados
encontravam-se aprisionados nos tumbeiros em direção a um novo
destino: o Novo Mundo. Interditava-se o acesso ao seu mundo
cotidiano, com seus familiares, com seus afazeres, com o seu hábito
de cheirar, sentir, ouvir, ver e falar com as coisas e pessoas que lhes
estavam próximas. Interditava-se o acesso ao seu próprio corpo,
icando obrigado a comportar-se de determinadas maneiras e a
atuar no cotidiano inventado pelo colonizador, a partir do código
e da língua do próprio colonizador. Pulverizava-se, com isso, o

d 75 o
Julio Cesar de Tavares

universo de signiicação dos negros africanos escravizados, icando


seus símbolos expropriados pelas frequentes comitivas europeias.
O horizonte simbólico africano foi desarranjado a partir
do momento em que os europeus não só sequestravam corpos
biológicos, humanos, mas também os corpos das representações
materiais, produzidas artisticamente como indicação do agir e pensar
no seu mundo cotidiano. Além disso, eram também componentes
do corpo comunitário, constituído por uma totalidade articulada
de ações, determinadas concepções, representações, expressões – em
última analise, símbolos e dispositivos de linguagem, que permeavam
toda comunicação humana.
Para cá, os sobreviventes da chacina corporal e da violência
simbólica chegavam totalmente fragmentados e iniciavam a
reconstrução de sua existência – tarefa difícil, já que, após o
desembarque, continuava o etnocídio. (JAULIN, 1979, p. 10)
Como é possível recompor o universo que icou do outro lado do
cotidiano-oceano? Não só isso: como preservar a memória daquele
universo perdido, já que não se podia recuperá-lo? Seria, talvez,
possível reconstrui-lo – e por que não – por meio de novas noções,
por intermédio de um projeto de plurietnicidade?
Outra diiculdade constituída para os negros escravizados era a
recuperação da fala. A saída foi aprender a língua do dominador, para se
comunicar. Este aspecto constitui-se na principal arma de dominação
colonial: a interdição da fala e o sequestro da palavra do outro. A via
comunicacional pela palavra verbal tornava-se especialmente difícil por
causa do convívio com membros de diferentes nações e, certamente,
também pelas diferenças existentes nas matrizes linguísticas e lógico-
cognitivas da população negra.
O Continente Africano engloba várias nações e, delas, vieram
milhões de negros escravizados. Eram gêges, bantus, iorubás, nagôs,
minas, tapas etc. – portanto, uma enorme diversidade simbólica. Mas,
apesar disso, seus agentes buscaram a constituição de uma complexa
rede que viabilizasse, na sua tessitura, a permanência de situações de

o 76 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

resistência, a rotina do cotidiano, em que seus corpos emergiam como


restritamente produtivos e nada mais. Romper com a coisiicação
anomizante era fazer, dentro do sistema, da forma mais camulada
possível, a sua transgressão. (Cf. DUVIGNAUD, 1983, p. 223)
Transgredir é superar o cotidiano inculcado com
Signiicante Supremo (Cf. GIL; 1980, p. 69) no seu próprio
interior, amoldando-se, nos seus interstícios, às brechas possíveis
de serem ocupadas, inclusive as de natureza psíquica. Eram estas
brechas psíquicas que permitiam a contraposição à hegemonia
cultural da civilização europeia. Nelas, se depositavam os hábitos
perdidos no passado amnésico, que poderia reconstituir os laços
sobre os códigos e valores etnicoculturais, como marcos da
tradição e da cultura das diferentes nações da civilização africana.
Consequentemente, os negros permaneceram em estado
de alerta, em uma situação de guerra de guerrilha, em que o
combate se dava de forma permanente, camulada, fragmentada
e paulatina, até que se contaminassem todos os nervos do poder,
com o contrapoder de sua atuação. Ainal, não nos esqueçamos
de que os europeus produziram um etnocídio ao eliminar grandes
contingentes humanos de sua teia existencial e civilizatória. Os
traços de identidade étnica e sociocultural, porém, não foram
abandonados e nem deixaram de ser recuperados.
Portanto, mesmo que destituídos de instrumentos eicientes,
do ponto de vista militar, para resistir aos colonizadores, agentes da
“civilização” (JAULIN, 1970, p. 14), foram manipulados instrumentos
extremamente sutis aos olhos do dominador, com a inalidade de se
preservarem seus corpos e suas cosmovisões. Este fenômeno revelou-
se como um traço comum nas diferentes civilizações submetidas, seja
no Novo Mundo, na África ou na Ásia, cuja inalidade, consciente
ou inconsciente, era burlar a eiciência do controle da civilização
ocidental, conigurada desde a expansão da produção mercantil.
No caso dos africanos escravizados, trazidos para as
Américas (do Norte, Central e do Sul), o sistema de resistência

d 77 o
Julio Cesar de Tavares

constituído, forçosamente, teve que adquirir um grau mais elevado


de complexidade, graças às inumeráveis nações que se mesclavam
fora do Continente Africano. Essas tiveram, no sincretismo e na
miscigenação, uma eiciente forma de organizar essa resistência,
mesmo que consideremos o elemento contrafatual que
representam na medida em que contribuem como políticas do
embranquecimento .

A Cultura da Diáspora Africana

Da mistura criada, uma nova comunicação se foi


estruturando, uma nova cultura se foi conigurando: Afro-
Diáspora ou Diáspora Africana. Acima de tudo, a identidade
desta cultura se constituía por intermédio de uma perspectiva de
eterno retorno, de volta e de religação com o espaço perdido no
tempo histórico colonial. Porém, uma vez estabelecida, mesmo
que por imposição colonizatória, seus dispositivos caminhavam
no sentido do restabelecimento do cotidiano e do “presente
vívido”, signiicante do seu “ser-estar no mundo” e da comunidade
de onde foi sequestrado, amalgamando a cultura do presente com
a cultura da tradição. Simultaneamente, esta cultura estava no
limite entre a modernidade colonial e a tradição escravista.
Apesar da distância, a África poderia reverberar-se em
signos dessemantizados, signiicantes, cujos sentidos não estariam
neles próprios, mas, sim, na ação dos seus agentes por impulsão
da sintonia energético-cósmica. Seriam possuidores de inalidade
zero, absolutamente desinteressada, sem que o negro escravizado
deixasse de estar em alerta total quanto àquilo que foi índice de
airmação da tradição costumeira, enquanto evento denotador/
conotador do seu telúrico texto cultural.
Tais signos, que atuavam como forças signiicantes,
seguiram um rastro que poderia desembocar em uma constelação
de signiicados lúdicos, em que a vontade e o prazer saboreariam

o 78 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

a sua realização em festividade. Isso implica uma transgressão


reletida em dois níveis, no mínimo: primeiramente, porque
sua realização, no plano empírico, contrastaria com eventos que
ocorressem naquele cotidiano despótico, principalmente para os
escravizados, pois este evento corresponderia a um outro código
linguístico e, portanto, a uma outra fala, em um território já
delimitado pela guerra etnocida de imposição de convenções
comportamentais; em segundo lugar, em virtude do efeito
catártico sobre os agentes, na medida em que, ao se transpor a
bipolaridade objetividade/subjetividade, transpassavam-se a rotina,
as inculcações, as internalizações arbitrárias...
Nessa trilha, arremessam-se na festa, no ritual, no drama, nas
cerimônias iniciáticas – religiosas ou costumeiras – e no repertório
médico-alimentar, heranças cravadas no corpo, como memória da
ancestralidade pela tradição oral. (DOS SANTOS, 1977, p. 123) E
mais: o fato de ser oral o canal que emite as informações ancestrais e
genéticas da comunicação duplica a airmativa subversiva que a festa
e o lúdico cumprem. A via oral da comunicação é essencialmente
corporal, desde que entendemos o corpo como um sopro em ação –
respiração: hábito, atividade principal para o élan vital.
Entra-se em atuação na zona de tensão quando se supera o
duplo arbítrio e a dupla transgressão que a ela se referem. Duplo
arbítrio? Sim. Primeiramente, decorrente do caráter inculcador que
os limites da ação estabelecem; segundo, graças à não atuação, à
não participação na deinição dos códigos. Zona de liminaridade, no
equilíbrio entre submeter-se à transgressão ou submeter-se ao arbítrio.
Desta maneira, a festa e o ritual constituir-se-iam em formas
de comunicação não verbal. Ao se realizarem, transgrediriam a rotina
cotidiana imposta pelo signiicante despótico ao corpo produtivo
sequestrado do corpo comunitário que, então, na sinergia, na gira,
na energização e na cosmocentricidade, isto é, no centramento no
tempo cósmico, em faixas de tempo regidas pelo mito, inalmente
se coniguravam. Graças à festa. Graças ao lúdico. Graças ao jogo.

d 79 o
Julio Cesar de Tavares

E destas atividades lúdicas, com seu discurso não verbal


predominantemente corporal, foram forjadas as armas dos negros da
Diáspora: religiosidade, culinária, arte e luta, elos que se trançaram
em verdadeira rede que, poeticamente, programou a constituição de
um complexo sistema cultural de resistência, capaz de se potencializar
em uma sabedoria de técnicas corporais ainda não suicientemente
sistematizadas.
Não há dúvidas: a resistência sociocultural do negro foi
sendo estruturada de forma poética não verbal e, certamente
por isso, foi difícil para os europeus conseguir levar a cabo a
destruição total e deinitiva de toda a cosmogonia das civilizações
das periferias do sistema mercantil.
Na transgressão lúdica, pelas formas carnavalizadoras que
foram adotadas pela resistência negra, o corpo e o som (ritmo
sonoro) vieram introduzir uma identidade corporal e musical
que não é usual. Vigoroso centro emissor de energias, chacra e,
sobretudo, axé do sistema de resistência, acionado pela liberdade
de seus movimentos e ritmos. Para o negro da Diáspora, o Samba,
o Soul, o Jazz, o Reggae, o Mambo e, entre outros, a Capoeira,
são os textos que preservam os resíduos da viva transgressão, que
seu repertório de signos não verbais vem realizando.
Corpo-movimento e som-ritmo mesclam-se e, daí, espoucam
em espaço lúdico em direção ao resgate do cotidiano vívido e
sequestrado pela ação colonizatória, assegurando, simultaneamente,
a possibilidade de se intensiicar a sociabilidade entre os agentes
do processo. Ao imiscuir-se no drama inscrito nos procedimentos,
nas atitudes, nos gestos, a energia terminava por se desenvolver e
o resultado era, inevitavelmente, a transformação de seu agente em
actante e do seu lugar em cenário.
As situações dramáticas, que marcaram o cotidiano dos
escravizados, terminaram por se condensar em movimentos corporais,
seja nos gestos espontâneos, seja nas rotinas corporais habitualmente
executadas, pois o corpo era o principal veículo de referência com o

o 80 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

mundo exterior. Os métodos utilizados pelo colonizador reforçavam,


ainda mais, a evidência da dimensão corporal da consciência vital
que, nos negros escravizados, pelas características das culturas
africanas (bem como pelos agentes sociais), sempre tiveram maior
relevo que no Ocidente. Entende-se o corpo como sendo um campo
magnético de uniicação de forças, para onde convergem toda a ação
cotidiana e toda percepção cósmica. Isto lhe dá a característica de um
sítio arqueológico que detém, arquivado nos seus gestos e hábitos
cotidianos, as informações de situações dramáticas e dramatizadas,
através da força de sua ação gestual.
Se tomarmos as atividades lúdicas desenvolvidas na África –
tais como as danças de irrigação, as danças de fertilidade, as danças
religiosas, as danças de iniciação –, veremos que, nelas, as linguagens
gestuais apontam para um determinado saber do mundo inscrito no
corpo como resultado de um certo momento da vida cotidiana do
grupo. Neste sentido, o corpo, naquelas comunidades, cumpre um
papel imediato: realiza a ação direta da produção da presença. No
Ocidente, tal ligação visível, imediata, cotidiana e totalizadora com
o corpo icou perdida da sua história a partir de um dado momento.
Então, por isso mesmo, resistir implicava uma ação estratégica
que relacionava o corpo e dele fazia o principal ponto de referência
diante do mundo exterior. Esta ação, colocada especialmente pelo
corpo, de uma forma não verbal, constitui-se na expressão condensada
dos movimentos que sistematizam a ação gestual dos hábitos corporais,
os quais podem ser entendidos como um sentido de resistência e como
um ato de rebeldia. Resistir signiicava manter-se vivo e, antes de
mais nada, a necessidade de preservar-se inteiro, isicamente íntegro,
assegurando a pulsão daquele corpo, cotidianamente massacrado
pelas engrenagens da extensiva agromanufatura exportadora.
Com ele, nele e para ele, era necessário se rebelar. Fazer do
corpo o ponto de partida e de chegada da luta. Preservar e agregar, na
sua única propriedade, que era o corpo – todavia, desconhecida como
tal pelo escravocrata –, todas as informações que impulsionassem a

d 81 o
Julio Cesar de Tavares

viabilização deste projeto liberatório. Isto signiicava tornar simbólicos


os planos cotidianos e cósmicos da existência. A instância deste
processo esconderia a força dramática resultante da pulsão angular
constituída pela interseção do agir-aqui com o resgate do constituído
por lá, como compreensão do mundo.

O Saber Corporal

A Capoeira foi uma dessas saídas de emergência acionadas


pelos negros escravizados no Brasil, na medida em que constitui
uma resposta de recuperação da cosmovisão. Na empiricidade
do agir-fazer no espaço-tempo perdido, atualizam-se os gestos
sequenciados, como códigos que realimentariam as heranças
de sociabilidade interpessoal e os modelos de comportamento
adotados por intermédio dos movimentos corporais, impressos
nos hábitos cotidianos.
Passa o corpo a falar e a salvaguardar a memória do grupo
por meio de modulações gestuais referidas às formas de vida no
tempo e no espaço de origem. Passa o corpo a constituir o saber
da comunidade e a perfazer-se como arquivo e como arma. Passa
a fortalecer-se como um saber corporal.
Por im, o que é saber corporal? É a possibilidade de
constituição de uma enunciação gestual em prática discursiva,
que se serve dos movimentos e ações corporais para a estruturação
de seu repertório. Este repertório é a resultante das articulações
dos signos elaborados a partir das vivências cotidianas ou nelas
intercambiadas. O vórtice do processo em questão localiza-se
na sincronização da condição de se estar-no-mundo, em estado
consciente, com a consciência da prática corporal situada no
instante cotidiano e na interconexão com a dimensão cósmica
que esta consciência institui.
Enquanto discurso, este saber se conigura como uma
prática que desvanece em um universo de enunciações pela via

o 82 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

dos gestos ou dos movimentos corporais. O saber em pauta não


tem, necessariamente, que possuir sentido, tampouco prescindir
de uma semântica. Pode ser que alguma das enunciações seja
dessemantizada e seu signiicante lutue, levite e se realize na
condição exclusiva de tornar-se visível, prático, ativo. Este tipo de
saber é característico, principalmente, das civilizações primordiais
e não europeias, que estabeleceram uma relação com seu corpo
sem a mediação de instituições, sendo ele mesmo a instituição
maior e complementar da própria vida na comunidade: o ser
instituinte e agenciador do projeto comunitário.
O corpo aparece, assim, como o repositório de inumeráveis
experiências realizadas no cotidiano; como arquivo das
informações que icaram evidenciadas por intermédio dos gestos
e dos movimentos corporais. É o corpo um arquivo não verbal
e, por intermédio dele, a memória comunitária é recuperada,
passando o corpo a falar e a salvaguardar a memória do grupo
por intermédio das modulações gestuais, cuja elaboração foi
possível.
Esta conclusão toma como parâmetro a intuição segura em
que a palavra condensa o sentimento do momento. Este trabalho
mental constitui-se no efeito tangencial produzido pela sensação
diante de um objeto. Tomemos como hipótese, exemplarmente,
a existência dessa homologia entre o plano gestual e o plano
linguístico. Deste modo, o corpo torna-se possuidor de um
sistema de signos com o qual se procura representar e simbolizar
o mundo a partir dos gestos e movimentos corporais, bem como
da energia por ele emanada.
Na verdade, esse saber corporal assenta-se na consciência
da energia contida e emanada pelo corpo, nos seus limites e no
equilíbrio que resguarda e salvaguarda a especiicidade de cada
corpo; na sua potencialidade e nas condições para que se codiique
e se recodiique. Deste modo, o corpo se conigura no centro
de forças para onde se dirigem e de onde emanam as energias,

d 83 o
Julio Cesar de Tavares

as quais circulam com uma função designativa daquilo que, nas


sociedades primordiais, seria o signiicante lutuante.
Do corpo, temos a erupção dos signos, que enunciam ba-
lanceamentos necessários da sociedade a partir dos próprios cor-
pos, conforme nos diz José Gil (1980):

A cultura das sociedades primitivas, por oposição à maior


parte das sociedades históricas, visa a tornar possível a vida
do corpo: é uma cultura para o corpo. Tudo nela contribui
para o equilíbrio que salvaguarda a singularidade de cada
corpo, a sua potência, a sua capacidade para se decodiicar e
para se recodiicar. (GIL, 1980, p. 54)

A herança que os negros da Diáspora acumulam refere-se


exatamente a esse tipo de procedimento, em que o corpo passa
a ser entendido como um dispositivo de poder, de identidade e
de pertinência a um ou a outro grupo. A identidade é fornecida
pela inserção e, consequentemente, pela sua pertinência em uma
dada comunidade por onde se espelhem as singularidades e não
conforme ocorre nas sociedades europeias, em que a consciência
corporal se dá de maneira individual e, portanto, fragmentada.
Podemos imputar ao processo de constituição do modo
de produção capitalista, ou melhor, às práticas capitalistas, a
introdução deste novo procedimento com relação ao próprio
corpo. Uma nova retórica para o corpo foi estabelecida com
vistas à individualização e, por seu intermédio, dissolveram-se,
gradativamente, os laços comunitários. Estes laços, arranjadores do
processo social, instalaram novas relações sociais, que implicaram
na coniguração de uma rede de corpos isolados e parciais, capazes
de movimentar, pela libertação de sua energia, as engrenagens do
sistema em funcionamento, transformando-a em força de trabalho.
Desta rede constituída pelos corpos-parciais, considerados
exclusivamente como força de trabalho, surgiu o corpo produtivo.
Este novo corpo constituiu-se em nome de um Signiicante
Supremo: o processo da civilização. O negro, ao ser escravizado,
o 84 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

foi coisiicado e transformado em peça acessória de um processo


de transformação material. A denominação utilizada, portanto,
era esta mesma: peça. Como tal, era como uma ferramenta
descartável, resultante das relações nas quais sua condição de
humanidade desaparecia.
Mas, possivelmente em virtude dos hábitos corporais
comunitários, a resistência foi intensa por parte dos africanos
na Diáspora, no sentido de que se evitasse a absoluta ruptura
do corpo comunitário pela inserção no corpo produtivo.
Enclausurados na estrutura das castas de escravizados que a
ordenação social da colônia havia deinido, a comunicação entre
os negros passou a realizar-se pela via não verbal. A linguagem
gestual renovada, condensadora de situações, emergiu como
instrumento capaz de propiciar o grito possível de liberdade,
que, inicialmente, ocorreu no plano individual, estruturando-
se depois no âmbito coletivo, já que, ao fugirem das senzalas,
os escravizados não encontravam condições para sobrevivência
sozinhos. Assim sendo, existiam regras nos Quilombos, dando
preferência às chegadas em grupo.
Esse grito sem som, hálito apenas, sopro proferido em
energia estimulada, signiicava, codiicadamente, a permanência
das imagens de situações do cotidiano, perdidas no tempo
histórico. Isto implicava no uso adestrado do corpo a partir do
desenvolvimento de determinadas partes, por meio dos hábitos
gestuais culturalmente processados.
É aí, então, que a Capoeira surge como um desses discursos
não verbais, caracterizados pelas especiicidades desenvolvidas
pelos negros para assegurar a sua sobrevivência, tanto na guerra
como na paz. Sua elaboração deu-se como resultado da resistência
articulada no sentido de apontar uma “saída dentro do próprio
sistema de coação”. Esta saída encontrava-se no corpo, tido como
principal eixo da existência cultural africana: ou se trabalhava,
ou se deixava morrer (suplício); ou, então, adestraria o corpo no
sentido da libertação (práticas religiosas ou Capoeira).
d 85 o
Julio Cesar de Tavares

Um dado importante a ressaltar-se diz respeito à lógica


da articulação do sistema de resistência desenvolvido pelos
negros por meio do corpo. Vemos que uma rede de atitudes
interpenetrava-se, dispersiva e repetitivamente, sempre em
resposta ao mesmo objetivo: assegurar a permanência dos
códigos socioculturais do cotidiano de origem.
Este ato de arremessamento no cotidiano de origem lançava
sempre o negro escravizado para os momentos de corporeidade
lúdica, desenvolvida no âmbito de sua cultura como forma de
ligação e de interpretação na dimensão corporal e cósmica do
Universo. Por aí se constitui a vida, pelo corpo. E por essa vereda
se aperfeiçoou a estratégia de sobrevivência física e cultural do
negro na Diáspora.
Este é o nosso limite de ser. Este é o campo de nosso
domínio. Portanto, o espaço entre o eu e a porta tátil do corpo
poderia ser ultrapassado, não fossem nossos enraizamentos em
uma cultura de lógica distanciada desta possibilidade.

o 86 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

CAPOEIRAGEM, VADIAçãO, MALANDRAGEM

O Capoeira não é aquele que sabe movimentar o


corpo, e sim o que se deixa movimentar pela alma.

MESTRE PASTINHA
(Vicente Ferreira Pastinha)

Por que Capoeira?

Como tudo começou? Olhem, tenho que confessar que,


antes de mais nada, o que me empurrou foi uma impulsão,
uma vontade, um querer estar ao lado da cultura popular, de
um subsistema do campo cultural ainda não suficientemente
examinado e que se mantivesse em estreita ligação com
a rebeldia negra. Não que isso fosse feito em nome de
uma necessidade heroica de desvelar o pano do racismo,
já suficientemente identificado, embora, infelizmente,
reproduzido pelos hábitos cotidianos, engendrados pela
prática da ideologia da democracia racial.
O problema, contudo, me tocou a partir de minhas
próprias experiências desde menino e das relevantes discussões
sobre o corpo que, desde o início de 1970, vêm assumindo
uma enorme importância na conjuntura teórica, pois,
ultimamente, trouxeram o atual e o cotidiano para o campo
da análise social.

d 89 o
Julio Cesar de Tavares

Lembranças das rodas de Capoeira a que assistia na Praça


das Nações, em Bonsucesso, com o Mestre Paraná, ou nas
esquinas do meu subúrbio carioca ou da exibição nas quadras
das Escolas de Samba em Ramos, Manguinhos e Mangueira, ou
das nossas brincadeiras nos inais de tarde dos tórridos verões
do Rio, das plásticas movimentações com o corpo, que meus
amigos de “bola de gude” ou do jogo “carniça” sabiam fazer.
Todo este painel não só me faz recordar a Capoeira, como
também me faz aprofundar o questionamento das razões pelas
quais não se intensiicam as pesquisas a respeito das vivências
populares, principalmente aquelas em que a ludicidade adquiriu
um exercício de competência por meio do corpo.
Em tal universo de questões, decidi tomar uma prática
lúdica que tenha se constituído em um nicho de informações
ou de experiências com o corpo, de maneira que por ela se
criasse um clima de ritualização. A escolha não foi por acaso
e optei pela Capoeira. Desta forma, torna-se a Capoeira nosso
campo empírico de investigação, no qual procurei compreender
como tem sido representado o corpo no universo simbólico dos
agentes desta prática: os capoeiras.
A Capoeira seria mais um evento que se articula ao
subsistema da cultura de massa e que, cada vez mais, por
ela é absorvida. Sua constituição deve-se à necessidade de
formulação de alternativas de comunicação diante da atitude
castrativa da fala, que todo dominador impõe com o objetivo
de transmitir a sua verdade, seus parâmetros lógico-cognitivos.
Da junção de gestos – bricolage gestual10 constituída
–, surge um sistema de comunicação não verbal, que,
ludicamente, serve de repositário para específicos movimentos
com o corpo, em uma evidente referência ao agir-fazer no
cotidiano daquele território, sequestrado pelo estupro

10
“Bricolage gestual” é um conceito que articula e reforça ideias como “identidade corpóreo-
gestual”, bem como “esquema corporal”, tomados de empréstimo da Psicomotricidade.

o 90 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

colonial, derivado da acumulação capitalista mundial imposta


no século XV.
Coube ao corpo assegurar, por intermédio da vida no dia
a dia, a herança do que foi perdido. Ganha, então, a função
de arquivo e, junto à tradição oral, constitui um manancial que
inscreve as heranças da população afro-brasileira.
Desse modo, a Capoeira emite um discurso não verbal,
um discurso gestual. Apesar de portador de uma semântica
– que é o sentido da resistência encarnado na prática que
repõe a tradição –, ele (o discurso) ergue-se como um campo
dessemantizado, subsumindo-se no que Greimas chamou de
“gestualidade lúdica” (Cf. GREIMAS, 1979, p.37-40), ou, para
José Gil, “signiicante lutuante”. (Cf. GIL, 1980)
É esse o caráter encontrado, exatamente, na condensação
de situações de resistência enfrentadas pelos negros na Diáspora,
mesmo quando secularizados pela via da vadiação, que a Capoeira
Regional Baiana desenvolveu, para fortalecer a unidade estrutural
básica que a mantém. Esta unidade é o desmantelamento das
regras de enrijecimento do corpo por meio da cintura desprezada:
sedução na sedução, pois, se já consideramos como sedução a
prática da Capoeira, na medida em que ela contorna os limites
estabelecidos pelo sistema colonizador, a ação que conduz a sua
prática também pressupõe um corpo sedutoramente seduzido
pelos estímulos sedutores da sedução. (Cf. SODRÉ, 1983, p. 156)
O presente estudo, portanto, tem como inalidade não
propriamente o desvelamento de um sentido, mas, sim, a
demonstração da possibilidade de sua constituição, permanência
e reprodução por intermédio de um processo semântico
dessemantizado, se levarmos em conta os universos lógico-
cognitivos daqueles que operam como sujeitos do fenômeno que
aponto: por intermédio da ludicidade estrategicamente reposta
na sociedade brasileira, pela população negra, recuperaram-se
as unidades básicas elementares da cosmovisão, que montou

d 91 o
Julio Cesar de Tavares

a percepção do agir-estar no mundo da população negra.


Residualmente, estes elementos estruturais dos hábitos cotidianos
se recompuseram, adquirindo uma roupagem muito especíica,
capaz de deinir uma dinâmica cultural muito própria, sem,
contudo, perder seu caráter sedutor, sua sombra energética, seu
aspecto predominantemente de jogo. Estabelece-se, deste modo,
um permanente desaio aos obstáculos incados no território da
existência elementar do dia a dia pelo colonizador.
Isso nos demonstra que a dominação não pressupõe uma
prática monolítica, fechada, cujas brechas são inexistentes. O
aproveitamento de brechas foi a meta deinida pela população
negra, só que não pelas vias do enfrentamento direto. Foi escolhido,
ou melhor, foi trilhado o caminho do meio, dos interstícios: a
sedução que, no fundo, dará na manha, no jeitinho do jogo do
corpo, enim, no jogo de cintura e sua projeção cognitiva: a ginga
(e a mandinga como sua contraface). Esta seria a positividade
desse procedimento11.
Se tomarmos o campo cultural da formação social brasileira,
veriicaremos que inúmeros eventos culturais teriam as condições
de uma eiciente demonstração do que aqui está sendo dito, tais
como o Samba, o Candomblé, o Tambor de Crioula, o Jongo, a Ca-
poeira. Neles, sempre presentes o círculo onde gira a gira da ginga.

Capoeiragem e a formação discursiva não verbal

Considera-se, aqui, a Capoeira como formação discursiva


não verbalmente constituída. Sua prática, então, pressupõe
a ordenação deste discurso em subestruturas, que incide em
unidades. Desta maneira, a Capoeira seria uma macroestrutura
conigurada por quatro unidades invariantes, que deinem o seu

11
Na perspectiva que abraço, Foucault e Delleuze formam um campo conceitual de grande
relevância e, a partir daí, acredito que poder-se-ía falar que a sabedoria dos negros estaria nesta
categoria, a ginga constituída e aperfeiçoada na sua ação corporal, que é o jeitinho.

o 92 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

sintagma e o seu paradigma. Temos, então: unidade 1, a Roda;


unidade 2, o Jogo; unidade 3, o Corpo; unidade 4, o Berimbau.
Estas unidades, em sua programação, articulam-se na busca
de um roteiro por meio dos treinos que podem ser realizados
nas academias ou nas ruas. Projetadas como pontos signiicantes
em um espaço geométrico concêntrico que diagramasse o jogo,
poderíamos, assim, representá-las:

d 93 o
Julio Cesar de Tavares

Unidade 1 - A Roda
Espaço da vida cotidiana, materializado pela energização
condensada. Condensação do mundo especíico da comunidade,
das energias que seriam tubuladas, oriundas do espaço cósmico,
canalizadas pela rítmica do berimbau e pelos corpos em
movimento. Restabelece as energias, a atmosfera despoluída e
dessemantizada do mundo criado pelo negro escravizado como
dispositivo pragmático de interação.
Nesse espaço-lugar, teremos uma arquitetura da energia
cotidiana do negro na África diasporizada. Transubstanciação
da diversidade dos códigos que caracterizam as diferentes
linguagens para cá trazidas, de dominância Bantu, possivelmente,
e preservando o invariável da motricidade negro-africana:
a assimetria e a movimentação básica centrada nos quadris;
daí, a expressão “cintura solta” ou, conforme denominação de
Bimba, “cintura desprezada”. Outro aspecto é o axé: energia, na
consideração feita na cultura Yorubá, de origem dos negros – que,
majoritariamente, foram levados para a Bahia no século XIX – e
que lá se constituiu como cultura negra hegemônica.
Assim sendo, a Roda é uma unidade do intertexto, que
o complexo cultural, constituído como resistência, estabeleceu.
Haveria uma rede ou subsistema cultural, envolvendo várias
práticas ou eventos culturais. Todos eles apresentam o traço
lúdico de sua realização como aspecto mais vigoroso. Os
subtextos, que coexistem na Roda, são as diferentes combinações
que poderiam ser traçadas por cada jogador; o arranjo conjunto,
que seria possível constituir pelo duplo movimento. Cada jogo
é uma frase que se duplica após cada diálogo realizado. Ou seja,
a Roda é o lugar-texto, que contém subtextos, sendo estes os
jogos compostos por frases individuais. Pauta do texto cinético e
proxêmico12, desencadeado por intermédio do Berimbau na sua

12
Sobre a Cinética, ver BIRDWHISTEL (1979), e sobre Proxêmica, ver HALL (1976;1963).

o 94 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

ritmada batida e que, por ele, fazem navegar, pela via do ritmo,
os incorporais, agenciadores do transe corpóreo, da energização e
da eletrização do corpo como se airma abaixo:

Minha entrada na roda sempre me faz sentir com as minhas


energias duplicadas. Não sei direito o que, mas vou na bati-
da com tudo. Se eu comparar meus rendimentos durante o
treino com os da entrada na roda posso dizer que nunca, fora
dela, consigo um mesmo grau de dinamismo. (depoimento
de Luiz Renato Vieira, Mestre)

Na Roda, existiria um “ethos místico” que envolve a


situação referida, correspondendo a um congelamento da
estrutura (macroestrutura, texto no contexto histórico de maneira
secularizada), o qual recria a partir do resgate dos símbolos que
condensaram diferentes momentos. Toda vez que este conjunto
de meios se conecta – e se constitui a gira – temos o ritual, o
evento vivido pelo corpo no tempo que a estrutura congelou por
intermédio dos movimentos cinéticos conforme se veriica:

Quando entro na Roda não vejo ninguém que está do lado


de fora e tudo me parece impulsivamente ordenado pelo to-
que do berimbau. Sinto uma energia tomando meu corpo.
(depoimento de Edna Regina, professora de Educação Física
e primeira Mestre de Capoeira no Brasil)

Teríamos, aí, que considerar a herança da cosmovisão


africana, que percebe o mundo como que tomado por um largo
plano, onde se multiplicam as energias, perpassando seu corpo.
No espaço circular denominado de Roda, temos, portanto,
uma redução do mundo cósmico e, dentro dela, poderíamos
implementar todo nosso potencial, de maneira que pudéssemos
reconstruir nossas baterias energéticas em um entrelaçamento
com a ancestralidade geradora da prática e da cultura. Desta
forma, o discurso da Capoeira revela-se como a linguagem da

d 95 o
Julio Cesar de Tavares

recuperação das formulações de energia. Monta-se no esforço de


reconexão com o mundo, apropriado pela colonização branca
europeia.
Essa dimensão encontra-se, de fato, perdida na Capoeira e
constituiria o ponto de partida de seus fundamentos ilosóicos.
Tais caracteres estão se perdendo desde que se intensiicou o
processo de academização da Capoeira, como possibilidade
única de voltar a existir depois que Getúlio Vargas permitiu sua
convivência em sociedade, porém no seu lugar devido: em recinto
fechado.
Realmente, ica uma pergunta: até que ponto a Roda em
recinto fechado permanece ligada à mística do resgate do cotidiano
sequestrado? Até que ponto o próprio Mestre Bimba mantinha
uma preocupação com os fundamentos mais ancestrais da
Capoeira? Até que ponto podemos dizer que, a partir do momento
em que a Capoeira icou enclausurada, seus fundamentos não
icaram abandonados, principalmente se considerarmos que
os alunos desta nova etapa eram, principalmente em Salvador,
advindos da classe média branca, distanciada e preconceituosa
diante dos elementos fundamentais da Capoeira, que são da
própria epistemologia negro-africana?
Mestre Pastinha, antes de morrer, airmou em entrevista
ao Jornal de Salvador:

O segredo da Capoeira morre comigo e com muitos outros


mestres. O que há hoje é muita acrobacia e pouca Capoei-
ra. Capoeira É AMOROSA, NãO É PERVERSA. Capoeira
não é minha, é dos africanos no Brasil. Um costume como
qualquer outro, um hábito cortês que criamos dentro de
nós. Uma coisa vagabunda.

Mestre Pastinha é considerado como o maior guardião da


Capoeira Angola, estilo de jogo da Capoeira, que vigorava até
antes do processo de academização na Bahia. Vicente Ferreira

o 96 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

Pastinha, nascido em 5 de abril de 1889, morreu aos 92 anos de


idade, cego, em 14 de novembro de 1981. Seus antigos alunos, a
partir de sua debilidade física, abandonaram-no pouco a pouco.
Pastinha teve uma morte solitária.

Unidade 2 – O Jogo e a Ginga

Esta unidade é marcada, sobretudo, pela movimentação


articulada de AVANçO/DEFESA e ESQUIVA/ATAQUE,
elementos constituintes da Ginga.) Veriicamos um jogo mútuo
entre espacialidade e corporeidade. Pelo primeiro termo –
espacialidade –, compreendemos não a intercepção do avanço no
espaço proferido pelo outro, mas, sim, a construção de novos
lugares pela movimentação do corpo na busca de novos espaços.
O espaço que se constrói no movimento do outro e por ele
chama-se “guarda”. De certa maneira, este aspecto equivaleria
à necessidade de conquistar espaços que sejam fundantes com
relação à sabedoria inscrita no corpo e, portanto, capaz de
circunscrever a possibilidade de exercício da tradição e da
divulgação pedagógica.
Quanto à corporeidade, veriica-se uma equivalência à
capacidade de constituição, do centro exterior no centro interior
do próprio corpo, isto é, de toda movimentação no momento
do jogo. As práticas corporais exigem uma fundamentação, que
toma relexão do corpo como seu próprio nexo, tanto no plano da
resistência como no da identidade; quer dizer, tanto no aspecto
prático como no concreto.

As características estilísticas
Diz-se da Capoeira que ela é uma só, numa síntese
permanente da fase primordial, que corresponde ao Jogo Angola,

d 97 o
Julio Cesar de Tavares

com a fase acadêmica, desenvolvida no Jogo Regional. Hoje,


inclusive, desenvolveu-se a tendência que busca reduzir as diferenças
na prática da Capoeira, a partir dos jogos especíicos, seja Angola,
seja Regional. Todavia, a percepção uniicada traz controvérsias
que, aqui, nesta relexão, não seria possível desenvolver.
Conforme vimos anteriormente, a academização relete a
apropriação, pelo Estado, do lugar de realização da prática dessa
sabedoria popular. Isto implicou, inclusive, a reordenação do
esquema corporal existente (mais relativo ao cotidiano africano),
para o qual, na Capoeira de Jogo Angola, exigia-se maior rigor.
Neste jogo, os braços aparecem como ponto de apoio, bem como
pés e mãos. No Jogo Regional, o corpo foi erguido, retirado do
chão, de modo a moldar-se à motricidade da sociedade branca
baiana, por meio de movimentos mais adequados àqueles corpos.
Tanto em um texto corporal quanto em outro, quer
pela necessidade de síntese, quer pela necessidade de resgate e
manutenção da tradição, a agilidade, a velocidade, a lexibilidade
e a movimentação permanente da ginga (movimentação de
pé), do aú (movimento de cabeça para baixo), da negativa e do
rolê (movimentação no chão), constituem-se em componentes
estruturais do jogo. (Cf. CAPOEIRA,1981) Todos esses
movimentos giram em torno de um eixo: o corpo em circularidade.
A ginga da Regional é mais ereta, realizando seus movimentos
em torno da circularidade da Roda e da movimentação sobre os
quadris. No texto Angola, esta circularidade se realiza com uma
movimentação mais solta e apoiada em uma composição de
movimentos assimétricos, com permanentes descidas do corpo
e agachamentos por meio da queda dos rins, meia-lua Angola,
bananeira, aú, rolê, entre outros.
Mas, nas duas modalidades, podemos assegurar que a
movimentação deve ser compreendida como sendo a pauta que
enuncia os golpes. Dentro dessa pauta, a ginga é o elemento
central. É na ginga, na movimentação permanente em busca de um

o 98 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

equilíbrio dinâmico, que o jogador irá constituir a singularidade


do trabalho corporal, pois pela ginga se realizam os ataques e as
esquivas; ou seja, pela ginga são emitidos os golpes e constituídas
as esquivas, que podem vir a ser pré-golpes, isto é, podem ser
executados com objetivo de preparar um contragolpe.
A impressividade, o relexo acentuado, a capacidade de
concentração na totalidade da situação realizada e a ampliação da
visão periférica é o que airma a diferença entre a Capoeira e as
demais lutas. E mais: as saídas das encurralações que um jogador
força sobre o outro, bem como as entradas que se realizam sobre
a “guarda” de um sobre o outro, são improvisadas no momento
do jogo.
Os diferentes golpes e as diferentes esquivas, em uma
dinâmica permanente, asseguram a constituição de um trabalho
singular do jogador com seu corpo, demonstrando, durante o jogo,
a sua capacidade de combinar, em atitudes relexas, os números de
cines (BIRDWHISTELL, 1979) que constituem as frases do jogo
(os golpes), enunciando, desta maneira, dentro dos elementos
estruturais colocados como invariantes, o seu próprio jogo. Eis
que surge o código particular que seu corpo gerou pelos treinos
e sua sensibilidade deiniu pela sintonia energético-cósmica por
meio do som do berimbau. Passa pela ginga a especiicidade que
diferencia a Capoeira enquanto luta-dança.
Cada jogo está moldado a partir de determinadas variações,
deinidas pela ênfase no trabalho corporal e pelo interesse de cada
mestre. Esta ênfase é capaz de estruturar a linguagem especíica de
cada trabalho e, ao mesmo tempo, a preocupação estratégica do
mestre.

A Ginga é a pauta

A ginga, portanto, é pauta por onde se coniguram os


arranjos cinéticos das defesas e dos ataques. É ela um elemento

d 99 o
Julio Cesar de Tavares

essencial para a execução da prática, atuando por um efeito


dissimulador da intenção. A leitura desta intenção será feita
pelo jogador, por intermédio da percepção da linguagem
corporal adotada pelo adversário. A esta se chega por um olhar
ixo nos olhos do oponente-parceiro. Sobre isto, nos diz Mestre
Zulu: “É necessário que se saiba ler as intenções embutidas no
jogo adversário.”
Assim, em termos de unidades produzidas como elementos
de facilitação da análise da Capoeira, veriica-se que é o corpo,
enquanto antena energética, a parte mais importante do jogo.
Nele, se constrói a movimentação, o jogo propriamente dito. O
berimbau é outro componente importante deste evento cultural.
“A ginga estabelece a pauta; o corpo estabelece o texto”.
Da ginga e na ginga, dois elementos dialetizam-se na
ação: o primeiro é a negativa: a postura, muito mais que a
movimentação. Seria o momento de base móvel na ação corporal
que deve ser enunciada. Corresponderia a “Vo” em física – ponto
de partida. Enquanto situação imobilizada na defesa, a negativa
guarda todo dinamismo capaz de negar com a sua inércia e isto
no contexto da própria inércia. Movimento parado, supõe que se
possa conter energia em uma defensiva e guardar a possibilidade
de expansão em explosão física. A base de uma esquiva é base
de um ataque, “ponto de concentração e de expansão” de toda
energia que circula em um corpo em jogo. Dela se sai ou a ela se
retorna. O segundo elemento é a energia, fator da circularidade
de toda a movimentação, bem como a plástica de todo jogo, capaz
de permitir o tipo de combinatória em pauta.
Poderia, ainda, relacionar a negativa como núcleo duro
constituinte da energia que transborda na Roda: o axé, acionado
pelo ritmo que o som do berimbau aufere. O corpo absorve esta
energia e a dinamiza, transformando-a em movimentos que,
combinados, realizam a ginga, o aú, a negativa e o rolê.

o 100 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

Unidade 3 – O Corpo

A conquista da dimensão energética da Roda conigura-se


na versatilidade do corpo, na sua dinâmica mobilidade, conforme
pode ser atestado nas danças africanas, nos movimentos corporais
das práticas religiosas de matrizes africanas, sem entrarmos
nos detalhes que mostrariam tais heranças cinéticas na prática
futebolística, no remelexo das mulheres negras.
Se considerarmos, portanto, o Corpo como uma das
unidades da Capoeira enquanto prática lúdica e evento
cultural, pode-se airmar que esta é a unidade principal, pois é
o equipamento de maior relevo para que a Capoeira se realize
como jogo, luta, dança e expressão da resistência étnica, racial
e cultural.
Assim, o corpo guarda, no lúdico, o seu espaço de lazer.
As movimentações do corpo no jogar, juntamente com os golpes
lançados, coniguram uma linguagem corporal. A gestualidade
lúdica, que marca a emissão dos golpes, tem, no corpo, o seu
ponto emissor. Isto demonstra a herança do caráter corporal que
os jogos africanos procuram expressar, por meio da linguagem
interativa com o mundo.
O corpo negro tornou-se preparado por condicionamentos
vindos da persistência que a crescente motivação com o lúdico-
cósmico imprimiu-lhes. Em continuidade, hoje, isto é realizado
por meio dos movimentos exigidos na síncope do jogo e do
toque do berimbau. Mas, em geral, ao branco europeu estes
movimentos são mais difíceis de ser executados. Não que sejam
impossíveis, mas, com certeza, maior tempo de treino lhes será
exigido.
Por quê?
Se levarmos em conta a possibilidade defendida
anteriormente, perceberemos o descompasso em termos de

d 101 o
Julio Cesar de Tavares

ritmos corporais. A Capoeira Angola exige mais dos ritmos


corporais, que, de certa forma, correspondem às representações
do cotidiano vivido pelos negros escravizados nas senzalas, nas
fugas, no trabalho, no amor, na vida que eles herdaram pela
oralidade e pela corporeidade; até mesmo na maneira de se utilizar
o corpo, na forma de se sentir o corpo, nos servomecanismos
constituídos pelo hábito criado no condicionamento cotidiano.
Os gestos corporais, portanto, se constituíram a partir do resgate
da memória do cotidiano que o corpo consubstanciou.
Os gestos corporais foram subsumidos em uma bricolage
gestual, que se realizou de maneira instintiva diante da castração
da fala que a psique do mundo colonial criou. Conforme o
próprio Mestre Pastinha nos falou, “Capoeira é o instinto de
defesa de uma raça perseguida.” Nesta engenharia de signos
não verbais em processo de geração, foi também se formando o
gueto, o rizoma e a invisibilidade da mandinga, que a memória
corporal armazenava como fontes de um programa de atitudes
corporais.
A rede de resistência seria caracterizada por esta trama de
atitudes corporais, realizada em práticas corporais. Fazem parte
da rede o Candomblé, o Samba, o Maculelê, o Jongo e tantas
outras religiões, danças, lutas e festas insistentemente enunciadas
neste texto. O corpo, nestas práticas, se compõe em ponto de
apoio do processo energético em constituição. Nele, localizam-
se as formulações nas quais a comunidade se ajusta, a im de
compensar as jornadas exaustivas que, sobre o mesmo corpo,
recaem diariamente. Dele, espera-se o máximo de energia, a im
de que, catarticamente, se realize a recondução a todo o universo
de ancestralidade existente.
Em cada um desses discursos de ludicidade, coloca-se a
atuação de cada agente, de maneira integralizada: o signiicante
daquele momento vem contribuir para a manutenção de mais
um pouquinho de mim, corpo, que é perpassado por todas as

o 102 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

energias que circulam e que as toma como seu instrumento.


São esses laços de intimidade com as energias que perambulam
pelo universo que os tornam campos magnéticos de força.
A ideia de campo de força anteriormente desenvolvida vem
reforçar esta expressão mais forte, que agora se constitui. Ela retém
um aspecto importante, que é o de resistir à dimensão da energia
como variável, sob qualquer ponto de vista, a im de que possamos
ampliicar, na realização do trabalho intelectual, o máximo de
nossa consciência e potencialidade. No nosso caso, trata-se de
uma pesquisa que pressupõe um trabalho de interação social,
onde o enunciado se encontra com a enunciação e, na verdade, o
princípio interador deixa de ser o “Penso, logo existo” e passa a ser
o “Sinto, danço o outro, logo existo”. (SENGHOR, 1982, p. 76)
Aquele processo de que falamos, em momento anterior, diz
respeito ao nível da participação que o processo da relação social
imprime. Se a afetividade, conforme nos diz Leopold S. Senghor,
é o elemento mais ativo do processo de conhecimento do negro,
daí temos o segundo traço de unidade. O primeiro relaciona-se ao
lugar do corpo, que atua como destaque: os quadris. Para nós, no
Brasil, surgiu, inclusive, uma categoria que classiica a capacidade
de lexibilidade diante do autoritário e militarizado cotidiano que
o negro enfrenta há séculos: ter jogo de cintura, estar pronto!
Os dois traços – os quadris e o campo magnético de força13 –
capacitam a ação estratégica corporal. Esse aspecto se deve à relação
integralizada aludida acima. Coração, ventre e cabeça seriam os
vértices do triângulo platônico de caracterização do que seria a base
do ser humano. Entretanto, é importante que se acresça ao nosso
ajuizamento, por herança das culturas africanas, a consciência de
se estar no mundo.
Ludicidade e festividade são formas de entrelaçamento que
pressupõem este aspecto: afetividade integradora no processo

13
Esta força é a multiplicidade da afetividade, constituída pela aproximação interativa que os
agentes negros e seus descendentes estabelecem no contato com os outros

d 103 o
Julio Cesar de Tavares

comunicatário. E, na trama das inter-relações da comunidade,


o corpo de cada agente é parte integradora da grande rede
energética para a resistência. O corpo é integrado no Cosmo. O
microssigno e o macrossigno da relação com a vida e o mundo. O
corpo é síntese e texto desse processo eu-vida-mundo-consciência.
Daí, este argumento nos aproxima do tetraedro que Jean-Louis
Barrault (1979) elaborou ao falar da ação teatral na sua relação
com a vida fundamental e sua duplicidade como indicado abaixo:

Diz o teórico: “Tel est le ‘satellite’ humain que va tourner


dans espace et le temps de la trajectoire de sa vie”. (BARRAULT,
s/d., p.89) (Assim é o satélite humano, que irá girar no espaço
e no tempo da sua trajetória de vida.) Ao comparar o corpo a
um satélite e a experiência humana a uma jornada no espaço
e no tempo, Barrault vê o corpo energizado em toda a sua
potencialidade. Corpo enquanto energia: ação. Corpo enquanto
ritmo: movimento. Eis o campo magnético de forças.
E se ampliamos esta relexão da teatralidade corporal para
o campo das socialidades, este campo magnético de forças torna-
se o próprio campo da ação prática, o horizonte que o cotidiano

o 104 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

estabelece nas inter-relações corporais traçadas pela trama dos


acontecimentos. Os corpos dos agentes, deste modo, emergem
como enunciações de um mesmo texto. Assim posto, temos, por
um lado, a ação do sujeito (homem/mulher), consciente de sua
intersubjetividade; por outro, a consciência do seu processo de
vida, ao mesmo tempo que se vive. Portanto, encontramo-nos
diante de um duplo aspecto da emergência da vida.
Neste duplo aspecto da vida, a identidade corpóreo-gestual
dos negros é marcada pela movimentação dos quadris. Com
facilidade, o negro e os seus descendentes desenvolvem, como
raiz e herança, a mobilidade dos quadris, fato este que já foi,
inclusive, destacado como atentatório ao pudor, como no caso
dos fabulosos requebros das sambistas, dos dançarinos do maxixe,
do kuduro, do funk etc.

Sintetizando: o corpo como signo

O jogo de cintura, ou jogo de quadris, é marca ontológica


registrada no cotidiano negro africano e, por extensão, da
afrodiáspora. Movimento dos quadris e energia dinâmica são
dois elementos que fazem o corpo do negro ser um corpo que
cataliza e reverbera a força energético-cósmica. Lembremos
que tais elementos são os traços deinidores do corpo em texto
na Capoeira. Como resíduos de identidade para o interior da
comunidade, enquanto prática constituída, signiicam um saber
produzido e memorizado pelo corpo. O corpo é signo. Para
fora da comunidade, a posse desses signos de atitudes corporais
implicaria em um poder: o poder de autodominar os corpos.
Os signos proferidos pelo corpo resultam, portanto, de
uma atividade disciplinar de signiicação e simbolização do
mundo, que tem seu ponto de partida num determinado lugar,
ou seja, em uma dimensão por intermédio da vida cotidiana,

d 105 o
Julio Cesar de Tavares

imediatamente sensível e perceptível pela capacidade que os


indivíduos agentes têm de se inserir nessa dimensão, por meio
da atividade prática do trabalho. Todavia, esta via cotidiana se
encontra sobredeterminada pelo repertório linguístico – como
background –, que a comunidade a que este corpo pertence trará.
Ao tomar a classiicação eurocêntrica do corpo a partir
de um signo que conjuga três partes como sua composição –
cabeça, tronco e membros – tem-se, em verdade, o mesmo efeito
platônico: uma trinaridade a partir da lógica do triângulo:

Se considerarmos o corpo negro, bem como suas heranças,


nele e em seus descendentes, além dos três elementos, temos os
quadris como uma parte de maior signiicância e portadora de
autonomia dos movimentos. Nesta linha de raciocínio, teremos:
cabeça, tronco, quadril e membros a partir da lógica da espiralidade:

o 106 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

Os saberes referidos anteriormente corresponderiam ao


conjunto das informações arquivadas na memória corporal. Por
meio de uma gramática formada pelos movimentos constituídos
pelas pernas, braços, cabeça e tronco, temos uma recriação dos
movimentos enunciados nos golpes. As fases que pontuam o jogo
designarão os golpes e as demais movimentações enunciarão as
intenções dos corpos em sua dinâmica no jogo na Roda. Cada golpe
é assim formado por um conjunto cinético e cada unidade deste
conjunto é denominada de cine.
Por exemplo: na armada, que é um movimento de ataque,
isto é, um golpe, temos um conjunto cinético que compreende
um giro de cabeça com os braços estendidos. A esse giro, vemos
o tronco ser conduzido pela impulsão da cabeça e, logo em
seguida, da perna, que tem uma função importantíssima. Aliás, o
principal objetivo é erguê-la neste movimento rotativo do tronco
e cabeça, imprimindo-lhe velocidade. Portanto, os cines estariam
no quadro que o conjunto frasal compõe; seriam cada um dos
micromovimentos de que cada golpe necessita.
Na sequência dos golpes, temos um enunciado, que no
conjunto do jogo na Roda, se conigura como discurso da Capoeira.
Neste discurso, podemos evidenciar a presença dos esquemas
corporais subtraídos do próprio cotidiano da África, onde o jogo
de cintura é uma constante movimentação corporal; uma sintonia
constante com a frequência energética que se conigura na roda
e que é canalizada na movimentação do jogo; uma reairmação
do corpo como centro energético (emanador e luidor); uma
coniguração de ação primordial, enunciada pelo corpo em seus
agenciamentos energéticos como centro catalizador de energias.
Outro ponto importante, que também contribui para a
constituição de uma estratégia corporal14 da comunidade negra,

14
Este também é outro conceito-chave que está sendo testado. Seu corpo de deinição não se
encontra ainda estruturado. Todos estes conceitos constituídos formam um nicho, que tem no
saber corporal seu cerne.

d 107 o
Julio Cesar de Tavares

foi a sua condição de escravizada, que reforçou este elemento da


consciência corporal. Vejamos a questão no nível dos agencia-
mentos econômicos na sociedade colonial: o “escravo” era tra-
balho encarnado, na caracterização de José de Souza Martins
(1987). A relação que se estabelecia entre o proprietário de terras
e a administração tanto melhor seria quanto maior fosse a posse
de escravos. Asseguravam os escravos, inclusive, os empréstimos
bancários.
Ser humano despossuído de sua atualidade, incapaz
de autoconhecer a si próprio. Eis como os proprietários e a
sociedade viam os negros: peças. Este era seu único valor. Não
eram animais, eram máquinas carnais. Apenas corpo que contém
trabalho. Seu tempo de vida era igual ao seu tempo de trabalho.
Na sociedade, o processo de distanciamento do trabalho manual
foi intensiicando-se e cresceu esta horripilante tendência
ao academismo ou bacharelismo – efeito da mentalidade
colonizadora, rigorosa no Brasil na divisão técnica do trabalho,
gerando, desde os tempos coloniais, a dicotomia trabalho braçal/
trabalho intelectual.
Aos africanos e crioulos, coube o lugar do trabalho braçal.
O próprio negro, por si só, construiu seu espaço de ócio nas
barbas do colonizador, nas franjas do sistema colonial. De maneira
invisível, uma guerrilha foi-se realizando, aproveitando as brechas
e, nelas, se assentando. Aos poucos, devagarzinho, depositavam-se
os germes da multiplicação. A dispersão não constituía problema.
A sintonia energético-cósmica fazia percorrer o axé, que, como
solda, unia os elos da trama, de maneira a constituir a referida
Rede de Resistência.
Nessa trama, permanece um aspecto sui generis com relação
à estratégia corporal, na medida em que icava interditada a
fala, signiicante de grande expressividade no que diz respeito à
apropriação do corpo. A fala e a língua são os primeiros lugares
ocupados pela lógica colonialista. Entretanto, o peso do logos

o 108 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

aristotélico reduziu toda a preocupação colonial à dimensão da


comunicação verbal. Foi aí que a guerrilha psíquica ganhou espaço,
entrincheirando-se na fortaleza do inimigo através do lúdico, dos
ritos religiosos rotineiros etc. Procurou-se recriar a comunicação
gestual como alternativa ao mutismo absoluto, ao mesmo tempo
e de forma sutil.
Outra barreira era construída pela presença de sujeitos
dos mais variados grupos étnicos, que eram forçados a coabitar
a mesma senzala. Portanto, o melhor canal de comunicação
era o não verbal, por onde poderiam escoar as mensagens que
permitiriam o inter-relacionamento pessoal. Da troca de gestos
surgiu um imenso repertório gestual, cujos resíduos sobrevivem
entre os negros da Diáspora até hoje, marcando profundamente
sua movimentação corporal como um todo, principalmente na
sua gestualidade cotidiana.
Prova disso é a sensação que sinto quando compareço a
congressos ou encontros onde estejam presentes africanos. Não
temos diferenças quanto ao texto corporal, isto é, uma boa
parte dos elementos estruturais de nossa motricidade identiica-
se como se izessem presentes, assegurando uma boa fruição de
sentimentos.
Esse corpo, que deu origem à Capoeira – o corpo negro
escravizado –, era entrecortado por várias extremidades de
semelhanças quanto às características do discurso corporal:
a) um ponto de identidade era a autonomia dos quadris,
caracterizando o jogo de cintura;
b) outro ponto, a bricolage gestual, a partir da negociação que
deve ter-se estabelecido para a construção de uma ordenação
de sentido na sua execução;
c) a intimidade com os campos de força cósmica;
d) a expectativa diante de um único projeto: a liberdade
como resgate permanente de si e, por conseguinte, da
comunidade.

d 109 o
Julio Cesar de Tavares

Como herança, o jogo dos corpos resguarda como caracte-


rísticas invariantes:
- quadris com lexibilidade, o que produz a ginga;
- movimentos de esquiva e defesa-ataque;
- integralidade com a dimensão cósmica;
- visão totalizadora, isto é, periférica.

Unidade 4 – O berimbau

Segundo Oneyda Alvarenga (1982), citada por Jair Moura,


“A música do berimbau é uma atividade de energia dos lutadores
e, de tal modo, se liga ao jogo que este depende inteiramente dela
e é por ela regulado”. O berimbau é um instrumento musical de
origem africana, que se constitui em um arco musical, ancestral dos
instrumentos de corda tais como a lira, a cítara, a harpa, as guitarras,
as violas e os violões, os violinos, os violoncelos, as videtas etc.
Angola deve ter sido a sua origem. A imprecisão deve-se à
falta de pesquisa cientíica musical no Continente Africano e no
Brasil, conforme nos assegura Kay Shafer (Cf. SHAFFER, 1977)
em seu precioso levantamento de narrativas de viajantes e cronistas,
na tentativa de localizar as informações que pudessem dizer mais
precisamente as origens deste instrumento. A conclusão a que se
chegou foi a de que “os arcos musicais africanos e brasileiros têm
sido iguais em todos os aspectos importantes, desde, ao menos, o
im do século XIX”.
Pelo menos, quatro tipos de berimbau podem ser
encontrados no Brasil, segundo Shafer:

o 110 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

a) o berimbau de boca: instrumento simples, que pode ser


construído na hora, usando qualquer madeira, um pedaço de
cipó e uma vareta; o tocador só precisa de uma faca para cortar
as partes e tocar; é usado como divertimento;

b) o berimbau de barriga, gunga ou urucungo: instrumento que


utiliza uma cabaça como caixa de ressonância; precisa de um
pouco mais de tempo para sua construção; tem mais volume
que o berimbau de boca e é usado para chamar a atenção,
para pedir esmolas, vender produtos e, inalmente, para o
jogo da Capoeira;

c) berimbau ou barimbao: instrumento de metal, importado da


Europa para divertimento individual; usado, geralmente, por
marinheiros; por causa do seu alto custo, não é provável o seu
uso pelos escravizados;
d) berimbau de bacia: arco musical tocado com barras
cilíndricas de metal, ixado sobre duas latas ou outros objetos
semelhantes, que servem de caixa de ressonância; foi visto em
conexão com o ato de pedir esmolas.
O berimbau de barriga é a principal unidade da Capoeira,
que, junto à unidade corpo, constituem o seu ponto nodal. Nestas

d 111 o
Julio Cesar de Tavares

duas unidades, existe uma permanente interação: o corpo, pela


baqueta, produz o som do berimbau; o som e o ritmo do corpo,
a energia de que falamos anteriormente. Sua confecção é realizada
com pau-pombo, biriba, pau-d’arco, timbó ou ipê. Entretanto,
desde o tempo da geração de mestres depois de Pastinha, biriba
tem sido a madeira mais usada: antigamente obtida nas matas, hoje
é adquirida nas serrarias.
A descrição mais antiga do uso do berimbau é de Henry
Koster, em viagem pelo Nordeste do Brasil, ao observar festas afro-
brasileiras:

Os negros livres também dançavam, mas limitavam-se a pedir


licença e sua festa decorria diante de uma das suas choupanas.
As danças lembravam as dos negros africanos. O círculo se
fechava e o tocador de viola sentava-se em um dos cantos e
começava uma simples toada, acompanhada por algumas can-
ções favoritas, repetindo o refrão e, freqüentemente, um dos
versos era improvisado e continha alusões obscenas (...) Os
escravos igualmente pediam permissão para as suas danças. Os
instrumentos musicais eram extremamente rudes. Um deles
é uma espécie de tambor, formado de uma pele de carneiro
estendida sobre um tronco oco de árvore. O outro é um gran-
de arco, com uma corda, tendo uma meia quenga de coco
no meio ou uma pequena cabaça amarrada. Colocam-na no
abdome e tocam a corda com o dedo ou com um pedacinho
de pau. Quando dois dias santos se sucediam, os escravos con-
tinuavam a algazarra até de madrugada. (REGO, 1968, p. 71)

Segundo Alderico Toríbio (1965), o berimbau serve


para “dar uma mandinga aos jogadores”. Para ele, a função do
berimbau revela-se “ao fornecer a mandinga, criar a ‘autosugestão’,
adormecendo a consciência do lutador, ativando seus relexos,
multiplicando até o im suas energias ao som repinicado”.
Isto implica em que os jogadores realizem um ato com caráter
místico antes de iniciar o jogo, agachando-se ao pé do berimbau

o 112 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

e benzendo-se, pois, agindo assim, “evoca o Capoeira seus orixás:


Ogum e Xangô”. E diz mais: “berimbau só presta quando o pau
for recolhido em uma noite de escuridão, por sujeito de coragem;
se não for assim, o pau quebra no meio da brincadeira”.
Vê-se que existe toda uma mística em torno do berimbau,
o que reforça sua função sintagmática com o corpo, unidade
com a qual estabelece uma relação de associação e de deinição
do próprio caráter do evento. O ritmo produzido pela batida da
baqueta na corda, bem como pelo ato de aproximar ou afastar
a cabaça da barriga do tocador, geram um clima de ritual, em
que se conigura a sintonia energético-cósmica que, no corpo
do jogador, encontrará seu terminal.
A ideia transmitida pelo Mestre, e que caracteriza este som
como “autosugestão”, é bem denotativa do traço místico que
toda gira enuncia por intermédio da roda. Assim, o berimbau
cria a mandinga, a manha e a trama energética que caracteriza a
cinética corporal do jogo da Capoeira. Entretanto, a presença do
berimbau nas rodas de Capoeira data do século XIX, não se tendo
notícia de sua existência antes desse período.
O berimbau é o emanador da energia, da rítmica que conduz
o corpo na dimensão cósmica, por intermédio da vibração que
os corpos deixam transparecer. Desta forma, seus relexos icam
suicientemente ativos e, com isto, só temos um corpo em plena
consciência em ação. Ainda segundo Alderico Toríbio, “Capoeira
não se joga a seco, é preciso mandinga para se pular; e a mandinga
quem dá é o berimbau (e as chulas)”.
Enim, poderia coligir uma ininidade de outras declarações
que atestariam a função emulente do berimbau como bateria
energética e núcleo ativador da mandinga da gira, que capacita
os corpos com uma descomunal e excitante energia, a ponto de
permitir que o jogador ique horas na “vadiação”, sem, entretanto,
sentir o tempo passar.

d 113 o
Julio Cesar de Tavares

Para inalizar, retomo o comentário de Leopold Sédar Senghor


sobre a relação que o negro estabelece, isiologicamente, com a energia
psíquica ou radial, na conceituação de Teilhard de Chardin:

[...] o Negro [...] reage assim mais ielmente à excitação do


objeto: casa-se com o ritmo deste. Esse sentido carnal do rit-
mo – o do movimento, das formas e das cores – é uma das
características que lhes são especíicas, pois o ritmo é a essência
mesmo de energia. É ele que está na base da imitação, que tem
um papel determinante na “atividade criativa” do homem: na
memória, na linguagem, na arte. (SENGHOR, 1982, p. 75)

Esboço de história da Capoeira

O Período Imperial

Segundo a tradição oral afro-brasileira, a Capoeira nasce nos


Quilombos, tendo-se formado como arma da luta de guerrilha,
empreendida pelos negros, no Brasil, para que conseguissem
sobreviver e ultrapassar as péssimas condições que a escravidão lhes
impingia. O seu desenvolvimento, enquanto tática e arma de guerra,
deve ter sido marcado pela constante observação dos animais, que
constituem a fauna brasileira, tais como o macaco, a onça, a raposa
e a aranha. (Cf. SENNA, 1978, p. 78-80; LONSDALE, 1981)
Com base no comportamento de cada um desses animais, os
negros constituíram um esquema de atitudes e comportamentos.
Por meio dele, soldaram um conjunto de atitudes transformadas
em gestos, que, a partir de um determinado roteiro, chegaram ao
modelo combinatório elementar a ser praticado.
Esse roteiro era perfeitamente adaptável ao que viesse. A
intuição deveria ser o ponto forte, pois o contexto era imprevisível.
Portanto, o negro precisava icar “antenado” cosmicamente, de
maneira que pudesse reagir a toda e qualquer situação, sem perder-

o 114 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

se dentro dela. Assim, a Capoeira veio constituindo-se em um


discurso de guerra, cuja função era garantir as possibilidades de
resistência dos corpos, forçosamente transladados para uma terra
estranha e desconhecida.
Sabe-se de sua existência desde o inal do século XVIII e,
do berimbau, tem-se retrato do início do século XIX, conforme
o quadro Vendedor ambulante com berimbau (1814), de
Joaquim C. Guillobel, na coleção de Paul Geyer.

Mas a informação mais precisa que se tem até hoje foi


fornecida pela famosa pintura de Johann Moritz Rugendas, cujo
título é Jogar Capoeira ou Danse de la Guerre (1835). Nela,
estão presentes dois negros, em uma roda formada por cerca de
dez outros negros. Um deles está sentado com um tambor do tipo
atabaque entre as pernas. Não se veriica a presença do berimbau.

d 115 o
Julio Cesar de Tavares

O século XIX é um momento da História do Brasil,


marcado por grandes transformações. De início, podemos
falar da perda de poder do Nordeste em virtude do declínio da
atividade açucareira, principalmente depois do surgimento da
produção de açúcar de beterraba na Europa, que constituiu uma
alternativa napoleônica ao açúcar antilhano, produzido pelos
ingleses, e ao açúcar brasileiro, produzido pelos portugueses. Por
outro lado, com a exploração das minas de ouro e diamantes
nas “Gerais”, certamente começava o Sudeste a crescer em
sua importância. É um fato relevante, também, a ampliação
permanente das fazendas de café no Rio de Janeiro, que, por
volta da segunda metade do mesmo século, mostrou seu efeito e
importância em nível internacional.
A partir do inal do século XVIII e início do século XIX,
aumenta a população urbana em grandes centros, como Salvador
e Rio de Janeiro, e, concomitantemente, a população de negros
escravizados e alforriados. Do ponto de vista demográico,
segundo o historiador da escravidão, Décio Freitas (FREITAS,
1982, p. 101), a população do Brasil, no período de 1818 a
1888, sofreu um incremento de 310% ao passo que a população
escrava cresceu 5%. Essa tendência acentua-se, principalmente, a
partir de 1850, com a extinção do tráico negreiro, um processo
de desescravidão. (FREITAS, 1982, p. 96-100)
No Nordeste, onde o processo foi mais rápido em virtude
da decadência da agromanufatura açucareira, o escravo foi sendo
substituído pelo trabalhador não escravizado – o morador
(FREITAS, 1982, p. 101) –, dono de seus instrumentos de
trabalho: é o chamado caboclo. Os negros, pouco a pouco
liberados, deslocavam-se para as cidades, por elas perambulando

o 116 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

e ocupando a periferia urbana; produzindo seus espaços, nos


limites dos terrenos da urbe que nascia, com o quilombo ou a
moradia. Novas ocupações começaram a surgir para os negros
nesses grandes centros no século XIX. Passaram a ser carregadores,
vendedores de bugigangas – “escravos” do ganho – peixeiros,
alfaiates e até prestadores de serviços de segurança ao proprietário
de terras, no inal do século, conforme demonstraram as maltas de
capoeiristas, que realizavam esses trabalhos.
Foi nesse crescimento da cidade, da formação da população
brasileira, que a Capoeira apareceu como expressão da própria
resistência do negro. A desescravização demonstrava a inércia
do escravismo, fato anunciado desde o século XVIII. Mas
também mostrava o destino reservado para o negro liberto: a luta
permanente pela sobrevivência. Teria que lutar sempre, mas sem
perder a manha e a malícia que a memória quilombola lhe deixara.
Entretanto, o enfrentamento com a sociedade branca colonial foi,
por vezes, inevitável.
Exemplo nesse nível são as revoltas escravas em Salvador, no
século XIX, verdadeiras demonstrações de continuada resistência.
E assim, Nagôs, Malês, Haussás, entre 1807 e 1835, realizaram as
primeiras revoltas em centros urbanos, coisa até então inédita, já que
as revoltas escravas de que se tem notícia ocorreram sempre em áreas
rurais. (Cf. FREITAS, 1976) Delas, o ponto alto foi, de fato, a fase
inal da década de 1820 e início da década de 1830. Nesse momento,
também o Brasil encontrava-se em fase de deinições, pois se colocavam
as questões em torno de sua nova situação: era um país com fachada
política independente e, por isso mesmo, tinha de resistir às pressões
feitas sobre a igura de seu chefe político, o Imperador D. Pedro. O
reconhecimento da Independência pela Inglaterra já foi um resultado

d 117 o
Julio Cesar de Tavares

de pressões no caso. Elas diziam respeito à extinção da escravidão


como preço a ser pago pelo reconhecimento. Os proprietários de terra
não icaram satisfeitos com a submissão de D. Pedro, que, ao ceder
aos ingleses, criou condições para os proprietários organizarem-
se contra ele. Deve-se acrescer, também, o envolvimento de D.
Pedro com o processo sucessório entre os descendentes de seu pai
ao trono português. Por im, esses fatos aliaram-se a outros, que
vieram desaguar na pressão dos proprietários, por intermédio dos
militares, para que renunciasse ao trono.
1831, ABDICAçãO! E também a conirmação do poder
dos proprietários de terra; do exército a seu serviço; do latifúndio
e também do escravismo, pois icou adiada a suspensão do tráico
negreiro até 1850, quando foi promulgada a Lei do século XIX
(coincidentemente, do século XX também) foram marcantes
para o futuro peril social do País. Era necessário que novos
dispositivos fossem acionados, para que se constituíssem um
aparato jurídico, que protegesse os proprietários de terras e os
moradores urbanos, de maneira geral, contra os negros (libertos
ou escravos). As citadas revoltas negras de Salvador vieram chamar
profundamente a atenção dos responsáveis pela Justiça, datando,
daí, o estabelecimento de castigos corporais para os negros que
fossem presos em virtude de praticar a Capoeira.
O período foi também muito abalado pelo crescimento da
pressão sobre a escravidão, por parte de alguns setores que eram
contrários a uma repressão exaustiva aos momentos de lazer e
festividade que, nas propriedades rurais e mesmo nas áreas urbanas, os
escravos realizavam. Fervilhavam os anseios e a vontade de liberdade.
Nesses momentos, eram forjadas as conspirações, que nunca deixaram
de alimentar a utopia de liberdade a que a população negra aspirava.
Os capoeiras estavam sempre presentes nos momentos de
rebeldia na cidade, bem como nos momentos de fuga das senzalas e
na proteção aos quilombos, marcando sempre, com sua presença, à
maneira das camadas subalternizadas, o processo histórico no Brasil.

o 118 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

Na chegada de D. João VI, por exemplo, quando houve o famoso


desalojamento da população, para que surgissem habitações para a
Família Real, o povo, descontente, saiu às ruas, com os capoeiras à
frente, derrubando os guardas reais. O mesmo izeram nas revoltas
negras baianas, enfrentando e derrubando aqueles que prendiam
alguns de seus companheiros.
Uma carta datada de 31 de outubro de 1821 fez-se Portaria ao
ser assinada pelo Ministro da Guerra, General Carlos Frederico de
Paula, e Nicolau Viegas de Proença. Estabeleceria a referida Portaria os
castigos corporais como os AçOITES, BOLOS DE PALMATÓRIA,
EXPOSIçãO PÚBLICA NO TRONCO ETC. para os capoeiras.
Entretanto, na Guerra do Paraguai, foi formado um
batalhão de libertos com a inalidade de servir de linha de
frente na batalha, atuando como fuzileiros navais, que, com sua
memória guerrilheira e quilombola, poderiam, conforme izeram
realmente, desarticular as defesas paraguaias. Foi famosa a atuação
desses homens negros, que, inclusive, ganharam denominação
própria: BATALHãO DOS ZUAVOS.

O Período Republicano

A grande desarticulação da Capoeira deu-se no início da


República, com a publicação do Código Penal de 1890, através
do Decreto-Lei nº 487:

ARTIGO 402: Fazer nas ruas ou praças públicas exercícios


de agilidade corporal conhecidos pela denominação de Ca-
poeiragem: pena de dois a seis meses de reclusão.
PARÁGRAFO ÚNICO: É considerada circunstância agra-
vante pertencer a Capoeira a alguma banda ou malta. Aos
chefes, ou cabeças, impõe-se pena em dobro.
ARTIGO 403: No caso de reincidência, será aplicada ao ca-
poeira, no grau máximo, a pena do art. 400 (reclusão por três
anos, em Colônias Penais ou Presídios Militares na Fronteira).

d 119 o
Julio Cesar de Tavares

Daí em diante, as coisas só pioraram para os capoeiras,


duramente perseguidos desde a nomeação de Sampaio Ferraz
como Chefe da Polícia do Rio de Janeiro, com o nítido interesse de
eliminar deinitivamente a Capoeira. Ainal, a organização, que os
capoeiras mantiveram durante séculos, já assustava profundamente
o Governo Provisório, principalmente diante dos crescentes
serviços que as maltas de capoeiras prestavam aos proprietários de
terras ao controlar, ou mesmo fraudar, as eleições do cabresto.
Cada malta tinha seu próprio nome: Três Cachos
(Freguesia de Santa Rita); Cadeira da Senhora (Freguesia do
Santana); Franciscano (São Francisco de Paula); Flor da Gente
(Glória); Espada (Lapa); Guaiamum (Cidade Nova e mais a zona
circunjacente ao Largo da Carioca); Luzitanos (Santa Luzia);
Santo Inácio (Castelo); Monturo (Praia de Santa Luzia); Dança
(São Jorge); Flor de Uva (Santa Rita), entre outras. As maltas
mais conhecidas eram a dos Guaiamuns e a dos Nagôs (absolutos
na Lapa, inclusive Mata Cavalos, hoje Rua do Riachuelo, mais a
região da Glória, Catete e adjacências). Raimundo Lapa, tenente
da Guarda Nacional, era um dos principais líderes. Manduca da
Praia era o principal líder dos Guaiamuns.
Sobre essas maltas foram aplicados todos os dispositivos
de repressão possíveis de existir, para combater os capoeiras. O
Chefe de Polícia icou também famoso por certos instrumentos
desenvolvidos, como, por exemplo, o “teste do limão” e os chicotes
de três metros, que seus soldados utilizavam nos combates. O
primeiro consistia em fazer passar um limão pela barra da calça,
junto aos sapatos. Caso o limão não passasse, o homem era preso
por um bom tempo. Isso acontecia porque os Capoeiras utilizavam
um traje bem característico, principalmente aqueles que faziam
parte das maltas. Segundo Mello Moraes Filho (1979), usavam

[...] calças largas, paletó saco desabotoado, camisa de cor,


gravata de manta e anel corrediço, colete sem gola, botina

o 120 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

de bico estreito e revirado e chapéu de feltro. Seu andar


é(ra) oscilante, gingado e na conversa com os companheiros
guarda(va) distância, como em posição de defesa. (MORA-
ES FILHO, 1979, p. 257-263)

E, acima de tudo, o brinco na orelha, sinal de valentia ou,


por que não, a marca guerreira, herança africana. O capoeira
usava, ainda, uma calça chamada “boca de choro”, que tinha três
barras e não excedia a 16 cm de largura da bainha. Isso para evitar
navalhada profunda na perna durante o transcorrer de uma briga.
“O lutador poderia icar por baixo que a calça permanecia no
lugar.”
Enviado de Campos Sales, então Ministro da Justiça,
a atividade de Sampaio Ferraz, visando ao extermínio da
capoeiragem e dos capoeiras, foi incansável. Presos, eram
conduzidos à Ilha de Fernando de Noronha, Ilha Grande e
Fortaleza de Santa Cruz ou, então, deportados para Mato Grosso
ou Goiás. Os que conseguiam fugir refugiavam-se na Ilha da
Maré, na Baía de Todos os Santos.
A maior façanha desse delegado, no entanto, foi mandar
prender Manduca da Praia, líder dos Guaiamuns, e Juca Reis, ilho
do Conde de Matosinhos, dono do Jornal O País, ambos famosos
capoeiras. Neste caso, icou um exemplo de que a capoeiragem
não era coisa exclusivamente de marginais. Está claro que esta
visão estava repleta de estigmas herdados do período escravista.
Também eram capoeiras membros da própria classe média, pois
a arte já transcendia o aspecto meramente socioeconômico desde
então. Um novo universo de valores e de identidade formava-se
no meio urbano brasileiro.
A Capoeira ingressava nos nossos costumes cotidianos:
meninos mimetizavam as atitudes dos capoeiras, como o ato de
usar um boné à banda e caminhar gingando. Muitos garotos iam
à frente das maltas, na hora de seus ataques a bairros inimigos.
Eram esses meninos, conhecidos como “caxinguelês”, que

d 121 o
Julio Cesar de Tavares

realizavam os exercícios preparatórios nos combates de rua, que


os capoeiras travavam.
Daí em diante, a tendência foi o desaparecimento dos
capoeiras. A redução foi grande: vários presos. Reapareceram
alguns na Revolta da Vacina em 1904 e, depois, na Revolta da
Chibata em 1910, motim negro na Marinha contra o suplício e
a tortura ainda existentes na Armada, vestígios da mentalidade
aristocrática escravista (não nos esqueçamos de que grande parte
dos ilhos dos coronéis ia para a Armada, levando consigo o
preconceito de cor, decorrente da própria presença escrava no seu
cotidiano).
O fato é que a República Velha não conseguiu ter uma
retórica própria do corpo. Seu discurso dava continuidade ao
discurso escravista, em que os corpos eram predominantemente
“trabalho encarnado”, “coisa”, “mercadoria”, “peça”, com os quais
se ajustam prazeres, saberes, por intermédio de um mandante
exterior a eles. Além disso, e apesar desse aspecto, também é desse
período o desmantelamento das instituições negras. Primeiro,
por Ruy Barbosa, que, ao pretender apagar a “mancha negra”
da escravidão, mandou eliminar toda documentação relativa ao
tráico negreiro.
Na verdade, o que Barbosa pretendia era apagar todas as
dívidas de indenização que a nascente República possuía para com
os proprietários de terras, tendo em vista que, para a libertação
dos escravizados, foi irmado um acordo com os proprietários,
estabelecendo que estes receberiam uma indenização por cada
negro liberto. Só que tal compromisso havia sido irmado na
fase imperial, quando da proclamação da Lei Áurea. Com a
Proclamação da República, Ruy Barbosa, Ministro da Justiça,
imediatamente eliminou essa possibilidade, decretando a
queima dos documentos para a “puriicação da alma brasileira”,
eliminando-se, desta forma, o passado “negro” da dívida com os
ex-proprietários de escravos.

o 122 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

Em seguida, a proibição da Capoeira e dos cultos africanos


veio marcar mais um passo na desiguração da memória deste
país, pois atacavam-se os núcleos de resistência, que se haviam
constituído como formas alternativas ao sequestro colonialista
historicamente realizado. A existência de uma estratégia antinegra
de embranquecimento era visível. Certamente, por causa da
presença de imigrantes cada vez mais acentuada e crescente
situação das cidades, que contava com um número cada vez maior
de negros libertos e famintos. Esta imagem devia aterrorizar os
que chegavam ao Brasil por impulso da imigração.
Há, ainda, outro aspecto importante: a participação das
maltas de Capoeira no movimento abolicionista e, por isso, nos
movimentos antirrepublicanos, como gratidão à libertação da
escravidão pela monarquia. Este é um fato, entre tantos outros
enunciados anteriormente, que ainda não conta com explicações
suicientemente claras para sua compreensão. Como se
desenvolveu a tendência monarquista entre negros libertos? Com
que instrumentos organizavam a luta antirrepública? Quem se
ligava aos negros nessa luta? Como se relacionavam capoeiristas
e abolicionistas?

A biopolítica do Estado Nacional Brasileiro


Entretanto, os problemas relativos à constituição de uma
base de apoio governamental não chegaram a ser um problema
para a República Nova. Com Getúlio Vargas, mais precisamente
em 1937, isto é, a partir da instalação do Estado Novo, a Capoeira
voltou a existir sem a perseguição de outrora. Vargas reabilitou
a Capoeira, derrubando o Decreto-Lei nº 487 e assegurando
sua existência em “espaços fechados”. Aí, estava a diferença: o
controle institucional passava a existir em troca de sua legalidade.
Todavia, paralelamente a essa medida, Getúlio Vargas colocava

d 123 o
Julio Cesar de Tavares

na ilegalidade a Frente Negra Brasileira, primeira forma legal


de organização da população negra no período republicano,
da qual faziam parte milhares de negros15. Com essa atitude,
Getúlio deixou a marca indelével de sua postura bonapartista,
que caracteriza a política do “toma lá, dá cá”.
A inalidade de legalização da Capoeira foi a de permitir a
constituição de um campo de apoio à política de uniformização
social que o Estado Novo implementaria. Essa fase (1937/1945)
foi, de fato, o momento de planiicação e de constituição dos
mecanismos de controle e planejamento social a partir da
intervenção do Estado, que passou a subtrair da sociedade civil as
responsabilidades quanto à mobilização e ordenação social.
Diferentemente da República dos Coronéis, a República
de Vargas foi subsidiada por uma forte retórica do corpo, ou
seja, de uma consistente biopolítica. Este discurso está marcado
pela política desportiva e pela proposta de formação do professor
de Educação Física. O momento era muito propício, pois uma
sociedade que se pretende autorregulada, sob controle, deve
preocupar-se com a disciplina dos corpos que nela atuam. A
classe trabalhadora foi alvo dessa política de constituição de
corpos disciplinados, capazes de sustentar a nova etapa em que
o Brasil entrava e, ao mesmo tempo, forjar o homem brasileiro
da seiva desse esforço. Instituiu-se uma gigantesca mobilização
nesse sentido, com a inalidade de estabelecer as demarcações
necessárias para a nova regulação que o Capitalismo, planejado
com intervenção estatal, pressupunha.
A Educação Física surgia, assim, com o discurso de corpos
e espíritos disciplinados, por meio do qual o professor atuava
como o vigilante e o controlador desses corpos. Nesse projeto,
a metodologia de ginástica francesa se fundia aos discursos
nacionalistas, fundando um caminho caracteristicamente militar
na Educação Física no Brasil. (LIMA, 1979, p. 29-37)

15
O mais substancial trabalho a respeito ainda é o de Forestan Fernandes (1978).

o 124 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

Novos espaços e novas instituições foram favorecidas para o


crescimento e desenvolvimento dessa política. Essa nova retórica trazia
a proposta de um novo tempo para os corpos. Não se tratava mais
de supliciá-los, mas sim de formatá-los adequadamente. Estava em
superação a mentalidade agrário-escravista e, em seu lugar, emergiam
formulações mais compatíveis com o tempo urbano-industrial.
Michel Foucault (1974), em uma análise em que se refere à
industrialização da Inglaterra e da França, diz o seguinte:

Ao contrário, a sociedade moderna que se forma no século


XIX é, no fundo, indiferente ou relativamente indiferente à
pertinência espacial dos indivíduos; ela não se interessa pelo
controle espacial dos indivíduos na forma de sua pertinência a
uma terra, a um lugar, mas simplesmente na medida em que
tem necessidade de que os homens coloquem à sua disposição
o seu tempo. É preciso que o tempo dos homens seja ofere-
cido ao aparelho de produção; que o aparelho possa utilizar
o tempo de vida, o tempo existência. É por isso, desta forma
que o controle se exerce. São necessárias duas coisas para que
se forme a sociedade industrial. Por um lado, é preciso que o
tempo dos homens seja colocado no mercado oferecido aos
que querem comprar, e comprá-los em troca de um salário;
e é preciso, por outro lado, que este tempo do homem seja
transformado em tempo de trabalho. É por isso que em uma
série de instituições encontramos o problema e as técnicas da
extração máxima de tempo. (FOUCAULT, 1974, p. 93-94)

Além disso, deve o corpo ser formado, qualiicado como


capaz de adquirir aptidões, trabalhar. Corrija-se o corpo do
século XIX, supliciado, torturado e depauperado. Construa-se
um novo corpo no século XX: corrigido, preparado, formado.
Sendo assim, a Educação Física, nesse período do Estado Novo,
se constituía naquilo que Foucault denominava de capilaridades
do poder (Cf. por toda a sua obra, marcantemente), com o
objetivo de disciplinar, nas sociedades, as massas trabalhadoras,
principalmente, constituindo-se o rizoma de um saber corporal
institucional.
d 125 o
Julio Cesar de Tavares

Com o im da proibição, a Capoeira pôde novamente existir,


mas só em academias, quer dizer, teve que sair dos espaços livres,
que eram as ruas, e submeter-se aos espaços predeterminados,
com alvará e tudo que a disciplina requer como coisa legalizada
e institucionalizada. Contava, a Capoeira, para esse momento de
re-interação na sociedade, com as duas mais expressivas iguras da
história: de um lado, Manuel dos Reis Machado, o Mestre Bimba
(1909-1974) e, de outro, Vicente Ferreira, o Mestre Pastinha
(1889-1981).
Mestre Bimba foi o principal responsável pela difusão da
Capoeira que existe hoje nas academias, pois somou a abertura que
o Estado oferecia à sua destreza e depuração técnica, conseguindo
realizar a fusão da Capoeira tradicional, chamada Angola, com seu
jogo lento, rasteiro, em que entravam muita malícia e velocidade,
aos movimentos e golpes de savate, do jiu-jítsu e do catch. Dessa
fusão, surgiu o que ele denominou de Capoeira Regional Baiana.
A Capoeira Regional adequa-se melhor ao processo de
embranquecimento por que passava a sociedade brasileira, já que
permitia uma melhor participação do branco, menos lexível (com
“junta dura”, conforme Bimba dizia) e, portanto, com mais diiculdade
para a execução dos movimentos exigidos no jogo Angola.
A sistematização, que Bimba desenvolveu, imprimiu
dinâmica extraordinária à Capoeira, que, em 1953, obteve
o cumprimento de Getúlio Vargas pelo desenvolvimento de
uma contribuição sem par para a Educação Física e que, pela
sua origem, deveria ser considerada luta nacional brasileira.
Praticamente, tornou-se um hábito seu exercício, a ponto de
Bimba levar a Capoeira ao Governador Juracy Magalhães, dando-
lhes aulas (e também aos seus guarda-costas).
O Mestre Bimba foi o criador da Academia Centro de
Cultura Física Regional da Bahia. As mudanças introduzidas por
Bimba vieram dar em uma sistematização empírica, que gerou
o sistema da graduação, adotado a partir de 1972, quando a

o 126 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

Confederação Brasileira de Pugilismo reconheceu a Capoeira


como esporte, deixando de ser mera manifestação folclórica.
Em 1961, a Polícia Militar do Rio de Janeiro passou a adotar
a Capoeira como instrumento de defesa pessoal. Mas o grande
impulso que a Capoeira obteve deu-se através do I Simpósio de
Capoeira, realizado em 27 de agosto 1968. Dele, participaram o
Ministro João Lyra Filho, Valdemar Areno, Alberto de La Torre
de Faria, Renato de Almeida, Edson Carneiro, André Luís Lacê
Lopes, Dr. Decânio e o Capitão Lamartine Pereira.
A partir dessa sistematização sugerida por Bimba,
desenvolveu-se um sistema de graduação, isto é, um sistema
de hierarquias que superou a antiga classiicação de aprendiz e
mestre, existentes, por exemplo, no jogo de Angola. Entretanto,
não foi possível o desenvolvimento de um ponto em comum
entre todos os Capoeiras quanto a este aspecto, tanto assim que
existem várias formulações de graduação.
O fato é que a Capoeira, apesar dos pontos de unidades
que estão marcados no que lhe é próprio pelo jogo estabelecido,
ainda não conseguiu realizar uma sistemática em nível nacional,
por mais que o Mestre Bimba tenha contribuído para a realização
desse processo. Por outro lado, a ixação quase única e exclusiva
durante muito tempo naquilo que constituía a Capoeira
Regional fez com que aumentasse o distanciamento de suas raízes
primeiras, ortodoxamente preservadas pelo Mestre Pastinha, na
sua ilosóica e cortês proposta da Capoeira como jogo de Angola.
Em 1984, a Capoeira encontrava-se distanciada do seu lado
mais místico e ilosóico, mais ortodoxo e tradicional, mais distante
dos aspectos que lhes dão característica de uma herança guerreira
africana, desenvolvida como arquivo da resistência coletiva e
arma de combate. A sua vinculação com a Federação Brasileira
de Pugilismo, de fato, comprometeu profundamente este aspecto.
Segundo Mestre Tabosa, tradicional em Brasília durante
os anos 1980, a formação dos mestres e os campeonatos são

d 127 o
Julio Cesar de Tavares

profundamente descaracterizadores da essência da Capoeira. “O


conceito de mestre”, diz ele,

[...] deveria ser relativizado, pois os que se encontram hoje à


frente da Capoeira são muito jovens e ainda não condensa-
ram toda sua experiência no sentido da uniicação da Capo-
eira como síntese mais geral. Isto implicaria uma busca do
elo perdido que se encontra, sem dúvida nenhuma, no jogo
da Angola. Mestre Bimba, responsável pela própria diferen-
ciação, era exímio angoleiro, por exemplo.

“Quanto aos campeonatos”, continua Tabosa,

[...] não deveriam existir. O que deveria ser incentivado são


os intercâmbios e não as competições, que se desenvolveriam
através de Encontros Oiciais, com a inalidade de realização
de seminários. A competição contribui de forma destrutiva
do aspecto confraternizador da Capoeira, capaz de aproxi-
mar elementos que se encontram mais distantes no campo
da Capoeira.

E complementa:

Existiriam, assim, duas formas de competição: a competição


olímpica, desenvolvida pela sociedade contemporânea, e a
competição natural. A primeira não possibilita a demons-
tração da destreza da Capoeira, que cai de uma rasteira, des-
dobrando a queda em outro movimento ou até mesmo no
reverso, isto é, num contragolpe. A segunda é realizada de
forma natural e resolvida no próprio jogo.

Um passo importante foi dado no sentido de se construir


a identidade nacional a partir das manifestações de nossa cultura,
capazes de conservar viva a alma teimosa, renitente, manhosa e
resistente da rebeldia do povo negro na sua permanente luta pela

o 128 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

construção da liberdade. A Capoeira participa, de forma decisiva,


da construção de uma nova retórica para os corpos, nesta etapa da
redescoberta do corpo, que o homem no Planeta, e os indivíduos,
em sociedade, estão realizando em uma nova biopolítica.
Trata-se, acima de tudo, de revelar que nenhum poder é
monolítico, pois a História da Capoeira mostra como é possível
resistir, rebelar-se da maneira mais sedutora possível.
Tudo é questão de jeito de corpo, um jogo de cintura, um
jeito de ser...
Ginga, apenas.

d 129 o
Julio Cesar de Tavares

o 132 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

A degradação do ensino que sofremos e a facilidade


paralela do diploma universitário entre nós levam a esta
conclusão lógico-paradoxal: formamos bacharéis que são
estranhos à carreira em que se diplomaram, como seria um
visigodo no senado romano. Mais explicitamente: o prestígio
do diploma entre nós resulta de se acreditar que ele facilitará
a ascensão social. Como, no entanto, tais cursos se modelam a
partir da imagem da ‘cultura superior’, camadas signiicativas
da sociedade abandonam suas prévias identiicações culturais
– o crente na macumba ou em religiões sincréticas recalca,
disfarça ou nega sua idelidade ao culto, o curandeiro teme
que seja divulgado seu conhecimento das mezinhas e das ervas
medicinais – e procura se familiarizar com a linguagem do
‘senado romano’. Como isto, entretanto, leva tempo e o próprio
curso universitário exige pouco, criam-se doutores brancos que
nem se embranquecem, nem mantêm sua outra identiicação.
Conclui-se mal, diante de tal caso, ao se dizer como se tornou
freqüente que cada vez os diplomados dominem menos
o português. A questão vai além do mero aprendizado da
língua. O problema, como aquela hipótese se nos permite
ver, é de orientação no interior de uma cultura. Melhor dito,
de orfandade no interior das culturas compreendidas pela
sociedade brasileira.

Luiz Costa Lima

Este jogo do jeito, não mais que de repente, me fez pensar


na possibilidade de associação de categorias do pensamento
brasileiro, que fossem mais abrangentes e mais frequentes no
universo de signos que caracterizam o discurso do cotidiano
dramático nesta nossa morada transcontinental.

d 133 o
Julio Cesar de Tavares

Por este caminho, procurei me aproximar de um maior


esclarecimento no campo da própria prática, a im de buscar
desenvolver as seguintes questões: como o pensamento se realiza
em ações corporais? Como é possível transmutar uma determinada
visão do mundo em ação corporal concreta, aquela que conduz
a intenção consciente de nossas atitudes e comportamento sem
que, sequer, saibamos ao certo seu sentido?
Mais uma vez, de dentro e por dentro do próprio sistema
institucional, estabelece-se uma mudança reformadora, sem,
entretanto, ameaçar a correlação de forças existentes, procurando
absorvê-la e dela extrair energia que proporcione feedback para a
nova girada no ponteiro do tempo histórico. Na sequência, mais
uma vez também se recria uma tradição inventada com o objetivo
de arejar os vasos comunicantes do sistema, sem que o mesmo se
desestabilize. Isso através de uma negação participativa, que se
esgueira e rejeita uma negação conlitiva.
Ora, seria esta prática historicamente já anunciada com
tendência à conciliação e reforma no Brasil, uma tradição
costumeira, um dado realmente estrutural, isto é, paradigmático
do político nacional? Assim como a tragicomédia é um
componente básico da dimensão cotidiana de nossas vidas,
estaria o caráter tendencial para a conciliação e reforma na razão
direta deste fato?
Neste horizonte de acontecimentos, a categoria que cada
vez mais foi manipulada pelo povo nas ruas foi o jogo de cintura:
vamos dar um jeitinho e melhorar a situação. Mas este jogo de
cintura mental implicaria, também, em um jeito de ser, reletin-
do-se em um jeito do corpo? Haveria, ainal, uma relação encar-
nada entre esta categoria de entendimento das ações cotidianas,
que é jogo de cintura, e algum tipo de expressão corporal, seja
físico ou social, resultante do movimento de um corpo de agen-
tes na cena social? A certa exigência de lexibilidade e tolerância
corresponderia alguma postura corporal cotidiana? Haveria uma

o 134 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

homologia entre esta tragédia de procedimentos e os ritmos cor-


porais naturalmente processados no cotidiano?
Pode parecer um tanto fora de propósito esta relação
ou mesmo esta tentativa de Sociologia do Conhecimento do
brasileiro para a maioria daqueles que estão mais preocupados
com a aplicação pura e simples dos modelos de análise elaborados
para as Ciências Sociais, tanto na Europa quanto nos Estados
Unidos, sem nenhum esforço de veriicação desta singularidade:
a mentalidade brasileira.
Toda coragem é pouca, mas temos que correr o risco de
penetrar no não dito do inconsciente coletivo do povo brasileiro
se quisermos desenvolver algumas análises mais reveladoras sobre
a possibilidade de um autodesenvolvimento cultural. Temos que
ter ousadia de propor a conscientização de nossos próprios valores
a partir de uma fecunda reviravolta nos porões trancaiados da
memória, com o im de superarmos o estado de amnésia social
em que nos encontramos.
Segundo o professor e ilósofo Emanuel Carneiro Leão,
esta atitude de desaio para com o desenvolvimento deveria ser
denominada de “Capoeira do Pensamento”: investir nos cami-
nhos silvestres com análises silvestres. Já Guerreiro Ramos (Cf.
RAMOS, 1960, p.19-39) demonstra sua preocupação quanto à
forma rigorosa de aplicação de modelos, em nome de um estatuto
cientíico, sem levar em consideração a nossa realidade. Daí o seu
conlito com Florestan Fernandes.
Na nova etapa que se abre, é fundamental começarmos
a nossa transformação pelo nosso cotidiano concreto, até então
insondável pelas Ciências Sociais. A Educação e a Cultura con-
stituir-se-ão em dimensões prioritárias da transformação que
poderemos processar, visando à autogestão e à autonomia de
nossas mentalidades, devastando, assim, as cancerígenas células
do colonialismo lógico-cognitivo e da dependência cultural, que

d 135 o
Julio Cesar de Tavares

nos fazem meros consumidores das obsolescências das grandes


metrópoles, seja da cultura material, seja da cultura simbólica.
Uma revolução cultural JÁ!
Eis uma boa receita, se tivéssemos que receitar. Mas aqui
não se trata de distribuição de clichês. O importante é o desaio.
O que importa é correr o risco de ousar e renovar. Em um in-
stante como este, de que adianta a posse de um título acadêmico,
em nome da legitimação de um saber estatutariamente instituído,
se não se faz o uso deste em favor da própria dinâmica social?
Dos próprios saberes marginalizados: o antissaber institucional?
Como podemos levarmo-nos a sério?
Darmos um passo, visando à fratura dos resíduos da
colonização e à consolidação da independência, signiicaria
a desalienação da razão brasileira. O preço estaria no fardo de
assumirmos nossa própria identidade, sem causar, entretanto,
a infelicidade da maioria dos intelectuais de nossa História,
que jamais conseguiram se libertar do centro de hegemonia do
Ocidente: o Velho Mundo e os Estados Unidos. A dependência
econômica e social deixou marcas profundas no campo lógico-
cognitivo e uma vergonhosa atroia no aspecto da relexão, bem
como a negação da possibilidade de construirmos, desde agora, a
identidade nacional como brasileiros.
Oswald de Andrade, igura ímpar pelo cinismo e satiricidade
no trato das questões acadêmicas, foi o primeiro grande intelectual
a abordar esta difícil tarefa: a de buscar-se! Acima de tudo, com
destaque: sem precisar “queimar” discos de Beethoven, por possuir
laços burgueses e europeus, bem como por ter apoiado integral-
mente a Revolução Francesa, conforme atitude tomada na China,
em 1968, na Revolução Cultural dirigida pelos guardas-vermelhos.
ANTROPOFAGIA! Conceito de profundo signiicado
político, pouco trabalhado pela intelectualidade na área das
Ciências Sociais, que, na deinição ocorrida durante a década de
1960, icou encharcada pelos elementos da economia política

o 136 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

marxista na busca – bem-sucedida, diga-se de passagem – de um


modelo latino-americano da análise da realidade nacional. Nesta
medida, deixaram-se de lado os aspectos socioculturais e político-
pedagógicos.
Vivemos um bom momento para revisitar os fundamentos
daquilo que se constitui no mais profundo movimento político-
estético cultural de nossa História: a Semana de 22. Poderíamos,
agora, acrescentar mais dois elementos à ANTROPOFAGIA: DI-
GESTãO e AUTOGESTãO MENTAL e SOCIAL.
Só radicalizando nossa maneira de pensar, condensando-
nos, enquanto sujeitos, aos nossos objetos e deslocando-nos dos
territórios permitidos para terrenos contaminados pelo recalque da
colonização, é que poderemos fazer fecundar uma nova linhagem
de pensadores que sejam capazes de “dar a volta por cima”: traçar
a teia do que já foi tecido e caminhar por outras superfícies do
pensamento e da realidade. Desta forma, não devemos ter
escrúpulos em demarcar novos lugares de saber, novos territórios
de investigação, novos continentes de análise, que constituam
novas superfícies de conhecimento. Poderíamos adotar muitos
dos procedimentos dos arqueólogos, saindo à cata das realidades
dispersas para construirmos sua compreensão sob a forma de
discurso das diferenças.
Dar vez, por exemplo, aos atos comunicativos dos agentes
sociais, submetidos ao silêncio na interminável resistência à
dominação e rebeldia na libertação. Eis a sobrevivência da população
negra e de seus descendentes, que, na persistente manutenção
do caráter lúdico de suas formas de comunicação, conseguiram
galvanizar um intercâmbio de energias e recuperar as unidades
básicas e elementares da cosmovisão, que montou a percepção do
agir/estar no mundo, recomposta na existência, no cotidiano do
território do colonizador.
O pouco caso, ou mesmo o descaso quanto ao conhecimento
de como as populações negras se ordenaram no espaço urbano, da

d 137 o
Julio Cesar de Tavares

maneira como preservaram seus dispositivos de identidade, isto


é, seus mecanismos de exclusão e de airmação, e do modo como
negociaram e viabilizaram suas mensagens, suas expectativas e
sonhos, suas camulagens e simulacros, vem sendo, sem dúvida
alguma, um obstáculo epistemológico para a deinição da
estratégia de uma identidade nacional. Eis, aí, a diiculdade em se
desenvolver um desaio ao logos aristotélico pela nossa emergente
e desaiante civilização atlântica.
Mennoti Del Pichia, em artigo no A Gazeta de São Paulo
em 1956, declarava:

É um crime deixar o Brasil descaracterizar-se, perder sua


função típica, anular-se, inferior e retardado em fórmulas
que já são triunfantes no Velho Mundo e nos Estados Uni-
dos. Na luta, a ‘Capoeira’, cuja origem mais do que africana
se presume ser nitidamente brasileira, nascida entre escravos
da Bahia, é uma forma individual de defesa física das mais
inteligentes e eicientes.

O mesmo espanto pelo descaso governamental – e,


extensivamente, do Estado – para com a nossa memória e
tradição, foi declarado, muito antes, por Henrique Maximiano
Coelho Neto, literato e exímio capoeirista, em O Bazar de 1928:

Em 1910, Germano Haslocher, Luis Murat e quem escre-


ve estas linhas pensaram em mandar um projeto à mesa
da Câmara dos Deputados tornando obrigatório o ensino
da Capoeira nos institutos oiciais e nos quartéis. Desisti-
ram, porém, simplesmente porque tal jogo era... brasileiro.
Viesse-nos ele com rótulo estrangeiro e tê-lo-íamos aqui,
impondo importância em todos os clubes esportivos, ensi-
nado por mestre de fama mundial que, talvez, não valesse
um dos nossos pés-rapados de outrora que, em dois tempos,
mandariam um Firpo ou um Dempsey ver vovó, com al-
guns dentes a menos e algumas bossas a mais. (COELHO
NETO, 1928, p. 133-140).

o 138 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

Eis, aí, um exemplo que demonstra a diiculdade de mudanças


substanciais neste país, no que diz respeito à busca de vínculos da
Educação com a tradição cultural de nosso povo. Nesse mesmo
artigo, Coelho Neto, logo no início, defende a importância do ensino
da Capoeiragem, justiicando tal defesa da seguinte forma:

A Capoeiragem devia ser ensinada em todos os colégios, quar-


téis e navios, não porque é excelente gymnástica, na qual se
desenvolve, harmoniosamente, todo o corpo e ainda se apu-
ram os sentidos, como também porque constitui um meio
de defesa a todos quanto são preconizados pelo estrangeiro e
que nós, por tal motivo apenas, não nos envergonhemos de
praticar. Nós, que possuímos os segredos de um dos exercícios
mais ágeis e elegantes, vexamo-nos de o exibir e, o que mais
é, deixamo-nos esmurraçar em ringues por machacazes balor-
dos que, com sua quebra de corpo e um passe baixo de um
‘ciscador’ dos nossos, iriam mais longe das cordas do que foi
Dempsey à repulsa do punho de Firpo. (COELHO NETO,
1928, p. 133-140)

Coelho Neto não somente era admirador da Capoeira, mas


também um praticante. Manoel Moreyra conta, em seu livro Dos
Clarões sobre a Terra (1954), que Coelho Neto, ao ser atacado
por um desordeiro com uma machadinha, aplicou-lhe um golpe,
desarmando-o, “e com mais alguns certeiros golpes, o valentão
estava desarmado e completamente vencido”. Não se trata de
realizar uma biograia da prática da Capoeira por Coelho Neto,
mas, antes de mais nada, de fazer uma revelação da preocupação
do escritor quanto a tão crucial problema: a relação da Educação
com a Cultura.
Se tomarmos a consideração inicial de que vivemos, no
plano mundial, um momento que, entre outras coisas, está
caracterizado pelo fenômeno denominado de Redescoberta
do Corpo (segundo Hélio Oiticica, “Descoberta do Corpo”,
e Antonin Artaud, “Revolução Fisiológica Integral”), ica

d 139 o
Julio Cesar de Tavares

evidenciado o seguinte aspecto: nós, que temos, no corpo,


profundas heranças enunciadoras das lutas antiautoritárias,
desenvolvidas por intermédio de dispositivos não verbais pela
população negra e oprimida como um todo, mais do que nunca,
vivemos um tempo que favorece o avivamento de nossa memória
corporal. Ainda: precisamos buscar, nas práticas, nas tradições,
nas lutas de resistência das camadas dominadas e nos seus traços
deixados vivos até hoje, os elementos que poderiam contribuir no
sentido de formularmos um projeto pedagógico, que se tornasse
alternativo às formulações autoritárias até hoje existentes. Assim,
seu pressuposto seria unir a memória da resistência e da rebeldia
dos oprimidos à mobilização popular.
Seu objetivo deveria voltar-se para a superação dos vícios
que a educação bancária desenvolveu na mentalidade brasileira:
a acomodação e a não participação no processo pedagógico,
que, na prática inculcadora e autoritária do professor, até hoje,
se mantém acesa, por mais que se tenham ampliados os meios
de comunicação audiovisuais. Nesta linha de raciocínio, a
constituição de uma Educação que responda às transformações
pelas quais a sociedade brasileira pretende passar neste momento
deverá, sem dúvida, estabelecer-se, em qualquer nível de ensino,
em qualquer grau de escolaridade, como o elemento dominante.
Partir dos aspectos lúdicos da cultura brasileira como
referência dos traços políticos de nossa História é uma linha não
experimentada com profundidade. Além disso, ao retomarmos
esses aspectos, a sociedade começará a pagar o seu débito
com a cultura negra e com a História dos Vencidos. No caso
da Capoeira, também acredito, como Coelho Neto, que sua
adoção deveria ocorrer em toda rede de ensino, prioritariamente
na fase do Ensino Fundamental, a im de que os esquemas
corporais, marcantes na nossa identidade corpóreo-gestual,
sejam trabalhados e explorados por todos os jovens, podendo
eles, a partir daí, construir, de maneira ampliada, uma bagagem

o 140 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

de sabedoria corporal e histórica. Deveríamos considerar que


podem, de fato, a Capoeira e a História do Negro no Brasil, ser
ministradas juntas, uma vez que essa luta-dança se conigura
como um de seus maiores arquivos de informação sobre a história
do corpo negro.
A título de conclusão, tomando a refelxão realizada como
indicadora da situação da Capoeira, bem como os elementos
de análise de conjuntura como denotativos da existência de um
fenômeno em ocorrência nos dias contemporâneos, podemos
dizer que:
a) a Capoeira faz parte da memória corporal dos negros e de seus
descendentes, localizando-se, nela, os índices que podem falar
sobre a sua resistência à hegemonia cultural da civilização
ocidental, uma vez que ela compreende as características
corporais desenvolvidas por negros da Diáspora, tanto na luta
como na paz, para garantir sua sobrevivência;
b) os esquemas corporais que caracterizam os comportamentos
e atitudes da população negra referem-se à sua ancestralidade,
estando os resíduos que marcam a motricidade do brasileiro
impregnados destes elementos;
c) até hoje, a luta dos negros foi impulsionada pela defesa de seu
corpo, pois por ele passam a discriminação (estigma corporal),
a própria caracterização de seu corpo como trabalho a ser
utilizado (sobrevivência da noção de trabalho encarnado),
o arquivamento das informações processadas no cotidiano
(memória corporal) e as possibilidades de constituição de um
instrumento de defesa (resistência);
d) a elaboração da Capoeira foi o resultado da resistência articu-
lada, que pretendia apontar uma saída no interior do próprio
sistema de coação, como herança da lógica da participação,
traço que é predominante na maioria das populações das so-
ciedades não europeias;

d 141 o
Julio Cesar de Tavares

e) o corpo do negro é um signiicante que adquire o estatuto de


signo por se caracterizar pelas marcas conforme acima men-
cionadas e por se instituir como espaço de representação e
signiicação do outro racializado;
f ) se as marcas de nossa sociedade são suicientemente grandes
com relação ao tempo bastante curto de que dispomos para
imprimir o grau de mudanças que a virada histórica esperada
exigirá em breve, cabe a nós, professores e intelectuais, a inso-
lente tarefa de refutar as bases do autoritarismo e do racismo
de dentro de nossa cultura e ladear a luta pela libertação do
autoritário e racializado cotidiano que temos enfrentado;
g) sendo assim, novas formulações são necessárias para resultar
em uma Educação antiautoritária. A tarefa, daí advinda, con-
siste em se conhecerem as expressões culturais de nosso povo
e tentar, a partir daí, traduzir, pedagógica ou informacional-
mente, os elementos que sistematizam costumes, tradições,
comportamentos e a história não verbal, resultantes de um
processo comunicativo camulado, desenvolvido pelas cama-
das dominadas, como resultado da resistência empreendida
pela necessidade de sobrevivência.
Em poucas palavras, a execução deste programa representa-
ria a possibilidade de constituição de uma rede ou campo de con-
trapoderes e contrassaberes, capaz de constituir-se em um novo
circuito de conhecimento, uma nova trança de questões, que pu-
desse nos arremessar para além dos limites dos descompassos em
que entramos. Esta é a caminhada que nos tornaria, consciente-
mente, corpos humanos de cidadãos brasileiros.
AXÉ!

o 142 d
I - Obras especíicas sobre a Capoeira

a) Jornais

A TARDE. Salvador, 06 jun. 1968.


CORREIO DE MACEIÓ. Alagoas, 26 jan. 1969.
DIÁRIO DE PERNAMBUCO. Rio de Janeiro, 09 fev. 1969.
DIÁRIO DE PERNAMBUCO. Capoeira, um rito, um esporte e
uma tradição afro-brasileira. Recife, 06 abr. 1980.
FOLHA ILUSTRADA. São Paulo, 21 ago. 1959.
JORNAL DO BRASIL. Guanabara, 22 dez. 1963.
JORNAL DA TARDE. A Capoeira chegou, São Paulo, 27 nov.
1967.
JORNAL DE BRASÍLIA. Brasília, 15 abr. 1979.
JORNAL DA BAHIA. Salvador, 01 ago. 1980.
JORNAL DE BRASÍLIA. Brasília, 19 jul. 1980.
JORNAL DE BRASÍLIA. Brasília, 26 nov. 1981.
JORNAL DO COMMÉRCIO. Rio de Janeiro, 21 mar. 1965.
O ESTADO DE SãO PAULO, 16 abr 1967.
O GLOBO. Rio de Janeiro, 26 ago. 1968.
O GLOBO. Rio de Janeiro, 03 mai. 1978.

b) Artigos assinados

CARNEIRO, Edison. O jogo da Capoeira. Jornal do Commer-


cio, Rio de Janeiro, 11 jul. 1965.
CURVELLO, Ivan. Capoeira: a falta de rumos é processo de
embranquecimento. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 24 abr.
1977.
DEL PICHIA, Menotti. Os Capoeiras. A Gazeta, São Paulo, 31
jul. 1956.
Julio Cesar de Tavares

FREITAS, José Freire. Capoeira de rua morreu: hoje é para turis-


ta ver. Singra, Rio de Janeiro, 30 jun. 1960.
FREITAS, Vitor Figueiras de. Capoeiras e Capoeiragem. Estado
de Minas, Belo Horizonte, 04 set. 1966.
GAZZI, Roberto. Capoeira: luta e dança crescem. Diário do
Grande ABC, Santo André, SP, 13 set. 1981.
GOUVEIA, Vitor Antônio. O compasso da luta de Capoeira de
Angola. Folha da Noite, São Paulo, 27 maio. 1958.
HUI, Heitor. Diário da Noite, São Paulo, 07 jun. 1967.
KOZEL Jr., José. In: A Gazeta, São Paulo, 13 ago. 1968.
LUIS, Romualdo. Capoeira, uma arte que pode até vencer o
judô. O Dia, Rio de Janeiro, 15 dez. 1968.
LUZ, Ribeiro. Viva meu mestre que me ensinou, que ensinou,
ê, a falsidade da capoeira! Jornal do Brasil, Guanabara, 29 nov.
1963. Caderno B.
MARãES, César. Se um dia ele cai, cai bem! Jornal dos Sports,
Rio de Janeiro, 30 ago. 1964.
MESTRE VALDEMAR. Foi dia do Embu ver a Capoeira e o
candomblé. O Estado de São Paulo, São Paulo, 16 abr. 1967.
MOURA, Jair. Capoeira regional baiana. O Município, Salvador,
1968.
MOURA, Jair. Bimba: mestre dos mestres no jogo da capoeira. A
Tarde, Salvador, 15 abr. 1967. Suplemento I.
OLIVEIRA, R. Nonato Alves. Capoeira é morte, é dança, é luta.
Folha do Norte, Belém, 07 abr. 1968.
PAIVA, Salvyano Cavalcante de. Ressurreição da capoeira. Cor-
reio da Manhã, Rio de Janeiro, 02 jul. 1964.
PEIXOTO, Benedito. Capoeira de Angola. Correio da Manhã,
Guanabara, 28 jan. 1964. p. 1. Segundo Caderno.
RAMOS, Anatole. Capoeira, uma luta do Brasil para o mundo.
O Popular, Goiânia, 24 dez. 78.
SÁ, Virgílio de. A Capoeira. O Recôncavo, Salvador, jan. 1953.
SIMÕES, Irênio. Capoeira: jogador de categoria não suja de barro

o 146 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

a roupa branca. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 05 mar. 1961.


TORÍBIO, Alderico. Capoeira no Samba é inovação ou Tradição?
Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 21 mar. 1965. Terceiro
Caderno, p.1.
TORÍBIO, Alderico. Berimbau não é gaita, mas está fazendo onda.
Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 28 mar. 1965. Terceiro Ca-
derno, p.1.
TORÍBIO, Alderico. Capoeira. Jornal dos Sports, Rio de Ja-
neiro, 12 set. 1965. Segundo Caderno, p.5.
TORÍBIO, Alderico. Mestre Pitu Lembra: Capoeira é de Can-
domblé e tem a proteção de EXU. Jornal do Commercio, Rio de
Janeiro, 27 fev. 1966. Terceiro Caderno, p.1.
VICK, Cláudio Renato. O ballet da capoeira. Diário de Notí-
cias, Porto Alegre, 04 out. 1964.

c) Livros e revistas

ALMEIDA, Renato. O Brinquedo da capoeira. Revista do Ar-


quivo Municipal de São Paulo, São Paulo, Ano 7, n.10, v.84, p.
155-162, jul-ago. 1942. (Publicação do Departamento de Cul-
tura – Órgão da Sociedade de Etnograia e Folclore e da Socie-
dade de Sociologia).
AREIAS, Almir das. O que é capoeira. São Paulo: Brasiliense,
1983.
AYROSA, Plínio. Capoeira. Revista do Arquivo Municipal de
São Paulo, São Paulo, n.10, v.22, p. 335-345, abr.1936.
BADARÓ, Ramagem. Os Negros lutam suas lutas misteriosas:
Bimba é o grande rei negro do misterioso rito africano. Cadernos
de Cultura, Salvador, n.2, p. 43-56, 1980.
CAPOEIRA, Nestor. O Pequeno Manual do Jogador de
Capoeira. São Paulo: Ed. Ground, 1981.
CARNEIRO, Edison. FOLK-LORE. In: Negros Bantus: notas

d 147 o
Julio Cesar de Tavares

de ethnographia religiosa e de folk-lore. Rio de Janeiro: Civiliza-


ção Brasileira; Biblioteca de Divulgação Scientíica, 1937.
CARNEIRO, Edison. CAPOEIRA, Cadernos de Folclore 1.
2.ed. Rio de Janeiro: MEC-DAC-FUNARTE, 1977. (Cam-
panha de Defesa do Folclore Brasileiro).
COSTA, Pereira da. Folk-lore Pernambuco. Revista do Instituto
Histórico e Geográico Brasileiro, Rio de Janeiro: Imprensa Na-
cional, 1908, p. 240-242.
DUARTE, Abelardo. Bate-coxa (área sanfranciscana). In: Folclo-
re negro das Alagoas. Maceió: Departamento de Assuntos Cult-
urais, 1964, p. 105-108.
ECO, Umberto. La nueva Idad Media. Madrid: Allianza, 1973,
p. 9-34.
FILHO, Mello Moraes. Festas e Tradições Populares do Brasil.
Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, 1979,
p. 257-263.
FREYRE, Gilberto. Folclore e Esporte. Brasil Açucareiro, Rio
de Janeiro, a. 36, v. 72, n. 2, p. 24-25, ago. 1968.
KUBIK, Gerhard. Angolan Traits in Black music, games and dances
of Brazil. A study of african cultural extensions overseas. Estudos da
Antropologia Cultural, Lisboa, n. 10, Suscita de Investigações
Cientíicas do Ultramar, 1979.
LEAHY, J. Gordon. Capoeiragem in Brazil, New York, v. 27, n.
4, p. 6-9, 20. 1953.
MARANHãO, Walmyr. Capoeira in Americas, Rio de Janeiro:
13 ( 8 ); 34-36, agosto 1961.
MOURA, Jair. Capoeira, A Luta Regional Baiana. Cadernos de
Cultura, Salvador, n. 1, 1979.
MOURA, Jair. Subsídios, informações e comentários. Cadernos
de Cultura, Salvador, n. 1, p. 11-42, 1980.
MUNIZ, João. De Wildberger a “Besouro”. Cadernos de Cul-
tura, Salvador, n. 2, p. 57-61, 1980.

o 148 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

PEIXOTO, Benedito. Capoeira, esporte de luta popular. Rio de


Janeiro: Instituto Nacional do Folclore, s/d. (Apostila)
PEREIRA, João Baptista Borges. Estudos Antropológicos e
Sociológicos sobre o negro no Brasil – aspectos históricos e
tendências atuais. São Paulo: USP/FF, LCH-DCS, 1981.
QUERINO, Manuel. Costumes Africanos no Brasil. Rio de Ja-
neiro: Civilização Brasileira; Editora RJ, 1968, p. 270-278.
REGO, Waldeloir. Capoeira Angola: ensaio socioetnográico.
Belo Horizonte: Editora Itapuã, 1968. (Coleção Baiana)
RIBEIRO, Fernando Bastos. Crônicas da Política e da Vida do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Dep. Imprensa Nacional, 1958,
p. 27-34.
SALLES, Vicente. Bibliograia crítica do Folclore Brasileiro:
Capoeira. Revista Brasileira de Folclore, Rio de Janeiro, jan./
abr. 1969. (Separata)
SENNA, Carlos. A vida vegetativa da Capoeira. Revista Brasilei-
ra de Educação Física e Desportos, Rio de Janeiro, p. 78-80.
jul./set. 1978.
SHAFFER, Kay. O berimbau-de-barriga e seus toques. Rio de
Janeiro: FUNARTE, 1977.

d) Links e sites recomendados:

http://abadacapoeira.com.br/blog/
http://africanamenteescoladecapoeiraangola.blogspot.com.br/
http://blog.angolangolo.com/
http://capoeiraafricana.blogspot.com.br/2013/02/gunga.html
http://capoeiraibeca.com/a-familia/a-capoeira/angola-e-
regional/?lang=pt
http://capoeiraangolalisboa.com/about/
http://icario.blogspot.com.br/

d 149 o
Julio Cesar de Tavares

http://morenocapoeira.blogspot.com.br/2006/11/capoeiragem-
no-rio-de-janeiro-de-andr.html
http://negaca.com.br/negaca.html
http://nzinga.org.br/pt-br
http://nzinga.org.br/pt-br/grupo_nzinga
http://portalcapoeira.com/
http://revues.mshparisnord.org/cultureskairos/index.
php?id=541
http://www.abadacapoeira.com/
http://www.arteculturacapoeira.com.br/site/
http://www.angoleirosimsinho.org.br/index.php/mestres/
http://www.berimblog.com.br/
http://www.capoeiraangolamae.de/p/world.php
h t t p : / / w w w. f i l h o s d e j a h v e h . c o m . b r / p a g i n a .
asp?ip=84&t=Capoeira+Regional
http://www.gruposenzala.com/grupo_senzala.html
http://www.kilombotenonde.com/permangola/
http://www.kimcapoeira.com/capoeira/angola-e-regional/
http://www.revistacapoeira.com.br/
http://www.somaterapia.com.br/atividades/conversacoes-liber-
tarias/
http://www.somaterapia.com.br/galeria/fotos/capoeira-angola/

II - Referências

ALVARENGA, Oneyda. Música Popular Brasileira. São Paulo:


Livraria Duas Cidades, 1982.
ARTAUD, Antonin. Van Gogh: el suicidado de la sociedad y
para acabar de una vez com el juicio de Dios. Madrid: Ed.
Fundamentos, 1974.
ARTAUD, Antonin. Para terminar com el juicio de Dios y

o 150 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

otros poemas. Buenos Aires: Ediciones Calden, 1975.


ARTAUD, Antonin. Escritos de Antonin Artaud. Porto Alegre:
L&PM, 1983.
ARTAUD, Antonin. O teatro e o seu duplo. São Paulo: Editora
Max Limonad Ltda., 1984.
AUTOGESTÃO, São Paulo, n. 3, 1980.
BARRAUT, Jean-Louis. Le Corps magnétique. Cahiers Renaud-
Barrault, Paris, n.99, p. 71-135. 1979.
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo:
Livraria Pioneira Editora, EPUSP, 1980. v. 2.
BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. São Paulo:
Cultrix, 1974.
BAUDRILLARD, Jean. Para uma crítica da economia política
do signo. Porto: Livraria Martins Fontes, Editora Ltda., 1972.
BENJAMIM, Walter. Teses sobre o conceito de História. In:
Magia e técnica, arte e política. Obras Escolhidas 1. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
BIRDWHISTELL, Ray. El lenguaje de la expressión corporal.
Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1979.
BOUCIER, Paul. História de la danza en occidente. Barcelona,
Editorial Blune, 1981.
BOURDIEU, Pierre. La distinction critique sociale du
jugement. Paris: Les Editions de Minuit, 1979.
BOURDIEU, Pierre. Le Sens Pratique, Paris: Les Editions de
Minuit,1980.
CAPALBO, Creusa. Metodologia das Ciências Sociais: a
fenomenologia de Alfred Schutz. Rio de Janeiro: Antares, 1979.
CAPOEIRA, Nestor. O pequeno manual do jogador de
Capoeira. São Paulo: Ground, 1981.
CHAZAUD, Jacques. Introdução à Psicomotricidade. São
Paulo: Editora Manole, 1978.

d 151 o
Julio Cesar de Tavares

CHESI, Gert. he Last Africans. Perlinger: Austria, 1977.


CLARK, Lygia. Da supressão do objeto (anotações). Arte em
Revista – Pós-Moderno, São Paulo, n. 7, p. 45-46, 1983.
COSTA, Jean-Claude. A psicomotricidade. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.
DELEULE, Didier e GUÉRY, Françóis. El cuerpo productivo.
Buenos Aires: Editorial Tiempo Contemporaneo, 1973.
DELLEUZE, Guilles e Félix Guattary. Rizoma. Brasília: UnB,
1984. (apostila de circulação interna)
DOS SANTOS, Juana Elbein y DEOSCOREDES M. A Religión
y cultura negra. In: Africa en America Latina. México: UNESCO
y Siglo Veintiuno editores, 1977.
DUVIGNAUD, Jean. Festas e Civilizações. Fortaleza:
Universidade Federal do Ceará e Tempo Brasileiro, 1983.
ECO, Umberto. Hacia la nueva Edad Media. In: ECO, Umberto
et alli. La Nueva Edad Media, Madrid: Alianza Editorial, 1984.
EPSKAMP, Kees P. and Feri de Geus. he Pelvis as Shock Absorber:
Modern and African Dance. In: heatre Intercontinental: Forms,
functions, correspondences. Edited by C. C. Barfoot and Cobi
Bordewijk. Atlanta, GA: Edition Rodopi, B. V. Amsterdan, 1993,
p.141-154.
FANON, Frantz. Pele negra, máscara branca. Rio de Janeiro:
Fator, 1983.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade
de classes. São Paulo: Ática, 1978.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Petrópolis: Vozes,
1972.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Caderno
da PUC, Rio de Janeiro, n. 16, 1974.
FOUCAULT, Michel. História da loucura. São Paulo:
Perspectiva, 1972.
FREIRE, Roberto; BRITO, Fausto. Utopia e paixão. Rio de Janeiro:
Rocco, 1984.
FREITAS, Décio. Insurreições escravas. Porto Alegre:
Movimento, 1976.

o 152 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

GREIMAS, A. et alli. Práticas e linguagens gestuais. Lisboa:


VEGA/Universidade, 1979.
GIL, José. As Metamorfoses do Corpo. Lisboa: A Regra do Jogo, 1980.
HABERMAS, Jurgen. Para reconstrução do materialismo
histórico. São Paulo: Brasiliense, 1983.
HADJINICOLAU, Nicos. História da arte e movimentos
sociais. Porto: Livraria Martins Fontes Editora Ltda., 1973.
HALL, Edward. A System for the Notation of Proxemic Bahavior.
American Anthropologist, New York, v. 65, n. 5 p. 1003-1026, oct.
1963.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. As impressões de viagem.
São Paulo: Brasiliense, 1980.
HUET, Michel. he dance, art and ritual of Africa. London:
Collins St. James’s Place, 1978.
JANUSZEWSKI, Aldona. Del gesto etnografado al gesto creador.
In: La Descivilización Politica y Pratica del Etnocidio, Cidade
do México, Editorial Nueva Imagen, 1979, p. 67-83.
JAULIN, Robert. El etnocídio, intento de deinición. In: La
Descivilización Politica y Pratica del Etnocidio. Cidade do
México, Editorial Nueva Imagen, 1979, p. 9-16.
LE BOULCH, Jean. O desenvolvimento psicomotor do
nascimento até 6 anos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1982.
LEFEBVRE, Henri. La vida cotidiana en el mundo moderno.
Madrid: Alianza Editorial, 1968.
LEFEBVRE, Henri. Felicidade e cotidianeidade. In: Autogestão,
São Paulo, n.3, jun. 1980.
LEFORT, Claude. A imagem do corpo e o totalitarismo. In: A
Invenção Democrática, São Paulo: Brasiliense, 1983.
LEROI-GOURHAN, André. O Gesto e a Palavra: Técnica e
Linguagem. Lisboa: Edições 70, S/d. v.1.
LEVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. São Paulo:
Editora Nacional, 1976.
LIMA, Magali Alonso. Formas arquiteturais esportivas no
Estado Novo (1937–45): suas implicações na prática de corpos e
espíritos. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1979.
d 153 o
Julio Cesar de Tavares

LOMAX, Alan; Irmgard, Bartebuiefand; Paulay Forresine.


Choreometrics: a Method for the Study of Cross-Cultural Pattern in
Film. In: Research Film, n.6, p. 505-18, 1969.
LOMAX, Alan and N. Berkowitz. he Evolutionary Taxonomy
of Culture: a Few Behavioural Factors Accounting for the Regional
Variation and Evolutionary Development of Culture. In: Science,
177, p. 228-39, 1972.
LOMAX, Alan. Audiovisual Tools for the Analysis of Cultural
Style. In: Principals of Visual Anthropology, Paul Hockings,
he Hague, 1975.
LONSDALE, Steven. Animals and the Origens of Dance.
London: Tahmes and Hudson, 1981.
MACHADO, Roberto. Ciência e Saber: a trajetória da
Arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1981.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo:
EDUSP, 1974.
MORAES, Frederico. O corpo é um motor da obra. In: Arte
em Revista – Pós-Moderno, São Paulo, n. 7, 1983.
MARTINS, José de Souza. O Cativeiro da Terra. SãoPaulo:
Editora LECH. 1981.
NASCIMENTO, ABDIAS. O Negro Revoltado. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
NETO, Coelho. O Bazar. Porto: Livraria Chardron. 1928.
NIETZSCHE, Fredric. Humano demasiado humano. São
Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores/Obras
Incompletas)
OITICICA, HÉLIO. O q faço é Música (manuscrito 1979).
Retrospectiva, São Paulo, fev.-mar. 1986. (Catálogo de
exposição).
OITICICA, JOSÉ. A Doutrina Anarquista. São Paulo:
Economica Editorial, 1983.

o 154 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

PEIXOTO, Benedito. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do


Folclore, s/d. (Apostila)
PIERCE, Charles S. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1977.
RAMOS, GUERREIRO. A Redução Sociológica. Rio de
Janeiro: ISEB, 1960.
REGO, Waldeloir. Capoeira Angola: ensaio socioetnográico.
Salvador: Ed. Itapuã, 1968.
RIEFENSTAHL, Leni. Los Nubas. Barcelona: Editorial Blume,
1978 A. RIEFENSTAHL, Leni. Los Nubas de KAU. Barcelona:
Editorial Blume, 1978 B.
RISÉRIO, Antônio. Carnaval Ijexá, notas sobre afoxés e blocos
do novo carnaval afro-baiano. Salvador: Currupio, 1981.
SANTAELLA, Lúcia. O que é Semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1983.
SAUSSURE, Ferdinad. Curso de Lingüística Geral. São Paulo:
Cultrix, 1974.
SCHUTZ, Alfred. Fenomenologia e Relações Sociais. Rio de
Janeiro: Zahar, 1979.
SEBEOK, homas A.; UMIKER-SEBEOK, Jean. Você conhece
meu método: uma justaposição de Charles S. Pierce e Sherlock
Holmes. In: ECO, Umberto; SEBEOK, homas (Orgs.). O
signo de três. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 13-57.
SENGHOR, Léopold. Sobre a negritude. Diógenes, Brasília,
n. 2, p. 73-82, 1982.
SILVEIRA, Miroel. O segredo de São Cosme quem sabe é São
Damião. 1975. Tese (Livre Docência) – Universidade de São
Paulo, Escola de Comunicação e Arte, São Paulo.
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida: Por um conceito de
cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Codecri, 1983.
SROUR, Robert. Modos de Produção: Elementos da
Problemática. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1978.
STEGMÜLLER, Wolfgang. A ilosoia contemporânea. São
Paulo: Editora Pedagogia Universitária, 1977, p. 3-4. v. 2
VEYNE, Paul. Como se escreve a História. Foucault revoluciona

d 155 o
Julio Cesar de Tavares

a História. Brasília: Editora UnB, 1982. (Cadernos UnB).


VEYNE, Paul. O inventário das diferenças: História e
Sociologia. São Paulo: Brasiliense, 1983.
VIEIRA, Antonio Bracinha. Etologia e Ciências Humanas. Vila
da Maia: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1983.

o 156 d
POSFÁCIO

A Capoeira é uma linguagem. Eis uma das contribuições


principais deste livro, defendido originalmente como dissertação
de mestrado na Universidade de Brasília, em 1984. Sendo lingua-
gem, a Capoeira é também leitura e interpretação do mundo. A es-
sência do jogo não é apenas o combate frontal ao oponente, mas a
construção e conquista de novos espaços através da movimentação
do corpo. Novos espaços são novos pontos de vista sobre a reali-
dade. A própria luta parece sugerir o caminho e as escolhas teórico-
metodológicas do livro. Dança de Guerra – arquivo e arma, de
Júlio César de Tavares, é um livro desaiador já a partir do título.
Trata-se de uma relexão sobre a Capoeira a partir de dentro.
Uma tentativa de teorizar sobre as origens mais profundas que em-
basam a prática corporal da Capoeira, uma dança que é também arma
de combate e arquivo gestual de toda experiência negra da diáspora.
Júlio César de Tavares pensa a arte da Capoeira, usando o
instrumental acadêmico disponível (são reconhecidas as contribuições
de Foucault, Delleuze, Duvignaud e Bourdieu, entre muitos outros),
mas informado sempre por um ponto de vista negro. O autor adere
ao tema integralmente, desde o tempo de menino em um subúr-
bio carioca da década de 1960, e nos oferece uma primeira visão da
Capoeira a partir de dentro. A Capoeira não apenas como conjunto
de exercícios corporais, mas como fundamento ilosóico-religioso.
Tema que o autor pretende “aprofundar com ímpeto visceral”.
Pensar a Capoeira é pensar Mãe-África e Mãe-América;
é pensar a diáspora negra e a experiência radical da escravidão.
Para Júlio César de Tavares, a Capoeira surge e se explica como
resposta à castração de fala imposta pela escravidão colonial. Di-
Julio Cesar de Tavares

ante da expropriação total, a resistência se concretiza no corpo,


que, ao invés de se anular, ganha força, elasticidade e beleza.
Uma tentativa de pensar a experiência negra a partir da sabedoria
contida no corpo. Um mergulho em busca da sabedoria ancestral
contida no gesto, na ginga, na dança e na luta afro-brasileira. O
autor nos lembra, em primeiro lugar, que o jogo da Capoeira é
coisa séria. Tanto que um capoeira de fundamento não ousaria
entrar na roda sem antes agachar-se ao pé do berimbau e render
homenagem a Deus e aos orixás. A simples tentativa de recon-
stituição do lado místico e ilosóico do jogo de Angola já vale a
leitura. Mas o autor não esquece que a Capoeira é, fundamental-
mente, um discurso de guerra. Herança guerreira africana, sín-
tese de toda a experiência da diáspora, o jogo da Capoeira é, ao
mesmo tempo, dança de guerra e arquivo gestual da resistência
coletiva.
Conheço poucos livros tão desaiadores. Independente de
se gostar ou não de suas conclusões, trata-se de livro instigante
em sua proposta fundamental de investigar uma possível epis-
teme negra (ou sabedoria tradicional) e, a partir dela, perceber os
fundamentos da arte da capoeira. Capoeira não é apenas golpe,
mas sabedoria. Para Júlio César de Tavares, o saber corporal é uma
estratégia de luta e preservação da identidade negra. O próprio
autor, aliás, é escolado nas artes do jogo. É livro de Capoeira, tem
estilo ora de dança, ora de combate. Pode ser lido e discutido com
grande proveito pelo pessoal do jogo, da academia e, na verdade,
por todo aquele que se interesse pelos fundamentos socioculturais
da Capoeira.

Eduardo Silva
Historiador da Casa de Ruy Barbosa

o 158 d
ÍNDICE ONOMÁSTICO

África/Africana(o): Diáspora, Bakunin, 42, 68


15, 18, 19, 25, 59n7, 62-3, Barthes, Roland 51, 151
78, 80, 84-6, 91, 105, 109, Barrault, Jean-Louis 104, 151
141; Etnias e civilização 15, Bastide, Roger 60, 61-2, 151
73, 77; cultura, danças e Baudrillard, Jean 38, 151
performances 26, 59n7, 81, Beatles, 39
101, 103, 110, 112, 121; Benjamim, Walter, 30, 151
sociedades 60; identidade Berimbau18, 72, 93-5, 99,
e presença 63, 109, 138; 100-1, 110-13, 115, 147
motricidade/movimento65, Birdwhistell, 99, 151
94; corpo 67; tráico e Biopolítica, 8, 15-17, 123,
escravidão 75, 76, 108; 129
cosmovisão 95; epistemologia Blair, Eric Arthur, 36
96; cotidiano 98, 105, 107; Braga, Santaella 38
repressão à cultura 123 Bourcier, Paul 66, 151
Almeida, Renato de 127, 147 Bourdieu, Pierre, 29, 51, 54,
Alvarenga, Oneyda 110, 150 60, 151
Andrade, Oswald de 136 Braga, Santaella 38
Antipositivista, debate, 36 Bricolage dos gestos/
Antropologia 16, 18, 29 gestual26, 90, 102, 109
Antropologia da Dança, 18 Capoeira: Jogo e, 9-11, 13,
Areno, Valdemar 127 16, 17, 18, 29, 72, 90, 92, 96-
Aristocrata, Clube 64 101, 105, 107, 109, 111, 126-
Arquivo-arma, 27, 28 9, 138; Arquivo e arma 127;
Antonin Artaud, 49, 68, 139, parte da rede de performances
150-1; 18; inserção no mundo 18;
Julio Cesar de Tavares

expansão 18; praticantes 18, 126; I Simpósio da Capoeira,


19; companhia de dança e 127; retórica do corpo e, 129;
18; Jazz, Jiu-Jítsu ou Judô, o pensamento e, 135; Coelho
Ballet e a Música Clássica 18; Neto e, 138-40; História
roda e, 19, 95; diaspora, da, do Negro e, 141; memória
19; idioma português e, 19; e corporal e, 141; capoeiragem
mistério, 19; desenvolvimento e, 92, 121, 139; educação e,
cognitivo e, 20; pós-colonial 16, 18, 19, 27, 95, 124, 126,
e, 20; semiose e, 27; saber 135, 139-40
corporal e, 28; liberdade e 71- Capoeiristas: trabalhadores do
3; arma e, 73; transgressão corpo e, 10; 20, 73, 117, 123
e, 80; saida de emergência e, Carneiro, Edson, 127
82; discurso não verbal e, 85, Chazaud, Jacques. 58, 151.
91; cultura de massa e, 90; Chesi, Gert. 58, 152
formação discursiva e, 92, 95; Clark, Lygia, 37, 152
academicização e, 96; síntese Comunicação intercultural,
e, 97; Jogo de Angola e, 98- 28
9, 102, 127; análise da, 100; Contracultura 39, 46
prática lúdica e, 101; corpo Cognitivo(a): colonialismo,
signo e, 105; golpes e discurso 17. 24, 135; habilidade, 20;
da, 107; berimbau e, 111; Lógico, 52, 76, 90-1,135-
orixás e cultos africanos e, 113, 136; política, 15; injustiça,
123; cinética corporal e 113; 20; psicológico 24; enação
jogo da, 111-3, quilombos 30n1; atividade, 30; campo,
e, 114; discurso e, 115; 60; projeção, 92
resistência, rebeldia e, 117- Corpo: deinição, 81; corpo
89, 141; castigos corporais negro 25-7, 59n7, 64, 72-3,
e, 118; Códico Penal e, 119- 75-7, 80-2, 84-6, 91-2, 101-
20; Maltas e, 120-21, 123; 3, 105-6, 108-9, 112, 118-
Sampaio Ferraz e extermínio 9, 122, 124, 141-2; trabalho
da, 121-3; Estado Novo e, encarnado e 27, 108, 122,
123-4; legalização da, 124, 141; cultura Africana e 26;
126; Regional, 126; esporte e arquivo e 26, 91; arquivo não

o 160 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

verbal e, 83; arquivo-arma 134; cultura 60; linguagem


e, 27, 28, 82; e energia 27; 61, 100-1; movimento e
campo magnético de forças movimentação 20, 25, 29, 54,
e, 27;prática politica e, 30; 58, 60-2, 65, 81-3, 90, 98,
indexação corpórea 30;enação 100, 7, 109, 134; estrutura
e, 30; indústria cultural e, 65; chacina 76; comunicação
39; discurso e, 39; política e, 79; identidade e discurso 80,
39, 41; discriminação e, 41; 109; prática 82; dimensão 86;
derrota política e, 42 e 43; texto 98, 109; trabalho 99;
ritmos do, 25-6, 43, 64-5, 80, agilidade 98; expressão 134;
102; estilhaçamento do, 44; postura 134; discriminação
corpo produtivo 25, 26, 27, 50, 141; Corporeidade, 15;
54, 75, 77, 79, 84, 85; corpo- deinição de 17; linguagem e,
comunitário, 73, 75-6, 79, 17; descoberta da, 30; Corpo
83-85; transgressão e 80; social, 42-3; Corpo produtivo,
Capoeira e 109; redescoberta 25; escolar e, 24; habitus e, 24,
do corpo, 18, 27, 35, 38, 40, 43;lúdica, 86; espacialidade
44, 129, 139. 97; oralidade e, 102
Contracultura, 39, 46 Costa, Jean-Claude 58, 153;
Corporal Cinética 113; idioma Cultura(s): abordagens, 11,
corporal 16, 19; memória, 15, 17, 23-4, 26, 54, 58-9, 60,
18, 20, 42, 102, 107, 140, 65, 78, 84, 86, 95, 128, 133,
141 ; estratégia 26, 103, 135-6, 139, 142; Africanas
107-8; deinição 26, 108; 26, 58, 76, 94, 117, 120,
consciência15, 16, 18, 39, 42, 147; industrial/massa, 63, 90;
44, 46, 54, 61, 81-4, 103-4, corporal, 60, 84; campo 89;
108, 113; saber corporal, 10, física, 126; afro-brasileira, 16-
25-6, 28, 71, 82-3, 90n10, 18; negra, 94, 140 59, 86 ; da
107n14; 125, 141; esquema diáspora 78; branca 25, 77;
18, 29, 30, 54, 57, 58, 60, brasileira 140; dependência,
65, 90n10, 98, 107, 140-1; 135; popular, 27, 89;
teatralidade 104; ritmo 44; Decânio, Dr. 127
ação e esforço 54, 92n11, 100, Delírio 17; como metáfora 30

d 161 o
Julio Cesar de Tavares

Del Pichia, Mennoti 138 127, 147


Deleule, Didier 75, 152 Filho, Mello Moraes, 120,
Delleuze, 29, 92n11 148;
Dos Santos, Juana Elbein28, Freire, Roberto e Fausto Brito
79, 152 39, 152
Democracia racial 15, 89, 25 Freitas, Décio, 116, 117, 152
Dominação: e descolonização Frente Negra Brasileira, 124
mental e cultural, 17; e resis- Freud, Sigmund 68
tência 20, 73, 92, 132; escra- Foucault, 29, 39, 92n11, 125,
vidão e, 25; dispositivos de, 157
27; hierarquia da, 40; consci- Gal. Carlos Frederico de Paula,
ência e, 41; linguagem e, 76; 119 – Ministro da Guerra
Durham, Katherine 18 Gil, J. 75, 77, 84, 91, 153
Duvignaud, Jean 77, 152 Ginga, 94, 99, 100, 101, 102
Eco, Umberto, 45, 152, 155 Constituição 92n11, 97-100;
Educação: Educação Física gingado 121;
16, 95, 124-6; Educação da Gira 79, 95; da Capoeira, 14;
Capoeira 18; escolar 19; ca- da ginga 92; mandinga da 113
minhos da 23; educastração, Gramática dos eventos, 15
23; falência da, 23; descons- Greimas, 91, 153
trução radical e, 24; diversida- Guillobel, Joaquim C. 115
de cultural e, 23; hegemonia Gulags, 40
caucasiana e, 23; narcisismo e, Habermas, Jurgen 64, 153
23, 25; educação bancária 24, Huet, Michel 58, 153
140; etnocidio 24; projetoli- habitus, 29, 43
bertário e, 27, 142; cotidia- Hajinicolau, Nicos 38, 153
no e, 135; tradição cultural e, Hall, Edward 94, 153
139; alinhamento de corpos, Head,Henry, 29
24. Hegel, 68
Epskamp, Kees P. 60, 152 Herskovits, M. 18
Exclusão étnico-racial, 15 Hollanda, 40, 153
I Festival de Arte Negra, Dakar, Koster, Henry - 112
18 Identidade: identidade
Faria, Alberto de La Torre de, corpóreo-gestual18, 26,

o 162 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

64, 90n10, 105, 140; Manduca da Praia, líder dos


identidade sociocultural 25, Guaiamuns, 120-1
77, 80; identidade gestual, Martins, José de Souza 74,
18; energia e, 42; coletiva 108, 154
61; na capoeiragem 121, Marx, Karl 36, 42, 68
afrodescendente 62, 109, Maturana, Humberto e
e diáspora 82; identidades Francisco Varela 30
africanas 63, étnico-cultural Martins, J.S. 74, 108
63, 77, 97; sociocultural Mestre Tabosa, 14, 127 e 128
identidade corporal 80; Mauss, Marcel 29, 154
nacional, 128, 136, 138 Memória corporal, 18, 20,
Imagens, 30, 36-8, 43, 54, 51, 102, 107, 140, 141;
66, 85, 123 tradição e 138; não verbal,
Intercultural, 15, 28 18, 27; e política 14; 26;
Januszewski, Aldona 57, 153 cognição e 36n3; coletiva, 42,
Jaulin, Robert. 76-7, 153 61-2, 64, 73; de grupo, 82-
Jongo, 27, 62, 92, 102 3; cotidiano e, 102; motora,
Juca Reis, ilho do Conde de 60, 62; criatividade e , 71;
Matosinhos, 121 etnocídio e, 76; festa ritual e,
Koster, Henry 112 79; linguagem e 114; amnésia
Lefebvre, Lucien 39, 57, 153 social e 117, 135; política e
Lefort, Claude 43, 153 119, 123, 140
LeBoulch, Jean. 58, 153 Mestre Bimba 60, 94, 96,
Leroi-Gourhan, Andre, 38, 126-8
153 Mestre Pastinha 18, 89, 96-7,
Levi-Strauss, 18 102, 112, 126-7
Lima, Luiz Costa, 133 Mestres: conceito de 128;
Lomax, Alan 59, 62, 154 Mestre Camisa, 14; Mestre
Lonsdale, Steven 114, 154 Cobra Mansa, 14; Mestra
Lopes, André Luís Lacê 127 Edna, 14; Mestre Garrincha,
Lyra Filho, Ministro João 127 14; Mestre Gato, 14; Mestre
Maculelê, 27, 102 Gil Velho, 14; Mestre João
Magalhães, Juracy 126 Grande, 14; Mestre João
Malatesta, Errico 68 Pequeno, 14; Mestre Moraes,
d 163 o
Julio Cesar de Tavares

14; Mestre Peixinho, 14; brasileiro, 19; pedagogia


Mestre Tabosa, 14, 128; nacional, 20
Mestre Zulu Pereira, Lamartine Cap. 127
Moreyra, Manoel, 139 Performances: performances
Moura, Jair, 110, 146, 148, afro-brasileiras, 15, 62; rede
14 e teia de 19, 18; africanas 58,
Movimento, combinação 59n7, 60, 62
de 18; arte e estética do, 19, Pierce, Charles Sanders,
20, 63; corpo e 27-9, 82-3, 36n7, 38, 51, 155
90, 94, 101; ecológico 39; Peixoto, Benedito, 72-3, 146,
saber e, 25; não verbal e, 81; 149, 155
espaço e, 97; encarnação e, Poder: Contrapoder 27, 38,
134; produção de presence e, 77, 142; regimes e biopolitica
81; estratégia corporal e, 107, 15; Capoeira e, 19; hegemonia
110; ritmo e 65, 80, 98, 104, e, 41; Estado e, 42n5;
110; ginga e 98, 100; quadris estratégias de, 43; razão e,
e, 59, 105-7; cultura negra e, 45; corpo e, 66, 105; nervos
59; golpes/cines e, 107, 126; do, 77; dispositivo de 84;
minorias e, 40; signo e, 51, nordeste e, 116; latifundio e,
58, 61, 62; gesto e 54, 57; 118; capilaridades do, 125;
linguagem e, 52, 53; religião resitência e, 129
e, 60. Proença, NicolauViegas de
Não verbal 119
Linguagem 27; Memória 27; Ramos, Guerreiro 135, 155
memória 27, discurso 80 Rego, Waldeloir 112, 149,
Narcisismo, 24-5 155
Neto, Coelho 138-140, 154 Revolta da Chibata, 122
Nietzsche, Friedrich 30, 68, Revolta da Vacina, 122
154 Representação 51, 71; pós-
Oiticica, Helio 35, 154 colonial da resistência, 20; do
Orwell, George, 36 corpo 61; espaço de 142
Patrimônio: Imaterial Renascença, Clube 64
brasileiro, 17; imaterial, 17; Riefenstahl, Leni 58, 155

o 164 d
Dança de Guerra - arquivo e arma

Rolling Stones, 39 Srour, 58, 155


Rugendas, Johann Moritz 115 Stegmüller, Wolfgang 37
Ruy Barbosa, Ministro da Toríbio, Alderico 112-3, 147
Justiça 122 Vargas, Getúlio 96, 123-4,
Saber: Liturgia e conceito 126
16, 24, 45, 62, 81, 122, Vieira, 54, 156
136; marginal, 25; projeto Veyne, 65, 155, 156
pedagógico e, 25; corporal, 10,
26, 28, 31, 82-3, 105, 125;
constituição do, 25; prática
discursiva e 29; rebeldianegra e,
31; identidade e, 26; memória
corporal e. 107; lugares de,
137; contrassaberes 142
Sales, Campos, 121
Sampaio Ferraz, Ministro
Justiça, Ministro 120-1;
Santeria no Haiti, 18
Saussure, 51, 155
Schutz, Alfred 65, 151, 155
Sebeok, homas 36n3, 155
Shafer, Kay 110, 149
Senna, Carlos 114, 149
Senghor, Leopold 28, 71, 103,
114
Signo, 15, 27, 42-3, 49. 51-3,
57, 78, 80, 82-4, 102, 104-6,
133; macrossigno, 52-3, 104;
microssigno 52-53, 1104
Sociocultural, 60, 77, 86
Sociologia, 13, 16-7, 29, 135
Sodré, 11, 91, 155
Soul Music, 39

d 165 o
Esta obra foi impressa em novembro de 2012, com capa em papel Cartão 250g
e miolo em Ofset 75g, fonte Adobe Garamond Pro.

Nandyala
Nandyala Livros e Serviços Ltda.
Av. do Contorno, 6.000 – Lj 01 – Savassi
30110-042 – Belo Horizonte – MG
Telefax.: (31)3281-5894 / e-mail: nandyala@nandyalalivros.com.br
www.nandyalalivros.com.br

Você também pode gostar