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Monografia
Niterói
2016
Fabricio Barros Rodrigues
Niterói
2016
AGRADECIMENTOS
Realizar este TCC não foi das tarefas mais fáceis para mim. Encontrar um
tema que realmente me instigasse talvez tenha sido a maior dificuldade. Havia me
afastado muito da academia nos últimos anos, tendo inclusive trancado o curso por
mais de dois períodos. Após varias tentativas frustradas de realizar o TCC, a
professora Eliany Salvatierra – durante uma viagem que fizemos para acompanhar o
Cachoeira.DOC – me sugeriu que eu fizesse o TCC sobre capoeira, observando
essa minha paixão durante a viagem.
Sou eternamente grato a Eliany por esse conselho e por ter me ajudado a
elaborar a pesquisa, fazendo a ponte com o Cinema. Não imaginei a principio que
este seria um trabalho acolhido pela academia e agradeço a professora por ter
comprado essa ideia.
Agradeço também aos meus mestres e camaradas na capoeira. Ao
professor Ricardo, por toda a orientação e ensinamentos passados nos últimos
anos. Ao Mestre Formiga pela sua dedicação e esforço frente ao grupo Ilê de
Angola. Ao meu amigo e camaradinha Guilherme Staine que me apresentou todo
esse universo, sem sua amizade eu talvez não tivesse conhecido a capoeira de
angola.
Não poderia deixar de mencionar os grandes amigos que fiz ao longo da
UFF que sempre foram uma família para mim. Luquinhas, Petrus, Pedro Lessa,
Felix, Caio, Helena, Catu, Gabi, Brenda, Rober, João, Tomazinho, Gibi, Gusta,
Renato, Guilhermera, Bruninho, Thiaguinho, Ricardera, Marina, Isaac, Jorge, Lívia,
Vanessa, Luisa, Floriza, Glaucus, Clara, Nara, Patrícia, Machuca, Bruno Reis, Erico,
Dalila e Fernanda. Amo muito todos vocês. Se eu me esquecer de alguém peço
desculpas.
A minha mãe que sempre me apoiou em todas as minhas loucuras.
Desculpe as dores de cabeça causadas, mãezinha. Te muito amo também.
E em especial a minha companheira, Dora. Muito obrigado pelo amor, carinho,
companheirismo e incentivo que você me dá. Sou muito feliz de ter te conhecido e
ter você ao meu lado. Te amo demais!
RESUMO
INTRODUÇÃO...................................................................................................5
1 CAPOEIRA E SUAS ORIGENS......................................................................11
1.1 GUERRA DO PARAGUAI...............................................................................16
1.2 AS MALTAS CARIOCAS.................................................................................17
1.3 A CAPOEIRA EM OUTROS ESTADOS..........................................................21
1.4 CAPOEIRAGEM BAIANA................................................................................23
1.4.1 BESOURO MANGANGÁ.................................................................................26
1.4.2 COBRINHA VERDE........................................................................................28
1.4.3. FORMAÇÃO DAS ACADEMIAS.....................................................................30
2 CAPOEIRA NO CINEMA................................................................................33
2.1 CAPOEIRA NO CINEMA DE AÇÃO................................................................34
2.1.1 BESOURO.......................................................................................................37
2.2 OS PRIMEIROS DOCUMENTÁRIOS.............................................................39
2.3 CAPOEIRA E O CINEMA NOVO....................................................................41
2.4 DANÇA DE GUERRA......................................................................................45
2.5 CORDÃO DE OURO.......................................................................................47
2.6 DOCUMENTÁRIOS DE PASTINHA E BIMBA................................................49
2.7 OUTRAS APARIÇÕES....................................................................................49
2.8 PROLIFERAÇÃO NO CINEMA DIGITAL........................................................50
3 MESTRE GATO, O GUARDIÃO DA TRADIÇÃO...........................................52
CONCLUSÃO..................................................................................................63
REFERÊNCIAS...............................................................................................65
8
INTRODUÇÃO
Axé!
11
1
Originalmente, um dragão era um tipo de soldado que se caracterizava por se deslocar a cavalo
mas combater a pé. Inicialmente e até meados do século XVIII, as unidades de dragões constituíam,
assim, uma espécie de infantaria montada. Contudo, posteriormente, os dragões transformaram-se,
passando de infantaria montada a tropas de genuína cavalaria. Hoje em dia, a designação "dragões"
é mantida como título honorífico de algumas unidades cerimoniais ou blindadas de diversos exércitos.
13
2
Johann Moritz Rugendas (1802 —1858) foi um pintor alemão nascido em Augsburgo que viajou por
todo o Brasil durante o período de 1822 a 1825, pintando os povos e costumes que de fato ele pode
encontrar. Rugendas era o nome que usava para assinar suas obras.
14
3
No Brasil do século XIX e anterior, chamava-se de crioulos os escravos não-mestiços que tinham
nascido na terra, diferenciando-os daqueles nascidos na África.
4
A figura do fadista estava associada aos portugueses e demais imigrantes europeus que se
envolviam com a boemia e atividades ilegais. Teriam sido os responsáveis por introduzir o uso da
navalha no universo da marginalidade brasileira.
16
5
Eram os filhos da aristocracia do Rio de Janeiro, espécie de playboys do séc. XIX – Juca Reis foi
um famoso representante desse tipo social.
19
Figura 5 - Cada malta apoiava um partido político e recebia proteção dos respectivos
parlamentares. Acima, Nagoas carregam nos ombros o deputado conservador Duque-
Estrada Teixeira, que criticou a polícia em plena assembléia.
se sabe de fato sobre vida. Manoel Henrique Pereira foi apelidado Besouro
Mangangá, porque supostamente, em situação de grande perigo, onde sua destreza
na capoeira não podia fazer frente a um grande número de adversários, Besouro
seria capaz de se transformar no animal homônimo e sair voando.
Conta-se que teria aprendido capoeira com um antigo escravo africano,
chamado Mestre Alípio, no trapiche de baixo. As lendas que envolvem o nome de
Besouro são muitas, celebradas por capoeiristas até hoje através de inúmeras
cantigas. Cercado por aspectos sobrenaturais e fantasiosos, conta-se também que
teria “corpo fechado” e por isso não podia ser ferido por cortes de faca e até mesmo
furos de bala.
Besouro teria sido uma figura rebelde, que confrontava as autoridades e
contestava os lugares sociais de seu tempo. Importante destacar, que segundo
PIRES (2007, p.47), “suas práticas não podem ser associadas ao banditismo, pois
Besouro sempre se caracterizou como um trabalhador por toda sua vida, nunca
sendo preso por roubo, furto ou atividade criminal comum. Suas prisões foram
relacionadas às ações contra a polícia”. Alguns desses casos possuem
documentação histórica através de registros policiais e notícias de jornais da época.
Um desses confrontos teria ocorrido em 1918, quando Besouro teria se dirigido a
delegacia do distrito de São Caetano, em Salvador, para recuperar um berimbau que
teria sido apreendido pela polícia. Tal episódio teria terminado em conflito, quando
as autoridades em encarregadas se recusaram a fazer a devolução e Besouro com a
ajuda de alguns companheiros iniciou um ataque. Os policiais receberam a ajuda de
alguns moradores da região e foram capazes de conter Besouro e seus camaradas
(PIRES, 2007).
“Aos dez dias de setembro de mil novecentos e dezoito, nesta capital
do estado da Bahia (…) Argeu Cláudio de Souza, com vinte e três
anos de idade, solteiro, natural deste estado, praça do primeiro
batalhão da brigada policial (…) foi interrogado pelo doutor delegado
que lhe perguntou o seguinte: como foi feita a agressão de que foi
vítima no posto policial de São Caetano? (…) Ali apareceu um
indivíduo mal trajado, e encostando-se a janela central do referido
posto, durante uns cinco minutos, em atitude de quem observava
alguma coisa, que decorrido este tempo, o dito indivíduo interpelando
o respondente, pediu-lhe um berimbau que se achava exposto
juntamente com armas apreendidas….”(PIRES, 2002. p.27)
Sua morte ainda é motivo de contradições. Alguns dizem que ele teria sido
morto em um confronto com policiais, outros dizem que foi alvo de uma traição.
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Nesse caso conta-se que Besouro teria entrado em conflito com um rapaz de nome
Memeu, que seria filho de um Coronel, chamado Dr. Zeca. Como retaliação, o
coronel teria armado uma emboscada para Besouro. O plano foi enviar o próprio
Besouro para entregar uma carta ao administrador da usina de Maracangalha, de
nome Balthazar. Como Besouro era analfabeto, não sabia que o conteúdo da carta
era sua própria sentença de morte. O coronel pediu ao amigo Balthazar que desse
um fim a Besouro, pois este lhe devia um favor. O administrador ordenou que
Besouro esperasse até o outro dia, quando ele teria uma resposta sobre o assunto.
Na manhã seguinte Besouro retornou a usina onde foi emboscado por 40 homens
que tinham a ordem para lhe matar. Já cientes da fama de que Besouro era imune a
cortes e furos de bala, um deles estava em punho de uma faca de ticum, a única
maneira de ferir um homem com o corpo fechado. E assim teria sido morto, ferido a
traição.Seu atestado de óbito foi breve e continha as seguintes informações:
“Manoel Henrique, mulato escuro, solteiro, 24 anos, natural de Urupy,
residente na Usina Maracangalha, profissão vaqueiro, entrou no dia 8
de julho de 1924 às 10 e meia horas do dia, falecendo às sete horas
da noite, de um ferimento perfuro-inciso do abdômen.”(PIRES, 2002.
p.32)
Hoje Besouro se mantém vivo como o Cordão de Ouro, Exu das Sete
Encruzilhadas6. Está presente nos terreiros de Umbanda é recebido por médiuns.
Quando chega aos terreiros, Cordão de Ouro senta-se no chão na posição de lótus.
Não é de muita conversa e geralmente gira com seus protegidos em silêncio.
ô zum zumzum
Besouro morreu com a faca de ticum
ô zum zumzum
Besouro morreu com a faca de ticum
(D.P)
1.4.2 COBRINHA VERDE
Eu sonhei com uma cobra verde
mas cobra verde é um bom sinal
é um bom sinal, é um bom sinal
cobra verde é um bom sinal
(D.P)
6
Não confundir com orixá Exu. Neste caso trata-se de uma entidade da rua da Umbanda, um tipo de
específico de egum - algum espírito que conheceu a experiência da morte.
29
Alves França, o Cobrinha Verde, dizia ser seu primo carnaval e teria tido o próprio
Besouro como Mestre e começado seu aprendizado aos quatro anos de idade.
Cobrinha Verde também tem sua figura envolta de lendas e histórias
fantasiosas. Nasceu em 1917 e morreu em 1983, na época o mais antigo capoeirista
em atividade. Em seu livro de memórias “Capoeiras e Mandingas”, redigido por seu
discípulo Mestre Mau (Marcelino dos Santos), uma vez que Cobrinha também era
analfabeto, ele conta seus inúmeros causos. Desde seus primeiros passos na
capoeiragem do recôncavo, com outros capoeiras como Canário Pardo, Siri de
Mangue e Espinho Remoso, até suas andanças pelo Brasil, quando teve de fugir de
sua terra natal após um confronto com a polícia – onde supostamente teria
sobrevivido a 18 tiros, graças aos poderes de seu patuá - e ingressou no bando de
Horácio de Mattos pelo sertão baiano. Três anos depois teria abandonado o bando
de jagunços, um pedido que seu pai o teria feito através de um sonho, e andando
pelo norte do Brasil, quando constitui família com a índia Mansa, em Manaus.
Ingressou ainda na revolução de 30, ao lado dos revoltosos sob o comando de
Getúlio Vargas.
“Abandonei minha família e fui ao sul, associando-me aos
revolucionários. Oswaldo Aranha, Juarez Távora e Juracy Magalhães
acompanharam o comandante: Getúlio Vargas. Partimos do Ceará
com 60 homens e seguimos a pé a Alagoinhas. Eu tinha só 22 anos
de idade. Quando chegamos em Alagoinhas nós temos 3,000
homens. Trocamos fogo por uma hora e trinta minutos, fogo pesado.
Dizem que até hoje pode achar caveiras nessa área.” (SANTOS,
1991, pg. 8)
presenças de Onça Preta, Aberrê, Barbosa, Samuel Querido de Deus, Livino Diogo,
Maré, Noronha, o já citado Cobrinha Verde, e também Mestre Bimba, já faziam parte
da capoeiragem de Salvador.
do congresso era criar a União dos Capoeiras Baianos. Tal propósito não foi
alcançado, mas o evento contou com uma apresentação de já célebres capoeiristas
de Salvador, como Samuel Querido de Deus, Maré, Aberrê e Bugalho. Nenhum
nome da Regional esteve presente, o que reflete as tensões e conflitos que existiam
entre as duas correntes na época.
Nesse mesmo ano, foi implementado o Estado Novo de Getúlio Vargas e se
iniciou o processo de descriminalização da capoeira. Bimba recebeu a autorização
para manter o seu já existente Centro de Cultura Física e Capoeira Regional e isso
reflete no prestígio que a Regional tinha com as autoridades. Mais tarde, o próprio
Bimba faria uma apresentação de Capoeira Regional para o então presidente
Getúlio Vargas, uma ocasião na qual Getulio se referiria a capoeira como o único
esporte autêntico do Brasil.
A medida que a Regional de Bimba se consolidava perante o governo e
ganhava outros espaços como universidades, palácios, quartéis e clubes esportivos,
a capoeiragem de rua, até então praticada por trabalhadores e vadios, uma
população de maioria negra e pobre, permanecia estigmatizada. Em 1941, os
capoeiristas Maré, Noronha, Amorzinho, Livino Diogo, Onça Preta, Zeir, Olampio,
Ricardo dos Santos, Vitor HD, Alemão, Pinião, José Chibata, Domingo do Milha,
Beraldo e Aberrê, resgatam o antigo Mestre Pastinha, que havia se distanciado da
capoeira em 1912, para que ele tomasse a frente de um trabalho de academia,
numa tentativa de unir e estruturar a capoeira que de agora em diante eles
batizariam “de angola”.
“em 23 de fevereiro de 1941. Fui a esse locar como prometera a
Aberrê, e com surpresa o Sr.Amorsinho dono daquela capoeira,
apertando-me a mão disse-me: Há muito que o esperava para lhe
entregar esta capoeira para o senhor mestrar. Eu ainda tentei me
esquivar desculpando, porém, toumando a palavra o Snr. Antônio
Maré: Disse-me: não há jeito, não Pastinha, é você mesmo quem vai
mestrar isto aqui. Como os camaradas dero-me o seu apoio, aceito.”
(PASTINHA, 64, pg. 20)
2 CAPOEIRA NO CINEMA
Eu aprendi a capoeira
La na rampa e no cais da Bahia
O gringo filmava e me fotografava
Eu pouco ligava e também não sabia
Que essa foto ia sair no jornal
Na França, na Rússia
Ou ate na Hungria
(Mestre Ezequiel)
(Steven Soderbergh, 2004) o ator Vincent Cassel faz o papel de ladrão furtivo que
para realizar um roubo de uma jóia em um museu, ele desenvolve uma série de
movimentos baseados em golpes de capoeira para se movimentar em meio a uma
malha de alarmes a laser. O ator VincetCassel é um capoeirista e ele próprio teria
desenvolvido sua performance para a cena. Halle Berry, protagonista do filme
Mulher-Gato (CatWoman, 2004) também recebeu treinamento em capoeira para
desenvolver as habilidades de luta de sua personagem. Ela recebeu treinamentos
com o brasileiro Beto Simas, conhecido no mundo da capoeira como Mestre Boneco.
Também temos a presença de um vilão capoeirista no filme “Elektra” (2004), dessa
vez interpretado pelo ator e mestre de capoeira brasileiro Edison Ribeiro. Milla
Jovoviche e Charlize Theron também receberam treinamentos em capoeira para
desempenhar o papel de suas personagens nos filmes "ResidentEvil - Apocalipse"
(Alexander Witt, 2004) e "Aeon Flux" (KarynKusama, 2005), respectivamente.
2.1.1 BESOURO
8De acordo com o filme, o barravento é um momento de turbulência, quando as coisas de terra e mar
se transformam, quando no amor, na vida e no meio social ocorrem súbitas mudanças.
45
modalidade rara nos dias de hoje. Sobre essas cenas, o historiador da capoeira Fred
Abreu comenta:
“Quando eu olhei, a primeira coisa que me veio na cabeça, que
parecia como um parto, um paria o outro, tem uma coisa de atração,
um sai o outro entra, um entra e outro sai. (…) a outra coisa é a
disputa pelo espaço, disputa um centro, ele quer um centro, o João
Grande é um pouco mais periférico, ele sai mas ele sai voltando para
tirar o cara do centro, o João Pequeno ele tem o negócio do braço, ele
vai tirando com o braço. O grau de articulação é tão bem feito, tem a
impressão que ela liga, que tem anos e anos para chegar a esse
negócio...” (ABREU, 2004)
9Pedro Cem é um personagem famoso do folclore português. Nesta tradição é representado como o
homem mais mesquinho que já existiu. No Brasil se popularizou nos folhetos de cordel e também
acabou como tema de muitas ladainhas de capoeira.
48
O rei Pelé também teve seus aprendizados com a capoeira para atuar em dois
filmes. Em A Marcha (1972), Pelé interpreta Chico Bondade, um escravo capoeirista
determinado a liderar uma marcha de protesto de escravos fugidos contra a situação
de seus companheiros. Para se preparar para o papel, ele recebeu instruções de
outro bamba, o Mestre Caiçara, famoso angoleiro da geração de Waldemar,
Canjiquinha e Gato. Em 1985, o rei teve de treinar capoeira mais uma vez, desta vez
com o Mestre Zé de Freitas para interpretar o malandro Pedro Mico, no longa-
metragem de mesmo nome.
Outros filmes que apresentam cenas ou partes de um jogo de capoeira são os
filmes "Orfeu do Carnaval" (Marcel Camus, 1957), "Os Bandeirantes" (Marcel
Camus, 1960); "Briga de Galos" (Lázaro Tôrres, 1965) e "Senhor dos Navegantes"
(Aloísio T. de Carvalho, 1961). Outros filmes que podemos destacar por suas
ambientações que se associam ao contexto da capoeiragem são "O Cortiço"
(Francisco Ramalho Jr, 1977), "Quilombo" (Cacá Diegues, 1984) e "Ópera do
Malandro" (Ruy Guerra, 1985).
O filme Madame Satã (2002) de KarimAinouz, retrata o submundo da
marginalidade carioca do inicio do século XX. A película narra a história do malandro
João Francisco dos Santos, um homem negro, pobre e homossexual assumido.
Criado no bairro da Lapa, em meio a violência, ao samba, a boemia e a
criminalidade, João aprende a vida das ruas – demonstrando habilidade na navalha
e na capoeira.
O filme de Karim não foi o primeiro a contar a história de Madame Satã. Em
1971, Antônio Carlos Fontoura – o mesmo de Cordão de Ouro – dirigiu o longa-
metragem “Rainha Diaba” também inspirado da história de João Francisco dos
Santos. Nesse filme, Milton Gonçalves interpreta o personagem principal.
Um antigo ditado africano diz que quando um sacerdote Griot morre, é como
se uma biblioteca inteira fosse queimada. Na África os Griots são homens de grande
sabedoria, guardiões de muitos conhecimentos, transmitidos através da oralidade
dos mais antigos para os mais novos. Quando esse ciclo é interrompido através da
morte, sem que o mais velho tenha devidamente preparado um sucessor, seu
conhecimento se perde junto com seu corpo. Não deixam escritos, a tradição oral é
a cultura dos griots.
Essa tradição da oralidade, do culto a ancestralidade, deixou suas raízes em
muitas manifestações afro descendentes no Brasil. Os Candomblés assim
sobreviveram, tendo a figura das Mães e Pais de Santo como os seus guardiões. Na
capoeira não foi diferente e toda uma genealogia se criou através das linhagens de
capoeiristas que se perpetuaram através do papel dos mestres.
Dentro da minha experiência com a capoeira angola, essa tradição sempre
esteve muito presente na figura de Mestre Gato Preto de Santo Amaro. A partir
dessa genealogia, costumamos dizer Mestre Gato seria meu bisavô na capoeira.
Não tive a felicidade e a sorte de conhecê-lo, o mestre fez passagem para o Orum
em 2002 aos 72 anos de idade. No entanto, ele sempre esteve vivo nas memórias e
ensinamentos dos Mestres Formiga, Zé Baiano e também do Contramestre Ricardo.
Essa ausência e presença sempre exerceu um grande fascínio em mim, um
estranho sentimento de proximidade e mistério. Diferente de outros mestres de seu
tempo, Mestre Gato não deixou manuscritos e como contam aqueles que o
conheceram, era avesso a entrevistas. Quando estava passando seus ensinamentos
em publico e o evento estava sendo gravado, costumava pedir para interromperem a
gravação em alguns momentos. Tinha uma desconfiança intuitiva e dizia que “a
capoeira tem um segredo, que você não revela a qualquer um”.
No entanto Mestre Gato formou muitos mestres que ainda hoje dão
continuidade ao seu trabalho, como os mestres Meinha, Pedro Feitosa, Hugo Goés
(seu filho), Miltinho e também o Mestre Zé Baiano, do Grupo de Capoeira Angola Rei
Zumbi, que é o mestre de Mestre Formiga, do grupo Ilê de Angola, do qual eu faço
53
pra lhe “ensinar a capoeira”. Ensinava-lhe dentro de uma pequena casa de taipa, em
um cômodo estreito com uma única porta e sem janelas. Conta que seu pai, Eutíquio
Góes, começou a lhe ensinar quando tinha apenas oito anos e essa era
basicamente a única relação deles.
“às vezes que eu via meu pai era bem poucas vezes que ele passava
em casa, ele era novo… boêmio né... era ele e o Tite, o Valeta que
era um cara muito importante, muito bom de bola mesmo, o apelido
era Valeta, o nome dele era Antônio, tinha Marcelino e tio Marcos”.
“Tinha uma cama dura chamada tarimba. Tarimba são quatro pau
enfincado, em cima duas pontas, uma prum lado, outra pronto, chama
forquilha, e aquela forquilha em direção uma da outra, botava dois pau
chamado travessa, e ali botava aqueles pau no meio, atravessado, a
cumprido, de cabeceira a cabeceira, fazia a tarimba. Dentro daqueles
pau pegava capim, aquele capim de mato. O que hoje usa colchão, a
gente pegava aquilo no mato, aquele sequinho, bonitinho, botava um
saco de alinhagem em baixo, e em cima botava aquele capim, depois
daquele capim, a gente deitava, não precisava botar outro saco
porque era muito macio, tipo uma seda. Então a cama era essa, e na
hora de jogar capoeira, era naquele quarto que jogava, então
desmontava essa coisa, mas os pau ficavam em pé. Eu jogava
capoeira daquele jeito com meu pai, era dentro de um quarto, uma
portinha muito estreita e não tinha janela, tinha que entrar por ali e sair
por ali mesmo.”
“Eu não gostava de apanhar. Apanhava mas dizia, 'poxa sera que vou
ficar apanhando todo dia? Um dia eu tenho que parar de apanhar. (…)
um dia vou pegar esse velho'. (…) Quando eu fiquei assim com meus
onze anos pra doze, a gente armou a capoeira. Ele foi lá quando ele
subiu, saiu do chão um pouco, eu muito rápido fui peguei dei uma
cabeçada. Ele foi, bateu as costas na forquilha da cama, da tarimba, e
levantou pra me pegar. Eu subi na parede de taipa, na parede em
cima, onde tinha o telhado, segurei ali e fiquei lá em cima. Ele disse
'venha cá moleque, venha cá moleque!' e eu 'que nada!' pulei pra sala,
e cai na rua. Aí ele com raiva disse 'eu não lhe ensino mais, moleque.'
depois desse dia não me ensinou mais.”
Por esse acontecimento ou não, fato é que nesse meio tempo sua mãe
decidiu se mudar pra São Braz, um arraiá perto de Santo Amaro e com ela foram ele
e seu irmão Carlos, apelidado de Gasosa. Depois da mudança Gato praticamente
perdeu o contato com seu pai. Nesse período em São Braz o mestre iniciou seu
aprendizado na profissão de pescador. “Eu aprendi pescar, fui ser pescador. Isso
com treze anos. Minha mãe me deixou com doze anos. Ficamos dois filhos (…)
ficamos juntos em São Braz, tínhamos uma casinha, tipo choupana né, de taipe,
ficamos ali nessa casa depois que minha mãe morreu.” Gato muito se orgulhava de
seus aprendizados e conhecimentos adquiridos na sua profissão, na época uma
característica marcante dos capoeiristas, praticamente todos tinha um oficio. Nesse
mesmo período o Gato iniciou seu aprendizado com Leó, que havia sido aluno de
João Catarino, seu tio por parte de mãe, que por sua vez havia sido aluno de
Besouro.
aprender, que meu pai me bateu, no vará pra estender a rede. Ali
aprendi a capoeira com Leó. E esse Leó foi meu segundo mestre, que
me ensinou muitas coisas, me deu cabeçada, ralei com rosto no
capim, saiu tudo ralado mesmo. Ele falava grosso pra caramba, dizia
assim grave 'oh Gabriel capoeira é assim, capoeira se você quiser
aprender cê tem que perder um pouquinho de sangue e ter coragem.'
Nessa época eu tinha uma turma, era eu, Messias, Zinho, Genésio,
Lao, Tomazinho, Jaime, Chumbinho (...) então tinha aquele grupo,
sabe, de meninos tudo na idade de quinze, dezesseis anos, que a
gente juntava dia de sábado pra fazer a capoeira, e Leó era o mestre.”
Gato contava que seu pai teria aprendido a capoeira com seu avô que havia
sido escravo. Importante perceber o quanto o manto da escravidão ainda cobria o
recôncavo baiano nessas primeiras décadas do séc. XX, com muitos ex-escravos
ainda vivos e muitos desses envolvidos direta ou indiretamente com a capoeira.
Ainda assim, as fontes sobre essa ancestralidade são misteriosas, indicando uma
certa reserva por partes desses indivíduos – muito por conta do estado de
ilegalidade em que encontrava a capoeira e também a marginalização que havia em
relação a cultura negra.
"Meu pai não me falava não, meu pai era filho de africano, e meu avô
treinava naquilo que ele tava aprendendo. Era um segredo que ele
tinha que saber, não de onde veio. Não tinha aquela coisa, hoje que
quero ser mestre, vou falar pra todo mundo que to ensinando.
Naquele tempo não, ele ensinava pro cara ter a defesa, não pra
mostrar com quem aprendeu. Quem aprendeu, aprendeu dentro da
triba, aprendeu junto, na aldeia, no grupo. Que se cortava muita cana,
a gente trabalhava com um animal chamado condutor, tinha carro pra
carregar cana, carro de boi, trabalhava muito com esses bicho brabo,
com cobra, as vezes tava no trabalho e a cobra passava na sua
frente, tinha que saber meter a mão no facão pra matar aquela cobra
que se não ela pulava fora. Então ele aprendeu toda essa vida, e meu
avô ensinou isso a meu pai. Mas não explicou com quem ele
aprendeu, nós sabemos que ele aprendeu ali dentro. Ali dentro era um
grupo de sabidos, não existia mestre, tinha cara que tinha
conhecimento."
“Cobrinha falava muita coisa. Falava como é que se vestia, tinha que
ser de branco. O crivo do sapato que cê tinha que calçar, como é que
se dava o nó no cadarço. Falava como é que cê entrava na roda. Que
cê tinha que olhar todo mundo, ver, salvar. Aparecer menos pra você
ter a oportunidade de ser chamado pelos mestres sentindo que cê era
um cara educado. (Quando fosse) passar num lugar que tivessem
brigando, você passar e nem olhar, a briga não era sua, não ficar
olhando, participando, dando sugestão. Não mostrar que era
capoeirista. Procurar ver quem tinha alguma coisa diferente dele, que
era muito bom pro aluno aprender, que era mais um capitulo pra vida
do aluno. (…) Cobrinha Verde era um cara que tinha varias atividades
dentro da cultura. E era um cara que sabia de candomblé, que tinha
orixá, que sabia rezar, tinha umas orações muito fortes, se cuidava
bem, não tinha medo de jogar, no lugar que chegasse ele tinha aquele
respeito. (…) Ele fazia aquela roda e você olhava assim e falava 'não
da pra ninguém entrar', não precisava nem falar, porque não dava
mesmo. Mas ele deixava, todo mundo com o corpo polido, rezado
certo, todo mundo na filosofia, pra não perder o que era bom. (…) Ele
ensinava essa filosofia. Aliás todos os mestres da época tinham sua
sabedoria, tinham seu corpo fechado.”
“(…) Na época tinha que aprender todo mundo (a rezar). Todo mundo
tinha que ter sua defesa. Através das orações, das concentrações.
Por isso que a capoeira angola ficou difícil. Um menino tava me
falando 'por isso que capoeira angola é difícil, que é tanta coisa que
tem, o senhor ta mostrando aos poucos, que a gente nunca tinha
ouvido falar. Por isso ninguém queria aprender capoeira angola,
porque é uma faculdade da vida mesmo'. Pois é, exatamente, todo
mundo tinha por obrigação de saber se defender através das orações.
E não tinha como o cara não aprender. Assim que entrava um, o
mestre se confiava ia lá e dava pra ele escrito, ia escrevendo qualquer
coisa assim, ele ia aprendendo.”
Gato faria sua fama como exímio tocador de berimbau, mais tarde lhe sendo
concedido o titulo de “Berimbau de Ouro” em virtude de suas habilidades. No inicio
dos anos 60, Gato já se encontrava em Salvador a mais de uma década e já havia
se tornado figura conhecida na capoeiragem da capital baiana. Já era um notório
tocador de berimbau, conhecedor dos diferentes toques e Pastinha lhe concedeu o
titulo de mestre de bateria de sua academia. Gato ficou responsável pelo
desenvolvimento da musicalidade na academia de Mestre Pastinha, lhe cabendo a
função de ensinar os diferentes instrumentos aos alunos e comandar a bateria
durante as rodas de capoeira. “O mestre de bateria é um cara responsável pelo
conjunto, quando o mestre da academia não quer se responsabilizar por isso. Como
Pastinha mesmo não queria. Ele tinha ouvido, então queria ouvir tudo certo e queria
uma pessoa que tivesse condições de colocar aquilo pra frente dentro daquele
ritual.”
Sobre a formação da bateria naqueles tempos, Gato relata que ao contrário
de hoje em dia, normalmente não se fazia uso do atabaque. Sendo a bateria
formada geralmente por três berimbaus – um grave, um médio e um agudo,
chamados Berra-boi, Gunga e Viola – dois pandeiros, um fazendo a marcação e
outro os repiques para acompanhar o berimbau viola, seguidos de um reco-reco e
um agogô. A questão do atabaque é uma polêmica que perdura até hoje, sentido
motivo de controvérsias em relação ao seu uso ou não na roda de capoeira.
Dentro desse ritual que foi desenvolvido, cada berimbau também fazia uma
função dentro do ritmo que estava sendo tocado. O Berra-boi comandava e a partir
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anos de sua vida, no Rio de Janeiro. Atuou por todos esses anos como um guardião
da cultura, preservando as tradições e a ancestralidade da capoeira angola. Em um
de seus últimos depoimentos, Mestre Gato disse sobre o futuro da capoeira.
“O negócio evoluiu. Evoluir é muito bom, mas é preciso ter uma raiz,
um início para a coisa não andar para um lado contrário, pois esta arte
é rica demais! A capoeira é sua vida, minha e de muitos outros. Não
se tem como controlar isso. Daí é preciso ter um domínio de educação
para que ela não perca essa coisa linda que possui.”
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRAFIA
ABREU, Fred. Entrevista concedida a Luis Victor Castro Junior. Salvador, 2004.
ARAÚJO, Paulo Coêlho de. Capoeira: um nome – uma origem. Juiz de Fora: Notas
Disponível em:http://www.nestorcapoeira.net/hfp.htm
cidade do século XIX. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997.
Lorêto,1964.
OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo: capoeira e passo. Recife: Ed. de UFP, 1971.
REIS, Letícia Vídor de Sousa. O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil.
Rasteira, 1991.
SIMAS, Luiz Antônio. Rodas dos saberes do Cais do Valongo/ Carlo Alexandre
VIEIRA, Luiz Renato. O jogo da capoeira: cultura popular no Brasil. Rio de Janeiro,
Sprint, 1995.
FITAS
FILMOGRAFIA
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2005. 1 DVD (80 min), NTSC, color. Título original: Notre musique.
original: LethalWeapon.
NOS Telhados de Nova York. Direção: Robert Wise.Koch Company, EUA, 1989.
Original:Ocean'sTwelve.
MULHER Gato. Direção: Pitof. Warner Bros. / Village Roadshow Pictures. EUA,
Brasil, 1962.
Produções, Brasil,2005.
TENDA dos Milagres. Direção:Nelson Pereira dos Santos. Regina Filmes, Brasil,
1977.
PEDRO Mico. Direção: Ipojuca Pontes. Ipojuca Pontes Produção, Brasil, 1985.
Brasil,1984.
2011.