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Rodrigo Turin
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
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Rodrigo Turin*
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E como sugeriram recentemente Müller e Iegelski (2018), o golpe de 2016, com seus efeitos
políticos e sociais, também abre um novo tempo na história do Brasil República.
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Alguns dos desafios que essa “catástrofe cósmica” traz à história podem ser
desvelados a partir de sua própria nomeação. antropoceno, capitaloceno,
plantionceno, intrusão de Gaia, chthuluceno, essas são apenas algumas das
denominações que circulam para nomear esse evento/processo. Cada uma
delas carrega posições políticas, pressupostos epistemológicos e implicações
éticas diferentes, cruzando agentes e instituições as mais variadas.
Como lembrava Koselleck (2006:305), a partir de Schiller: dizer que algu-
ma coisa é, já é dizer o que ela é, e não é indiferente o modo como dizemos.
Koselleck referia-se ao papel dos conceitos na experiência histórica, o modo
como a sedimentação de conceitos sempre se relacionou com a mediação en-
tre experiência e linguagem, configurando unidades de ação possíveis, assim
como sua inteligibilidade histórica. O que vemos hoje com essa pluralidade
de nomeações é algo que mereceria a atenção dos historiadores dos concei-
tos do tempo presente. Sem ter tempo ou condições de realizar essa história,
gostaria aqui apenas de indicar o que me parece ser uma de suas caracterís-
ticas principais: a instabilidade que se instaura entre a experiência e forma
de classificação herdada. Não se trata apenas, como em outros casos, de uma
opção exclusiva entre conceitos, como “revolução” ou “golpe”, “descoberta” ou
“invasão”; do mesmo modo, como categoria epocal, aquelas denominações
não necessariamente se excluem ou se opõem (ainda que também o possam),
mas indicam fenômenos sobrepostos, que não se deixam sintetizar em uma
unidade temporal definida cronologicamente. Mais do que apenas a “essen-
cial contestabilidade dos conceitos”, a atual instabilidade entre experiência e
forma de classificação talvez diga respeito a uma mudança profunda no modo
como a experiência da crise climática nos faz conceber e nomear o tempo,
afastando-nos de vez do modelo singular da modernidade e seus “nomes
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Haraway (2016). Importante lembrar aqui que o termo “trouble” tem conotações mais amplas do
que o termo “problema”, apontando para um estado, uma situação de estar envolvido, emaranhado,
afetado (“troubled”) em relação a algo, como em “She seemed troubled about something”. O que
tem implicações para o argumento de Haraway.
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Crutzen e Stoermer (2000); Crutzen (2002); Bonneuil e Fressoz (2013).
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Gráfico 1
A grande aceleração das tendências socioeconômicas (1750-2000)
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aparente ser. Ainda que o termo antropoceno tenha sua entrada controlada
e disciplinada em função de protocolos técnico-científicos, designando uma
época geológica, ele não deixa de ter implicações que ultrapassam e contur-
bam as fronteiras disciplinares e sociais. A definição da metade do século XX
como marcador inicial representa, no final das contas, não apenas uma ordem
geológica, mas também um sentido histórico. Esse início implica, por exemplo,
que não são a sociedade industrial ou o capitalismo os fatores causais da crise
climática, mas apenas uma de suas variações: aquela que se desenvolveu no
pós-guerra. Tal diagnóstico leva a determinados prognósticos possíveis, com
seus efeitos políticos e sociais. Toda questão gira, ao final, entre os marcadores
estratigráficos do presente e suas condições históricas de possibilidade, no
cruzamento dos planos geológico e histórico.
Outras classificações que foram propostas remetem a narrativas e cruza-
mentos distintos. A proposta original de Crutzen e Stroemer de identificar na
invenção da máquina a vapor o início da nova época geológica, por exemplo,
identifica o antropoceno como resultado direto da revolução industrial e
sua dependência de combustíveis fósseis. Em outra chave, a vinculação da
crise climática com a “constituição dos modernos” e sua separação entre
sociedade e natureza responsabiliza menos o capitalismo em si do que toda
uma cosmologia de época, a modernidade, como causa da “intrusão de Gaia”
(Latour, 2020). Já apontar o processo de expansão marítima e de colonização,
no século XVI, implica, por sua vez, o reconhecimento da configuração de um
“sistema-mundo” e sua concepção de “natureza barata” como fatores estrutu-
rais de uma forma de desenvolvimento histórico que resultou na degradação
ambiental do presente (Moore, 2015). Por fim, em proposta ainda mais radical,
estabelecer o “período axial” (entre 800 e 300 a.C.) como a condição original
de possibilidade do modelo de civilização que resultou na atual catástrofe
climática nos levaria a trabalhar com um plano de historicidade muito mais
amplo e profundo, uma “estrutura da história mundial” (Jaspers) envolven-
do dimensões fundantes, ou ontológicas, como imanência e transcendência
(Danowski e Viveiros de Castro, 2020).
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Tabela 1
Datas potenciais para o início do antropoceno
Evento Data Extensão Marcador
geográfica estratigráfico primário
Extinção da 50.000-10.000 Quase global Fóssil da megafauna
megafauna anos
Origem da ~11.000 Sudoeste da Ásia, Fóssil de pólens e
agricultura tornando-se global fitólitos
Agricultura ~8.000 até o Evento euroasiático, Inflexão de CO2 em
extensiva presente impacto global glaciais
Produção de arroz 6.500 até o Evento do sudoeste Inflexão de CH4 em
presente asiático, impacto glaciais
global
Solos ~3000-500 Evento local, Solo escuro com alto
antropogênicos impacto local, mas teor de matéria orgânica
espalhado
Colisão Novo- ~1492-1800 Evento Ponto baixo de CO2 em
Velho Mundos euroasiático- glaciais
americano, impacto
global
Revolução 1760 até o Evento do noroeste Cinzas volantes da
Industrial presente europeu, impacto queima de carvão
local, tornando-se
global
Detonação de 1945 até o Eventos locais, Radionuclídeos (14C)
armas nucleares presente impacto global em anéis de árvores
Produtos químicos ~ 1950 até o Eventos locais, Por exemplo, o pico de
industriais presente impacto global SF6 nos glaciais
persistentes
Fonte: Lewis e Maslin (2015).
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o problema não é o dos saberes articulados, mas da pretensão que redobra esses saberes:
aqueles que sabem se apresentam como pretendendo saber aquilo que sabem, como
sendo capazes de conhecer de um modo independente de sua situação “ecológica”,
independente do que o seu oikos lhes obriga a levar em conta, ou, ao contrário, lhes
permite ignorar. […]
o oikos próprio à consulta coloca em suspenso os hábitos que nos fazem pensar que
sabemos aquilo que sabemos e quem somos, que detemos o sentido daquilo que nos
faz existir. [Stengers, 2018:9, 15]
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Nesse sentido, uma análise como a de Achille Mbembe (2020) é mais eficaz em levar em conta
o efeito desses novos entrelaçamentos dentro da dinâmica capitalista e colonial.
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Qualquer teoria política adequada à crise planetária enfrentada pelos seres humanos
hoje teria que partir da mesma velha premissa de garantir a vida humana, mas agora
baseada em uma nova antropologia filosófica, um novo entendimento da mudança
de lugar dos seres humanos na rede da vida e nas histórias ligadas, mas diferentes,
do globo e do planeta. [Chakrabarty, 2020:65-66]
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Um exemplo dessa possibilidade de uma tecnocracia planetária é o que afirmou recentemente
Alysson Paolinelli, ex-ministro da Agricultura e indicado ao prêmio Nobel, de que é preciso
“colocar a ciência antes de qualquer tipo de produção. Ela definirá o que pode ser mexido nos
diversos biomas, mas sempre com as regras dela”. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/colunas/
vaivem/2021/01/indicado-para-o-nobel-da-paz-diz-que-a-ciencia-deve-coordenar-as-acoes.shtml.
Acesso em: 28 fev. 2021.
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Krenack (2020: versão Kindle, posição 567). Entre essas posições da singularidade planetária e
da pluralidade mundos, formatam-se diferentes perspectivas. Do lado da singularidade, surgem
horizontes de uma federação global e liberal; de um Estado tecnocrata de vigilância; ou, ainda, de
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um “leninismo climático”. Do lado da pluralidade, por sua vez, é possível encontrar desde a propo-
sição de uma “anarquia ontológica”, da relocalização dos “comuns”, até o reacionarismo identitário
e niilista dos neofascismos. São modos diferentes, poderíamos dizer, de viver “o tempo fim”. Sobre
essas configurações políticas, ver: Wainwrigth e Mann (2016); Charbonnier (2020).
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bilizar-se pelas suas formas de agenciamento, por suas narrativas, pelo éthos
que configura sua prática, devendo colocar-se em situação, reconhecendo
seus habitats próprios e aqueles — humanos e não humanos — que são por
ela implicados. Não se trata, portanto, nem de recusar em bloco sua tradi-
ção, nem de defendê-la a qualquer custo. Trata-se, antes, de outro modo de
engajar-se com o mundo, de habitá-lo, ao mesmo tempo com e contra suas
heranças.
Pensar a história sob o signo cosmopolítico da habitabilidade pode ajudar
a enfrentar sua tradição e seus efeitos, refazendo certos hábitos disciplinares.
Se o papel da história, em grande medida, foi o de promover uma sincroni-
zação dos indivíduos em um tempo singular — da nação, da civilização, da
razão etc. —, a exigência cosmopolítica obriga, antes, o reconhecimento e o
enfrentamento da coexistência de tempos distintos. Ao se ambientar, ao se
situar diante de outros implicados, é a própria disciplina que se vê dessin-
cronizada, posta em um tempo que lhe é estranho. Nos últimos anos, com a
democratização da universidade e sua diversificação, boa parte dos professores
universitários já deve ter experimentado essa sensação desconfortável de uma
dessincronização disciplinar diante de faces que carregam e que reivindicam
outras histórias, que se situam em outros tempos. Como lidar com essas si-
tuações? Como resolvê-las? Seguindo aqui a proposição cosmopolítica, o que
importa é menos dar uma resposta apressada, dizendo qual é a “boa saída”,
do que o próprio fato de se colocar em situação. Não há uma transcendência,
uma filosofia da história que venha novamente englobar seu contrário; não
há sequer a promessa de uma paz ecumênica. Há, antes, uma desaceleração
e, com ela, uma hesitação necessária antes que algo ali se crie, que uma forma
possível de coabitar emerja, por mais precária que seja.
O reconhecimento de uma cosmopolítica da história pode, no mesmo
movimento, contribuir no engajamento com outros modos de habitar o
tempo e o espaço, refigurando a própria disciplina história e as humanidades
como um todo, como já tem acontecido em disciplinas como a antropologia.
Penso aqui, por exemplo, nas formas indígenas e quilombolas de temporali-
zação e de agenciamento entre natureza e humano. Nos últimos anos, há um
movimento importante de inclusão dessas histórias nos currículos escolares
e acadêmicos. No entanto, mais do que a simples inclusão de novos objetos,
do que a emergência de novas especialidades, o que entra em jogo aqui é o
reconhecimento pleno e legítimo dessas formas de habitar o mundo. Algo
que se torna ainda mais premente com a experiência da mudança climática.
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Referências
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Haraway (2016:1). “Staying with the trouble requires learning to be truly present, not as a vanishing
pivot between awful or edenic pasts and apocalyptic or salvific futures, but as mortal critters entwined
in myriad unfinished configurations of places, times, matters, meanings.”
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Hartog (2020:344). Para uma reflexão do que pode significar “viver nas ruínas”, e suas múltiplas
histórias, ver Tsing (2019). Como afirma Tsing: “muitas histórias, humanas e outras, reúnem-se
em lugares de socialidade mais que humana. Uma história só não é o suficiente”.
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