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66 José ALVES DE FREITAS NETO

que a publicacäo se desse sob a condicäo de que a divulgagäo


näo trouxesse prejufzos aos fndios, nem Espanha, conforme
observou Lewis Hanke em seu texto Las Casas historiador, na
apresentagäo da Hist6ria (HI: I, XXXVIII). Nesse intervalo, entre
a producäo e a publicagäo, passaram-se séculos até primeira
ediqäo da obra em 1875.
Uma das possfveis causas da näo publicagäo de seu principal CAPfTULO II

trabalho foi o seu sucesso como escritor, através da Brevfssima


relaqäo da destruicäo das fndias. Seu caråter panfletårio e a
måcula causada Espanha, bem como seu estilo trägico,
condenaram a grande obra hist6rica a um siléncio profundo por
um longo tempo. Observa-se que a Brevfssima foi editada 22
vezes no século XVII e outras 6 vezes no século XIX, em espanhol,
quando a Histöria teve sua primeira ediqäo (PÉREZ, 1981).

O Trtficueo eolT0

*thiloteca Alphcnept$
extensa obra de Las Casas estå presente na
memoria hispano-americana e é um elemento
politico fundamental na constituigäo dessa
mesma mem6ria. O bispo de Chiapas conseguiu apresentar-se
como voz dos fndios, através de sua atuagäo politica e, sobretudo,
por sua producäo bibliogråfica. Uma das possibilidades de se
interpretar a fecundaqäo do pensamento e a forte divulgacäo
das obras de Las Casas, ao longo do tempo, e o revigoramento de
suas citacöes, na segunda metade do século XX,19 poderia ser
pelo fato de seus textos apresentarem um caråter essencialmente
20
trågico.

19 0 revigoramento dos estudos sobre Las Casas deve-se, sobretudo, aos estudos
de Lewis Hanke, introdutor e comentarista das principais obras publicadas
no perfodo, além de outros estudiosos e escritores, como Angel Losada e
Marcel Bataillon, que se interessaram pela obra do religioso ou de trechos e
polémicas nela presentes.
20 Optamos por trabalhar com o adjetivo trågico em vez do substantivo tragédia.
Por uma questäo de precisäo, a tragédia é um género originado na Grécia
Antiga e que se manifestou em outros instantes da cultura ocidental. Ao
optar pelo conceito trägico remetemos a elementos da fragédia e ao uso que o
termo possui em nossos dias. "Quando pensamos na 'tragédia' hoje em dia,
parece difficil manter questöes de conteüdo e significado que tendemos associar
JOSÉ ALVES DE FREITAS NETO BARTOLOMÉ DE LAS CASAS 71

A construcäo textual do autor da Hist6ria das fndias é consti- A tragédia s6 pode existir se o her6i trågico näo possuir a

tufda por diversos elementos da narrativa trågica. Originalmente, possibilidade de desculpar-se pelo seu erro (ou pelo seu diferendo

a tragédia surge no da Antigüidade. De Aristote-


teatro grego com as demandas da ordem objetiva), mediante a alegaqäo de
les a historiadores da arte do século XX, como Arnold Hauser, que seu erro näo correspondeu a suas intengöes. Em outras
ela é apresentada com
elementos e intengöes semelhantes äs que palavras: näo serå permitido ao her6i trågico tornar-se a perfeita

estäo presentes na obra de Frei Bartolomé de Las Casas. A apro- incorporagäo de algum valor positivo (ou seja, ele näo aparecerå
ximaqäo entre esses elementos da tragédia grega e das obras como vftima inteiramente inocente), nem ele pode tornar-se um
que säo objeto deste estudo pode ser uma possibilidade de in- salvador (GUMBRECHT, 2001: 11).
terpretaqäo e justificagäo do sucesso editorial do frade, tal como
é parte do encanto e do sucesso das encenaqöes do teatro gre- Se a tragédia requer a impossibilidade de redenqäo de seus
go. No entanto, alerta-se e reconhece-se que näo se trata da personagens, dadas por suas pr6prias limitaqöes, torna-se im-
mesma estrutura narrativa: uma é teatro, a outra narrativa hist6- possfvel aproximar o genero teafral grego do Cristianismo ou,
rica. Uma o genero da tragédia, outra a expressäo do trågico
é ainda, derivar do modelo grego um modelo cristäo para a tra-

e, para historiadores, ambas, nasceram a partir de processos gédia. No entanto, as reflexöes sobre a tragédia näo se esgotam
hist6ricos muito distintos. na aqäo das personagens, mas sobretudo na tensäo por eles vi-
vidas da ameaca da morte e isso constitui-se no elemento ver-

A TRAqÉDlA E O TRACIICO: A QUESTÄO CONCEITUAL dadeiramente trågico. A arte do mundo grego soube representar
medos e desejos diante da morte, criando um género artfstico
E A OBRA DE LAS CASAS
que se perpetua e que denominamos tragédia. Porém, os temores
diante da morte criaram situaqöes trågicas que säo repetidas
A relagäo entre o género "tragédia" e o conceito "trågico" diariamente pelas pessoas e manifestadas através de suas preo-
deve ser explicitado, para que a aproximaqäo com a obra de Las cupagöes e curiosidades.21
Casas näo parega inoportuna. A morte categorias que ultrapassam a
tragédia soube dar
Para especialistas, como Hans Ulrich Gumbrecht, a tragédia
referéncia do senso comum, tornando-a demonstraqäo de supe-
possui especificidades que inviabilizam a aproximaqäo, por rioridade e funcionando como elemento catårtico. Ao realizar
exemplo, com o modelo de narrativa cristäo. A tragédia, com
essa tarefa, se näo o género "tragédia", mas o conceito "trägico",
seus elementos contradit6rios e culpas, precisa realizar purgaqöes ultrapassa a definiqäo académica e mistura-se com as diversas
que o texto cristäo, por sua linearidade, näo permite. construcöes realizadas, inclusive, pelo Cristianismo. Tudo o que

idéia do completamente separadas dos critérios largamente formais


'trågico'
do o genero especffico da 'tragédia' parece estar ligado
tipo literårio 'tragédia': 21 "Quando o assunto säo terremotos, quedas de aviäo e casos do crime organiza-
de um modo peculiar a um determinado ethos, uma visäo 'trågica' do mundo, do — e as vftimas de tais sucessos näo hå quem se sacie de ler, ver e ouvir.
que acha sua expressäo mais apropriada naquele mesmo género. Em outras Decerto näo foi a melosa e melfflua hist6ria de amor que fez do filme Titanic
palavras, n6s esperamos que uma 'tragédia' seja 'trågica'. Isso pode soar o sucesso tremendo que foi. Pois, tanto quanto os espectadores das tragédias
auto-evidente, mas na realidade este ethos 'trågico' é uma construgäo moderna, de S6focles e a turba romana que se deleitava assistindo ås lutas de gladiadores,
cujos lagos com o antigo genero grego 'tragédia' säo muito mais tenues do que é com prazer e gosto que assistimos a alguém se debatendo contra a morte —
suas conexöes com desenvolvimentos filos6ficos e sociais dos ültimos dois e isso inclui ver (ou pelo menos: desejar imaginar) como, no final da hist6ria,

séculos" (MOST, 2001: 21). ele morre" (GUMBRECHT, 2001: 17).


72 JOSÉ ALVES DE FREITAS NETO BARTOLOMÉ DE LAS CASAS 73

ameaqa a pretensa ordem e seguranqa diante da Vida ou do A TRAqÉDlA, O TRAGICO E A HISTORIA


mundo, torna-se trågico. Desse modo, por exemplo, a Vida dos
fndios e a dizimacäo vivida pelas populaqöes indfgenas säo, para As relagöes entre tragédia e hist6ria säo variadas. A pretensäo
Las Casas, trågicas, pois contrariam seu princfpio religioso e a das encenagöes gregas e o sentido trågico despertado faziam
logica da sobrevivéncia e perpetuagäo dos homens.
com que as personagens sobressafssem e fossem protagonistas
Se a tragédia é especffica do genero teatral, o que a torna
de um determinado evento, apontando para o "lugar no mun-
tragica näo o é. Tragédia e trågico estäo imbricados, sendo que do" das personagens,22 tal como na expectativa da maioria das
um gera o outro. pessoas de encontrarem este e como se fossem previamente
definidos.23 Os textos trågicos auxiliaram na assimilagäo dessa
Certamente näo é acidental que o termo "trägico" é libertado de
idéia através da composiqäo de seus enredos e personagens.
sua ligagäo com uma forma literåria e generalizado para se aplicar
Nas tramas representadas hå citaqöes e nomes hist6ricos.
condiqäo humana no exato momento da hist6ria, na virada do
Por sua vez, na compreensäo das transformaqöes hist6ricas
século XIX, quando o género da tragédia deixa de ser um modo de um povo, de uma civilizagäo ou em qualquer outro recorte
literårio dominante; hoje em dia nossos teatros quase näo
temporal ou geogråfico, hå elementos trågicos que justificam ou
produzem novas tragédias, mas nossas estradas as produzem
fundamentam as explicacöes para determinado acontecimento.
todo fim-de-semana. Agora o transito é "trägico", näo o mito.
Isso pode ser observado de forma mais complexa quando o mito
Portanto, enquanto a palavra "trågico" pretende definir o estado
trågico confunde-se com a pr6pria historia ou torna-se uma
do homem no seu caräter permanente e imutåvel, näo é de fato
realidade historica efetiva, conforme o pensamento de Nietzsche
diffcil de entender sua invenqäo como um sintoma caracterfstico
e sua anålise: "é o destino de todo mito ter de entrar pouco a
da modernidade. Pois a Vida s6 pode parecer trågica quando,
pouco na estreiteza de uma pretensa efetividade historica e ser
por um lado, n6s ainda mantemos a expectativa de que o mundo
tratado com pretensöes hist6ricas, por algum tempo mais tardio,
deveria ter sentido, mas, por outro, näo estamos mais certos de
como fato singular" (1983: 11).
que hå um deus que garante o seu sentido. Apenas naquele
momento entre uma teologia positiva e um cientificismo
positivista é que o "trégico" poderia ser inventado e täo 22 "O 'trägico', compreendido desta maneira [na perspectiva coloquial que se
pergunta, por exemplo, onde estå a culpa de um bebé por sua morte, ou
irresistivelmente plausivel (MOST, 2001:35).
mesmo a idéia de destino] näo é em primeira inståncia um conceito estético
para a anålise de um genero especffico, mas antes uma categoria metafisica
ütil
Ao despertar compaixäo e temor, as tragédias Iidam com desenvolvida a fim de descrever a condigäo humana. Ela é desenvolvida,
aspectos emotivos dos que a assistem. Esses sentimentos fazem acima de tudo, para designar uma
importante ligäo sobre o nosso lugar no
mundo ('sabedoria trågica') e assimpode as vezes vir a transmitir aquela
parte da encenaqäo e da percepgäo trägica do mundo. Las Casas, ligäo a um certo tipo de texto ('tragédia'), o qual se diz abraqar e comunicar
por exemplo, fez despertar, através de seus relatos, sentimentos aquela ligäo com suprema efetividade" (MOST, 2001: 24).

parecidos em relaqäo aos fndios. Para aprofundarmos essa


23 O desdobramento dessa interpretagäo, ao prever o "lugar no mundo", é
teleolögica, definindo a finalidade e o sentido dos sofrimentos e castigos
relagäo entre Las Casas e o trågico, trataremos de discutir como enfrentados. Essa visäo tele016gica é possfvel a partir da construqäo de seus
estepode ser encontrado nos textos do bispo. Num primeiro autores. No entanto, é frequente a afirmagäo de pessoas ou naqöes, que teriam
um lugar especffico na ordem social ou politica se näo fosse um acontecimento
momento, no presente capftulo, explorando as relacöes derivadas ou outro, justificando muitas vezes, que determinado evento tenha Sido uma
do genero grego e, mais especificamente, no pr6ximo capftulo, 'tragédia" para a pessoa, a familia ou o Estado, conforme a afirmagäo que se
ao abordar os aspectos trågicos do Cristianismo. pretende.
74 JOSÉ ALVES DE FREITAS NETO BARTOLOMÉ DE LAS CASAS

O fi16sofo utiliza esse argumento para ilustrar a passagem Comparando essa definiqäo com a obra de Las Casas, pode-

do mito religiäo grega e como esta procurava apresentar-se se afirmar que hå caracterfsticas do pensamento lascasiano ligadas
com "bases hist6ricas". Ao buscarmos
da narrativa as origens por Aristoteles. Isso, evidentemente,
as caracterfsticas expostas

trågica, no mundo grego, e a expressäo do trågico no Cristia- näo transforma o texto do frade em uma tragédia, mas realga
nismo, pretendemos fazer o movimento inverso: ver no fato que os aspectos trågicos vistos pelo Estagirita em suas anålises
hist6rico da Conquista, ou em suas criaqöes, a justificativa de estäo presentes, em certa medida, na obra de Las Casas. Partindo

uma representaqäo emblemåtica, que se transfigura em mito da pretensäo do religioso e do modo como ele apresenta sua
ide016gico pela defesa da causa indfgena: o proprio Las Casas. tarefa, ou seja, partindo da defesa dos fndios e a busca de uma

Retornando a questäo da caracterizacäo da tragédia, como evangelizaqäo pacffica, torna-se nobre a aqäo lascasiana.25 Evi-
género, e a obra de Las Casas, expressando o trågico, podem-se tar o horror e o dilaceramento de povos, bem como a visfvel
destacar alguns pontos de aproximaqäo entre elas, como a queda demogråfica da regiäo das fndias por conta das relagöes
definiqäo de tragédia apresentada por Aristoteles; o estilo da com os colonizadores espanh6is, preenche o requisito do elevado
narrativa e seu uso politico; a fungäo do mito na tracédia e as caråter e prop6sito da tarefa do dominicano.

dualidades apresentadas e representadas pelo teatro trågico. Ainda dentro dessa mesma definiqäo, Aristoteles fala em aqäo
'completa de certa extensäo". A primeira coisa, ou pelo menos
A DEFINICÄO DE TRACIÉDIA: RELACÖES chama atenqäo em qualquer pessoa que se
a mais visfvel, que
aproxima de Las Casas é o volume e a extensäo de seus textos.
COM O TEXTO DE LAS CASAS
As Obras Completas, organizadas pela Alianza Editorial, estäo
reunidas em 14 volumes.26 Provavelmente näo hå dentre os cro-
Na Poética, Arist6teles define e se ocupa em pensar a tragédia nistas das indias do século XVI, nenhum que tenha superado a
e sua estrutura. Com seu estilo 16gico, o fi16sofo apresenta as produqäo de Las Casas em volume e quantidade de informaqöes.
partes essenciais, faz comentårios sobre outros géneros do teatro Pela extensäo, o trabalho lascasista é rico em detalhes e com
grego e a define: "linguagem ornamentada". Podem-se citar e recorrer a diversos

trechos de sua obra, onde descrigöes säo pormenorizadas,


E pois a tragédia imitaqäo de uma aqäo de caråter elevado, detalhes valorizados e adjetivados com maestria. Talvez a
completa e de certa extensäo, em linguagem ornamentada e com intengäo do frade fosse a de convencer pelos detalhes, atribuindo
as vårias espécies de ornamentos distribuidas pelas diversas
partes do drama e que, suscitando o "terror e a piedade, tem
por efeito a purificagäo dessas emogöes" (1987:205) 24

25 Tal como na descrigäo aristotélica, hå um caråter nobre nestas narrativas, que


levam a uma percepqäo tele016gica desse tipo de texto. "A versäo de Aristoteles
da anålise tele016gica da tragédia é orientada, em ültima anålise, näo em
diregäo estrutura imanente da pr6pria peqa mas em direqäo ao efeito daquela
24 Aristoteles "desenvolve a nogäo de Katharsis, a evacuaqäo temporåria de estrutura sobre o receptor: o seu enfoque näo é estético mas psic016gico e,
excesso de emogäo inconveniente, como uma forma simples de ao menos neste sentido, moral" (MOST, 2001: 28). O resultado desta anålise sobre a
tentar fornecer uma para a tragédia como uma forma de resposta
justificativa teleologia estå na noqäo de catarse apresentada por Arist6teles como ponto
polémica de Platäo contra ela [Platäo via no aspecto prazeroso da tragédia da tragédia grega.
central
unv perigo]: a tragédia provoca, com certeza, emoqöes perturbadoras, mas 26 Destaca-se queum dos volumes é a biografia do bispo, sendo, portanto, 13
acaba por libertar a platéia delas, assim fornecendo-lhe o prazer de restaurä- volumes densos nos quais incluem as obras principais e parte de suas corres-
la ao seu estado natural" (MOST, 2001: 28). pondéncias e pequenos tratados.
76 JOSÉ ALVES DE FREITAS NETO BARTOLOMÉ DE LAS CASAS

veracidade pelo conjunto apresentado. De qualquer modo, seus bfblica, qual Las Casas soube recorrer com competéncia, para
livros säo a expressäo desse tipo de linguagem. justificar e defender seus pontos de vista.

Para exemplificar, observe-se a descriqäo do primeiro capftulo Na Brevfssima relacäo de destruiGäo das Indias, a primeira
do Livro I da Hist6ria das fndias, que trata da criaqäo do mundo: parte de seus Tratados, Las Casas construiu seu texto criando
uma d6cil imagem dos fndios, para em seguida descrever sua
En el principio, antes que oufra cosa hiciese Dios, sumo y poderoso versäo dos acontecimentos e demonstrar o caråter sangüinårio
Sefior, cri6 de nada el Cielo y la tierra, segün que Ia Escritura da colonizaqäo espanhola. Ele apresentava as personagens,
divina da testimonio, cuya autoridad sobrepuja toda la sotileza y como que num ritual, as
santificava as vftimas, as oferecia e,
altura del ingenio de Ios hombres: el cielo, conviene a saber, el contrapunha violéncia do terrfvel destruidor.
empfreo, cuerpo purfsimo, sutilfsimo, resplandeciente de
1

admirable claridad, el fundamento del mundo, de todas las cosas Todas estas universas e infinitas gentes a toto genero cri6 Dios
visibles contentivo o comprensivo, corte y Palacio Real, morada los mås simples, sin maldades ni dobleces, obedientfsimas y
suavfsima y habitaci6n amenisima, sobre todas deleitable, de sus fidelfsimas a sus senores naturales e a los cristianos a quien sirven;

ciudadanos los espfritus angélicos, a los cuales clara manifiesta su mås humildes, mås pacientes, mås pacfficas e quietas, sin rencillas
gloria, porque alli muy mås relucen los rayos de su divino ni bollicios, no rijosos, no querulosos, sin rancores, sin odios, sin
resplandor, las obras de su omnipotencia, virtud y bondad, la desear venganzas, que hay en el mundo. Son asimismo las gentes
refulgencia gloriosa de su jocundfsima y beatifica hermosura, mås delicadas, flacas y ternas en complisi6n e que menos pueden
pulchérrima y copiosfsimamente manifestando, de la cual David, sufrir trabajos y que mås fåcilmente mueren de cualquiera

en su espfritu y divina contemplaci6n colocado, admirändose enfermedad, que ni hijos de prfncipes e senores entre nosotros,
clamaba: "Cuan amables, Senor, de las virtudes son tus palacios; criados en regalos e delicada Vida, no son mås delicados que ellos

deséalos mi ånima y deseando desfallece consideråndo-los!" , por [...]. Son también gentes paupérrimas y que menos poseen ni
cierto, harto mayor felicidad seria y sera la morada en ellos de un quieren poseer de bienes temporales; e por esto no soberbias, no
dia que la de mil en las posadas, por ricas que fuesen, de los ambiciosas, no cubdiciosas (T, I: 17).

pecadores (HI: 1, c. 1, 23-4).

Com essa descriqäo, de fndios pueris e mais sensfveis do que


A construqäo de uma finica frase e a descrigäo do que é o céu as criangas da corte Espanhola, Las Casas criou a imagem perfeita
para Las Casas däo a dimensäo de sua narrativa e de suas in- para a idéia de destruiqäo que ele apresentarå. Num dos muitos
tengöes. Nesse primeiro momento, Las Casas estå construindo episédios narrados na Brevfssima, e em outros momentos de
o cenårio, o lugar no mundo e a perfeiqäo, para posteriormente sua obra, chama a atenqäo sua descriqäo de um massacre na
anunciar a destruigäo. A descriqäo de outros elementos impor- regiäo de Caonao, em Cuba. Ap6s relatar a violenta chegada
tantes para a narrativa lascasiana, como os fndios e a descrigäo dos espanh6is a esse povoado, onde mais de 500 fndios foram
trågica, também aparecem com esse mesmo estilo detalhista e mortos dentro de uma casa grande, Las Casas tentou apaziguar
ornamentado. e preservar a Vida de outros 40 fndios que näo estavam no local
Outro aspecto apontado por Aristoteles e que consolidarå a naquele instante e, diante do terror e temor que os fndios
tragédia é a presenca de elementos que suscitem "o terror e a sentiam, o entäo frade posicionou-se ao lado dos fndios e fez
piedade". A mistura destes dois elementos aproxima a anålise menqäo e gestos de defendé-los, dizendo que näo ocorreria mais
aristotélica sobre os textos da tragédia e a leitura da narrativa aquilo e que eles estariam sob sua protecäo.
78 ...o JOSÉ ALVES DE FREITAS NETO BARTOLOMÉ DE LAS CASAS 79

Acreditando na protecäo daquele que lhes falava, um jovem A memoria da Conquista estå associada ao nome de Las Casas
fndio levantou-se e saiu da casa onde estavam os mortos. por sua competéncia e habilidade em demonstrar e apropriar-
Quando chegou fora, um espanhol o esfaqueou. se do estilo tragico na apresentagäo de suas idéias. O fato de
suas obras terem Sido conhecidas integralmente ap6s mais de
El indio, triste, toma sus tripas en las manos y sale huyendo de Ia
trés séculosde sua morte näo impediu que ele se tornasse uma
casa; topa com el clérigo y cognosci610, y dfcele allf algunas cosas das principais referéncias e fonte de polémicas dentre os
de la fe, segün que el tiempo y angustia lugar daba, mosträndole cronistas da epopéia espanhola.28
que si querfa ser baptizado irfa al Cielo a vivir com Dios; el triste,

Ilorando y haciendo sentimiento, como si ardiera en unas llamas,


dijo que sf, e com esto le baptiz6, cayendo luego muerto en el
O MITO NA TRACIÉDIA

suelo (HI, 111, cap. XXIX: 537).


Prosseguindo o estudo sobre a fragédia, Aristoteles fala sobre
Diante disso, o sentimento e o estado de terror necessårios a necessidade compreendido aqui como a agäo, o
do mito,29
discurso necessårio para a composiqäo dos atos no teatro grego.
definicäo aristotélica da tragédia estäo presentes. Inclusive, hå
no trecho a busca da simpatia do leitor, despertando compaixäo Segundo o fi16sofo, o mito é o princfpio e a alma da tragédia.
e uma possibilidade que estå ligada ao trågico: a catarse.27 A
A rigor, a observaqäo de Aristoteles, especffica para o teatro,
afirma que o discurs030 näo gera a tragédia. No entanto, ele é a
busca da purificaqäo em relagäo participaqäo espanhola pode,
subståncia que gera o mito.
eventualmente, expiar a possfvel culpa ou a sensagäo de inope-
råncia diante de fatos terrfveis, como os que foram demonstra-
dos. A aqäo apresentada por Las Casas lhe permitiu construir e
apresentar os argumentos da forma que lhe era mais apropriada 28 A palavra epopéia aqui surge de acordo com a idéia de Janice Theodoro
e conveniente sua proposta polftica. Para o embate püblico no apresentada em
Descobrimentos e colonizacäo, segundo a qual "os descobri-

qual se envolveu — a questäo indigena —, Las Casas foi favoreci- mentos e a montagem do sistema colonial se constituem numa grande epo-
péia,na qual os gestos näo foram sempre comedidos, nem a 16gica do capital
do pela posigäo adotada e pela possibilidade de comunicaqäo transparente" (THEODORO, 1989: 7).
através da narrativa trägica. 29 O mito é, na tragédia, "o elemento mais importante, entre todos os que constituem
a imitaqäo com arte poética [ ...l sendo determinad9 como uma totalidade
(cap. V II) ecomo uma unidade (cap. VIII)", segundo os comentårios de
Eudoro de Souza na edigäo da Poética da colesäo Os Pensadores (ARISTOTELES,
27 "O conceito funda-se sobre a analogia com um principio terapéutico — mais 1987: 244). Ao analisar o drama de Ésquilo, dentro da volumosa obra Paidéia,

precisamente: com um principio homeopätico. Confrontadas com aquilo que Jaeger afirma: "A representaqäo do mito na tragédia näo tem sentido meramente
mais se teme — mas com uma diståncia espacial e emocional em relaqäo a tais sensfvel, mas sim de profundidade. Näo se limita dramatizagäo exterior,
agöes (essa diståncia corresponde as doses mfnimas de medicamento dispen- que torna a narragäo uma aqäo participada, mas penetra no espiritual, no que
sados nun-t tratamento homeopåtico) — as emogöes do espectador irromperäo; a pessoa tem de mais profundo. As lendas tradicionais säo vistas através das
mas visto que elas näo possuem nenhum ponto de referencia 'real', nem mais intimas convicqöes da atualidade. Os sucessores de Ésquilo, Euripedes
nenhuma situaqäo 'real' de perigo, sua irrupqäo — algo 'despropositada' — é principalmente, foram mais além, a ponto de converterem a tragédia mftica
sinönimo, para o espectador, de uma libertaqäo em relagäo a elas pr6prias. numa representagäo da Vida cotidiana" (1994: 298).
30 Segundo Jaeger, os discursos foram responsåveis pela atualizaqäo dos mitos,
Um motivo estético diferente — e todos esses motivos podem funcionar
independentemente enquanto näo forem incompatfveis — é a admiraqäo pela produzindo modificagöes nas sagas tradicionais para tornå-las adequadas as
serenidade (gostamos de dizer: est6ica) que os her6is trågicos amiüde mostram suas intenqöes. "O que fica dito sobre as personagens e discursos vale tam-
quando em seu confronto com o irresistfvel destino e a derrota inevitävel" bém, em linhas gerais, para a estrutura da tragédia inteira. Aqui, como ali, a
(GUMBRECHT, 2001: 12). configuraqäo brota da concepqäo da existéncia, que é essencial ao poeta e que
este descobre no seu tema. Talvez isto parega banalidade, mas, de fato, näo o é.
BARTOLOMÉ DE LAS CASAS 81
JOSÉ ALVES DE FREITAS NETO
80

Quando se pretende demonstrar o caråter tragico de Las


apresentaqäo.33 As mesmas coisas surgem na obra de Las Casas.
Casas, busca-se fundamentar uma compreensäo de narrativa que
Seu prop6sito politico fez com que ordenasse e apresentasse os
muito se assemelha e pode ser vista como estrutura narrativa fatos sua maneira, de acordo com sua tarefa polftica. O drama
trågica, embora näo esteja vinculada e ligada ao teatro, onde
o género que introduziu a reconstrugäo dos mitos, instituindo
foi

em questäo. A preocupaqäo em buscar pontos em


surgiu o estilo
um discurso que expressasse a vontade de seu autor e suas
comum entre o estudo aristotélico e a obra lascasiana é necessäria perspectivas diante do mundo (JAEGER, 1994:300). O texto frågico
para justificar e fundamentar a aproximaqäo dos textos do bispo
preocupa-se com a reconstrucäo da ordem.

de Chiapas com o género estudado inicialmente pelo Estagirita,


A motivagäo do dominicano näo era a suspensäo da coloni-
referéncia constante aos que se dedicam ao tema.31 zaqäo espanhola, mas antes uma retificacäo em seus caminhos,

Feita a ressalva, e utilizando-se do principio aristotélico


no qual o princfpio da evangelizacäo fosse superior aos valores

especffico para o teatro, estå-se, no texto de Las Casas, gerando praticados na colönia. A critica foi dirigida aos que abandonaram
o mit032 que fundamenta a tragédia.
O
discurso expressa o pensamento do autor e lhe permite
apresentar o que pretende, unindo orat6ria e politica em sua
33 As relagöes entre a tragédia e a politica säo abordadas por Foucault (1999). O
fi16sofo analisa a tragédia de Édipo questionando a leitura moralizante em
torno desse mito, difundida a partir de Freud. Para ele o complexo de Édipo
näo se resume a uma trama de desejos entre pai, mäe e filho, mas, antes de
tudo, na relagäo entre poder e saber: "Parece-me que hå realmente um complexo
de Édipo na nossa civilizaqäo. Masnäo diz respeito ao nosso inconsciente
ele
e ao nosso desejo, nem ås relaqöes entre desejo e inconsciente. Se existe complexo
Antes da tragédia, nenhuma poesia escolheu o mito simplesmente para expri-
de Édipo, ele se då näo ao nfvel individual, mas coletivo; näo a prop6sito de
mir uma idéia, nem escolheu os mitos de acordo com os seus proprios inten-
desejo e inconsciente, mas de poder e de saber" (1999: 31). O que estä em jogo
tos. Näo era qualquer fragmento de cantos heröicos que podia ser dramatizado
e convertido em tragédia. Aristoteles afirma que, com o desenvolvimento na tragédia é o poder de Édipo (1999: 43). Ao juntar as informaqöes
progressivo da forma trågica, so poucos temas do grande reino da epopéia
fragmentadas durante o texto, Édipo as organiza: "Vemos como o jogo
das metades pöde funcionar e como Édipo é, no fim da peqa, um personagem
atrafram a atenqäo dos poetas; mas quase todos estes os reelaboraram. Os
supérfluo. Isto na medida em que este saber tirånico, este saber de quem quer
mitos de Édipo, da casa real de. Tebas, ou do destino dos Atridas — Aristoteles
ver com seus proprios olhos sem escutar nem os deuses nem os homens,
menciona alguns outros ainda — pela sua pr6pria natureza continham impli-
permite o ajustamento exato do que haviam dito os deuses e do que sabia o
cito o germe de futuras eram tragédias em potencial. A epopéia
povo. Édipo, sem querer, consegue estabelecer a uniäo efitre a profecia de deus
contava as sagas por elas mesmas. [ ...l A Ifrica, mesmo quando escolhe um
e a memoria dos homens. O saber edipiano, o excesso de poder, o excesso de
tema mitico, acentua sempre o seu aspecto puramente lirico. É o drama que
saber foram tais que ele se tornou inütil; o circulo se fechou sobre ele, ou
pela primeira vez faz da idéia do destino humano e respectivo curso o princf-
pio importante da sua construqäo inteira, com todas as suas peripécias e melhor, os dois fragmentos da téssera se ajustaram e Édipo, em seu poder
golitårio, se tornou inütil. Nos dois fragmentos ajustados a imagem de Édipo
catåstrofes" (1994: 299-300).
se tornou monstruosa. Édipo podia demais por seu poder tirånico, sabia
31 Isto näo significa, evidentemente, que Las Casas procurou moldar-se aos
demais em seu saber solitårio. Nesse excesso, ele era ainda o esposo de sua
canones apresentados por Aristoteles, até mesmo porque sua referencia mais
mäe e irmäo de seus filhos. Édipo é o homem do excesso, homem que tem
constante serå a Bfblia (pr6ximo capftulo), mas, antes, queremos afirmar que
os elementos constitutivos de uma narrativa trågica, quer em sua leitura
tudo demais, em seu poder, em seu saber, em sua familia, em sua sexualidade.
clåssica, quer numa leitura mais abrangente, residem na obra de Las Casas. Édipo, homem duplo, que sobrava em relacäo transparéncia simb61ica do

32 por mito näo se estå utilizando a nogäo mais usual relativa mitologia, ou
que sabiam os pastores e haviam dito os deuses" (1999: 48). Segundo Foucault,
vulgarmente associada mentira, mas ao modo como Aristoteles utiliza na o detentor do poder é detentor do saber: "O rei e os que o cercavam, pelo fato de
poética,ou seja, é o cerne da historia a ser representada. Ao nos referirmos a deterem o poder, deånham um saber que näo podia e näo devia ser comunicado
aos outros grupos sociais. Saber e poder eram exatamente correspondentes,
Las Casas utilizamos na mesma acepgäo: sua construgäo do fndio, seu
discurso sobre o indio é o nücleo de sua obra. Da visäo de doqura e mansidäo correlativos, superpostos. Näo podia haver saber sem poder. E näo podia

destruigäo denunciada, o fndio é o centro, é o leitmotiv lascasiano.


haver poder politico sem a detenqäo de um certo saber especial" (1999: 49).
BARTOLOMÉ DE LAS CASAS 83
82 JOSÉ ALVES DE FREITAS NETO

os valores morais que ele defendia e incorporaram a cobiqa, os interesses dos fndios, que näo desejavam ser subjugados e

a crueldade, a violéncia. Las Casas denunciava a exploraqäo e a explorados na proporqäo que estavam sendo, pagando inclusive
dizimaqäo indfgena, chegando a atingir a Coroa, através da leyenda com suas vidas; e os interesses da Coroa, que via enriquecer e
negra, mas näo tinha a pretensäo de obter, nem de requerer a aumentar o seu patrimönio com as exploraqöes realizadas nas

renüncia ao poderio sobre as indias. Inclusive, na citaqäo da indias. Note-se que essa preocupagäo de Bataillon, ao apontar
pagina inicial da Brevfssima, com fndios d6ceis e mansos, o frade uma suposta contradigäo na acäo de Las Casas ao defender os
dominicano falava, explicitamente, do amor dos mesmos aos seus fndios e a pröpria Coroa, expressauma visäo que é de seu tempo,
senhores naturais, os reis de Espanha, e tarefa destes, apregoar näo de Las Casas, pois fndios e Coroa servem ao plano divino e
o Cristianismo. estäo inseridos dentro de um ünico Plano.
Bartolomé de Las Casas propunha a revisäo dos métodos, a O prop6sito politico de Las Casas e as constantes interpreta-
reforma das Indias. Sua atuagäo politica e as leis geradas ap6s qöes sobre seupensamento e suas obras demonstram a eficåcia
sua interferéncia direta ou através dos dominicanos (as Leis de politicade seu discurso e como ele foi absorvido por aliados e
adversårios. Do modo como o padre escreveu e construiu seu
1512 e as Leis Novas de 1541) representaram essa postura, de
reconstruir a ordem.34 Sobre essa questäo, Marcel Bataillon (1976: texto ele näo propos reflexöes, busca de sentido ou qualquer
10-3) diz que o que Las Casas pretendeu foi resolver a "quadratura outra coisa sobre a América. A forga de seu texto reside em
do cfrculo", conciliando interesses inconciliåveis, como os dos ditar os modos e definir os acontecimentos, emitindo sentenqas

colonos que se apossaram de fndios e utilizaram de sua mäo- e reforgando o que era justo ou näo de acordo com sua visäo.

de-obra para a exploragäo de metais preciosos e para a lavoura;


Mesmo durante os debates diante da Junta de Valladolid, o
estilo polémico e a producäo intensa e råpida serviam para
reforqar suas posiqöes e seu caråter catequético, de quem sabe e
vai ensinar algo, tal como nos textos da tragédia grega. Seu

34 Esta caracterfstica de reconstruir aordem na tragédia também é perceptivel


prop6sito näo foi o de problematizar sobre a questäo indfgena,
no teatromoderno, como por exemplo em Shakespeare. Essa é uma temåtica mas sim o de superar seus opositores e posicionar-se como o
em diversas pesas que tratam de pregar a restauragäo da unidade polftica, da detentor de uma visäo superior e implantar um modelo de
ordem e da harmonia social, como é o caso de pegas como Hamlet, Macbeth
ou Ricardo Ill. A paixäo humena desestrutura a ordem politica e deve ser colonizagäo que restaurasse os principios que julgava perdidos.
restaurada em geral ao preco de muitas vidas. No caso de Hamlet, ap6s o Dessa forma, seu discurso sobressaiu pela elåboracäo e pela
desenlace do duelo entre o principe e Laertes, que desmascara o plano do rei
convicqäo que o moveu em defesa da causa indfgena, tornando-
Clåudio, a aqäo termina com Fortimbrås invadindo o palåcio e restaurando o
poder: "and call the noblest to the audience. For me, with sorrow, I embrace o um marco na memoria americana sobre a questäo.
my fortune; I have some rights of memory in this kingdom, Wich now to claim Os autores trågicos gregos, segundo Hauser, expunham o
my vantage doth invite me" (SHAKESPEARE, s.d.: 112). Em traduqäo livre:
'convoquemos a nobreza para a audiéncia. Quanto a mim, com dor, abraqo
drama politico de seu tempo e apresentavam elementos favoråveis
minha fortuna; tenho alguns direitos sobre este reino que o momento propfcio prosperidade do Estado åtico, apresentando-se entäo como
me incita a reivindicar". Mesmo as comédias como A megera domada (The
taming of the shrew) terminam com o restabelecimento da ordem, no caso da
o guardiäo de uma verdade superior e um educador que conduz
ordem patriarcal, com o discurso antifeminista de Catarina. Voltando ao
Estagirita, purgada a trama com a catarse derivada dos desequilfbrios, volta- o seu povo no sentido de um plano mais elevado. De modo que,
se ao estado "natural" das coisas, qual seja, a ordem conservadora. No caso por meio da representaqäo de tragédias nos festivais que o Estado
do poeta inglés, a mem6ria do desregramento da desordem (a Guerra das
organiza, e em vista da circunståncia de haver a tragédia voltado
Duas Rosas) e o elogio na ordem imposta pela familia Tudor constituem o
pano de fundo hist6rico que é traduzido em vårias pegas. a ser considerada como interpretaqäo autorizada dos mitos
JOSÉ ALVES DE FREITAS NETO BARTOLOMÉ DE LAS CASAS 85

nacionais, o poeta volta, mais uma vez, a assumir uma situagäo grego, vé-se, como era de se esperar, que nem todos os ele-

quase equivalente do oråculo nos tempos pré-hist6ricos mentos säo compatfveis. A comparaqäo entre as narrativas näo
(HAUSER, 1972: 128). significa reproduzir a totalidade de elementos de um pensa-
mento complexo, como o grego, com outro que se situa em ou-
Aperspectiva lascasiana aproxima-se da descriqäo do tro recorte cron016gico e espacial, como o de Las Casas e o Novo
O que Las Casas, membro da Igreja, enviado
historiador citado. Mundo. A aproximagäo busca apenas perceber como determi-
inicialmente em tarefa colonizadora da Coroa, fez foi mostrar- nadas questöes se assemelham. A existéncia de elementos con-
se com a clareza de um ser especial que antecipadamente sabe flitantes entre a perspectiva do universo da tragédia grega
os rumos a serem tomados na empreitada colonial, e age com analisada por Arist6teles e a narrativa do religioso dominicano,
absoluta convicqäo e certeza a partir de suas propostas. Embora no entanto, näo inviabilizam o prop6sito de buscar a fundamen-
näo tivesse a tarefa de ser a interpretaqäo oficial,35 como era o taqäo necessåria para a leitura tragica de Las Casas.
caso dos gregos, a narrativa do bispo de Chiapas permitiu o A tragédia grega trata de questöes como a dualidade e as
surgimento de mitos e funcionou como referéncia nos ataques contraposigöes do mundo grego. Essa dualidade surge através
colonizaqäo espanhola. O sentido da narrativa trågica se inverte, do embate entre, por exemplo, a questäo do destino e a vontade
mas mantém a matiz polftica: do oficialismo grego passa idéia individual, aspectos religiosos e a Vida polftica, confrontos entre
de oposigäo e contestacäo em Las Casas. her6is e deuses, dentre outros.37 0 principio da contradiqäo é
A tragédia grega serviu para constituir e manter o estado um dos elementos da tragédia grega.
Las Casas näo destruiu o poder politico, nem pretendeu,
politico. Estas questöes, pr6prias do mundo grego, näo poderiam
como se viu anteriormente, mas atuou politicamente e ganhou aparecer da mesma forma na obra de Las Casas.38 Neste caso,
visibilidade ao tornar-se o "protetor dos fndios", e como tal interessa menos a temåtica e mais a estrutura. Permeado por
passou a ser a grande voz a denunciar e a propor aqöes polfticas um texto religioso, a crönica sobre as Indias composta pelo do-
diante da Coroa. É o "oråculo" dos defensores indfgenas do minicano mantém uma estrutura dual que contrapöe a questäo
Novo Mundo.36 indfgena e os interesses da colonizagäo espanhola. Na caracte-
rizaqäo e descriqäo dos acontecimentos pode-se perceber o
quanto e como Las Casas criou uma realidade em sua percepqäo

DUALIDADE E REPRESENTACÄO DO UNIVERSO TRÄqco

Quando o texto lascasiano como uma


se pretende apresentar 37 "A representaqäo clara e vivida do sofrimento nos éxtases do coro, expressos
por meio do canto e da danqa, e que pela introduqäo de vårios locutores se
narrativa tragica e busca-se aproximå-lo da origem do teatro convertia na representaqäo integral de um destino humano, encarnava do
modo mais vivo o problema religioso hå muito tempo candente, do mistério
da dor enviada pelos deuses Vida dos homens. A participagäo sentimental
no desencadeamento do destino, que jå S610n comparava a uma tormenta,
35 Mas pretendia ser a mais verdadeira ao desqualificar outros cronistas, como exigia a mais alta forga espiritual para lhe resistir e despertar, contra o medo
Fernandez de Oviedo, fonte de Sepülveda, e ao afirmar ser uma testemunha e a compaixäo, seus efeito psic016gicos imediatos, a fé no sentido ültimo da
presente nos acontecimentos das indias, o que lhe conferia, em sua suposigäo, existencia" (JAEGER, 1994: 297).
maior objetividade e fidelidade. 38 O frådio lascasiano näo poderia irromper-se contra a fé cristä, por mais que a
36 Observe-se que, ainda hoje, Las Casas é fonte de teorias e movimentos que cristandade representasse, de acordo com os relatos do proprio frade a ameaqa
atuam na defesa dos direitos indigenas, tornando-se um canone da questäo. aos fndios. O confronto destruiria a unidade e a validade do discurso cristäo.
BARTOLOMÉ DE LAS CASAS 87
86 JOSÉ ALVES DE FREITAS NETO

truidores e cruéis. Submetiam os fndios e os castigavam, explo-


imagética39 das fndias. As personagens apareciam caracteri-
rando e impondo a fome e a morte entre os nativos. Os enco-
zadas e distribufdas através de atitudes de docilidade e atos de
menderos eram fonte e causa da "pestiléncia mortal" que atingiu
violéncia e hostilidade desnecessårias. A ordem dual simplifi-
a regiäo colonizada e causou a grande queda demogråfica do
cava a complexidade das questöes das indias. Ao dividir as per-
perfodo, vivenciada por Las Casas.
sonagens entre d6ceis e cruéis, entre fndios e encomenderos,
Na tragédia grega, também verifica-se, como elemento
em suma, entre a personificacäo de bem e mal, o religioso forjou
fundamental, a questäo do desequilfbrio (hybris) e do erro
uma identidade com os ideais do Cristianismo, afastando uma
(hamartia). As aqöes säo desenvolvidas a partir desses pontos e
visäo mais profunda e complexa em torno dos proprios fndios e
da necessidade de recompor a ordem, desafiando o destino e
da colonizagäo. mostrando-se virtuoso, estabelecendo a tensäo do teatro trågico.
Na descrigäo de Las Casas os fndios eram cordatos, amåveis
e d6ceis. Apresentados com um virtuosismo
imaginårio que
Em Las Casas, o que desequilibrava era o fenömeno explorat6rio.
representou sua pr6pria anulaqäo polftica, como bem observa o
A forga usada pelos espanh6is era desproporcional acäo dos
fndios. Näo se justificava, segundo o bispo, a crueldade e o abuso
professor Héctor Bruit (1995: 141-51), eles possufam qualidades
de forga por parte dos colonizadores. Desta forma, os fndios —
superiores, que väo além dos seres comuns. Nos fndios de Las
que näo tinham representagäo polftica, nem desejo ou capacidade
Casas, via-se a nocäo de um
selvagem d6cil e bom: habitando
para té-la, a partir da nulidade a que Las Casas os reduziu, como
uma regiäo rica e em condigöes onde a maldade näo se manifestou,
se viu anteriormente — pareciam vftimas inocentes do destino e
as personagens — protegidas de Las Casas — foram apresentadas
do fatalismo apresentado pela realidade historica que era a
num cenårio idflico, pr6ximo ao do homem antes do pecado
conquista espanhola.
original, segundo a tradigäo cristä.
Diante dessas condiqöes, o papel de Las Casas parecia ser o
Por sua vez, os colonizadores eram desprovidos de qualquer
do demonstrara ser portador de virtudes e
her6i. Ele pr6prio
sentimento humano, dados ao exercfcio da ferocidade, des-
saberes que o fariam desafiar o modelo colonial e pretender
recompor e reestruturar a historia e a colonizaqäo, preservando
a Vida dos fndios, restabelecendo o equilfbrio perdido. Os fndios,
dessa forma, näo enfrentavam a vaga idéia de destino,40 pois
39 A obra de Leandro Karnal aborda a questäo das imagens, através da repre- näo possufam, como os her6is da tragédia, å forga suficiente
sentaqäo, especificamente do teatro na conquista religiosa da América, em
particular México e Brasil no século XVI. A encenaqäo de autos, procissöes e para se rebelarem e transgredirem a ordem social que se impös.
outras estratégias que sobressafram em relagäo aos ensinamentos cristäos O her6i tende a passar de um comportamento meramente
eram a evidéncia de uma aceitaqäo religiosa sustentada nas encenagöes e näo
pessoal e adquirir uma conotagäo politica, social. Sua missäo
na complexidade doutrinåria da religiäo cristä. "Diante da impossibilidade
(ou falta de vontade) de uma catequese mistag6gica, que implicasse efetiva näo é por vaidade ou por qualquer questäo particular, mas antes
mudanga de Vida sob a égide dos valores evangélicos, o clero missionårio
optou pela catequese salvifica e pela agäo soteri016gica imediata: batizar em
massa, fazer decorar as verdades fundamentais, manter os indios em grupos
organizados, faze-los andar em procissäo e ir missa, punir os que tivessem
realizado faltas plasticamente graves, como a idolatria, perseguir as ditas 40 A idéia de destino, nesse caso, estå associada, por comparaqäo, tragédia
'sobrevivéncias' dos cultos antigos e celebrar, com o fausto possfvel, as festas grega e å temåtica sugerida. Näo se pretende, com tal afirmativa, supor um
de guarda. Quebrar eståtuas pagäs foi mais fåcil do que convencer os fndios caråter fatalista na hist6ria, nem no comportamento indigena. A idéia é apenas
da impossibilidade de muitas mulheres. Colocå-los em procissäo foi mais reiterar aspectos da tragédia e a auséncia, na obra de Las Casas, de um perfil
råpido do que explicar a curiosa concepgäo de um so Deus em trés pessoas politico para os indios.
distintas" (KARNAL, 1998: 230).
Qhtloteca da
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atrelada aos objetivos e beneffcios que atinjam um grande grupo cristäos, Las Casas incluso, com suas dores e redengöes, revelam
e conceda as benesses necessårias ao mesmo. E assim que Las um outro modelo narrativo, diverso nos temas e valores, mas
Casas posicionou-se e apareceu em suas obras e nas perspectivas semelhante pretensäo de redimir dos fracassos e dores que
de muitos intérpretes e bi6grafos. Essa atitude e esse seu estilo ameaqam, como a pr6pria morte. Esse tema, aliäs, foi o mote
contribufram para sua aqäo e para a leitura politica feita a partir para a veemente pregacäo do dominicano, ao colocar os fndios
de sua obra. como vftimas de um processo infquo. A partir daf projetou e fez
o seu discurso, dentro de um modelo especffico, o modelo
LAS CASAS E O TRAGICO bfblico.

A manifestagäo do trågico na obra de Las Casas se fez, de


O discurso politico de Las Casas, como defensor dos fndios, acordo com seus escritos, através do nümero de mortos, dos
fixou-se através de uma narrativa contundente e trågica. O massacres, das guerras injustas que se travaram contra os fndios.
trägico, como vimos, näo é uma especificidade da narrativa grega, Se o género grego, a tragédia, guarda suas especificidades, as
mas a partir dela manifestou-se em
diferentes perfodos causas do género, ou seja o trägico, possui uma amplitude que
hist6ricos, inclusive na obra do religioso. Os temas enfrentados nos permite dizer que na obra de Las Casas esses elementos
pelo texto trågico remetem a uma grandeza que näo é para as soam evidentes. Para narrar os acontecimentos trågicos ocorridos
pessoas comuns: "tragikon descreve [ ...l algo ou alguém que na América Las Casas utilizou-se da Bfblia, especialmente do
excede, ou especialmente quer exceder, as normas comuns modelo da Paixäo de Cristo. Sua habilidade textual o fez atualizar
aplicadas a todos os outros" (MOST, 2001: 23). essa narrativa para o século X VI.

Essas questöes, que possuem um caråter tele016gico,


manifestaram-se na tragédia enquanto género, manifestam-se
nas preocupaqöes de nossos dias41 no uso constante do conceito
trågico, e também na ordem religiosa cristä. As aspiragöes de

41 0 professor Francisco Murari, ao analisar o fim do her6i(co), ap6s descrever a


figura de fcaro, cita questöes que atormentam o homem contemporåneo,
especialmente sobre a questäo do trabalho, e citando Hannah Arendt diz: "'A
era moderna trouxe consigo a glorificaqäo do trabalho, e resultou na
transformagäo efetiva de toda a sociedade em uma sociedade operåria. A
sociedade que estå para ser libertada dos grilhöes do trabalho é uma sociedade
de trabalhadores... O que se nos depara, portanto, é a possibilidade de uma
sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a ünica atividade que
lhes resta. Certamente ser pior'. Quer me parecer que seja esse
nada poderia
justo o ponto de umadas angustiantes experiéncias que n6s vivenciamos,
nesta passagem de milénio, quando, jå superada a tragédia do her6ico, talvez
nos deparamos com a tragédia do trabalho, que agora descai seu valor de
mais valia para desvalia. Para n6s, trabalhadores, bem ressoa entäo no espfrito
a consoante interrogaqäo que o nosso poeta, Carlos Drummond da Andrade,
versificou: E agora José?" (MURARI, 2001: 113).

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