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O Trtficueo eolT0
*thiloteca Alphcnept$
extensa obra de Las Casas estå presente na
memoria hispano-americana e é um elemento
politico fundamental na constituigäo dessa
mesma mem6ria. O bispo de Chiapas conseguiu apresentar-se
como voz dos fndios, através de sua atuagäo politica e, sobretudo,
por sua producäo bibliogråfica. Uma das possibilidades de se
interpretar a fecundaqäo do pensamento e a forte divulgacäo
das obras de Las Casas, ao longo do tempo, e o revigoramento de
suas citacöes, na segunda metade do século XX,19 poderia ser
pelo fato de seus textos apresentarem um caråter essencialmente
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trågico.
19 0 revigoramento dos estudos sobre Las Casas deve-se, sobretudo, aos estudos
de Lewis Hanke, introdutor e comentarista das principais obras publicadas
no perfodo, além de outros estudiosos e escritores, como Angel Losada e
Marcel Bataillon, que se interessaram pela obra do religioso ou de trechos e
polémicas nela presentes.
20 Optamos por trabalhar com o adjetivo trågico em vez do substantivo tragédia.
Por uma questäo de precisäo, a tragédia é um género originado na Grécia
Antiga e que se manifestou em outros instantes da cultura ocidental. Ao
optar pelo conceito trägico remetemos a elementos da fragédia e ao uso que o
termo possui em nossos dias. "Quando pensamos na 'tragédia' hoje em dia,
parece difficil manter questöes de conteüdo e significado que tendemos associar
JOSÉ ALVES DE FREITAS NETO BARTOLOMÉ DE LAS CASAS 71
A construcäo textual do autor da Hist6ria das fndias é consti- A tragédia s6 pode existir se o her6i trågico näo possuir a
tufda por diversos elementos da narrativa trågica. Originalmente, possibilidade de desculpar-se pelo seu erro (ou pelo seu diferendo
estäo presentes na obra de Frei Bartolomé de Las Casas. A apro- incorporagäo de algum valor positivo (ou seja, ele näo aparecerå
ximaqäo entre esses elementos da tragédia grega e das obras como vftima inteiramente inocente), nem ele pode tornar-se um
que säo objeto deste estudo pode ser uma possibilidade de in- salvador (GUMBRECHT, 2001: 11).
terpretaqäo e justificagäo do sucesso editorial do frade, tal como
é parte do encanto e do sucesso das encenaqöes do teatro gre- Se a tragédia requer a impossibilidade de redenqäo de seus
go. No entanto, alerta-se e reconhece-se que näo se trata da personagens, dadas por suas pr6prias limitaqöes, torna-se im-
mesma estrutura narrativa: uma é teatro, a outra narrativa hist6- possfvel aproximar o genero teafral grego do Cristianismo ou,
rica. Uma o genero da tragédia, outra a expressäo do trågico
é ainda, derivar do modelo grego um modelo cristäo para a tra-
e, para historiadores, ambas, nasceram a partir de processos gédia. No entanto, as reflexöes sobre a tragédia näo se esgotam
hist6ricos muito distintos. na aqäo das personagens, mas sobretudo na tensäo por eles vi-
vidas da ameaca da morte e isso constitui-se no elemento ver-
A TRAqÉDlA E O TRACIICO: A QUESTÄO CONCEITUAL dadeiramente trågico. A arte do mundo grego soube representar
medos e desejos diante da morte, criando um género artfstico
E A OBRA DE LAS CASAS
que se perpetua e que denominamos tragédia. Porém, os temores
diante da morte criaram situaqöes trågicas que säo repetidas
A relagäo entre o género "tragédia" e o conceito "trågico" diariamente pelas pessoas e manifestadas através de suas preo-
deve ser explicitado, para que a aproximaqäo com a obra de Las cupagöes e curiosidades.21
Casas näo parega inoportuna. A morte categorias que ultrapassam a
tragédia soube dar
Para especialistas, como Hans Ulrich Gumbrecht, a tragédia
referéncia do senso comum, tornando-a demonstraqäo de supe-
possui especificidades que inviabilizam a aproximaqäo, por rioridade e funcionando como elemento catårtico. Ao realizar
exemplo, com o modelo de narrativa cristäo. A tragédia, com
essa tarefa, se näo o género "tragédia", mas o conceito "trägico",
seus elementos contradit6rios e culpas, precisa realizar purgaqöes ultrapassa a definiqäo académica e mistura-se com as diversas
que o texto cristäo, por sua linearidade, näo permite. construcöes realizadas, inclusive, pelo Cristianismo. Tudo o que
O fi16sofo utiliza esse argumento para ilustrar a passagem Comparando essa definiqäo com a obra de Las Casas, pode-
do mito religiäo grega e como esta procurava apresentar-se se afirmar que hå caracterfsticas do pensamento lascasiano ligadas
com "bases hist6ricas". Ao buscarmos
da narrativa as origens por Aristoteles. Isso, evidentemente,
as caracterfsticas expostas
trågica, no mundo grego, e a expressäo do trågico no Cristia- näo transforma o texto do frade em uma tragédia, mas realga
nismo, pretendemos fazer o movimento inverso: ver no fato que os aspectos trågicos vistos pelo Estagirita em suas anålises
hist6rico da Conquista, ou em suas criaqöes, a justificativa de estäo presentes, em certa medida, na obra de Las Casas. Partindo
uma representaqäo emblemåtica, que se transfigura em mito da pretensäo do religioso e do modo como ele apresenta sua
ide016gico pela defesa da causa indfgena: o proprio Las Casas. tarefa, ou seja, partindo da defesa dos fndios e a busca de uma
Retornando a questäo da caracterizacäo da tragédia, como evangelizaqäo pacffica, torna-se nobre a aqäo lascasiana.25 Evi-
género, e a obra de Las Casas, expressando o trågico, podem-se tar o horror e o dilaceramento de povos, bem como a visfvel
destacar alguns pontos de aproximaqäo entre elas, como a queda demogråfica da regiäo das fndias por conta das relagöes
definiqäo de tragédia apresentada por Aristoteles; o estilo da com os colonizadores espanh6is, preenche o requisito do elevado
narrativa e seu uso politico; a fungäo do mito na tracédia e as caråter e prop6sito da tarefa do dominicano.
dualidades apresentadas e representadas pelo teatro trågico. Ainda dentro dessa mesma definiqäo, Aristoteles fala em aqäo
'completa de certa extensäo". A primeira coisa, ou pelo menos
A DEFINICÄO DE TRACIÉDIA: RELACÖES chama atenqäo em qualquer pessoa que se
a mais visfvel, que
aproxima de Las Casas é o volume e a extensäo de seus textos.
COM O TEXTO DE LAS CASAS
As Obras Completas, organizadas pela Alianza Editorial, estäo
reunidas em 14 volumes.26 Provavelmente näo hå dentre os cro-
Na Poética, Arist6teles define e se ocupa em pensar a tragédia nistas das indias do século XVI, nenhum que tenha superado a
e sua estrutura. Com seu estilo 16gico, o fi16sofo apresenta as produqäo de Las Casas em volume e quantidade de informaqöes.
partes essenciais, faz comentårios sobre outros géneros do teatro Pela extensäo, o trabalho lascasista é rico em detalhes e com
grego e a define: "linguagem ornamentada". Podem-se citar e recorrer a diversos
veracidade pelo conjunto apresentado. De qualquer modo, seus bfblica, qual Las Casas soube recorrer com competéncia, para
livros säo a expressäo desse tipo de linguagem. justificar e defender seus pontos de vista.
Para exemplificar, observe-se a descriqäo do primeiro capftulo Na Brevfssima relacäo de destruiGäo das Indias, a primeira
do Livro I da Hist6ria das fndias, que trata da criaqäo do mundo: parte de seus Tratados, Las Casas construiu seu texto criando
uma d6cil imagem dos fndios, para em seguida descrever sua
En el principio, antes que oufra cosa hiciese Dios, sumo y poderoso versäo dos acontecimentos e demonstrar o caråter sangüinårio
Sefior, cri6 de nada el Cielo y la tierra, segün que Ia Escritura da colonizaqäo espanhola. Ele apresentava as personagens,
divina da testimonio, cuya autoridad sobrepuja toda la sotileza y como que num ritual, as
santificava as vftimas, as oferecia e,
altura del ingenio de Ios hombres: el cielo, conviene a saber, el contrapunha violéncia do terrfvel destruidor.
empfreo, cuerpo purfsimo, sutilfsimo, resplandeciente de
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admirable claridad, el fundamento del mundo, de todas las cosas Todas estas universas e infinitas gentes a toto genero cri6 Dios
visibles contentivo o comprensivo, corte y Palacio Real, morada los mås simples, sin maldades ni dobleces, obedientfsimas y
suavfsima y habitaci6n amenisima, sobre todas deleitable, de sus fidelfsimas a sus senores naturales e a los cristianos a quien sirven;
ciudadanos los espfritus angélicos, a los cuales clara manifiesta su mås humildes, mås pacientes, mås pacfficas e quietas, sin rencillas
gloria, porque alli muy mås relucen los rayos de su divino ni bollicios, no rijosos, no querulosos, sin rancores, sin odios, sin
resplandor, las obras de su omnipotencia, virtud y bondad, la desear venganzas, que hay en el mundo. Son asimismo las gentes
refulgencia gloriosa de su jocundfsima y beatifica hermosura, mås delicadas, flacas y ternas en complisi6n e que menos pueden
pulchérrima y copiosfsimamente manifestando, de la cual David, sufrir trabajos y que mås fåcilmente mueren de cualquiera
en su espfritu y divina contemplaci6n colocado, admirändose enfermedad, que ni hijos de prfncipes e senores entre nosotros,
clamaba: "Cuan amables, Senor, de las virtudes son tus palacios; criados en regalos e delicada Vida, no son mås delicados que ellos
deséalos mi ånima y deseando desfallece consideråndo-los!" , por [...]. Son también gentes paupérrimas y que menos poseen ni
cierto, harto mayor felicidad seria y sera la morada en ellos de un quieren poseer de bienes temporales; e por esto no soberbias, no
dia que la de mil en las posadas, por ricas que fuesen, de los ambiciosas, no cubdiciosas (T, I: 17).
Acreditando na protecäo daquele que lhes falava, um jovem A memoria da Conquista estå associada ao nome de Las Casas
fndio levantou-se e saiu da casa onde estavam os mortos. por sua competéncia e habilidade em demonstrar e apropriar-
Quando chegou fora, um espanhol o esfaqueou. se do estilo tragico na apresentagäo de suas idéias. O fato de
suas obras terem Sido conhecidas integralmente ap6s mais de
El indio, triste, toma sus tripas en las manos y sale huyendo de Ia
trés séculosde sua morte näo impediu que ele se tornasse uma
casa; topa com el clérigo y cognosci610, y dfcele allf algunas cosas das principais referéncias e fonte de polémicas dentre os
de la fe, segün que el tiempo y angustia lugar daba, mosträndole cronistas da epopéia espanhola.28
que si querfa ser baptizado irfa al Cielo a vivir com Dios; el triste,
qual se envolveu — a questäo indigena —, Las Casas foi favoreci- mentos e a montagem do sistema colonial se constituem numa grande epo-
péia,na qual os gestos näo foram sempre comedidos, nem a 16gica do capital
do pela posigäo adotada e pela possibilidade de comunicaqäo transparente" (THEODORO, 1989: 7).
através da narrativa trägica. 29 O mito é, na tragédia, "o elemento mais importante, entre todos os que constituem
a imitaqäo com arte poética [ ...l sendo determinad9 como uma totalidade
(cap. V II) ecomo uma unidade (cap. VIII)", segundo os comentårios de
Eudoro de Souza na edigäo da Poética da colesäo Os Pensadores (ARISTOTELES,
27 "O conceito funda-se sobre a analogia com um principio terapéutico — mais 1987: 244). Ao analisar o drama de Ésquilo, dentro da volumosa obra Paidéia,
precisamente: com um principio homeopätico. Confrontadas com aquilo que Jaeger afirma: "A representaqäo do mito na tragédia näo tem sentido meramente
mais se teme — mas com uma diståncia espacial e emocional em relaqäo a tais sensfvel, mas sim de profundidade. Näo se limita dramatizagäo exterior,
agöes (essa diståncia corresponde as doses mfnimas de medicamento dispen- que torna a narragäo uma aqäo participada, mas penetra no espiritual, no que
sados nun-t tratamento homeopåtico) — as emogöes do espectador irromperäo; a pessoa tem de mais profundo. As lendas tradicionais säo vistas através das
mas visto que elas näo possuem nenhum ponto de referencia 'real', nem mais intimas convicqöes da atualidade. Os sucessores de Ésquilo, Euripedes
nenhuma situaqäo 'real' de perigo, sua irrupqäo — algo 'despropositada' — é principalmente, foram mais além, a ponto de converterem a tragédia mftica
sinönimo, para o espectador, de uma libertaqäo em relagäo a elas pr6prias. numa representagäo da Vida cotidiana" (1994: 298).
30 Segundo Jaeger, os discursos foram responsåveis pela atualizaqäo dos mitos,
Um motivo estético diferente — e todos esses motivos podem funcionar
independentemente enquanto näo forem incompatfveis — é a admiraqäo pela produzindo modificagöes nas sagas tradicionais para tornå-las adequadas as
serenidade (gostamos de dizer: est6ica) que os her6is trågicos amiüde mostram suas intenqöes. "O que fica dito sobre as personagens e discursos vale tam-
quando em seu confronto com o irresistfvel destino e a derrota inevitävel" bém, em linhas gerais, para a estrutura da tragédia inteira. Aqui, como ali, a
(GUMBRECHT, 2001: 12). configuraqäo brota da concepqäo da existéncia, que é essencial ao poeta e que
este descobre no seu tema. Talvez isto parega banalidade, mas, de fato, näo o é.
BARTOLOMÉ DE LAS CASAS 81
JOSÉ ALVES DE FREITAS NETO
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especffico para o teatro, estå-se, no texto de Las Casas, gerando praticados na colönia. A critica foi dirigida aos que abandonaram
o mit032 que fundamenta a tragédia.
O
discurso expressa o pensamento do autor e lhe permite
apresentar o que pretende, unindo orat6ria e politica em sua
33 As relagöes entre a tragédia e a politica säo abordadas por Foucault (1999). O
fi16sofo analisa a tragédia de Édipo questionando a leitura moralizante em
torno desse mito, difundida a partir de Freud. Para ele o complexo de Édipo
näo se resume a uma trama de desejos entre pai, mäe e filho, mas, antes de
tudo, na relagäo entre poder e saber: "Parece-me que hå realmente um complexo
de Édipo na nossa civilizaqäo. Masnäo diz respeito ao nosso inconsciente
ele
e ao nosso desejo, nem ås relaqöes entre desejo e inconsciente. Se existe complexo
Antes da tragédia, nenhuma poesia escolheu o mito simplesmente para expri-
de Édipo, ele se då näo ao nfvel individual, mas coletivo; näo a prop6sito de
mir uma idéia, nem escolheu os mitos de acordo com os seus proprios inten-
desejo e inconsciente, mas de poder e de saber" (1999: 31). O que estä em jogo
tos. Näo era qualquer fragmento de cantos heröicos que podia ser dramatizado
e convertido em tragédia. Aristoteles afirma que, com o desenvolvimento na tragédia é o poder de Édipo (1999: 43). Ao juntar as informaqöes
progressivo da forma trågica, so poucos temas do grande reino da epopéia
fragmentadas durante o texto, Édipo as organiza: "Vemos como o jogo
das metades pöde funcionar e como Édipo é, no fim da peqa, um personagem
atrafram a atenqäo dos poetas; mas quase todos estes os reelaboraram. Os
supérfluo. Isto na medida em que este saber tirånico, este saber de quem quer
mitos de Édipo, da casa real de. Tebas, ou do destino dos Atridas — Aristoteles
ver com seus proprios olhos sem escutar nem os deuses nem os homens,
menciona alguns outros ainda — pela sua pr6pria natureza continham impli-
permite o ajustamento exato do que haviam dito os deuses e do que sabia o
cito o germe de futuras eram tragédias em potencial. A epopéia
povo. Édipo, sem querer, consegue estabelecer a uniäo efitre a profecia de deus
contava as sagas por elas mesmas. [ ...l A Ifrica, mesmo quando escolhe um
e a memoria dos homens. O saber edipiano, o excesso de poder, o excesso de
tema mitico, acentua sempre o seu aspecto puramente lirico. É o drama que
saber foram tais que ele se tornou inütil; o circulo se fechou sobre ele, ou
pela primeira vez faz da idéia do destino humano e respectivo curso o princf-
pio importante da sua construqäo inteira, com todas as suas peripécias e melhor, os dois fragmentos da téssera se ajustaram e Édipo, em seu poder
golitårio, se tornou inütil. Nos dois fragmentos ajustados a imagem de Édipo
catåstrofes" (1994: 299-300).
se tornou monstruosa. Édipo podia demais por seu poder tirånico, sabia
31 Isto näo significa, evidentemente, que Las Casas procurou moldar-se aos
demais em seu saber solitårio. Nesse excesso, ele era ainda o esposo de sua
canones apresentados por Aristoteles, até mesmo porque sua referencia mais
mäe e irmäo de seus filhos. Édipo é o homem do excesso, homem que tem
constante serå a Bfblia (pr6ximo capftulo), mas, antes, queremos afirmar que
os elementos constitutivos de uma narrativa trågica, quer em sua leitura
tudo demais, em seu poder, em seu saber, em sua familia, em sua sexualidade.
clåssica, quer numa leitura mais abrangente, residem na obra de Las Casas. Édipo, homem duplo, que sobrava em relacäo transparéncia simb61ica do
32 por mito näo se estå utilizando a nogäo mais usual relativa mitologia, ou
que sabiam os pastores e haviam dito os deuses" (1999: 48). Segundo Foucault,
vulgarmente associada mentira, mas ao modo como Aristoteles utiliza na o detentor do poder é detentor do saber: "O rei e os que o cercavam, pelo fato de
poética,ou seja, é o cerne da historia a ser representada. Ao nos referirmos a deterem o poder, deånham um saber que näo podia e näo devia ser comunicado
aos outros grupos sociais. Saber e poder eram exatamente correspondentes,
Las Casas utilizamos na mesma acepgäo: sua construgäo do fndio, seu
discurso sobre o indio é o nücleo de sua obra. Da visäo de doqura e mansidäo correlativos, superpostos. Näo podia haver saber sem poder. E näo podia
os valores morais que ele defendia e incorporaram a cobiqa, os interesses dos fndios, que näo desejavam ser subjugados e
a crueldade, a violéncia. Las Casas denunciava a exploraqäo e a explorados na proporqäo que estavam sendo, pagando inclusive
dizimaqäo indfgena, chegando a atingir a Coroa, através da leyenda com suas vidas; e os interesses da Coroa, que via enriquecer e
negra, mas näo tinha a pretensäo de obter, nem de requerer a aumentar o seu patrimönio com as exploraqöes realizadas nas
renüncia ao poderio sobre as indias. Inclusive, na citaqäo da indias. Note-se que essa preocupagäo de Bataillon, ao apontar
pagina inicial da Brevfssima, com fndios d6ceis e mansos, o frade uma suposta contradigäo na acäo de Las Casas ao defender os
dominicano falava, explicitamente, do amor dos mesmos aos seus fndios e a pröpria Coroa, expressauma visäo que é de seu tempo,
senhores naturais, os reis de Espanha, e tarefa destes, apregoar näo de Las Casas, pois fndios e Coroa servem ao plano divino e
o Cristianismo. estäo inseridos dentro de um ünico Plano.
Bartolomé de Las Casas propunha a revisäo dos métodos, a O prop6sito politico de Las Casas e as constantes interpreta-
reforma das Indias. Sua atuagäo politica e as leis geradas ap6s qöes sobre seupensamento e suas obras demonstram a eficåcia
sua interferéncia direta ou através dos dominicanos (as Leis de politicade seu discurso e como ele foi absorvido por aliados e
adversårios. Do modo como o padre escreveu e construiu seu
1512 e as Leis Novas de 1541) representaram essa postura, de
reconstruir a ordem.34 Sobre essa questäo, Marcel Bataillon (1976: texto ele näo propos reflexöes, busca de sentido ou qualquer
10-3) diz que o que Las Casas pretendeu foi resolver a "quadratura outra coisa sobre a América. A forga de seu texto reside em
do cfrculo", conciliando interesses inconciliåveis, como os dos ditar os modos e definir os acontecimentos, emitindo sentenqas
colonos que se apossaram de fndios e utilizaram de sua mäo- e reforgando o que era justo ou näo de acordo com sua visäo.
nacionais, o poeta volta, mais uma vez, a assumir uma situagäo grego, vé-se, como era de se esperar, que nem todos os ele-
quase equivalente do oråculo nos tempos pré-hist6ricos mentos säo compatfveis. A comparaqäo entre as narrativas näo
(HAUSER, 1972: 128). significa reproduzir a totalidade de elementos de um pensa-
mento complexo, como o grego, com outro que se situa em ou-
Aperspectiva lascasiana aproxima-se da descriqäo do tro recorte cron016gico e espacial, como o de Las Casas e o Novo
O que Las Casas, membro da Igreja, enviado
historiador citado. Mundo. A aproximagäo busca apenas perceber como determi-
inicialmente em tarefa colonizadora da Coroa, fez foi mostrar- nadas questöes se assemelham. A existéncia de elementos con-
se com a clareza de um ser especial que antecipadamente sabe flitantes entre a perspectiva do universo da tragédia grega
os rumos a serem tomados na empreitada colonial, e age com analisada por Arist6teles e a narrativa do religioso dominicano,
absoluta convicqäo e certeza a partir de suas propostas. Embora no entanto, näo inviabilizam o prop6sito de buscar a fundamen-
näo tivesse a tarefa de ser a interpretaqäo oficial,35 como era o taqäo necessåria para a leitura tragica de Las Casas.
caso dos gregos, a narrativa do bispo de Chiapas permitiu o A tragédia grega trata de questöes como a dualidade e as
surgimento de mitos e funcionou como referéncia nos ataques contraposigöes do mundo grego. Essa dualidade surge através
colonizaqäo espanhola. O sentido da narrativa trågica se inverte, do embate entre, por exemplo, a questäo do destino e a vontade
mas mantém a matiz polftica: do oficialismo grego passa idéia individual, aspectos religiosos e a Vida polftica, confrontos entre
de oposigäo e contestacäo em Las Casas. her6is e deuses, dentre outros.37 0 principio da contradiqäo é
A tragédia grega serviu para constituir e manter o estado um dos elementos da tragédia grega.
Las Casas näo destruiu o poder politico, nem pretendeu,
politico. Estas questöes, pr6prias do mundo grego, näo poderiam
como se viu anteriormente, mas atuou politicamente e ganhou aparecer da mesma forma na obra de Las Casas.38 Neste caso,
visibilidade ao tornar-se o "protetor dos fndios", e como tal interessa menos a temåtica e mais a estrutura. Permeado por
passou a ser a grande voz a denunciar e a propor aqöes polfticas um texto religioso, a crönica sobre as Indias composta pelo do-
diante da Coroa. É o "oråculo" dos defensores indfgenas do minicano mantém uma estrutura dual que contrapöe a questäo
Novo Mundo.36 indfgena e os interesses da colonizagäo espanhola. Na caracte-
rizaqäo e descriqäo dos acontecimentos pode-se perceber o
quanto e como Las Casas criou uma realidade em sua percepqäo
atrelada aos objetivos e beneffcios que atinjam um grande grupo cristäos, Las Casas incluso, com suas dores e redengöes, revelam
e conceda as benesses necessårias ao mesmo. E assim que Las um outro modelo narrativo, diverso nos temas e valores, mas
Casas posicionou-se e apareceu em suas obras e nas perspectivas semelhante pretensäo de redimir dos fracassos e dores que
de muitos intérpretes e bi6grafos. Essa atitude e esse seu estilo ameaqam, como a pr6pria morte. Esse tema, aliäs, foi o mote
contribufram para sua aqäo e para a leitura politica feita a partir para a veemente pregacäo do dominicano, ao colocar os fndios
de sua obra. como vftimas de um processo infquo. A partir daf projetou e fez
o seu discurso, dentro de um modelo especffico, o modelo
LAS CASAS E O TRAGICO bfblico.