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judeu de Saul Bellow <"Herzog"); na Itália, na língua literária cheia de Os gêneros literários

seiva dialetal, situada entre a de ·Joyce e a de Céline, de Carlo Emilio


Gadda <"Quer Pasticciaccio Brutto de Via Merulana"), na neo-retórica de
Giorgio Manganelli (" Aglt Dei Ulteriori") e na neovanguarda de Edoar-
Conceituação e evolução histórica
do Sanguineti ("Capriccio Italiano"). Aos quais conviria juntar três imo-
ralistas de crescente influência: Witold Gombrowicz <"Ferdydurke", "A
Pornografia"), Pierre Klossowski ("Roberte Ce Soir", "Le Baphomet") A problemática dos gêneros, a mais antiga da teoria literária, tam-
e Anthony Burges8 ("Cloclcwork Orange"). O teatro pós-moderno se tor- bém das mais complexas e controvertidas, empenha a.inda hoje o inte-
nou pós-brechtiano nos suíços Max Frisch (Bierdermann e os Incen- resse dos estudiosos, que perseveram na busca de uma conceituação.
diários, 1953; Andorra, 1962) e Friedrich Duenrrenmatt <A Visita da Entre divergências e oscilaçõe·s, o assunto atravessa toda a história da
Velha Senhora, 1955; Os Físicos, 1962), e nos alemães Tankred Dorst literatura e da critica, ora assumindo acomodações de fidelidade e. pre-
<A Grande Imprecação ao pé das Muralhas da Cidade, 1961) e Peter ceitos estáticos, ora desencadeando inovações, com investidas aguerridas
Handke (A Cavalgada sobre o Lago' de Constança). Nos anos 60, salien- e alvoroçadas. o fato é que a questão permanece aberta, a aguçar nossa
taram-se ainda o humor negro do polonês Slawomir Mrozek <Tango)
curiosidade num desafio milenar.
e o "teatro da ameaça" do inglês Harold Pinter <"The Caretaker'', 1960;
"Homecoming", 1965). No Brasil, destaca-se a fusão de costumismo e ex- o primeiro a tomar consciência dos gêneros foi Platfl:.<>, mas cabe a
pressionismo nos dramas de Nelson Rodrigues (Vestido de Noiva, O AristÓtei;s ~ -~n _ menta de suas bases fundamentais na Poética, que
Boca de Ouro). se inicia com a intenção de abordar a produção poética e os seus diver-
Em todas essas vertentes de expressão, as letras pós-modernas se sos gêneros, classificando as obras segundo elementos formais e con-
mantêm, em conjunto, basicamente fiéis ao ludismo, à estética do dis- teudisticos. Assim, o gênero literário pressupõe uma classificação de
tanciamento e à figuração "mítica" do modernismo. Talvez deste se obras consignadas por características afins. Welleck e Warren opinam:
separem, no entanto, no tocante à alegoria. Sendo surreallzante, o al ~­
gorismo. modernista é quase todo de cunho metafórico. Já a alegoria p6l:i- creemas que el género debe entenderse como agrupación de
moderna tende a uma espécie de realismo de vocação metonímica: não obras literárias basa.da teóricamente tanto en la forma. <exlTf~
(metro o estructura específicos) como en la inter!or ac u
procura tanto aludir, pelo recurso ao visionário, às cicatrizes da desuma- tono, propósito; dicho más toscamente: tema y publico) 1 •
nização; procura antes mostrar, para desmistificá-lo, o universo dos
objetos em que desejo e consciência se alienam. Radiografar a cena so- Anatol Rosenfeld alvitra que a divisão das obras literárias por gê-
cial como espectro histórico, isto é, como realidade falsa <embora exis- neros parece proveniente da "necessidade de toda ciência. de introduzir
tente e ativa), eis o programa implícito da estética hiper-realista do certa ordem na multiplicidade dos fenômenos".
pós-modernismo - e o ponto em que ela se faz resposta ao desafio
moral representado pela nobreza humana da sociedade contemporânea. Embora a Poéttca de Aristóteles continue sendo o texto básico p~ra
enfoque dos gêneros, durante séculos vem suscitando interpretaçoes,
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Brasília, janeiro de 1975. que variam ao sabor do aparecimento de novos modelos literários e se-
gundo a evolução do conceito de literatura.

1
WELLEK, René & WARREN, Austin. Teoria ltterárta. Madrid, Gre-
C:ios, 1959. p. 278.
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Na Idade Média não houve sistematização rigorosa sobre os problE>· o Barroco opta por maior liberdade criadora e advoga as mutações
mas literários, a não ser os tratados de poética trovadoresca, todavia do conceito. Cultiva o hibridismo dos gêneros, proscrito pela norma.ti-'
sem vinculações com as doutrinas dos antigos. No Renascimento, graças vida.de classicista, tendo produzido, entre· outras infrações, a tragico'-
à sedução exercida pela arte greco-latina, a Poética de Aristóteles e a média.
Epistola aos pisões de Horácio promoveram inúmeras discussões do maior --;;;
0
século XVIII, a despeito de as correntes neoclássicas manterem
interesse para o novo espírito critico que despontava. A questão dos gê- compromissos com as doutrinas do Classicismo fra~cê~, a fé no pr~gresso
neros tornou-se então o ponto central da interpretação do fenômeno e a crise dos valores tradicionais sacodem a conv1cçao da imutabilidade
literário. dos gêneros. Além disso, as importantes formas literárias que nascem,
como o drama burguês e uma nova modalidade do romance, jogam por
Aristóteles considera dois modos básicos de produção poética: o~­
rativo e o dramático, não estudando propriamente a poesia lírica. Os terra a tirania da norma.
críticos renascentistas e clássicos, entretanto, com base nos postulados o Pré-romantismo contesta o despotismo clássico e proclama a força
horacianos, incluíram o lírico entre os gêneros e deram início à carrei- criadora do gênio, que o Romantismo desenvolve com características
ra da divisão tripartida da produção literária (lírica, épica, dramática) próprias, sem chegar a banir os gêneros, mas patrocinando ostensiva-
que, apesar das dissensões, prevalece para grande parte dos teorizado- mente a legitimidade da sua mistura. Vitor Hugo, no ruidoso Prefácio
res', até nossos dias. de "Cramwell", põe em rebuliço os baluartes estéticos com imprecações
contra o convencionalismo do padrão de belo cultivado pelos antigos e
.No século XVII,_ admitia-se que cada um desses grandes gêneros se imitado com fervor pelos prosélitos da Antiguidade. Argumenta que, se
subdividia em gêneros menores, severamente distintos e regidos or na natureza o belo coexiste ao lado do feio, não compete ao homem
regras intransigentes e imutáveis_ que comandavam a criação e orienta- retificar Deus e sim seguir o seu exemplo, na aliança dos contrários. Da
vam poetas e críticos, a ponto de o valor da obra ser reputado na depen- união do grotesco e do sublime nasce ~plexidade do gênio moderno,
dência desses cânones. oposto à uniforme simplicidade dos antigos.
Tal posição normativa se alicerçava na crença de que os gêneros Nos fins do século XIX, Brunetiêre, influenciado pelo positivismo
eram e'ssências fixas ou formas exigidas pela natureza, e como os anti- naturalista, adapta o dogmatismo das doutrinas clássicas à teoria evo-
gos realizaram essas formas de maneira superlativa, seus exemplos cons- lucionista de Darwin, encarando o gênero como espéCie biológica que
tituíam os modelos supremos a serem escrupulosamente imitados. nasce, se desenvolve, envelhece e morre. Contra esta concepção, que fo-
Trata-se de uma concepção supra-histórica que nega a possibilidade caliza 0 gênero como entidade substancialmente existente a ditar lels
de desenvolvimento e variações dos gêneros, segundo as exigências de para a atividade criadora, se insurge Benedetto Croce, que minimiza. a
cada época. importância dessas imposições cerceantes.
A inflexibilidade das estéticas renascentistas e classicistas não pon- Nas últimas décadas o problema dos gêneros retorna à arena dos
tificou em termos absolutos e, desde os séculos XVI e XVII, surgiram debates, tendo constituído o tema único do III Congresso Internacional
polêmicas, muitas das quais a propósito de obras que não se enquadra- de História Literária, realizado em Lyon, em 1939. A disparidade de
vam nas delimitações impostas. Na famosa "Disputa entre Antigos e concepções dos trabalhos apresentados atesta o interesse do tema, sua
Modernos", já se desconfiava da intemporalidade dos preceitos aristoté-
atualidade e, sobretudo, suá. inesgotabilidade.
licos e horacianos, uma vez que um novo sentido da historicidade do
homem e da cultura instigava a admissão de novas formas. literárias ou A tendência moderna dos escritores é, cada vez mais, libertar-se dl!S
a adaptação dos gêneros tradicionais às contingências temporais. intolerâncias acadêmicas, em rebeldia contra os principias autoritários,

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em nome de uma originalidade que derruba a ordem preestabelecida e enfoque oferece a vantagem de desfazer a artificialidade da setorlzação
instaura n ovas modalidades, cada vez mais difíceis de serem classifica- rígida, sem cogitar de obsoletas normas e regras a serem obedecidas.
das nas fronteiras dos gêneros.
A questão da terminologia sempre figurou entre os motivos de dis-
Se adotarmos a divisão t1ipartida - lírico, épico e dramático _ crepância para os autores que se ocuparam com os gêneros literários.
como encaixar nesses três compartimentos a multiplicidade da produ- Muitos utilizam a palavra gênero para denominar as mais diversas ca-
ção literária? Como classificar certos contos que adotam o proce- tegorias literárias, .como prosa, poesia, verso, canção, balada, romam:e,
dimento do puro diálogo, peculiar à obra dramática? E certas com- conto, novela, soneto, epopéia, lírica, grotesco, sublime, drama, descrição,
posições dramáticas onde apenas comparece uma per8onagem em ex-
narração etc.
tenso monólogo? E as obras líricas de cunho narrativo ou em diálogo, ou
ainda quando a emoção cede à reflexão? Podemos considerar as subdivisões dos três grandes gêneros em es-
pécies, também denominadas formas, classes ou sub-ramos.
Não teria sentido instituir novas divisões, que cresceriam Ilimitada-
mente, tal a desconcertante diversidade das obras. Como agir diante Espécies da Lírica: soneto, ode, balada, vilancete, rondó, ronde! etc.
do impasse?
Espécies da J!: ica: epopéia, romance, conto, novela.
Emil Staiger parece encontrar a solução para este beco sem saida Espécies do Drama: tragédia, comédia, tragicomédia, farsa.
dos estudos literários, adotando a tradicional tripartição, porém numa
perspectiva aberta, que estabelece a diferença básica enÚ·e a conceitua- Não entraremos em detalhes quanto às espécies dos gêneros, por fu-
ção substantiva e a _filj, etiva,. · girem à finalidade de nosso estudo, a não ser em breves passagens na
. ----- parte relativa ao Drama, a fim de esclarecer certas noções deste ramo .
Os .s ubstantivos Lírica, ll:pica e Drama referem-se ao ramo, em que
se classifica a obra, de acordo com determinadas características formais. Examinaremos os gêneros na sua significação substantiva e adjetiva,
Os poemas de breve extensão que expressam estados de alma, se enqua- a partir de sua essência observada através dos fenômenos estilísticos
dram na Lírica. O relato ou apresentação de uma ação pertence à Jtpica, que nos parecerem mais representativos e que procuraremos exemplifi-
enquanto a representação da ação, movida por um dinamismo de tensão car, tendo em vista a sua melhor compreensão.
se situa no Drama. '
Os adjetivos lirice, épico e dramático definem a essência, isto é, os
traços c~racterfsticos da obra, manifestâdos por seus fenômenos estl- O gênero Urlco
listicol!. --
Toda obra pertence ao ramo genérico cuja essência se revela em A essência lírica
caráter prioriFário, todavia participa também da essência ou dos traços
particulares dos outros gêneros .. Desta feita, uma balada dialogada se A e5sência lirica se manifesta nos fenômenos estilísticos próprios.
coloca sob o rótulo da Lírica, embora a essência dramática também se Quando a obra apresenta predominio desses traços sobre os demais, se
faça notar. Uma peça teatral pode participar da essência do lírico, se situa no ramo da Lírica. Assim se pronuncia Rosenfeld:
tiver transbordamentos afetivos. o romance pertence ao ramo da :itplca,
mas seus diálogos o aproximam da essência dramática e a efusão de Pertencerá à Lírica todo poema de extensão menor, na medida
em que nele não se cristalizarem personagens nítidos e em que,
sentimentos torna-o lirico. ao contrário, uma voz central - quase sempre um "Eu" - nele
Stalger a8severa que nenhuma obra pode ser classificada exclusiva- exprimir seu próprio estado de alma 2.
mente num gênero! partilhando sempre da essência dos demais. Este
2 ROSENFELD, Anato!. O teatro épico. S. Paulo, Buriti, 1965. p. 5.
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·De fato, no poema lírico há sempre um eu que se expressa, advin- intitulado "Art poétique" com um verso que ficou famoso: "De la musi-
do dai o subjetivismo atribuído a este tipo de composição. Não devemos, que avant toote chose" <música antes de tudo). Não é sem razão que
entretanta, confundir o eu lírico com o eu autobiográfico, já que o fato tantas vezes se usa a palavra canto como sinônimo de poema.
literário possui um universo fictício, onde os elementos da realidade con- um dos fenômenos estilísticos mais típicos da composição lirica é a
creta entram em tensão com o imaginário, para criar uma nova reali- musicalidade da linguagem, obtida através de uma elaboração especial
dade, atrás da qual o autor desaparece. Portanto, o apregoado subjeti- do ritmo e dos meios sonoros da lingua, a rima, a assonância ou a ~te-:­
vismo lírico independe do eu biográfico. r~ urdidura da camada fônica propicia uma tendência geral para
lt indiscutível a afetividade e a emotividade do clima lírico, sempre &identidade entre o sentido das palavras e sua sonoridade, que podemos
ligado ao intimo e ao sentimento, tornando fluida e inconsistente a re- constatar na "Canção do vento e da minha vida" de Manuel Bandeira:
lação entre o sujeito e o objeto, isto é, entre o eu e o mundo. A emoç~p
e o sentimento impedem a configuracão mais nítida das coisas e dos o vento varria as folhes,
seres que não se fixam, mas fluem sem contornos definidos na torrente O vento varria os frutos,
poética. Quanto mais lirico o poema, menor será a distância entre o ;u
o vento varria RS flores ...
E a minha vida ficava
e o mundo, que se fundem e confundem. Quando aparecem descrições, Cada vez mais cheia
análises, diálogos ou reflexões no poema, instaura-se um distanciamento De frutos, de flores, de folhas.
eiiti=eõ sUfeit()é o obje~o e o c.!fma lírico desvanece com a acentuação
dos traços épic~ ou dramáticos. A insistência dos fonemas fricativos /V/ e /f/ induz a uma aproxi-
mação do som dos versos ao sentido de voragem do vento varrendo as
A atitude fundamental lírica é o não distanciamento, a fusão do coisas num ímpeto distruidor. o significado metafórico do vento na
sujeito e do objeto, pois o e'stado anímico envolve tudo, mundo interior anagem da devastação desencadeada pelo tempo, amplia-se na recor-
e exterior, passado, presente e futuro. Por isso Staiger denomina recor-
rência a.literativa dos fonemas congêneres.
dação a essência lírica, levando em conta a etimologia da palavr~o
latim cor- cordis. Recordação quer dizer "de novo ao coração", isto é, Diversa é a impressão do vento na "Cantiga outonal" de Cecll1a.
aquele um-no-outro, em que o eu está nas coisas e as coisas estão no :Meireles:
eu. Tal integração só se admite numa obra lírica idealmente pura, o
que é inconcebível em termos rigorosos. O poema tende para esta fusão, Outono. As árvores pensando ...
Tristezas mórbidas no mar ...
que será maior ou menor em função do estado afetivo. o vento passa, brando ... brando ...
E -sinto medo, susto, quando
Escuto o vento assim passar ...
Fenômenos estflfsttcos líricos
o a.cúmulo do fonema fricativo sibilante /s/ imprime a.os versos, gra-
ças à sua fluidez, a suavidade de um vento brando, na melancolia da pai-
Music~lida~ - O termo lírico originariamente liga-se a uma espé-
sagem outonal que a rede de fonemas nasais sombreia. A sensação difere
cie de composição poética que os gregos cantavam ao som da lira.
do outro poema, onde o·s fonemas labiais são as próprias chicotadas vio-
Grande parte do que hoje se denomina composição lírica era musicada,
conforme ainda atesta a poesia trovadoresca medieval. Mesmo depois, lentas do vento, que agora se faz apenas um sussurro de brisa.
quando se destinou apenas à leitura, conservou o remanescente dos seu:: o ritmo martelado dos primeiros versos de Bandeira_!eforça _! im-
primórdios, bastando lembrar que uma das características do Simbolis- petuosidade da destrfilçg.9, enquanto em ~ilia a lentidão rítmica se adap-
mo era a aproximação da música e da poesia. Verlaine começa o poema ta ao estado de alma dilu!d~olemente_nwp.a tristeza cansad~.

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Esta aproximação dos elementos sonoros e significativos provém da Todo o campo semântico da cantiga é uma repetição do refrão das
diSposição afetiva lírica que envolve tudo na ausência de distanciamento três estrofes, que se resume na equa ão amor :::: mal, definição da atitu-
da recordação. de trovadoresca medieval:
elementos fntenstficadores
Repetição - Em correlação direta com a musicalidade surpreendemos forma.a oerbafl substantfvos adj. e pron. adi. advérb. e Zoe. ado.
a repetição, entre os traços estilísticos do poema lirico. Aliás, Jakobso~
custa dor tamanha quanto
situa no paralelismo a principal característica da função poética da lin- suportar tnal (3 vezes) todo (3 vezes>
penei pesar (2 vezes) profundo só
guagem, que se manifesta no ritmo, no metro, na estrofação ou nos re- sofri (3 vezes> tristezas mais senão
·cursos sonoros. Não esqueçamos que a palavra verso significa etimologi- padeci dó cada. dia
amar (3 vezes) mágoa. sem par cada hora
camente retorno, volta. muito
Entre os processos mais comuns da repetição, citamos o refrão que o~ significados das formas verbais e dos substantivos giram em

exemplificaremos numa cantiga de amor de D. Dinis a: tomo de sofrimento e amor, intensificados pelos a.dje~vos, pronomes
adjetivos, advérbio~ e locuções adverl?J.8J!.
Quanto me custa, senhora, Quanto ao paralelismo do ponto de vista da rima, notamos que e.
tamanha dor suportar, concordância de sons se repete nas três estrofes, cumprindo assinalar
quando me ponho a lembrar que senhora se encontra no primeiro e último verso de cada. unidade.
o que pensei desde a hora
em que formosa vos vi; Em geral, o poema explora os recursos da homofonia. Segundo Saus-
e todo este mal sofri sure o mecaniSmo ·lin · tico reriousa sobre identidades e diferença!!
só por vos amar, senhora. (ou oposições) a fim de realizar um máximo de diferenciação. Por ser e.
tendência_natural aproximar pelo sentido as palavras de som igual ~.
Desde o momento, senhora, semelhant~. a linguagem corrente evita e. indiferenciação, da qual a
em que vos ouvi falar, linguagem poética tira partido nos efeitos que pretende.
não tive senão pesar;
cada dia e cada hora Na cantiga de D. Dinis, hora e agora se embutem sonoramente em
mais tristezas conheci; senhora, avizinhando seus sentidos. Jl: como se a senhora se fundisse nas
e todo este mal sofrt horas do amante: amar a senhora = mal a toda hora. O tratamento
só por vos amar, senhora. fônico reitera o sentimento fulcral da cantiga.
Devieis ter dó, senhora, A inclusão da senhora no tempo se confirma na construção. sintá-
do meu profundo pesar, tica, onde se repetem as orações temporais, que, ao lado das causa.l.S,
da minha mágoa sem par, permitem uma variação da equação do refrão: tempo do amor = causa
porque já sabeis agora do mal.
o muito que padeci;
O recurso da repetição é sintomático do não · diStanciamento lírico,
e todo este mal sofri
só por vos amar, senhora. na medida em que intensifica e. fusão de todas as coisas no estado
afetivo.
3
BERARDINELLI, Cleonice. Cantigas de trovaaores medievais em por- Desvio da norma gramatical - A repetição, contrária ao uso lln-
tuguês moderno. Rio, Simões, 1953. p. 25. gillstico corrente, demonstra que a linguagem poética provoca um des-

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v!o da norma gramatical. Jean Cohen afirma que a norma do discurso desestrutura as estruturas lingüísticas. A Canción de invierno do paeta
poético é a antinorma, e que o poeta busca intencionabnente o obscure- espanhol Juan Ramón Jiménez elucidará este fenômeno:
cimento e o equivoco, levando a lingua a perder a firmeza. A ambigüi-
Cantan. Cantan.
dade, caracteristica inerente a toda obra poética, decorre muitas vezes 4 Dónde cantan los pájaroc que cantan?
tia violação da norma. Ha llovido. Aún las ramas
están sin hojas nuevas. Cantan. Cantan
O hipérbato, proveniente da inversão na ordem natural das palavras, los pájaros. 4 En dónde cantan
Zos pájaros que cantan?
é uma das infrações mais freqüentes, cometida para satisfazer às exi- No tengo pájaros en jaulas.
gências do ritmo, do metro ou da rima, em prejuízo da clareza. Este& No hay niiios que los vendan. Cantan.
El vall.e está muy lejos. Nada ...
versos de "O navio negreiro" de Castro Alves UU.Stram o caso: Yo no sé dónde cantan
los pájaros - cantan, cantan -.
los pájaros que cantan.
Era um sonho dantesco. . . o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho, A repetição de cantan 13 vezes e pájaros 6 vezes comprova que o
Em sangue a se banhar. discurso, ao invés de se desenvolver linearmente, retorna sempre ao mes-
················································
Negras mulheres, suspendendo às tetas
mo ponto. Na perspectiva lógica, ou a repetição esclarece a mensagem
ou é redundante, sem acrescentar informação nem originalidade. No
Magras crianças, cujas bocas pretas contexto poético, dá-se um aumento de informação porque o diScurso
Rega o sangue das mães
não prossegue: recua e se obscurece, resultando imprevisível, original e
················································
E ri-se a orquestra irônica e estridente ...
ambíguo.
Antidiscursividad! - Susanne Langer denomina discursividade a
A lingua perde a consistência e faz as palavras deslizarem de uma propriedade de uma espécie de simbolismo, o verbal, segundo o qual as
classe para outra, assumindo funções inusitadas. Fernando Pessoa utlli- idéias se enfileiram, como ocorre nas seqüências frasa.is. Existem coisas
za este recurso em várias passagens: que não se adaptam à. linearidade da forma gramatical discursiva, ha-
vendo outra espécie de simbolismo, o apresentativo, que funciona de
Passou, fora de Quando, modo simultâneo e integral. O poema pertence ao simbolismo apresen-
De Porquê e de Passando •.• tativo, porquanto sua significação Dão é linear e sim globalizante.

Entre os exemplos de desvio na regência verbal, citamos alguns ver- Embora a poesia utilize o discursivo, devido ao seu material verbal,
sos esparsos de Mário de Sá-Carneiro: sempre reagiu contra a sintaxe lógico-gramatical, tentando romper suas
imposições. Desde o periodo do Simbolismo, os poetas se rebelaram aber-
tamente contra os procedimentos sintáticos, numa antecipação à. revo-
Desço-me todo, em vão, sem nada achar lução empreendida pelos Ismos dos movimentos vanguardistas, que fize-
Assim me choro a mim mesmo
ram desta questão uma das plataformas de suas reivindicações, em favor
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim de uma literatura desatrelada das amarras tradicionais. A poética
atual se empenha cada vez mais em abolir o discursivo ao suprimir os
De acordo com a sintaxe lógico-discursiva, o pensamento se orga-
~conectivos sintáticos, chegando mesmo, em muitos casos, a ellminar
niza em seqüência, mas a linguagem lirica, em procedimento contrárl~ a frase, conforme se verifica na Poesia Concreta. Cassiano Ricardo em-

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do não ser que, para Pessea; é o das aparências vãs, se insinuam as
pregou este procedimento em várias composições, entre as quais Po!tçõea
mais desconcertantes afirmações, que veremos em alguns versos colhidos
do corpo:
da coletânea:
Sob o azul
sobre o azul porque me destes o sen_!-imento de um rumo,
subazul se o rumo que busco nao busco
subsol
subsolo Quando penso que vejo
Quem continua vendo
O breve poema opera um desdobramento fono-semàntico do sob e Enquanto estou pensando?
azul (metáfora de terra) , na medida em que estes dois termos se diluem
Não compreendo compreender, nem sei
nas demais variações e combinações. o conteúdo significativo espacial da se hei de ser, sendo nada, o que serei.
preposição sob ecoa no prefixo sub- que compõe as três últimas palavras. sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,
As duas prepo'sições antitéticas indicam as "posições do corpo", abaixo E comecei a morrer muito antes de ter vivido.
da terra (enterrado), em cima <na superfície) ou a.cima (na estratosfe-
ra), resumindo a parábola do homem no seu irrecorrível destino. Por que, enganado,
Julguei ser meu o que era meu?
Mesmo sem atingir ta.is extremos compositivos, as vivências anímicas
rejeitam a rigidez das construções sintáticas, e repelem o discursivo, que Todas essas contradições corroboram a impossibiliade de se captar
instala o distanciamento reflexivo, incompatível com a essência lírica.
0
poema Urtco através do raciocini~ ois o transbordamento de senti•
A.logicidade_ - A alo icidade caracte ·za p_y~ia liriCllJ, numa in- mentas ultrapassa i jurisdição da. lógiC!l, aprofundando outras c~
ter-relação com os demais aspectos típicos, desde que estrutura lógica alheias ao regulamento codificado.
do discurso expressa as formas da cogitação racional que não se con-
construção paratáti~a - Nas composições mais líricas, predomina
cilia com a linguagem lírica. Naturalmente esta propriedade diz respeito
ao componente do imaginário que integra toda criação artística, entre- 0
\JSo da construção para.tática (orações coordenadas_) sobre a hipotá-
tanto, o poema lírico parece romper com ·mais veemência os estatutos tica (orações subordinadas) . Uma vez que o período composto por subor-
da realidade controlada pela razão. Jl: o que verificamos na definição do dinação requer maior elaboração mental, as relações causais, condicio•
amor, através da série de oxímoros no soneto de Camões, numa das mais nais, finais', concessivas pressupõem o raciocinio lógico e conectante.
bela.S manifestações do petrarquismo renascentista: Justamente onde comparecem tais conjunções, o clima lírico se desman-
Amor é fogo que arde sem se ver; hipotaxe subordinação a uma oração principal estabelece um
ch a. Na • - d
Jl: ferida que dói e não se sente; nexo lógico de dependência, em oposição à liberdade da expansao iu
Jl: um contentamento descontente;
li: dor que desatina sem doer; emoções.
ll: um não querer mais ·que bem querer; As ora ões independen_le_:> e as coordenadas da para.taxe correspon-
Jl: solitário andar por entre a gente; dem melhor ao fluxo da disposição a~. As. orações valem or s~.
Jl: um não contentar-se de contente;
Jl: cuidar que se ganha em se perder justapondo-se sem prioridade, como acontece na emoção lírica, em que
fatos distantes no tempo e no espaço se aproximam e se fundem nas
O oximoro e o paradoxo constituem um dos traços estilisticos mais vivências da alma. Em Meus oito anos de Casimiro de Abreu, a recorda-
notórios do Cancioneiro de Fernando Pessoa, perfeitamente de acordo. ção da infância une 0 passado e presente num reviver repleto de ter-
com o tema do conflito entre o ser e o não ser, eixo da obra. No mundo
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nura. As breves orações coordenadas da estrofe que transcrevemos re- àquilo que conta. Ao invés da imprecisão de contornos do estado lirico,
fletem a justaposição dos fatos, arrastados pela torrente lírica:
0 mundo se fir~ e se oferece à perspectiva do narrador como ob-;eto,
ou seja, etimologicamente, colocado em frente. A categoria do distancla-
Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas, clamento instaura aqui~ defrontar-se objetivo, estranho à essência
Trepava a tirar as mangas lirica.
Brincava à beira do mar· '
Rezava às Ave-Marias, ' A palavra epopéia deriva de ~ qu~. em grego, significa reci~.
Achava o céu sempre lindo, com efeito, a situação épica primitiva era a de alguém que narrava um
Adormecia sorrindo,
E despertava a cantar! fato a. um grupo de ouvintes, distanciando-se, portanto, o narra.dor em.
relação ao acontecimento passado, numa posição de confronto.
Conclusllo - Todos os fenômenos estilísticos examinados decorrem da A situação não se alterou na evolução ela epopéia para o romance
essência lírica, a recordação, que funde mundo interior e mundo exte- ou o conto, em que o autor narra. um acontecimento ou entrelaçamento
rior. ~te não-distanciamento impossibilita a observação e a compreen- de ocorrências destinadas não a um auditório e sim aos leitores.
são e cria . um contexto impreciso em que a expressão. lingüística deixa Muito se discutiu sobre a origem mítica da literatura e a função
de ser construida logicamente, fazendo tudo dissolver-se: o contorno do mitológica da leitura, que substituiu, no mundo moderno, a literatura
eu e do mundo e a estrutura da lingua. Assim se justificam a musicall- oral e a narração de mitos na sociedade primitiva. Ouvir histórias foi e
dade, as repetições, o desvio da norma gramatical, a anti-discursividade, continua sendo parte integrante da constituição psicológica do homem.
a alogicidade, a construção paratática.
Mircea Ellade refere-se ao relacionamento de continuidade entre o
~es fenômenos estilísticos Podem apresentar-se em qualquer obra, mito, a lenda, a epopéia primitiva e a literatura moderna, demonstrando
no entanto, somente quando predominam, esta se enquadrará no ramo que os arquétiPQs míticos sobrevivem de certa maneira nos grandes ro-
da Lfrica.
mances da atualidade. As "provas" que devem vencer as personagens
romanescas têm seu modelo nas aventuras do Herói mítico.
O gênero épico
o relato, na epopéia ou no romance, pressupõe invariavelmente a.
A esséncia épica &tuaçáo- de' confronto, J!ropiciacla p_elo distanciamento, inexistente na
atmosfera lírica, em que tudo se dissolve na. transitoriedade das coisas
e nas mutações do estado interior do eu, que nada observa nem fixa
A essência épica se revela através dos fenômenos estilísticos eape.
com nitidez. A atitude épica, ao contrãrio, é de atenção, pois o autor se .
cificos. Toda obra que contém esses traços em caráter predominante,
pertence ao ramo ela ~ica. coloca diante do objeto, segundo determinado Ponto de observaçã~, para
registrar, apontar, mostrar, enfim, apresenta_;-. Por tal razão, Staiger
As obras liricas resultam da fusão entre o eu e o mundo, ao passo considera a gpresentac4o a essência épica.
que as épicas se caracterizam primeiramente por um distanciamento
entre o sujeito (narrador) e o objeto (mundo narrado). convém ter e~ Na Iltada, Homero apresenta os combates dos gregos junto de Tróia.,
mente que todas as vezes que nos referimos a sujeito1 eu narrador au- a ira de Aquiles, a morte de Pátroclo, a luta de . Heitor e Aquiles etc.
Santa Rita Durão apresenta em Caramuru o naUfrágio de Diogo Alvares
tor, objeto, ~. tratamos de entidades fictícias do ~;verso ima~á.-
rio da obra literária. -- - - Correia, suas façanhas com a arma de fogo até granjear a admiração
dos indios que lhe deram o famoso nome, seu casamento com Paragua...
Enquanto o poeta lírico exprime seus estados de alma, envolvendo-se çu etc. Os romances de Balzac, enquadrados sob o titulo geral de "Co-
no que diz, o .!!!!:!ado_r se coloca numa situação de confronto em rela~ médie humaine", apresentam um. documentário ela 'vida francesa desde

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107
o Primeiro Império à Monarquia de JUlho. os romances de José T , __ do Renascimento e do Classicismo adotaram o verso heróico, cuja cesura
do Rego do "Ciclo d c d ....,.....,
a ana- e-açúcar" apresentam a sociedade rural lhe empresta consistência, impedindo que se dissolva no fluxo rítmico
brasileira.
da estrofe.
Cumpre ressalvar, entretanto que a a resenta ão d d . o _ritmo épic_9, m.a is regular que o lirico, relaciona-se com a posiç~
• o narra or não
se confunde com a fotografia da realld~. porque, no microcosmo hna- de distanciamento do _Earrador a fim de apresentar seu relato, o que
ginário da obra llteráril!:, o setor do mundo apresentado é desreallzad também implica na utilização de uma sintaxe lógic~ e de uma linguage~
pela força criadora do artista. 0
onde odem caber os efeitos da discursividade .. lt natural que os efeitos
sonoros não assumam a importância que adquirem na linguagem lirica.
Fenômenos estilf&ttcoa Grandiloqüêncta - A imitação de Homero, toda epopéia digna deste
nome deve dispor de alta quota de episódios espetaculares! batalhas san-
O passad~ - O tempo verbal de quem apre!enta um fato distante grentas, exaltação de heróis sobre-humanos em luta contra a fortuna,
no Passado, é o i:>retérito. Mesmo quando 0 poeta emprega 0 pres~te" intervenções fantásticas dos deuses ou de forças sobrenaturais, enfim,
trata-se do presente histórico. • todo um arsenal de grandiosidade, em estilo grandllogüente e retumban-
O Passado lírico sempre se faz presente pela recordação por revelar k Virgílio foi o primeiro · grande poeta a pôr em prática a lição de
o tempo interior, diverso do passado cronológico épico qde vitalizado Homero, porém com os requintes de uma. cultura. que já se consolidara
pela imaginação, é lembrado pela memória, num defrontar-se 'com 0 fato Nada mais óbvio que a estética preceptiva clássica, tão zelosa em trilhar
distante, temporal e espacialmente. as pegadas dos antigos, virgilizasse sua epopéia.
o tema . da epopéia consiste numa série de acontecimentos pretéri- O decantado "Arma virumque cano" com que Virgillo inicia a Eneida,
tos, quer seJa um passado lendário, como o cerco de Tróia na Ilíada ecoa nas obras de vários autores. o primeiro verso de Os Lusfadas, "As
as aventuras de ur · 8 armas e os barões assinalados", é complemento de "Cantando espalharei
ISses na. Odisséia, que já eram remotos para Homero
da mesma forma que as vicissitudes de Enéias para Virgillo quer ~
trate de uma época mais próxima, como a viagem de Vasco ~a Gama
8 por toda parte" da segunda estrofe.
narrada por Camões. Tasso, que enaltece a libertação de Jerusalém do jugo pagão pelo
exército de Godofredo de Bulhões, também começa sua Jerusalém liber-
P.or se_mover o ~e com maior liberdade no tem o, esta carac- tada virgilianamente:
t~rfst1ca nao lhe é especifica, nem as que veremos nos dois próxim~
itens, devido a razões divel'l!as.
Canto l'armt ptetose e 'l Capitano
_ Alguns elementos da forma exterior _ A disposição afetiva llrica Che 'l gran sepolcro liberô di Cristo
nao consente que o poema se e8tenda, dissipando-se a atmosfera poéti-
<Tradução literal: Canto as armas devotas e o Capitão/ Que o
ca q~ando tal sucede. Dá-se o inverso na apresentação dos fatos na
epopéia e Já Aristóteles assinalara sua ~nsão em comparaftt.:A grande sepulcro libertou de Cristo)
tragédia. - ......., com a
No entanto Ariosto, que no Orlando Furioso parece empenhado em
Ao contrário da variedade dos metros liricos, a obra épica se vale cantar os amores do paladino Orlando (0 mesmo Rola.nd das canções
·apenas de uma espécie. Ar1stóteles reputa o hexâmetro, usado por Ho- de gesta medievais) e de outros cavaleiros tanto quanto suas proezas
mero, o metro mais conveniente para a natureza do assunto da epopéia belicosas, dando talvez preferência aos revezes do coração, promove uma
em virtude de sua gravidade e amplldã9. Pelas mesmas razões os poetS:: significativa reviravolta dos valores épicos, apesar de manter fidelidade

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ma pressupõe 0 afastamento que não significa o · desaparecimento total
à matriz indefectível. O primeiro termo do objeto direto de canto e pri- do autor, presente através das observações pessoais e do entusiasmo de-
meira palavra da obra é donne <mulheres), antes mesmo de armas: monstrado peloSfatos expostos. Camões não se c~nserva impassível ao
se propor cantar os feitos dos "barões assinalados ' que enfrentaram os
Le donne, i cavallier, l'arme, glf amorf,
Le cortesie, Z'audaci imprese io canto "mares nunca dantes navegados":

(As damas, os cavaleiros, as armas, os amores,/ As cortesias, as cessem do sábio grego e do ~rola.no.
audazes empresas canto) . . As navegações grandes que fize!am,
cale-se de Alexandre e de ~raJan~
A narrativa e a ação - Aristóteles estabelece a diferença entre os As famas das vitórias que t1vera.m,
Que eu canto o peito ilustre lusitano
gêneros em conformidade com os meios, o objeto e a maneira da reali- A quem Netuno e Marte obedeceram.
zação da mimesis. Muito embora a múnesis tenha sido interpretada como cesse tudo o que· a Musa antiga canta
imitação, representação ou transfiguração da realidade, desejamos escla- Que outro valor mais alto se alevanta.
recer que a entendemos no sentido de criaçãq. O Professor Eduardo As três orações optativas denunciam o insopitável desejo de engran-
Portella._ é categórico: "imitar é aqui criar". Acompanhando o desen- decer alto valor pátrio, numa contraposição flagrante, fremente de ar-
0
volvimento de sua argumentação, constatamos que o fato literário des- 1 ão à antiguidade, para comprovar a superioridade lusa. Mes-
realiza o real concreto para criar a obra, através da tensão entre o real dor, em re aç d narrado
mo assim 0 defrontar-se objetivo entre o narrador e ·o mun o
e o imaginário. A mimesis é a criação resultante da desrealização do permanec~. Até no romance confes'sional, que trai a inalterabilidade, ::
real. esta sucumbisse inteiramente, não se desprenderia do eu central
Retomando a Aristóteles, segundo o objeto da mimesls, a epopéia. autor uma. humanidade com vida própria.
se ocupa com as ações das personagens nobres e, quanto à maneira, uti- setor do mundo imaginário criado subentende uma ~titude de
0
liza a narrativa, feita na pessoa do poeta, que pode também assumir confronto para a observação da realidade, que solicita a atençao do nar-
personalidades diversas. rador. A obra épica e a romanesca surgem invariavelmente do .cabedal
Portanto, a epopéia pertence a um gênero de composição em que o de observações sobre 0 mundo real concreto que serve de manancial para
poeta narra ações de personagens nobres ou de caráter elevado. Essa. a criação do cosmo artístico.
narrativa de ações, consideradas façanhas sublimes de heróis, sofre um Em referência à. epopéia, staiger pondera sobre o poeta:, que tudo
impacto demolidor com a derrocada das estruturas tradicionais, a partir contempla e apresenta não poder ocupar-se muito tempo com os domi-
do século XVIII. O lugar do herói se viu abalado, nascendo o anti-herói nios interiores, lá que' estes só dificilmente se tomam de .qualidade de
das proezas do cotidiano, da gesta da sobrev:ivência ou da conquista do obletos:
amor. Os tempos épicos, após uma longa evolução, cederam definitiva- <O poeta) Dirige a vista de preferência para for!'- t-. porqu~
mente à "civilização do romance".
Tanto na epopéia quanto ao romance, a ação narrada, sempre a.pre- ~~i·-=:. ~:EEt.~ ?~}~~~~~11;:;
homens maravilhosos, 0 mar, a ~ra ' é r cterístico de
sentada, diz i·espeito a comportamentos humanos e acontecimentos liga- biliário e criações de a~t~ · · Diz~~~~ q~~m {;,~0ª abrem-se os
~~~;sct!e :U~~~:· :ra c:t:!p1ar a· vida em sua plenitude
0
dos entre si e combinados na fábula e na trama, constituindo o enredo.
Inalterabiltda~ - O distanciamento entre o sujeito <narrador) e o diversificada 4.
objeto <mundo apresentado) favorece a inalterabilidade de ânimo d~ • STAIGER, Emll. Conceitos fundamentats da poética. Rio, Tempo
autor que não experimenta as oscilações do estado afetivo lírico. A tra- Brasileiro, 1969. p. 85-86.
111
110
Por 1sso a existência épica fundamenta-se no ver, explicando-se a Ariosto infringiu deliberadamente o regulamento da epopéia, mas
profusão de descrições nos poemas homéricos e nas composições típicas Tasso 0 fez sem querer. Temos um Orlando totalmente diferente do altivo
do gênero. ~e ver não se processa sem a inalterabilldade de ànlmo. e provocador Roland das cançõe·s de gesta. Em vez de se empenhar na
Ariosto, na criação do mundo de sonho do Orlando furioso, se detém luta contra os pagãos, abandona seus compromissos com Carlos Magno
multas vezes a descrever minuciosamente os elementos componentes das e parte atrás de Angélica, até enlouquecer de ciúmes.
pe.isagen8 fantásticas, como a ilha de Alcina, onde Ruggero chega mon- Tasso, fruto da mentalidade da Contra-Reforma, está disposto, com
tado no cavalo alado: toda sinceridade, a sublimar as faç~nhas da libertação do Santo Se-
pulcro, porém as paixões desenfreadas dos guerreiros dominam o centro
Culte pfanure e delfcatf com, do enredo.
Chiare acque, ombrose ripe e praH mozu.
o escasso relevo dos heróis épicos, pouco aprofundados psicologica-
Vaghi boschettt di soavi allorf, mente, corroboram a inalterabilidade do narrador, que dirige a vista de
Di palme e d'amentssime mortelle,
Cedrl et aranct ch'aveam. frutti e ftort preferência para o exterior, passando por cima dos conflitos interiores,
Contesti in varie forme e tutte belle, que percorrem uma evolução até açambarcar completamente o rom~ce.
Facean riparo ai fervidi calorf Neste sentido Tasso é precursor do romance psicológico, pois seus guer-
De' giorni estivi con Zor spesse ombrelle
reiros amant~ e mulhere~ apaixonadas expressam a profundidade da
<Tradução literal: Cultivadas planfcies e delicadas colinas/ Claras vida intima nos turbilhões dos conflitos de amor.
águas, sombreadas margens e prados macios/ Lindos bosquetes de suaves
Ioureiros/ De palmeiras e de amenisslmu murtas/ Cidreiras e laran- Desenrolar progre_ssivg - A apresentação da variedade dos fa.t~
jeiras que tinham frutos e nores/ Entremeados em várias formas, todas obse~obedece necessariamente a um desenrolar I>rogr_essivo e m_i!·
belas/ Abrigavam do férvldo calor/ Dos dias estivais com suas espessaa t_iculoso que prende a. atenção do leitor e desvia seu interesse do de-
frondes) . ~.
No início da Ilíada, Homero pretende narrar a ira de Aquiles, o mais
O olhar passeia demora.damente sobre os objetos, que constituem o valente dos guerreiros gregos. Este tema é intercalado da conquiste. de
sujeito (composto de 14 substantivos) do predicado "facean riparo ••• " Tróia, numa infinidade de episódios, batalhas e lutas pessoais, que se
A lnalterabilldade de ànlmo do narrador explica, em arte a au- desenrolam lentamente até o final, quando Aquiles derrota o líder troia-
sência do amor da temática épica. O relato daa peripécias do senti-
no, Heitor, não se concluindo, entretanto, sobre o destino da guerra.
mento induz a um envolvimento emocional, diverso da admiração rev~­
rente diante dos fatos magníficos, cuja majestade por si só impõe uma Na proposição da Eneida, Virgilio anuncia que vai cantar "as armas
distância de mesura. Precisamos também levar em conta que o amor, e 0 varão que, expulso pelo destino das praias de Tróia", se dirige para
para os antigos, ainda não ingressara no circulo dos sentimentos nobres a Itália. Entre a partida de Enéias e o final da viagem, desenrolam-se
e dignificantes. Helena foi o móvel da guerra de Tróia apenas na medida progressivamente suas provações, peregrinações por mares e por terras,
em que o seu rapto desencadeou as beligerantes suscetibilidades de pes- andanças no Inferno, visita à morada dos bem-aventurados no Elísio,
soas que não sabiam cruzar os braços ante o ultraje a seus prlnciplos. desafios de tempestades e guerras, perdas de entes queridos e toda sorte
O amor não conhecia outra finalidade que não fosse a necessidade de de desgraça.
procriar ou a satisfação sexual. Ovídio simplesmente o cataloga como
As mirabolantes aventuras do romance de cavalaria medieval tam-
enfermidade, só vindo a lograr privilégios de coisa sér1a após o estágio
bém se submetem a este tipo de desenvolvimento. Nas várias versões da
purüicatório da poesia trovadoresca medieval.

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Busca do Graal, Galaaz, o cavaleiro sem mácula, enfrenta perigos e ten- Stai er atribui à adi ão o rincipio da composição épica, que Justa.-
tações antes de encontrar o Vaso Sagrado. e em equena ou gr~de escala, textos independentes, sempre voltada.
O romance em geral conserva este traço estilístico, embora 0 inte- para a apre5entação.
resse pelo desenlace da ação seja de ordem diversa da epopéia, surpreen-
dendo-se já o traço dramático que impulsiona a trama para 0 final. conc!u.são - A essência . épica, a apresentação, relacionada à situa-
ção de confronto entre o sujeito e o objeto, é responsável pelos fenõme- .
Uma. vertente do romance moderno, que traduz o tempo interior da nos estilísticos abordados - o pretérito, a extensão, a grandiloqüência,
personagem, com a expressão do inconsciente no seu fluir caótico, é um.a a narrativa, a inalterabilidade, o desenrolar progressivo, a autonomia das
variação do desenrolar progressivo. Com a obliteração da ação e da tra-
ma, o mundo exterior é desprezado em favor da apresentação das visões partes.
Tal e qual acontece na·s composições liricas e dramáticas, não •há
emoções, intuições, através do .fluxo de consciência ou monólogo interior:
obra q,ue alcance integralmente a. essência. do gênero. Somente quando
.o Ulisses de James Joyce é a . manifestação do eu das personagens nas
os fenômenos estilísticos épicos têm primaZia sobre os demais, a obra
11uas mutações, durante vinte e quatro horas. Embora. as vivências inte-
nores ocorram simultaneamente, numa negação do tempo, apresentam- 11e arrola no ramo da Épica.
11e de certo modo em desenrolar progressivo. Neste tipo de romance, em
que se incluem os de Kafka, o interesse do leitor na.o se aguça pu.ra o
O gênero dramétlco
final, e sim para o desenvolvimento, que requer maior atenção, devido à
extrema complexidade.
A ess~ncta dram4tfca
Autonomia das parte~ - A autonomia das partes é traço estilístico A essência dramática 11e apresenta por meio de fenômenos estWsti..,
básico da poesia épica, decorrente do desenrolar progressivo da. ação. Ai, cos determinados que situam a obra no ramo do Drama se esses traços
ss partes são mais independentes que na obra lirica ou na dra~é.tica.
preponderam sobre os demais.
O poema lirico exige uma a.preensão simultânea e globalizante porque
A palavra drama oferece certa. ambigüidade que convém esclarecer.
cada elemento se inter-relaciona com os demais numa estrutura coesa: Além de se referir a.o ramo genérico, é empregada muitas vezes como
metro, ritmo, sonoridade, aspectos morfo-sintáticos, imagens, etc. A obra sinônimo de peça teatral, outras vezes, como resultante do hibridismo
dramática, com o precipitar da. açao para o final, aumenta. a tensão de composicional da tragédia e da comédia. A fim de estabelecer a dis-
tal sorte que cada parte se organiza em função <!_as demais. tinção, o 2·amo genérico pode também se denominar Dramática.
Não é licito afirmar que na obra épica se anule a visão de conjunto, Vimos que o narrador apresenta a ação progressivamente, através
mas ~ particularidad~~ª-9..JmP.Prtante{> que os episódios ganham de descrições e análises, com maior ou menor detalhe, estendendo-se
vida relativa.mente autônoma. O centro do Orlando Furio1Jo é o amor não longamente. Tal procedimento não é adequado à obra dramática, pres-
correspondido do paladino pela belfssima Angélica. :N'wnerosas duplas sionada. a uma economia de meios, devido .ao fator tempo, já que a du-
amorosas circulam no vasto poema, com suas estóri:J.s própria:; e inde- ração da peça se limita a algumas horas. A ação épica ou romanesca
pendentes que, não obstante, se enlaçam ent: e si em conseqüência dos se expande no espaço e no tempo, deslocando-se à vontade de um lugar
fatais desencontros e imprevisíveis encontros cas personagens, cujos con- para outro, do passado para o futuro; a dramática acontece no pal®, no
flitos se ligam tenuemente ao fundo comuri1 da luta medieval dos cris- momento da representação, coagida a uma. seleção de lances num ritmo
tã.oi! contra os pagãos, dentro da ótica rrna:;centista de Ariosto. cênico acelerado.

114 115
A profusão de personagens e incidentes do mundo épico dispersa o
tam 05 detalhes e os episódios numa encenação que durava em média
enfoque do narrador, que se demora em cada parte, importante em s1
três dias e, às vezes, quarenta. Verifica-se uma quebra da tensão dra-
mesma e praticamente alheia ao final. A viSão setorial épica cede à vi-
mática, para a entrada maciça da épica, pois na verdade, os aconteci-
são globalizante dramática, que se volta para o que vai acontecer e ins-
mentos são mais narrados que representados. Não é sem fundamento
tiga a açã-0 para o fitial. Esta preocupação com o desfecho demanda que
que Auerbach aproxima esse espetáculo da grande arte plástica das igre-
as partes se relacionem entre si e com o todo, numa interdependência'
jas medievais, com a visão panorâmica e sucessiva da realidade em
em que nada funciona isoladamente. Devido a ~te caráter basilar, fil!li~
ger denomina~º- a essência dramática. diversas cenas justapostas, como no teatro.
De forma idêntica aos casos anteriores, a essência dramática não se
efetua em sua pureza, mas há autores que timbram no efeito da tensão, Fenômenos estilfsttcos
entre os quais Racine, .cujas peças se desenrolam cerrada.mente, sem
Maneira àramáttca - F'icou claro que, na obra lfrica, a relação entre
manifestações supérfluas, a partir de um momento inicial conveniente-
mente urdido para o desfecho. 0
aut~ mundo i de envolvimento e, na épica, de confronto, num
aumento progressivo do diStanciamento, que reclama a presença do nar-
A fábula de sua tragédia Britlintco se resume no seguinte: o jovem
rador, na qualidade de mediador do relato.
imperador Nero, que por ardis de sua mãe Agripina usurpara o trono a
Na obra dramática, o autor desaparece atrás do mundo criado., ~
Britânico, irritado com sua presença, manda-lhe raptar a noiva, Júnia,
espécie de realidade independente, onde os acontecimentos se desenvol::
por quem se apaixona, embora não correspondido. Agripina, temendo
que o pretendido casamento de seu filho com Júnia abalasse seu poder vem autonomamente, sem a interferência do narra.do;:.
na corte, alia-se ao preceptor de Nero, Burrus, que quase o convence a . Assim se justifica. a necessidade do alco, como representação do
renunciar a seus intentos. Narciso o incita à traição e ao envenenamento mundo, diante do qual o espectador a5slste ao desenvolvlmE1to da aç~
de Britã.nico. Júnla refugia-se entre as vestais e Nero entrega-se ao por intermédio das personagens.
desespero. Para Aristóteles, o objeto da mfmesis recai sempre sobre as ações ~
A peça tem inicio quando todas as forças se acham concentradas personagens, mas quanto à manetrãda sua realização, destacam-se duas
para o desfecho. São brevemente evocados os antecedentes que levaram fundamentais, a. narrativa., que estudamos, e a dramática. que faz as
Nero ao trono e seu reinado de três anos, sob o controle de Burrus e próprias personagens aparecerem e agirem diante de nós. A ação se de-
Agripina. Sequioso de poder, não suporta mais o jugo e Britâ.nico serve senrola através de acontecimentos que revelam as personagens, situadas
de pretexto para a explosão do monstro latente. TUdo converge para o num determinado lugar e numa certa época,
sentimento de rivalidade, ódio e ganância de Nero, desde a primeira A ausência. da. mediação do narrador para a. apresentação dos fatos
cena, intensificando-se o conflito numa tensão avassaladora que arrasta decide a importância capital das personage~ que, na opinião de Décio
inevitavelmente para o assassínio de Britânico. de Almeida Prado, constituem praticamente a totalldade da obta, uma
Muitas vezes a ação se relaxa em episódios desnecessários à meta vez que tudo se passa. através delas.
final e em sacrifício da tensão. o exemplo mais elucidativo encontra-se Lembrando que drama em grego signific~ ~ compreendemos que
nos mistérios, isto é, espetáculos religiosos medievais, como o Mi3tério este é 0 ~lemento n'Ucleãr do teatro, mais relevante ai que na obra épica
de Adão. Esse tipo de teatro organizava uma ampla representação que ou romanesca. O teatro representa a ação, o romance e a epopéia narram
e.barca a história do homem, desde a queda de Adão até o Jufzo Final, a ação. o mesmo objeto ou ação pode ser c"cmcebido segundo a maneir_a
ou então a vida de um santo ou de Jesus, do nascimento à morte. Avul· narrativa ou a dramática, de acordo com a preferência. do autor: a pri-
meira apresenta progressivamente, a segunda representa tensa.mente.

1"16 117
c_oncentraç~ -A tensão dramática, dinamizada pelo alvo a alcan- que escassas referências. os teóricos do Renascimento e do Classicismo
çar, impele a ação e suprime todo exces8o. Deste aspecto provém a con- conceberam a doutrina das três unidades - ação, tempo, lugar - que
centração ou densidade, já defendida por Aristóteles, que atribuía ao se arregimentou entre os estatutos da administração criadora. Essa ati-
mais concentrado um prazer maior do que aquilo que vem diluído,. tude repercute a visão intelectualista da época, que entendia o ato
criador como .Produto do esforço lúcido da razão e sujeito a regulamen-
IPor se achar no :final o objetivo da trama e por existir cada partti
somente em função do todo, não se admite retardamento na ação iieni tação intransigente.
desperdícios de pormenores. A unidade de açfu>, que condensa num todo coeso a ação principal
e as acessórias, acrescenta-se a unidade de lugru,-, numa imposição de
. . . Convém restringir o tempo, economizar espaço e escolher concentrar toda a encenação às vezes numa única sala ou aposento,
um momento expressivo da longa história, um momentQPõüêo ~ a idade de teIDPo, que se restringe no máximo a vinte e quatro
antes do final, e daí desse ponto reduzir a extensao a uma
'!lllidade sensivelmente pall)~el, para que ao lrivés de pârtes; horas e no mínimo à daração real do espetáculo.
grupos coesos, ao mvêsae pa5sagens isoladas, o senfado glooal As regras das três unidades encontraram em Racine seu represen-
fique claro, e nada do que o espectador deva fixar se perca 11.
tante mais genuino. Essa rigidez, no entanto, não é apanágio dos auto-
Foi o que verificamos no Britltnico de Racine, que restringiu o tem- res de gênio, haja vista Shakespeare que. passa por cima das unidades
po do desenvolver da ação, escolhendo o momento expressivo do rapto de lugar e de tempo, modificando a cena e dilatando a ação durante
de Júnia para dar inicio à tragédia, quando os sentimentos de Nero semanas ou meses, sem com isto desmantelar a tensão dramática. As
estavam suficientemente maduros a ponto de evolverem rumo à decisão cenas de Romeu e Julieta se desenrolam em praças públiCM e ruas de
do assassinato de Britânico. Cada parte adensa o encaminhamento do Verona, em vários aposentos e no jardim da casa de Capuleto, na cela
desfecho. A intervenção de Agripina e Burrus atuam no sentido de inci- de Frei Lourenço, no cemitério e no túmulo da família de Julieta. O
tar a obsessão de domínio em Nero, ávido por sacudir a incômoda tutela. tempo se estende por alguns dias, entre o primeiro encontro de Romeu
A súbita paixão por Júnia precipitou a eclosão do monstro, durante tan- e Julieta, o banimento de Romeu, a combinação do casamento de Julieta
to tempo reprimido, que só aguardava um móvel para subir à tona. com Páris, sua simulada morte na data da cerimônia e a morte dos dois
amantes.
As unidades - O imperativo da concentração e do sentido global
Mas a unidade de ação se mantém densa na trama de todos os
mobilizado em direção ao desfecno, se conexiona à unidade de ação,
mais significativa na obra dramática que na épica. Sacrifica'-'se a uni- acontecimentos, em torno da desavença das familias Capuleto e Mon-
dade, caso se entrelacem muitas ações. Isto já era do conhecimento de tecchio, que obstou a união dos jovens.
Aristóteles, para quem a ação deve organizar-se una e inteira, c~ Diálogo - o diálogo é a ~a natural de as personagens desenvol.-
partes de tal modo entrosadas . que a simples supressão ou deslocamento . verem a ação, emancipadas do narrado!". O monólogo não .chega a con-
de uma dela.S basta para transtornar ou mutilar a totalidade. tradizer a situação dialógica,· por constituir recu:::so para a personagem
O teatro medieval carece da unidade de ação, emaranhando-se no expressar os próprios pensamentos, indi'spensáveis ao decurso da trama.
abarrotamento de episódios que dispersam a densidade dramática. o inesquecível monólogo em que Hamlet profere a frase proverbial "Ser
Na Poética, Aristóteles só formula explicitamente o principio da uni- ou não ser, eis a questão", além de ser a expressão da dúvida existen-
dade de ação; quanto às unidades de tempo e lugar, notam-se não mais cial do homem, se insere no dinamismo da peça, sombreada pelo sen-
timento de hesitação da personagem central, após o desmoronamento
dcs valores do seu mundo.
15 STAIGER, Emil. Op. ctt., p. 135.

118 119
Como o gênero dramático assenta na tensão dos · acontecimentos Espécte& do gbiero dram<1ttco
a ontados para o desfecho, a.s ersonagena se armam em fun ão do uJ
há de Vir. Anatol Rosenfeld assegura que, para se produzir uma aç~ - Tragédia - Para Aristóteles, a tragédia é a m!mesis de uma aç!Q
através do diálogo-, este deve contrapor as vontades das personagens, importante e completa,, num estilo agradável, executada por personagens
isto é, revelar atitudes contrárias.
que representam os homens melhores do que são, a fim de suscitar pie-
dade e terror e obter a catarsis dessas emoções.
O que se chama, em sentido estilístico de "dramático" re-
f~re-se. particularmente ao entrechoque de vontades e à' ten- Não pretendemos discutir o significado da catarsis. O efeito catárti-
sao ~nada P?r . um diálogo através do qual se externam con- co da tragédia foi alvo das mais acaloradas discussões, contando-se, des-
cepçoes e ObJet1vos contrários produzindo o conflito G. de o Renascimento até hoje, com mais de 150 posições acerca deste ver-
O entrechoque de vontades entre Nero e os que apóiam a causa de
dadeiro enigma_ Registra-se uma tendência marcante para interpretar
Britânico provoca o conflito que somente o diálogo pode transmitir. a catarsis no sentido de purificação e descarga de emoções.
No século XVII Boileau exalta o "doce terror" e a "encantadora pie-
A ação, provinda do choque de intesses opostos, antes de chegar ao
dade" da tragédia, que deve ser fecunda em nobres sentimentos.
desfecho, passa por momentos chamados_ nó, reconhecimento, perii)é{?~.
clima'? · - Muitas tragédias rastrearam a linha aristotélica. e retiraram seus
argumentos de situações históricas ou lendárias de maior ou menor re-
Entedemos por nó o conjunto de interesses que destrói a situac@
levo, com personagens de excelsos valores morais, selecionadas da aris-
inicial para encetar a ação. O nó de R,omeu e Julieta é o encontro dos
tocracia, classe considerada detentora das virtudes heróicas. Em Fedra,
jovens e seu súbito amor, que entra em conflito com a posição dissidente
das duas famílias. Racine recria, a partir de Eurípedes, a princesa vitima de uma paixão
culpada por seu enteado Hipólito. Não obstante esse amor incestuoso, o
A passagem da ignorância ao conhecimento denomina-se reconhect- próprio autor reconhece, no prefácio da tragédia, os elevados sentimen-
mento, que se realiza, por exemplo, quando Julieta vem informada de tos de Fedra, seguindo à risca o figur.ino das excelências nobiliárquicas:
que Romeu assassinara seu primo Tebaldo e fora banido de verona. nem culpada nem inocente, a princesa se toma vítima da cólera dos
Peripécia é a mudança da ação contrariamente ao que se esperava. deuses. Fedra possui todas as características que Aristótel~ aJ2QIWLpara
Romeu se haVia casado ocultamente com Julieta e agtiardava a ocas~ o herói trã&ko. capaz de despertar a compaixão e o terror.
de tomar o fato conhecido, quando provocado por Tebaldo, mata-o e é Quer obedeça ao receituário classicizante, quer enverede por· .um ca-
obrigado a deixar sua esposa. Em toda peça contam-se vários reconhe- minho mais livre, a tragédia contém sempre personagens que vivem uma
cimentos e peripécias. irreparável desgraça. staiger assevera que "quando se destrói a razão de
uma existência humana, quando uma causa final e única deixa de exis-
O clfmax aparece no ponto culminante do conflito, depois do qual tir, nasce o trágicq"- o~o é o esfacelamento do sentido último e
a trama deve terminar, como, por exemplo, o suicídio de Romeu, ao absoluto de uma existência a ex losão do "mundo" do homem.
supor Julieta morta, levando-a a idêntico fim.
Em Frei Luís de Sousa de Garrett, Madalena de Vilhena, na supo-
Todos esses momentos se expressam pelo diálogo, no dinamismo da sição de que seu marido havia morrido, casa-se com Manuel de Sousa
ação assestada sempre para o desenlace ou desfecho. Ccutinhd, tendo nascido desta união Maria. o regresso do primeiro ma-
rido provoca o extermínio da família porque a desonra destrói a lógica
6
de sua existência: Maria morre, Manuel e Madalena vão "amortalhar-
ROSENFELD, Anato!. Op. Cit., p, 23. se» nos hál';tos religiosos.

120
121
A personagem trágica, quando não se suicida, termina louca ou pros· • MoUêre explorou todos os ridículos humanos, acentuando seus tra-
trada sob os escombros do seu mundo. Fedra, depois de lutar desespera- ços de acordo com o procedimento adotado pela comédia, que exagera
damente contra sua paixão fatídica, não resiste à vergonha e se :Suic!da. a ;im de tirar partido do efeito cômico. Em O avarento, o dinheiro é a
Nero sofre um acesso de loucura a seguir ao assassinato de Briti :r:! co. paixão de Harpagon, a aspiração última de sua existência. No momento
porque perde Júnia, em quem projetou sua ânsia de poder. Madalena e em que 0 velho usurário descobre o furto de seu tesouro, alucinado, gri-
Manuel vão esconder-se, prostrados à beira da ruína de suas vidas. ta por socorro no auge do desespero. Moliere insiste nos excessos da per-
O sentim1mto trágico se estriba num fracasso que derruba o ideal sonagem, tornando a situação engraçada e não dolorosa:
supremo de um ser, como a virtude de Fedra, o poderio de Nero, a hon·
ra de Madalena e Manuel. E o amor de Romeu e Julieta. Ai de mim! ... Meu pobre dinheiro, meu querido di~heiro, ~eu
rande meu adorado amigo! ... Privaram-me de ti .... E visto
Comédia - Assim como o trágico não se encontra só na tragédia, ~ue fo~te arrebatado, perdi minha razão de ser, meu consolo,
minha alegria! . . . Tudo acabou para mim 1. . . Nada !Ilais tenho
mas em qualquer obra que mostre o naufrágio de um homem, 0 cômico a fazer no mundo! ... Longe de ti é impossivel continuar a vi-
também está presente em toda a literatura, desde a epopéia de Homero ver!. .. Não posso mais 1.
aos romances de Cervantes, Balzac ou Machado de Assis. o trágico e 0 o roubo produz a explosão do mundo de Harpagon, que seria trágica.
cômico correspondem a necessidades vitais, os dois pólos entre os quais se 0 objeto da angústia fosse outro. Mas o dinheiro não tem acesso ao
o homem oscila', quando se eleva acima de si mesmo ou rasteja nas pró- território do sublime e circula sob a jurisdição dos valores escorregadios.
prias limitações.
E se por ventura se torna vicio, como em Harpagon, pode levar o homem
Apesar de o côm1co invadir muitas áreas literárias, se apresenta em a derrapar ou se esborrachar, nunca a soçobrar com a dignidade trágica.
sua maior pureza na comédia, concebida especificamente para realçar Tem razão 0 velho Aristóteles ao afirmar que a comédia executa a
seus traços.
mimesis dos maus costumes, pois se compraz nos defeitos mais ridiculos.
Aristóteles conclui que a tragédia mostra os homens melhore·s do ·Esses defeitos se afiguram como sustentáculo do mundo das persona-
que são e a comédia os representa piores, inferiores, fixando o ridículo gens, elementos em torno dos quais giram suas vidas. Por serem defeitos,
gue se encontra num defeito: Compreende-se por que ainda m século são mesquinhos e amesquinham o horizonte do homem. O autor cômico
XVII, época em que a aristocracia goza de prestígio, as per se. nagens os apreende e carrega os seus traços para levar o ridículo à zombaria.
principais da tragédia pertenciam às classes mais altas e as da comédia No Auto da compadecida, Ariano suassuna sublinha caricaturalmen-
venham da burguesia e do povo. As virtudes heróicas, que na tragédia te através das cascatas de astúcias de João Grilo, os preconceitos do
provocam admiração, se transformam na comédia em imperfeições e ca- P~dre, cheio de respeito humano, a hipocrisia melada do sacristão, a.
coetes, alvo de zombaria.
aquiescência passiva do padeiro, a leviandade oca de sua mulher ou o
Na tragédia .e na comédia o olhar recai sobre algo que constitui o enfatuamento medíocre do Bispo.
centro de interesses do homem, o objeto que dá sentido à aventura exis- Na tragédia acompanhamos o aniquilamento do herói que se alçara
tencial. A ~a ridiculariza esse objetivo e, em vez de valoriz;-;~ a altissimos vôos. o homem se investe de grandeza sublime porque as-
derrocada, nega-nie importância e escarnece-lhes a razão de ser. A es- pirou a uma dignidade coerente e profunda.. Na comédia, a pretendida
tupefação trágica cede ao motejo diante do disparate. Naturalmente o dignidade, se não for autêntica, mas superficial, vem desmistificada para
objetivo em que se empenha o herói trágico se inclui _n a esfera das gran- gáudio da platéia.
dezas do homem; o que atormenta a personagem cômica, deita raízes
no terreno das baixezas.
T MOLIERE. o avarento. Rio, Ed. de Ouro, 1965. p. 184.

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cessiveis à representação lógica, passaram a interessar os autores teatrais
A mistura das especzes do género dramático - A pureza dos gêne-.
que, sem conseguirem transpor tais vivências para o plano do diálogo,
ros e a delimitação de suas espécies, ponto de honra da estética clássica,
já ::ofrera um acinte com a tragicomédia barroca. criam nova linguagem para as expressar.

Victor Hugo, no seu prnvocactor Prefácio de Cromwell, se arroja con- Eugene O'Neill em Estranho Interlúdio acrescenta ao diálogo real os
tra as regras que estandartizavam a criação poética, ferindo de morte pensamentos mais recônditos do eu profundo das personagens, supe~­
a famigerada pureza dos gêneros, em desacordo com os ideais de liber- pondo os dois planos. As dimensões do passado e do presente, da re~ll­
dade dos românticos. Promove a dissolução das fronteiras e prega um dade e da alucinação se permeiam, sem demarcações nítidas, em Vestido
hibridismo que amalgama o mais elevado sublime da tragédia ao mais de Noiva de Nelson Rodrigues.
imprevisível grotesco a que possa chegar a comédia. o tempo linear do teatro tradicional vem substituído pela simulta-
Para Victor Hugo, a sumidade poética do seu tempo é o drama, "que neidade das vivências do tempo interior. As formas oníricas do incons-
funde num mesmo sopro o grotesco e o sublime, o terrível e a bufonaria, ciente, desconexas logicamente, anulam as leis do tempo e do espaço, em
a tragédia e a comédia". oposição à tensão da essência dramática; eliminam a situação dialógica
que segurava o conflito e a ação d,o teatro tradicional. Atualmente vários
Sem tanto estardalhaço, mas numa oposição sistemática e conscien-
autores relegaram a segundo plano as situações passíveis de serem vi-
te à tragédia clássica, o chamado drama burguês do século XVIII des-
vidas pelo diálogo, em concessão à prioridade das vivências inconscien-
monta os marcos divisórios, numa posição daqui e dali ao mesmo tempo.
tes e não comunicáveis.
Hauser declara que a mera eYJstência de um drama elevado cujos pro-
tagonistas eram os burgueses, expressava a pretensão dessa classe em As visões do eu profundo configuram a. mesma atmosfera irreal do
ser levada a sério, como a nobreza. Com isso dá-se uma relativização e romance contemporâneo, também sob o impacto da descoberta das zo-
depreciação das virtudes heróicas aristocráticas, passando o burguês, que nas subterrâneas do homem, que invadiram a. literatura e abriram no-
antes só aparecia em cena com finalidade cômica, a assumir trágicos vos temas para o enigma do ser.
destinos.
A influência das regras que nortearam as doutrinas clássicM, decor-
O melodrama também já se antecipara aos românticos, em idêntica rentes das interpretações de AriStóteles, provinha em parte da necessi-
disposição anticlassicista, numa mescla de patético e brutal, em lingua- dade de criar a verossimilhança, largamente discutida na Poética. A ~
gem ora trivial, ora empolada. rossimilhançQ. produz no. espectador a ilusão de viver a ação cênica. Uma
das car~cterfsticas da dramaturgia moderna, a ruptura da ilusão, não
Essas investidas contra a dramaturgia preparam lentamente o ca-
deixa 0 espectador se identificar com o que se passa no palco, induzindo-o_
minho para a dissolução da estrutura rigorosa que susteve as produções
a se diStanciar da cena para observar e julgar, sem os envolvimentos
teatrais até o século passado. A ação que, durante milênios, forneceu o
emocionais de outrora.
suporte do drama, atinge agora, muitas vezes, os extremos da inação na
qual os antigos heróis se deseroízam em anti-heróis. Em Seis P ersonagens à Procura de Autor, Pirandello dissipa a. ilusão,
com uma ação que é em parte a busca de ação pelas personagens que
Da atitude dos protagonistas decorria o conflito, num encadeamento
invadem a cena, declinando suas razões para poderem representar.
de acontecimentos entrelaçados por uma lógica de causa e efeito. o tea-
Brecht, no intuito de impedir os atores de se transformarem nas perso-
tro clássico devassa o íntimo das personagens, ancorado no porto segu-
nagens, faz com que eles saiam do papel, rompendo o espaço e o tempo
ro da rsicologia racional. Essa garantia de penetração começa a vacilar
ilusório da peça, como no Pequeno Organon, para conversarem entre si
a partir das descobertas psicanalíticas de Freud, que fazem aflorar o
ou se dirigirem ao público. No Auto da Compadecida, de Ariano Suassu-
mundo dei inconsciente. As profundezas das regiões abissais do eu, ina-

124 125
na, depois que as personagens morrem, assassinadas pelo Cangaceiro, o Anatol Rosenfeld empreendeu um arguto estudo sobre o traços épi-
Palhaço explica ao público que a cena vai mudar e manda os defuntos cos no teatro, em que a mediação do n~rador se faz sentir cada vez
se levantarem a fim de ajudarem a modificação do palco. Quando tudo mais intencionalmente.
está preparado para o julgamento, no outro mundo, Palhaço quer saber Ora, 0 palco não é privilégio do Drama, haja vista a encenação de
dos atores quais os que estavam mortos e ordena: "Deitem-se todos e composições liricas. Estaria a Épica caminhando para o palco? O teatro,
morram". as tendências épicas, não estaria fadado a se tomar mais épico
Cada época possui seu estilo, expresso em todas as produções cultu- com Su tar
do que dramático? ;a: cedo para. responder. Talvez até para pergun ·
rais e artísticas, que evoluem, acompe.nllando o calendário histórico. To-
do texto literário está indissoluvelmente preso ao contexto histórico e
social do tempo e se conjuga às demais manifestações culturais, numa
Epilogo
ge.ma de características afins.
A evolução industrial, tecnológica. e cientifica de nosso século ver-
Várias tentativas foram feitas no intento de interpretar a tríplice
tiginoso alterou o comportamento do homem, que vive hoje sob o signo
divisão dos gêneros como logicamente necessária, transpondo as fron-
da mundança, num repúdio ostensivo a tudo que traz a chancela do pas-
udo tradicionalista e decrépito, estranho aos recentes valores instaurados. teiras do território literário.
11: natural que os gêneros literários sofram o infiuxo da voragem re- Victor Hugo aproxima 0 desenvolvimento da espéeie humana ao da
formadora e busquem formas inéditaa, que se adptem à nova visão de poesia, dividido em três periodos, na. seguinte correlação:
mundo. Assim se explica a urgência d.e instaurar modelos literários ori-
ginais na Lírica, na ltpica e no Drama. idade fabulosa _ > lirice. --> juventude
O homem de nossos dias é um ser perdido num universo sem fron- --> épica _ > virilidade
antiga.
teira$, à procura de s1 mesmo, à espera das respostas para as novas per- moderna - > dramâ.t1ce. - > velhice
guntas oriunda de sua inquietação de sempre.
Eduardo Portell~ define com muita propriedade a literatura como Segundo Victor Hugo, a sociedade humana. começa a cantar o que
"uma forma de manifestação totalizadora do real, de tudo aqUilo _que ~"· nbe. (lirico)depois canta 0 que faz (épico) e por fim pinta o que
·Estruturando-se o real nas relações globais do homem com as coisil.S, :nsa. (dramá.~ico), devendo tudo na vida passar por essas três !ases,
concluimos que todas as inovações da literatura são as tentativas do es- sem exclusividade de nenhuma delas:
critor para. revelar a nossa realidade palpitante e às vezes apocallptica.
n 11
a tout dans tout; seulement il eztste dans chaque choseY.n:
élément générateur auquel se subordonnent tous les autres, et qui
Conclus4o impose à l'ensemble son caractere propre 8 •

A tensão que constitui a essência dramâtica, caracterizada por fe- (Tradução: Há. tudo em tudo; apenas existe em cada coisa um
elemento gerador ao qual se subordinam todos os outros e que
nômenos estilísticos apropriados, não parece corresponder às realizaçõe8
impõe ao conjunto seu caráter próprio)·
do teatro moderno. A recordação e a apresentação, mesmo nas mais
arrojadas composições, persistem essencialmente na Lirice. e na ltpica.
Terá o Drama chegado a uma encruzilhada de sua trajetória? s HUGO, Victor. Cromwell. Paris, Nelson, Editeurs [a. d.], p. 30.

127
126


·b'lidades fundamentais da existência huma:
roático representam as possi 1 . . .
Numa outra pe:·spcctiva, mas dentro da concepção unificadora, Ja- correspondendo aos três níveis descritos por Cass1rer.
kobson dete~mina a co:-resi:ondência entre as estruturas lingüísticas e os ~. A evolução do homem primitivo ao moderno registra o percurso do
gêneros literá7ios: ç1· gurativo e ao lógico, que por sua vez se correla-
estágio sensorial ao .i
Lírica - 1~ pessoa (função emotiva da linguagem): o eu fala cionam às gradações sílaba, palavra e frase, ~n1ância, juventude - e m~-
. d presente e futuro. Apesar de vistas em sucessao, nao
J;;pica - 3ª pessoa (função referencial> : fala-se de algo tundade, passa o, - · l damente· só
Dramática - 2~ pessoa (função conatival: fala-se a alguém se admite considerar nenhum nível dessas gradaçoes iso a ,
na sua unidade indissolúvel. .
Da mesma forma que os gêneros, uma função lingüística não se Os planos do sensorial, do intuitivo e do lógico conv~ve~ no h.omem
arroga privilégios de exclusividade, só de predomínio sobre as demais. sílaba e a palavra na frase. Ident1co fenomeno
da mesma forma que a , t do
Na composição literária pontifica a função poética da linguagem, entre- se observa nas dimensões temporais: a criança contem a s~men e t
tanto, em consonância com o relevo das outras três funções, temos a • • ç• ·a Não é poss1vel cor ar
j ov
em 0 velho prende suas ra1zes na m.ianc1 . .
determinação dos gêneros. ' t s e um depois por ser
uma fatia do tempo e fragmentá-la de um an e '
estrutu ra unitária em que coexistem passado, pr_ esente e
Verificamos que Staiger se preocupa sobretudo com a essência dos . o tempo uma ól d um
gêneros. Além de "conceitos fundamentais da poética", a que·s tão envol- futuro. Tal raciocínio corrobora a impraticabili~ade ~o monop 10 e -
obra, mas sua existência s1multanea com a prepon
ve a problemática do Homem: gênero em qualquer
<A Poética) se anuncia como uma contribuição da Ciência da derância de um deles.
Literatura para o problema da Antropologia Geral, quer dizer, Em resumo do exposto acima, apresentamos o seguinte quadro:
ela esforça-se para provar como a essência do homem ap!!.rece
nos domínios da criação poética 9. épico dramático
lirico
<apresentação) <tensão)
<recordação)
Cassirer, ao estudar a evolução àa linguagem, estabelece o seu de-
senvolvimento em três níveis: sensorial, figurativo e lógico. A partir do
principio de que a consciência lingüística, originariamente, se vincula à 1
V
l
V
l
V
consciência mítica, a fase sensorial assinala a criação dos deu.ses mo- figurativo lógico
sensorial
mentâneos, quando a emissão oral não possui designação fixa. Na etapa
figurativa, a palavra. no seu sentido mitice, se concebe na qualidade de
ser substancial. Isto quer dizer que a palavra ainda não se arvora à
V
\ l
V
\
V
frase
condição de signo de um objeto, mas é o. próprio objeto, numa identifi- silaba palavra
cação concreta. Somente após um lentíssimo caminhar do concreto para
o abstrato, o homem atinge o grau de elaboração do signo lingüístico
que, ao invés de unir o nome a uma coisa, remete-o à sua representação \
V
l
V V
maturidade
mental; nesta última fase, a lógica, a palavra se destaca do objeto, infância juventude
abstratiza.-se e se torna conceito, veiculo do pensamento.
Ora, as esferas do sensorial ou emotivo, do figurativo ou intuitivo, \

-----
do lógico ou conceitua! constituem a realidade do ser humano, a sua V V V
própria essência. Para Sta!ger, os conceitos do lirlco, do épico e do d~-

» STAIGER, Emil. Op. ctt., p. 197.


passado
'
presente
~
). EsstNca J>O HOlllE?4
futuro
t/
129
128
A recordação lírica, como diz Staiger, "é uma volta ao seio matemo
no sentido de que tudo ressurge nãqileie estado pretérito do qual _ Ap.álise da narrativa
a1,.,.,n~" p 1st ... emer
~ . or o se associa ao passado, à. infância, ao grito emotivo silá-
bico do estágio sensorial. A apresentação épica toma presente, defrol!J&
de nós. a ocorrência relatada; 8.§. coisas desfilam ante os olhos do nar-·
rador, revestido do encantamento surpreso da ~entude, em_gue a Este capitulo pretende ser uma introdução didática às principais
palavra assume sua força na descrição do ~do descoberto. A te~ teorias sobre a narrativa, inadvertidamente rotuladas sob o nome co-
dramática proleta oara o fuj;uro o acontecimento,_ numa visão m~ mum de Estruturalismo. o que se denomina atualmente "Análise estru-
que conexiona logicamente os fatos, como as pálavras na frase.
tural da narrativa" é uma pesquisa dispersa, conduzida individualmente,
Assim, a problemática dos gêneros, longe de s; restringir ~os âmbi- com acusadas divergências (o que, longe de constituir um defeito, pos-
tos da História e da Critica literárias, invade as áreas histórica social sibilita um diálogo construtivo), ainda em pleno processamento.
antropológica, llngülstica, filosófica. Os vários ramos do conhe;imento' •
diversificados nos seus setores específicos, dão-se, todavia, as mãos rum~ Se investigarmos suas origens longinquas vamos encontrar a Poética
ao tesouro escondido no fundo dos tempos, num empenho com~ em e a Retórica aristotélicas e sua posteridade clássico-moderna; mais re-
decifrar o enigma do Homem: a sua Verdade. centemente e de maneira direta, a influência dos Formalistas russos,
que a tradução de T. Todorov contribuiu para expandir. Esse grupo he-
terogêneo (poetas, folcloristas, lingüistas, críticos literários) trabalhou,
em torno dos anos 1920-25, especificamente sobre a forma, esquecendo
temporariamente o conteúdo e, de certo modo, reduzindo a literatura ao
seu ser lingüístico. Disperso o grupo, seu espirita reencontrou-se no
Circulo de Praga, essencialmente nos trabalhos de R. Jakobson.
~ evidente que a "Análise da narrativa" recebeu forte impulso do
recente e extraordinário desenvolvimento da Lingüística. Não lhe faltou
também o apoio das pesquisas de Jakobson sobre a mensagem "poética"
<no sentido forte e etimológico da palavra, que ele contribuiu para re-
lançar), nem dos trabalhos do antropólogo Lévi-Strauss sobre os mitos,
abordando, sob outra perspectiva, problemas análogos aos estuda.dos por
Propp.
Em suma, podemos dizer que o "Estruturalismo" constituiu-se como
uma atitude de critica literária quando a mensagem foi buscada no
código, depreendida da análise das estruturas imanentes ao texto e não
mais como expressão de um referente externo.
Que este capitulo de mera introdução a algumas pesquisas funda-
mentais de um certo tipo de critica literária atual desperte o interesse
do estudioso e o leve ao texto do próprio pesquisador.

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