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LITERATURA - Profª.

ISABEL VEGA - AULA 5

MACHADO DE ASSIS e o REALISMO

TEXTO 1: Machado de Assis e a consolidação do sistema literário

Machado de Assis era dotado de raro discernimento literário e adquiriu por esforço próprio uma forte
cultura intelectual, baseada nos clássicos mas aberta aos filósofos e escritores contemporâneos.
Apesar da condição social modesta, impôs-se aos grupos dominantes pela originalidade da obra e pelo
vigor da personalidade discreta, chegando a um reconhecimento público que raros escritores conseguiram no
Brasil. Na velhice, era considerado a figura mais importante das letras e objeto de uma veneração quase sem
exceções.
Sua obra é variada e tem a característica das produções eminentes: satisfaz tanto aos requintados
quanto aos simples. Ela tem, sobretudo, a possibilidade de ser reinterpretada à medida que o tempo passa,
porque, tendo uma dimensão profunda de universalidade, funciona como se se dirigisse a cada época que
surge. Ele foi excelente jornalista, razoável poeta e comediógrafo de certo interesse. Mas foi sobretudo
ficcionista, autor de nove romances e mais de uma centena de contos, quase sempre de alta qualidade. A
melhor fase de sua produção começou na idade madura, quando atingiu os quarenta anos, mas desde o
começo já eram pessoais o seu estilo e visão do mundo.
Além de certas coletâneas de contos, como Papéis Avulsos (1882), Histórias sem Data (1884), Várias
Histórias (1896), sobressaem na sua obra os seguintes romances: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881),
Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904), Memorial de Aires (1908).
Um dos traços salientes da narrativa de Machado de Assis é o afastamento das modas literárias, que
lhe permitiu grande liberdade no tratamento da matéria. Ele é um continuador sui generis de Joaquim Manuel
de Macedo e de José de Alencar, quanto ao tipo de sociedade incorporada à ficção. Mas se afasta deles na
qualidade do estilo e na singularidade do olhar. A sua linguagem não tem a banalidade de um, nem a ênfase
do outro: tem a simplicidade densa que é produto extremo do requinte e a fascinante clareza que encobre
significados complexos, de difícil avaliação.
Em face da sua obra, toda conclusão do leitor é um risco, porque nela o senso do mistério que está no
fundo da conduta se traduz por um desencanto aparentemente desapaixonado, mas que abre a porta para os
sentidos alternativos e transforma toda noção em ambiguidade.
Portanto, há nele um elemento fugidio, que provoca perplexidade, e é uma das suas forças. Ele parece,
por exemplo, contemplar com ceticismo a vida do seu tempo, e de fato assim é. No entanto, nos refolhos da
frase, no subentendido das cenas, no esforço aparentemente casual da descrição, está escondido o interesse
lúcido pela realidade social e o sentimento das suas contradições. Do mesmo modo, consegue despistar o leitor
por meio de uma frieza irônica que pode significar desapreço pelo homem, mas pode ser também um método
de afastamento, recobrindo a compreensão piedosa. Por causa dessa capacidade de fundir frieza e paixão,
serenidade e revolta, elegância e violência, a sua escrita é um prodígio de elaboração, que, tendo-se despojado
dos acessórios, é sempre moderna, apesar de raros traços de preciosismo. Graças à riqueza do seu texto,
Machado de Assis é o primeiro narrador brasileiro que suporta uma leitura filosófica. Além disso, seus temas
foram incrivelmente precursores, obrigando a crítica atual, para explicá-lo, a evocar autores que vieram depois,
como Pirandello, Proust, Kafka, sem falar de seu contemporâneo Dostoievski.
Note-se que talvez ele seja o primeiro escritor que teve noção exata do processo literário brasileiro, em
alguns artigos de rara inteligência crítica. O ensaio “Instinto de Nacionalidade” (1873) faz um balanço das
tendências nacionalistas, sobretudo o indianismo, mostrando que a absorção nos temas locais foi um momento
a ser superado, e que a verdadeira literatura depende, não do registro de aspectos exteriores e modismos
sociais, mas da formação de um “sentimento íntimo” que, embora fazendo do escritor um homem “do seu tempo
e do seu país”, assegure a sua universalidade. Há nesse ensaio uma espécie de reivindicação tácita do direito
à expressão liberada das injunções contingentes do nacionalismo estético, o que faz dele, como de outros
escritos de Machado de Assis, um certificado de maioridade da literatura brasileira através da consciência
crítica.
(CANDIDO, Antonio. Iniciação à Literatura Brasileira.)
TEXTO 2: O Realismo

O Realismo tem origem francesa. Historicamente foi o pintor Gustave Courbet quem usou pela primeira
vez o termo, em 1855, ao intitular uma exposição de quarenta telas realizada em Paris de "O realismo".
Insurgindo-se contra a pintura imaginativa dos românticos, Courbet explicou que pretendia fazer uma "arte viva",
que "retratasse os costumes, ideias e aspectos de sua época". O pintor objetivava a sinceridade na Arte, em
oposição à liberdade artística do Romantismo. Igual posição foi assumida por alguns escritores, que viam na
Arte uma função: a de educar e retratar a sociedade.
O cientificismo preponderante no pensamento, aliado à industrialização progressiva e à vitória do
capitalismo, cria o ambiente onde se deflagra o combate que se estenderá por muito tempo contra o
sentimentalismo romântico, as obras centradas no "eu" e a linguagem convencional. Sendo a ciência
considerada o único meio legítimo de conhecimento da realidade, não há, nesse momento, lugar para a
emoção. A perspectiva é de que a literatura seja "científica", isto é, um meio de conhecimento da realidade.
Espera-se que a obra literária seja um espelho fiel do universo.
O pensamento positivista, elaborado por Augusto Comte, estabelecia que o saber baseado nas leis
científicas era superior ao saber teológico ou metafísico. O Realismo-Naturalismo radicalizou a questão de o
homem ser um produto de leis físicas e sociais. A arte realista vê o homem como produto do meio ambiente
em que vive: a raça, o meio e o momento histórico, além da cultura a que está sujeito — a educação, o ambiente.
Por força da corrente científica liderada por Charles Darwin — o evolucionismo —, a arte realista-
naturalista postula também que a seleção natural do homem na sociedade é o veículo de transformação das
espécies. Vence sempre o mais forte; o fraco inevitavelmente acaba sendo esmagado.
(Adaptado de CAMPEDELLI, Samira Yousseff. Literatura. v.2. São Paulo: Saraiva, 1999.)

TEXTO 3: O estilo machadiano

Nas obras dos grandes escritores é mais visível a polivalência do verbo literário. Elas são grandes
porque são extremamente ricas de significado, permitindo que cada grupo e cada época encontrem as suas
obsessões e as suas necessidades de expressão. Por isso, as sucessivas gerações de leitores e críticos
brasileiros foram encontrando níveis diferentes em Machado de Assis, estimando-o por motivos diversos e
vendo nele um grande escritor devido a qualidades por vezes contraditórias. (...)
Logo que ele chegou à maturidade, pela altura dos quarenta anos, talvez o que primeiro tenha chamado
a atenção foram a sua ironia e o seu estilo, concebido como boa linguagem. Um dependia do outro, está claro,
e a palavra que melhor os reúne para a crítica do tempo talvez seja finura. Ironia fina, estilo refinado, evocando
as noções de ponta aguda e penetrante, de delicadeza e força juntamente. A isto se associava uma ideia geral
de urbanidade amena, de discrição e reserva. Num momento em que os naturalistas atiravam ao público
assustado a descrição minuciosa da vida fisiológica, ele timbrava nos subentendidos, nas alusões, nos
eufemismos, escrevendo contos e romances que não chocavam as exigências da moral familiar. (...)
No fim de sua vida, os leitores sublinhavam também o pessimismo, o grande desencanto que emana
das suas histórias. O de que não há dúvida é que essas primeiras gerações encontraram nele uma filosofia
bastante ácida para dar impressão de ousadia, mas expressa de um modo elegante e comedido, que
tranquilizava e fazia da sua leitura uma experiência agradável e sem maiores consequências. Poder-se-ia dizer
que ele lisonjeava o público mediano, inclusive os críticos, dando-lhes o sentimento de que eram inteligentes a
preço módico. O seu gosto pelas sentenças morais, herdado dos franceses dos séculos clássicos e da leitura
da Bíblia, levava-o a compor fórmulas lapidares, que se destacavam do contexto e corriam o seu destino próprio,
difundindo uma ideia algo fácil de sabedoria. (...)
O que primeiro chama a atenção do crítico na ficção de Machado de Assis é a despreocupação com
as modas dominantes e o aparente arcaísmo da técnica. Num momento em que Flaubert sistematizara a teoria
do "romance que narra a si próprio", apagando o narrador atrás da objetividade da narrativa; num momento em
que Zola preconizava o inventário maciço da realidade, observada nos menores detalhes, ele cultivou
livremente o elíptico, o incompleto, o fragmentário, intervindo na narrativa com bisbilhotice saborosa, lembrando
ao leitor que atrás dela estava a sua voz convencional. Era uma forma de manter, na segunda metade do século
XIX, o tom caprichoso de Sterne, que ele prezava; de efetuar os seus saltos temporais e brincar com o leitor.
Era também um eco do conte philosophique, à maneira de Voltaire, e era sobretudo o seu modo próprio de
deixar as coisas meio no ar, inclusive criando certas perplexidades não resolvidas.
Curiosamente, este arcaísmo parece bruscamente moderno, depois das tendências de vanguarda do
nosso século, que também procuram sugerir o todo pelo fragmento, a estrutura pela elipse, a emoção pela
ironia e a grandeza pela banalidade. Muitos dos seus contos e alguns dos seus romances parecem abertos,
sem conclusão necessária, ou permitindo uma dupla leitura, como ocorre entre os nossos contemporâneos. E
o mais picante é o estilo guindado e algo precioso com que trabalha e que se de um lado pode parecer
academismo, de outro sem dúvida parece uma forma sutil de negaceio, como se o narrador estivesse rindo um
pouco do leitor. Estilo que mantém uma espécie de imparcialidade, que é a marca pessoal de Machado, fazendo
parecer duplamente intensos os casos estranhos que apresenta com moderação despreocupada. Não é nos
apaixonados naturalistas do seu tempo, teóricos da objetividade, que encontramos o distanciamento estético
que reforça a vibração da realidade, mas sim na sua técnica de espectador.
A sua técnica consiste essencialmente em sugerir as coisas mais tremendas da maneira mais cândida
(como os ironistas do século XVIII); ou em estabelecer um contraste entre a normalidade social dos fatos e a
sua anormalidade essencial; ou em sugerir, sob aparência do contrário, que o ato excepcional é normal, e
anormal seria o ato corriqueiro. Aí está o motivo da sua modernidade, apesar do seu arcaísmo de superfície.
(CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis.In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 2004.)

TEXTO 4: Crônica publicada no jornal Gazeta de Notícias, em 19 de maio de 1888, por M. de Assis.

Bons dias!

Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post factum, depois do gato morto, ou como melhor
nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário for, que toda a história desta lei de 13 de maio
estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote
que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil,
perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.
Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas
cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto
simbólico.
No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me eu com a taça de
champanha e declarei que acompanhando as ideias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a
liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia acompanhar as mesmas idéias e
imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens não podiam roubar
sem pecado.
Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos
meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça, e pediu à ilustre assembleia que
correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro
discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas
de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o
meu retrato, e suponho que a óleo.
No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:
— Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um
ordenado, um ordenado que...
— Oh! meu senhô! fico.
— ...Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste
imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha,
és mais alto quatro dedos...
— Artura não qué dizê nada, não, senhô...
— Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo.
Tu vales muito mais que uma galinha.
— Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.
Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem
as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular
o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados
naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí pra cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou
outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do diabo; coisas todas que ele recebe
humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.
O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que,
antes, muito antes da abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que
comoveu a toda a gente que dele teve notícia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar,
(simples suposições) é então professor de filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e
verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo:
és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a
justiça na terra, para satisfação do céu.

Boas noites.
(In: Obra completa. v. III, Rio de Janeiro: Aguilar, 1973.)

Texto 5: Crônica de 27 de dezembro de 1888 (Bons dias!)

Creiam que é por medo dele, que não escrevo aqui duas linhas em defesa de um defunto dos
últimos dias, o carrasco de Minas Gerais, pobre-diabo, que ninguém defendeu, e que uma carta de Ouro
Preto disse haver exercido o seu desprezível ofício desde 1835 até 1858.
Fiquei embatucado com o desprezível ofício do homem. Por que carga d’água há de
ser desprezível um ofício criado por lei? Foi a lei que decretou a pena de morte; e, desde Caim até hoje,
para matar alguém é preciso alguém que mate. A bela sociedade estabeleceu a pena de morte para o
assassino, em vez de uma razoável compensação pecuniária aos parentes do morto, como queria
Maomé. Para executar a pena não se há de ir buscar o escrivão, cujos dedos só se devem tingir no
sangue do tinteiro. Usamos empregar outro criminoso.
Disse então a bela sociedade ao carrasco de Minas, com aquela bonomia, que só possuem os
entes coletivos: — “Você fez já um bom ensaio matando sua mulher; agora assente a mão em outras
execuções e acabará fazendo obra perfeita. Não se importe com mesa e cama; dou-lhe tudo isso, e roupa
lavada: é um funcionário do Estado”.
Deus meu, não digo que o ofício seja dos mais honrosos; é muito inferior ao do meu engraxador
de botas, que por nenhum caso chega a matar as próprias pulgas; mas se o carrasco sai a matar um
homem, é porque o mandam. Se a comparação se não prestasse a interpretações sublimes, que estão
longe da minha alma, eu diria que ele (carrasco) é a última palavra do código. Não neguem isto, ao
menos, ao patife Januário, — ou Fortunato, como outros dizem.

(In: Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar,1987. Vol.3)

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