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Literatura Brasileira:

do Período Realista à
Literatura Contemporânea
Prof.ª Jackeline Maria Beber Possamai

2011
Copyright © UNIASSELVI 2011

Elaboração:
Prof.ª Jackeline Maria Beber Possamai

Revisão, Diagramação e Produção:


Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri


UNIASSELVI – Indaial.

869.9
P856l Possamai, Jackeline Maria Beber
Literatura brasileira: do período realista à literatura
contemporânea / Jackeline Maria Beber Possamai.

Indaial : UNIASSELVI, 2011.

272 p. : il.

Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7830-414-0

1. Literatura brasileira. Centro Universitário Leonardo da Vinci.


Ensino a Distância. II. Título.

Impresso por:
Apresentação
A Literatura Brasileira, em sua trajetória, acompanhou a evolução
histórica do país. Foi influenciada, no século XIX, pelo pensamento
positivista, determinista e darwinista. Também foi um período que
correspondeu à emancipação política do Brasil e, nesse sentido, os autores
estavam imbuídos de ideias que reforçavam o desejo de liberdade.

Tais acontecimentos históricos, sociais e culturais contribuíram para


a firmação de nossa literatura, desde o Realismo, movimento marcado pela
descrição do real e posteriormente por tendências que convergiram para
uma revolução na Arte, de modo geral.

Nessa perspectiva, este Livro Didático aborda essas questões. Assim,


na Unidade 1 examinaremos o contexto histórico oitocentista, os autores e
obras do Realismo, do Naturalismo e do Parnasianismo.

Na Unidade 2 enfatizaremos o pensamento simbolista e sua influência


nas artes do período em questão, bem como os movimentos paralelos e
vanguardistas.

Na Unidade 3, por sua vez, faremos menção à expressão literária


modernista pós-modernista e contemporânea, no que se refere aos escritores,
suas concepções estéticas e suas obras.

Pela grandeza literária e quantidade de escritos elaborados neste


período, enfatiza-se que não existe a possibilidade de, neste Livro, esgotarmos
o assunto, e por isso optamos por priorizar autores e textos, como maneira de
instigar o interesse para outras leituras.

Esperamos que a reflexão acerca da produção artística do período


realista ao contemporâneo favoreça a sua compreensão e sua interpretação,
bem como contribua para o seu crescimento pessoal e profissional.

Bons estudos!

Prof.ª Jackeline Maria Beber Possamai

III
NOTA

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto


para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há
novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é


o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um
formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova
diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também
contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente,


apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade
de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.
 
Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para
apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto
em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de


Desempenho de Estudantes – ENADE.
 
Bons estudos!

UNI

Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos


materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais
os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais
que possuem o código QR Code, que é um código
que permite que você acesse um conteúdo interativo
relacionado ao tema que você está estudando. Para
utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos
e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar
mais essa facilidade para aprimorar seus estudos!

IV
V
VI
Sumário
UNIDADE 1 – O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS...................... 1

TÓPICO 1 – O CONTEXTO HISTÓRICO E SOCIAL OITOCENTISTA...................................... 3


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 3
2 O CONTEXTO DO REALISMO......................................................................................................... 3
3 A LITERATURA OITOCENTISTA: UMA FOTOGRAFIA DO REAL........................................ 5
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 11
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 13

TÓPICO 2 – A LITERATURA OITOCENTISTA NO BRASIL........................................................ 15


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 15
2 UM ESPAÇO À CRÍTICA.................................................................................................................... 15
3 OS MOVIMENTOS QUE ASSINALAM A LITERATURA BRASILEIRA DO SÉCULO XIX... 19
4 A LITERATURA MACHADIANA E EUCLIDIANA...................................................................... 24
4.1 EUCLIDES DA CUNHA.................................................................................................................. 47
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 56
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 59

TÓPICO 3 – CONCEPÇÃO, OBRAS E AUTORES NATURALISTAS E PARNASIANOS........ 61


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 61
2 O NATURALISMO................................................................................................................................ 61
3 O PARNASIANISMO........................................................................................................................... 78
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................................ 90
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 92
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 94

UNIDADE 2 – SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS..................................................... 97

TÓPICO 1 – O SIMBOLISMO: UMA VISÃO SUBJETIVA DO MUNDO................................... 99


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 99
2 O PENSAMENTO SIMBOLISTA....................................................................................................... 99
3 O MOVIMENTO SIMBOLISTA NO BRASIL............................................................................... 103
LEITURA COMPLEMENTAR.............................................................................................................. 115
RESUMO DO TÓPICO 1...................................................................................................................... 116
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 117

TÓPICO 2 – AS TENDÊNCIAS DO FINAL DO SÉCULO XIX..................................................... 119


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 119
2 O PRÉ-MODERNISMO...................................................................................................................... 119
2.1 IMPRESSIONISMO: UM MOVIMENTO PARALELO AO SIMBOLISMO............................ 123
RESUMO DO TÓPICO 2...................................................................................................................... 128
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 129

VII
TÓPICO 3 – AS VANGUARDAS DA EUROPA E SUA INFLUÊNCIA NO BRASIL............... 131
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 131
2 AS VANGUARDAS............................................................................................................................. 131
3 A REVOLUÇÃO MODERNISTA..................................................................................................... 135
4 O MODERNISMO NA POESIA....................................................................................................... 146
RESUMO DO TÓPICO 3...................................................................................................................... 174
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 177

UNIDADE 3 – MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS............................................................. 181

TÓPICO 1– A FICÇÃO NO MODERNISMO................................................................................... 183


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 183
2 OS FICCIONISTAS............................................................................................................................. 183
3 OUTROS REPRESENTANTES DA FICÇÃO MODERNISTA................................................... 193
LEITURA COMPLEMENTAR.............................................................................................................. 197
RESUMO DO TÓPICO 1...................................................................................................................... 199
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 201

TÓPICO 2 – A LITERATURA DE GUIMARÃES ROSA, GRACILIANO RAMOS E O


TEATRO MODERNO..................................................................................................... 203
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 203
2 O SERTÃO SOB O OLHAR DOS ARTISTAS: JOÃO GUIMARÃES ROSA E
GRACILIANO RAMOS..................................................................................................................... 203
3 A DRAMATURGIA BRASILEIRA................................................................................................... 218
LEITURA COMPLEMENTAR.............................................................................................................. 223
RESUMO DO TÓPICO 2...................................................................................................................... 225
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 227

TÓPICO 3 – A FICÇÃO DE TRANSIÇÃO: MODERNISMO/PÓS-MODERNISMO.............. 229


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 229
2 A TENDÊNCIA PÓS-MODERNA ................................................................................................... 229
3 CLARICE LISPECTOR E OUTROS REPRESENTANTES........................................................... 238
4 REFLEXÕES SOBRE A METODOLOGIA...................................................................................... 257
LEITURA COMPLEMENTAR.............................................................................................................. 261
RESUMO DO TÓPICO 3...................................................................................................................... 264
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 266
REFERÊNCIAS........................................................................................................................................ 267

VIII
UNIDADE 1

O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E


MOVIMENTOS LITERÁRIOS

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir desta unidade, você será capaz de:

• identificar historicamente o Realismo, o Naturalismo e o Parnasianismo;

• reconhecer os autores destes períodos;

• refletir sobre as características e o estilo pertinentes a cada período;

• ler e analisar algumas obras do Realismo, Naturalismo, Parnasianismo.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em 3 (três) tópicos que o/a levarão à compreensão
das doutrinas e movimentos literários do século XIX. Em cada um dos tópicos
você encontrará atividades que o/a ajudarão a consolidar sua aprendizagem
acerca deste tema.

TÓPICO 1 – O CONTEXTO HISTÓRICO E SOCIAL OITOCENTISTA

TÓPICO 2 – A LITERATURA OITOCENTISTA NO BRASIL

TÓPICO 3 – CONCEPÇÃO, OBRAS E AUTORES NATURALISTAS


E PARNASIANOS

1
2
UNIDADE 1
TÓPICO 1

O CONTEXTO HISTÓRICO E SOCIAL


OITOCENTISTA

1 INTRODUÇÃO
O século XIX foi marcado por grandes mudanças sociais, especialmente
no que se refere aos avanços científicos, que deram nova conotação ao modo de
pensar o mundo, uma vez que as ciências naturais desenvolveram-se e os métodos
de experimentação e observação da realidade passaram a ser considerados
capazes de explicar racionalmente o mundo físico.

A cultura foi enriquecida pelas doutrinas de Darwin, Comte, Taine e


Marx. Foi com base nessas ideias que a literatura descreveu os fatos e as marcas
do meio e do momento em questão, ou seja, uma literatura realista, elaborada
a partir daquele contexto social, longe, portanto, dos excessos sentimentais do
romantismo. É com base nessas questões, que convidamos você, caro acadêmico,
a refletir sobre esses assuntos nos próximos tópicos.

2 O CONTEXTO DO REALISMO
O Realismo se manifestou entre os anos de 1850 e 1870 nos vários países
europeus, nos quais cresceu o interesse pela realidade da vida social nos seus
aspectos concretos e sem as arbitrárias idealizações que tinham caracterizado a
idade romântica. Todavia, as tensões e os conteúdos do realismo não se exauriram
nos anos indicados e, especialmente, as manifestações culturais e artísticas se
estenderam além desse período para o início do novo século, convivendo com o
pensamento e com os movimentos de outras correntes.

Coutinho (2004a) enfatiza que durante a segunda metade do século


XIX se expandiram três movimentos – o Realismo, o Naturalismo e o
Parnasianismo. O autor adotou o critério literário de divisão periódica dos
movimentos e estilos, desconsiderando a divisão meramente cronológica, por
ser arbitrária e sem sentido estético-literário. Desse modo, o teórico (2004a,
p. 4) deseja fixar “[...] os caracteres específicos dos movimentos, seu estilo, suas
ideias diretoras, suas concepções filosóficas, estéticas e poéticas, seus programas,
seus representantes mais típicos, suas obras”.

3
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

Em meados de 1870, o mundo passava por uma revolução nas ideias e na


vida que direcionava o homem ao interesse pelos bens materiais. Na filosofia, o
positivismo de Auguste Comte (1798-1857) se contrapunha ao idealismo romântico,
exaltando a realidade positiva da ciência e das suas leis. Nesse sentido, a verdade
era baseada na observação e na experimentação cientificamente comprovada, “[...]
repelindo qualquer explicação última, qualquer finalismo teológico ou metafísico,
e concentrando sobre o fatalismo científico”. (COUTINHO, 2004a, p. 7).

Também Hippolyte Taine (1828-1893) foi, no dizer de Coutinho (2004a,


p. 22), “o mais importante bastião na ruptura de águas”. Com sua doutrina
filosófico-determinista, concebeu a ideia de que o homem podia ser considerado
produto do ambiente, do momento histórico e da raça a que pertence. “É a noção
de onipotência do meio”, e que, no homem, “seu corpo tanto quanto seu espírito,
se desenvolvem e atuam debaixo de seu condicionamento total e inevitável”.
(COUTINHO, 2004a, p. 8).

A esse pensamento é acrescida a teoria da evolução de Charles Darwin


(1809-1882). A sua obra A origem das espécies (1859) despertou interesse e teve grande
fluxo não só na Ciência e Filosofia, mas também na Literatura. “Intelectualmente,
a elite apaixonou-se do darwinismo e da ideia da evolução”. (COUTINHO, 2004a,
p. 6). Dessa doutrina o escritor italiano Giovanni Verga extraiu o conceito da luta
pela sobrevivência.

A filosofia otimista que exaltava o progresso e substituía o ideal pelo real,


o espiritualismo pelo positivismo, do período em questão, ganhou afirmação
máxima e também favoreceu o progresso político. Neste último aspecto, a política
passa ao pragmatismo diplomático, perdendo a tensão generosa e espontânea
dos ideais que haviam iluminado muitos espíritos românticos, ansiosos por
liberdade. A ciência e a técnica, que destruíam cada certeza tradicional para munir
o homem de uma eufórica crença no progresso, passam a ser as protagonistas da
vida cotidiana.

O sistema econômico industrial acumulava nas mãos de poucas pessoas o


capital, ao mesmo tempo em que agravava a situação das massas. Tal fenômeno
contribuiu para o aumento da oferta de trabalho, ampliando a prosperidade. No
entanto, as dificuldades de algumas categorias de trabalhadores mais humildes,
exploradas e nada protegidas por leis adequadas, geram a inquietação que
evidenciava as contradições de uma sociedade com aparente bem-estar. Além da
indústria, a agricultura em certos países, como a Itália, continuava presente na
economia.

Destacam-se três motivos que polarizaram a atenção da Europa entre o


período de 1850 a 1870: o primeiro se refere à unificação da Itália e da Alemanha
que trouxe o equilíbrio internacional; o segundo, a corrida à industrialização e
ao colonialismo por parte de todas as nações, e o terceiro motivo faz menção
às ideias socialistas e ao surgimento das massas populares que reinvidicavam
justiça social.

4
TÓPICO 1 | O CONTEXTO HISTÓRICO E SOCIAL

O pensamento socialista teve em Karl Marx (1818-1883) seu maior


representante, cujos ideais suscitaram a formação dos sindicatos, das associações
de trabalhadores divididas por categorias e que pretendiam leis igualitárias.
Marx propunha critérios de justiça social nos países industrializados. Segundo
sua visão, as duas classes – capitalista e operária – divergiam econômica e
politicamente porque a primeira, ao privilegiar somente os próprios interesses,
explorava a segunda, que tinha que lutar para obter salários mais adequados.

No dizer de Marx, a classe operária, verdadeira artífice da riqueza


econômica não deveria aceitar a exploração, mas sim promover a revolução
para combater a propriedade privada, estabelecendo, desse modo, equilíbrio à
distribuição dos lucros entre todos os trabalhadores. Eram ideias comunistas que
Marx abarcou em suas obras principais: O Manifesto do Partido Comunista (1848)
e O Capital (1867) e que se difundiram rapidamente, inspirando os movimentos
e os partidos socialistas que surgiram em toda a Europa. Diante de tal situação,
era inevitável o conflito, e a classe operária, com base nessa ideologia, caminhava
rumo às suas reinvidicações.

Não diferente era a vida dos agricultores que, sob o regime feudal, mal
produziam para saciar a própria fome. Todavia, foi escasso o interesse dos
movimentos socialistas para as classes rurais que ainda permaneceram à margem
das transformações sociais e da história. O quadro complexo da sociedade dos
anos oitocentistas revelava as razões do surgimento da cultura do “real”, atenta
a cada manifestação inspirada nos fatos, como fonte viva de todas as possíveis
degradações do sentimento humano ou, como afirma Coutinho (2004a, p. 4), “[...]
a união do espírito à vida, pela objetiva pintura da realidade”.

3 A LITERATURA OITOCENTISTA: UMA FOTOGRAFIA DO REAL


Na Europa integra-se à Literatura do século XIX uma temática que já
vinha sendo explorada, qual seja, a realidade como objeto de inspiração e de
reflexão, mas transfigurada e ideal, que ficaria por nós conhecida como Realismo.
O artista estava envolvido nesse processo de evolução, atento às mudanças
sociais, das quais retirava inspiração e desfrutava dos materiais novos que o
progresso tecnológico e a ciência disponibilizavam. A arte assumiu um papel de
reproduzir uma realidade sem alterações, segundo uma técnica fotográfica de
recente invenção.

O Realismo logrou impor a pintura verdadeira da vida dos humildes e


obscuros, os homens e mulheres comuns que estão habitualmente em
torno de nós, vivendo uma vida compósita, feita de muitos opostos,
bem e mal. Beleza e feiura, rudeza e requinte, sem receio do trivial e
do requinte. (COUTINHO, 2004a, p. 9).

O pensamento de Comte, que examinava o comportamento da sociedade


com o mesmo rigor com que se estudavam os organismos naturais, passou a ser

5
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

fonte de inspiração da Literatura e das artes. A nova filosofia, o Positivismo, se


propõe a analisar o mundo partindo dos dados concretos da ciência e do homem,
com a certeza de que somente a cientificidade poderia satisfazer a sede de
conhecimento e levar o ser humano à felicidade.

O otimismo derivado do progresso avançava em todas as áreas,


difundindo um amplo materialismo: os acontecimentos e também o pensamento
são conduzidos por uma relação de forma e matéria, ou seja, cientificamente
explicáveis. Os valores éticos, religiosos e culturais são considerados fatos,
fenômenos dos quais podem ser expostas as suas concepções. O homem é
indagado sobre sua origem e sobre o seu fim que, segundo Darwin, é resultado
da evolução progressiva de uma espécie animal, e não um ser especial de criação
divina. Teorias desconcertantes que pareciam subverter a filosofia tradicional por
criar e ampliar certa euforia.

Em conexão com a afirmação da cultura positivista, na Europa se fortalece


o movimento do Realismo que assume aspectos um pouco diferentes em cada
país, de acordo com a situação histórica, política e social de cada um. Na Literatura
temos exemplos significativos nas obras dos ingleses Charles Dickens e Robert
Louis Stevenson, dos russos Fëdor Dostoievski e Leon Tolstoi, do norueguês
Henrik Ibsen, do português Eça de Queirós. “A batalha do Realismo contra o
Romantismo travava-se em Portugal desde 1865, com a Questão Coimbrã,
continuada em 1871 com as conferências do Cassino Lisbonense”. (COUTINHO,
2004a, p. 15).

DICAS

Caro acadêmico, sobre o autor Eça de Queirós, representante do Realismo


de Portugal e a Questão Coimbrã, releia seu Livro de Literatura Portuguesa para uma melhor
contextualização e compreensão do período em questão.

Os escritores mencionados nos legaram argumentos derivados de


ângulos particulares com os quais observavam a realidade e são válidos
porque testemunhavam a ansiedade e fomentavam as ideais da sociedade em
transformação. Nessa perspectiva, os autores da época retrataram uma realidade
na sua forma mais genuína, não construída sobre o papel, mas vivida, tendo como
meio de divulgação a narrativa.

Lembre-se de que a partir da difusão da imprensa e do mercado literário,


afirmou-se o romance policial, o de aventura, a literatura infantojuvenil, cujo
exemplo pode-se citar Pinocchio, de Carlo Colodi. Expandiu-se ainda o romance de
folhentim, que era publicado em periódicos, e o romance histórico que ingressou

6
TÓPICO 1 | O CONTEXTO HISTÓRICO E SOCIAL

na literatura, especialmente na Itália, pelas letras de Alessandro Manzoni


(1785-1873). O mesmo insistia na narrativa ambientada em lugares humildes e
protagonizada por pessoas comuns, antecipando a linha sobre a qual se moveria
o naturalismo e o verismo. Nesse sentido, a descrição do “verdadeiro” estaria
ligada a fatos históricos, em experiências científicas e em questões da realidade
social. (SAMBUGAR et al., 1997, p. 387).

O romance, que representava a forma literária mais difusa pelos vários


estratos sociais, encontrou orientação e adequação, inspirando-se em experiências
e em personagens cotidianas. Este fato foi teorizado na França por Honoré de
Balzac (1799-1850), grande maestro do realismo europeu que, em 1842, na
introdução à obra A Comédia Humana, afirmou que o romancista deveria narrar
os fatos da vida contemporânea, estudando as ações do homem no âmbito das
condições econômicas e ambientais da sociedade na qual vive e também as
condições que regulam a relação entre os homens e o curso da história.

A intenção de Balzac era oferecer nos romances uma minuciosa análise


da realidade social, dos ambientes, das situações e dos personagens. “O romance
tende a ser a confrontação da arte e da vida”, afirma Coutinho (2004a, p. 72). O
método adotado por Balzac, ao mesmo tempo que se propunha como instrumento
válido de pesquisa realística sobre a sociedade, apresentava os germes de
tendência científica que caracterizaria o Naturalismo francês.

Também Gustave Flaubert (1821-1880) concebeu uma nova técnica


narrativa baseada sobre uma constante fidelidade, objetiva e impessoal. O
escritor, como um cientista, deveria descrever com olhos imparciais o real,
sem julgar e sem participar. O romance Madame Bovary (1857), de sua autoria,
suscitou grande escândalo porque ultrajava a moral e a religião. Flaubert adotou
um estilo rigorosamente objetivo e um método de trabalho fundamentado na
documentação. A protagonista é uma mulher insatisfeita com a própria relação
conjugal, fria e vazia, que sonha com uma vida aristocrática, cheia de luxos e
paixões. Madame Bovary, desse modo, é símbolo do insano contraste entre sonho
e realidade.

Herdeiro da lição de Flaubert foi Émile Zola (1840-1902) que publicou o


romance naturalista Thérèse Raquin (1867), formulando a doutrina do romance
experimental ou naturalista e aplicando-a também em outros escritos. Os
fundamentos característicos desse romance eram a reprodução fiel da realidade
sem nenhum elemento romântico. Zola enfatizava a imparcialidade do escritor
que deveria fornecer a fotografia da vida e a cientificidade, concebendo um
homem condicionado à hereditariedade biológica e ao ambiente social. Essa
última característica é inerente à função social como denunciadora das angústias
que afligiam as pessoas. Desse modo, o artista contribuiria para melhorar a
sociedade, fornecendo os meios para eliminar certos males. “De Balzac a Zola,
o Realismo se transforma em Naturalismo. A liberdade de imaginação que se
estendera ao longo do movimento romântico, restringe-lhe o campo de ação à
realidade circundante”. (COUTINHO, 2004a, p. 72).

7
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

Na Itália, das sugestões naturalistas sobre a busca do real e do verdadeiro,


advém o Verismo, um movimento cultural literário, teorizado por Luigi Capuana.
O Verismo adotou alguns princípios do Naturalismo, no entanto, mesmo que
a ciência oferecesse os pressupostos do comportamento humano, não deveria,
segundo Capuana, substituir a observação direta e imaginativa.

A representação fotográfica da sociedade italiana comportava a


focalização dos problemas sociais e históricos posteriores à unificação, que ainda
se apresentava como um país agrícola. No dizer de Capuana, o escritor verista
devia, portanto, voltar sua atenção para a pequena realidade provinciana e
citadina, para os estratos mais baixos, para o mundo rural das massas proletárias
do Sul. Nesse sentido, o Verismo concebia uma literatura derivada do fato real,
uma narração imparcial na qual a língua e o estilo deveriam estar de acordo com
as personagens, o ambiente e o fato.

Segundo esses princípios, o escritor verista extraía com objetividade


usos, costumes, mentalidade, ambientes, sobretudo das regiões meridionais
desconhecidas pela maioria dos italianos e, por isso, mais interessantes e ricas de
curiosidades. Atente para o fato de que a descrição dos problemas concretos não
constituía uma denúncia social, mas somente objeto de inspiração narrativa.

O mais expressivo verista italiano foi Giovanni Verga que focalizou em


seus escritos a Região Siciliana, a sua terra natal, fazendo-a cenário intenso e
doloroso dos seus romances e das suas novelas. Verga não ignorou o seu contexto
e escreveu, em 1880, Rosso Malpelo, o primeiro exemplo do realismo verista. A
novela inicia com a descrição do protagonista, um jovem operário cujo apelido
fazia referência aos seus cabelos ruivos:

Malpelo foi assim chamado porque tinha os cabelos ruivos, e tinha os


cabelos ruivos porque ele era um menino travesso e mau [...]. Assim,
todos os trabalhadores da pedreira da areia vermelha o chamavam, até
mesmo sua mãe que, ouvindo-o desse modo, quase esquecia o nome
do filho. (VERGA apud SAMBUGAR et al., 1997, p. 412, tradução
nossa).

Malpelo trabalhava em condições adversas numa pedreira, local em que


seu pai morrera soterrado. A temática adotada por Verga é a exploração dos
jovens que tiveram sua infância roubada. Neste caso, o protagonista representa
somente a força do trabalho físico e não conheceu o afeto. A falta de humanização
pode ser observada pelo fato de a mãe esquecer o nome do próprio filho. Com
uma técnica narrativa lúcida e individual, Verga denuncia a miséria das classes
sicilianas mais pobres no período posteiror à unificação da Itália.

Do ponto de vista narrativo, existe a presença de dois discursos: o indireto,


quando a narração é feita em terceira pessoa. “[...] ela somente via o jovem na
noite de sábado, quando chegava em casa com o pouco dinheiro da semana, e
como se tratava de um “malpelo”, desconfiava que o mesmo retivesse para si
parte do dinheiro; por haver dúvida, sua irmã mais velha o recebia aos bofetes”.

8
TÓPICO 1 | O CONTEXTO HISTÓRICO E SOCIAL

(SAMBUGAR et al., 1997, p. 412). Além disso, para acentuar a verossimilhança, o


narrador é onisciente, conhece os pensamentos das personagens, e, sendo assim,
tem-se a impressão de que ele próprio é trabalhador da pedreira.

O protagonista Malpelo, por não conhecer modos diferentes além da


violência e opressão, desenvolveu sua filosofia de vida e a aplica ao amigo, para
defendê-lo e protegê-lo. Essa questão é reproduzida na sequência, exemplificando
também o emprego do discurso direto, a fala das personagens: “[...] – Toma, besta!
Besta tu és! E se tu não te defendes de quem te quer bem, significa que te deixarás
pisar deste e daquele”. (SAMBUGAR et al., 1997, p. 412).

Por ser descrito como malvado e rebelde, Malpelo suscita no leitor simpatia
e compaixão. Dessa maneira, Verga criou uma personagem de extraordinário
realismo psicológico: um jovem que, privado do afeto da família e dos amigos,
aceitou com orgulho e resignação o seu destino de vencido. Malpelo é então
vítima de uma sociedade em que os homens são governados por leis duras e
implacáveis, que levam à derrota os fracos e à vitória os fortes.

Essa maneira de lidar com a realidade constitui uma reação ao


romanticismo lânguido e choroso por assumir um modo diferente, contribuindo
também para a expansão da lírica e do teatro.

A lírica na Itália esteve representada pela exacerbação realística da


Scapligliatura, cuja poesia está ligada ao anarquismo. No que se refere aos autores
scapigliati, há que se considerar o fato de que, em primeiro plano, expressavam
as experiências da vida cotidiana como fonte de inspiração da nova arte, sob
orientação das formas concretas e positivas.

NOTA

A palavra scapigliatura, a princípio, pode ser traduzida livremente por boemia,


porque se refere à vida libertina e desenfreada dos intelectuais de Paris. Trata-se de um
movimento literário e artístico do final do século XIX, que se originou em Milão, na Itália,
em oposição ao gosto burguês e que revelava o modelo anárquico e dissipado vivido pelos
seus protagonistas. Uma arte realística, livre na forma, aberta aos influxos da cultura europeia
e relacionado com as urgências e temas de uma sociedade industrializada. Assim, nascia o
movimento inspirado no título do nome do romance La scapigliatura e Il 6 febbraio, de Cleto
Arrighi. O texto em questão logo se tornou sinônimo de desordem, de petulância, do gosto
pelo macabro e pelo patológico. Os autores scapigliati frequentemente viviam à margem da
sociedade e rejeitavam os seus sistemas. Desse modo, em face às dificuldades e privações,
morriam jovens. (SAMBUGAR et al., 1997, p. 481).

9
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

Paralelamente ao realismo e ao naturalismo, surgiu na Franca a poesia


realística e concreta – o movimento dos parnasianos. Os seus representantes
pretenderam um retorno de clareza clássica, enfatizando o valor fundamental da
perfeição da forma e da estilística. É assim denominado em virtude do “Parnassus,
monte da Fócida, na Grécia, onde, segundo a lenda, residiam os poetas. Por
extensão, é uma espécie de morada simbólica dos poetas, e designa também o
conjunto de poetas de uma nação”. (COUTINHO, 2004a, p. 13).

A poesia parnasiana, formalmente impecável, ainda que tenha resultado


como um gênero de pouca inspiração, foi importante como estímulo a novas
experiências. Dito de outro modo, essa poesia rejeitou os temas sentimentais
e privilegiou uma expressão mais autêntica, retirada da alma. No dizer de
Coutinho (2004a, p. 13), Gautier é um dos seus poetas mais representativos, além
de Leconte de Lisle e Banville, que se inspiravam na estética da arte pela arte e,
assim, o parnasianismo era o “[...] mesmo movimento pendular que fez seguir uma
corrente objetiva e classicizante ao subjetivismo romântico”. (COUTINHO, 2004,
p. 13). Com a forma rigorosa e clássica, em versos perfeitos, a poesia parnasiana
se apresentava descritiva, exata, com economia de imagens e metáforas.

Tal como a lírica, o teatro também encontrou expressão na ideologia da


classe dominante e, por conseguinte, representava a realidade e a vida da média
e pequena burguesia contemporânea. O drama burguês retratou as fraquezas, as
penas, os contrastes familiares e as dificuldades dessa classe em ascensão, com as
suas misérias, as suas ambições e as suas virtudes.

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RESUMO DO TÓPICO 1
Vamos visualizar de maneira sucinta o conteúdo apresentado neste
primeiro tópico:

• O século XIX foi marcado por grandes mudanças sociais, em face aos avanços
científicos que deram nova conotação ao modo de pensar o mundo e de
observar a realidade.

• Na filosofia, o positivismo de Auguste Comte (1798-1857) se contrapunha ao


idealismo romântico, exaltando a realidade positiva da ciência e das suas leis,
cuja base era a observação e a experimentação cientificamente comprovada.

• Hippolyte Taine, com sua doutrina filosófico-determinista, concebeu a ideia


de que o homem podia ser considerado produto do ambiente, do momento
histórico e da raça a que pertence.

• A teoria da evolução de Charles Darwin despertou interesse e teve grande


fluxo na Ciência, Filosofia e na Literatura em face ao conceito da luta pela
sobrevivência.

• O pensamento socialista teve em Karl Marx seu maior representante, cujos


ideais propunham critérios de justiça social à classe operária, verdadeira artífice
da riqueza econômica, estabelecendo, desse modo, equilíbrio à distribuição
dos lucros entre todos os trabalhadores.

• No plano literário, houve a expansão de três movimentos – o Realismo, o


Naturalismo e o Parnasianismo.

• O Realismo, que se manifestou em vários países europeus, demonstrou


interesse pela vida social nos seus aspectos concretos e sem os ideais da idade
romântica.

• O artista que estava envolvido nesse processo de evolução, atento às mudanças


sociais, assumiu um papel de reproduzir uma realidade sem alterações,
segundo uma técnica fotográfica de recente invenção.

• Os escritores retrataram uma realidade na sua forma mais genuína, não


construída sobre o papel, mas vivida, tendo como meio de divulgação a
narrativa.

• O romancista deveria narrar os fatos da vida contemporânea, estudando


as ações do homem, no âmbito das condições econômicas e ambientais da
sociedade.

11
• Balzac propôs uma minuciosa análise da realidade social, dos ambientes, das
situações e dos personagens. O seu método era instrumento válido de pesquisa
realística sobre a sociedade e apresentava os germes de tendência científica que
caracterizaria o Naturalismo francês.

• Gustave Flaubert concebeu uma narrativa baseada sobre uma constante


fidelidade, objetiva e impessoal. O escritor, como um cientista, deveria
descrever imparcialmente o real, sem julgar e sem participar.

• Émile Zola formulou a doutrina do romance experimental ou naturalista. Os


fundamentos característicos desse romance eram a reprodução fiel da realidade
sem nenhum elemento romântico.

• O Verismo concebia uma literatura derivada do fato real, uma narração imparcial
na qual a língua e o estilo deveriam estar de acordo com as personagens, o
ambiente e o fato, porém isento da crítica social.

• Paralelamente ao realismo e ao naturalismo, surgiu na Franca a poesia realística


e concreta, o movimento dos parnasianos. Os seus representantes pretenderam
um retorno de clareza clássica, enfatizando o valor fundamental da perfeição
da forma e da estilística.

• A poesia parnasiana, formalmente impecável, ainda que tenha resultado


como um gênero de pouca inspiração, foi importante como estímulo a novas
experiências que rejeitaram os temas sentimentais e privilegiaram uma
expressão mais autêntica, retirada da alma.

12
AUTOATIVIDADE

1 O século XIX é marcado por grandes transformações


econômicas e culturais, enriquecidas pelo surgimento de
grandes pensadores e suas doutrinas marcantes. Cite estes
pensadores e suas principais ideias que contribuíram para a
mudança de pensamento daquela época.

2 Elabore um resumo das principais características do movimento realista.

3 Émile Zola formulou a doutrina do romance experimental ou naturalista.


Quais eram os fundamentos do romance experimental?

4 Balzac, ao escrever A Comédia Humana, expõe as suas concepções de


romance. Quais são as contribuições do autor no que se refere ao romance?

13
14
UNIDADE 1
TÓPICO 2

A LITERATURA OITOCENTISTA NO BRASIL

1 INTRODUÇÃO
O século XIX constitui um período fértil para a criação do ponto de vista
estético-literário. Por ser homogênea, essa época dispensa a periodização precisa
e a nitidez de fronteiras entre os movimentos. Neste século, juntam-se figuras
literárias que nem sempre apresentam expressões nítidas, mas “[...] vestem
roupagem diferente no curso de sua evolução literária, quando não usam, no
mesmo instante, os caracteres das escolas diversas ou opostas”. (COUTINHO,
2004a, p. 5).

Seguramente, no período em questão, as correntes literárias se cruzavam


de maneira que o Romantismo ainda não havia terminado, e já apareciam traços
do Realismo. A oscilação entre os elementos clássicos e românticos, objetivos e
subjetivos, frequentemente foram marcas dessa época. Lembre-se de que essa
tendência foi percebida no Brasil na obra de muitos escritores que iniciaram suas
composições literárias no Romantismo e que se transformaram em representantes
do Realismo ou Naturalismo, questão a ser abordada nos próximos tópicos.

2 UM ESPAÇO À CRÍTICA
Antes de abordarmos questões pertinentes aos movimentos oitocentistas
em solo brasileiro, vale ressaltar a importância que os críticos literários da época
legaram aos leitores de tempos vindouros, uma vez que através desses estudos
podemos, atualmente, conhecer e melhor interpretar escritores e seus textos
literários. Um importante trabalho de investigação e reflexão que culminará com
os novos rumos da arte e da literatura no Brasil.

Durante o Romantismo a criação e a crítica literária caminhavam juntas.


Jovens universitários desde meados de 1800 debatiam ideias e formulavam
opiniões sobre os escritos que circulavam no Brasil que eram, a bem da verdade,
manifestações e exposições esporádicas, mas que constituem o início da crítica
literária brasileira. Alargam-se para além do Romantismo, prolongando-se pelo
Realismo. O ponto de partida para as discussões críticas era a literatura nacional.
A questão era: o que vinha a ser o nacional?

15
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

Para responder a esta e tantas outras indagações que o tema suscita, vejamos
como os envolvidos com a literatura da época se posicionavam. Almeida Garrett
(1799-1854) considerava os escritores brasileiros como que portugueses, devido ao
vínculo político ainda existente e lamentava que os brasileiros não valorizassem a
natureza brasileira. A observação de Garrett tornou-se, segundo Coutinho (2004a),
uma das teses centrais sobre literatura romântica no Brasil, e a nacionalidade
confunde-se então com originalidade. A natureza local, se incorporada à criação
literária, tornaria a literatura genuinamente brasileira. Essa preocupação pela
natureza cresceria progressivamente a partir dos poetas arcádicos e se consolidaria
por volta de 1830.

Mas, mesmo assim, a questão sobre a nacionalidade, longe de acabar, se


inflama quando na revista Minerva Brasiliense o português José da Gama e Castro
(1795-1873) defende a ideia de que a literatura dos brasileiros pertence à literatura
portuguesa, pois faz uso da língua da metrópole. Tal concepção extremista é
adotada também por Garrett, negando, assim, a possibilidade de existência de
uma literatura brasileira. (COUTINHO, 2004a).

Na criação literária do Brasil entre meados de 1860 e 1890, os escritos passam


a ser cada vez mais permeados pela filosofia positivista e pelo evolucionismo. As
ideias abolicionistas e republicanas formam a base do pensamento. Influenciados
pelo positivista Auguste Comte e pelo evolucionista Charles Darwin, escritores
como Tobias Barreto e Sílvio Romero empenham-se na luta contra o atual regime
monárquico e o trabalho escravo.

Em 1868 ocorreu a formação de um partido liberal com princípios


abolicionistas e pré-republicanos e, em 1870, uma das alas progressistas fundava
o Partido Republicano que, dentre outras manifestações partidárias, interessava-
se na substituição da mão de obra escrava pelo trabalho livre. (BOSI, 1980).

Aos moldes ingleses, os abolicionistas ambicionavam conquistar seus


intentos, e os republicanos se inspiravam na França e nos Estados Unidos no
intuito de construir um país democraticamente livre. Abolição e República serão
o mote do homem daqueles tempos.

A mão de obra escrava começa a ser repensada. O Brasil recebe, então,


muitos imigrantes entre os decênios de 70 e 80. Sílvio Romero, no prefácio aos
Vários Escritos, de Tobias Barreto, resume a efervescência do período:

O decênio que vai de 1868 a 1878 é o mais notável de quantos no


século XIX constituíram nossa vida espiritual. [...] De repente, por um
movimento subterrâneo que vinha de longe, a instabilidade de todas
as coisas se mostrou e o sofisma do império apareceu em toda a sua
nudez. A guerra do Paraguai estava ainda a mostrar a todas as vistas
os imensos defeitos de nossa organização militar e o acanhado de
nossos progressos sociais, desvendando repugnantemente a chaga da
escravidão. (ROMERO apud BOSI, 1980, p. 184).

16
TÓPICO 2 | A LITERATURA OITOCENTISTA NO BRASIL

Então, como não poderia deixar de ser, aos poucos, o subjetivismo e o


patriotismo, ambos característicos das gerações românticas anteriores, não seriam
mais compatíveis com os novos ideais. Foi, nesse período, que Franklin Távora
se insurgiu contra a hegemonia literária de Alencar. Para tanto, lançou mão de
cartas endereçadas ao escritor português José Feliciano de Castilho, criticando
o escritor e os livros de Iracema e o Gaúcho. O alvo de Távora era o excesso de
idealização das personagens e o lugar retratado. Tais observações indicavam a
aspiração por uma reprodução mais realista da situação brasileira.

Para Candido, a discussão teve importância por dois motivos: as ressalvas


de Távora revelam claramente o apelo ao sentido documentário das obras que
abordam a realidade presente e, além disso, Alencar se obriga a escrever, no prefácio
do romance Sonhos D’Ouro (1872), uma reflexão sobre sua obra, argumentando
que o retrato das condições locais não é o único logradouro para uma literatura
nacional, ao mesmo tempo em que reconhece a investigação social, psicológica e
dos costumes contemporâneos, como empreitada a ser adotada pelos romancistas.

Essa reflexão acerca da literatura brasileira recairia sobre Machado de


Assis que, em 1873, publica no periódico Novo Mundo um ensaio denominado
Instinto de Nacionalidade. Neste periódico, Machado expõe suas ideias sobre a
constituição de uma literatura nacional. Para ele, o escritor deveria exprimir um
sentimento, que caracterizasse o seu tempo, o seu país, mesmo quando aborde
assuntos remotos. Nas palavras de Bosi (1980, p. 186),

A ponte entre o último Romantismo (já em Castro Alves e Sousândrade


marcadamente aberto para o progresso e a liberdade) e a cosmovisão
realista será lançada, como a seu tempo se verá, pela poesia científica
e libertária do Sílvio Romero, Carvalho Jr., Fontoura Xavier, Valentim
Magalhães e menores. [...] Há um esforço por parte do escritor
antirromântico de acercar-se impessoalmente dos objetos, das pessoas.
E uma sede de objetividade que responde aos métodos científicos cada
vez mais exatos nas últimas décadas do século.

Dos enaltecidos por Bosi destacaremos Sílvio Romero, crítico e historiador


da literatura, da filosofia e do pensamento jurídico, que nasceu em 1851 na
Província de Sergipe. Em 1863 se muda para o Rio de Janeiro, com a finalidade
de ali realizar, no Ateneu Fluminense, os estudos preparatórios para ingressar na
faculdade de Direito. Retornou ao Nordeste em 1868 e conheceu Tobias Barreto,
Joaquim Nabuco e Araripe Júnior. Ainda como estudante de Direto, começou a
colaborar nos jornais da cidade.

Em 1879, Sílvio Romero, de volta ao Rio de Janeiro, passou a escrever


frequentemente na imprensa com o pseudônimo de Feuerbach. Ele atacava
em seus artigos o parlamento imperial uma vez que as duas últimas décadas
do reinado de D. Pedro II foram perpassadas pela crise no sistema político
monárquico. Lembre-se, caro acadêmico, de que importamos da Europa a filosofia
positivista que defendia a transformação capitalista da sociedade. Sendo assim,
positivistas, políticos, militares e intelectuais engajavam-se sempre mais com
as causas republicanas e abolicionistas. Dentre os escritores merecem destaque:

17
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

Tobias Barreto de Meneses, (1839-1888), mentor e integrante da Escola de Recife,


José Pereira da Graça Aranha e Sílvio Romero. Para este último, a “escola de
Recife teve função de bomba propulsora da renovação intelectual brasileira”.
(COUTINHO, 2004a, p. 25).

E assim se processou uma literatura impregnada desses novos rumores,


nascida a partir da convergência entre ciência e biologia.

As ciências sociais nasceram envoltas pela doutrina evolucionista.


Processava-se a revolução biológica devida a Darwin no meado do
século. A perspectiva naturalista colocou o homem dentro de um
ambiente natural, dando-lhe origem e história naturais, contra o
transcendentalismo espiritualista. (COUTINHO, 2004a, p. 38).

Tais ideias influenciaram os intelectuais do século XIX, e a sociedade passa a


ser concebida como um corpo que obedece a leis biológicas de crescimento e morte,
e os esclarecimentos e explicações sobre o homem e a sociedade foram reduzidos a
fórmulas químicas. No Brasil, esse modo de conceber homem e sociedade tornou-
se ápice na década de 70. Sílvio Romero é adepto a essas doutrinas, e sua vasta
obra é carregada das chamadas ideias novas, ou seja, acobertadas pelo espírito
científico. No papel de crítico literário, deixava de lado o significado estético e
sua preocupação recaía no estudo da obra como possibilidade de interpretar o
homem e a sociedade brasileira.

NOTA

Caro acadêmico, sobre o estudo da obra literária, há que se enfatizar que nem
sempre as idéias dos críticos são unânimes, especialmente no que se refere ao contexto de
criação. Os estudiosos pertencentes à Nova Crítica, por exemplo, defendem que o texto
literário deve ser analisado pelo que contém em si e pelo seu significado estético e não pelos
seus fatores externos, como o contexto social. Se você quiser aprofundar esse assunto sobre
as correntes da crítica literária, sugerimos a leitura do livro intitulado Teoria da literatura em
suas fontes, organizado por Luiz Costa Lima, da editora Civilização Brasileira, 2002. O livro
em questão apresenta um panorama da reflexão teórica sobre a literatura cujos textos são
distribuídos em seis seções, sendo estes: problemas gerais, a estilística, o formalismo russo,
o new criticism, a análise sociológica e o estruturalismo.

Escreve Romero nestes moldes, em 1882, a Introdução à História da Literatura


Brasileira e, no ano seguinte, o seu segundo livro de poesias intitulado: Últimos Arpejos.
No ano de 1884, Romero publicou Estudos de Literatura Contemporânea e, em 1887, o
livro crítico intitulado Uma Esperteza. Intelectual incansável, legou-nos estudos sobre
a literatura brasileira apoiados em juízos e conceitos, afirmou a importância da crítica,
mas sobretudo revelou a paixão e o compromisso com seu ofício.

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TÓPICO 2 | A LITERATURA OITOCENTISTA NO BRASIL

Para os críticos, a junção entre o autor romântico e o mundo estava se


rompendo e os mitos por este idealizados, tais como a natureza e o refúgio, o
amor e a mulher diva, como a ênfase ao sentimentalismo, saem de cena e, em seu
lugar, aparece a objetividade, que responderia aos métodos científicos presentes
nas últimas décadas do século. Sendo assim, o distanciamento do subjetivismo
será o preceito proposto ao escritor realista.

Segundo Bosi, o afastamento do apoio subjetivo é a norma proposta


aos realistas e, no nível ideológico, o determinismo servirá de amparo para a
explicação do real. O estético será marcado por um processo no qual

[...] o supremo cuidado estilístico, a vontade de criar um objeto novo,


imperecível, imune às pressões e aos atritos que desfazem o sentido
da história humana, originam-se e nutrem-se do mesmo fundo
radicalmente pessimista que subjaz à ideologia do determinismo. E
o que fora verdade para os altíssimos prosadores Schopenhauer e
Leopardi, não o será menos para os estilistas consumados da segunda
metade do século XIX, Flaubert e Maupassant, Leconte de L’Isle e
Machado de Assis. (BOSI, 1980, p. 187).

Com base no pensamento de Bosi, sempre que as personagens e enredos


estiverem submetidos ao destino das leis naturais, significa que o realismo estará
tingido de naturalismo.

3 OS MOVIMENTOS QUE ASSINALAM A LITERATURA


BRASILEIRA DO SÉCULO XIX
Durante a segunda metade do século XIX, três movimentos literários se
destacaram e adentraram o século XX: Realismo, Naturalismo e Parnasianismo.
Vale então, enfatizar, além de suas ideias norteadoras e concepções filosóficas já
discutidas, suas características e seus representantes.

O Realismo e o Naturalismo são movimentos específicos do século


XIX, porém há que se considerar que estes movimentos estiveram presentes no
Classicismo e no Romantismo. Mais do que isso, o Realismo pode ser identificado
sempre que

[...] se dá união do espírito à vida, pela objetiva pintura da realidade.


Dessa forma, há Realismo na Bíblia e em Homero, na tragédia e
comédia clássicas. [...] Do mesmo modo, o Naturalismo existe sempre
que se reage contra a espiritualização excessiva, como em certas
expressões do erotismo barroco ou na ficção naturalista do século XIX.
(COUTINHO, 2004a, p. 5).

Lembre-se de que as correntes literárias se cruzam, atuam e reagem


uma sobre a outra, ora se prolongam ora se opõem. Aparece o Realismo, o
Naturalismo e Parnasianismo em oposição ao Romantismo, mas dele recebem

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UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

muitos elementos. Daí a perceber escritores que iniciam sua carreira literária em
pleno apogeu do Romantismo e que, no decorrer de seus escritos, passam a ser
representantes do Realismo ou Naturalismo.

Como vimos, as ideias que circulavam na Europa, a cientificidade, o


evolucionismo, iluminismo, determinismo, positivismo são a tônica que moverá
os escritores representantes dessas tendências em oposição ao subjetivismo
romântico. Vejamos as características desses movimentos a começar pelo
Realismo.

O Dicionário de Termos Literários, do autor Massaud Moisés (2004, p. 378), diz


que a palavra Realismo é de origem latina: “Realis, de res, coisa, realidade + ismo,
doutrina, tendência, corrente”. Pode-se dizer que essa palavra designa a intenção
estética centrada em seres e objetos do mundo concreto. Ainda, segundo Moisés, nesta
perspectiva trata-se de um movimento encontrado na literatura de qualquer século.
Entretanto, é adotado na literatura como moda na segunda metade do século XIX e
possui como premissa uma reação ao romantismo, através de um enfoque objetivo
do mundo, em que a razão ou inteligência substituem o sentimento. Os seus adeptos
repeliam a Metafísica e a Teologia, em prol de uma visão científica da realidade, na
qual a cientificidade se sobrepõe e supera o mistério e a indeterminação tão presentes
no Romantismo.

As obras literárias realistas possuem estreita relação com o real, sustentadas
pela objetividade fotográfica cuja subjetividade do artista não comparece. Sendo
assim, representavam a verdade, uma verossimilhança com a irregularidade da vida
e, no arranjo da matéria literária, fugiam do sentimentalismo ou da artificialidade.
Idealizam a arte com os problemas concretos de seu tempo. (COUTINHO, 2004).
Para retratar essa verdade, procuravam compor personagens a partir de indivíduos
reais, em que os motivos puramente humanos dominam a ação. A preocupação
é com a contemporaneidade, sucessos e fracassos, acasos e descasos, emoções e
temperamentos.

Segundo Coutinho, o realismo “[...] realizou-se em duas direções: para o


corpo e à vida exterior, e para o espírito e à vida interior”. (COUTINHO, 2004a, p.
11). Daí sua relação com a psicologia, desejando-a científica, entendendo-a não como
espírito, alma, mas, sim, como manifestação fisiológica. O realismo voltado para o meio
social, denominado de exterior, é uma vertente do realismo interior. Nesse sentido,
o realismo exterior estava submisso ao tempo do calendário, procurava a precisão e
fidelidade na observação. O realismo interior, por sua vez, “buscava aproximar-se
da intemporalidade da psicanálise, da imaginação e, por conseguinte, da literatura
simbolista. (MOISÉS, 2004, p. 380).

A narrativa realista move-se lentamente provocando no leitor a impressão de


“vaivéns, de marcha quieta e gradativa pelos meandros dos conflitos, dos êxitos e dos
fracassos”. (COUTINHO, 2004a, p. 11). Sendo assim, na trama o autor evita confundir
seus sentimentos e pontos de vista com os das personagens. Predominam textos
narrativos ao invés de descritivos, que lançam mão de uma linguagem harmoniosa,

20
TÓPICO 2 | A LITERATURA OITOCENTISTA NO BRASIL

através da simplicidade e naturalidade. Tais características podem ser encontradas


também na pintura em que tudo é organizado para dar a impressão de realidade.

O realismo confunde-se, em vários de seus aspectos, com o naturalismo,
movimento subsequente e, no dizer de Moisés (2004, p. 379), “todo o naturalista,
realista é, mas nem todo o realista é naturalista.”

Visconde de Taunay foi um destes escritores. Nascido no Rio de Janeiro, foi


induzido pelos familiares a seguir a carreira de militar. Cursou então engenharia
na Escola Militar e participou da expedição que tentou repelir os paraguaios que
dominavam o sul da província de Mato Grosso.

O primeiro romance de Taunay foi Mocidade de Trajano, publicado em 1871,


com o pseudônimo de Sílvio Dinarte. Nesta obra, o autor valoriza a paisagem
natural e, no que tange à temática, constata-se o desgaste das relações senhor/
escravo, nas grandes propriedades rurais. A Mocidade de Trajano foi escrita por
ocasião da Guerra do Paraguai e, após a publicação, foi rejeitada pelo próprio
autor, pois, em determinadas partes, ele expressava certa ofensiva aos padres.
Mais tarde, em 1884, a Academia Paulista de Letras edita novamente a obra
por reconhecer um importante documentário dos costumes durante a segunda
metade do século XIX. O romance é permeado pelo tom melodramático, descrição
idealista da natureza e um humor meio “gauche”, tirado do caricaturesco. Além
disso, na obra, Taunay não esconde a admiração que nutria pelo autor Joaquim
Manuel de Macedo, revelada quando o protagonista de A Mocidade de Trajano
oferece um exemplar de O Moço Loiro à personagem Amélia, pela qual estava
apaixonado. Leia o trecho:

[...] Ao ver entrar o jovem, perguntou com intenção:


— Então o que o traz por aqui, Sr. Trajano?
— Vim entregar a Sra. D. Amélia um livro que lhe prometti ante-hontem.
— Um livro? E de que trata elle?
— É um romance muito bonito do Macedinho, um de nossos mais populares
e justamente estimados litteratos.
— Litterato brasileiro?
— Sim; senhor, e bom patriota, que ama com énthusiasmo o Brasil. O autor
festejado por excellencia que...
Silveiras interrompeu-o novamente.
— Será esse Macedo parente ou o próprio que tem casa de consignação de
café, rua dos Benedictinos n.° 110, no Rio de Janeiro?
Trajano corou de indignado:
— Não, Sr. Silveiras, não de certo. O Macedinho é homem que vive da
inteligencia e só cura de illustrar o Brasil. Vive disso.
— Deve estar bem-magro, o coitado, observou Silveiras. Mas que livro é esse?
— É o Moço Louro.
Silveiras franzio os sobrolhos.
— Hum... hum o titulo não me agrada: eu [...]

FONTE: (TAUNAY, 1984, p. 72)

21
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

Taunay apresenta em seu texto um painel dos costumes do interior, da


ignorância dos fazendeiros, deixando-se iludir pelas aventuras e desventuras de
Trajano. O romance apresenta o sistema escravagista e constitui-se, por isso, em
instrumento de divulgação de ideias abolicionistas, antirreligiosas e, no que se
refere à escravidão, propõe sua substituição pelo trabalho assalariado. Segundo
Veríssimo (1998), as ideias da abolição da escravidão e a grande imigração e
naturalização foram defendidas por Taunay durante toda a sua trajetória política.

O escritor criou um enredo por vezes complicado; descreve a natureza e a


paisagem rurais, como podemos observar na sequência:

“Oprimido por dor inexprimível, percorria ele como louco as alamedas de


um vasto jardim que rodeava sua casa”. (TAUNAY, 1984, p. 15). “A hora solene
em que o firmamento não tem astros, em que as estrelas não podem ainda vencer
o brilho do sol que já se foi, essa hora tornou-se para Trajano de uma tristeza
aterradora”. (TAUNAY, 1984, p. 17).

Ao descrever os jardins da fazenda da Mata Grande, propriedade de


Roberto Sobral, o escritor o faz minuciosamente:

“Ao derredor de repuxo elegante, os balsâmicos edícios mostravam


os cândidos tirsos e nos canteiros, à sombra das magnólias e camélias, mão
inteligente plantara as flores das queimadas e dos campos que tão cheirosas, tão
bonitas, são. A espirradeira miúda, a saudade silvestre, o para tudo espinhoso
partilhavam o terreno com o manacá, que tanto aroma tem quando cultivado e
não o possui nas matas, com o lírio variegado, as orquídeas terrestres e muitas
outras plantinhas que só pedem alguns cuidados para recompensarem com
mil atrativos aquele que para elas olhou um dia.”

FONTE: (TAUNAY, 1984, p. 14)

Finalmente, em A Mocidade de Trajano, o jovem escritor apresenta a admiração


pela natureza vista sob a ótica do estrangeiro, a comparação implícita da realidade
brasileira com a europeia, uma vez que a personagem, Roberto Sobral, era homem de
longas viagens à Europa, e por lá adquirira um modo de vida diverso do habitual. Seus
jardins eram ornados com plantas da Europa. No pomar, Sobral cultivava frutos das
regiões temperadas; maçãs, ameixas, peras, morangos, framboesas.

Escreveu também sobre a Guerra do Paraguai e a obra que a retrata


foi intitulada A Retirada de Laguna. Nesta, narra a derrota militar, a falta de
provimentos, a cólera, dentre outras provações enfrentadas pelos envolvidos.
O relato foi escrito primeiramente em francês e posteriormente traduzido. No
prólogo da referida obra, assim se expressa Taunay:

“É o assunto deste volume a série de provações por que passou a


expedição brasileira, em operações ao sul de Mato Grosso, no recuo efetuado
desde a Laguna, a três e meia léguas do rio Apa, fronteira do Paraguai, até o rio

22
TÓPICO 2 | A LITERATURA OITOCENTISTA NO BRASIL

Aquidauana, em território brasileiro, trinta e nove léguas, ao todo, percorridas


em trinta e cinco dias de dolorosa recordação.

Devo esta narrativa a todos os meus irmãos de sofrimento, aos mortos


ainda mais do que aos vivos.

Em todas as épocas largo interesse se ligou às retiradas, não só por


constituírem operações de guerra difíceis e perigosas, como nenhuma outra,
mas ainda porque os que as executam, já sem entusiasmo nem esperanças,
frequentemente entregues ao desânimo, ao arrependimento de erros ou das
consequências de erros, precisam arrancar ao espírito, assim preocupado, os
meios de enfrentar a fortuna adversa, que a cada passo os ameaça, com todos
os seus rigores. Em tais contingências requer-se o verdadeiro cabo de guerra:
ali há de se lhe revelar a característica essencial: a inabalável constância.

Vive a Retirada dos Dez Mil em todas as memórias. Colocou Xenofante


na plana dos primeiros capitães. Nos tempos modernos vários ocorreram não
menos notáveis: a de Altenheim, pelo marechal de Lorge, após a morte de
Turenne, seu tio, e que ao grande Conde fez declarar que lha invejava; a de Praga,
enaltecedora da nomeada do conde de Belle Isle: a de Plaffenhofen, por Moreau,
tida como um dos mais belos jeitos d´armas, efetuados por Turenne; já em nossos
dias: a de Talavera, que levou Lorde Wellington, triunfante, a Lisboa; a que
honrou o funesto regresso de Moscou e em que o Príncipe Eugênio e o Marechal
Ney rivalizaram, em heroísmo; a de Constantina pelo Marechal Clausel e outras
menos célebres; mas que, no entanto, pela variedade dos perigos e das misérias,
chamam a atenção da história.

Resta-nos solicitar a maior indulgência para esta narrativa cujo único


mérito pretende ser o dos fatos expostos. Tiramo-los de um diário escrito em
campanha.

Assim, nela hão de abundar as incorreções, demasias e repetições;


cremos dever deixá-las; são indícios da presença da verdade.”

FONTE: (TAUNAY, [s.d.], p. 78)

Finda a Guerra do Paraguai tornou-se professor da Escola Militar. Foi


nomeado presidente da província de Santa Catarina e depois presidente do
Paraná. Em 1886, alcançou o Senado, mas após a proclamação da República
abandonou a política.

Outro romance de Taunay é Inocência, escrito em 1872. Neste, descreve


paisagens, personagens, costumes, aspectos sociais e políticos com exatidão e
senso de realidade. Para tanto, atenua o sentimentalismo. Segundo Veríssimo, o
realismo está para Taunay, assim como o idealismo está para Alencar. Daí a ser
reconhecido como aquele que elaborou o primeiro romance realista, “[...] no exato
sentimento do vocábulo, da vida brasileira num de seus aspectos mais curiosos,
um romance ressumando a realidade”. (1998, p. 335).
23
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

O romance em questão é ambientado no Sertão de Santana do Paranaíba.


Pereira é pai de Inocência de 18 anos, homem autoritário e rígido com a filha.
Decide que a filha deveria casar-se com Manecão, um negociante de gado com
índole violenta. Inocência adoece, e o pai preocupado com a filha encontra um
rapaz chamado Cirino, que se dizia médico, e o convida a fazer uma visita à
Inocência. O jovem curou a moça e foi morar na casa de Pereira. A fazenda recebe
outro hóspede, é o Dr. Meyer, naturalista alemão que chega para catalogar novas
espécies de insetos e borboletas. Dr. Meyer passa a ser alvo de Pereira que acredita
que o jovem alemão possa fazer algo de mal à Inocência. Então, solicita a Cirino
ajuda na guarda de Inocência. Cirino se apaixona e declara seu amor à moça que
se mostra também apaixonada. Ambos encontram-se às escondidas. Manecão
ficou sabendo da relação amorosa e assassina o rapaz. Inocência morre de tristeza
por ter que se casar com Manecão.

No dizer de Moisés, (1984, p. 555) “a trama arma-se, portanto, ao redor


de uma compulsão avassaladoramente trágica [...]”, enraizado que está nas
profundezas da alma e não nas superfícies das emoções, como era de uso no
cosmo romântico”. O psiquismo é ativado por paixões com desfechos que
envolvem assassinato e suicídio. Uma espécie de Romeu e Julieta sertanejos. E
continua Moisés (1984, p. 555) afirmando que os personagens são “entregues
ao destino por uma aceitação animal sem buscar no suicídio a solução de um
impasse meramente social”. Inocência foi uma obra traduzida em diversas línguas,
inclusive a japonesa, a sueca e a dinamarquesa. Além desta, o autor escreveu
Ouro sobre Azul (1875), Amélia Smith (1886), O Encilhamento (1894), dentre outras.

Há que se ressaltar que nem todos os críticos literários consideram Taunay


adepto do movimento naturalista. Bosi assim se manifesta a esse respeito:

Há quem veja nele um escritor de transição para o realismo. Não é


bem assim. Quando maduro criticou o naturalismo. E a postura
fundamentalmente egótica, reflexa nos romances mundanos que se
seguiram a Inocência, nos diz que se algo mudou foi a sociedade, não o
estofo idealista do escritor. (1980, p. 161).

Para os leitores, o evidente é que suas obras são perpassadas pelo


aguçado senso de observação, romances com diálogos espontâneos de tom e
vocabulário que fluem naturalmente, com simplicidade e bom gosto, que logo
conquistam o leitor.

4 A LITERATURA MACHADIANA E EUCLIDIANA


No Brasil, Machado de Assis transita entre os movimentos, colocando
à prova os preceitos do Romantismo, ao mesmo tempo em que explicita as
limitações de uma representação da realidade calcada no elemento típico e no
retrato pitoresco tornando-se, assim, um expoente à parte da literatura brasileira.

24
TÓPICO 2 | A LITERATURA OITOCENTISTA NO BRASIL

A crítica considera Machado de Assis “[...] o primeiro e o mais acabado modelo


do homem de letras autêntico”, segundo Coutinho (2004a, p. 151). O autor
publicou os seus primeiros versos na revista Marmota em 1855 e, no decurso de
uma atividade literária ininterrupta, o Memorial de Aires foi o seu último livro
lançado em 1908.

Nascido em 1839, no morro do Livramento, João Maria Machado de Assis


era mulato e viveu os 69 anos de sua existência exclusivamente no Rio de Janeiro.
Em 1869, casou-se com a portuguesa Carolina Augusta Xavier de Novais que,
segundo Jorge Miguel Marinho (2008, p. 5),

[...] foram trinta e cinco anos de terna e eterna convivência, como


se Dona Carolina viesse de Portugal para a enseada mais amorosa
de Machado e Machado estivesse predestinado a escrever as suas
melhores palavras, primeiro, para os olhos sensíveis, críticos e
cuidadosos de sua mulher.

Conforme podemos observar, Marinho ressalta a importância de Carolina
na vida do autor, pois ela teria cuidado da saúde do marido com dedicação e
zelo. A esposa também era a sua leitora maior, lia diariamente os escritos com
fidelidade e exigência.

Pelo fato de o autor ter percebido, revirado e descrito a alma humana,


recebeu o epíteto de “bruxo do Cosme Velho”, uma alusão à rua onde morou,
no Rio de Janeiro. O apelido inspirou o escritor Carlos Drummond de Andrade
a compor um poema intitulado: A um bruxo com amor – escrito em 1950, cheio
de alusões à obra e à figura do escritor que tantos enigmas provocou no poeta
mineiro”. (Revista Na ponta do lápis, 2008, p. 1). Leiamos o poema:

A um bruxo, com amor

Em certa casa da Rua Cosme Velho


(que se abre no vazio)
venho visitar-te; e me recebes
na sala trajestada com simplicidade
onde pensamentos idos e vividos
perdem o amarelo
de novo interrogando o céu e a noite.
Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro.
Daí esse cansaço nos gestos e, filtrada,
uma luz que não vem de parte alguma
pois todos os castiçais
estão apagados.
Contas a meia voz
maneiras de amar e de compor os ministérios
e deitá-los abaixo, entre malinas
e bruxelas.

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UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

Conheces a fundo
a geologia moral dos Lobo Neves
e essa espécie de olhos derramados
que não foram feitos para ciumentos.
E ficas mirando o ratinho meio cadáver
com a polida, minuciosa curiosidade
de quem saboreia por tabela
o prazer de Fortunato, vivisseccionista amador.
Olhas para a guerra, o murro, a facada
como para uma simples quebra da monotonia universal
e tens no rosto antigo
uma expressão a que não acho nome certo
(das sensações do mundo a mais sutil):
volúpia do aborrecimento?
ou, grande lascivo, do nada?
O vento que rola do Silvestre leva o diálogo,
e o mesmo som do relógio, lento, igual e seco,
tal um pigarro que parece vir do tempo da Stoltz e do gabinete Paraná,
mostra que os homens morreram.
A terra está nua deles.
Contudo, em longe recanto,
a ramagem começa a sussurar alguma coisa
que não se estende logo
aparece a canção das manhãs novas.
Bem a distingo, ronda clara:
É Flora,
com olhos dotados de um mover particular
ente mavioso e pensativo;
Marcela, a rir com expressão cândida (e outra coisa);
Virgília,
cujos olhos dão a sensação singular de luz úmida;
Mariana, que os tem redondos e namorados;
e Sancha, de olhos intimativos;
e os grandes, de Capitu, abertos como a vaga do mar lá fora,
o mar que fala a mesma linguagem
obscura e nova de D. Severina
e das chinelinhas de alcova de Conceição.
A todas decifraste íris e braços
e delas disseste a razão última e refolhada
moça, flor mulher flor
canção de mulher nova...
E ao pé dessa música dissimulas (ou insinuas, quem sabe)
o turvo grunhir dos porcos, troça concentrada e filosófica
entre loucos que riem de ser loucos
e os que vão à Rua da Misericórdia e não a encontram.

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TÓPICO 2 | A LITERATURA OITOCENTISTA NO BRASIL

O eflúvio da manhã,
quem o pede ao crepúsculo da tarde?
Uma presença, o clarineta,
vai pé ante pé procurar o remédio,
mas haverá remédio para existir
senão existir?
E, para os dias mais ásperos, além
da cocaína moral dos bons livros?
Que crime cometemos além de viver
e porventura o de amar
não se sabe a quem, mas amar?
Todos os cemitérios se parecem,
e não pousas em nenhum deles, mas onde a dúvida
apalpa o mármore da verdade, a descobrir
a fenda necessária;
onde o diabo joga dama com o destino,
estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,
que resolves em mim tantos enigmas.
Um som remoto e brando
rompe em meio a embriões e ruínas,
eternas exéquias e aleluias eternas,
e chega ao despistamento de teu pencenê.
O estribeiro Oblivion
bate à porta e chama ao espetáculo
promovido para divertir o planeta Saturno.
Dás volta à chave,
envolves-te na capa,
e qual novo Ariel, sem mais resposta,
sais pela janela, dissolves-te no ar.

FONTE: (ANDRADE, 1959, p. 5)

Depois da dedicatória de Drummond de Andrade, parece que o apelido


ganhou força. Ainda, é possível inferir certa admiração confessada no verso: outros
leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro. Além dessa questão, Drummond
faz menção a várias personagens e episódios machadianos.

Escritor autodidata, Machado de Assis começou a trabalhar como


tipógrafo na Imprensa Nacional, depois revisor na Livraria de Paulo Brito e no
Correio Mercantil, e redator no Diário do Rio de Janeiro. Ingressou no funcionalismo
público no qual ocupou sucessivamente todos os postos, desde amanuense até
diretor-geral da Contabilidade, em 1902, no Ministério de Viação. (COUTINHO,
2004a, p. 151). Em 1896, ajuda a fundar a Academia Brasileira de Letras da qual
fora eleito presidente primeiro e perpétuo.

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UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

FIGURA 1 – MACHADO DE ASSIS

FONTE: Disponível em: <http://humanidades19.blogspot.com/2010_09_05_archive.html>.


Acesso em: 2 abr. 2011.

Pela qualidade da obra e caráter inconfundível do autor, a sua importância


na vida literária brasileira é impar. O escritor “[...] atravessou incólume todos
os movimentos e escolas, construindo um mundo à parte, um estilo composto
de técnicas precisas e eficazes, e uma galeria de tipos absolutamente realizados
e convincentes”. (COUTINHO, 2004a, p. 152). Machado interpretou a vida
por intermédio da expressão literária, um exercício cotidiano, aproveitado
pela experiência de um trabalho paciente e constante. O autor transitou pelos
principais meios de difusão literária da época, dentre eles jornais, revistas,
editoras, divulgando seus escritos aos mais variados públicos.

Em Machado de Assis encontramos ao mesmo tempo e na mesma distância


os excessos do Romantismo e a frieza do Naturalismo, traço característico dos
grandes escritores cuja capacidade compõem objetos perfeitos, “aptos a provocar
no espectador aquela suspensão admirativa e essa espécie de sabor particular que
o espírito encontra nas obras d’espírito”. (COUTINHO, 2004a, p. 153).

O escritor obteve efeito objetivo na sua capacidade criativa, aliada ao


conteúdo adequado, compondo entidades coerentes e significativas. Esse fato
exigiu-lhe um esforço inventivo, que o aperfeiçoou e que aprimorou a sua obra.
“Machado foi exatamente fiel a essa concepção sobranceira do ofício de escrever
e pôde, por isso, em sua longa vida, realizar-se como um tipo humano superior
e deixar a melhor obra literária produzida no Brasil”. (COUTINHO, 2004a, p.
153). A sua obra é dividida em duas fases distintas: a primeira que encerrou com
o romance Iaiá Garcia, publicado em 1878. A segunda que se inicia em 1881 com
o livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, se estende até o ano de 1908, com o
Memorial de Aires.

28
TÓPICO 2 | A LITERATURA OITOCENTISTA NO BRASIL

Coutinho afirma que o primeiro período do escritor correspondeu a uma


expressão que não tinha encontrado linguagem, era ainda precária, “sem infusão
poética” (2004a, p. 155). O primeiro romance, Ressurreição, escrito em 1872, contém
traços do Romantismo e os outros que se seguem, A Mão e a Luva, Helena e Iaiá
Garcia imitam os moldes existentes. Em 1873, também escreve o ensaio Instinto de
Nacionalidade, no qual o autor reflete sobre o problema estético.

A exatidão com que abordou o problema da possibilidade de uma arte


nacional, precisando a dosagem que deve haver entre a influência local
e a universalidade do espírito na obra literária, ou entre a influência
do povo e o trabalho do estilo, nos revela um admirável ensaísta dessa
espécie de temas. (COUTINHO, 2004a, p. 157).

A técnica do escritor foi favorecida com as reflexões estilísticas feitas


no ensaio. Depois de Ressurreição, há um aprimoramento contínuo no modo de
escrever, cujos retoques de estilo contribuíram para exaurir os aspectos românticos.
Os escritos que se seguiram são caracterizados pela ausência de tensão e, conforme
argumenta Coutinho, “[...] o espírito está funcionando e funcionando num ritmo
frouxo. É uma voz sonolenta que se exprime numa espécie de automatismo ou
hábito de escrever”. (2004a, p. 158).

Foi, no primeiro grande romance, Memórias Póstumas de Brás Cubas, que


Machado de Assis põe em prática a sua verdadeira vocação: descrever a alma e as
misérias do homem. Se antes as personagens eram estruturadas dentro da moral,
doravante representavam seres divididos em si mesmos em que compromisso
e instabilidade de caráter estão em declive. O homem, imerso no jogo de forças
desconhecidas, tem seu livre-arbítrio “limitado não só pelos obstáculos que a
natureza indiferente oferece, mas pelas contradições e perplexidades internas”.
(COUTINHO, 2004a, p. 159). Ao descrever as nuances do caráter, o escritor aponta
a fragilidade das intenções e a reação da consciência humana em face do mal.

Desse modo, o protagonista Brás Cubas recompõe a vida, transitando entre


dois mistérios: o prazer dos sentidos e a ventura do coração. Nesse fazer, o mesmo
só encontra a miséria moral, o mal físico e a morte, pois o que lhe parecia poesia
e verdade da vida passam ou lhe são contrárias. Memórias Póstumas de Brás Cubas
ainda que se apresente sarcástica, funesta e macabra, Coutinho a reconhece como

[...] uma obra nova na nossa literatura, trabalhada num plano


superior de espírito, uma verdadeira estreia de um escritor que estava
incubando em trabalho de diversão, para aparecer agora em toda a
pujança do talento, equipado com os recursos adquiridos pelo esforço
de anos. (COUTINHO, 2004a, p. 161).

Posteriores à publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas são os contos


e as novelas dentre as quais citamos: O alienista, Teoria do Medalhão, A Chinela
Turca e Dona Benedita. Rico de vida e substância, em 1891 aparece Quincas Borba
e integra a chamada segunda fase de ficção do escritor o qual, por apresentar a
melhor dramatização, é o mais arejado dos livros de Machado de Assis, de cuja
“[...] atitude sarcástica e falsa de Brás Cubas cede lugar a uma severa dramaticidade,
que suporta a medida do trágico”. (COUTINHO, 2004a, p. 162).
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UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

FIGURA 2 – CAPA DO LIVRO QUINCAS BORBA, PUBLICADO EM 1982 PELA EDITORA ÁTICA E
ILUSTRADO POR EDGAR RODRIGUES DE SOUZA

FONTE: Disponível em: <http://catalisecritica.files.wordpress.com /2010/11/quincasborba.jpg>.


Acesso em: 2 abr. 2011.

A narrativa descreve a vida de Pedro Rubião de Alvarenga, um ex-


professor que se tornou enfermeiro e discípulo do filósofo Quincas Borba que
vem a falecer no Rio, na casa de Brás Cubas. Rubião é então nomeado herdeiro
universal do filósofo, sob a condição de cuidar de seu cachorro, também chamado
Quincas Borba. Rubião, depois do ocorrido, segue para o Rio de Janeiro e durante
a viagem conhece Cristiano de Almeida e Palha e a esposa que lhe dispensava
olhares e delicadezas. Rubião se apaixona por essa mulher e lhe confessou seu
amor. Mesmo tendo lhe dado esperanças em outra ocasião, Sofia recusa o amor
de Rubião. A esposa conta ao marido Cristiano sobre o interesse de Rubião.
Apesar de indignado, o capitalista continua suas relações com o herdeiro de
Quincas Borba, pois pretendia apoderar-se da fortuna. O amor por Sofia, não
correspondido, começa a despertar a loucura em Rubião, cuja demência, tal qual
Quincas Borba, o levará à morte. Enganado, morre na miséria e, desse modo,
se concretiza a tese do humanitismo. O tema do romance Quincas Borba é o da
loucura despertada através de um processo que ativa fatores, atitudes e manias,
bem como uma sucessão de estímulos que envolvem a personagem e desvelam a
engrenagem do sistema social. Vejamos como inicia o romance:

Rubião fitava a enseada – eram oito horas da manhã. Quem o visse, com
os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de
Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta; mas, em
verdade, vos digo que pensava em outra cousa. (ASSIS, 1982, p. 13).

30
TÓPICO 2 | A LITERATURA OITOCENTISTA NO BRASIL

É possível perceber a habilidade com que Machado de Assis liga o texto


ao contexto. O narrador se intromete no pensamento da personagem, fazendo
pensar duas coisas ao mesmo tempo, conforme vemos em “mas, em verdade,
vos digo que pensava em outra cousa”. (ASSIS, 1982, p. 13). Grande parte dos
narradores criados pelo escritor se dirigia ao leitor, seja para questioná-lo ou para
expor o seu ponto de vista. Esse modo faz menção ao grande domínio da escrita
e ao grande talento de Machado.

Cortejava o passado com o presente. Que era, há um ano? Professor.


Que é agora? Capitalista. Olha para si, para as chinelas (umas chinelas de
Túnis, que lhe deu recente amigo, Cristiano Palha), para a casa, para o jardim,
para a enseada, para os morros e para o céu; e tudo, desde as chinelas até o céu,
tudo entra na mesma sensação de propriedade.

– Vejam como Deus escreve direito por linhas tortas, pensa ele. Se mana
Piedade tem casado com Quincas Borba, apenas me daria uma esperança
colateral. Não casou; ambos morreram, e aqui está tudo comigo; de modo que
o que parecia uma desgraça...

FONTE: (ASSIS, 1982, p. 13)

Contemplando a praia de Botafogo, da janela de sua casa, Rubião se divide


em sensações opostas entre o passado incerto de professor e o seguro presente
de capitalista. Essa brusca mudança de status constitui presa fácil de exploração.
Nesse sentido,

[...] atraído pelo fascínio da corte, graças à gorda herança alcançada,


abandona velhos hábitos, mas traz intacta a ingenuidade e com ela
valores ainda não contaminados. É assim minado com facilidade pelo
sistema no qual passa a viver sem os suportes do aprendizado que lhe
garantissem a invulnerabilidade. (GARBUGLIO, 1982, p. 5).

Por estar vulnerável e desconhecer as artimanhas da sociedade, Rubião


foi presa fácil do casal Palha e Sofia. Esta última constitui parte central no jogo de
que apenas Rubião ignora as regras e cujo fim é a posse. No dizer de Garbuglio
(1982), Sofia é descrita a partir de três perspectivas, a primeira do narrador que
acentua sua beleza, seus meneios e sua suposta disponibilidade.

[...] E recordava assim o primeiro encontro, na estação de Vassouras,


onde Sofia e o marido entraram no trem da estrada de ferro, no mesmo carro
em que ele descia de Minas; foi ali que achou aquele par de olhos viçosos, que
pareciam repetir a exortação do profeta. Todos vós que tendes sede, vinde às
águas. (ASSIS, 1982, p. 15).

A segunda faz menção à Sofia ambígua, avessa à pobreza e vaidosa de seus


atrativos, pelo corpo bem-feito, o colo decotado e braços cheios, que o marido usa
como instrumento para facilitar a abertura dos caminhos.

31
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

[...] Fruto do meio social que aceita e no qual quer brilhar, jamais fruto
biológico segundo as regras do realismo-naturalismo, Sofia utiliza
todos os instrumentos em disponibilidade, afiados pelo marido para
conseguir a subida e a participação no estamento. (GARBUGLIO,
1982, p. 8).

A terceira Sofia é composta pela imaginação de Rubião que sofre todas


as deformações, uma imagem por ele criada que corresponde à mulher cobiçada
que pode cumprir as promessas do desejo recalcado.

[...] – Foi ela que me recomendou aqueles dois quadrinhos, quando


andávamos, os três, a ver cousas para comprar. Estava tão bonita! Mas o que
eu mais gosto dela são os ombros, que vi no baile do coronel. Que ombros!
Parecem de cera; tão lisos, tão brancos! Os braços também; oh! os braços! Que
bem-feitos! (ASSIS, 1982, p.14).

O narrador transfere a Rubião a admiração pelos ombros e braços da


mulher. Esta era uma das obsessões machadianas. Vê-se no excerto apresentado o
efeito que Sofia exercia sobre Rubião. Além dessa questão, é importante perceber
o esquema que define a sociedade: virtualidades que se manifestam, expondo o
traço mercantilista do qual importam apenas os valores de troca, quaisquer que
eles sejam.

Não trazia ideias adequadas ao convite, é verdade; vinha com a herança


na cabeça, o testamento, o inventário, cousas que é preciso explicar primeiro,
a fim de entender o presente e o futuro. Deixemos Rubião na sala de Botafogo,
batendo com as borlas do chambre nos joelhos, e cuidando da bela Sofia. Vem
comigo, leitor; vamos vê-lo, meses antes, à cabeceira do Quincas Borba. (ASSIS,
1982, p.14).

Assim, o encontro entre Rubião e o casal Palha se constituiu um jogo de


interesses entre ambos, para o primeiro a paixão pela mulher que o moveu desde
o início e, para o segundo, a possibilidade de ascensão econômica.

Como podemos observar, é recorrente a técnica da intromissão do


narrador que avisa ao leitor do retrocesso no tempo para descrever a trajetória de
Rubião anterior à herança, quando conheceu e passou a cuidar de Quincas Borba.

Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favor de ler as Memórias


Póstumas de Brás Cubas, é aquele mesmo náufrago da existência, que ali
aparece, mendigo, herdeiro inopinado, e inventor de uma filosofia. Aqui o tens
agora em Barbacena. (ASSIS, 1982, p. 15).

No excerto apresentado começa o flash-back, recurso de que se vale o


narrador para inserir o leitor no contexto do passado, dando informações para
melhor compreensão da narrativa.

32
TÓPICO 2 | A LITERATURA OITOCENTISTA NO BRASIL

Foi esse trechozinho de romance que ligou os dois homens. Saberia


Rubião que o nosso Quincas Borba trazia aquele grãozinho de sandice, que um
médico supôs achar-lhe? Seguramente, não; tinha-o por homem esquisito. É,
todavia, certo que o grãozinho não se despegou do cérebro de Quincas Borba,
– nem antes, nem depois da moléstia que lentamente o comeu. [...] Antes de
professor, metera ombros a algumas empresas, que foram a pique.

Durou o cargo de enfermeiro mais de cinco meses, perto de seis. Era


real o desvelo de Rubião, paciente, risonho, múltiplo, ouvindo as ordens do
médico, dando os remédios às horas marcadas, saindo a passeio com o doente,
sem esquecer nada, nem o serviço da casa, nem a leitura dos jornais, logo que
chegava a mala da Corte ou a de Ouro Preto.

– Tu és bom, Rubião, suspirava Quincas Borba.

FONTE: (ASSIS, 1982, p. 15)

O escritor vai desenhando a narrativa em que o protagonista oscila entre


os seus sonhos e delírios. Rubião existe socialmente porque existe literariamente,
graças ao poder criador da palavra. No capítulo VI, Quincas Borba explica a
Rubião o princípio da sua filosofia, o humanitismo:

Para entenderes bem o que é a morte e a vida, basta contar-te como


morreu minha avó.

– Como foi?

– Senta-te.

Rubião obedeceu, dando ao rosto o maior interesse possível, enquanto


Quincas Borba continuava a andar.

– Foi no Rio de Janeiro, começou ele, defronte da Capela Imperial, que


era então Real, em dia de grande festa; minha avó saiu, atravessou o adro,
para ir ter à cadeirinha, que a espera no Largo do Paço. Gente como formiga.
O povo queria ver entrar as grandes senhoras nas suas ricas traquitanas. No
momento em minha avó saía do adro para ir à cadeirinha, um pouco distante,
aconteceu espantar-se uma das bestas de uma sege; a besta disparou, a outra
imitou-a, confusão, tumulto, minha avó caiu, e tanto as mulas como a sege
passaram-lhe por cima. Foi levada em braços para uma botica da Rua Direita,
veio um sangrador, mas era tarde; tinha a cabeça rachada, uma perna e o ombro
partidos, era toda sangue; expirou minutos depois.

– Foi realmente uma desgraça, disse Rubião.

– Não.
– Não?

33
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

– Ouve o resto. Aqui está como se tinha passado o caso. O dono da sege
estava no adro, e tinha fome, muita fome, porque era tarde, e almoçara cedo e
pouco. Dali pôde fazer sinal ao cocheiro; este fustigou as mulas para ir buscar
o patrão. A sege no meio do caminho achou um obstáculo e derribou-o; esse
obstáculo era minha avó. O primeiro ato dessa série de atos foi um movimento
de conservação: Humanitas tinha fome. Se em vez de minha avó, fosse um
rato ou um cão, é certo que minha avó não morreria, mas o fato era o mesmo;
Humanitas precisa comer. Se em vez de um rato ou de um cão, fosse um poeta,
Byron ou Gonçalves Dias, diferia o caso no sentido de dar matéria a muitos
necrológios; mas o fundo subsistia. O universo ainda não parou por lhe faltarem
alguns poemas mortos em flor na cabeça de um varão ilustre ou obscuro, mas
Humanitas (e isto importa, antes de tudo), Humanitas precisa comer.

Rubião escutava, com a alma nos olhos, sinceramente desejoso de


entender; mas não dava pela necessidade a que o amigo atribuía a morte da
avó. Seguramente o dono da sege, por muito tarde que chegasse a casa, não
morria de fome, ao passo que a boa senhora morreu de verdade, e para sempre.
Explicou-lhe, como pôde, essas dúvidas, e acabou perguntando-lhe

– E que Humanitas é esse?

– Humanitas é o princípio. Mas não, não digo nada, tu não és capaz de


entender isto, meu caro Rubião; falemos de outra cousa.

– Diga sempre.

Quincas Borba, que não deixara de andar, parou alguns instantes.

– Queres ser meu discípulo?

– Quero.

– Bem, irás entendendo aos poucos a minha filosofia; no dia em que a


houveres penetrado inteiramente, ah! nesse dia terás o maior prazer da vida,
porque não há vinho que embriague como a verdade. Crê-me, o Humanitismo
é o remate das cousas; e eu que o formulei, sou o maior homem do mundo.
Olha, vês como o meu bom Quincas Borba está olhando para mim? Não ele, é
Humanitas...

– Mas que Humanitas é esse?

– Humanitas é o princípio. Há nas cousas todas certa substância


recôndita e idêntica, um princípio único, universal, eterno, comum, indivisível
e indestrutível, – ou, para usar a linguagem do grande Camões – “Uma verdade
que nas cousas anda/Que mora no visíbil e invisíbil”.

34
TÓPICO 2 | A LITERATURA OITOCENTISTA NO BRASIL

Pois essa substância ou verdade, esse princípio indestrutível é que


é Humanitas. Assim lhe chamo, porque resume o universo, e o universo é o
homem. Vais entendendo?

– Pouco, mas, ainda assim, como é que a morte de sua avó...

– Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas


formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não
há morte, há vida, porque a supressão de uma é princípio universal e comum.
Daí o caráter conservador e benéfico da guerra. Supõe tu um campo de batatas e
duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos,
que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde
há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas
do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz,
nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina
a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações,
recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra
não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de
que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo
motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente
a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.

FONTE: (ASSIS, 1982, p. 17)

Humanitas é um termo latino que significa humanidade. O humanitismo


era a filosofia de Quincas Borba, a qual pressupõe a vida como um campo de
batalha em que só os fortes sobrevivem como Palha e Sofia. Por sua vez, os
fracos e ingênuos são manipulados e aniquilados pelos espertos. “A parábola
da tribo faminta será comprovada com a própria história de Rubião”, explica
Garbuglio (1982, p. 19). Para exemplificar tal questão, Quincas Borba cria o
aforismo “ao vencedor, as batatas”, que encontra um ponto de intersecção com o
enredo do romance.

UNI

O aforismo foi empregado inicialmente por Hipócrates, cujo termo designava


toda proposição concisa, encerrando um saber medicinal baseado na experiência e que
podia ser considerado norma e verdade dogmática. A obra de Hipócrates principia com um
aforismo que se tornou célebre e exemplar: a arte é longa, a vida breve. Com o tempo, o
vocabulário estendeu-se a outros ramos do conhecimento. “O aforismo caracteriza-se por
ocultar um elemento afetivo, místico, alógico, intuitivo, irracional”. (MOISÉS, 2004, p. 13).

35
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

No capítulo XIV vemos o relato em que Quincas Borba deixa a Rubião em


testamento todos os seus bens:

Quando o testamento foi aberto, Rubião quase caiu para trás. Adivinhais
por quê. Era nomeado herdeiro universal do testador. Não cinco, nem dez,
nem vinte contos, mas tudo, o capital inteiro, especificados os bens, casas na
Corte, uma em Barbacena, escravos, apólices, ações do Banco do Brasil e de
outras instituições, joias, dinheiro amoedado, livros, – tudo finalmente passava
às mãos do Rubião, sem desvios, sem deixas a nenhuma pessoa, nem esmolas,
nem dívidas. Uma só condição havia no testamento, a de guardar o herdeiro
consigo o seu pobre cachorro Quincas Borba, nome que lhe deu por motivo da
grande afeição que lhe tinha. Exigia do dito Rubião que o tratasse como se fosse
a ele próprio testador, nada poupando em seu benefício, resguardando-o de
moléstias, de fugas, de roubo ou de morte que lhe quisessem dar por maldade;
cuidar finalmente como se cão não fosse, mas pessoa humana. Item, impunha-
lhe a condição, quando morresse o cachorro, de lhe dar sepultura decente em
terreno próprio, que cobriria de flores e plantas cheirosas; e mais desenterraria
os ossos do dito cachorro, quando fosse tempo idôneo. E os recolheria a uma
urna de madeira preciosa para depositá-los no lugar mais honrado da casa.

FONTE: (ASSIS, 1982, p. 25)

A herança, tema abordado pelo autor, poderia ser uma alusão ao contexto
social e econômico da época realista cujas implicações são duas: uma dos bens
acumulados que passavam de mão em mão, como maneira de enriquecimento
e de ascensão social, a outra de ordem psicológica ligada ao fato de Rubião ter
herdado o cachorro, o qual representa uma espécie de consciência que prolonga
no presente a lembrança do passado, e também “herda os germes da loucura do
falecido”. (GARBUGLIO, 1982, p. 6).

Quincas Borba, que estava com ele no gabinete, deitado, levantou


casualmente a cabeça e fitou-o. Rubião estremeceu; a suposição de que naquele
Quincas Borba podia estar a alma do outro nunca se lhe varreu inteiramente do
cérebro. Desta vez chegou a ver-lhe um tom de censura nos olhos; riu-se, era
tolice; cachorro não podia ser homem. Insensivelmente, porém, abaixou a mão
e coçou as orelhas ao animal, para captá-lo.

FONTE: (ASSIS, 1982, p. 79)

O protagonista muda de situação financeira. No entanto, não conhecia


as vicissitudes e nem as artimanhas humanas, por isso estaria exposto à pressão
de interesses alheios. Sobre este aspecto argumenta Garbuglio (1982, p. 8), “[...]
enriquecido, sem ser contaminado, Rubião continua portador das virtudes que
se transformam exatamente em sua destruição”. Entre os componentes de sua
ruína, estavam Sofia, Palha e Camacho, para os quais Rubião representava a
grande oportunidade de escalada social.

36
TÓPICO 2 | A LITERATURA OITOCENTISTA NO BRASIL

É de saber que tinham decorrido oito meses desde o princípio do


capítulo anterior, e muita cousa estava mudada. Rubião é sócio do marido
de Sofia, em uma casa de importação, à Rua da Alfândega, sob a firma Palha
e Companhia. Era o negócio que este ia propor-lhe, naquela noite, em que
achou o Dr. Camacho na casa de Botafogo. Apesar de fácil, Rubião recuou
algum tempo. [...] Sofia (dona astuta!) recolheu-se à inconsciência do homem,
respeitosa da liberdade moral, e deixou-o resolver por si mesmo que entraria
de sócio com o marido, mediante certas cláusulas de segurança. Foi assim que
se fez a sociedade comercial; assim é que Rubião legalizou a assiduidade das
suas visitas.

FONTE: (ASSIS, 1982, p. 79)

Neste momento o leitor toma conhecimento que Rubião é sócio de Palha,


revelando, desse modo, o motivo do sucesso econômico do casal. É também neste
mecanismo que o protagonista se deixa envolver, mesmo antes de chegar ao
Rio de Janeiro, pois é na viagem que Rubião conhece os que iriam dilapidar seu
capital. “E este envolvimento é essencial para o desvelamento da engrenagem,
cujos valores serão postos em causa”. (GARBUGLIO, 1982, p. 9). É importante
ressaltar, além da ingenuidade, o estranhamento em face do novo código que
o levam à degradação. Rubião era “[...] terra eternamente virgem para nele se
plantar qualquer cousa”. (ASSIS, 1982, p. 69).

A narrativa acompanha o processo de degradação que inicia com a


alienação seguida da loucura. O retorno à cidade natal é também o regresso ao
estágio de pobreza anterior à herança.

Rubião, logo que chegou a Barbacena e começou a subir a rua que ora
se chama de Tiradentes, exclamou parando: – Ao vencedor, as batatas! [...]
Ninguém lhe abriu a porta; não viu sombra de sacristão. Quincas Borba que
não comia desde muitas horas [...]

FONTE: (ASSIS, 1982, p. 38)

Rubião regressa à Barbacena juntamente com o cachorro Quincas Borba,


degradado e alienado. Tal fato, no dizer de Garbuglio (1982, p. 6), “completa o
círculo professor-capitalista-alienado”. Observemos a sequência que segue:

Foi a comadre do Rubião, que o agasalhou e mais ao cachorro, vendo-os


passar defronte da porta. Rubião conheceu-a, aceitou o abrigo e o almoço.

– Mas que é isso, seu compadre? Como foi que chegou assim? Sua
roupa está toda molhada. Vou dar-lhe umas calças de meu sobrinho.

[...] – Ao vencedor, as batatas! – bradava Rubião aos curiosos. Aqui


estou imperador! Ao vencedor, as batatas!

37
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

Esta palavra obscura e incompleta era repetida na rua, examinada,


sem que lhe dessem com o sentido. Alguns antigos desafetos do Rubião iam
entrando, sem cerimônia, para gozá-lo melhor; e diziam à comadre que não
lhe convinha ficar com um doudo em casa, era perigoso; devia mandá-lo
para a cadeia, até que a autoridade o remetesse para outra parte. Pessoa mais
compassiva lembrou a conveniência de chamar o doutor.

– Doutor para quê? acudiu um dos primeiros. Este homem está maluco.
FONTE: (ASSIS, 1982, p. 187)

Rubião põe em prática ações e valores que convergem para a sua ruína e
estabelece um vai e vem que revela o parco equilíbrio, graças a uma linguagem
que compõe e decompõe a realidade.

O romance Quincas Borba, de natureza moral, é também permeado por


estruturas mais profundas que refletem a indiferença e o abandono. Assim,
o escritor “instala dúvidas, varia a perspectiva para alcançar planos menos
aparentes, não demonstra, sugere. Graças à sua força, o jogo atrai e permanece
vivo, resistindo ao tempo, desafiando o leitor e sua inteligência, sacudindo
nossa indiferença”. (GARBUGLIO, 1982, p. 9). Conforme pudemos observar na
análise da narrativa apresentada, Machado de Assis cria seres que ambicionam,
sobretudo, mudar de classe social.

Em 1896 são publicados os livros de contos Várias Histórias e Páginas


Recolhidas. São narrativas que indicam o domínio desse gênero que o escritor havia
alcançado pelas próprias experiências das quais se alimentam os seus escritos.
“Tem-se a impressão de que tudo é fácil para a sua maestria. Um tipo, uma
anedota, uma atmosfera lhe bastam, para que surjam prontos e confeccionados,
dos subterrâneos da evocação, aqueles exemplares de magníficas narrações”.
(COUTINHO, 2004a, p. 163).

Os seus contos, em torno de 178 textos, constituem objeto de observação


e deveriam ser estudados pelos variados temas. Sua elaboração e publicação
preenchem os vazios editoriais que medeiam entre os romances do autor. Desse
gênero, Machado de Assis foi um dos escritores mais férteis na língua portuguesa.
Sobre essa questão, vale a pena expor as palavras de José Veríssimo (1998, p. 441)
que tão bem sintetiza o seu fazer artístico:

Efetivamente ninguém jamais nesta [língua] contou com tão leve


graça, tão fino espírito, tamanha naturalidade, tão fértil e graciosa
imaginação, psicologia tão arguta, maneira tão interessante e
expressão tão cabal, historietas, casos, anedotas de pura fantasia ou de
perfeita verossimilhança, tudo recoberto e realçado de emoção muito
particular, que varia entre amarga e prazenteira, mas infalivelmente
discreta. Histórias de amor, estados d’alma, rasgos de costume, tipos,
ficções da história ou da vida, casos de consciência, caracteres, gente
e hábitos de toda a casta, feições do nosso viver, nossos mais íntimos

38
TÓPICO 2 | A LITERATURA OITOCENTISTA NO BRASIL

sentimentos e mais peculiares idiossincrasias, acha-se tudo superior


e excelentemente representado, por um milagre de transposição
artística, nos seus contos. E sem vestígios de esforços, naturalmente,
num estilo maravilhoso de vernaculidade, de precisão, de elegância.

Com base no exposto, podemos deduzir que o escritor mostrou intensa


vocação e capacidade inventiva, registrando momentos psicológicos em contos
como A Missa do Galo, A Cartomante e A Causa Secreta.

É possível perceber que o escritor é resultado do estudo, reflexão e leituras


dos autores clássicos que o encaminham à plenitude de seu estilo, uma maneira
de escrever pessoal, própria, inconfundível com características só dele. Dentre
estas podemos citar: a conversa com o leitor, recurso muito utilizado pelo escritor
e que marca certo dialogismo; a ironia que tão bem soube utilizar em seus contos
e romances a exemplo de “humanitas precisa comer” (ASSIS, 1982, p. 18), cuja frase
encontra-se em Quincas Borba, transmitindo ao instinto a força que move a vida.
E por último, o estudo da alma feminina, pelas diversas personagens que criou,
especialmente, a sua mais famosa: a Capitulina do romance Dom casmurro, escrito
em 1899, a mais notável da trilogia das narrativas de Machado de Assis.

“[...] – Deixe ver os olhos, Capitu.

Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de


cigana oblíqua e dissimulada”. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada
sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar.
Só me perguntava o que era, se nunca os vira, eu nada achei extraordinário; a
cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação, creio que
lhe deu outra ideia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-
los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto
atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão
que... Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para
dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de
dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos
de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam
não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro,
como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca”.

FONTE: ASSIS, 1998, p. 55

O excerto faz alusão aos olhos de Capitu, “considerada uma das mais
fascinantes personagens femininas da literatura brasileira”. (LUCAS, 1998, p. 5).
Outro aspecto peculiar deste romance faz menção ao protagonista e titular da
fala, Bentinho, o Dom Casmurro, que já de início explica:

Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles
lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom
veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando!

39
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro
daqui até ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo
que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá
cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores;
alguns nem tanto.

FONTE: ASSIS (1998, p. 13)

A essência do romance, ao que parece, constitui o ponto de vista do


narrador que se propõe escrever o que viveu. Pela voz de Bentinho conhecemos
as demais personagens, cujo enredo rodeia o triângulo formado por ele – Capitu
e Escobar. “Assim, toda a galeria de personagens, coada por uma sensibilidade,
busca projetar-se na consciência dos destinatários da mensagem, os leitores,
complementando-se o circuito da informação”, enfatiza Lucas (1998, p. 6).

FIGURA 3 – CAPA DO LIVRO DOM CASMURRO, PUBLICADO EM 1998 PELA EDITORA ÁTICA E
ILUSTRADO POR CECÍLIA IWASHITA

FONTE: Disponível em: < http://meiapalavra.mtv.uol.com.br/files/2010/03/capa-do-livro-dom-


casmurro.jpg>. Acesso em: 2 abr. 2011.

Vários capítulos do romance revelam fortes reflexões sobre a passagem do


tempo, especialmente as de Bentinho, nas quais podemos observar um discurso
que extrapola um problema de identidade e de autoconhecimento. No caso, a
personagem narradora constitui terreno fértil para a reflexão sobre si mesma e na
observação da própria obra em progresso. “Ao acompanharmos o ‘eu’ narrador
do romance, caminhamos com o protagonista na busca do ‘eu central’, fraturado
nas circunstâncias da história, isto é, da vida fluida”. (LUCAS, 1998, p. 7).

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TÓPICO 2 | A LITERATURA OITOCENTISTA NO BRASIL

Na literatura e como romancista, Machado de Assis manifestou seu senso


perfeito realizado na sua forma verbal. Dessa maneira, em Dom Casmurro, a
enunciação é colocada em prática ao longo da obra,

[...] cuja finalidade é deleitar e comover o leitor, e o processo ideativo,


cuja sede está nos comentários livres que se mesclam à trama e a
integram, com finalidade docente, expandindo a espessura filosófica
do texto e convidando o leitor a meditar sobre a trajetória humana.
(LUCAS, 1998, p. 7).

O autor cria um narrador consciente de si mesmo, o Dom Casmurro


que, enquanto ensina, comove, deleita e eterniza a obra de Machado de Assis. O
pseudoautor é um artifício utilizado por Machado de Assis, aliado ao conteúdo.
Assim, o narrador manifesta suas memórias, ou seja, tempo e texto irradiam
desse argumento.

De modo geral, em seus escritos o autor chama a atenção para a face negativa
e má da natureza humana, ignorando a bondade e a grandeza da alma. Sob essa
ótica pessimista, o homem aparece corrompido e sem escolhas diante das forças que
conduzem o seu destino. O sofrimento e a dor mereceram em Machado de Assis
apenas a observação e a comprovação.

O ano de 1904 é marcado pela publicação do romance Esaú e Jacó e também


pela morte de sua esposa Carolina, fato este que contribuiu para que perdesse o
prazer pela vida depois de tê-la vivido tranquilamente como burocrata e escritor,
uma trajetória de alegrias pessoais e pouco turbada pelo sofrimento, a não ser
aquele que expunha em seus textos, fruto das reflexões sobre a existência. “Mas
ainda assim, como inseto que recomeça, por instinto, ao trabalho de reparação
da teia desfeita, procura refazer o tecido com o trabalho literário, cujo fruto
derradeiro e amadurecido é o Memorial de Aires”. (COUTINHO, 2004a, p. 170).

Neste livro, deixa transparecer a bondade e a simpatia humana, dando


mostras de seriedade que o autor tinha alcançado como homem e como literário. No
dizer de Coutinho (2004a), o espírito do escritor havia chegado a estado pelo qual
poderia ser confundido com a sabedoria popular, uma vez que O Memorial de Aires
apresenta argumentos em favor da vida.

Os últimos momentos de Machado de Assis não foram dramáticos.


Sucumbiu à vida em 29 de setembro de 1908, na casa do Cosme Velho, ladeado
pelos amigos sem a companhia da sua amada esposa Carolina, para ajudá-lo a
morrer. Esta última questão é abordada por Marinho quando cita que “quatro
anos antes da morte de Machado, contra a vontade de Dona Carolina, que queria
cuidar do marido até o fim, ela se foi”. Há que se enfatizar que a esposa morta
continuava a criar nele certa expectativa, conforme sequência reproduzida pelo
conselheiro Aires: “Quando eu morrer irei para onde ela estiver, no outro mundo,
e ela virá ao meu encontro”. (ASSIS, 1908, p. 10).

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UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

Apesar de manter-se lúcido, o cansaço e a saudade da vida alternam-


se no corpo e no espírito. Segundo Coutinho, era o início da morte do escritor,
transformado pela longa e triste agonia. “A petulância do espírito foi convertida
em mansidão, a ironia, em piedade, a desconfiança, em abandono, a dúvida, em
esperança de outra vida”. (COUTINHO, 2004a, p. 172).

Machado de Assis foi um transformador da realidade, um criador da obra


semelhante à vida, que tão bem empregou a técnica narrativa, a exemplo do que
podemos ler no Memorial de Aires: “[...] eu deixei-me ir atrás daquela ternura, não
que a compartisse, mas fazia-me bem. Já não sou deste mundo, mas não é mau
afastar-se a gente da praia com os olhos na gente que fica”. (ASSIS, 1908, p. 256).

Além da narrativa, o escritor ainda se dedicou à composição de poemas.


Sobre a publicação deste gênero, optamos por transcrever a opinião de Érico
Veríssimo, cujo texto foi extraído e adaptado do livro de sua autoria História da
Literatura Brasileira, capítulo XIX , intitulado Machado de Assis.

[...] Em 1864, com as Crisálidas, é que verdadeiramente começa a


sua vida literária, não mais como tentativa, senão como atividade nunca
descontinuada. Vinte e dous poemas, escritos entre 1858 e 64, compunham essa
coleção. Distinguiam-se pela emoção menos desbordante que o nosso comum
lirismo e por um apuro de forma insólito na nossa poesia. À perfeição com
que já manejava o alexandrino, verso ainda mal-aclimado na nossa língua, o
pechoso cuidado que punha nos ritmos e rimas dos seus, para os fazer menos
triviais e mais tersos sem perda da sonoridade, juntava-se o polido da língua
e o escolhido da frase poética: Aspiração, que é de 1862, mormente Versos à
Corina, de 1864, documentam este juízo. Tanto pelo valor do sentimento como
da sua expressão, este último é uma das mais belas amostras do nosso lirismo.
Como as obras verdadeiramente clássicas, isto é, que não são de ocasião ou
de moda, tão vivo e novo hoje como à data da sua composição, há quase meio
século. Estava-se ainda em pleno viço do subjetivismo e do sentimentalismo
poético de Álvares de Azevedo e dos seus companheiros de geração, poesia de
descrença e desconsolo, de desengano e tristeza, dominada pela ideia da morte.
De todos esses poetas eram os versos, como dos seus dizia exatamente aquele,
flores da sua alma, “murchas flores que só orvalha o pranto”. [...] A musa é
para ele a “consoladora em cujo seio amigo e sossegado respira o poeta o suave
sono, quando a mão do tempo e o hálito dos homens lhe tenham murchado a
flor das ilusões e da vida”. Este sentimento revigora-se no Prelúdio das Falenas,
a sua segunda edição das poesias:

O poeta é assim: tem, para a dor e o tédio,


Um refúgio tranqüilo, um suave remédio:
És tu, casta poesia, ó terra pura e santa!

Quando a alma padece, a lira exorta e canta;


E a musa que, sorrindo, os seus bálsamos verte,
Cada lágrima nossa em pérola converte.

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TÓPICO 2 | A LITERATURA OITOCENTISTA NO BRASIL

Não era das falazes costumeiras profissões de fé de poetas. Toda a sua


vida literária, de um tão alevantado e peregrino no decoro, a confirma.

Vários são os motivos de inspiração nas Crisálidas desde as mais intensas


emoções de poeta amoroso ou antes preocupado já, como nenhum outro aqui,
do eterno feminino, e rasgos de pensamento que nos formosos tercetos de No
Limiar, como nos belos alexandrinos de Aspiração, pressagiam o poeta perfeito
das Ocidentais, até os temas subjetivos sentidamente idealizados do Epitáfio
do México, de Polônia, de Monte Alverne. Mas nem naqueles havia o comum
excesso de sentimentalismo, nem nestes algum exagero de idealismo, e uns e
outros vinham estremes da moléstia constitucional da nossa poesia, a oratória.
Trazem certamente o cunho do tempo, porém com tal medida e acerto que, no
seu encantador lirismo, muito nosso, nos são contemporâneos. É dos poucos
de então que não envelheceram, isto é, que não precisam que nos ponhamos
no diapasão do seu tempo para os sentirmos e estimarmos. Digam-no estas
estrofes de Visio, que são de 64:

Eras pálida. E os cabelos,


Aéreos, soltos novelos,
Sobre as espáduas* caíam...
Os olhos meio cerrados
De volúpia e de ternura
Entre lágrimas luziam...
E os braços entrelaçados,
Como cingindo a ventura,
Ao teu seio me cingiam...

Depois, naquele delírio,


Suave, doce martírio
De pouquíssimos instantes,
Os teus lábios sequiosos,
Frios, trêmulos, trocavam
Os beijos mais delirantes,
E no supremo dos gozos
Antes os anjos se casavam
Nossas almas palpitantes...

Depois... depois a verdade,


A fria realidade,
A solidão, a tristeza;
Daquele sonho desperto,
Olhei... silêncio de morte
Respirava a natureza, –
Era a terra, era o deserto,
Fora-se o doce transporte,
Restava a fria certeza.

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UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

Desfizera-se a mentira:
Tudo aos meus olhos fugira;
Tu e o teu olhar ardente,
Lábios trêmulos e frios,
O abraço longo e apertado,
O beijo doce e veemente;
Restavam meus desvarios,
E o incessante cuidado,
E a fantasia doente.

E agora te vejo. E fria


Tão outra estás da que eu via
Naquele sonho encantado!
És outra, calma, discreta,
Com o olhar indiferente,
Tão outro o olhar sonhado,
Que a minha alma de poeta
Não ver se a imagem presente
Foi a visão do passado.
Foi, sim, mas visão apenas;
Daquelas visões amenas
Que à mente dos infelizes
Descem vivas e animadas,
Cheias de luz e esperança
E de celestes matizes:
Mas, apenas dissipadas,
Fica uma leve lembrança,
Não ficam outras raízes.

Inda assim, embora sonho,


Mas, sonho doce e risonho,
Desse-me Deus que fingida
Tivesse aquela ventura
Noite por noite, hora a hora,
No que me resta de vida,
Que, já livre da amargura,
Alma, que em dores me chora,
Chorara de agradecida!

Há neles certamente o toque do tempo, e algo de garrettiano, mas


também uma alma de verdadeiro poeta, que sobrevive à época.

A atividade poética de Machado de Assis continuou com as Falenas


em 1869, as Americanas em 1875 e as Ocidentais em 1902. Quer em verso,
quer em prosa, a sua produção – outra singularidade deste singular escritor
–, sem ser nunca de improviso ou apressada, é contínua, sempre trabalhada e

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TÓPICO 2 | A LITERATURA OITOCENTISTA NO BRASIL

aperfeiçoada. Modesto por índole e por civilidade, tímido de temperamento,


modéstia e timidez que encobriam grande energia moral e íntima consciência de
sua capacidade, Machado de Assis, estranho a toda a petulância da juventude,
estuda, observa, medita, lê e relê os clássicos da língua e as obras-primas das
principais literaturas. Ao contrário de alguns notáveis escritores nossos que
começaram pelas suas melhores obras e como que nelas se esgotaram, tem
Machado de Assis uma marcha ascendente. Cada obra sua é um progresso
sobre a anterior. Ou de própria intuição do seu claro gênio, ou por influência do
particular meio literário em que se achou, fosse porque fosse, foi ele um dos raros
senão o único escritor brasileiro do seu tempo que voluntariamente se entregou
ao estudo da língua pela leitura atenta dos seus melhores modelos. [...] As
Falenas justificam o seu título simbólico, nelas se desenvolvem as qualidades já
manifestadas nas Crisálidas, notadamente as da forma poética, métrica, língua,
estilo, esquisito dom de expressão, em que geralmente sobrelevam a poesia do
tempo. Vinte anos antes do parnasianismo tinham já rasgos deste no sóbrio e
requintado da emoção, no menor individualismo do poeta, que, ao contrário
dos últimos românticos, seus contemporâneos, se escondia e se esquivava. Os
temas pura ou demasiadamente subjetivos, as confissões impudentes do mais
recôndito da sua alma, tão do gosto deles, cediam o passo a temas mais gerais,
menos pessoais ou, quando o eram, tratados mais discretamente, com mais
refinada sensibilidade. Algumas peças desta coleção, como as da Lira Chinesa
e Uma Ode de Anacreonte, poemeto dramático em que finura da imaginação
pede meças à rara formosura de expressão, descobrem um poeta em toda a
força do seu talento. [...] Escritor desde os seus princípios consciente e reflexivo,
que nunca se deixou arrastar pelas modas literárias, e menos correu após a
voga do dia, Machado de Assis, ainda cedendo à influência da inspiração
americana, fê-lo com tão discreto sentimento e em forma tão pessoal e tão nova,
que o seu indianismo, certamente inferior ao de Gonçalves Dias como emoção
e expressão tocante, tem um sainete particular e uma generalidade maior, o
que acaso lhe assegura um melhor futuro. “Algum tempo, escreveu ele na
“advertência” das Americanas explicando o seu novo livro, foi de opinião que
a poesia brasileira devia estar toda, ou quase toda, no elemento indígena. Veio
a reação, e adversários não menos competentes que sinceros, absolutamente
o excluíram do programa da literatura nacional. São opiniões extremas que,
pelo menos, me parecem discutíveis.” E não as querendo discutir, limita-se
a esta observação que dirimia definitivamente a questão, se, como me parece
certo, o só critério da obra d’arte é o talento com que é realizada: “Direi
somente que, em meu entender, tudo pertence à invenção poética, uma vez
que traga os caracteres do belo e possa satisfazer as condições da arte. [...] O
essencial é a alma do homem. Este final compendia a estética de Machado de
Assis. Poeta ou prosador, ele se não preocupa senão da alma humana. Entre
os nossos escritores, todos mais ou menos atentos ao pitoresco, aos aspectos
exteriores das cousas, todos principalmente descritivos ou emotivos, e muitos
resumindo na descrição toda a sua arte, só por isso secundária, apenas ele
vai além e mais fundo, procurando, sob as aparências de fácil contemplação
e igualmente fácil relato, descobrir a mesma essência das cousas. É outra das

45
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

suas distinções e talvez a mais relevante. [...] As Ocidentais, publicadas na


edição das suas Poesias Completas (1901), reveem a influência em Machado de
Assis do modernismo, do qual, desde o seu citado artigo sobre a nova geração
de poetas que estrearam depois de 1870, ele dera tão exata definição. São,
infelizmente, poucos os poemas cuja inspiração vem dessa nova corrente. [...]
No alto, mais os distintos quilates dessa poesia lhe ressarcem sobradamente a
quantidade. Com todas as suas brilhantes e não raro tocantes qualidades de
emoção, faltou sempre à poesia brasileira profundeza de sentimento. Viva,
eloquente até a facúndia, exuberante, colorida e vistosa, carece por via de regra
de intensidade na sensação e de sobriedade na expressão. Não quero dizer
que estas virtudes lhe faltem de todo, mas apenas que não são propriamente
as suas. Machado de Assis é um dos poucos poetas nossos que as teve, e
distintamente, as manifestou, como já ficou notado, desde a sua estreia. Elas,
principalmente sob o aspecto da profundeza, se lhes aperfeiçoaram nos citados
poemas das Ocidentais. É ainda que aí ele não cedeu à moda do momento,
nem acompanhou inconsideradamente, como fizeram tantos outros, a onda
modernista. Apenas desenvolveu-se no sentido dela, que era o mesmo sentido
que trazia o seu pensamento, o do ceticismo sem desespero e do pessimismo
benevolente, ambos de raiz. Mais que sinais, amostras de ambos encontram-se
já nas suas coleções anteriores. O que, distinção raríssima, acaso única, se não
encontra em nenhum destes poemas é a indiscreta transplantação para a poesia
de cousas científicas ou filosóficas ou algo da respectiva gíria. Tudo nele, como
no verdadeiro poeta, se faz sentimento e sensação e como tal se exprime, e em
forma que é, sem o rebuscado do Parnasianismo, porventura a mais perfeita
alcançada pela nossa poesia. [...]

FONTE: (VERÍSSIMO, 1998, p. 432-441)

O autor soube diferenciar a arte da vida, a literatura como um sistema de


símbolos e recursos, pois a arte está sujeita à vida. Ele soube ainda “criar um mundo
especial, semelhante ao real, que despertasse uma ilusão da vida, sem ser a vida. E
claro que este mundo tinha que ser verossímil, mas de uma verossimilhança mais
profunda, porque mais universal”. (COUTINHO, 2004a, p. 317).

Com base no exposto, podemos afirmar que Machado de Assis é


representante da mais alta expressão da literatura brasileira. O seu fazer, enquanto
escritor, atravessou vários momentos e movimentos literários. A sua arte pode
ser depreendida da própria obra, da qual demonstrou forte vocação, imbuída do
psicológico e de sensibilidade estética. De habilidade literária apurada, o autor nos
legou uma incomparável criação que somente um bruxo seria capaz de elaborar.

Outro escritor de que trataremos no próximo assunto é Euclides da Cunha,


consagrado pela crítica porque descreveu com esmero fatos históricos, temperando-
os com a melhor técnica inventiva. Os Sertões, obra de sua autoria, contemplam
aspectos do sertão, motivo pelo qual serviu de estudo sociológico. No entanto,
é incontestável o seu valor literário pela capacidade de expressão deste notável
escritor brasileiro.

46
TÓPICO 2 | A LITERATURA OITOCENTISTA NO BRASIL

4.1 EUCLIDES DA CUNHA


Desde o Romantismo foi crescente o interesse pelo Brasil Regional que,
influenciada pela geografia, economia, folclore e tradição, a literatura pôde
registrar características distintas, quais sejam: o modo de viver, os costumes, o
temperamento, a linguagem e as expressões cotidianas, dentre outras. Sobre o
conceito de regionalismo assim se expressa Coutinho (2004a, p. 235):

[...] Para ser regional não somente tem que ser localizada numa
região, senão também deve retirar sua substância real desse local.
Essa substância decorre, principalmente, do fundo natural – clima,
topografia, flora, fauna etc. – como elementos que afetam a vida
humana na região; e em segundo lugar, das maneiras peculiares da
sociedade humana estabelecida naquela região o que a fizeram distinta
de qualquer outra. Esse último é o sentido do regionalismo autêntico.

No entanto, há que se ressaltar que o regionalismo foi abordado


diferentemente pelos escritores, dependendo da época em que se expressam. No
período romântico, era comum os autores idealizarem seus textos, pois estavam
imbuídos do sentimento onírico, ou seja, supervalorizavam o local e o elemento
da terra, atribuindo-lhes qualidades, sentimentos e valores que não pertenciam
àquela cultura, constituindo, por isso, o paradoxo: o índio brasileiro sendo
explorado, ao mesmo tempo em que a literatura romântica o enaltecia. Coutinho
(2004a, p. 234) afirma que “o índio de José de Alencar era um europeu de tanga
e tacape”.

Da mesma maneira, o realismo cujo mote era analisar e interpretar a


realidade deu prosseguimento ao intento romântico, buscando valorizar as
questões da vida como fonte de inspiração, e também considerou as questões
regionais brasileiras as quais foram abordadas literariamente. Nesse sentido,
Coutinho (2004a, p. 234) argumenta que foi

[...] graças ao senso de verdade do Realismo, a mentalidade literária


brasileira perdeu o sentimentalismo na consideração da regionalidade
e passou a compreender que o regionalismo literário consiste [...]
em apresentar o espírito humano nos seus diversos aspectos, em
correlação com o seu ambiente imediato, em retratar o homem,
a linguagem, a paisagem e as riquezas culturais de uma região
particular, consideradas em relação às reações do indivíduo, herdeiro
de certas peculiaridades de raça e tradição.

Desse modo, as várias regiões brasileiras forneceram aos escritores


uma gama de assuntos, dos quais podemos citar a linguagem, a sua gente, os
conflitos sociais e morais, os costumes, um laboratório regional de Norte a Sul
que, geograficamente, compõe o país ou, nas palavras de Coutinho (2004a, p.
237), “[...] o regionalismo é um conjunto de retalhos que arma o todo nacional”. À
literatura não interessa a divisão geográfica, mas a cultura de cada região pela sua
importância e, para efeito de estudos, teóricos, a exemplo de Coutinho efetuaram
uma classificação em ciclos, dentre os quais nortista, nordestino, baiano, central,
paulista e gaúcho.

47
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

Pela contribuição regionalista na formação literária brasileira, é possível


afirmar que esta se refaz porque está próxima às raízes e é sempre mais
representativa quando essas são profundas. Além disso, enfatiza Coutinho (2004a,
p. 238): “[...] é através do particular que a arte atinge o geral, do individual que se
alarga no humano”. Os escritores regionalistas, nesse sentido, ao retratarem uma
realidade local, contribuíram para o fortalecimento das nossas letras, bem como
para a disseminação das peculiaridades regionais, a exemplo do sertão, temática
abordada pelo escritor Euclides da Cunha.

Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha nasceu em 1866, no Rio de Janeiro.


Foi professor, sociólogo, jornalista, engenheiro e escritor. Por volta do ano de
1897, como colaborador do jornal O Estado de São Paulo, é designado para cobrir a 
quarta expedição militar contra Canudos, cujos artigos, de então, relatavam fatos
do embate entre o exército e os revoltosos de Canudos, uma vez que o escritor
acompanhava, de perto, toda a movimentação de tropas, fazendo pesquisas sobre
a região e o Conselheiro.

NOTA

A primeira comunidade de Canudos surgiu no século XVIII às margens do Rio


Vaza-Barris, a 12 km da atual, no interior do estado da Bahia. Era uma pequena aldeia nos
arredores da Fazenda Canudos. Com a chegada de Antônio Conselheiro e seus seguidores,
em 1893, o lugar passou a ser denominado Belo Monte. Por volta de 1897 contava com
25.000 habitantes, sendo destruída pelo Exército durante a Guerra de Canudos, ocorrida
entre 1896-1897. (COUTINHO, 2004a, p. 204).

Em Monte Santo, Euclides realizava incursões nos contornos da cidade,


observando as plantas e minerais da região. O autor anotava em sua caderneta
de bolso, expressões populares e regionais, fatos climáticos, desenhos da cidade
e das serras da região e copiava o diário dos combatentes. Euclides transcrevia
poemas populares e profecias apocalípticas, que mais tarde seriam citados em
Os Sertões. Doente, retirou-se do local, confessando em seu último artigo para o
jornal o desapontamento provocado pela visão dos muitos feridos que gemiam
amontoados no chão. No retorno a São Paulo, o autor começa a elaborar o livro
que viria a se tornar a sua obra mais importante – Os Sertões – na qual retrata a
Guerra dos Canudos, publicado no ano de 1902, sendo recebido com aplausos e
restrições pela crítica. A primeira edição se esgota em pouco mais de dois meses.
Em 1906 passa a fazer parte da Academia Brasileira de Letras, falecendo em 1909,
depois de uma troca de tiros com o cadete Dilermando de Assis.

Para a compreensão dessa obra, é necessário que consideremos o contexto


social e intelectual do escritor Euclides da Cunha: republicano e positivista, viveu

48
TÓPICO 2 | A LITERATURA OITOCENTISTA NO BRASIL

na segunda metade do século XIX, em um país que era culturalmente influenciado


pela França. Nesse sentido, há que se enfatizar que a época que precedeu o autor
foi marcada pelas ideias deterministas e darwinistas e também por obras como
as de Rousseau, que tratou do mito do bom selvagem, na qual o escritor obteve
inspiração. Foi imbuído deste contexto que iniciou primeiramente a observação
em Canudos e mais tarde a escrita de Os Sertões. Sobre essa questão, explica
Antônio Candido (2002, p. 174) que

[...] para compreender um acontecimento histórico, Euclides pesquisa


a psicologia dos protagonistas; para compreendê-la vai além das
influências da raça e do meio geográfico. Esquema que hoje nos
pareceria demasiado mecânico, porque hoje em sociologia damos
relevo a fatores de ordem especificamente social, mas que ao seu
tempo era de preceito, por corresponder às concepções, dominantes
então, do naturalismo científico.

No que se refere à estrutura do livro, também é possível perceber a


influência taineana, tal como a concepção naturalista. Euclides divide Os Sertões
em três partes que correspondem aos fatores delimitados por Taine, quais sejam
– a terra, o homem e a luta. Vejamos, na parte introdutória, como o autor se
expressa:

Os sertões
Nota preliminar

Escrito nos raros intervalos de folga de uma carreira fatigante, este livro,
que a princípio se resumia à história da Campanha de Canudos, perdeu toda
a atualidade, remorada a sua publicação em virtude de causas que temos por
escusado apontar. Demos-lhe, por isto, outra feição, tornando apenas variante
de assunto geral o tema, a princípio dominante, que o sugeriu. Intentamos
esboçar, palidamente embora, ante o olhar de futuros historiadores, os traços
atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil. E fazêmo-lo
porque a sua instabilidade de complexos de fatores múltiplos e diversamente
combinados, aliada às vicissitudes históricas e deplorável situação mental em
que jazem, as tornam talvez efêmeras, destinadas a próximo desaparecimento
ante as exigências crescentes da civilização e a concorrência material intensiva
das correntes migratórias que começam a invadir profundamente a nossa terra.
O jagunço destemeroso, o tabaréu ingênuo e o caipira simplório serão em
breve tipos relegados às tradições evanescentes, ou extintas. Primeiros efeitos
de variados cruzamentos, destinavam-se talvez à formação dos princípios
imediatos de uma grande raça. Faltou-lhes, porém, uma situação de parada
ou equilíbrio, que lhes não permite a velocidade adquirida pela marcha dos
povos neste século. Retardatários hoje, amanhã se extinguirão de todo. A
civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável “força motriz da
História” que Gumplowicz, maior do que Hobbes, lobrigou, num lance genial,
no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes. A campanha
de Canudos tem por isto a significação inegável de um primeiro assalto, em
luta talvez longa. Nem enfraquece o asserto o termo-la realizado nós, filhos

49
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

do mesmo solo, porque, etnologicamente indefinidos, sem tradições nacionais


uniformes, vivendo parasitariamente à beira do Atlântico dos princípios
civilizadores elaborados na Europa, e armados pela indústria alemã – tivemos
na ação um papel singular de mercenários inconscientes. Além disso, mal
unidos àqueles extraordinários patrícios pelo solo em parte desconhecido, deles
de todo nos separa uma coordenada histórica – o tempo. Aquela campanha
lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um
crime. Denunciemo-lo. E tanto quanto o permitir a firmeza do nosso espírito,
façamos jus ao admirável conceito de Taine sobre o narrador sincero que encara
a história como ela o merece. [...]

FONTE: (CUNHA, 1998, p. 47)

Na parte introdutória, o autor explica o processo de elaboração de Os


Sertões, cuja é obra é fruto das observações quando acompanhava o conflito na
condição de correspondente de O Estado de S. Paulo. O livro apresenta uma forte
denúncia sobre o massacre dos sertanejos de Canudos, por conta dos confrontos
entre o exército e os seguidores de Antonio Conselheiro.

Euclides faz alusão às questões étnicas da população do local constituída


basicamente do mestiço que, conforme o próprio autor denomina, teria originado
uma sub-raça. Essa concepção enfatiza a questão da raça como determinante
psicológica. Observe, caro acadêmico, como o sertanejo é descrito:

O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo


dos mestiços neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, ao
primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o
desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso,
desengonçado, torto [...] reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar
sem firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso, aparenta a translação de
membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num
manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A
pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede
que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um
conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela.
Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. [...].
É o homem permanentemente fatigado. Reflete a preguiça invencível, a atonia
muscular perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar
desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante
à imobilidade e à quietude. Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.
Nada é mais surpreendedor do que vê-lo desaparecer de improviso. Naquela
organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas.
Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das
energias adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando
novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe,
alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e

50
TÓPICO 2 | A LITERATURA OITOCENTISTA NO BRASIL

corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos


do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro,
reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente,
num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias. Este
contraste impõe-se ao mais leve exame. Revela-se a todo o momento, em todos
os pormenores da vida sertaneja – caracterizado sempre pela intercadência
impressionadora entre extremos impulsos e apatias longas.

FONTE: (CUNHA, 1998, p. 75)

Inicialmente, o autor afirma que “o sertanejo é antes de tudo um forte”,


ainda que pareça desengonçado e abatido. Euclides enfatiza que diante de
qualquer incidente é capaz de surpreender e transfigurar-se. Daí vem a explicação
da postura do sertanejo frente ao conflito. O autor considera também os aspectos
geológicos, ou seja, a Terra, palco do incidente, foi amplamente observada e
descrita. Veja como o autor se expressa ao falar do sertão, a terra ignota:

As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos


agentes exteriores para o desenho de relevos estupendos. O regímen torrencial
dos climas excessivos, sobrevindo, de súbito, depois das insolações demoradas,
e embatendo naqueles pendores, expôs há muito, arrebatando-lhes para longe
todos os elementos degradados, as séries mais antigas daqueles últimos rebentos
das montanhas: todas as variedades cristalinas, e os quartzitos ásperos, e as
filades e calcários, revezando-se ou entrelaçando-se, repontando duramente a
cada passo, mal cobertos por uma flora tolhiça – dispondo-se em cenários em
que ressalta predominante, o aspecto atormentado das paisagens. Porque o
que estas denunciam – no enterroado do chão, no desmantelo dos cerros quase
desnudos, no contorcido dos leitos secos dos ribeirões efêmeros, no constrito
das gargantas e no quase convulsivo de uma flora decídua embaralhada em
esgalhos – é de algum modo o martírio da terra, brutalmente golpeada pelos
elementos variáveis, distribuídos por todas as modalidades climáticas. De um
lado a extrema secura dos ares, no estio, facilitando pela irradiação noturna
a perda instantânea do calor absorvido pelas rochas expostas às soalheiras,
impõe-lhes a alternativa de alturas e quedas termométricas repentinas: e daí
um jogar de dilatações e contrações que as disjunge, abrindo-as segundo os
planos de menor resistência. De outro, as chuvas que fecham, de improviso, os
ciclos adurentes das secas, precipitam estas reações demoradas.

FONTE: (CUNHA, 1998, p. 105)

Para Euclides, a geografia, o clima e a vegetação são elementos relevantes


quando se trata da gênese e configuração dos tipos humanos. Nesse caso, a
combinação da biologia e da geologia serviu para explicar o homem. No entanto,
Cândido (2002, p. 176) argumenta de que não há necessidade de insistir na raça
como fator que contribuiu para o que o escritor denominou “diferenciação étnico-
social”, mas, sim, pelo isolamento da região, ou seja, a influência do meio, o agente
de segregação e que não possibilitou a mistura e o convívio com o povo litorâneo.

51
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

Outro fator descrito foi o confronto, a luta desencadeada entre os soldados


e os habitantes de Canudos comandados por Antonio Conselheiro:

A luta, que viera perdendo dia a dia o caráter militar, degenerou,


ao cabo, inteiramente. Foram-se os últimos traços de um formalismo inútil:
deliberações de comando, movimentos combinados, distribuições de forças, os
mesmos toques de cornetas, e por fim a própria hierarquia, já materialmente
extinta num exército sem distintivos e sem fardas. Sabia-se de uma coisa única:
os jagunços não poderiam resistir por muitas horas. Alguns soldados se haviam
abeirado do último reduto e colhido de um lance a situação dos adversários.
Era incrível: numa cava quadrangular, de pouco mais de metro de fundo, ao
lado da igreja nova, uns vinte lutadores, esfomeados e rotos, medonhos de
ver-se, predispunham-se a um suicídio formidável. Chamou-se aquilo o
“hospital de sangue” dos jagunços. Era um túmulo. De feito, lá estavam, em
maior número, os mortos, alguns de muitos dias já, enfileirados ao longo das
quatro bordas da escavação e formando o quadrado assombroso dentro do
qual uma dúzia de moribundos, vidas concentradas na última contração dos
dedos nos gatilhos das espingardas, combatiam contra um exército. E lutavam
com relativa vantagem ainda. Pelo menos fizeram parar os adversários. Destes
os que mais se aproximaram lá ficaram, aumentando a trincheira sinistra de
corpos esmigalhados e sangrentos. Viam-se, salpintando o acervo de cadáveres
andrajosos dos jagunços, listras vermelhas de fardas e entre elas as divisas
do sargento-ajudante do 39o, que lá entrara, baqueando logo. Outros tiveram
igual destino. Tinham a ilusão do último recontro feliz e fácil: romperam pelos
últimos casebres envolventes, caindo de chofre sobre os titãs combalidos,
fulminando-os, esmagando-os [...].

FONTE: (CUNHA, 1998, p. 251)

Segundo o que é relatado em Os Sertões, uma desavença local por causa


de um lote de madeiras para a construção da igreja teria sido a causa da Guerra
de Canudos. Como a mercadoria não foi entregue, houve uma ameaça de ataque
à cidade de Juazeiro. O juiz da região solicitou uma intervenção por parte do
governador da Bahia. Este, não conseguindo resolver a situação, solicitou a
presença das tropas federais. Antônio Conselheiro fora também acusado de
sonegar impostos e incitar a população a não pagar esses impostos. Tais questões
contribuíram para criar um clima hostil que culminou com o embate, no qual
grande parte da população foi exterminada pelo exército.

Há que se enfatizar que o espaço do embate é caracterizado por algumas


peculiaridades, uma delas faz alusão ao cipoal da caatinga contribuindo para
que a guerra ganhe feição de guerrilha e o jagunço se configure num adversário
invisível. O exército, guiado por militares, subestimava o sertanejo, aniquilando-o
e destruindo a comunidade, comprovando a teoria de Darwin de que os mais
fortes é que sobrevivem.

52
TÓPICO 2 | A LITERATURA OITOCENTISTA NO BRASIL

Ao retratar a história de Canudos, o autor não expressa somente os


conflitos entre o sertão e o litoral, cultural e étnico, mas também dá a entender os
problemas econômicos, políticos e sociais do país que, nas palavras de Coutinho
(2004a, p. 208), seria o “conflito de infraestrutura dado na fragmentação vertebrária
do Brasil”. Euclides abordou tais questões com dignidade e responsabilidade
intelectual, sobretudo no que diz respeito à ética e à sociedade.

Do ponto de vista da linguagem, o texto apresenta um rigor estilístico


que foge do superficial e que Coutinho denominou de barroquismo em face à
presença de figuras de linguagem como a antítese e a catacrese; à aproximação
de palavras que se repelem, na descrição detalhada, conforme podemos observar:
“Desce a noite, sem crepúsculo, de chofre – um salto da treva por cima de uma
franja vermelha do poente – e todo esse calor se perde no espaço numa irradiação
intensíssima, caindo a temperatura de súbito, numa queda única, assombrosa.”
(CUNHA, 1998, p. 55).

Os Sertões contêm uma linguagem adequada à grandeza da narrativa e


o estilo do escritor suscita no leitor certa revolta por conta dos acontecimentos
de Canudos, fatos da realidade histórica, cuja descrição não seria possível sem
a mediação ideológica e literária. O que se depreende do texto é que Antônio
Conselheiro é fruto de uma cultura propensa à desordem e ao crime, tal qual
a sociedade que o produziu. Dito de outro modo, é um protagonista com
tendência em reviver aspectos de conduta e de linguagem, conforme o próprio
autor enfatiza:

[...] É natural que estas camadas profundas de nossa estratificação


étnica se sublevassem numa anticlinal extraordinária – Antônio
Conselheiro [...]. As fases singulares da sua existência não são,
talvez, períodos sucessivos de uma moléstia grave, mas são, com
certeza, resumo abreviado, dos aspectos predominantes de mal social
gravíssimo. (CUNHA, 1998, p. 75).

Foi o estilo que consagrou o escritor Euclides da Cunha, tão logo se deu
a publicação de Os Sertões, ainda que sua a maneira de perceber o mundo é
modificada depois da vivência em Canudos. No dizer de Sevcenko (1994, p. 211),

[...] a partir da maneira como Euclides da Cunha dispõe, dá coerência,


organiza e estrutura as concepções e ideias que lhe suscita a realidade
circunjacente, no interior do espaço peculiar aberto por sua linguagem,
é que podemos descortinar a sua visão de mundo.

A linguagem de Euclides da Cunha é de denúncia e de protesto que alude


uma cidade destruída e alvejada pelas armas das forças federais, momento pelo
qual, parece que Euclides perde o seu discurso determinista e para um discurso
apelativo e lastimoso, conforme podemos constatar quando o autor finaliza sua
narrativa:

53
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

Fechemos este livro.

Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até


ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do
termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores,
que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dous homens feitos e uma
criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados. Forremo-
nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo.
Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas
cerramo-la vacilante e sem brilhos. Vimos como quem vinga uma montanha
altíssima. No alto, a par de uma perspectiva maior, a vertigem [...]. Ademais
não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em que
se amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares,
abraçadas aos filhos pequeninos? [...]. E de que modo comentaríamos, com a
só fragilidade da palavra humana, o fato singular de não aparecerem mais,
desde a manhã de 3, os prisioneiros válidos colhidos na véspera, e entre eles
aquele Antônio Beatinho que se nos entregara, confiante – e a quem devemos
preciosos esclarecimentos sobre esta fase obscura da nossa história? Caiu
o arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas,
5.200, cuidadosamente contadas. Antes, no amanhecer daquele dia, comissão
adrede escolhida descobrira o cadáver de Antônio Conselheiro. Jazia num
dos casebres anexos à latada, e foi encontrado graças à indicação de um
prisioneiro. Removida breve camada de terra, apareceu no triste sudário
de um lençol imundo, em que mãos piedosas haviam desprazido algumas
flores murchas, e repousando sobre uma esteira velha, de tabua, o corpo do
‘famigerado e bárbaro’ agitador. Estava hediondo. Envolto no velho hábito
azul de brim americano, mãos cruzadas ao peito, rosto tumefacto e esquálido,
os olhos fundos cheios de terra – mal o reconheceram os que mais de perto
o haviam tratado durante a vida. Desenterraram-no cuidadosamente. Dádiva
preciosa – único prêmio, únicos despojos opimos de tal guerra! – faziam-se
mister os máximos resguardos para que se não desarticulasse ou deformasse,
reduzindo-se a uma massa agulheta de tecidos decompostos. Fotografaram-no
depois. E lavrou-se uma ata rigorosa firmando a sua identidade: importava que
o país se convencesse bem de que estava, afinal extinto, aquele terribilíssimo
antagonista. Restituíram-no à cova. Pensaram, porém, depois, em guardar a
sua cabeça tantas vezes maldita – e como fora malbaratar o tempo exumando-o
de novo, uma faca jeitosamente brandida, naquela mesma atitude, cortou-lha;
e a face horrenda, empastada de escaras e de sânie, apareceu ainda uma vez
ante aqueles triunfadores. Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam
multidões em festa, aquele crânio. Que a ciência dissesse a última palavra. Ali
estavam, no relevo de circunvoluções expressivas, as linhas essenciais do crime
e da loucura.

FONTE: (CUNHA, 1998, p. 285)

54
TÓPICO 2 | A LITERATURA OITOCENTISTA NO BRASIL

Euclides da Cunha, que no início da obra expressa nas entrelinhas o


pensamento positivista, é o mesmo que relata o sofrimento e a barbárie cometidos
em Canudos, contribuindo para o entendimento de questões relacionadas
ao sertão brasileiro e à sua gente. Nesse sentido, Os Sertões concedem à nossa
literatura uma relevante reflexão sobre a identidade nacional e dão a conhecer
a riqueza técnica e a capacidade do autor na descrição das várias paisagens do
Brasil, ratificando, portanto, o seu caráter de obra de arte literária.

Lembre-se, caro acadêmico, de que foi especialmente pelas letras de


Euclides da Cunha e de Machado de Assis que a nossa literatura se firmou como
genuinamente brasileira e passou a ter representação artística. Pela capacidade de
ambos em lidar com a ficção ou pelos temas que abordaram, é possível afirmar
que esses dois escritores enalteceram e engrandeceram a literatura brasileira.

55
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico você pôde aprofundar seus conhecimentos nos seguintes
conteúdos:

• No século XIX, o Romantismo ainda não havia terminado e já apareciam


os traços do Realismo, cujos elementos denotavam as marcas dessa época,
tendência que foi percebida em composições literárias no Romantismo, no
Realismo ou Naturalismo.

• Os críticos literários da época legaram o conhecimento para a melhor


interpretação dos escritores e seus textos literários, um importante trabalho de
investigação e reflexão sobre a arte e a literatura no Brasil.

• Alguns críticos literários defendem a ideia de que a literatura dos brasileiros


pertenceu à literatura portuguesa, pois fazia uso da língua da metrópole.

• Entre os anos de 1860 e 1890, as ideias abolicionistas e republicanas formam a


base do pensamento de escritores como Tobias Barreto e Sílvio Romero que se
empenham na luta contra o regime monárquico e o trabalho escravo.

• Os abolicionistas ambicionavam conquistar seus intentos, e os republicanos


se inspiravam na França e nos Estados Unidos no intuito de construir um país
democraticamente livre.

• Franklin Távora insurgiu-se contra a hegemonia literária de Alencar, criticando


o excesso de idealização das personagens e o lugar retratado. O mesmo aspirava
por uma reprodução mais realista da situação brasileira.

• José de Alencar defende-se das críticas, argumentando que o retrato das


condições locais não é único logradouro para uma literatura nacional, ao
mesmo tempo em que reconhece a investigação social, psicológica e dos
costumes contemporâneos, como empreitada a ser adotada pelos romancistas.

• Sílvio Romero, no papel de crítico literário, deixava de lado o significado


estético e sua preocupação recaía no estudo da obra como possibilidade de
interpretar o homem e a sociedade brasileira.

• A junção entre o autor romântico e o mundo estava se rompendo e os mitos


por este idealizados, tais como a natureza e o refúgio, o amor e a mulher diva,
bem como a ênfase ao sentimentalismo saem de cena e, em seu lugar, aparece
a objetividade, que responderia aos métodos científicos presentes nas últimas
décadas do século.

56
• O afastamento do apoio subjetivo é a norma proposta aos realistas e, no nível
ideológico, o determinismo servirá de amparo para a explicação do real.

• Durante a segunda metade do século XIX, três movimentos literários se


destacaram e adentraram o século XX: Realismo, Naturalismo e Parnasianismo.
O Realismo e o Naturalismo são movimentos específicos do século XIX.

• As correntes literárias se cruzam, atuam e reagem uma sobre a outra, ora se


prolongam ora se opõem, daí a perceber escritores que iniciam sua carreira
literária em pleno apogeu do Romantismo e que, no decorrer de seus escritos,
passam a ser representantes do Realismo ou Naturalismo.

• Os adeptos do Realismo repeliam a Metafísica e a Teologia, em prol de uma


visão científica da realidade, na qual a cientificidade se sobrepõe e supera o
mistério, a indeterminação tão presentes no Romantismo.

• As obras literárias realistas possuem estreita relação com o real, sustentadas


pela objetividade fotográfica cuja subjetividade do artista não comparece.

• Para retratar a verdade, os realistas procuravam compor personagens a partir


de indivíduos reais, em que os motivos puramente humanos dominam a ação.

• Predominam textos narrativos ao invés de descritivos, que lançam mão de


uma linguagem harmoniosa, através da simplicidade e naturalidade. Tais
características podem ser encontradas também na pintura em que tudo é
organizado para dar a impressão de realidade.

• O realismo confunde-se, em vários de seus aspectos, com o naturalismo: todo


o naturalista é realista, mas nem sempre o realista é naturalista.

• Visconde de Taunay escreveu Mocidade de Trajano, publicado em 1871: no


romance apresenta um painel dos costumes do interior, da ignorância dos
fazendeiros, deixando-se iludir pelas aventuras e desventuras de Trajano.

• Outro romance de Taunay é Inocência, escrito em 1872. Neste, descreve


paisagens, personagens, costumes, aspectos sociais e políticos com exatidão e
senso de realidade.

• Machado de Assis explicita as limitações de uma representação da realidade


calcada no elemento típico e no retrato pitoresco, tornando-se assim, um
expoente à parte da literatura brasileira.

• Machado soube interpretar a vida por intermédio da expressão literária, um


exercício cotidiano, aproveitado pela experiência de um trabalho paciente e
constante.

57
• Criou seres que ambicionam, sobretudo, mudar de classe social. O escritor
mostrou intensa vocação e capacidade inventiva, registrando momentos
psicológicos.

• Euclides da Cunha escreve sobre a quarta expedição militar contra Canudos,


cujos artigos, de então, relatavam fatos do embate entre o exército e os
revoltosos de Canudos. N’Os Sertões, é possível perceber a influência taineana;
tal como a concepção naturalista, Euclides divide Os Sertões em três partes que
correspondem à terra, ao homem e à luta.

58
AUTOATIVIDADE

1 Analise as afirmações e complete as lacunas com Romantismo ou Realismo:

a) Quanto à concepção de homem, pode-se afirmar que, para


o_______________, o homem é a medida de todas as coisas.
b) Para o______________, o homem é apenas uma peça na engrenagem do
mundo, com funções semelhantes às das demais peças pertencentes ao
reino animal ou vegetal.
c) As personagens para o ___________________ deveriam ser reproduzidas de
acordo com a realidade observada de fora pelo narrador, sem idealizações.
d) O comportamento das personagens para o ____________________ deriva
de causas biológicas ou sociais que o determinam.

2 O realismo apresenta características que convergem para


o contexto social, político e ideológico do período no qual
esse movimento se consagrou. Escreva algumas destas
características.

3 A ironia é uma técnica machadiana. Nesse sentido, as afirmativas


contemplam essa informação, exceto:

a) ( ) “A alma de Rubião bracejava debaixo desse aguaceiro de palavras;


mas, estava num beco sem saída por um lado nem por outro. Tudo
muralhas. Nenhuma porta aberta, nenhum corredor, e a chuva a cair.”

b) ( ) “Vá desapontamento. Misturem-lhe o pesar da separação, não


esqueçam a cólera que o primeiro trovejou surdamente, e nem faltará
quem ache que a alma deste homem é uma colcha de retalhos. Pode
ser; moralmente as colchas inteiriças são tão raras!”

c) ( ) “Não esqueça dizer que Rubião tomou a si dizer uma missa por
alma do finado, embora soubesse ou pressentisse que ele não era
católico. Quincas Borba não dizia pulhices a respeito de padres, nem
desconceituava doutrinas católicas; mas não falava nem da Igreja,
nem dos padres.”

d) ( ) “A outra que ri é a alma de Rubião, escutai a cantiga alegre, brilhante,


com que ela desce o morro, dizendo as causas mais íntimas às
estrelas, espécie de rapsódia feita por uma linguagem que ninguém
nunca alfabetou, por ser impossível achar um sinal que lhe exprima
os vocábulos.”

59
4 Um conto machadiano que apresenta o cientificismo é A Causa Secreta.
Pequise na internet, revistas e livros este conto e, em seguida, elabore um
resumo. Além disso, você podera elencar alguns aspectos pertinentes ao
enredo do conto.

5 A obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, enfatiza basicamente três elementos:


a terra, o homem e a luta. Nesse sentido, elabore uma pequena síntese sobre
os argumentos do livro.

60
UNIDADE 1
TÓPICO 3

CONCEPÇÃO, OBRAS E AUTORES NATURALISTAS


E PARNASIANOS

1 INTRODUÇÃO
Neste tópico, refletiremos sobre o Naturalismo, um movimento
comumente confundido com o Realismo. O que os diferencia, no entanto,
é que os naturalistas adotam uma atitude de denúncia social, bem como
acentuado método cientificista, que percebia o homem como uma máquina, com
comportamentos determinados pelo meio social e pela hereditariedade. Desse
modo, a linguagem literária estava imbuída de expressões científicas, tomadas
da biologia e de outras ciências.

Outro movimento que será abordado é o Parnasianismo. Conta a lenda


que na Grécia os poetas se reuniam em um local de nome Parnassus, do qual se
originou o movimento. Simbolicamente, o termo designa uma espécie de morada
dos poetas, dos iluminados. Sob a égide dessa concepção, os escritores desse
movimento consideravam a forma como característica principal da composição
literária.

2 O NATURALISMO
O Naturalismo é facilmente confundido com o Realismo, mas temos
que ter em mente que é um movimento literário ulterior, que se fixa quando o
grupo de Émile Zola irradiou-se pelo mundo. Lembre-se de que Zola propunha
que o método dos cientistas deveria ser adotado pelo escritor. Nesse sentido,
os naturalistas acentuavam a visão do homem como uma máquina norteada
pela ação de leis físicas e químicas, pela hereditariedade e pelo meio social.
(COUTINHO, 2004a). Além disso, há que se considerar que o naturalismo
intensificava uma reação às instituições sociais, figuras, usos e costumes, o que
lhe dava um contorno de acentuado conteúdo político. Fato este que o distingue
do Realismo, pois enquanto o Realismo “[...] propendia a um registro fiel da
realidade, servindo à verdade no presente, como a História a serve no passado,
o Naturalismo tomava uma atitude de luta aberta, denunciando aquilo que, na
sociedade do tempo, reclamava reforma ou destruição”. (COUTINHO, 2004a,
p. 73).

61
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

Nas obras naturalistas transparece uma rejeição para com o religioso por
enfatizar aspectos do homem e seu parentesco com os animais. O Naturalismo,
assim como o Realismo, registrou não os fatos passados, mas o presente com
temas inovadores e linguagem atual. Preconizava uma proximidade entre a arte
e a realidade social, ou seja, voltou-se contra a concepção da arte pela arte, que
encantava os poetas parnasianos, os quais pretendiam representar objetos através
da uma descrição neutra.

Segundo Abdala Junior e Campedelli,

nessa submissão do escritor ao descritivismo, tomou vulto a sua


impotência em face do objeto. Seria essa atitude uma consequência
do fatalismo determinista do positivismo. Ao invés da participação
do indivíduo, no sentido de transformar a sociedade, teríamos a sua
impotência. De qualquer maneira, mesmo nas melhores realizações
artísticas do Naturalismo, apareceu uma tensão dialética entre
a participação e a impotência do indivíduo. Às vezes, quando a
impotência foi destacada, chegou a penetrar o texto naturalista o
pensamento pessimista do fim do século. (1987, p. 134).

Podemos dizer que dentre as características do Naturalismo estão as do


Realismo, quais sejam: o domínio do ambiente sobre o homem, o homem produto
do meio, a vulgarização dos sentidos e a exploração dos instintos humanos,
neuroses, cargas hereditárias, casos patológicos. Além disso, vale lembrar que
ocorre uma exacerbada preocupação com o científico. Tais quais os realistas,
os naturalistas procuravam a verdade e, assim, construíam seus escritos sobre
fatos fielmente observados e estes últimos empenharam-se mais na observância e
descrição dos fatos da sociedade, sobretudo das camadas mais baixas.

No Brasil, o Naturalismo apresentava algumas características em


Machado de Assis e Raul Pompeia, mas firmou-se em 1881 com a publicação de
O Mulato, de Aluísio de Azevedo. Segundo Coutinho, é com Aluísio de Azevedo,
nas páginas de O Mulato que se inicia o Naturalismo brasileiro, e juntamente com
Inglês de Souza, Júlio Ribeiro e Adolfo Caminha compõe-se o quadro dos seus
representantes.

Nos escritos de Aluízio de Azevedo vislumbra-se o mesmo teor de Émile


Zola, com temas que estavam ao gosto e alcance de muitos leitores, pois traziam
as vulgaridades da vida, descreviam os fenômenos sociais e a alma individual.

O romancista Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo nasceu em São


Luís, no Maranhão, em 1857. Viajou para o Rio de Janeiro em 1876 com intuito
de conseguir na Corte condições para estudar pintura na Itália. Como não obtém
sucesso, fixa-se por algum tempo na cidade como cartunista em periódicos
ilustrados: O Mequetrefe e O Fígaro. De volta ao Maranhão escreveu seu primeiro
romance Uma Lágrima de Mulher, publicado em 1880. Da pintura torna-se um
aficionado pela literatura e, assim, nos legou uma vasta produção literária: Os
Doidos (1879), O Mulato, (1881) Filomena Borges (publicado em folhetins na Gazeta

62
TÓPICO 3 | CONCEPÇÃO, OBRAS E AUTORES NATURALISTAS

de Notícias, 1884) O Caboclo (1886), O Homem (1887), O Cortiço (1890), O Coruja


(1890), Um Caso de Adultério (1891), Em Flagrante (1891), A Mortalha de Alzira (1894),
Livro de uma Sogra (1895), dentre outros.

Entre o primeiro e o segundo romance, no período que separa a publicação


dos dois livros, o romancista modifica seu estilo, sua compreensão da arte literária,
bem como o seu processo de narrar, traduzindo as marcas de sua juventude e de
sua índole polêmica. No dizer de Coutinho (2004a), ao mesmo tempo em que
altera sua apreensão da vida de província, impele-se contra ela. É no romance O
Mulato que podemos vislumbrar essas mudanças.

O protagonista Raimundo, que é órfão de pai e vive afastado da mãe,


Domingas, uma ex-escrava de seu genitor, encontra-se sob a guarda do tio,
que o envia ao padrinho em Portugal, segundo o desejo paterno. Raimundo,
o Mundico, volta formado em advocacia para o Brasil. Passa um ano no Rio e
decide regressar a São Luís para rever seu tutor e tio, Manuel Pescada. Raimundo
e sua prima Ana Rosa apaixonam-se, mas o romance não é aceito pelo pai, que
queria a filha casada com um dos caixeiros da loja da tia-avó Maria Bárbara,
mulher racista, e pelo Cônego Diogo, o mais empenhado em impedir a ligação.
Raimundo ignorava tais fatos, e justamente por isso, não compreendia as
reservas da sociedade maranhense. Apesar das proibições, Mundico e Ana Rosa,
enamorados, combinam um plano de fuga que custaria a vida dele.

Destaca-se da obra a crítica social idealizada através da sátira: o


comerciante abastado e grosseiro, a velha carola e raivosa, o padre descurado e o
cônego assassino, personagens que resvalam entre o imoral e o grotesco. Escrito
em plena efervescência da campanha abolicionista, Aluísio Azevedo não manteve
a postura neutra e imparcial. Daí a dizer que é naturalista. Atente para a descrição
do jovem protagonista:

Raimundo tinha vinte e seis anos e seria um tipo acabado de brasileiro,


se não foram os grandes olhos azuis, que puxara do pai. Cabelos muito pretos,
lustrosos e crespos, tez morena e amulatada, mas fina, – dentes claros que
reluziam sob a negrura do bigode, estatura alta e elegante, pescoço largo, nariz
direito e fronte espaçosa. A parte mais característica de sua fisionomia era os
olhos grandes, ramalhudos, cheios de sombras azuis, pestanas eriçadas e negras,
pálpebras de um roxo vaporoso e úmido, – as sobrancelhas, muito desenhadas
no rosto, como a nanquim, faziam sobressair a frescura da epiderme, que,
no lugar da barba raspada, lembrava os tons suaves e transparentes de uma
aquarela sobre papel de arroz. Tinha os gestos bem-educados, sóbrios, despidos
de pretensão, falava em voz baixa, distintamente, sem armar ao efeito, vestia-se
com seriedade e bom gosto; amava as artes, as ciências, a literatura e, um pouco
menos, a política.

FONTE: (AZEVEDO, 1998, p. 40)

63
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

Os costumes das gentes da província são fortemente marcados através


da fofoca de que participam D. Bibina, Lindoca, D. Maria do Carmo e Amância
Souselas:

– Ele não é feio... a senhora não acha, D. Bibina?... segredava Lindoca


à outra sobrinha de D. Maria do Carmo, olhando furtivamente para o lado de
Raimundo.
– Quem? O primo d’Ana Rosa?
– Primo? Eu creio que ele não é primo, dona!
– É! sustentou Bibina, quase com arrelie. É primo sim, por parte de pai!...
Por outro lado, Maria do Carmo segredava a Amância Souselas:
– Pois é o que lhe digo, D. Amância: muito boa preta!... negra como este
vestido! Cá está quem a conheceu!...
E batia no seu peito sem seios. – Muita vez a vi no relho. Iche!
– Ora quem houvera de dizer!... resmungou a outro, fingindo ignorar
da existência de Domingas, para ouvir mais. Uma coisa assim só no Maranhão!
Credo!

FONTE: (AZEVEDO, 1998, p. 42)

O romance em questão explora o coletivo, o passional e o desconcertante.


Aborda o social da província, escancarando as contradições econômicas, raciais
e éticas, e o conflito entre o colonizador e o povo mestiço. A descrição é peça
fundamental para a construção do texto que possui um tom de romantismo, tal
qual seu primeiro romance, mas é marcadamente naturalista na sua imitação da
realidade objetiva, documentando a vida na província e, além disso, por efetuar
uma crítica social.

A modificação operada por Aluísio de Azevedo, quanto à sua escrita,


ocorreu sob a influência de vários fatores; um deles foi o contato com os dois
romances de Eça de Queirós: O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio. Foi Eça
quem abriu a Aluísio o caminho para o Naturalismo. Um sinal dessa influência
parece ter sido o anticlericalismo, projetado em Queirós no romance de O Crime
do Padre Amaro e em Aluísio na figura do padre e depois cônego Diogo, devasso,
hipócrita e assassino. (COUTINHO, 2004a). Em O Mulato, a linguagem e a
temática aproximam-se ao máximo do real.

O romancista viveu da escrita, fato este que influencia sua produção


literária, pois, ao contrário do demorar-se no engendrar das obras, obriga-se
a escrever e atender às solicitações de leitores de folhetins de jornal. Segundo
Coutinho (2004a), essa tarefa secundária iria dispersar boa parte do seu talento de
romancista. Ainda de acordo com o crítico de seu vasto legado, os romances mais
trabalhados em que transparecem sua capacidade são: O Mulato, Casa de Pensão,
O Homem, O Coruja, O Cortiço, e Livro de uma Sogra.

Em O Livro de uma Sogra (1895), uma narrativa em primeira pessoa,


Olímpia, a personagem, escreve uma tese sobre casamento para ser lida e seguida

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TÓPICO 3 | CONCEPÇÃO, OBRAS E AUTORES NATURALISTAS

por sua filha e genro. Olímpia a elabora como que um tipo de receituário no
intuito de preservar o casamento do tédio. Segundo a narradora, o casal deve
adotar a monogamia, mas, de tempos em tempos, permanecer separados a fim de
resguardar interesse mútuo que com a monotonia do cotidiano perece. Olímpia,
ao desenvolver a sua tese, parte da observação social, da própria vivência
conjugal, fato que parece denunciar o discurso da tese cientificista divulgado pelo
naturalismo. Olímpia não é um analista com olhos de cientificidade, afirmando
e estabelecendo verdades, ao contrário, coloca em prática o que pensa ser um
casamento perfeito. Entretanto, as observações intrincadas tornam-se por vezes
cômicas, mas revelam a complexidade das relações sociais. A filha e o genro são
cobaias de sua tese.

Vejamos como Olímpia descreve sua noite de núpcias. Diante dessa


vivência, entendida por ela como um verdadeiro suplício do corpo para a mulher,
arquiteta e põe em prática um plano para que a filha não passe pela mesma
experiência.

A minha noite de núpcias foi, pois, uma noite de sacrifícios, nem


só para mim, como sem dúvida para meu marido. Não lhe compensara,
decerto, tamanho constrangimento o complicado prazer, que porventura
lhe proporcionou o nosso primeiro contato, no formal desempenho daquele
grosseiro enlace. Não tive o menor gozo; tudo me fez sofrer, sofrer deveras;
não só no moral, como fisicamente, e muito. Sofri e padeci, porque, na
preocupação sobressaltada de esperar aquela noite, e no constrangimento e no
choque daquele primeiro encontro, assim tão cerimonioso, tão previsto e tão
festejado, meu corpo, sem atingir o necessário grau de apetite sexual, privou-
se da indispensável e benéfica lubrificação com que a natureza protetoramente
habilita e prepara, em tais casos, os nossos delicados órgãos do amor. E essa
falta transformou um ato, que devia ser bom e natural, em verdadeira violência.
Fez-me doer; fez-me chorar.

Apesar de toda a minha ingenuidade de donzela, compreendi que não


era aquilo, com certeza, o que a natureza queria desempenhar; não era aquilo
que todo o meu corpo adivinhava depois da puberdade, reclamando-o com
delícia, e enchendo-me os sonhos de amorosos enleios voluptuosos, em que o
espírito se me aniquilava e só a matéria palpitava de gozo. Não! ali, naquela
terrível noite, a minha razão não sucumbiu, nem os meus próprios sentidos
tomaram parte na vergonhosa pugna; fiz-me paciente resignada, cônscia de
estar cumprindo uma obrigação penosa, aflita por ver-me livre de semelhante
sacrifício. Que fosse o verdugo meu marido, fosse Virgílio ou qualquer outro
homem, ser-me-ia igual, porque não era o amor que lhe votava o que me retinha
pregada àquela cruz, crucificada naquele pomposo leito de dores.

Só mais tarde comecei a achar prazer nas ligações com meu marido; os
primeiros dias foram horríveis. Ainda me lembro do calafrio de medo que tive
na segunda noite, quando ele quis recomeçar a campanha da véspera.

65
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

Para evitar à minha filha todo esse ridículo infortúnio, entendi e resolvi
que ela devia entrar na sua vida de casada sem “pagar patente” com a clássica
“lua de mel”. De sorte que, na mesma manhã do casamento, achando-se já
tudo disposto, carreguei com os noivos para a fazenda de um amigo meu, no
interior da província, a qual de antemão me fora franqueada. A fazenda estava
entregue apenas aos cuidados do feitor e da escravatura, enquanto os senhores
passeavam na Europa.

Acomodamo-nos por lá como nos foi possível, sem arranjos especiais


de quarto de noivos. Nada disso! Cada um tomou conta de seu aposento e
tratou de si.

Durante a viagem de trem, e principalmente depois de chegados à


fazenda, meu genro, que não deixava a mulher um só instante, furtava-lhe
beijos sempre que eu me afastava deles, ou quando me supunham muito
distraída. Não os perseguia nem rondava, mas também não lhes facilitava
ocasiões para os arrulhos. A gente da casa não sabia se eles eram irmãos, ou
primos, ou casados, ou noivos, ou simplesmente namorados. O quarto de
Palmira era distante do quarto do marido, e entre os dois estava o meu. Esta
disposição foi intencionalmente estabelecida por mim: se eles, com efeito, se
sentissem arrebatados um para o outro, o próprio desejo havia de aproximá-los
de qualquer modo, não era absolutamente necessário que os fechasse eu dentro
da mesma prisão, como fizeram comigo e Virgílio, e como se faz com as cadelas
e os cães de raça que têm de procriar.

Como eles se uniram pela primeira vez, em que ocasião e em que


circunstâncias, só vim a saber meses depois, narrado comovidamente por
minha filha, que até hoje guarda a mais doce, a mais poética e consoladora
impressão desse momento de completa felicidade.

Nem foi em casa, foi num sombrio, ignorado canto da mata deserta,
sítio protetor de outros amores, de cujos suspensos ninhos partiam bíblicos
duetos de ternura. Não foi sobre colchas bordadas, nem lençóis de renda adrede
preparados, mas no regaço carinhoso da floresta, ao casto e lascivo respirar da
natureza, na confidência maternal da terra.

FONTE: (AZEVEDO, 1895, [s.p.])

Das características do naturalismo nos escritos de Azevedo, predominam


a luta contra o preconceito racial e o puritanismo sexual. No romance O Cortiço,
relata dramas coletivos ressaltando a influência que o meio exerce sobre o
homem, influência da tese determinista de Taine. Aparecem no romance aspectos
de L’Assommoir, do escritor francês Émile Zola, que prescreve um rigor científico
na representação da realidade. Aluísio combate a degradação causada pela
miscigenação. Segundo Veríssimo:

66
TÓPICO 3 | CONCEPÇÃO, OBRAS E AUTORES NATURALISTAS

O principal demérito do naturalismo da receita zolista, já, sem nenhum


ingrediente novo, aviada em Portugal por Eça de Queirós e agora no
Brasil por Aluísio de Azevedo, era vulgarização da arte que em si
mesmo trazia. Os seus assuntos prediletos, o seu objeto, os seus temas,
os seus processos, a sua estética, tudo nele estava ao alcance de toda a
gente, que se deliciava com se dar ares de entender literatura discutindo
de livros que traziam todas as vulgaridades da vida ordinária e se
lhe compraziam na descrição minudenciosa. Foi também o que fez
efêmero o naturalismo, já moribundo em França quando aqui nascia.
Não seria, porém, justo contestar-lhe o bom serviço prestado, tanto
aqui como lá, às letras. Ele trouxe à nossa ficção mais justo sentimento
da realidade, arte mais perfeita da sua figuração, maior interesse
humano, inteligência mais clara dos fenômenos sociais e da alma
individual, expressão mais apurada, em suma uma representação
menos defeituosa da nossa vida, que pretendia definir. Dos que aqui
por vocação ou mero instinto de imitação, demasiado comum nas
nossas letras, seguiram o naturalismo e se nele ensaiaram, o que mais
cabalmente realizou este efeito da nossa doutrina literária foi Aluísio
de Azevedo, com uma obra de mérito e influência consideráveis, qual
a daqueles seus quatro romances, aos quais podemos juntar o último
que escreveu, O Livro de uma Sogra. Este aliás não é mais plenamente
naturalista, e a sua execução lhe saiu inferior à dos primeiros. O resto
de sua obra, de pura inspiração industrial, é de valor somenos. (1998,
p. 370).

O Cortiço é escrito em terceira pessoa, com narrador onisciente que


adentra no pensamento das personagens, faz julgamentos e arrisca comprovar,
tal qual um cientista, as influências do meio, da raça e do momento histórico.
O enredo envolve a saga de João Romão, dono do cortiço, que, para acumular
capital, explora os empregados e se utiliza do furto para atingir seus objetivos. Seu
rival é Miranda, um comerciante bem-estabelecido. A disputa com o taverneiro
começa por uma parte de terra que deseja comprar para aumentar seu quintal.
Não havendo consenso, há o rompimento provisório de relações.

O romance é marcado por dois espaços: o proletariado urbano em


formação que vive coletivamente no cortiço de João Romão, um amontoado
de casebres mal-arranjados, onde os pobres vivem representando a mistura de
raças e a promiscuidade das classes baixas. Há também a pedreira e a taverna do
mesmo proprietário. As pessoas que ali vivem são despersonalizadas, dominadas
pelo meio. O cortiço é personificado em detrimento do ser humano, conforme
podemos observar na sequência:

E durante dois anos o cortiço prosperou de dia para dia, ganhando


forças, socando-se de gente. E ao lado o Miranda assustava-se, inquieto
com aquela exuberância brutal de vida, aterrado defronte daquela floresta
implacável que lhe crescia junto da casa, por debaixo das janelas, e cujas raízes,
piores e mais grossas do que serpentes, minavam por toda a parte, ameaçando
rebentar o chão em torno dela, rachando o solo e abalando tudo.

FONTE: (AZEVEDO,1997, p. 8)

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UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

O outro espaço que fica ao lado do cortiço é a casa aristocratizante do


comerciante Miranda e de sua família. O sobrado representa a burguesia
ascendente da época. A obra revela o Brasil do século XIX, com sua desigualdade
social. Aluísio se propõe a mostrar a mistura de raças em um mesmo meio:

E, durante muito tempo, fez-se um vaivém de mercadores. Apareceram


os tabuleiros de carne fresca e outros de tripas e fatos de boi; só não vinham
hortaliças, porque havia muitas hortas no cortiço. Vieram os ruidosos mascates,
com as suas latas de quinquilharia, com as suas caixas de candeeiros e objetos
de vidro e com o seu fornecimento de caçarolas e chocolateiras, de folha de
flandres. Cada vendedor tinha o seu modo especial de apregoar, destacando-
se o homem das sardinhas, com as cestas do peixe dependuradas, à moda de
balança, de um pau que ele trazia ao ombro.

Nada mais foi preciso do que o seu primeiro guincho estridente e


gutural para surgirem logo, como por encanto, uma enorme variedade de
gatos, que vieram correndo acercar-se dele com grande familiaridade, roçando-
se-lhe nas pernas arregaçadas e miando suplicantemente. O sardinheiro os
afastava com o pé, enquanto vendia o seu peixe à porta das casinhas, mas os
bichanos não desistiam e continuavam a implorar, arranhando os cestos que o
homem cuidadosamente tapava mal servia ao freguês. Para ver-se livre por um
instante dos importunos, era necessário atirar para bem longe um punhado de
sardinhas, sobre o qual se precipitava logo, aos pulos, o grupo dos pedinchões.

A primeira que se pôs a lavar foi a Leandra, por alcunha a “Machona”,


portuguesa feroz, berradora, pulsos cabeludos e grossos, anca de animal do
campo. Tinha duas filhas, uma casada e separada do marido, Ana das Dores, a
quem só chamavam a “das Dores” e outra donzela ainda, a Nenen, e mais um
filho, o Agostinho, menino levado dos diabos, que gritava tanto ou melhor que
a mãe. A das Dores morava em sua casinha à parte, mas toda a família habitava
no cortiço. [...]

Ao lado da Leandra foi colocar-se à sua tina a Augusta Carne-Mole,


brasileira, branca, mulher de Alexandre, um mulato de quarenta anos, soldado
de polícia, pernóstico, de grande bigode preto, queixo sempre escanhoado e
um luxo de calças brancas engomadas e botões limpos na farda, quando estava
de serviço. [...]

Leocádia, mulher de um ferreiro chamado Bruno, portuguesa pequena


e socada, de carnes duras, com uma fama terrível de leviana entre as suas
vizinhas.

Seguia-se a Paula, uma cabocla velha, meio idiota, a quem respeitavam


todos pelas virtudes de que só ela dispunha para benzer erisipelas e cortar
febres por meio de rezas e feitiçarias. Era extremamente feia, grossa, triste, com
olhos desvairados, dentes cortados à navalha, formando ponta, como dentes de
cão, cabelos lisos, escorridos e ainda retintos apesar da idade. Chamavam-lhe
“Bruxa”.

68
TÓPICO 3 | CONCEPÇÃO, OBRAS E AUTORES NATURALISTAS

Depois seguiam-se a Marciana e mais a sua filha Florinda. A primeira,


mulata antiga, muito séria e asseada em exagero: a sua casa estava sempre
úmida das consecutivas lavagens. Em lhe apanhando o mau humor punha-
se logo a espanar, a varrer febrilmente, e, quando a raiva era grande, corria
a buscar um balde de água e descarregava-o com fúria pelo chão da sala. A
filha tinha quinze anos, a pele de um moreno quente, beiços sensuais, bonitos
dentes, olhos luxuriosos de macaca.

FONTE: (AZEVEDO, 1997, p. 13)

O romancista percebia os grupos humanos a partir de dois enfoques: fazia


distinção entre a vida dos que já venceram e a dos humildes.

Para os primeiros, o trabalho é uma pena sem remissão, pois a fome


de ganho não se sacia e o frenesi do lucro [...] arrasta às mais sórdidas
privações, a uma espécie de ascese às avessas, sem que o limite
natural e humano venha dar ao cabo a desejada paz. Já nos pobres, na
“gentalha” como os chama, o trabalho é um exercício de uma atividade
cega, instintiva, não sendo raras as comparações com vermes ou com
insetos, sempre que importar fixar o vaivém dos operários na pedreira
ou das mulheres no cortiço. (BOSI, 1980, p. 212).

Como você mesmo pode comprovar, o Cortiço apresenta um elenco de


personagens muito bem trabalhado, cada qual com sua peculiaridade, uma fusão
que desemboca na promiscuidade sexual e na completa degradação humana, um
Zola brasileiro.

Outro naturalista foi Júlio César Ribeiro que escreveu A Carne, em 1888,
também ao molde zolista. O título denuncia a obscenidade do romance, com
resquícios naturalistas, a obra provocou alvoroço na sociedade da época.

A narrativa traz no enredo a jovem Lenita que, após a morte de seus pais,
foi viver em uma fazenda no interior de São Paulo, de propriedade do coronel
Barbosa. Os meses se passam e chega à fazenda o filho do Coronel, Manuel
Barbosa. Entre os dois nasce uma forte atração física. Júlio César mostra através
do romance dos jovens a paixão extremamente erótica, sentimentos até então não
retratados com tanta sensualidade. Essa maneira de explorar o tema que envolve
o amor rendeu a Júlio César críticas por enfatizar o naturalismo com tamanho
erotismo para a época. Para Veríssimo, o autor apresenta

[...] a carne nos mais apertados moldes do zolismo, e cujo título só por
si indica a feição voluntária e escandalosamente obscena do romance.
Salva-o, entretanto, de completo malogro o vigor de certas descrições.
Mas A Carne vinha ao cabo confirmar a incapacidade do distinto
gramático para obras de imaginação já provada em Padre Belchior
de Pontes. É, como dela escrevi em 1889, ainda vivo o autor, o parto
monstruoso de um cérebro artisticamente enfermo. (1998, p. 369).

Já Coutinho, acerca do escritor Júlio Ribeiro, afirma que as personagens


do romance em questão possuem a vivacidade do descritivo. Ainda segundo o

69
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

crítico, o livro não se impôs através de força literária, mas no vigor de suas cenas
eróticas, marcas de um Naturalismo, “[...] de uma atitude atrevida e audaciosa,
de uma tendência de sobrepor o sensual, ponte de contato entre as gerações que
o sucedem”. (2004a, p. 84).

Vale também destacar Raul Pompeia, um escritor que nasceu em Angra


dos Reis, Rio de Janeiro, foi romancista, contista, cronista, poeta, advogado e
jornalista. Deixou-se empolgar pelas causas abolicionistas e republicanas. Atacava
a oligarquia, através de comícios, de caricaturas e de artigos publicados em
diversos jornais. Em 1893, publicou a charge o Brasil crucificado entre dois ladrões,
hostilizando ingleses e portugueses, causando escândalo no meio político. Devido
às suas posições político-ideológicas, foi atacado por Olavo Bilac num artigo de
jornal. Pompeia o desafiou para um duelo que não chegou a se consumar.

Foi com O Ateneu que se consagra na literatura brasileira. O texto parte das
experiências do autor quando o mesmo se encontrava em um internato. Relata
a difícil convivência entre alunos, professores e a direção do colégio interno.
A narrativa é centrada no cotidiano de Sérgio, o protagonista, que descreve os
acontecimentos que marcaram sua passagem no internato. Assim, o romance é a
memória adulta de uma experiência juvenil. Leiamos a parte inicial:

Em frente, um gramal vastíssimo. Rodeava-o uma ala de galhardetes,


contentes no espaço, com o pitoresco dos tons enérgicos cantando vivo sobre a
harmoniosa surdina do verde das montanhas. Por todos os lados apinhava-se
o povo. Voltando-me, divisei, ao longo do muro, duas linhas de estrado com
cadeiras quase exclusivamente ocupadas por senhoras, fulgindo os vestuários,
em violenta confusão de colorido. Algumas protegiam o olhar com a mão
enluvada, com o leque, à altura da fronte, contra a rutilação do dia num bloco
de nuvens que crescia do céu. Acima do estrado balouçavam docemente e
sussurravam bosquetes de bambu, projetando franjas longuíssimas de sombra
pelo campo de relva.

Algumas damas empunhavam binóculos. Na direção dos binóculos


distinguia-se um movimento alvejante. Eram os rapazes. “Aí vêm! disse-me
meu pai; vão desfilar por diante da princesa.” A princesa imperial, Regente
nessa época, achava-se à direita em gracioso palanque de sarrafos.

Momentos depois, adiantavam-se por mim os alunos do Ateneu. Cerca


de trezentos; produziam-me a impressão do inumerável. Todos de branco,
apertados em larga cinta vermelha, com alças de ferro sobre os quadris e na
cabeça um pequeno gorro cingido por um cadarço de pontas livres. Ao ombro
esquerdo traziam laços distintivos das turmas. Passaram a toque de clarim,
sopesando os petrechos diversos dos exercícios. Primeira turma, os halteres;
segunda, as maças; terceira, as barras.

Fechavam a marcha, desarmados, os que figurariam simplesmente nos


exercícios gerais.

70
TÓPICO 3 | CONCEPÇÃO, OBRAS E AUTORES NATURALISTAS

Depois de longa volta, a quatro de fundo, dispuseram-se em pelotões,


invadiram o gramal e, cadenciados pelo ritmo da banda de colegas, que os
esperava no meio do campo, com a certeza de amestrada disciplina, produziram
as manobras perfeitas de um exército sob o comando do mais raro instrutor.

FONTE: (POMPEIA, 1998, p. 15)

Trata-se da história de um internato e a formação intelectual e sexual do


adolescente, que ressalta o psicológico e os instintos patológicos. É um misto de
romance e memórias, uma caricatura de um dos internatos da época e da vida de
Sérgio. O protagonista é narrador onisciente do romance, é atrevido e audacioso
e revela agudeza na descrição naturalista, como podemos ver no trecho que
descreve os colegas de internato: “O Gualtério, miúdo, redondo de costas, cabelos
revoltos, motilidade brusca e caretas de símio...; o Negrão, de ventas acesas,
lábios inquietos, fisionomia agreste de cabra, canhoto e anguloso, incapaz de ficar
sentado três minutos [...]”. (POMPEIA, 1998, p. 18).

Atente para a maneira de como descreve uma passagem em que envolve


Ângela, no capítulo III:

Trepada ao muro e meio escondida por uma moita de bambus e ramos


de hera, vinha Ângela, a canarina, ver os banhos da tarde. Lançava pedrinhas
aos rapazes; os rapazes mandavam-lhe beijos e mergulhavam, buscando o
seixo. Ângela, torcendo os pulsos, reclinando-se para trás, ria perdidamente
um grande riso, desabrochado em corola de flor através dos dentes alvos.

FONTE: (POMPEIA, 1998, p. 32)

Ainda para enfatizar a questão da descrição, destacamos:

Ângela tinha cerca de vinte anos; parecia mais velha pelo


desenvolvimento das proporções. Grande, carnuda, sanguínea e fogosa,
era um desses exemplares excessivos do sexo que parecem conformados
expressamente para esposas da multidão – protestos revolucionários contra o
monopólio do tálamo.

Atirada de modos, como o ditirambo do amor efêmero; vazia como as


estátuas ocas; sem sentimentos, material e estúpida, possuía, entretanto, um
segredo satânico de graduar os largos olhos de sépia e ouro, animar expressões
no rosto que dir-se-ia viver-lhe na face uma alma de superfície, possante, capaz
dos altos martírios da ternura e de interpretar os poemas trágicos da dedicação.

Gostava de arregaçar as mangas para mostrar os braços, luxo de alvura,


braços perfeitos de princesa, que davam que pensar ao espanador humilde no
serviço da manhã. [...]”.

FONTE: (POMPEIA, 1998, p. 42)

71
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

O convívio com as fraquezas humanas e as situações traumáticas


experimentadas pelo jovem que constantemente é exposto a constrangimentos
são fatos revelados e, ao final da história, o internato é destruído por um incêndio.

Raul Pompeia escreveu também uma coletânea de poemas em prosa


intituladas Canções sem Metro (1900). Pompeia escrevia e reescrevia os poemas em
busca da síntese, do ritmo e do colorido de uma nova linguagem poética – o que
fez com que se tornasse referência no gênero. Para Coutinho (apud POMPEIA,
1982), Raul Pompeia é o pioneiro no gênero da poesia em prosa no Brasil. Uma
poesia com forte presença da retórica e da eloquência, escritas sob a influência de
Baudelaire, bem como de Aloysius Bertrand e de Victor Hugo.

Para Ivo (1963), predomina na obra Canções em Metro, a presença de


uma visão de mundo materialista, marcada pela crença no progresso. O crítico,
ao analisar o estilo de Pompeia, considera que as metáforas, as alegorias, as
correspondências e enumerações ordenadas, ou não, são artifícios “[...] recrutados
para proclamar a harmonia universal das coisas e dos seres”. (1963, p. 40). Nessa
perspectiva, são reveladoras de uma visão do universo, de um espaço e tempo,
marcados pela consciência histórica e social.

Observemos o estilo nas poesias que seguem:

A Noite
... le ciel
Se ferme lentement comme une grande alcôve,
Et l’homme impatient se change en bête fauve.

C. BAUDELAIRE

Chamamos treva à noite. A noite vem do Oriente como a luz.


Adiante, voam-lhe os gênios da sombra, distribuindo estrelas e
pirilampos. À noite, soberana, desce. Por estranha magia revelam-se
os fantasmas de súbito.
Saem as paixões más e obscenas; a hipocrisia descasca-se e
aparece; levantam-se no escuro as vesgas traições, crispando
os punhos ao cabo dos punhais; à sombra do bosque e nas ruas ermas,
a alma perversa e a alma bestial encontram-se como amantes
apalavrados; tresanda o miasma da orgia e da maldade – suja o
ambiente; cada nova lâmpada que se acende, cada lâmpada que expira
é um olhar torvo ou um olhar lúbrico; familiares e insolentes,
dão-se as mãos o vício e o crime – dois bêbedos.
Longe daí a gemedora maternidade elabora a certeza das orgias
vindouras.
E a escuridão, de pudor, cerra-se, mais intensa e mais negra.
Chamamos treva à noite – a noite que nos revela a
subnatureza dos homens e o espetáculo incomparável das estrelas.

FONTE: (COUTINHO apud POMPEIA, 1982, p. 72)

72
TÓPICO 3 | CONCEPÇÃO, OBRAS E AUTORES NATURALISTAS

Indústria

Que la fournaise flambe, et que les lourds marteaux,


Nuit et jour et sans fin, tourmentent les métaux!

A. BRIZEUX

O homem bate-se contra o mundo. Cada força viva é um inimigo.


À parte a luta das paixões, trava-se na sociedade a batalha
perene das indústrias.
Combate-se contra o tempo que atrasa e contra a distância que
afasta.
A locomotiva atravessa as planícies como um turbilhão de ferro; a
rede nervosa da telegrafia cria a simultaneidade e a solidariedade
na face do globo; o steamer suprime o oceano; o milagre de
Guttenberg precipita em tempestade as ideias, reduzindo o esforço
cerebral; exacerbam-se os ímpetos produtores do solo, com a energia
vertiginosa das máquinas. Vibram as cidades ao rumor homérico das
caldeiras. Cada dia, o combate ganha uma nova feição e o ventre
fecundo, o ventre inexaurível das forjas, para as novas pugnas,
produz novas armas.
Bendita febre industrial!
Bendito o operário, mártir das indústrias!
Estenda-se por todo o firmamento o fumo que paira sobre as
cidades, vele aos nossos olhos os abismos da amplidão e os signos
impenetráveis das esferas.

FONTE: (POMPEIA apud COUTINHO, 1982, p. 69)

As visões de mundo percebidas nas poesias de Raul Pompeia constituem


um indicador de sua importância e riqueza e nos legam a compreensão das
ideologias que marcaram o final do século XIX. Merece destaque o seu pioneirismo
em romper com a pureza dos estilos, uma vez que Pompeia combinou poesia e
prosa. Essa capacidade inventiva de passar ao leitor ilustrações de episódios do
cotidiano através da narrativa são marcas da criatividade cujo artístico extrapola
o literário.

NOTA

O escritor Lima Barreto (1998) passa para a história por ter suscitado discussões
e polêmicas agitando nosso meio intelectual. Para Veríssimo, foi ele um dos principais
mentores do naturalismo. De observação mais rigorosa, evoca os métodos científicos,
reduzindo assim a idealização romanesca. Passou para a história como um dos grandes
pintores da sociedade urbana, revelando indignação diante de determinados costumes da
sociedade brasileira através da visão satírica, produzindo verdadeiras caricaturas.

73
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

Outro escritor que merece destaque é Herculano Marcos Inglês de


Souza. Nasceu em 1853, em Óbidos, região na qual viveu 15 anos. Foi, além
de romancista, advogado, jornalista contista, professor e membro fundador da
Academia Brasileira de Letras. Sua obra é considerada de cunho naturalista.
Escreveu O Cacaulista (1876), História de um Pescador (1876), O Coronel Sangrado
(1877), e O Missionário (1891).

Em O Cacaulista, primeiro romance da obra intitulada Cenas da Vida do


Amazonas, Inglês de Souza, além de retratar a floresta, narra a rivalidade entre o
jovem Miguel e o Tenente Ribeiro proveniente de questões de terra. Complica-se
a situação quando Miguel se apaixona por Rita, a filha do Tenente. A mesma,
pressionada pelo pai, casa-se com Moreira, moço da cidade. Miguel, contrário
às personagens românticas que buscam solução emocional, opta por deixar a
localidade. No enredo, o narrador insere descrições do cotidiano das populações
ribeirinhas e da exuberância misteriosa da natureza.

No segundo romance da série em questão, intitulado O Coronel Sangrado,


apresenta a realidade centrada em uma disputa política entre conservadores e
liberais. A narrativa é ambientada em Óbidos, região dominada por fazendas
de cacau, numa época em que a navegação a vapor começava a transformar os
costumes das vilas e povoados. A memória da infância e adolescência é resgatada
para revelar e retratar o cotidiano, hábitos e costumes do povo que a habitava.

Leia um fragmento do livro:

O sítio, sofrível propriedade de criação de gado e plantio de cacau,


denotava um descuido e desmazelo tais que dificilmente se podem conceber,
mesmo no Amazonas. O porto e o caminho que levam à casa estavam
completamente obstruídos de canarana; o terreiro coberto de alto capinzal,
onde dia e noite cantavam as rãs, o campo maltratado, o curral desmantelado, e
o cacaual entregue inteiramente aos daninhos periquitos e cupins. A habitação
de telha, coisa rara no Paranameri, era uma peça grande, mas despida de todo
o confortável que indica senhor mais civilizado. O chão estava cavado aqui e ali
pela ação do tempo. O teto era presa das cabas.

Esteios derreados aqui e ali atestavam o pouco cuidado do dono da casa


pela segurança própria. Toda a habitação estava cercada de mato, onde podiam
facilmente vir as cobras.

FONTE: (SOUZA, 2003, p. 23)

Essa reconstituição do modo de vida dos habitantes das margens do


Rio Amazonas, idealizada por Inglês de Souza, permite constatar a intensidade
científica empregada ao descrever seus enredos, com informações precisas sobre
as vilas, as disputas políticas e a exploração dos trabalhadores na segunda metade
do século XIX, quando a economia era baseada no cultivo do cacau e na pesca. Para
a crítica, os romances são socioantropológicos, ricos de informações a respeito da

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TÓPICO 3 | CONCEPÇÃO, OBRAS E AUTORES NATURALISTAS

vida social daquele tempo. O modo de vida dos ribeirinhos é explanado de forma
documental, revelando novos dados da realidade nacional, daí a dizer que esse
romance se distingue dos romances do Naturalismo.

É com o romance O Missionário que Inglês de Sousa incorpora-se à corrente


naturalista. No enredo, o Padre Antônio de Morais vai para Silves, próximo à
selva amazônica. A rotina começa a aborrecê-lo e resolve embrenhar-se na mata,
no intuito de catequizar os nativos. Chega doente ao sítio de João Pimenta, e é
Clarinha, neta do agricultor, que cuida do enfermo. O repouso e os cuidados de
Clarinha, além de lhe restituírem a saúde, despertam no jovem rapaz o erotismo.

Aparece o conflito entre a vocação sacerdotal e o instinto sexual. Para


elucidar o comportamento do jovem, o autor faz um retrospecto da vida de
Padre Antônio Morais, enfatizando a infância, o seminário, a austera disciplina
e a coibição da sexualidade na adolescência. O jovem é perseguido pela tentação
carnal e “[...] reata os caminhos da sensualidade que o fervor religioso havia
reprimido por muitos anos”. (COUTINHO, 2004a, p. 82). Leia um fragmento
da obra:

Eram monótonos os dias no sítio do furo da Sapucaia. Padre Antônio de


Morais acordava ao romper d’alva, quando os japins, no alto da mangueira do
terreiro, começavam a executar a ópera-cômica cotidiana, imitando o canto dos
outros pássaros e o assovio dos macacos. Erguia-se molemente da macia rede de
alvíssimo linho, a que fora outrora do Padre-Santo João da Mata – espreguiçava-
se, desarticulava as mandíbulas em lânguidos bocejos, e depois de respirar por
algum tempo no copiar a brisa matutina, caminhava para o porto, onde não
tardava a chegar a Clarinha, de cabelos soltos e olhos pisados, vestindo uma
simples saia de velha chita desmaiada e um cabeção de canículo enxovalhado.
Metiam-se ambos no rio, depois de se terem despido pudicamente, ele oculto
por uma árvore, ela acocorada ao pé da tosca ponte do porto, resguardando-se
da indiscrição do sol com a roupa enrodilhada por sobre a cabeça e o tronco.
Depois do banho longo, gostoso, entremeado de apostas alegres, vestiam-se
com idênticas precauções de modéstia, e voltavam para a casa, lado a lado,
ela falando em mil coisas, ele pensando apenas que o seu colega João da
Mata vivera com a Benedita da mesma maneira que ele estava vivendo com
a Clarinha. Quando chegavam a casa, ele ficava a passear na varanda, para
provocar a reação do calor, preparando um cigarro enquanto ela lhe ia arranjar
o café com leite. João Pimenta e Felisberto passavam para o banho, depois de
uma volta pelo cacaual e pela malhada, a ver como ia aquilo. Servido o café com
leite, auxiliado de grossas bolachas de carregação ou de farinha-d’água, os dois
tapuios saíam para a pesca, para a caça ou iam cuidar da sua lavourazinha. A
rapariga entretinha-se em ligeiros arranjos de casa, em companhia de Faustina,
a preta velha, e ele, para descansar da escandalosa mandriice, atirava o corpo
para o fundo duma excelente maqueira de tucum, armada no copiar – para
as sestas do defunto Padre-Santo. A Clarinha desembaraçava-se dos afazeres
domésticos, e vinha ter com ele, e então o Padre, deitado a fio comprido, e ela
sentada na beira da rede passavam longas horas num abandono de si e num

75
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

esquecimento do mundo, apenas entrecortado de raros monossílabos, como se


se contentassem com o prazer de se sentirem viver um junto do outro, e de se
amarem livremente à face daquela esplendorosa natureza, que num concerto
harmonioso entoava um epitalâmio eterno.

Às vezes saíam a dar um passeio pelo cacaual, primeiro teatro dos seus
amores, e entretinham-se a ouvir o canto sensual dos passarinhos ocultos na
ramagem, chegando-se bem um para o outro, entrelaçando as mãos. Um dia
quiseram experimentar se o leito de folhas secas que recebera o seu primeiro
abraço lhes daria a mesma hospitalidade daquela manhã de paixão ardente
e louca, mas reconheceram com um fastio súbito que a rede e a marquesa,
sobretudo a marquesa do Padre-Santo João da Mata, eram mais cômodas e
mais asseadas.

Outras vezes vagavam pelo campo, pisando a relva macia que o gado
namorava, e assistiam complacentemente a cenas ordinárias de amores bestiais.
Queriam, então, à plena luz do sol, desafiando a discrição dos maçaricos e das
colhereiras cor-de-rosa, esquecer entre as hastes do capim crescido, nos braços
um do outro, o mundo e a vida universal. A Faustina ficara em casa. João
Pimenta e o Felisberto pescavam no furo e estariam bem longe. Na vasta solidão
do sítio pitoresco só eles e os animais, oferecendo-lhes a cumplicidade do seu
silêncio invencível. A intensa claridade do dia excitava-os. O sol mordia-lhes o
dorso, fazendo-lhes uma carícia quente que lhes redobrava o prazer buscado
no extravagante requinte.

Mas esses passeios e diversões eram raros. De ordinário quando João


Pimenta e o neto voltavam ao cair da tarde, ainda os encontravam na maqueira,
embalando-se de leve e entregando-se à doce embriaguês dum isolamento a
dois.

Findo o jantar, fechavam-se as janelas e as portas da casa, para que não


entrassem os mosquitos. Reuniam-se todos no quarto do Padre, à luz vacilante
de uma candeia de azeite de andiroba. Ela fazia renda de bico, numa grande
almofada, trocando com agilidade os bilros de tucumã com haste de cedro
envolvida em linha branca. João Pimenta, sentado sobre a tampa de uma arca
velha, mascava silenciosamente o seu tabaco negro. Felisberto, sempre de bom
humor, repetia as histórias de Maués e os episódios da vida do Padre-Santo João
da Mata dizendo que o seu maior orgulho eram essas recordações dos tempos
gloriosos em que ajudara a missa de opa encarnada e turíbulo na mão. Padre
Antônio de Morais, deitado na marquesa de peito para o ar, com a cabeça oca e
as carnes satisfeitas, nos intervalos da prosa soporífera de Felisberto assoviava
ladainhas e cânticos de igreja.

Pouco mais de uma hora durava o serão. A Faustina trazia o café num
velho bule de louça azul, e logo depois, com lacônico e anêpetuna – boa-noite,
se retirava o velho tapuio. Felisberto ainda se demorava alguma cousa a caçoar

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TÓPICO 3 | CONCEPÇÃO, OBRAS E AUTORES NATURALISTAS

com a irmã, jogando-lhe graçolas pesadas que a obrigavam a arregaçar os


lábios num aborrecimento desdenhoso. Depois o rapaz saía, puxando a porta e
dizendo numa bonomia alegre e complacente:

– Ara Deus dê bás noites pra vuncês.

Isto fora assim dia por dia, noite por noite, durante três meses.

FONTE: (SOUZA, 1992, p. 169)

Inglês de Souza explora os condicionamentos biológicos, sociais e


circunstanciais, sob a ótica naturalista, descrevendo a localidade de Silves,
minuciosamente, levando o leitor a perceber o ambiente quieto e os tipos
característicos que lá residem: o farmacêutico, o sacristão, o coletor, o professor
dentre outros, bem como as controvérsias teológicas do Padre Antônio Morais. A
seguir, outro trecho retirado da obra no qual a situação melancólica, provocada
por um dia de chuva e pela calmaria do local, é explorada:

Chovia. Era um aguaceiro forte de meados de março que lavara as ruas


malcuidadas da vila, ensopando o solo ressequido pelos ardores do verão. O
professor Francisco Fidêncio Nunes despedira cedo os rapazes da classe de
latim, os únicos que haviam afrontado o temporal; e olhava pela janela aberta,
sem vidros, pensando na necessidade que lhe impusera o Regalado de passar
aquele dia inteiro dentro de quatro paredes, por causa da umidade, fatal ao seu
fígado engorgitado.

A caseira, uma mulata ainda nova, chamara-o para almoçar.

Naquele dia podia oferecer-lhe uma boa posta de pirarucu fresco, e


umas excelentes bananas-da-terra, que lhe mandara de presente a velha Chica
da Beira do lago, cujo filho cursava gratuitamente as aulas do professor. A
caseira, a Maria Miquelina, sabendo que o senhor professor não poderia comer
as bananas cruas, por causa da dieta homeopática do Regalado, cozera-as
muito bem em água e sal, preparara-as com manteiga e açúcar e pusera-as no
prato, douradas e apetitosas.

Mas o dono da casa nem sequer as provara. Fizera má cara também ao


pirarucu fresco, rosado e cheiroso, preparado com cebolas e tomates, e, por
almoço, tomara apenas uma xícara de café forte com uma rosquinha torrada,
porque o estômago lhe não permitia alimento de mais sustância. Tivera durante
a noite um derramamento de bílis, devido à mudança de tempo, erguera-se de
cabeça amarrada, ictérico e nervoso. Fora ríspido com os dois ou três rapazes
que compareceram à classe de latim, e despedira-os dizendo que iam ter férias,
porque a semana santa se aproximava. Tratassem de decorar bem o novo
método, senão pregava-lhes uma peça.

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UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

Depois da saída deles, Chico Fidêncio ficara aborrecido, vagamente


arrependido de os ter despachado tão cedo. Que iria fazer agora? A chuva
continuara a cair torrencialmente, transformando a rua num regato volumoso
que arrastava paus, folhas, velhos paneiros sem préstimo, latas vazias e barcos
de papel, feitos pela criançada vadia que não tinha medo à chuva. Não passava
ninguém, para dar uma prosa. As casas vizinhas estavam fechadas, para evitar
que a chuva penetrasse pelas janelas sem vidraça. A flauta do Chico Ferreira, às
moscas na alfaiataria, interrompia o silêncio da vila recolhida, casando os sons
agudos e picados com o ruído monótono da água repenicando nos telhados.

Que dia estúpido aquele! Silêncio na rua, silêncio na casa! Nem ao


menos a Maria Miquelina, de ordinário palradora, queria falar agora! Amuada,
pois que o professor lhe desprezara o almoço, sentara-se a um canto de sala de
jantar e fazia rendas, silenciosa e trombuda.” [...]

FONTE: (SOUZA, 1992, p. 22)



A selva amazônica é temática deste e de outros romances do escritor
que apresenta os moldes do naturalismo. Se os primeiros escritos fogem ao
romantismo e se aproximam do Realismo, O Missionário é de um naturalismo
rigoroso, apresenta o homem nas suas lutas, fraquezas e determinações em que as
ações do meio condicionam seu comportamento. Inglês de Souza foi o naturalista
que mais seguiu de perto a influência de Zola.

3 O PARNASIANISMO
Na poesia, foi o Parnasianismo o movimento correspondente ao Realismo
e ao Naturalismo, conforme já descrito, que surgiu na França e designava os
poetas que se reuniam e publicavam antologias de poesias chamadas Le Parnasse
Contemporain. Os poetas parnasianos seguem a tendência objetivista, rendem-se
ao ideal científico e ao positivismo filosófico. Os versos passam a ser redigidos
com formas evitando o uso exagerado de metáforas. Os parnasianistas foram
descritivistas radicais, abordaram a impotência do homem perante a realidade
circundante. Tal postura, de acordo com Schopenhauer (apud ABDALA JUNIOR;
CAMPEDELLI, 1987), ocorria, pois estes poetas consideravam a arte como forma
de contemplação e não de participação, sem qualquer intuito pragmático. De
acordo com Moisés, os poetas parnasianistas admitiam que

[...] a obra de arte, em vez de se destinar à defesa de causas sociais


ou ao entretenimento do grande público, constitui luxo intelectual,
endereçado aos eleitos ou às sensibilidades raras, aptas a fruir a
beleza na máxima expressão. Neoclássicos procuravam imitar os
autores greco-latinos, pondo ênfase no apuro formal dos poemas, pois
acreditavam que somente a forma é capaz de eternizar e universalizar
as obras de arte. (2004, p. 339).

78
TÓPICO 3 | CONCEPÇÃO, OBRAS E AUTORES NATURALISTAS

No Brasil, como veremos, o Parnasianismo repercute no Simbolismo


e alastra-se para o Modernismo. Assim é que na literatura brasileira surgem
movimentos que convergem para um posicionamento antirromântico: o
Realismo, o Naturalismo e o Parnasianismo. Para melhor compreender este
último, necessário se faz atentar para as correntes que o precederam, a da poesia
filosófico-científica e da poesia realista, chamada poesia socialista.

Para os escritores da época, o Romantismo já estava ultrapassado, algo


deveria substituí-lo. Nesse contexto, o desenvolvimento das ciências modernas
provocou o aparecimento de ideias novas e não mais compatíveis com as
anteriores. Segundo Machado de Assis, “[...] há uma tendência nova, oriunda do
fastio deixado pelo abuso do subjetivismo romântico e do desenvolvimento das
modernas teorias científicas”. (1994, p. 416).

Sílvio Romero objetivava que os poetas de seu tempo demonstrassem


conhecer os princípios da filosofia, bem como o espírito renovador da ciência, mas
sem cunho didático. Foi nesse contexto que nasceu a poesia científica no Brasil,
ao final do século XIX, que deveria representar a nova mentalidade racionalista,
materialista, relativista, naturalista e antiteológica. A poesia passava por uma
espécie de crise, com diferentes opiniões quanto ao rumo. Havia quem defendesse
o realismo poético, o sentimentalismo e, para tantos outros, a agregação do
romantismo, do realismo e da poética científica, produto da Escola do Recife,
que seguia as ideias do positivismo. Mas, se alguns intelectuais discordavam
da possibilidade da poesia relacionar-se com a ciência, Sílvio Romero assim se
declarou:

O poeta deve ter grandes ideias que a ciência de hoje certifica em sua
eminência, não para ensinar geografia ou linguística, pré-história ou
matemática, mas para elevar o belo com os lampejos da verdade, para
ter a certeza dos problemas além da miragem da ilusão. (SILVA apud
COUTINHO, 2004a, p. 92).

Para Coutinho, Romero não alcançou o intento: o de escrever uma poesia


científica, uma vez que sua expressão permaneceu romântica. Machado de Assis
estudou a obra de Sílvio intitulada Contos do Fim do Século (1878) e também se
refere à pretensão não conquistada de substituir a imaginação romântica pela
verdade científica.

Outro representante da tendência científica foi José Isidoro Martins


Júnior, nascido no Recife, em 1860. Formou-se na Faculdade de Direito e publicou
folhetos de direito, filosofia e literatura. Para este, a poesia e a ciência possuíam
pontos em comum uma vez que ambas pretendiam conhecer o mundo e o homem.
Em sua obra, A Poesia Científica (1983), fez ressoar as palavras de Spencer: “[...]
não só a ciência serve de base para a escultura, pintura, música e a poesia, como
também a ciência é por si mesma poesia”, e continua o estudioso: “[...] a ciência
excita o sentimento poético em lugar de o extinguir”. (SPENCER apud MARTINS
JÚNIOR, 1883, p. 65). Sendo assim, poesia e ciência não são antagônicas. Do
fragmento, podemos depreender a junção do positivismo e da ciência:

79
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

[...] espíritos
Que já não vão correndo erradios atrás,
Da sereia fatal da Imaginação
Ou da fantasia, e têm no sensório a visão
Nítida do real e da verdade.

FONTE: (MARTINS apud COUTINHO, 2004a, p. 93)

O crítico literário José Veríssimo, no que se refere à poesia científica,


afirma que ela

[...] não deu aliás senão frutos pecos ou gorados ainda em flor.
Poesia científica é incongruência manifesta. Que a ciência, influindo
a mentalidade humana e aperfeiçoando-a consoante as suas soluções
definitivas, ou os seus critérios, possa acabar por atuar também o
sentimento humano, é uma verdade psicológica de primeira intuição.
Não o é menos que o sentimento assim feito possa comover-se
conformemente com os motivos que o produziram ou segundo a
emotividade resultante de determinações daquelas soluções a critérios.
Se for cabal a conversão da noção em sentimento, se este já for bastante
intenso, poderá a sua expressão corresponder-lhe à intensidade e ser,
pois, do ponto de vista estético, legítima e bela. Mas para que isto
aconteça, cumpre seja completa e perfeita a transformação da ideia
em sentimento íntimo capaz de expressão artística, subjetiva. Senão
será uma pura emoção sentimental, cuja expressão poética dispensa
qualificativo ou, o que foi a nossa “poesia científica”, uma aberração de
pseudopoetas e pseudocientistas, um efeito de moda ou uma ocasião
oratória. Poesia, como arte que é, é síntese, uma síntese emotiva.
Limitando-se os nossos poetas científicos a versejar noções, princípios,
conhecimentos científicos, e mais nomes do que coisas, resvalavam à
poesia didática, de ridícula memória. (1998, p. 384).

Embora, por vezes criticados, quiseram Sílvio Romero e Martins Júnior,


apoiados no positivismo e no determinismo, escrever uma poesia que estivesse
em conformidade com os ideais e as ideias de um tempo marcado não mais pela
criação divina, mas por um conjunto de fenômenos que poderiam ser analisados,
compreendidos e até mesmo previstos.

Se ao norte do país foi intensa a poesia científica, em São Paulo e Rio de


Janeiro surgiu a poesia realista que, tal qual a científica, não admitia a idealização
romântica. Deve-se atentar para o fato de que o Realismo surgiu em pleno
Romantismo e, nesse sentido, Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e Castro
Alves assinalaram composições românticas e realistas.

Uma das características da poesia “ideia nova não é tanto o realismo em si


nem o Socialismo, mas o fato de seus adeptos já não quererem ser românticos e de
procurarem novo tipo de dicção, que conseguiriam ainda antes do parnasianismo”.
(COUTINHO, 2004a, p. 94).

No Brasil a poesia realista pode ser dividida em urbana e agreste. Da
poesia urbana, destacaram-se Carvalho Júnior (1855-1879), Teófilo Dias (1849-
1879), Afonso Celso (1860-1938) e Celso Magalhães (1849-1879).

80
TÓPICO 3 | CONCEPÇÃO, OBRAS E AUTORES NATURALISTAS

Dentre estes poetas escolhemos uma poesia de Carvalho Júnior,


reveladora de como o amor passa do foco espiritual e discreto do romantismo,
para o sensualismo e o erotismo. Observe tal intento nas poesias que seguem:

Profissão de fé

Odeio as virgens pálidas, cloróticas,


Belezas de missal que o romantismo
Hidrófobo apregoa em peças góticas,
Escritas nuns acessos de histerismo.
Sofismas de mulher, ilusões ópticas,
Raquíticos abortos do lirismo,
Sonhos de carne, compleições exóticas,
Desfazem-se perante o realismo.
Não servem-me esses vagos ideais
Da fina transparência dos cristais,
Almas de santa e corpo de alfenim.
Prefiro a exuberância dos contornos,
As belezas da forma, seus adornos,
A saúde, a matéria, a vida enfim.

FONTE: (CARVALHO JÚNIOR, 2006, p. 13)

O perfume

A Artur de Oliveira
Unge-te a pele fina e cetinosa
Um perfume sutil, insinuante,
Igual à planta da Ásia venenosa,
Cuja sombra atraiçoa o viandante;
O nardo, o benjoim e a tuberosa,
As tépidas essências do Levante,
Do Meio-Dia a flora luxuosa,
De cores e de aromas abundante,
Não disputam-lhe o passo, a primazia,
Nem produzem-me a lânguida apatia
Que em noites de verão, lentas, calmosas,
Sinto quando debruço-me em teu seio,
Afogando-me em morno devaneio
Num mar de sensações voluptuosas.

FONTE: (CARVALHO JÚNIOR, 2006, p. 13)

Mas, não somente de poesias sensuais e eróticas se fez a poesia urbana,


e mesmo que não diretamente, condenava os costumes vigentes e o homem
desumanizado diante de fatos da vida.

81
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

A poesia realista agreste, por sua vez, abarca escritores que se empenharam
em poetizar sobre a vida nas fazendas brasileiras. Bernardino Lopes foi um desses
poetas, sua poesia graciosa ficou largamente conhecida:

A casinha – o sol dobrando

Projetora sombra na frente,


Onde o casal inocente
Esta sorrindo e brincando.

Vai a menina cantando,


Medita o irmão... de repente
Safa-se aos pulos, contente
Como graúna de um bando.

Chega ao portal pequenino


A mãe, que a olhar quase cai,
Soltando, pálida, um grito...

É que o travesso menino


com as chinelas do pai
tenta montar no cabrito.

FONTE: (COUTINHO, 2004a, p. 101)

Leia outra poesia realista agreste, esta de autoria de Afonso Celso:

Na fazenda

Dorme ainda a fazenda: ao longo da varanda


Repousa o boiadeiro em couros estendidos;
Desponta no horizonte aurora frouxa e branda
No meio do terreiro um cão solta ganidos!

Mas isso de repente escutam-se alaridos


Dum sino que desperta estruge a voz nefanda;
Começam a soar conversas e balidos
E a ordem de rigor que rude aos negros manda!

Chegou o começar das lides e trabalhos


Ressoam do feitor os brados e os ralhos:
A boiada desfila à porta do curral

Os pretos esfregando os olhos sonolentos


Levando samburás lá vão a passos lentos
Da porta da senzala ao denso cafezal

FONTE: (CELSO, 1995, p. 323)

82
TÓPICO 3 | CONCEPÇÃO, OBRAS E AUTORES NATURALISTAS

Ao que parece o poeta procurou inspiração na realidade exterior, imbuída


de um senso poético, pelos elementos de estilo, uma realidade transcrita com
muita acuidade e correção, um poeta verdadeiro que marcou o seu fazer na
literatura brasileira.

No que tange à poesia socialista brasileira, a mesma corresponde a que


se praticava em Portugal, devido à Questão Coimbrã. Nessa época as aspirações
dos poetas se dirigiam para a República e o anticatolicismo. Focavam-se, por
influência do Positivismo, na humanidade, no trabalho e no progresso, com um
tom otimista, contrário ao pessimismo romântico e, desde 1870 repercutem, a
partir da publicação de Névoas Matutinas, do escritor Lúcio de Mendonça. Assim,
inicia-se em São Paulo e no Rio de Janeiro, o desejo republicano. (COUTINHO,
2004a), insurgindo a poesia parnasianista.

Um dos representantes do Parnasianismo é Alberto de Oliveira (1851-


1882) que trouxe de Paris as novidades literárias: foi a obra de Oliveira, intitulada
Canções Românticas (1878), que ficou conhecida como o marco da poesia parnasiana
em terras brasileiras.

O parnasianismo ficou conhecido como uma poesia defeituosa, tanto na


colocação pronominal, como na métrica dos versos. Fato este que lhe rendeu
críticas, inclusive de Machado de Assis, que expôs a necessidade de os poetas
preocuparem-se com a correção métrica e gramatical. Os escritos de Alberto
de Oliveira são exemplo dessa poesia pouco preocupada com a gramática e a
métrica e, por vezes, com erros ortográficos: observe a colocação pronominal nos
dois versos a seguir.

“Se não viram-te as asas alvejantes”


“O silêncio da dor que enrosca-se à caveira”

FONTE: (COUTINHO, 2004a, p. 111)

Sobre a questão gramatical Coutinho afirma que era inexistente para


os românticos, surgindo a partir das críticas de Castilho José a José de Alencar.
Desse modo, pela voz ativa dos antirromânticos, a questão vem à tona mais uma
vez. “Daí por diante, os parnasianos começaram a preocupar-se crescentemente
com a colocação dos pronomes e a pureza da língua. Alberto de Oliveira no fim
da vida fez-se um purista. (COUTINHO, 2004a, p. 112).

A história divide a poesia de Alberto de Oliveira em duas fases. A primeira


permeada com o estilo francês, com temas exóticos, e a segunda, em face da
ênfase à natureza brasileira. Pode-se afirmar que o mesmo, no que diz respeito
aos temas, os reporta da França para o Brasil e, no que diz respeito à língua, foi
do Brasil para Portugal. (COUTINHO, 2004a).

Outro poeta importante para a literatura brasileira foi Olavo Bilac, escritor
de um tempo no qual a indecisão dos rumos cedeu lugar ao trabalho formal, que

83
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

pregava a necessidade de perfeição formal e o culto ao estilo. A preconização


à correção do verso e da língua pode ser percebida nas suas poesias. O poema
Profissão de Fé tornou-se uma espécie de manifesto da poesia parnasiana:

Invejo o ourives quando escrevo:


Imito o amor
Com que ele, em ouro, o alto-relevo
Faz de uma flor.

Imito-o. E, pois nem de Carrara


A pedra firo:
O alvo cristal, a pedra rara,
O ônix prefiro.

Por isso, corre, por servir-me,


Sobre o papel
A pena, como em prata firme
Corre o cinzel.

Corre; desenha, enfeita a imagem,


A ideia veste:
Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem
Azul-celeste.

Torce, aprimora, altera, lima


A frase; e, enfim,
No verso de ouro engasta a rima,
Como um rubim.

Quero que a estrofe cristalina,


Dobrada ao jeito
Do ourives, saia da oficina
Sem um defeito:

E que o lavor do verso, acaso,


Por tão sutil,
Possa o lavor lembrar de um vaso
De Becerril.

E horas sem conta passo, mudo,


O olhar atento,
A trabalhar, longe de tudo
O pensamento

Porque o escrever – tanta perícia,


Tanta requer,
Que ofício tal... nem há notícia
De outro qualquer.

84
TÓPICO 3 | CONCEPÇÃO, OBRAS E AUTORES NATURALISTAS

Assim procedo. Minha pena


Segue esta norma,
Por te servir, Deusa serena,
Serena forma!

FONTE: (BILAC, 1985, p. 15)

Trata-se de uma poesia metalinguística. O autor compara o fazer poético


à delicadeza do artesanato, não à brutalidade como quem esculpe algo. Para
tanto, faz uso de expressões como camartelo – um tipo de martelo usado pelo
escultor para desbastar pedras, e cinzel, instrumento cortante também utilizado
por escultores.

Bilac é adepto do conceito da arte pela arte, máxima parnasiana que consiste
em fazer arte em detrimento da emoção e dos problemas sociais. Olavo Bilac
compara o fazer poético a um joalheiro que, exaustivamente, trabalha a peça a
ser feita. Quando pronta, podemos apreciá-la e nos agradar com tamanha beleza.

Segundo Coutinho, percebemos que “[...] a forma não pode constituir, só


por si, um fim ou um programa, e que a poesia, muitas vezes, é um horizonte
inatingível”. (2004a, p. 127). Olavo Bilac escreveu ainda Inania verba, um soneto
no qual expõe a dificuldade em obter a expressão perfeita:

Inania verba

Ah! quem há de exprimir, alma impotente e escrava,


O que a boca não diz, o que a mão não escreve?
– Ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve,
Olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava...

O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava;


A Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve...
E a Palavra pesada abafa a Ideia leve,
Que, perfume e clarão, refulgia e voava.

Quem o molde achará para a expressão de tudo?


Ai! quem há de dizer as ânsias infinitas
Do sonho? e o céu que foge à mão que se levanta?

E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo?


E as palavras de fé que nunca foram ditas?
E as confissões de amor que morrem na garganta?

FONTE: (BILAC, 1985, p. 35)

85
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

Em outro poema enfatiza a boa forma e bom estilo, conforme você mesmo
poderá constatar:

A um poeta

Longe do estéril turbilhão da rua,


Beneditino escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha e teima, e lima, e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego


Do esforço: e trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua
Rica mas sóbria, como um templo grego

Não se mostre na fábrica o suplício


Do mestre. E natural, o efeito agrade
Sem lembrar os andaimes do edifício:

Porque a Beleza, gêmea da Verdade


Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade.

FONTE: (BILAC, 1985, p. 70)

Bilac, esse poeta que dominava a arte de versificar, defensor de campanhas


cívicas e autor do Hino à Bandeira, tornou-se como que um padrão a ser imitado.
Sua preocupação com a correção da língua e do verso, a busca do poema sem
defeito, não significa, contudo, um Bilac sem emotividade. Os indícios românticos
podem ser apreciados em:

Via láctea
Soneto XIII

Ora (direis) ouvir estrelas!


Certo perdeste o senso!”
Eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto


A via láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: “Tresloucado amigo!


Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?”

86
TÓPICO 3 | CONCEPÇÃO, OBRAS E AUTORES NATURALISTAS

E eu vos direi: “Amai para entendê-las!


Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.”

FONTE: (BILAC, 1985, p. 96)

Observe também a valorização dos sentimentos, no poema

Nel mezzo del camin,

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada


E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha...

E paramos de súbito na estrada


Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje, segues de novo... Na partida


Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,


Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.

FONTE: (BILAC, 1985, p. 47)

O poema Nel mezzo del camim faz alusão ao primeiro verso da Divina
Comédia, de Dante Alighieri, quando o protagonista inicia uma viagem ao mundo
do além, declarando que se encontrava no meio do caminho de sua vida em uma
selva escura. O argumento de Bilac é indicativo da intertextualidade tão presente
em nossa literatura. Olavo Bilac refere-se ao encontro após a separação e a dor
da partida. Ao descrever tais sentimentos lança mão da marcação das rimas, um
soneto dividido em dois quartetos e dois tercetos, em versos decassílabos e rimas
que seguem o seguinte padrão: A/B/A/B - A/B/A/B - C/D/C - E/D/E, cruzadas, ou
alternadas.

Suas poesias infantis também são conhecidas. Nas páginas dedicadas às


crianças, emerge um didatismo por vezes repleto de civismo. Dos escritos destinados
ao jovem leitor, destacamos:

87
UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

A borboleta

Trazendo uma borboleta,


Volta Alfredo para casa.
Como é linda! é toda preta,
Com listas douradas na asa.

Tonta, nas mãos da criança,


Batendo as asas, num susto,
Quer fugir, porfia, cansa,
E treme, e respira a custo.

Contente, o menino grita:


“É a primeira que apanho,
“Mamãe! vê como é bonita!
“Que cores e que tamanho!

“Como voava no mato!


“Vou sem demora pregá-la
“Por baixo do meu retrato,
“Numa parede da sala”.

Mas a mamãe, com carinho,


Lhe diz: “Que mal te fazia,
“Meu filho, esse animalzinho,
“Que livre e alegre vivia?

“Solta essa pobre coitada!


“Larga-lhe as asas, Alfredo!
“Vê como treme assustada...
“Vê como treme de medo...

“Para sem pena espetá-la


“Numa parede, menino,
“É necessário matá-la:
“Queres ser um assassino?”

Pensa Alfredo... E, de repente,


Solta a borboleta. E ela
Abre as asas livremente,
E foge pela janela.

“Assim, meu filho! perdeste


“A borboleta dourada,
“Porém na estima cresceste
“De tua mãe adorada...

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TÓPICO 3 | CONCEPÇÃO, OBRAS E AUTORES NATURALISTAS

“Que cada um cumpra sua sorte


“Das mãos de Deus recebida:
“Pois só pode dar a Morte
“Aquele que dá a Vida!”

A boneca

Deixando a bola e a peteca,


Com que inda há pouco brincavam,
Por causa de uma boneca,
Duas meninas brigavam.

Dizia a primeira: “É minha!”


– “É minha!” a outra gritava;
E nenhuma se continha,
Nem a boneca largava.

Quem mais sofria (coitada!)


Era a boneca. Já tinha
Toda a roupa estraçalhada,
E amarrotada a carinha.

Tanto puxaram por ela,


Que a pobre rasgou-se ao meio,
Perdendo a estopa amarela
Que lhe formava o recheio.

E, ao fim de tanta fadiga,


Voltando à bola e à peteca,
Ambas, por causa da briga,
Ficaram sem a boneca.

FONTE: (BILAC, 1985, p. 89)

Olavo Bilac nasceu no Rio de Janeiro, em 1865, estudou medicina e


direito, mas não os concluiu. Foi jornalista e inspetor escolar, defensor da
educação primária, da educação física e do serviço militar obrigatório. Dentre
suas temáticas podemos destacar as poesias amorosas, as de reflexo melancólico e
as que evocam a saudade. Em Bilac encontramos uma oportunidade de expansão
sobre a poética do Brasil do século XIX.

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UNIDADE 1 | O SÉCULO XIX: DOUTRINAS E MOVIMENTOS LITERÁRIOS

LEITURA COMPLEMENTAR

Para acirrar a discussão sobre o naturalismo, leiamos o que escreveu


Afrânio Coutinho:

LEGADO DO NATURALISMO

Não se pode afirmar que foi com o Naturalismo, através de seu processo
de captação da realidade objetiva, que se fixaram pela primeira vez no romance
brasileiro os nossos tipos e os nossos costumes. Antes de Aluísio de Azevedo,
Júlio Ribeiro, Inglês de Souza e Adolfo Caminha, já a nossa vida urbana, com
as suas peculiaridades mais destacadas, se espelhava no romance. Em pleno
Romantismo brasileiro, José de Alencar pinta a vida na Corte, nos perfis de
mulher de sua galeria copiosa. Taunay, Bernardo Guimarães, Macedo, Franklin
Távora são hábeis pintores da vida brasileira, e isto para não falar em Manuel
Antônio de Almeida, em cujas Memórias de um Sargento de Milícias, de tanto
sabor picaresco, há um Realismo enxuto, sóbrio, de tintas firmes e definitivas.
Inspecionando a alma de suas personagens, Machado de Assis, em lugar de fixar
diretamente as paisagens, contempla-as através dos olhos das figuras de seus
contos e romances.

Antes do Naturalismo, havia, assim, em nossas letras, um Realismo


discreto, sem exageros ou excessos, a que o Naturalismo veio dar maior vigor,
com um colorido por vezes brutal. A obra de Balzac, construída ao curso dos vinte
anos em que se elabora o nosso Romantismo, não influi efetivamente em nossa
literatura: há um ou outro traço acidental, sem maior significação, da presença do
criador de Vautrin em nossas letras. O dom de ver, observou certa vez um dos
mestres do romance naturalista, é menos comum que o dom de criar. Se tínhamos
olhos para captar os costumes e as tradições brasileiras, transplantando-as para
romances e contos, ficávamos dentro do convencional sempre que os tipos se
movimentavam, com os seus sentimentos e seus problemas, no ambiente que lhe
destinávamos.

O Naturalismo contribuiu poderosamente para destruir o convencionalismo


do elemento humano do romance brasileiro. Essa herança romântica como que se
desbarata, ou pelo menos se enfraquece, após o advento do romance naturalista.
É verdade que o Naturalismo criou outras figuras convencionais, com a sua
preocupação falaciosa de fazer ciência. Em breve os tipos se repetiam, uniformes
e estereotipados, conforme se viu na reprodução instantânea da Magdá de O
Homem. Esse abuso foi um bem, porquanto retificou a nova escola nos seus
exageros.

90
TÓPICO 3 | CONCEPÇÃO, OBRAS E AUTORES NATURALISTAS

Não será fora de propósito lembrar alguns nomes de romancistas,


muitos deles de vocação autêntica, que foram sacrificados pelo crepúsculo do
Naturalismo. Horácio de Carvalho, Pardal Mallet, Papi Júnior, Rodolfo Teófilo,
José do Patrocínio, Marques de Carvalho, Antônio de Oliveira, Batista Cepelos,
Faria Neves Sobrinho, A. de Paiva, Aderbal de Carvalho, Tomás Alves Filho,
Carneiro Vilela, Virgílio Brígido, Carmen Dolores, Antônio de Sales, Canto e
Melo podem ser evocados, no levantamento da escola naturalista no Brasil. É
bem verdade que de muitos deles ficaram mais os nomes que as obras, sendo que
algumas vezes até os nomes com dificuldades sobreviveram até os nossos dias.
Em todo caso, representam eles o elemento de ligação entre fases distintas da
literatura brasileira.

Na literatura corrente, o Naturalismo é um processo plenamente


ultrapassado, mas muitas de suas lições podem ser rastreadas ao longo das obras
que, refletindo realidades regionais, se pautam pelas coordenadas do Realismo,
embora com uma liberdade de criação que supera as limitações impostas pelo
Naturalismo, na sua miragem do romance experimental.

FONTE: (COUTINHO, 2004a, p. 88)

DICAS

Para aprofundar seus estudos, leia o livro História da Literatura Brasileira do


estudioso Massaud Moisés. Editora Cultrix, 2001.

91
RESUMO DO TÓPICO 3
Vamos rever sucintamente o conteúdo que apresentamos neste terceiro
tópico:

• O Naturalismo é um movimento literário ulterior que acentuava a visão do


homem como que uma máquina norteada pela ação de leis físicas e químicas,
pela hereditariedade e pelo meio social. Também intensificava uma reação às
instituições sociais, figuras, usos e costumes.

• As obras naturalistas enfatizavam aspectos do homem e seu parentesco com os


animais e preconizavam uma proximidade entre a arte e a realidade social.

• Dentre as características do Naturalismo estão o homem como produto do


meio, a vulgarização dos sentidos e a exploração dos instintos humanos,
neuroses, cargas hereditárias, casos patológicos.

• No Brasil, a obra O Mulato é considerada o marco do Naturalismo. O seu autor


expõe uma crítica social idealizada através da sátira e os costumes das gentes
da província. Além disso, predomina a luta contra o preconceito racial e o
puritanismo sexual.

• Outro naturalista foi Júlio César Ribeiro que escreveu A Carne, uma obra que
provocou alvoroço na sociedade da época, pelo argumento que faz alusão à
obscenidade, com resquícios naturalistas.

• Raul Pompeia se consagra na literatura brasileira com O Ateneu, no qual aborda


as fraquezas humanas e as situações traumáticas experimentadas pelo jovem
quando viveu no internato. Pompeia escreveu também uma coletânea de
poemas em prosa, pioneiro no gênero no Brasil.

• Outro escritor que merece destaque é Herculano Marcos Inglês de Souza, um


naturalista influenciado por Zola. Herculano explora os condicionamentos
biológicos, sociais e circunstanciais.

• O parnasianismo foi um movimento que surgiu na França e designava os poetas


que se reuniam e publicavam antologias de poesias chamadas Le Parnasse
Contemporain. Eram perpassados do ideal científico e do positivismo filosófico,
que consideravam a arte como forma de contemplação e não de participação,
sem qualquer intuito pragmático.

92
• Sílvio Romero e Martins Júnior pretendiam escrever uma poesia que estivesse
em conformidade com os ideais e as ideias de um tempo marcado não mais
pela criação divina, mas por um conjunto de fenômenos que poderiam ser
analisados, compreendidos e até mesmo previstos.

• A poesia realista agreste abarca escritores que se empenharam em poetizar


sobre a vida nas fazendas brasileiras.

• A poesia socialista correspondeu a de Portugal, devido à Questão Coimbrã.


Focavam-se, por influência do Positivismo, na humanidade, no trabalho e no
progresso, com um tom otimista, contrário ao pessimismo romântico.

• Um dos representantes do Parnasianismo é Alberto de Oliveira que trouxe de


Paris as novidades literárias: a história divide a sua poesia em duas fases. A
primeira permeada com o estilo francês, com temas exóticos, e a segunda, em
face da ênfase à natureza brasileira.

• Outro poeta importante para a literatura brasileira foi Olavo Bilac. Adepto do
conceito da arte pela arte, pregava a necessidade da perfeição formal e o culto ao
estilo.

93
AUTOATIVIDADE

1 Elabore uma síntese contemplando as características do


Naturalismo.

2 Destaque as principais características parnasianas.

3 Leia os textos e, em seguida, responda ao que se pede:

Língua Portuguesa

Última flor do Lácio, inculta e bela,


És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura,


Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma


De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: “meu filho!”


E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!
(Olavo Bilac)

Língua

Gosto de sentir a minha língua roçar


A língua de Luís de Camões.
Gosto de ser e estar
E quero me dedicar
A criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que furtem cores de camaleões.
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa

94
Assim como o amor está para a amizade.
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixa os portugais morrerem à míngua,
“Minha pátria é minha língua”
- Fala, Mangueira!
Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode
Esta língua?

(Caetano Veloso)

O texto de Bilac contém referências ao Brasil e ao português aqui falado,


o mesmo acontece no texto de Caetano Veloso. Localize, nos textos, passagens
em que se façam referências ao português do Brasil ou outro fato que diga
respeito ao nosso país.

95
96
UNIDADE 2

SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E
VANGUARDAS

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir desta unidade você será capaz de:

• identificar textos do Simbolismo brasileiro;

• contextualizar sobre os textos do Pré-Modernismo;

• apontar autores do Simbolismo e Pré-Modernismo;

• citar as características dos autores do Simbolismo brasileiro.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em 3 (três) tópicos que o/a levarão à compre-
ensão das doutrinas e movimentos literários do século XIX. Em cada um
dos tópicos você encontrará atividades que o/a ajudarão a consolidar sua
aprendizagem acerca deste tema.

TÓPICO 1 – O SIMBOLISMO: UMA VISÃO SUBJETIVA DO MUNDO

TÓPICO 2 – AS TENDÊNCIAS DO FINAL DO SÉCULO XIX

TÓPICO 3 – AS VANGUARDAS DA EUROPA E SUA INFLUÊNCIA


NO BRASIL

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98
UNIDADE 2
TÓPICO 1

O SIMBOLISMO: UMA VISÃO SUBJETIVA DO


MUNDO

1 INTRODUÇÃO
Na Europa oitocentista, as ideias científico-filosóficas e materialistas,
que procuravam analisar racionalmente a realidade, estavam disseminadas por
todo o continente. No entanto, o pensamento materialista e científico não foi
compartilhado ou assimilado por todas as camadas sociais, que ficaram distantes
da prosperidade burguesa.

Essa questão fez insurgir um movimento que mereceu interesse teórico,


pois concebia o universo como um conjunto de símbolos. Desse modo, o símbolo
foi utilizado pelos escritores para designar algo ou atribuir estatuto à corrente
literária em questão. A palavra representava uma realidade situada além dos
sentidos, porque era composta de elementos musicais, tonais, coloridos e rítmicos.

As possibilidades advindas depois do ano de 1880 enriqueceram


sobremaneira as várias formas de expressão e contribuíram para o surgimento de
várias tendências. Estas, por sua vez, propuseram mudanças que seriam decisivas
para a efetivação do movimento modernista.

2 O PENSAMENTO SIMBOLISTA
O continente europeu, em torno de 1880, foi marcado por profundas
modificações sociais e políticas, provocadas especialmente pela expansão
do capitalismo, cuja consequência impulsionou a indústria e posteriormente
deflagrou a primeira Guerra Mundial. Sobre essa questão, Alfredo Bosi (1980)
enfatiza que no centro da intelectualidade europeia surge uma oposição do
materialismo sobre o sujeito, por ter prometido o paraíso e oferecer, no entanto,
um período contraditório e frustrante.

Foi por consequência de vários acontecimentos que se formou, no campo da


poesia, a estética simbolista. O movimento foi tão importante que mereceu interesse
teórico por parte dos seus integrantes que concebiam o universo como um conjunto
de símbolos. No dizer de Moisés (2004, p. 426), cabia “[...] ao poeta descobrir a
ideia por meio de sua representação figurada; captar os nexos das coisas visíveis,
sensíveis e tangíveis do mundo com a essência inteligível de que participam”. O
símbolo foi utilizado pelos escritores no fim do século XIX, para designar algo cujo
fazer literário era marcado pela visão subjetiva e espiritual do mundo.

99
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

UNI

O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2009, p. 1.745) conceitua símbolo


como: “1. aquilo que, por um princípio de analogia formal ou de outra natureza, substitui ou
sugere algo [...] 2. aquilo que, por pura convenção, representa ou substitui outra coisa [...] 3.
palavra ou imagem que designa outro objeto ou qualidade por ter com estes uma relação
de semelhança; alegoria, comparação, metáfora”.

Ao ser analisado, o termo símbolo deixa implícita a ambiguidade, daí vem


a divergência entre os estudiosos e, nesse sentido, explica Moisés (2004, p. 422),
“[...] o símbolo é um vocábulo tão polissêmico quanto controvertido: está longe
de apresentar sentido, mesmo entre os especialistas de uma determinada área do
conhecimento, apesar dos inúmeros estudos que lhe têm sido dedicados”. Ainda
argumenta o autor que

[...] o símbolo representa os vários meios de captar o fato estético central


– na verdade o único fato objetivamente estético, isto é, a unidade de
uma expressão. O símbolo encerra vários sentidos, diz que se trata
de vários sentidos, diz que se trata de um signo que exige decifração,
interpretação por parte de quem, ao confrontar-se com ele, se deixa
tocar pelo seu mistério, e pretende compreendê-lo ou saboreá-lo.

Na Teoria Literária, o símbolo é empregado para designar o “[...] objeto


que se refere ao outro objeto, mas que também reclama atenção por direito
próprio, como uma apresentação”. (MOISÉS, 2004, p. 426).

Ainda que toda poesia em sua essência seja simbólica, nem toda literatura
que lança mão do símbolo é simbolista. No entanto, na década de 1890, na França
expandiu-se um movimento estético que a priori foi denominado decadentismo e,
posteriormente, Simbolismo. “A conjuntura decadente resultava da impressão de
que tudo, religiões, costumes, justiça, estava em deliquescência”, enfatiza Moisés
(2004, p. 420).

Os pioneiros do Simbolismo foram os escritores Verlaine (1844-1896),


Arthur Rimbaud (1854-1891), Stéphane Mallarmé (1842-1899), os quais são
tidos como os maiores responsáveis pela transformação poética. Além destes,
o escritor Edgar Allan Poe (1809-1849) é considerado pelos críticos literários o
pai do movimento em questão, também por ter influenciado Baudelaire (1821-
1867) que, no dizer de Coutinho (2004a, p. 319), é “[...] o grande precursor do
Simbolismo, aquele Baudelaire que deu início ao culto baudelairiano que se
tornaria a nova religião”. Este fenômeno literário de origem francesa estendeu-se
em todo o Ocidente, influenciou outras literaturas e invadiu o século XX pelas
letras de Valery, Proust, Apollinaire, dentre outros escritores. Na Inglaterra o
movimento semelhante foi denominado esteticismo de Rossetti, Pater e Wilde.
(COUTINHO, 2004a, p. 320).

100
TÓPICO 1 | O SIMBOLISMO: UMA VISÃO SUBJETIVA DO

Os simbolistas procuravam se expressar pelos sonhos, devaneios e


alucinações, uma espécie de lapso da linguagem, por isso não tiveram outro
meio senão o desrespeito à gramática convencional. Além disso, optaram para
a evocação do eu, a exemplo de Baudelaire que, com suas correspondências e
sinestesias, abriu caminho para os simbolistas. O escritor elaborou As Flores do
Mal, uma obra que reúne vários poemas, a exemplo do que segue:

A que está sempre alegre

Teu ar, teu gesto, tua fronte


São belos qual bela paisagem;
O riso brinca em tua imagem
Qual vento fresco no horizonte.

A mágoa que te roça os passos


Sucumbe à tua mocidade,
À tua flama, à claridade
Dos teus ombros e dos teus braços.

As fulgurantes, vivas cores


De tuas vestes indiscretas
Lançam no espírito dos poetas
A imagem de um balé de flores.

Tais vestes loucas são o emblema


De teu espírito travesso;
Ó louca por quem enlouqueço,
Te odeio e te amo, eis meu dilema!

Certa vez, num belo jardim,


Ao arrastar minha atonia,
Senti, como cruel ironia,
O sol erguer-se contra mim;

E humilhado pela beleza


Da primavera ébria de cor,
Ali castiguei numa flor
A insolência da Natureza.
Assim eu quisera uma noite,
Quando a hora da volúpia soa,
Às frondes de tua pessoa
Subir, tendo à mão um açoite,

Punir-te a carne embevecida,


Magoar o teu peito perdoado
E abrir em teu flanco assustado
Uma larga e funda ferida,

101
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

E, como êxtase supremo,


Por entre esses lábios frementes,
Mais deslumbrantes, mais ridentes,
Infundir-te, irmã, meu veneno!

FONTE: (BAUDELAIRE, 1985, p. 15)

A obra As Flores do Mal foi condenada por ofender a moral pública, e, por
isso, Baudelaire foi obrigado a retirar seis poemas, por fazerem alusão à luxúria,
à volúpia e à morte. Este último aspecto é observado, por exemplo, no verso do
poema apresentado: infundir-te, irmã, meu veneno. A poesia em questão é dedicada
a uma mulher da noite cultural parisiense, “uma sempre alegre dama”, que teve
um caso amoroso com Baudelaire.

Apesar do desenfreado gozo dos apetites sensuais, do luxo, do prazer e


das sensações raras oferecidas pelos tóxicos e pelas bebidas refinadas,
um tédio espesso, uma histeria, um pessimismo assomava por toda
a parte. Anarquia, perversões, satanismo, neuroses, patologias,
entravam em moda, dando a impressão dum caos apocalíptico.
(MOISÉS, 2004, p. 420).

Os críticos enfatizam que Baudelaire recorria com frequencia a drogas


como ópio e haxixe a fim de estimular-lhe a inspiração. O título As flores do mal
sugere um conceito de que há no homem uma inclinação que o leva a praticar
certas atitudes que extrapolam a regularidade do bom comportamento e que
seriam as “forças do mal”.

Há que se enfatizar que ao pensamento simbolista interessava o estado


da alma, o culto do individual em oposição ao social, a associação de ideias,
metáforas e símbolos. O movimento privilegia as sensações em detrimento à
estética, somadas às atitudes irracionais, místicas, idealistas, à tendência ao
isolamento, à musicalidade e à beleza. Coutinho (2004a, p. 321) argumenta que a

[...] poesia foi separada da vida social, confundida com a música,


explorando o inconsciente, à custa de símbolos e sugestões, preferindo
o mundo invisível ao visível, querendo compreender a vida pela
instituição e pelo irracional, explorando a realidade situada além
do real e da razão. Sendo a vida misteriosa e inexplicável, como
pensavam os simbolistas, era natural que fosse representada de
maneira imprecisa, vaga, nebulosa, ilógica, ininteligível e obscura. A
coisa em si não lhes parecia o elemento principal a exprimir, mas o
símbolo da coisa e suas essências inerentes.

Desse processo resulta a fusão da música, pintura e literatura. Os


simbolistas sugeriam e evocavam, realizavam por palavras o que as notas faziam
na música.

102
TÓPICO 1 | O SIMBOLISMO: UMA VISÃO SUBJETIVA DO

Com base em Hilbbard, Afrânio Coutinho (2004a, p. 322) caracterizou


o Simbolismo pelos seguintes aspectos: relação entre o conteúdo, o espírito, o
místico e o inconsciente; o interesse pelo particular e individual; o cunho poético;
a fuga da realidade e da sociedade; a intuição no lugar da lógica; a relevância
imaginativa e fantasiosa; o desprezo da natureza em nome do místico e do
sobrenatural, a arte pela arte; o interesse nas pessoas e na essência; linguagem
enfeitada e poética, palavras com sonoridade, ritmo e cor, criando impressões
sensíveis. Para o Simbolismo, “a poesia nada mais é do que a expressão daquelas
relações e correspondências que a linguagem, abandonada a si mesma, cria entre
o concreto e o abstrato, o material e o ideal, e entre as diferentes esferas dos
sentidos”. (COUTINHO, 2004a, p. 321).

Tal é a contribuição do Simbolismo que alguns críticos lhe atribuíram


status de mais importante movimento literário devido a seu aspecto positivo e pela
herança deixada à poesia moderna. “O Simbolismo constitui uma reação contra a
ordem mecânica e científica em nome do indivíduo, um novo Romantismo. Sua
obra foi da maior importância, tendo reformado a poesia desde então, quiçá toda
literatura”. (COUTINHO, 2004a, p. 323). Também no que se refere à relevância
literária, Carpeaux (1942) afirma que a poesia moderna tem seu ponto de partida
no Simbolismo.

A prosa, por sua vez, passou por um processo que convergiu do


Simbolismo ao Naturalismo e resultou no Impressionismo e mais tarde também
influenciaria o Modernismo. Coutinho (2004a, p. 316) argumenta que em vez
de desaparecerem e de nascerem novos, “[...] os estilos estéticos se fecundam
mutuamente e se transformam, resultando aos poucos, novas formas, que jamais
são totalmente novas, porque integram muitos elementos das anteriores”. O
mesmo cita como autores reconhecidos dessa nova estética Tolstói, Dostoiévski,
Ibsen, Bjornson, os quais passaram ao largo da tendência mórbida e psicológica
dos franceses e contribuíram para desenvolvimento posterior da arte literária.

3 O MOVIMENTO SIMBOLISTA NO BRASIL


Caro acadêmico, lembre-se de que, ao final da época oitocentista,
reinavam no meio artístico brasileiro as ideias estéticas que constituíram a
estilística do Realismo, Naturalismo e Parnasianismo. Considere também que
até o ano de 1890 dominava tanto na prosa quanto na poesia a estética que tinha
por objetivo a pintura da realidade, em face ao apelo materialista.

No entanto, ideias novas começam a circular, fomentando espíritos


inquietos. O cenário era de cansaço da estética que vigorava, os moldes naturalistas
davam mostras da evidente queda de produção. Fato era que o Romantismo,
ainda que tênue, sempre se manteve presente pela herança de traços e caracteres
encontrados na arte realista-naturalista.

103
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

Mas, se os elementos românticos tiveram alguma vida, naquela


fase, esta foi de natureza latente, até ressurgir, mais tarde, sob a
forma do simbolismo, como uma revanche da subjetividade contra a
objetividade, da interiorização contra a exteriorização, do indivíduo
contra a sociedade. (COUTINHO, 2004a, p. 315).

O final do século XIX foi marcado pela dinâmica das correntes estéticas
entrecruzadas. A expansão do Simbolismo não pretendeu afastar o pensamento
naturalista-parnasiano, mas, sim, impor sua crítica e sua importância. Disso
resultaram dois fenômenos literários distintos no espírito, na linguagem e
no estilo de expressão, no entanto análogos. Desse modo, Parnasianismo e
Simbolismo “[...] permaneceram muito tempo ora paralelos, ora misturando-
se. Houve escritores que se caracterizaram pelas impregnações parnasianas e
simbolistas”. (COUTINHO, 2004a, p. 315). Os dois movimentos adentraram
o século XX, sendo que o Parnasianismo por vezes esteve isolado, outras,
constituído da mistura de elementos do Simbolismo, “[...] uma fase de poesia
de transição e sincretismo, que, de 1910 a 1920, preparou o advento do
Modernismo”. (COUTINHO, 2004a, p. 315).

Na literatura posterior a 1890, a superação do Realismo naturalista pelo
Simbolismo foi um fato quase impercebível até pouco tempo. Nesse sentido, a
presença de Machado de Assis foi relevante, pois escreveu sob a influência do
positivismo e das ideias naturalistas. O autor, no dizer de Coutinho (2004a, p.
316), “[...] jamais se deixou vencer, devedor confesso do leite romântico, tendo
mesmo produzido a melhor crítica aos romances naturalistas de Eça de Queirós,
páginas magistrais ainda hoje válidas como exemplo modelar da crítica de
cunho estético”.

Além disso, no final do século o mesmo observou a alma do indivíduo,
cuja introspecção e psicologia, distantes da imaginação, estavam aliadas à visão
trágica da vida. Machado de Assis acompanhou a trajetória literária desses
movimentos. Se, como vimos, enquanto escritor foi de início romântico-realista,
no final da carreira os seus textos se alargaram pelo simbolismo e pela mitologia.
Sobre essa questão, Coutinho (2004a, p. 317) enfatiza que “[...] ainda quando sutil,
pode dissimular com o pitoresco o sentido metafísico ou alegórico da criação
artística, enriquecido seu universo de um idealismo moral, povoado de símbolos
do Bem e do Mal”.

Desse modo, muitos dos seus contos contêm símbolos e alegorias e são
elaborados a partir de sua fiel técnica realista. Machado se imbuía de material do
cotidiano, que retirava da observação e leituras em jornais. Suas crônicas, contos e
romances, símbolos de arte, confirmam essa questão. O escritor, segundo Coutinho
(2004a, p. 318) transformava os fatos em “substância estética. Era a vida salvando-
se pela arte, adquirindo perenidade, mudando de forma e estrutura, revelando,
através da arte, os seus segredos íntimos, a sua verdade eterna e profunda, dela
e da natureza humana”. Lembre-se de que, além da obra de Machado de Assis,
os escritores Raul Pompeia e Graça Aranha também representaram o movimento
que conduziu ao Modernismo.

104
TÓPICO 1 | O SIMBOLISMO: UMA VISÃO SUBJETIVA DO

Na década de 1890, um grupo de escritores composto por B. Lopes, Oscar


Rosas, Cruz e Sousa e Emiliano Perneta reuniu-se no Rio de Janeiro, às voltas de
um novo ideal estético, conhecido na época como “decadentista”, um movimento
de concepção francesa, advento do Simbolismo. Através do jornal Folha Popular,
o grupo lançou o primeiro manifesto inspirado em Mallarmé. Segundo Coutinho
(2004a, p. 318), o referido ensaio publicado em 1887 constitui o melhor registro
de mudança, cujas ideias decadentistas que vinham da França se manifestavam

[...] pelas sutilezas de um hieratismo gramatical, em que a sintaxe


passava por caprichosos truncamentos para a obtenção de certos
e determinados efeitos, pelo gosto da mitologia, da metafísica, do
ocultismo e do invisível a serem exprimidos pelo poeta como se fosse
um mago.

Essa tendência contribuiu para a queda da escola naturalista de Zola. Além


do grupo do Rio de Janeiro, outros se formaram, a exemplo do grupo cearense
que, em 1892, fundaram a sociedade literária Padaria Espiritual, dedicada ao culto
das particularidades da nova arte simbolista.

O Simbolismo foi um movimento contrário à formula parnasiana e que


concebeu uma estética baseada “[...] no subjetivo, no pessoal, na sugestão e no
vago, no misterioso e ilógico, na expressão indireta e simbólica. Como pregava
Mallarmé, não se devia dar o nome ao objeto, nem mostrá-lo diretamente, mas
sugeri-lo, evocá-lo pouco a pouco, processo encantatório que caracteriza o
símbolo”. (COUTINHO, 2004a, p. 319).

Ainda que o Simbolismo não constituísse, em 1894, uma corrente


predominante, ressalta-se que, dentre os seus autores, foi Cruz e Sousa o único
grande representante que qualifica “[...] o Simbolismo de uma arte preciosa,
requintada, difícil, cheia de matizes e de delicadeza, que se dirige a uma pequena
elite”. (JUNKES, 2008, p. 39). Não entanto, o poeta não teve reconhecimento em
vida, sendo-o somente através de seus escritos, publicados após a sua morte.
Assim, conquistou seu merecido lugar na sociedade, à medida que sua produção
literária se tornou acessível aos leitores.

O poeta Cruz e Sousa, o “Dante Negro”, como ficou conhecido, teve a sua
vida perpassada pela condição existencial e pela incompreensão poética. A vida do
escritor foi marcada por uma paixão de duas faces, a primeira pela arte, pela poesia
e pela criação estética; a segunda, pelo preconceito enfrentado, pela incompreensão
social, pelo menosprezo à sua poesia e ainda “[...] a dor lancinante de, na pobreza,
sobrevir-lhe a loucura da esposa e a morte de dois filhos, para, afinal, a tísica e a
tuberculose ceifarem-lhe o último sopro de vida”. (JUNKES, 2008, p. 28).

João da Cruz e Sousa (1861-1898) nasceu na Cidade de Nossa Senhora do


Desterro, atual Florianópolis, em Santa Catarina. Era filho de Guilherme, escravo
e de Carolina Eva da Conceição, lavadeira. Os pais trabalhavam para Xavier de
Souza e sua esposa. O casal, por não ter os seus próprios filhos, assumiu o escritor
como membro da família dando-lhe carinho e educação. O escritor, desde jovem,

105
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

revelou-se inteligente, dedicado e, abraçando os estudos, vislumbrou na poesia


um modo de projetar-se socialmente. Em 1889, passa a residir no Rio de Janeiro
onde obtém emprego no Jornal Cidade do Rio, na Gazeta de Notícias.

Na Capital da República, o poeta experimenta a discriminação e o


preconceito racial. Sem perspectivas na imprensa, passa a trabalhar na Estrada
de Ferro Central do Brasil e, em 1893, Domingos de Magalhães publica dois de
seus livros: Missal, uma coletânea de textos em prosa, e Broquéis que continha
poemas. No dizer de Junkes (2008, p. 33), “[...] sua poesia impacta por trazer uma
visão nova em Literatura e a celeuma levantada tenta sufocá-lo de imediato. Seu
poema constituía a mais elevada expressão dos novos, consubstanciando uma
nova escola – o Simbolismo”.

Os textos em prosa trazem um Simbolismo discreto, sem a musicalidade,


plasticidade e sugestões desejadas. Na obra, Cruz e Sousa ainda não havia
conseguido atingir a sublimidade e a elaboração verbal de suas composições
posteriores, mas tem valor como registro mais do que como referência do
Simbolismo.

Vejamos o texto de Cruz e Sousa intitulado Oração do Sol.

Sol, rei astral, deus dos sidéreos Azuis, que fazes cantar de luz os
prados verdes, cantar as águas! Sol imortal, pagão, que simbolizas a Vida, a
Fecundidade! Luminoso sangue original que alimentas o pulmão da Terra, o
seio virgem da Natureza! Lá do alto zimbório catedralesco de onde refulges
e triunfas, ouve esta Oração que te consagro neste branco Missal da excelsa
Religião da Arte, esmaltado no marfim ebúrneo das iluminuras do Pensamento.

Permite que um instante repouse na calma das Ideias, concentre


cultualmente o Espírito, como no recolhido silêncio das igrejas góticas, e deixe
lá fora, no rumor do mundo, o tropel infernal dos homens ferozmente rugindo
e bramando sob a cerrada metralha acesa das formidandas paixões sangrentas.

Concede, Sol, que os manipanços não possam grotescamente, chatos


e rombos, com grimaces e gestos ignóbeis, imperar sobre mim; e que nem
mesmo os Papas, que têm à cabeça as veneráveis orelhas e os chavelhos da
Infalibilidade, para aqui não venham, com solene aspecto abençoador babar
sobre estas páginas os clássicos latins pulverulentos, as teorias abstrusas, as
regras fósseis, os princípios batráquios, as leis de Crítica megatério.

E faz igualmente, Sultão dos espaços, com que os argumentos duros,


broncos, tortos, não sejam arremessados à larga contra o meu cérebro como
incisivas pedradas fortes.

Livra-me tu, Luz eterna, desses argumentos coléricos, atrabiliários,


como que feitos à maneira das armas bárbaras, terríveis, para matar javalis e
leões nas selvas africanas.

106
TÓPICO 1 | O SIMBOLISMO: UMA VISÃO SUBJETIVA DO

Dá que eu não ouça jamais, nunca mais! a miraculosa caixa de música


dos discursos formidáveis! E que eu ria, ria – ria simbolicamente, infinitamente,
até o riso alastrar, derramar-se, dispersar-se enfim pelo Universo e subir, nos
fluidos do ar, para lá no foco enorme onde vives, Astro, onde ardes, Sol, dando
então assim mais brilho à tua chama, mais intensidade ao teu clarão.

Pelo cintilar de teus raios pelas ondas fulvas, flavas, ó Espírito da


Irradiação! Pelos empurpuramentos das auroras, pela clorose virgem das
estepes da Lua, pela clara serenidade das Estrelas, brancas e castas noviças
geradas do teu fulgor, faculta-me a Graça real, o magnificente poder de rir – rir
e amar, perpetuamente rir… perpetuamente amar…

Ó radiante orientalista do firmamento! Supremo artista grego das


formas indeléveis e prefulgentes da Luz! pelo exotismo asiático desses
deslumbramentos, pelos majestosos cerimoniais da basílica celeste a que tu
presides, que esta Oração vá, suba e penetre os etéreos passos esplendorosos
e lá para sempre viver, se eternize através das forças firmes, num som álacre,
cantante, de clarim proclamador e guerreiro.

FONTE: (CRUZ E SOUSA apud JUNKES, 2008, p. 290)



É possível perceber que o autor faz uma invocação ao sol pedindo
inspiração para escrever sem a interferência dos que detinham o poder sobre o
mundo dos homens e das artes, conforme podemos constatar no verso: Livra-me
tu, Luz eterna, desses argumentos coléricos. Cruz e Sousa também invoca personagens
pagãs da Antiguidade latina, roga para que o seu poema seja preservado das
intervenções externas, em nome da boa arte. Nesse sentido, o escritor revela-se

[...] um sensual na acepção lata da palavra, o que é tão lógico tratando-


se de uma natureza de primitivo, ainda mais se africano. No seu
sacerdócio e devotamento à Arte, seu papel foi de uma concepção
heroica e trágica. O poeta, surgindo fora do horizonte que lhe seria
próprio, em tempo e meio que careciam de atmosfera, que lhe
permitissem dar vazão ao que era – uma emoção épica em busca
de assunto –, uma época de uma atmosfera intelectual morfina, de
apressado diletantismo, o que o salvou ainda em parte na sua hora foi
a sua incomparável virtuosidade para o verso, a música, a capacidade
de sugestão, a intensidade e a modernidade. (JUNKES, 2008, p. 40).

Ainda que Cruz e Sousa tenha superado as convenções do caráter
ornamental da estética decadentista, os seus textos em prosa apresentam-se mais
ancestrais que os seus versos, muitas vezes parecendo suspensos no limbo da
criação. A prosa nem sempre foi compreendida pelos críticos literários e nela está
presente o ressentimento e a condição de sua cor, o negro, o africano, como bem
o afirma no poema Emparedado, conforme podemos observar:

Ah! Noite! Feiticeira Noite! Ó Noite misericordiosa, coroada no trono


das Constelações pela tiara de prata e diamantes do Luar, Tu, que ressuscitas dos

107
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

sepulcros solenes do Passado tantas Esperanças, tantas Ilusões, tantas e tamanhas


Saudades, ó Noite! Melancólica! Soturna! Voz triste, recordativamente triste,
de tudo o que está morto, acabado, perdido nas correntes eternas dos abismos
bramantes do Nada, ó Noite meditativa! Fecunda-me, penetra-me dos fluidos
magnéticos do grande Sonho das tuas Solidões panteístas e assinaladas, dá-me
as tuas brumas paradisíacas, dá-me os teus cismares de Monja, dá-me as tuas
asas reveladoras, dá-me as tuas auréolas tenebrosas, a eloquência de ouro das
tuas Estrelas, a profundidade misteriosa dos teus sugestionadores fantasmas,
todos os surdos soluços que rugem e rasgam o majestoso Mediterrâneo dos
teus evocativos e pacificadores Silêncios!.

FONTE: (CRUZ E SOUSA apud JUNKES, 2008, p. 609)

Neste texto é possível perceber o ressentimento pela discriminação


racial, e o poeta expõe o conflito em relação aos seus contemporâneos, artistas e
críticos de arte, que não reconheciam sua escrita. Junkes (2008, p. 59) o compara
ao “Prometeu acorrentado às suas origens, o filho de Cam vivendo o drama
da raça, em suma o homem e o seu desespero”. Apesar dos preconceitos e das
paixões vividas, Cruz e Sousa permanece vivo e intenso nos seus poemas, triunfa
e cumpre o seu dever de escritor porque cultuou a arte do bem escrever.

Na obra Broquéis, uma coletânea de poesias, Cruz e Sousa revela-se um


simbolista feito, uma tomada de consciência, uma resposta que o autor dá aos
críticos. A mesma teve em seu prefácio a assinatura de Baudelaire, o seu grande
inspirador, afinal Cruz e Sousa “[...] leu os simbolistas franceses e assimilou, sem
nunca reduzir-se ao caráter servil de simples epígono, as lições dos mestres”.
(JUNKES, 2008, p. 41). Além disso, afirmam os estudiosos, também o título da
obra sugere ambiguidade, pois o termo “broquel” faz alusão às formas das
esculturas antigas e também de que a poesia seria escudo para as contrariedades
vividas. No entanto, alerta Junkes (2008), o escudo também poderia ser entendido
como uma atitude de ataque no campo das lutas poéticas.

Em Antífona encontramos um caráter psicológico aliado à realização


expressional e à técnica empregada. Observe:

Antífona

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras


De luares, de neves, de neblinas!
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras

Formas do Amor, constelarmante puras,


De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolências de lírios e de rosas...

108
TÓPICO 1 | O SIMBOLISMO: UMA VISÃO SUBJETIVA DO

Indefiníveis músicas supremas,


Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...

Visões, salmos e cânticos serenos,


Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes...
Dormências de volúpicos venenos
Sutis e suaves, mórbidos, radiantes...

Infinitos espíritos dispersos,


Inefáveis, edênicos, aéreos,
Fecundai o Mistério destes versos
Com a chama ideal de todos os mistérios.

Do Sonho as mais azuis diafaneidades


Que fuljam, que na Estrofe se levantem
E as emoções, todas as castidades
Da alma do Verso, pelos versos cantem.

Que o pólen de ouro dos mais finos astros


Fecunde e inflame a rima clara e ardente...
Que brilhe a correção dos alabastros
Sonoramente, luminosamente.

Forças originais, essência, graça


De carnes de mulher, delicadezas...
Todo esse eflúvio que por ondas passa
Do Éter nas róseas e áureas correntezas...

Cristais diluídos de clarões alacres,


Desejos, vibrações, ânsias, alentos
Fulvas vitórias, triunfamentos acres,
Os mais estranhos estremecimentos...

Flores negras do tédio e flores vagas


De amores vãos, tantálicos, doentios...
Fundas vermelhidões de velhas chagas
Em sangue, abertas, escorrendo em rios...

Tudo! vivo e nervoso e quente e forte,


Nos turbilhões quiméricos do Sonho,
Passe, cantando, ante o perfil medonho
E o tropel cabalístico da Morte...

FONTE: (CRUZ E SOUSA apud JUNKES, 2008, p. 386)

109
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

O poema, que está no início da obra Broquéis, é citado como um dos mais
conhecidos e se tornou uma espécie de hino da poesia simbolista. Para Moisés
(2004, p. 27), Antífona “[...] constitui uma tentativa de captar na monotonia
plangente dos versos, a atmosfera litúrgica das salmodias”. A palavra antífona, de
origem grega, designava no século IV uma espécie de cântico litúrgico, em torno
dos salmos bíblicos. A partir do século VI, ganhou outro sentido que consistia
num refrão que interrompia o canto dos salmos, com o intuito de facilitar a
melodia aos cantores.

Em Antífona, o autor enfatiza a fixação pelo branco, a temática sexual,


além de fazer uso da letra maiúscula, da aliteração e de elementos sinestésicos, os
quais foram muito explorados na poesia, especialmente por Cruz e Sousa.

UNI

A sinestesia transfere a percepção da palavra, que, pelo efeito da sinestesia,


funde-se num mesmo ato de dois ou mais sentidos, “assim ‘ruído áspero’ denota o
congraçamento da audição e do tato”. (MOISÉS, 2004, p. 429). Este foi um dos recursos
mais típicos da poesia simbolista.

Assim, temos neste poema uma sequência musical tanto pela aliteração
do ‘s’ quanto pelo predomínio de palavras cujas sílabas tônicas têm vogais
extensas como em “formas, alvas, claras”. Vários estudiosos enfatizaram a
expressão verbal, o estilo e os aspectos linguísticos da poesia de Cruz e Sousa, um
escritor que tão bem soube utilizar a expressividade fonética, simbólica, lúdica,
a linguagem metafórica e a sinestesia. No dizer de Coutinho (2004a, p. 402), “[...]
essa peça é uma verdadeira abertura, no sentido musical e formal da expressão,
uma abertura sinfônica para a obra inteira de Cruz e Sousa, e para a obra inteira
do Simbolismo brasileiro”.

Apesar de todas as dificuldades pelas quais o poeta passou em vida, quer


as pessoais e familiares, quer pela discriminação e pela inferioridade com que foi
tratado socialmente, Cruz e Sousa “[...] lançou-se com todo o ardor ao espaço da
arte, nela desvelando uma ascensão inicialmente de caráter mais social; desfeita
essa ânsia, voltou-se para a arte, envolta no etéreo [...], no incorpóreo”. (JUNKES,
2008, p. 34).

É certo dizer então que Cruz e Sousa foi precursor não somente do
Simbolismo no Brasil, mas também de sua condição e, sem dúvida, um grande,
raro e verdadeiro poeta. O amigo mais próximo de Cruz e Sousa, Nestor Vitor
– fiel depositário de todo o acervo – analisou e exaltou o alto nível dos escritos
deste autor brasileiro. Sobre o fazer literário do poeta, afirma Vitor (1969, p. 28),

110
TÓPICO 1 | O SIMBOLISMO: UMA VISÃO SUBJETIVA DO

[...] tudo o que lhe sai da pena é mais ou menos uma transfiguração
[...]. A Arte como ele a compreende, Arte pela Arte, independente de
paixões que a escravizem, que façam dela seu veículo, inferiorizando-a
tirando-lhe o caráter de sua independência suprema, Arte que é vida
e que é morte, que é chama e que é néctar, Arte sacerdócio, Arte
abstração absoluta e decidida loucura, essa é o seu domínio, essa é
o seu mundo, é o seu alimento e o seu sono, é o seu sonho e a sua
realidade exclusiva.

Cruz e Sousa dominou a palavra de tal modo que a sua arte era a própria
vida e, conforme enfatiza Junkes (2008, p. 59), “[...] na poesia vamos encontrar
um homem que transpôs a linha de cor, o ariano, o espírito depurado, livre dos
complexos que o perseguiram. Ariel librando-se no espaço, nas brumas do seu
sonho branco”.

UNI

Caro acadêmico, é preciso enfatizar que a obra de Cruz e Sousa é extensa,


uma vez que o autor escreveu inúmeras poesias e textos em prosa. Dessa maneira, para
aprofundar seus estudos, sugerimos a leitura da Obra Completa: poesia e prosa, João da
Cruz e Sousa – volumes 1 e 2. Trata-se de uma coletânea organizada no ano de 2008
pelo então professor da Universidade Federal de Santa Catarina e Presidente da Academia
Catarinense de Letras, Lauro Junkes.

O escritor Cruz e Sousa, foi, sem dúvida, o principal representante simbolista


no Brasil e, dada a sua importância na Literatura, Lauro Junkes em prefácio à sua
obra avisa: “Cruz e Sousa não se lê, porém, num apressado correr de vistas pelas
páginas. Seu poema exige leitura lenta e retomada, com abertura para o mundo
interior”. (JUNKES, 2008, p. 61).

O Simbolismo no Brasil esteve representado por outros escritores, os quais


Coutinho (2004a) abordou em dois aglomerados. O primeiro incluía os amigos
de Cruz e Sousa, em especial, Nestor Vitor, além de Gustavo Santiago, Oliveira
Gomes, dentre outros. O segundo grupo era constituído de gente mais nova e
teve representação em muitos estados do Brasil. No Paraná destacam-se Emiliano
Perneta e Dário Veloso.

Segundo Coutinho, o movimento encontrou terreno fértil no Paraná


para que se formasse o núcleo mais radical do Simbolismo, graças ao caráter
antropogeográfico, cujo clima favorecia a formação das nevadas, geadas e o nevoeiro
denso. Além dessa questão, ocorreu um impacto emocional que se formou pelos
trágicos episódios da Revolução Federalista, de 1893, e outras questões culturais
mais diretas, complexas e diferentes das do Rio de Janeiro. O movimento estendeu-
se ainda em São Paulo, Rio Grande do Sul, Bahia e Minas Gerais; deste último
estado foi Alphonsus de Guimaraens o mais representativo autor simbolista.
111
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

UNI

Alphonsus de Guimaraens, nome literário de Afonso Henrique da Costa


Guimarães, nasceu em Ouro Preto, MG, em 1870 e faleceu em Mariana, em 1921. Era filho
de português e de uma sobrinha do romancista Bernardo Guimarães. Cursou a faculdade
de Direito de São Paulo e depois a Academia Livre de Direito de Minas Gerais, retornando
à primeira, onde colou grau em 1895. Exerceu o cargo de promotor e juiz. (COUTINHO,
2004a, p. 431).

A sua obra é caracterizada pela forma estrófica popular, fato este que fez
com que o autor permanecesse próximo à música do período, como as modinhas,
as chulas e os lundus cantados em famílias, nos largos e serões. Ao citar o autor em
uma conferência em 1938, Henriqueta Lisboa assim se manifesta: “abrigado pelas
montanhas centrais, o espírito de Alphonsus evoluía em serenidade, buscando
uma nova arte como quem espreita o nascimento de uma estrela”. (JUNKES,
2008, p. 60).

Os textos de Alphonsus de Guimaraens contêm elementos do misticismo,


do amor e da morte. O poeta também se interessou pelo inconsciente e pelas zonas
profundas e desconhecidas da mente humana. A loucura é o tema de Ismália, o
seu poema mais conhecido. Observemos:

Ismália

Quando Ismália enlouqueceu,


Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,


Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

112
TÓPICO 1 | O SIMBOLISMO: UMA VISÃO SUBJETIVA DO

E como um anjo pendeu


As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu


Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...

FONTE: (GUIMARAENS, 1997, p. 35)

O poema reflete a inconstância e a instabilidade mental do homem, a


confusão entre a fantasia e o real. Ismália se isola na própria loucura e dentro do
próprio sonho. Representa, por isso, o arquétipo do ser humano em geral, que
sofre por querer e não poder satisfazer a vontade. A personagem quer duas coisas
distantes de si: a lua do céu e a lua do mar e, para alcançá-las, lançou-se do alto
da torre. A estética é marcada pela musicalidade, através de recursos literários
como a aliteração e assonância e por antíteses como: céu/mar, subir/descer, perto/
longe, alma/corpo. “A sua obra inteira é de acentuada unidade expressional,
afirma Coutinho (2004a, p. 437).

Alphonsus empregou na sua produção literária uma feição pessoal, de


modo que a sua terra, colonial e barroca, cercava e circunscrevia a sua visão e
sensibilidade. Sua expressão abarca trinta anos de composição, extenso período
se comparado ao de Cruz e Sousa. Para o autor mineiro não interessava a técnica,
mas a musicalidade. Para Coutinho (2004a, p. 437), Guimaraens “[...] foi dos
menos parnasianos de expressão dentre os nossos simbolistas”.

No panorama literário brasileiro, há os que afirmam que o simbolismo


foi um aprimoramento do Parnasianismo, no entanto, é preciso considerar
ambos como duas tendências, nas quais estão envoltos indivíduos e realizações
poéticas. Stegagno Picchio, em sua História da Literatura Brasileira (2004, p. 353),
argumenta que

[...] não fora o simbolismo, o qual, mais do que como oposição ao


Parnasianismo, se propusera por muitos ângulos como aperfeiçoamento
estilístico de conquistas parnasianas; e não fora o parnasianismo que,
enquanto no plano social confinava com os simbolistas em limbos de
cultura provinciana, ocupando todos os postos da Academia como
se, Parnaso, em 1896, fosse simples sinônimo de literatura, adotava
na prática em cada uma das experiências poéticas todas as conquistas
(também de conteúdos) do Simbolismo de modo que o isolamento
individual uma e noutra escola afigura-se problemático e por vezes
absolutamente arbitrário.

113
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

O Simbolismo, ainda que tenha sido representado pela expressão de Cruz


e Sousa e de Alphonsus de Guimaraens, o último limiar do século XIX é marcado
por um período de grandes mudanças. Nesta ocasião surgiram fenômenos
e poetas de grande valor para a literatura, cujas tendências são caracterizadas
por emoções e ideias contraditórias. Essa questão, segundo Coutinho (2004a), é
explicada pelo fato de os escritores serem atingidos pelas influências dos estilos
literários anteriores à sua época e também por assimilarem os princípios das
escolas que se sucedem.

114
TÓPICO 1 | O SIMBOLISMO: UMA VISÃO SUBJETIVA DO

LEITURA COMPLEMENTAR

Leia o que Afrânio Coutinho nos revela sobre o período de transição:

PERÍODO DE TRANSIÇÃO

Durante a primeira década do século XX, irreconciliáveis, atuam no campo


da poesia dois grupos distintos: o dos epígonos parnasianos e o da segunda geração
simbolista. São ainda tempos de ortodoxia e intransigência. Entretanto, a rigidez
de postulados, a observância de cânones e a fidelidade aos mestres iriam ceder ao
imperativo do sentimento, à solicitação dos meios expressivos e ao alargamento
do campo temático, quando, nos anos seguintes, novos nomes se inscrevessem
na república das letras. Nascidos entre 1880 e 1890, esses poetas, embora em sua
maior parte bebendo na fonte parnasiana, vão iniciar uma espécie de relaxamento
da disciplina escolástica, aceitando o ecletismo como atitude estética e permitindo
o aparecimento de algumas figuras alheias ao enquadramento em grupos.

Se do campo parnasiano se eliminarão características como a
impassibilidade, a impessoalidade, o rigor formal, no setor simbolista será
moderado o culto verbal, o jargão de tribo e certa temática desesperante e
alucinatória. De um lado, a nota subjetiva, emocional, abrirá caminho aos temas
amorosos, saudosistas, evocatórios e paisagísticos; de outro, o verso livre, a
irregularidade estrófica e a expressão de sentimentos íntimos tornarão mais
amplas as possibilidades de aliciação entre jovens.

Isso explica a convivência de poetas como Luís Carlos, Martins Fontes,
Humberto de Campos, bem como a de Da Costa e Silva, Artur de Sales, Gilca
Machado ou Hermes Fontes, explicando também o aparecimento de Augusto dos
Anjos ou Raul de Leôni. De modo geral, a época se distingue pelo afrouxamento
do rigor métrico, tanto na parte dos poetas que tendem para a representação
da natureza circundante, como da parte dos que preferem a exteriorização de
sentimentos e estados de alma.

Nesse campo da liberdade de meios expressivos, decorrência natural da


intransigência que distinguira os mestres parnasianos e simbolistas, vários rumos
se abrem, então. Mirada inicial merecem os poetas que, ferventes adeptos do
Simbolismo, orientam posteriormente sua atividade sob nova bússola, formando
o lado dos que se inclinavam por uma retomada de certos valores parnasianos; ou
os que do decadentismo elegerão sobretudo requisitos formais, como inovação
léxica, musicalidade ou liberdade rítmica.

FONTE: Coutinho, 2004a, p. 596-597

115
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste primeiro tópico você viu que:

• No continente europeu, o período que girou em torno de 1880 foi marcado


por profundas modificações sociais e políticas, provocadas especialmente
pela expansão do capitalismo, cuja consequência expandiu a indústria e
posteriormente deflagrou a primeira Guerra Mundial.

• O símbolo foi utilizado pelos escritores no fim do século XIX, para designar
algo ou atribuir estatuto à corrente literária e artística, marcada pela visão
subjetiva e espiritual do mundo.

• Na década de 1890, na França expandiu-se um movimento estético que


primeiramente foi denominado decadentismo e, posteriormente, Simbolismo.

• Os pioneiros do Simbolismo foram os escritores Verlaine (1844-1896), Arthur


Rimbaud (1854-1891), Stéphane Mallarmé (1842-1899), os quais são tidos como
os maiores responsáveis pela transformação poética. Além destes, o escritor
Edgar Allan Poe (1809-1849) é considerado pelos críticos literários o pai do
movimento, assim como Baudelaire (1821-1867).

• Os simbolistas procuravam expressar-se pelos sonhos, devaneios e alucinações,


uma espécie de lapso da linguagem, por isso não tiveram outro meio senão o
desrespeito à gramática convencional. Além disso, optaram para a evocação
do eu, a exemplo de Baudelaire que, com suas correspondências e sinestesias,
abriu caminho para os simbolistas.

• Para o pensamento simbolista interessava o estado da alma, o culto do


individual em oposição ao social, a associação de ideias, metáforas e símbolos.

• O Brasil do final do século XIX foi marcado pela dinâmica das correntes estéticas
entrecruzadas. A expansão do Simbolismo não pretendeu afastar o pensamento
naturalista-parnasiano, mas, sim, impor sua crítica e sua importância.

• Na década de 1890, um grupo de escritores composto por B. Lopes, Oscar Rosas,


Cruz e Sousa e Emiliano Perneta reuniu-se no Rio de Janeiro, às voltas de um
novo ideal estético, conhecido na época como “decadentista”, um movimento
de concepção francesa, advento do Simbolismo.

• O Simbolismo no Brasil foi representado por Cruz e Sousa que, com a obra
Broquéis, uma coletânea de poesias, revela-se um simbolista feito. O poema,
Antífona, que está no início da obra Broquéis, tornou-se uma espécie de hino da
poesia simbolista.

116
AUTOATIVIDADE

1 Do ponto de vista literário, qual é o conceito de símbolo?

2 Foi por consequência de vários acontecimentos que se formou, no campo


da poesia, a estética simbolista. Elenque as principais características do
movimento simbolista.

3 Preencha as lacunas:
O movimento simbolista privilegia as ______________em detrimento à
estética, somadas às atitudes ________________, místicas, idealistas, à
tendência ao isolamento, à ____________________ e à beleza.

a) ( ) Sensações – irracionais – musicalidade.


b) ( ) Emoções – tranquilas – beleza.
c) ( ) Sensações – racionais – tranquilidade.
d) ( ) Artes – irracionais - beleza.

4 Sobre o Simbolismo no Brasil é correto afirmar que:

a) ( ) Aborda questões da fala popular em curtos poemas.


b) ( ) Enfatiza aspectos realístiscos, satíricos e polêmicos.
c) ( ) Explora a história antiga da Europa em sonetos descritivos.
d) ( ) Os poemas exploram a sugestividade dos sons da língua, as sensações
e os sentimentos vagos.

5 Considere o poema:

Faz descer sobre mim os brandos véus da calma,


Sinfonia da Dor, ó Sinfonia muda,
Voz de todo meu Sonho, ó noiva da minh’alma,
Fantasma inspirador das Religiões de Buda. (Cruz e Sousa)

Com base no poema, assinale a afirmativa que contém elementos típicos da


poesia simbolista.

a) ( ) Realidade rural, linguagem coloquial, versos curtos.


b) ( ) Misticismo, linguagem solene, valorização do inconsciente.
d) ( ) Filosofia materialista e linguagem rebuscada.
e) ( ) Exotismo, sintaxe indireta e ironia.

6 Que relação subjetiva existe entre a sinestesia e a palavra?

117
118
UNIDADE 2 TÓPICO 2

AS TENDÊNCIAS DO FINAL DO SÉCULO XIX

1 INTRODUÇÃO
O final do século XIX e início do XX foi marcado por movimentos culturais,
os quais iniciaram uma ruptura com as estéticas precedentes. Após o movimento
caracterizado pela exploração do símbolo, a arte de modo geral passou por um
período de transição, fenômeno este que foi observado pelos críticos, o qual
abarcava várias tendências, cujas concepções influenciaram a pintura, a música
e a literatura.

A pretensão, neste tópico, é refletir sobre esta fase intermediária que
se estendeu entre o fim do Simbolismo e o início do Modernismo, e que foi a
responsável pela revolução ocorrida na Arte, considerando, para tanto, as
concepções estético-estilísticas de cada tendência.

2 O PRÉ-MODERNISMO
As épocas de transição, grosso modo, expõem e renovam tendências e,
dada a proximidade dos acontecimentos, impossibilitam discernir e traçar um
limite na cronologia temporal. É certo que os autores são “dominados por uma
indecisão instintiva. Balançam-se entre o mar e a areia. São ao mesmo tempo
crepúsculo e madrugada. E a duplicidade que os caracteriza é quase sempre fonte
de originalidades. Daí as dúvidas em bem julgá-los e classificá-los”. (COUTINHO,
2004a, p. 541).

Nesse sentido, queremos discutir sobre os pontos de contato entre as


escolas, ou seja, o Romantismo, o Simbolismo e o Modernismo. Guardadas as
diferenças de forma e expressão, cada qual segue a sua tradição poética e revela
os desejos da vida cotidiana, apoiada na poesia e na realidade. Desse modo,
observa-se que certas ideias presentes num movimento prolongaram-se em outro
e, conforme argumenta Coutinho (2004a, p. 542),
[...] entre o fim e princípio de escolas ou tendências literárias existe um
momento respiratório, talvez um tanto sutil, uma tomada de fôlego,
um período de transição ou intermediário, uma espera entre o que vai
se extinguindo e o que esboça os primeiros traços, antes de fixar em
linhas definitivas.

119
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

Os teóricos de literatura denominaram como período de transição os


movimentos que ocorreram entre o fim do Simbolismo e o início do Modernismo.
Essa época intermediária pela qual passou a nossa literatura ficou conhecida como
penumbrismo, uma espécie de fumaça do Simbolismo, cujos representantes foram
anunciadores de mudanças de normas, princípios e gostos. O penumbrismo em
sua essência foi representado, no dizer de Coutinho (2004a, p. 545), por “[...]
artistas bastante corajosos, que chegam a trocar o verso reluzente e a rima fatal
por uma entidade quase metafísica”.

Dentre os escritores podemos citar Ronald de Carvalho, um autor eclético


que adaptou o espírito e a sensibilidade aos gêneros literários que influenciaram
o seu fazer poético. Além deste, temos ainda autores desta tendência: Mario
Pederneiras, Álvaro Moreira, Filipe D’Oliveira, Homero Prates e Ribeiro Couto e
Guilherme de Almeida. Este último ganhou reconhecimento na poesia brasileira
pela autoria de muitos sonetos, cuja linguagem abarca aspectos quinhentistas,
clássicos, românticos, parnasianos, simbolistas e modernistas. Observemos a
poesia que segue:

A dança das horas

Frêmito de asas, vibração ligeira


de pés alvos e nus,
que dançam, tontos, como dança a poeira
numa réstia de luz...
São as horas, que descem por um fio
de cabelo do sol,
e vivem num contínuo corrupio,
mais obedientes do que o girassol.
Dançando, as doze bailarinas tecem
a vida; e, embora irmãs,
não se vêm, não se dão, não se parecem
as doze tecelãs!
E, de mãos dadas, confundidas quase,
no invisível sabá,
elas são silenciosas como a gaze,
ou farfalhantes como o tafetá.
Frágeis: têm a estrutura inconsistente
de teia imaterial,
que uma aranha teceu pacientemente
nos teares de um rosal.
E, entre tules volantes, noite e dia,
o alado torvelim
vertiginosamente rodopia,
numa elasticidade de Arlequim!
Vêm coroadas de rosas, num remoinho
cambiante de ouro em pó:

120
TÓPICO 2 | AS TENDÊNCIAS DO FINAL DO SÉCULO XIX

cada rosa, que esconde o seu espinho,


dura um minuto só.
Sessenta rosas, vivas como brasas,
traz cada uma; e, ao bater
da talagarça diáfana das asas,
põem-se as coroas a resplandecer...
À proporção que gira à minha frente
o bailado fugaz,
cada grinalda, vagarosamente,
aos poucos, se desfaz.
E quando as doze dançarinas, feitas
de plumas, vão recuar,
levam as frontes, claras e perfeitas,
circundadas de espinhos, a sangrar...
Assim, depois que a estranha sarabanda
na sombra se dilui,
penso, vendo o outro bando que ciranda
em torno do que fui,
que há uma alma em cada gesto e em cada passo
das horas que se vão:
pois fica a sombra de seu véu no espaço,
fica o silêncio de seus pés no chão!...

FONTE: (ALMEIDA, 1928, p. 53)

Os versos denotam a poética de Guilherme de Almeida, cuja sinceridade


e naturalidade conservam “o domínio em si próprio e a lucidez das impressões.
Pode assim realizar, na forma a harmonia de uma sensibilidade disciplinada. [...]
O que tinha como característica é o impressionismo das imagens, e a vida interior
do poeta”. (COUTINHO, 2004a, p. 583). Assim, o penumbrismo é revelador do
contato com o cotidiano e, nesse sentido, o autor tratou com simplicidade tais
temas.

O neoparnasianismo foi outra tendência que marcou a transição entre o


Simbolismo e o Modernismo. No primeiro decênio do século XX, surgiu um grupo
de escritores que exercitaram uma expressão que conciliava o sentimentalismo à
emoção da vida cotidiana. Os neoparnasianos observaram o respeito ao aspecto
formal, a liberdade de sentimento que convergiu para a fluência emocional, o
verso livre, maleabilidade de ritmo, tornando o poema comunicativo. No dizer de
Coutinho (2004a, p. 602), “o neoparnasianismo vem a ser sensual, por excelência.
O verso está intimamente ligado ao canto; há no versificar um gozo, uma euforia
mesmo, que jamais existiu no Parnasianismo”. Além disso, os poetas dessa
geração demonstraram interesse pela paisagem e, dentre vários escritores, são
apontados como seus representantes Humberto de Campos e Augusto dos Anjos.

121
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos (1884-1914) é citado como o


grande explorador neoparnasianista. Lançando mão de um vocabulário científico
e técnico, aliado à temática do macabro e à filosofia materialista, o autor calcificou
o pessimismo, o sórdido e o negativismo da vida, fazendo-os inspiração para a
sua expressão. Observe o poema que segue:

A meu pai doente

Para onde fores, Pai, para onde fores,


Irei também, trilhando as mesmas ruas...
Tu, para amenizar as dores tuas,
Eu, para amenizar as minhas dores!

Que cousa triste! O campo tão sem flores,


E eu tão sem crença e as árvores tão nuas
E tu, gemendo, e o horror de nossas duas
Mágoas crescendo e se fazendo horrores!

Magoaram-te, meu Pai?! Que mão sombria,


Indiferente aos mil tormentos teus
De assim magoar-te sem pesar havia?!

- Seria a mão de Deus?! Mas Deus enfim


É bom, é justo, e sendo justo, Deus,
Deus não havia de magoar-te assim!

FONTE: (ANJOS, 2003, p. 47)

O autor que recebeu influência de Baudelaire desprezava o cotidiano e


expressava a revolta contra o mundo. O soneto, dedicado ao pai, apresenta versos
realistas e pessimistas que reproduzem tristeza em face à condição humana.
Sua poesia, que por muitos foi considerada impressionista, contém temas que
dilaceram a alma humana, pela abordagem da morte e pelo questionamento do
sentido da vida.

Desse modo, a chamada era de transição e sincretismo foi um movimento


que integrou a realidade brasileira à inteligência, à cultura, às artes e às letras.
Para Coutinho (2004a, p. 331), “[...] a busca da nacionalidade para a literatura
brasileira foi um tema que preocupou absorventemente a mentalidade de nossos
homens de letras no século XIX, especialmente na sua segunda metade, tornando-
se uma constante crítica”.

122
TÓPICO 2 | AS TENDÊNCIAS DO FINAL DO SÉCULO XIX

2.1 IMPRESSIONISMO: UM MOVIMENTO PARALELO AO


SIMBOLISMO
O Impressionismo, estilo que dominou nas artes ocidentais, também
resultou do entrechoque de tendências estéticas que predominou na última
década do século XIX. Para Massaud Moisés (2004, p. 239), o Impressionismo

[...] era conhecido desde 1958, assim como remontavam ao século


XVIII francês as primeiras aparições do que viria constituir a pintura
impressionista. A sua característica principal residia no afã de
apreender a realidade exterior diretamente, no momento preciso em
que certa incidência de luz projeta o relevo e as cores dos objetos.

Na pintura, era evidente a função social do artista que colocava em prática


os motivos derivados de uma realidade. Na França, Gustave Coubert (1819-
1877) dá início a uma arte como meio de representar concretamente a realidade,
uma reprodução feita pelo olhar de quem vê sem necessidade da imaginação.
Os artistas dessa época se inspiravam no cotidiano, extraindo dela sujeitos nada
heroicos, sendo simplesmente constatação do “verdadeiro”.

Além de Coubert, na França temos ainda Honoré Daumler, litógrafo,


caricaturista e pintor; François Millet (1814-1875) e ainda Edouard Manet (1832-
1883) que, influenciado com os experimentos fotográficos, realizou uma pintura
sem desenho, na qual as imagens são concebidas de forma direta, no jogo e
no contraste das cores e na sensação ótica. Outra questão faz alusão às figuras
retratadas em face à moral duvidosa, a exemplo do quadro que segue, retrato de
uma dançarina espanhola e que causou polêmica na época.

FIGURA 4 – LOLA DE VALÊNCIA (1863) DE EDUARD MANET

FONTE: Disponível em: <http://www.ada.ascari.name/studio/artec/artisti/manet-lola.html>.


Acesso em: 2 abr. 2011.

123
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

A obra de Manet influenciou outros pintores, capazes de apreender


plenamente as inovações do movimento que foi, sem dúvida, o mais original do
período oitocentista surgido em Paris.

Os artistas retratavam com liberdade segundo uma impressão imediata


subjetiva. Trabalhavam ao ar livre, onde a luz não era única, mas de vários efeitos,
efetivando a “impressão” luminosa e a sensibilidade visível de quem pintava.
Concretizava-se, desse modo, não o realismo objetivo, mas o efeito das várias
luzes – sol ou chuva, manhã ou noite, inverno ou verão –. Foi sob essa perspectiva
que, no ano de 1872, Claude Monet idealiza a tela intitulada Impression, Soleil
Levant.

FIGURA 5 - IMPRESSÃO, NASCER DO SOL (CLAUDE MONET, 1872, ÓLEO SOBRE TELA -
48 × 63CM)

FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Impress%C3%A3o,_nascer_do_sol>. Acesso


em: 2 abr. 2011.

UNI

A tela Impressão, Nascer do Sol é uma das mais célebres e importantes obras
de Claude Monet. Representa o nascer da manhã no porto de Havre, com uma cerrada
névoa sobre o estaleiro, os barcos e as chaminés no fundo da composição. Esta tela
está exposta no Museu Marmottan, em Paris. No quadro, Monet utilizou tintas originais,
cuja sobreposição de cores cruas, sem misturas, é uma grande característica da técnica
impressionista, continuada a partir do momento em que os espectadores e os artistas se
deram conta de que conseguiam obter resultados mais próximos da realidade. A partir
desta tela nasceu o movimento impressionista, com sua exposição no estúdio do fotógrafo
Nadar, em 15 de abril de 1874, juntamente com obras de Boudin, Sisley, Degas e Renoir.
Embora fracassada, a exposição convenceu alguns dos espectadores mais liberais, e a nova
tendência mais tarde resultaria na Arte Moderna. (MOISÉS, 2004, p. 239).

124
TÓPICO 2 | AS TENDÊNCIAS DO FINAL DO SÉCULO XIX

Impressionistas como Claude Monet, Pierre Auguste Renoir e Edgar


Degas, dentre outros, ao trabalharem em ambientes externos e em contato com
as pessoas, extraíam, nas várias horas do dia e na atmosfera de cada estação do
ano, aspectos da cidade como as pessoas e as ocupações dos indivíduos de cada
condição social. Não havia julgamento ou deformação do que viam, mas o desejo
de dar às coisas uma conotação do instantâneo, vibrante das infinitas variações
que a atmosfera transformava em imagens.

Outro importante representante da pintura impressionista foi o holandês,


Vincent van Gogh (1853-1890), considerado um dos principais artistas da pintura
mundial. Utilizou a técnica do pontilhado e passou a pintar com rápidas e
pequenas pinceladas a realidade apreendida pelo olho humano.

FIGURA 6 – ÓLEO EM TELA DE VAN GOGH - TERRAÇO DO CAFÉ NA PRAÇA DO FÓRUM, À


NOITE – 1888

FONTE: Disponível em: <http://barelanchestaboao.blogspot.com/2008/01/de-volta-ao-bar-


com-van-gogh.html>. Acesso em: 2 abr. 2011.

Para os impressionistas, prevalecia a relação entre cromático com as


nuances da cor, aliada à procura constante de novas técnicas. O quadro pronto
era a realidade do pintor que absorveu a cor e o sentimento mais íntimo. Essa
liberdade foi a base da nova concepção pictórica que definiu as vanguardas
estilísticas sucessivas. Depois da mostra de 1877, a primeira dos impressionistas,
aceita favoravelmente pelo público e crítica, cada artista privilegiou a sua
tendência.

125
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

O impressionismo foi um fenômeno inicialmente ligado à arte francesa,


mas foi a sua relevância que derrubou antigos conceitos da pintura e renovou a arte
europeia. Na Itália a pintura realista encontrou um ambiente favorável em Florença
com um grupo de pintores conhecidos como macchiaioli – em decorrência de uma
técnica de pintura traduzida como “manchas a óleo”. O grupo aboliu o tradicional
claro/escuro e utilizou o contrate das pinceladas coloridas, com efeitos luminosos.

FIGURA 7 – CONVERSAS EM RIOMAGGIORE, REPRODUÇÃO DA PINTURA A ÓLEO, UMA


PINTURA DE TELEMACO SIGNORINI

FONTE: Disponível em: <http://www.1st-art-gallery.com/Telemaco-Signorini/Chiacchiere-A-


Riomaggiore.html>. Acesso em: 2 abr. 2011.

UNI

O termo macchiaioli faz referência a um grupo de pintores italianos que se


reunia em Florença entre os anos de 1855 a 1867. Contra as convenções acadêmicas, os
pintores defendiam um novo estilo pictórico que se caracterizava pelo uso de manchas
(macchie) coloridas, com objetivo de transmitir uma impressão de verdade.

No que se refere à música oitocentista, ela possui as três características


fundamentais – a romântica, a realista e a impressionista. Na Itália, um dos maiores
representantes foi Giuseppe Verdi, cujas primeiras composições apresentam forte
apelo romântico e patriótico. As que se sucederam, no entanto, apresentam um
concreto realismo expresso pelo drama popular e burguês.

A Alemanha esteve representada, especialmente, pela música de Richard


Wagner. Este artista manteve vivo o teatro alemão, na forma original – palavra,
música e recitação se misturam como expressão nova e sublime de uma única

126
TÓPICO 2 | AS TENDÊNCIAS DO FINAL DO SÉCULO XIX

ideia criativa e o drama é concebido quase como um ritual coletivo. A influência


de Wagner sobre os músicos da época foi importante em face ao cromatismo e das
várias temáticas.

Na França o impressionismo musical está ligado ao nome de Claude


Debussy (1862-1918) que contestou o conceito wagneriano do titanismo musical
e propôs fragmentos musicais extremamente fugazes, mas de extraordinária
intensidade estilística e evocativa, os quais foram motivo de discussão de seus
contemporâneos e serviram de experimentos musicais para o século posterior.

O pensamento impressionista também chegou à literatura, caracterizado


como um período estilístico, que, segundo Coutinho (2004a, p. 325), possui
sua “[...] individualidade bem marcada, não obstante a dificuldade de isolá-lo
completamente do Realismo-Naturalismo, no seu início, e do Simbolismo, no
outro extremo”.

No Impressionismo a realidade é captada pelas sensações e impressões


que desperta no espírito, pelo contato das coisas, cenas, ou pessoas. Desse modo,
os escritores impressionistas concebem um novo mundo na literatura, baseado
no fato de que a realidade não é um estado coerente e estável, “mas um vir a ser,
um processo em curso [...]. Dessa teoria decorre o método impressionista que é
a captação do momento, do fragmentário, do instável, do móvel, do subjetivo”.
(COUTINHO, 2004a, p. 325).

Os escritores dessa época lidavam com as palavras como se as pintassem


no texto, captavam a realidade não em seu estado de repouso, mas nas impressões
e no seu conhecimento. Para Coutinho (2004a, p. 327), “[...] não há linguagem
impressionista, há, todavia, uma linguagem usada pelos escritores impressionistas,
exprimindo um conteúdo impressionista”. Assim, o estilo impressionista é
caracterizado pela sintaxe esquemática em oposição à estruturada; pela ordem
inversa da frase; pela supressão da conjunção, dando maior liberdade à frase, pelo
uso de metáforas e símiles, pela linguagem expressiva e sonora, dentre outras.

No Brasil, o movimento foi representado pelo escritor Raul Pompeia.


Lembre-se de que esse autor já foi abordado neste Livro Didático. O mesmo,
orientado pela ideia naturalista e pela estética simbolista, encontrou no
Impressionismo a plenitude de sua expressão. Outros escritores, a exemplo de
Graça Aranha, Adelino Magalhães, Coelho Neto e Afrânio Peixoto, são, no dizer
de Coutinho (2004a, p. 329), impressionistas, uma vez que o estilo abarca

[...] um conceito literário, de uso e compreensão recentes, que auxilia


a interpretação de diversos escritores outrora inclassificados, e de
uma época tida como marginal ou secundária, mas que ofereceu uma
contribuição duradoura à literatura brasileira moderna.

É inquestionável a importância dessa fase somada a outras estéticas


europeias como o Expressionismo, o Futurismo, o Dadaísmo e o Surrealismo,
movimentos de vanguarda que eclodiram no Modernismo, argumento que será
abordado no próximo tópico.
127
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico você pôde aprofundar seus conhecimentos nos seguintes
conteúdos:

• Os teóricos de literatura denominaram como período de transição os movimentos


que ocorreram entre o fim do Simbolismo e o início do Modernismo. Essa
época intermediária pela qual passou a nossa literatura ficou conhecida como
penumbrismo, uma espécie de fumaça do Simbolismo, cujos representantes
foram anunciadores de mudanças de normas, princípios e gostos.

• Dentre os escritores penumbristas podemos citar Ronald de Carvalho, Mário


Pederneiras, Álvaro Moreira, Filipe D’Oliveira, Homero Prates, Ribeiro Couto
e Guilherme de Almeida.

• O neoparnasianismo foi outra tendência que marcou a transição entre o


Simbolismo e o Modernismo. No primeiro decênio do século XX, surgiu
um grupo de escritores que exercitou uma expressão que conciliava o
sentimentalismo à emoção da vida cotidiana.

• Os neoparnasianos observaram o respeito ao aspecto formal, a liberdade de


sentimento que convergiu para a fluência emocional, o verso livre, maleabilidade
de ritmo, tornando o poema comunicativo.

• O Impressionismo, estilo que dominou nas artes ocidentais, também resultou


do entrechoque de tendências estéticas que predominou na última década do
século XIX.

• Edouard Manet realizou uma pintura sem desenho, na qual as imagens são
concebidas de forma direta, no jogo e no contraste das cores e na sensação
ótica.

• O impressionismo foi um fenômeno inicialmente ligado à arte francesa, mas


foi a sua relevância que derrubou antigos conceitos da pintura e renovou a arte
europeia.

• Na Itália, a pintura realista encontrou um ambiente favorável em Florença com


um grupo de pintores conhecidos como macchiaioli – em decorrência de uma
técnica de pintura traduzida como “manchas a óleo”.

• No Brasil, o movimento impressionista foi representado pelo escritor Raul


Pompeia.

128
AUTOATIVIDADE

1 Das afirmativas abaixo, assinale as que contêm elementos do Impressionismo:

a) ( ) O autor impressionista retrata a verdade de um dado momento,


justapondo ideias variadas.
b) ( ) O autor impressionista dá mais ênfase às emoções, sentimentos e
atitudes individuais do que aos fatos em si.
c) ( ) O autor impressionista usa uma linguagem expressiva, suprimindo
conjunções e liberando as frases.
d) ( ) O autor impressionista inventa e interpreta uma paisagem imprecisa.
e) ( ) O autor impressionista procura retratar fielmente a realidade,
detendo-se em minuciosa descrição.

2 Escreva três características do Impressionismo.

3 No Impressionismo, o quadro pronto era a realidade do


pintor que absorveu a cor e o sentimento mais íntimo.
Explique tal afirmação.

129
130
UNIDADE 2
TÓPICO 3

AS VANGUARDAS DA EUROPA E SUA INFLUÊNCIA


NO BRASIL

1 INTRODUÇÃO
Na Europa do início do século XX reinava um clima de euforia em face
aos progressos industriais, aos avanços das tecnologias como a eletricidade, o
telefone, o rádio, o telégrafo, dentre outras. Nesse sentido, a atmosfera estava
propícia para o aparecimento de novas concepções artísticas que traduziam
aquela realidade, quebrando padrões tradicionais.

As várias tendências e os manifestos culturais tiveram origem na Europa


e influenciaram os artistas brasileiros que, por sua vez, imbuídos das ideias
vanguardistas, contribuíram para grandes mudanças na Arte.

Assim, as ideias propostas pelas vanguardas e manifestos convergiram


para A Semana de Arte Moderna, cujas propostas de expressão disseminaram-se
por todo o país e concretizaram o Modernismo no Brasil.

2 AS VANGUARDAS
No século XX, o surgimento das vanguardas europeias estava ligado aos
artistas dos movimentos precedentes, os quais abriram caminho para as gerações
posteriores. A palavra vanguarda, em princípio, designava “[...] as unidades
armadas que se punham à frente dos exércitos nos conflitos de guerra”. (MOISÉS,
2004, p. 461). No limiar do século XX, o termo passou a fazer alusão a um sentido
estético moderno, pois nomeava os movimentos artísticos e literários.

De modo geral as vanguardas europeias romperam com o passado nas


suas formas, provocando uma revolução, pela reação à estética vigente do fim do
século XIX.

O Futurismo foi um desses movimentos de vanguarda. Começou em


Milão pelas letras de Marinetti, autor do Manifesto do Futurismo, e fazia apologia
à velocidade, ao perigo, à energia, ao movimento, à audácia como argumentos
líricos, além disso, propunha mudanças na maneira de escrever. O Manifesto
defendia o emprego do substantivo e do verbo somente no infinitivo, abolindo o
adjetivo e o advérbio.

131
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

Outro movimento, o Dadaísmo, originado em Zurique em 1916 pretendia


“[...] pôr abaixo as instituições estabelecidas, as correntes estéticas em moda, a
burguesia, a Psicanálise, a Filosofia etc.”. (MOISÉS, 2004, p. 114). O nome do
movimento derivou-se do vocábulo “Dada”, escolhido pelo grupo liderado por
Tristan Tzara – no dizer de Tzara, não significava nada. Os seus representantes
apenas tencionavam levar “[...] o prazer gratuito da anarquia ao extremo possível,
no gozo de uma espontaneidade que se diria infantil não fosse baseada num
pensamento intelectualmente elaborado”. (MOISÉS, 2004, p. 114). No campo
literário o movimento se caracterizou pela sintaxe esdrúxula e sem ordenação,
como se a revolta devesse também atingir as palavras.

UNI

Caro acadêmico, o Dadaísmo foi marcado por vários episódios, a partir da


mudança de Tzara à França, quando também teve a adesão de André Breton. O novo grupo
promoveu em 1920 um sarau em que foram lidos manifestos que provocaram escândalos,
ao mesmo tempo que deram notoriedade ao movimento. O Manifesto Dada 5 pregava o fim
dos pintores, músicos, escultores, literatos, republicanos, monarquistas, liberais, imperialistas,
comunistas e o próprio Dada. A arte, objetivo último do Dadaísmo, é friamente negada.
Ainda neste mesmo ano é divulgado o Manifesto Canibal na Escuridão, imbuído de um
niilismo extremo; também é realizado o Festival Dada no qual o auditório reage indignado.
A partir de 1921, o movimento começa a decair, mas foi em 1923 que esmorece de fato,
especialmente por conta de evento realizado pelos dadaístas que acaba em pancadaria
entre os seus integrantes, a ponto de requerer a intervenção policial. (MOISÉS, 2004, p. 115).

Com o fim do Dadaísmo aparecem novas propostas estéticas, a exemplo


do Surrealismo, tendo à frente André Breton. O movimento valoriza a intervenção
fantasiosa da realidade, fazendo com que a pintura e a literatura se expressassem
de maneira audaciosa e brilhante. Sob o olhar do surrealista, a descrição do ser
humano era cruel, pois os seus seguidores eram favoráveis às ideias de Freud, ou
seja, exploravam o inconsciente, o sonho, a loucura e se afastavam de tudo que
fosse da lógica. (MOISÉS, 2004, p. 442). Observe essa questão na tela de Salvador
Dali (1904-1989), intitulada A Persistência da Memória.

132
TÓPICO 3 | AS VANGUARDAS DA EUROPA E SUA INFLUÊNCIA

FIGURA 8 – A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA

FONTE: Disponível em: <http://portaldoprofessor.mec.gov.br/storage/discovirtual/aulas/1871/


imagens/A_persistencia_da_memoria_1931.jpg>. Acesso em: 2 abr. 2011.

A Persistência da Memória, o mais notável dos quadros desse autor, foi


pintada em 1931. A flacidez dos relógios dependurados e escorrendo mostram
uma preocupação humana com o tempo e a memória.

O Cubismo foi outra tendência marcante que influenciou a arte. Esse


movimento de vanguarda reuniu artistas plásticos e escritores nos anos iniciais
do século XX, dentre eles, Pablo Picasso, que, em 1907, pinta Les Demoiselles
d`Avignon, uma tela marcada pelo deslocamento formal da silhueta das figuras.
O conceito chegou à literatura pelas letras de Guillaume Apollinaire (1880-1918),
escritor que elaborou poemas segundo a tendência em moda.

Do ponto de vista artístico, foi o movimento mais completo e radical. No


dizer de Moisés (2004, p. 112) “[...] o Cubismo inaugurou e personificou a ruptura
com a tradição histórica, que seria apanágio da arte moderna em geral. O fulcro
do seu processo libertador situava-se na recusa da perspectiva única inventada
pelos teóricos e artistas da Renascença”. As ideias cubistas influenciaram os
participantes da Semana da Arte Moderna (1922), especialmente Oswald de
Andrade.

Outra tendência estética importante durante a fase revolucionária foi o


Expressionismo, surgindo como uma continuação do Impressionismo. Segundo
Moisés (2004, p. 180), na Alemanha “[...] no curso da década em que predominou,
o movimento expressionista originou a publicação de uma série de revistas e
antologias”. O movimento propunha um subjetivismo total, colocando em relevo
a consciência pessoal, ou seja, a expressão de dentro para fora, uma realização
que advinha da alma. No expressionismo “[...] o poema, o drama ou a narrativa
passam a conter a própria visão do artista”. (COUTINHO, 2004a, p. 339).

133
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

Os antecedentes europeus atingiram os escritores do período pós-


simbolista e pós-parnasiano, os quais quebraram padrões tradicionais. A literatura
desse período, imbuída de um novo complexo ideológico, era testemunha de um
homem abalado na sua espiritualidade e na sua moral. Coutinho (2004a, p. 337)
insiste em afirmar que respeitadas as características regionais, “[...] a literatura
não é um bólide solto no espaço. É uma grande continuidade e uma grande
contiguidade. Liga-se ao passado e ao contemporâneo. Ao local e ao universal”.

Nessa perspectiva, no início do século XX, com a eclosão da Primeira
Guerra Mundial, ocorreu uma mudança social, filosófica e ideológica. A confiança
na razão e no conhecimento cede lugar às inquietações da alma e à agonia da
existência, fatos estes que foram abordados por Friedrich Nietzsche e Oswald
Spengler que versavam sobre a espiritualidade, o fenômeno da inquietude e o
niilismo, doutrina segundo a qual nada existe de absoluto, numa oposição ao
cientificismo e ao positivismo. Também discussões sobre o mundo do inconsciente
foram propostas por Sigmund Freud (1856), médico neurologista vienense que
concebeu a Psicanálise: um campo de investigação teórica da psicologia e que
se propõe a compreender e analisar o homem, enquanto sujeito do inconsciente.

Outro aspecto evidenciado é o da noção do tempo, cujo tema é abordado


pelo romancista Marcel Proust (1871-1922) que escreveu a obra Em Busca do
Tempo Perdido, publicada entre 1913 e 1927, e por Henri Bergson, filósofo que
teorizou sobre o tempo da consciência. Os seus estudos aludem à “[...] busca
do eu profundo, pela introspecção psicológica, que conduziu à dissociação
da personalidade; o culto da sinceridade total, através das reconstituições da
memória”. (COUTINHO, 2004a, p. 338).

Assim, as tendências e as vanguardas caracterizavam-se pelas mudanças


exercidas sobre a Arte. Especialmente na poesia, as propostas não estavam
preocupadas tão somente com a rima e os moldes formais, mas com outros
aspectos, como, por exemplo, o que pretendia comunicar. Essa época foi marcante
para a fusão da poesia e da prosa, dando origem à prosa poética. A ficção seguiu
as ideias da filosofia bergsoniana e da psicanálise de Freud, e pelas mãos de
Katherine Mansfield, Virginia Woolf, Proust, Kafka e James Joyce são utilizadas
novas técnicas como o fluxo de consciência e o monólogo interior. A narrativa
doravante contemplaria personagens e suas ações, a exemplo do que ocorre com
Ulisses, protagonista do livro de James Joyce, em que as profundezas da alma
são esmiuçadas e retratadas nos seus pormenores, passando o romance moderno
a descrever os “[...] móbeis psicológicos ocultos e complexos das personagens”.
(MOISÉS, 2004, p. 461).

O período do pós-guerra é caracterizado pela existência de uma forma


nova e de um novo estilo de arte e literatura, cujos traços podem ser definidos
como modernos. Essa época estava voltada para o futuro, ou seja, o progresso
e a renovação nas artes, ciências, cultura e filosofia as quais estavam atentas à
razão, à análise, à investigação e à criação pessoal. A supremacia da inteligência,
o domínio científico da natureza e o progresso mecânico passam a atuar em todos

134
TÓPICO 3 | AS VANGUARDAS DA EUROPA E SUA INFLUÊNCIA

os campos. Especialmente no que diz respeito às artes plásticas e à literatura, a


atitude moderna as coloca em oposição às épocas antigas. Sobre essa questão,
assim se manifesta Coutinho (2004a, p. 341):

[...] em vez da universalidade e do absoluto, o que lhe importa é o


particular, o local, a circunstância, o pessoal, o subjetivo, o relativo,
o detalhe, a multiplicidade; em lugar da permanência, é mudança, a
diversidade, a variedade; ao absoluto, prefere o relativo, à Verdade,
muitas verdades; [...] à natureza humana [...]; à descrição e revelação
do mundo exterior, o sentimento da existência subjetiva; fugindo
à tradição de nobreza, dignidade e decoro, incorporou os assuntos
baixos e sujos, a realidade cotidiana, [...] o circunstancial e o particular.

A partir do conceito de moderno, é possível apontar algumas categorias
estabelecidas por A. Hibbard (apud COUTINHO, 2004a) no que se refere à
literatura contemporânea, destacando que diferentemente da ficção oitocentista,
os autores não participam das ações da narrativa a não ser quando incorporam
o espírito das personagens; a ação e o enredo são inerentes às emoções e reações
das personagens; as temáticas passaram a ser individuais e específicas e abordam
todos os motivos e assuntos. Além disso, na narrativa aumenta o interesse pelos
estados mentais e pela vida profunda do eu, e da apresentação das personagens,
as quais são caracterizadas pela consciência. “Em vez de o autor fazer o retrato,
a personagem vive e assim o leitor a conhece e julga”. (COUTINHO, 2004a, p.
342). Desse modo, o romance contemporâneo assimilou as experiências mentais
e interiores, constituindo uma investigação psicológica do eu e do inconsciente
das personagens.

Quanto à poesia, lembre que, conforme vimos, no que se refere ao estilo,


foi no Simbolismo que a poesia teve traços definidores. Feita de palavras é, no
dizer de Coutinho (2004a), criação poética da linguagem, que incorporou na
modernidade a realidade, cujas características podem ser definidas em: imagens
articuladas à língua cotidiana, rimas convencionais, imagens que fogem à lógica,
interesse pelo habitual, pelo inconsciente, pelo homem vulgar e pela ordem social.

Como já enfatizamos, as tendências que surgiram no período de transição


e que contribuíram para várias mudanças literárias não apareceram puras, mas
misturadas. Nesse sentido, um ponto a considerar da literatura modernista é a
sua relação com a regionalista, ou seja, “[...] parece evidente a tendência a fundir
e conciliar o Modernismo e o regionalismo” (COUTINHO, 2004a, p. 357), assunto
a ser abordado nos próximos tópicos.

3 A REVOLUÇÃO MODERNISTA
Em 1912, Oswald de Andrade retorna da Europa, trazendo na bagagem
as ideias estabelecidas no Manifesto Futurista, de Marinetti, que pregava uma
literatura comprometida com a nova civilização técnica. Sentia-se, o jovem
brasileiro, atraído sobretudo pelo poeta francês Paul Forts, um desmantelador da

135
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

métrica e, segundo Coutinho, tal fato vinha a “[...] calhar com uma deficiência que
precisava transformar em virtude – a incapacidade de metrificar”. (2004a, p. 4).

O Brasil daquela época avançava materialmente, mas no que dizia respeito


ao plano das artes continuava preso ao passado. Então, os artistas e intelectuais
da época aliaram-se aos anseios de Oswald de Andrade de atualizar a literatura e
a arte brasileira. Não interessava para este grupo se as novas ideias eram oriundas
de outras nações.

Assim, aos poucos, aplicando novos processos artísticos às aspirações


originadas em solo brasileiro, inicia-se a trajetória rumo à ampliação e efetivação
do movimento modernista. Em março de 1913, em São Paulo, realiza-se a primeira
exposição de pintura não acadêmica, com obras de Lasar Segall, que revelam uma
forte influência do expressionismo do grupo de Dresden, do qual Segall fazia parte.

UNI

Lasar Segall, de família judia, nasceu na capital da Lituânia, que se encontrava


sob domínio do Império Russo. Aos 15 anos foi morar em Berlim, e lá continua seus estudos
na Academia Imperial de Belas Artes de Berlim. Foi pintor, desenhista, gravador e escultor,
tornou-se um símbolo para os modernistas brasileiros. No início dos anos 20, Lasar Segall
instala-se definitivamente no Brasil, naturalizando-se brasileiro. Para saber mais sobre este
artista, você poderá acessar o sítio <http://www.museusegall.org.br/>.

FIGURA 9 – PAISAGEM BRASILEIRA - 1925 (LASAR SEGALL)

FONTE: Disponível em: <http://www.espelhodaimprensa.hpg.ig.com.br/lasar_segall/lasar_segall.


htm>. Acesso em: 2 abr. 2011.
136
TÓPICO 3 | AS VANGUARDAS DA EUROPA E SUA INFLUÊNCIA

FIGURA 10 – A FAMÍLIA – EXPOSIÇÃO - 1913 (LASAR SEGALL)

FONTE: Disponível em: <http://www.febf.uerj.br/pesquisa/semana_22.html>. Acesso em:


2 abr. 2011.

Em maio de 1914, Anita Malfatti chega da Europa e expõe seus trabalhos.


Para os críticos da época, as obras da artista denotam forte influência da escola
moderna alemã, que levou às ultimas consequências o Impressionismo. Anita
estudou também nos Estados Unidos na escola de Homer Boss, período no qual
entrou em contato com refugiados russos, bem como intelectuais e artistas que
escolhiam os Estados Unidos para fugir da guerra na Europa. Foi em companhia
destes que Anita se constituiu como artista.

E por influxo dos estrangeiros, dos refugiados, que só falavam no


cubismo, as primeiras experiências nesse sentido são realizadas pelos
alunos da escola Homer Boss. O primeiro nu cubista norte-americano
e o primeiro nu cubista brasileiro foram então pintados, aquele por
Boylisson e este por Anita Malfatti. (COUTINHO, 2004b, p. 5).

Nesse processo do movimento modernista brasileiro, as palavras


futurismo e futurista circulavam nos jornais, revistas e entre os intelectuais. Foi,
no entanto, em 1917, que fatos importantes marcaram a história do movimento
renovador literário e artístico que iriam culminar com a Semana da Arte Moderna.
Dentre os acontecimentos, vale destacar que Oswald de Andrade trabalhava como
repórter do Jornal do Commercio e, em novembro daquele ano, Mário de Andrade
pronunciou um discurso em uma conferência patriótica. Oswald, impressionado
pelo discurso, publicou-o na íntegra. Foi assim que Mário e Oswald de Andrade
se conheceram e, a partir de então, estreitam cada vez mais seus laços de amizade,
ambos com inquietações artísticas, trocam ideias sobre a vida cultural brasileira
e se empenham na luta renovadora das artes e letras brasileiras. Nesse mesmo
ano, Mário de Andrade, publica um livro de versos sob o pseudônimo de Mário
Sobral. No poema intitulado Inverno, Mário escreve o seguinte trecho:

137
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

De noite tempestuou
Chuva de neve e granizo...
Agora, calma e paz. Somente o vento
Continua com seu oou...

FONTE: (ANDRADE apud COUTINHO, 2004b, p. 7)

Perceba que Mário rimou a palavra tempestuou com oou. Tal opção foi
apontada como um exagero por alguns críticos da época, mas, aos olhos de
Oswald de Andrade, a rima inusitada e agressiva de Mário confirmou as “[...]
suas próprias frustradas tendências inovadoras”. (COUTINHO, 2004b, p. 7).

Mário de Andrade não era o único poeta da época que assinalava seus
escritos com a presença de algo novo, e parte da crítica estranhava a combinação
de rimas, não concordava com as técnicas empregadas pelos poetas, enfim reage
às alterações e aos abalos que a estrutura parnasiana estava sofrendo.

Nessa hora cinzenta de transição, aguarda-se um surto novo, definido.


Espera-se qualquer coisa, que ainda não se sabe qual seja. Mas está
claro que o que há não satisfaz e já parece superado. Há uma nova
linha a seguir, um novo rumo a descortinar, mas, por enquanto, são
indecisões e tateios. Por enquanto, são o Parnasianismo e o Simbolismo
se desmanchando. (COUTINHO, 2004b, p. 8).

No ano de 1917 aconteceu a exposição de Anita Malfatti que foi, sem


dúvida, o início da jornada que ficará por nós conhecida como Semana da Arte
Moderna. A artista reuniu 53 trabalhos que causaram, aos frequentadores da
amostra, estranheza, espanto e surpresa. Os jornais e as revistas comunicaram
ao público que as obras de Anita são reflexo da mais adiantada cultura. Porém,
no jornal O Estado de S. Paulo, em 20 de dezembro, Monteiro Lobato publica um
artigo sobre a exposição da artista. Veja parte do texto.

PARANOIA OU MISTIFICAÇÃO

Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que veem as coisas


e em consequência fazem arte pura, guardados os eternos ritmos da vida, e
adotados, para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos
dos grandes mestres.

Quem trilha esta senda, se tem gênio é Praxiteles na Grecia, é Rafael


na Itália, é Reynolds na Inglaterra, é Dürer na Alemanha, é Zorn na Suécia, é
Rodin na França, é Zuloaga na Espanha. Se tem apenas talento, vai engrossar a
plêiade de satélites que gravitam em torno desses sóis imorredoiros.

A outra espécie é formada dos que vêm anormalmente a natureza e


a interpretam à luz das teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas
rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos

138
TÓPICO 3 | AS VANGUARDAS DA EUROPA E SUA INFLUÊNCIA

do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência; são frutos de fim


de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante,
as mais das vezes com a luz do escândalo, e somem-se logo nas trevas do
esquecimento..

Embora se deem como novos, como precursores de uma arte a vir, nada
é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu como a paranoia e
a mistificação.

De há muito que a estudam os psiquiatras em seus tratados,


documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas dos
manicômios.

A única diferença reside em que nos manicômios essa arte é sincera,


produto lógico dos cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; e
fora deles, nas exposições públicas zabumbadas pela imprensa partidária, mas
não absorvidas pelo público que compra, não há sinceridade nenhuma, nem
nenhuma lógica, sendo tudo mistificação pura.

FONTE: Disponível em: <http://www.pitoresco.com.br/brasil/anita/lobato.htm>. Acesso em: 2


abr. 2011.

Como você pode perceber, Lobato, ao contrapor os dois protótipos de


artista, assinala sua preferência pela arte clássica, enquanto a outra, sob o nome
de futurismo, não passa de caricatura que serve para desorientar o público.

As duras observações feitas por Lobato refletiram desastrosamente sobre


a exposição e, em especial, sobre a própria autora, tendo parte de seus quadros já
vendidos, devolvidos. Um grupo de intelectuais e artistas aliam-se a Anita Malfatti
e, a partir do ocorrido, a transformam em símbolo do movimento. Aflora-se,
ainda mais em Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Di Cavalcanti, Guilherme
de Almeida, Agenor Barbosa, Ribeiro Couto, George Przirembel, Cândido Mota
Filho, João Fernando de Almeida Prado, Menotti del Picchia, dentre outros, a
necessidade e vontade de mudanças.

Estes jovens não param. Em 1919, tomam conhecimento de que Victor


Brecheret, recém-chegado de Roma instala seu ateliê no Palácio das Indústrias e,
então, Di Cavalcanti, Menotti del Picchia e Oswald de Andrade o visitam e ficam
encantados com as obras do autor. Até mesmo Lobato, que tão duramente atacou
Anita, sobre Brecheret escreve artigos elogiando seus trabalhos.

Pode-se dizer que em 1920 o grupo de modernistas ou futuristas


brasileiros, como era chamado, estava consolidado. Reuniam-se com frequência
para planejar ações e discutir a arte brasileira. Nessas conversas germinou a ideia
de uma semana dedicada à arte, na qual o grupo apresentaria o que entendia
e concebia como arte nova, arte realmente brasileira. Para romper as amarras
culturais escolheram 1922, ano do centenário da Independência do Brasil: evento
que ficaria conhecido como a Semana da Arte Moderna.
139
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

Do grupo, foi Menotti del Picchia quem fixou o programa teórico que
constitui a ação dos modernistas. Conforme Coutinho, o programa pode ser
assim resumido:

O rompimento com o passado, ou seja, a repulsa às concepções


românticas parnasianas e realistas; a independência mental brasileira,
abandonando-se as sugestões europeias, mormente as lusitanas e
gaulesas; uma nova técnica para a representação da vida em vista
de que os processos antigos ou conhecidos não apreendem mais os
problemas contemporâneos; outra expressão verbal para a criação
literária, que não é a mais mera transcrição naturalista, mas recriação
artística, transposição para o plano da arte das realidades vitais; e,
finalmente, a reação ao status quo, o combate em favor dos postulados
que apresentava objetivo da desejada reforma. (2004b, p. 13).

Os futuristas atacam veementemente as escolas literárias anteriores,


poupam apenas a escola simbolista, chegando até mesmo a considerar esta como
inspiração das atitudes do grupo.

Em 1921, chega ao Brasil Graça Aranha, vindo da Europa, e insere-se no


Modernismo. O grupo, ainda mais coeso e unido, decidido a liderar as letras e
as artes, faz os últimos ajustes ao plano semeado em 1917, a Semana da Arte
Moderna. O cenário escolhido para o intento foi o Teatro Municipal em São
Paulo, no qual se exibiriam a prosa, o verso, a pintura, a escultura, a música e a
arquitetura.

Em janeiro do ano de 1922, mais precisamente 29 de janeiro, o jornal O


Estado de São Paulo noticiava: “[...] por iniciativa do festejado escritor, Sr. Graça
Aranha, da Academia Brasileira de Letras, haverá em São Paulo uma ‘Semana de
Arte Moderna’, em que tomarão parte os artistas que, em nosso meio, apresentam
as mais modernas correntes artísticas”. (apud COUTINHO, 2004b, p.15).

Entre os dias 11 a 18 de fevereiro ocorreu o evento e durante a Semana


realizaram-se três espetáculos. O primeiro compreendeu a conferência de Graça
Aranha, com música de Ernâni Braga e poesia de Guilherme Almeida. Além
destes, outro momento escolhido para enriquecer a noite foi a música de Villa-
Lobos, e uma conferência sobre pintura e escultura de Ronald de Carvalho.

Na segunda noite do evento, insurgem ares de tumulto e irritação contra


a nova literatura e as novas manifestações de artes plásticas. Naquela noite,
Menotti del Picchia, orador do evento, apesar da insegurança e da algazarra que
se avultava, salienta em alto e bom tom:

A nossa estética é de reação. [...] Queremos luz, ar, ventiladores,


aeroplanos, reivindicações obreiras, idealismos, motores, chaminés de
fábricas, sangue, velocidade, sonho, na nossa Arte. E que o ruído de
um automóvel, nos trilhos de dois versos, espante da poesia o último
deus homérico que ficou, anacronicamente, a dormir e a sonhar, na
era do jaz-band e do cinema, com a flauta dos pastores da arcádia e os
seios divinos de Helena!. (PICCHIA apud COUTINHO, 2004b, p. 18).

140
TÓPICO 3 | AS VANGUARDAS DA EUROPA E SUA INFLUÊNCIA

Os opositores perturbam o sarau, o agito maior concentra-se durante


as apresentações declamadas ou lidas de prosa e poesia. Mario de Andrade é
fortemente vaiado. O poema de Manuel Bandeira intitulado Os sapos foi declamado
sob assobios e gritaria. Os modernistas que se expuseram foram chacoteados e
ofendidos. Leiamos a poesia:

Os sapos

Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra,


Berra o sapo-boi:
– “Meu pai foi à guerra!”
– “Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!”.

O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: – “Meu cancioneiro
É bem martelado.
.
Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos!

O meu verso é bom


Frumento sem joio
Faço rimas com
Consoantes de apoio.

Vai por cinquenta anos


Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A formas a forma.

Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas...

“Urra o sapo-boi:
– “Meu pai foi rei”
– “Foi!” – “Não foi!”
– “Foi!” – “Não foi!”

141
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
– “A grande arte é como
Lavor de joalheiro.

Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo.

“Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas:
– “Sei!” – “Não sabe!” – “Sabe!”.

Longe dessa grita,


Lá onde mais densa
A noite infinita
Verte a sombra imensa;

Lá, fugindo ao mundo,


Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é

Que soluças tu,


Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio

FONTE: (BANDEIRA, 2008, p. 44)

Entre as famílias de São Paulo, o evento repercutiu com conotação de


um acontecimento escandaloso e imoral. “Tanto que conforme testemunhas da
época, à Semana não se referiam na presença das crianças, especialmente das
meninas”. (COUTINHO, 2004b, p. 21). Apesar do apoio dos patrocinadores, os
três festivais deram prejuízo aos organizadores. A Semana ficou na história e
marca o desenvolvimento das artes e das letras brasileiras.

As notícias sobre a realização da Semana da Arte Moderna propagam-se


por todo o país. Guilherme de Almeida promove conferências em vários estados
brasileiros e difunde as ideias e postulados estéticos do movimento modernista.
Na Europa, quem divulga o nome do país é Brecheret, que é premiado em várias
de suas exposições. Oswald de Andrade, em 1924, divulga o Manifesto Pau-Brasil
em oposição à poesia de importação até o momento praticada. Leia um fragmento.

142
TÓPICO 3 | AS VANGUARDAS DA EUROPA E SUA INFLUÊNCIA

A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da


Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.

O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil.


Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação
étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.

Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado


doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa:
uma cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes
e das frases feitas. Negras de Jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil.

O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando


politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser
doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. O Império
foi assim. Eruditamos tudo.

Esquecemos o gavião de penacho.

A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos


da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária. [...]

FONTE: ANDRADE, Oswald de. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, [s. p.], 18 mar. 1924. Disponível
em: <ttp://www.mundocultural.com.br/literatura1/modernismo/brasil/1_ fase/pau_brasil.htm>.
Acesso em: 2 abr. 2011.

Observe que a proposta defendida é de uma poesia contra a cópia, uma


literatura atrelada à realidade brasileira, uma redescoberta do Brasil. O Manifesto
não somente defende uma poesia extremamente nacional, como também a prosa.

Tal intento é revelado também no romance Memórias Sentimentais de João


Miramar. Ele apresenta uma linguagem próxima à do cinema, uma técnica de
composição revolucionária para a época, que suprimiu a pontuação costumeira,
sobretudo entre os substantivos e, em estilo formado de frases curtas, o escritor
Oswald de Andrade satiriza, por intermédio de João Miramar, a burguesia
paulista.

Em 1924, Graça Aranha pronuncia na Academia Brasileira de Letras a


conferência O espírito moderno em que defende uma cultura nacional. Preconizava
que a cultura europeia poderia servir de instrumento para criar coisas novas, mas
com elementos da nossa Nação. Para Aranha, a academia é muito presa à tradição
literária estrangeira e, sendo assim, conclama a Academia a empenhar-se nessa
tarefa de aderir ao espírito moderno.

143
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

O discurso de Graça Aranha é aplaudido pelos moços, os modernistas


presentes à sessão, e mal-aceito pela maioria de seus companheiros
de cenáculo. O austero local é perturbado na sua paz pelo alarido da
juventude e os protestos dos acadêmicos mais apegados às tradições
da Casa. (COUTINHO, 2004b, p. 27).

Surgem vários movimentos, dentre os quais destaca-se o “verdamarelo”,


que refuta o manifesto de Oswald de Andrade. Atente, caro acadêmico, para o
fato de que o movimento “verdamarelo” se transforma no da “Anta”, e o “Pau-
Brasil” se transforma em “Antropofagia”, este último liderado por Oswald de
Andrade, opositor do “verdamarelismo”.

Do Manifesto antropófago, vale lembrar um trecho que contém o


trocadilho Tupi or not tupi, that is the question:

Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos,


de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de
paz. Tupi or not tupi, that is the question. Contra todas as catequeses. E contra
a mãe dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do
antropófago. Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos
postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da
psicologia impressa. O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável
entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido.
O cinema americano informará. Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados
e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados,
pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande. Foi porque nunca
tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que
era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi
do Brasil. Uma consciência participante, uma rítmica religiosa. Contra todos
os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a
mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar. Queremos a Revolução
Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas
eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre
declaração dos direitos do homem.

A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas


as girls. Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print
terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao
Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro
tecnizado de Keyserling. Caminhamos. Nunca fomos catequizados. Vivemos
através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em
Belém do Pará. Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós. Contra

144
TÓPICO 3 | AS VANGUARDAS DA EUROPA E SUA INFLUÊNCIA

o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão.


O rei-analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel, mas sem muita lábia. Fez-
se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em
Portugal e nos trouxe a lábia. O espírito recusa-se a conceber o espírito sem
o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para
o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores. Só
podemos atender ao mundo orecular. [...].

FONTE: ANDRADE, Oswald de. Revista de Antropofagia, São Paulo, ano 1, n. 1, [s. p.], maio 1928.
Disponível em: <http://www.lumiarte.com/luardeoutono/oswald/manifantropof.html>. Acesso
em: 2 abr. 2011.

Também ligada ao grupo estava a pintora Tarsila do Amaral que presenteia


Oswald de Andrade, pela passagem de seu aniversário, com um quadro. Este,
juntamente com Raul Bopp, batiza a pintura de O Abapuru, ou seja, o antropófago.

FIGURA 11 – O ABAPURU (1928), DE TARSILA DO AMARAL

FONTE: Disponível em: <http://serurbano.wordpress.com/2009/10/28/tarsila-do-amaral/>.


Acesso em: 2 abr. 2011.

145
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

FIGURA 12 – OPERÁRIOS (1933) – TARSILA DO AMARAL

FONTE: Disponível em: <http://serurbano.wordpress.com/2009/10/28/tarsila-do-amaral/>.


Acesso em: 2 abr. 2011.

A exposição antropófaga realizada no Rio de Janeiro em 1929 provocou


grande alarido, com intervenção da polícia que entrou em cena para evitar o
conflito entre os opositores e os simpatizantes de Tarsila. Apesar das críticas,
assim se manifesta Tarsila: “O movimento empolgou, escandalizou, irritou,
entusiasmou, cresceu com adesões de norte a sul do Brasil”. (AMARAL apud
COUTINHO, 2004b, p. 36).

Caro(a) acadêmico(a), as ideias e ideais dos artistas que fizeram parte do


movimento que ficou conhecido como Modernismo disseminam-se por todo o
país cada vez mais triunfante e, em meados de 1930, podemos afirmar que os
mesmos conquistaram seus direitos de expressão, tanto na prosa quanto na
poesia, assuntos que trataremos nos próximos tópicos.

4 O MODERNISMO NA POESIA
Pensar em modernismo na poesia significa dizer que o poeta tem que
eleger suas próprias regras, uma vez que não existem regras prefixadas. No que
tange à poesia, o Modernismo comumente é dividido em gerações ou fases, das
quais veremos suas características e alguns dos seus representantes.

Como vimos, o movimento modernista começou em São Paulo e os


envolvidos almejavam uma poesia plena, acabada, que se manifestava em todas
as suas potencialidades, tanto no que diz respeito aos temas como no tocante à
fórmula. O desejo era o de libertação, uma liberdade conclamada e apresentada
na Semana da Arte Moderna: libertar a poesia das fórmulas acadêmicas, em
que o poeta expressasse ao máximo a originalidade, liberdade de forma e temas

146
TÓPICO 3 | AS VANGUARDAS DA EUROPA E SUA INFLUÊNCIA

brasileiros. Segundo Coutinho (2004b), tecnicamente, a originalidade se exprimiu


com o verso livre, com a associação e supervisão de ideias, a partir do uso de
coloquialismos, com assuntos que refletiam o sentimento nacional. Dentre os
poetas da primeira fase do Modernismo, a geração de 22, como fora denominada,
destacamos Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia, Cecília
Meireles e Manuel Bandeira.

O poeta Mário Raul de Morais de Andrade nasceu em São Paulo em 1893,


estudou no Conservatório Dramático e Musical daquela cidade e estreou como
poeta em 1917, cultivando todos os gêneros. No livro, Há uma gota de sangue em
cada poema, algumas das poesias, ao contrário de revelar renovação, eram poesias
parnasianas. O escritor, por influência do contexto da ocasião e dos artistas
plásticos como Anita Malfatti e Breccheret, inclina-se às ideias modernistas e, em
1922, escreve Pauliceia Desvairada, primeiro documento de poesia modernista
brasileira. Nesta obra, Andrade difunde as bases estéticas do Modernismo. Os
temas abordados fazem alusão à cidade de São Paulo, a metrópole cosmopolita,
provinciana, egoísta com sua população heterogênea. Assinala tais ideias no
Prefácio Interessantíssimo, uma espécie de programa no qual menciona as diferenças
entre a poesia futurista e a moderna. Ao contrário dos futuristas europeus que
exaltam as cidades, as máquinas e a tecnologias, Mário questiona aspectos da
metrópole, problematizando o efeito da industrialização, o empreendedor, os
imigrantes e a vida urbana.

Além disso, no prefácio Mário de Andrade exerce o seu direito à liberdade,


como se pode ler no trecho que segue:

Minhas reivindicações? Liberdade. Uso dela; não abuso... sei embridá-


la nas minhas verdades filosóficas e religiosas; porque verdades filosóficas,
religiosas, não são convencionais como a Arte, são verdades. Tanto não abuso!
[...] A poesia... tende a despojar o homem de todos os seus aspectos contingentes
e efêmeros, para apanhar nele a humanidade [...] Sou passadista, confesso.
(ANDRADE, 1980, p. 14).

Apresenta a teoria da palavra com liberdade, os princípios de colagem,


característica da pintura vanguardista, a elisão, a linguagem simples e coloquial,
os propositais erros de ortografia e gramática, meios utilizados pelo autor para
traduzir o homem da grande cidade, o novo ambiente da poesia moderna.
Vejamos:

INSPIRAÇÃO

São Paulo! comoção da minha vida...


Os meus amores são flores feitas de original...
Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e Ouro...
Luz e bruma... Forno e inverno morno...
Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes...
Perfumes de Paria... Arys!

147
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!


São Paulo! comoção de minha vida...
Galicismo a berrar nos desertos da América!

FONTE: (ANDRADE, 1972, p. 37)

Em 1925, Mário lança o ensaio A Escrava que não é Isaura. Neste, o autor
retoma e aprofunda suas considerações sobre a arte moderna. Além disso,
tece críticas a Marinetti devido ao emprego exagerado dos novos recursos e
preceitos do movimento, o que torna a obra destituída de sentimento e ou de
inclinação interpretativa. Leia um trecho do poema. A Meditação sobre o Tietê,
escrito em 1945, ano da morte do autor, no qual reafirma sua crítica e sua
crença na poesia moderna.

A meditação sobre o Tietê

Água do meu Tietê,


Onde me queres levar?
– Rio que entras pela terra
E que me afastas do mar...
É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirável
Da Ponte das Bandeiras o rio
Murmura num banzeiro de água pesada e oleosa.
É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras,
Soturnas sombras, enchem de noite tão vasta
O peito do rio, que é como se a noite fosse água,
Água noturna, noite líquida, afogando de apreensões
As altas torres do meu coração exausto. De repente
O óleo das águas recolhe em cheio luzes trêmulas,
É um susto. E num momento o rio
Esplende em luzes inumeráveis, lares, palácios e ruas,
Ruas, ruas, por onde os dinossauros caxingam
Agora, arranha-céus valentes donde saltam
Os bichos blau e os punidores gatos verdes,
Em cânticos, em prazeres, em trabalhos e fábricas,
Luzes e glória. É a cidade... É a emaranhada forma
Humana corrupta da vida que muge e se aplaude.
E se aclama e se falsifica e se esconde. E deslumbra.
Mas é um momento só. Logo o rio escurece de novo,
Está negro. As águas oleosas e pesadas se aplacam
Num gemido. Flor. Tristeza que timbra um caminho
[de morte.
É noite. E tudo é noite. E o meu coração devastado
É um rumor de germes insalubres pela noite insone e
[humana.

FONTE: (ANDRADE, 1992, p. 79)

148
TÓPICO 3 | AS VANGUARDAS DA EUROPA E SUA INFLUÊNCIA

Caro acadêmico, no intuito de melhor compreender o espírito desse


grandioso poeta, escolhemos para leitura e informação parte da entrevista
concedida a Homero Senna, no ano de 1945.

[...] Senna: E que destino prevê para a Poesia? Pensa que ela se tornará
cada vez mais livre ou a tendência será para voltarmos aos moldes antigos?

Mário: Penso que ela se tornará cada vez mais livre, mas no sentido
de libertação de escolas e de definições exclusivistas. Essa liberdade é que lhe
permitirá renovar o que você chama de moldes antigos.

Senna: Mas, voltaremos à metrificação e à rima?

Mário: Não se trata de voltar a processos de poética que jamais foram


abandonados. Trata-se apenas de adquirir maior equilíbrio entre a realidade de
um determinado estado de poesia e os elementos de poética que lhe sejam mais
adequados. Era natural que a grande invenção do verso livre nos intoxicasse
um bocado. Intoxicou demais a muitos... Não há dúvida que na poesia dos
últimos trinta anos o verso livre predominou, um pouco por moda, um pouco
por fadiga, que levou os poetas menores, e os sem poesia nenhuma, a dormirem
dentro da sua aparente facilidade.

Senna: Você, pessoalmente, pretende voltar à métrica?

Mário: Se não me engano, jamais a abandonei. Em todos os meus livros,


mesmo no mais impressionista de todos, o Losango Cáqui, há poemas em
versos medidos.  Aliás, no prefácio de Pauliceia Desvairada, eu já afirmava que
o verso livre para mim vinha se acrescentar aos outros. E aludindo à guerra
de 1914, recente então, dizia que, nesse caso dos metros, eu não era apenas
aliado, mas, como a Argentina, ficava neutro para me enriquecer. Mas de fato
ultimamente tenho metrificado muito.

Senna: Quer dizer que não considera a rima uma prisão?

Mário: A rima é uma prisão para os escravos da rima, da mesma forma


que é uma fornecedora de ideias para os que não têm ideias. Também o metro é
uma prisão para os que contam sílabas nos dedos e não têm senso rítmico, mas
é de uma liber­dade expressional extraordinária para os que sabem metrificar.
Tudo depende de não erigir rima nem métrica em preconceito de ourivesaria.
Ou em preconceito, simplesmente.   Nestes poemas da Lira Paulistana eu
rimei quando a rima se impôs naturalmente, ou exigiu procura normal. Mas
quando a rima não veio, ou necessitei de uma palavra que não rimava, deixei
muito sinceramente de rimar. Enfim: metro e rima não significam nenhuma
volta ao passado, embora sejam perigos graves atualmente, porque podem
induzir muito o poeta leviano e sem técnica, ou sem poesia, a voltar também
ao estilo e ao espírito de certas escolas poéticas já ultrapassadas. Especialmente

149
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

ao Parnasianismo, ainda cheiroso entre nós. E ainda são um perigo sempre,


porque levam o artista a afeiçoar determinados ritmos e a dormir dentro deles.
[...]

FONTE: Entrevistado por Homero Senna e publicado originalmente na revista d’O Jornal”, de
18/02/1945 e republicado no livro SENNA, Homero. República das letras. 3. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1996.

Em livros de ensaios, entrevistas, artigos críticos e cartas a amigos, Mário


de Andrade instituiu suas concepções sobre estética, de modo particular sobre
a poesia. O poeta acentua uma das características do Modernismo: a ruptura
com as tradições acadêmicas, pela liberdade de criação e de pesquisa estética e
também enfatiza a busca e valorização de nossas tradições culturais ao afirmar
que “como os verdadeiros poetas de todos os tempos, como Homero, como
Vergílio, como Dante, os que cantam [os poetas modernos] é a época em que
vivem. E é por seguirem os velhos poetas que os poetas modernistas são tão
novos”. (ANDRADE, 1980, p. 224). A tradição, então, assume grande importância,
é elemento imprescindível à afirmação da identidade nacional preconizada pelos
modernistas.

Caro acadêmico, não pense, contudo, que somente de críticas, ensaios e


discussões sobre as características essenciais da poesia moderna se constituíram
os escritos de Mário de Andrade. Leia a poesia que segue e perceba o que é, para
Andrade, o essencial à vida.

Eu sou trezentos:

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,


As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as milhores palavras,


E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,


Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.

FONTE: Andrade apud Jordão e Oliveira, 1999, p. 168

O escritor Mário de Andrade faleceu em 1945. Foi de grande importância


ao movimento do modernismo tanto pela contribuição teórico-crítica quanto

150
TÓPICO 3 | AS VANGUARDAS DA EUROPA E SUA INFLUÊNCIA

pelas composições artísticas que enriquecem a literatura brasileira. Daí a dizer


que seu nome perpetua-se na tradição como o “papa do modernismo”.

Na poesia modernista é Oswald de Andrade, o descobridor, aglutinador


e participante do grupo paulista que, em Paris, conheceu as ideias futuristas de
Marinetti antes mesmo da Semana da Arte Moderna. Após 1922, foi o precursor
dos movimentos Pau-Brasil e Antropofagia. O poeta é paulista de nascimento
(1890), fez faculdade de Direito, fundou o Pirralho, jornal de circulação da época,
e também foi um dos incansáveis organizadores da Semana da Arte Moderna.
Pelas suas composições, podemos adjetivá-lo com as seguintes palavras: cronista,
contista, poeta e romancista.

Seus escritos são permeados pelo deboche, pela ironia e pela crítica aos
meios acadêmicos e à classe burguesa. Seu conceito de Modernismo divergia
daquele pregado pelos integrantes do grupo “Verdamarelo”. Defendia a
valorização das origens brasileiras, do passado histórico e cultural, de que extraía
parte de seus temas, porém conferindo-lhes uma visão crítica.

No poema que segue Oswald de Andrade faz uso da intertextualidade,


a partir da Carta de Descobrimento. Vejamos como o poeta busca a passagem da
história do Brasil e a reconta a seu modo.

A descoberta

Seguimos nosso caminho por este mar de longo


Até a oitava da Páscoa
Topamos aves
E houvemos vista de terra
os selvagens
Mostraram-lhes uma galinha
Quase haviam medo dela
E não queriam por a mão
E depois a tomaram como espantados
primeiro chá
Depois de dançarem
Diogo Dias
Fez o salto real
as meninas da gare
Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha.

FONTE: (ANDRADE, 1971)

151
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

Nas poesia que segue o autor revela o colorido dialetal, a dinamicidade


da língua portuguesa, quando da colocação pronominal.

Pronominais

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro

FONTE: (ANDRADE apud NICOLA, 2003, p. 167)

Observe que seus poemas são breves, fazem uso da linguagem coloquial e
sem preocupação com a gramática. A poesia oswaldiana marcou um movimento
da cultura brasileira na década de 60, o Concretismo, que reaparecerá no
Tropicalismo. É um escritor que ficou conhecido pelo espírito irreverente e
combativo, pela sua atuação intelectual, considerada basilar na cultura brasileira
do início do século.

Outro representante da época modernista é Paulo Menotti del Picchia,


que nasceu em São Paulo em 1892. Sua obra de maior repercussão foi Juca Mulato
e, além desta, escreveu romances, contos e crônicas, peças de teatro, estudos
políticos e literatura infantil. Menotti del Picchia destacou-se no movimento
modernista, do qual participou ativamente, antes e depois da Semana de Arte
Moderna.

Fez parte do grupo “verdamarelo”, opondo-se aos movimentos “Pau-


Brasil” e “Antropofagia”, de Oswald de Andrade. Defendeu também os ideais
do “Grupo da Anta”, que excediam os propósitos verdamarelistas. Sua obra
se reveste de colorido, é rica em imagens, abusa dos elementos plásticos, de
efeitos pitorescos e verbais. Para ilustrar a maneira de como o autor se expressa,
escolhemos para leitura a primeira parte do livro Juca Mulato, escrito em 1917.

Juca Mulato nasceu em Itapira, cidade da zona mogiana do estado de


São Paulo, em 1917. Seu pai, recém-formado em Direito e fazendeiro nessa
cidade, acabara de publicar na Capital paulista seu poema Moisés. Exercia
agora uma vaga advocacia numa terra quase sem demandas e dirigia o jornal
local, Cidade de Itapira, em cujos prelos imprimiu o primeiro exemplar do seu
poema.

152
TÓPICO 3 | AS VANGUARDAS DA EUROPA E SUA INFLUÊNCIA

Foi no ambiente da fazenda Santa Catarina da Capoeira do Meio e na


paz e no silêncio do parque que se debruça sobre o Cubatão, bairro no qual
serpeja o Rio da Penha, em cujas margens bivacavam ciganos, que a imagem do
caboclo do Mato e sua alma lírica empolgaram o advogado-poeta.

E a Filha da Patroa?

Essa, ainda hoje, nascerá no coração de cada leitor do poema quando


haja atingido a idade do amor. É uma ideia e um sonho. Continuará a lembrar,
vida afora, a criatura que teria sido o complemento do seu ser, realização
sempre sonhada e impossível de um perfeito amor ideal.

Compõem o poema o Céu e a Terra. Todas as coisas telúricas e celestes,


o chão que abriga o homem e o alimenta e o que há no mistério do azul quando
ele olha para as estrelas. Ali descobre uma nova e mágica dimensão do universo:
os animais, como o prudente e confidente Pigarço e os lerdos bois pensativos e
decorativos; o galo, clarim do dia que ilumina as coisas para a vida e oferece as
maravilhas do mundo ao homem que acorda.

A fala do “Juca” é coloquial e divina. Sai da boca do homem e vem da


conexão mágica que ele tem com as coisas. É que o universo é um eterno diálogo
de vozes mudas. Cabe-lhe comunicá-las às demais criaturas. Ele é o intérprete
da formidável comunhão espiritual que nos envolve numa harmoniosa coesão
de vivências e mistérios regida pela fatalidade dessa divina força que é o amor.

(“...Che muove il sole l`altre stelle...”)

Germinal
Nuvens voam pelo ar como bandos de garças,
Artista boêmio, o sol, mescla na cordilheira
pinceladas esparsas
de ouro fosco. Num mastro, apruma-se a bandeira
de São João, desfraldando o seu alvo losango.
Juca Mulato cisma. A sonolência vence-o
Vem, na tarde que expira e na voz de um curiango,
o narcótico do ar parado, esse veneno
que há no ventre da treva e na alma do silêncio.
Um sorriso ilumina o seu rosto moreno.
No piquete relincha um poldro; um galo álacre
tatala a asa triunfal, ergue a crista de lacre,
clarina a recolher entre varas de cerdos e
mexem-se ruivos bois processionais e lerdos
e, num magote escuro, a manada se abisma na treva.
Anoiteceu.
Juca Mulato cisma.

FONTE: (PICCHIA, 1997, p. 12)

153
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

Paulo Menotti del Picchia, além de jornalista militante, exerceu inúmeros


cargos públicos. Foi o primeiro diretor do Departamento de Imprensa e
Propaganda do Estado de São Paulo; deputado estadual e federal, membro da
Constituinte do Estado de São Paulo. Recebeu em 1968 o título de Intelectual do
Ano e aclamado “Príncipe dos Poetas Brasileiros”, em 1982.

Do grupo de poetas cariocas, destacamos Manuel Bandeira, que nasceu


em Recife e passa a morar em São Paulo para estudar engenharia. Adoece e,
então, viaja em 1912, à Suíça no intuito de tratar-se da tuberculose. Lá conhece os
poetas pós-simbolistas. Publica em 1917, o livro de estreia A Cinza das Horas, de
influência parnasiana e simbolista, conforme podemos observar no poema que
segue:

Desencanto

Eu faço versos como quem chora


De desalento, de desencanto
Fecha meu livro se por agora
Não tens motivo algum de pranto

Meu verso é sangue, volúpia ardente


Tristeza esparsa, remorso vão
Dói-me nas veias amargo e quente
Cai gota a gota do coração.

E nesses versos de angústia rouca


Assim dos lábios a vida corre
Deixando um acre sabor na boca

Eu faço versos como quem morre.


Qualquer forma de amor vale a pena!!
Qualquer forma de amor vale amar!

FONTE: (BANDEIRA, 2008, p. 17)

Bandeira escreve poesia e prosa, faz crítica literária e leciona na Faculdade


Nacional de Filosofia, no Rio de Janeiro. Em 1919, publica a obra Carnaval, na qual
inicia a libertação das formas fixas e opta pela liberdade formal, que se tornaria
uma das marcas registradas de seus escritos. Por discordar dos ataques feitos
aos parnasianos e simbolistas, não participa abertamente da Semana de Arte
Moderna, mas lembre-se de que seu poema Os Sapos foi declamado por Ronald
de Carvalho e provocou reações radicais.

Em 1924, lança O Ritmo Dissoluto, mas é com a publicação de Libertinagem,


em 1930, que o poeta se apresenta totalmente integrado ao espírito modernista, a
exemplo do poema Vou-me embora pra Pasárgada, no qual o autor escreve sobre um
suposto lugar ideal. Vejamos:

154
TÓPICO 3 | AS VANGUARDAS DA EUROPA E SUA INFLUÊNCIA

Vou-me embora pra Pasárgada


Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada


Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que eu nunca tive

E como farei ginástica


Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau de sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo


É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste


Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
– Lá sou amigo do rei –
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

FONTE: (BANDEIRA, 2008, p. 100)

155
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

Como você pode observar, na poesia em questão aparecem temas e


personagens, tais como a tecnologia, a infância, a morte, mendigos, prostitutas,
dentre outros. O poema ratifica a conquista da liberdade formal, em que a riqueza
poética reside na variedade, por criar efeitos surpreendentes. Podemos dizer que
Pasárgada é um lugar para se fugir desta realidade e adentrar em outra, a sonhada
ou a idealizada. O próprio Bandeira explica tal conceito:

“Vou-me embora pra Pasárgada” foi o poema de mais longa gestação


em toda minha obra. Vi pela primeira vez esse nome de Pasárgada quando
tinha os meus dezesseis anos e foi num autor grego. [...] Esse nome de
Pasárgada, que significa “campo dos persas”, suscitou na minha imaginação
uma paisagem fabulosa, um país de delícias [...]. Mais de vinte anos depois,
quando eu morava só na minha casa da Rua do Curvelo, num momento de
fundo desânimo, da mais aguda doença, saltou-me de súbito do subconsciente
esse grito estapafúrdio: “Vou-me embora pra Pasárgada!”. Senti na redondilha
a primeira célula de um poema [...].

FONTE: (BANDEIRA, 2008, p. 13)

No poema intitulado Poética, demonstra preocupação em definir a poesia,


explora a fala cotidiana, coloquial e popular com versos livres abandonando o
tradicional.

Poética

Estou farto do lirismo comedido


Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres etc.
Quero antes o lirismo dos loucos

156
TÓPICO 3 | AS VANGUARDAS DA EUROPA E SUA INFLUÊNCIA

O lirismo dos bêbedos


O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

FONTE: (BANDEIRA, 1993, p. 83)

Manuel Bandeira contribuiu para apresentar um novo olhar sobre o fazer


poético e, através de sua inquietação com relação às normas e regras, lançou mão
da liberdade de expressão e da linguagem coloquial.

Outra representante desse período é Cecília Meireles, uma das maiores


poetisas de nossa história. Nasceu em 1901, no Rio e, além de poetisa, foi professora,
jornalista e cronista. Escreveu artigos sobre política, educação e cultura. A estreia
de Cecília Meireles na literatura foi com a obra intitulada Espectros (1919), uma
coleção de 17 sonetos de cunho parnasiano.

Cecília defendeu a ideia de nação menos ufanista, colecionou inimigos e


desafetos por conta de suas convicções sobre liberdade, as quais transformaram
a jovem em uma grande figura feminina do Modernismo. Na poesia de Cecília
Meireles, o tempo e a brevidade são presenças constantes. Quanto ao plano
estilístico, a autora emprega uma linguagem carregada de musicalidade, por
vezes mais importante que o próprio sentido dos versos, conforme podemos
observar:

Motivo

Eu canto porque o instante existe


e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,


não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.


Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
– mais nada.

FONTE: (MEIRELES, 1994, p. 11)

157
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

As temáticas de Cecília Meireles revelam uma difusa melancolia,


abandono e solidão. O tempo é marcado pela brevidade. Nisto residiria o vínculo
da autora com a modernidade. Segundo Coutinho, “[...] no conjunto de alguns
livros, e apenas alguns deles já chegariam para isso, Cecília Meireles é a mais alta
figura que já surgiu na poesia feminina brasileira, e, sem distinção de sexo, um
dos grandes nomes de nossa literatura”. (2004b, p. 127).

Em Minas Gerais, um dos maiores representantes desse período é, sem


dúvida, Carlos Drummond de Andrade. O jovem escritor participou ativamente
da renovação da literatura brasileira do século XX com competência e criatividade,
legando-nos uma vasta obra que ultrapassa os 40 livros, entre poesias, crônicas e
artigos. O seu livro Alguma Poesia, de 1930, possibilita vislumbrar um novo rumo
à poesia brasileira contemporânea.

UNI

Carlos Drummond de Andrade é poeta, contista e cronista. Nasceu em 1902,


em Itabira e integrou o grupo que fundou A Revista, um dos veículos mais importantes do
Modernismo mineiro, uma publicação de intenção nacionalista. Exerceu também a chefia
de gabinete do Ministério da Educação no Rio de Janeiro. Ligado ao Partido Comunista
Brasileiro, no início dos anos 40, escreve poesias de fundo social, como Sentimento do
Mundo (1940) e A Rosa do Povo (1945). Em Claro Enigma (1951), expressa o vazio da vida
humana. Entre suas obras estão Lição de Coisas (1962), Os Dias Lindos (crônicas, 1978) e
Boca de Luar (crônicas de 1984).
FONTE: ALMANAQUE ABRIL CULTURAL. São Paulo: Abril, 1997.

Drummond preconizava a nacionalização a partir do cotidiano e o


transcendental para além da realidade. Suas poesias são marcadas pela sonoridade,
pelo humor e pela malícia, com versos que correspondem à liberdade métrica.
Leia uma de suas mais conhecidas poesias.

José

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, Você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,

158
TÓPICO 3 | AS VANGUARDAS DA EUROPA E SUA INFLUÊNCIA

Você que faz versos,


que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,


está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, - e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...

159
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

Mas você não morre,


você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho do mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?

FONTE: (ANDRADE, 1998, p. 20)

Leiamos o que Marco Lucchesi nos diz sobre o poeta:

Já nos apossamos, por usucapião, de uma pequena parte da gleba


drummondiana [...]. Assim, pois, em pleno desespero, ou quase,
lembramos de José, quando não somos correspondidos no amor,
recorremos à “Quadrilha”, se enfrentamos um obstáculo, a imagem
mais eficaz de que dispomos é a “pedra no meio de caminho”, e se o
mundo e o coração andam descompassados, socorre-nos a rima com
Raimundo, e todas as plausíveis soluções. Boa parte dessa forma de
sofrer o mundo já se tornou drummondiana. Dessas águas e terras não
podemos mais prescindir. (2008, p. 12).

Observe as interrogações presentes no poema. Elas parecem sugerir uma


personagem, que pode ser outro, diferente, oposto. É como se as inquietações
que o assaltam lhe impusessem um ir e vir constante, uma aguçada percepção
dos problemas sociais. O texto nos sugere certa falta de sentido para a vida.
Para Drummond, a vida é objeto de reflexão, cuja preocupação e desassossego
impedem o repouso, a paz, a tranquilidade. Parece haver sempre um obstáculo, a
exemplo do que ocorre em:

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra


tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento


na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho


tinha uma pedra

160
TÓPICO 3 | AS VANGUARDAS DA EUROPA E SUA INFLUÊNCIA

Tinha uma pedra no meio do caminho


no meio do caminho tinha uma pedra.

FONTE: (ANDRADE, 1998, p. 196)

O poema em questão foi publicado em 1928, na Revista de Antropofagia, e


logo suscitou perplexidade, pelo uso do verbo ter no lugar do haver, e da repetição
do verso “tinha uma pedra no meio do caminho”. Segundo Mello (2008, p. 26),

[...] sua recepção escandalosa por muito tempo ocultou aquilo que
havia ali naqueles poucos versos repetitivos. Drummond chegou
mesmo a organizar um volume com toda a crítica feita em torno de
No meio do caminho. Uma desforra do poeta, que juntou neste livro
principalmente textos em que o atacavam abertamente, mas também
aqueles que analisavam o poema na tentativa de compreendê-lo.

O poeta Drummond divide a obra intitulada Antologia Poética (1962)


em temáticas como: terra natal, família, amigos, embate social, conhecimento
amoroso e temas recorrentes em muitos de seus escritos. Na poesia que segue,
o poeta faz menção ao conhecimento amoroso, transformado no desespero dos
amores extintos, espectros que assombram o apaixonado. Vejamos.

Aparição amorosa

Doce fantasma, por que me visitas


como em outros tempos nossos corpos se visitavam?
Tua transparência roça-me a pele, convida
a refazermos carícias impraticáveis: ninguém nunca
um beijo recebeu de rosto consumido.
Mas insistes, doçura. Ouço-te a voz,
mesma voz, mesmo timbre,
mesmas leves sílabas,
e aquele mesmo longo arquejo
em que te esvaías de prazer,
e nosso final descanso de camurça.
Então, convicto,
ouço teu nome, única parte de ti que não se dissolve
e continua existindo, puro som.
Aperto... o quê? a massa de ar em que te converteste
e beijo, beijo intensamente o nada.
Amado ser destruído, por que voltas
e és tão real assim tão ilusório?
Já nem distingo mais se és sombra
ou sombra sempre foste, e nossa história
invenção de livro soletrado
sob pestanas sonolentas.

161
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

Terei um dia conhecido


teu vero corpo como hoje o sei
de enlaçar o vapor como se enlaça
uma ideia platônica no espaço?
O desejo perdura em ti que já não és,
querida ausente, a perseguir-me, suave?
Nunca pensei que os mortos
o mesmo ardor tivessem de outros dias
e no-lo transmitissem com chupadas
de fogo aceso e gelo matizados.
Tua visita ardente me consola.
Tua visita ardente me desola.
Tua visita, apenas uma esmola.

FONTE: ANDRADE, Carlos Drummond de. Disponível em: <http://www.paralerepensar.com.br/


drummond.htm>. Acesso em: 2 abr. 2011.

Por vezes, perpassava em seus textos um erotismo malicioso e


despreocupado e, em outros, “um discurso aparentemente humilde e direto, entre
todo o jogo retórico do mais elevado artesanato, a onomatopeia, o arcadismo, o
neologismo, a montagem verbal, a alusão, a citação erudita, a intertextualidade,
a autocitação”. (STEGAGNO-PICCHIO, 2004, p. 558). Os seus escritos são um
convite para a leitura, para entender o mundo presente, uma vez que sua poesia
continua atual.

Caro acadêmico, de modo geral, os críticos literários afirmam que o


Modernismo vigorou no Brasil até 1930. A data é aproximada: para Tristão de
Athayde a data do término do Modernismo é 1932, período em que o Modernismo
cede espaço ao Pós-Modernismo. Segundo Coutinho,

[...] variam os motivos para que se tome 1930, em média, como ano
de encerramento do Modernismo: para Mário de Andrade, porque
esse movimento foi essencialmente destruidor, e a partir daquele ano
se pode começar a falar em construção; para outros porque morre o
primitivismo paulista e começa a prevalecer maior preocupação com
o homem do que com a simples paisagem. (2004b, p. 173).

Há que se considerar que uma das características marcantes do


Modernismo era o desejo de atualização da poesia brasileira, adequando-a às
correntes vanguardistas, o intento era o de praticar uma poesia atual. Ainda
segundo Coutinho, não há como dar por terminado o Modernismo e dar como
estreado o Pós-Modernismo, pois ocorre que o Modernismo possui fases
distintas: a primeira confere a ruptura com os moldes consagrados; a segunda,
a partir de 1930 que passa a retratar uma preocupação com o homem em si,
como ser social. Dentre esses poetas que assim procederam destacamos Murilo
Mendes (1901-1975).

162
TÓPICO 3 | AS VANGUARDAS DA EUROPA E SUA INFLUÊNCIA

Murilo Mendes chegou perto do ideal de uma arte antropofágica


preconizada por Oswald de Andrade. Em sua obra, prestigiou e representou a
cultura e a história brasileira. O escritor abarca questões estéticas que marcaram
os períodos de 1920 até meados de 1970 do Brasil e na Europa. No Brasil, Murilo
Mendes é considerado pela crítica um dos poetas brasileiros mais importantes do
século XX.

O poeta, mineiro de Juiz de Fora, desde a juventude apresenta uma ligação


com a poesia e a arte em geral. No Rio de Janeiro, na década de 1920, conhece
aquele que marcaria sua poética, Ismael Nery. Apesar de não ter participado
ativamente da Semana de Arte Moderna em São Paulo, Murilo Mendes já se
mostra interessado nas transformações artísticas que ocorriam e, então, começa
a entrar em contato com aqueles movimentos como o cubismo e o surrealismo.
A obra Poemas, publicada em 1930, marcaria toda sua caminhada literária. Nesta,
aparecem os poemas-piada, a paródia como, por exemplo, a que segue:

Canção do exílio

Minha terra tem macieiras da Califórnia


onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil-réis a dúzia.

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade


e ouvir um sabiá com certidão de idade!

FONTE: (MENDES, 1999a, p. 87)

Na poesia em questão, a partir do famoso poema romântico de Gonçalves


Dias, Murilo exerce a intertextualidade com ironia, apontando os problemas da
sua pátria e a saudade que o aflige em terras estrangeiras.

É considerado poeta voltado para o surrealismo. Demonstra um caráter


desafiador e denuncia a presença do homem em um constante dilema espírito
versus matéria, o que se refletirá em vários dos seus escritos. Por meio da
linguagem, o poeta:

163
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

[...] tenta elucidar pelo recurso ao arbítrio iluminador da metáfora, pela


agressividade dos vocábulos contrastantes, pela formulação mágica
de imagens de categoria simbólica. Embora algumas concessões ao
humor e à sátira, expedientes então recentemente deflagrados pelo
modernismo, Poemas já abre na ambiguidade das relações do material
poético, em que a preocupação com a essencialidade do homem busca
resolver-se pelo defrontar a peito aberto entre a lucidez e o delírio,
a realidade e o mito, as proposições ético-ontológicas do desafio
existencial. (ARAÚJO, 1972, p. 25).

O Visionário, publicado em 1941, é a obra que mais representa sua ligação


com o surrealismo: “A postura surrealista se acentua, o que é indicado já no título,
sobretudo com o recurso a imagens típicas da estética surrealista”. (GUIMARÃES,
1993, p. 36), um surrealismo que pode ser constatado a partir do uso de palavras
de campos semânticos distintos e imagens contraditórias.

Aproximadamente, em 1934, após a morte do amigo Ismael Nery, o poeta


decide converter-se definitivamente ao catolicismo, revelando as mudanças da
sociedade em relação à questão religiosa. Ao amigo Nery, Murilo escreve:

Saudação a Ismael Nery

Acima dos cubos verdes e das esferas azuis


um Ente magnético sopra o espírito da vida.
Depois de fixar os contornos dos corpos
transpõe a região que nasceu sob o signo do amor
e reúne num abraço as partes desconhecidas do mundo.
Apelo dos ritmos movendo as figuras humanas,
solicitação das matérias do sonho, espírito que nunca descansa.
Ele pensa desligado do tempo,
as formas futuras dormem nos seus olhos.
Recebe diretamente do Espírito
a visão instantânea das coisas, ó vertigem!
penetra o sentido das ideias, das cores, a tonalidade da Criação,
olho do mundo,
zona livre de corrupção, música que não para nunca,
forma e transparência.

FONTE: (MENDES, 1999a, p. 115)

164
TÓPICO 3 | AS VANGUARDAS DA EUROPA E SUA INFLUÊNCIA

UNI

Após a “morte de Deus” proclamada por Nietzsche, muitos cristãos têm sua
posição religiosa abalada. O avanço das tecnologias, o homem sendo o criador de suas
máquinas, enfim, a evolução frenética que modificava o pensamento humano ganham
dimensões que ultrapassam a simplicidade dos mandamentos cristãos. Com isso, o homem
passa a se ver como algo solitário em meio a tudo, a todas as coisas. A presença até então
de um deus, que tudo vê e a todos controla, passa a ser substituída por um vazio, por uma
sensação jamais experimentada. É nessa categoria que se encontra Murilo Mendes: um
poeta a serviço da “restauração da poesia em Cristo”, como ele mesmo queria que as obras
dessa fase fossem denominadas.

FONTE: JACOMETTI, Nágela Fernanda. Murilo Mendes: leitor de Apollinaire.


2009, p. 71. Disponível em: http://www.athena.biblioteca.unesp.br/exlibris/bd/
bar/33004030016P0/2009/jacometti_nf_me_arafcl.pdf

Murilo Mendes apresenta em seus escritos o uso de fragmentações


poéticas, colagens e sinestesia, e revela temas como a preocupação social, a
tradição, a mulher e a religião. As obras do poeta são marcadas pela diversidade
decorrente das várias transformações por que passou, daí a dificuldade de se
estabelecer uma principal. Um dos escritos mais representativos desta fase de
Murilo estão reunidos em Tempo e Eternidade (1935). No poema que segue, reflete
sobre o mundo num contexto de duas grandes guerras, pelas quais chorava a
eternidade, como você mesmo poderá observar:

Filiação

Eu sou da raça do Eterno,


Fui criado no princípio
E desdobrado em muitas gerações
Através do espaço e do tempo.
Sinto-me acima das bandeiras,
Tropeçando em cabeças de chefes.
Caminho no mar, na terra e no ar.
Eu sou da raça do Eterno,
Do amor que unirá todos os homens:
Vinde a mim, órfãos da poesia,
Choremos sobre o mundo mutilado.

FONTE: (MENDES, 1999b, p. 250)

Na obra Contemplação de Ouro Preto (1954), Murilo tematiza a história


da cidade mineira, se dedica a descrever um espaço geográfico abordando seus
elementos culturais. Leia o poema que segue:

165
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

Montanhas de Ouro Preto

A Lourival Gomes Machado

Desdobram-se as montanhas de Ouro Preto


Na perfurada luz, em plano austero.
Montes contempladores, circunscritos,
Entre cinza e castanho, o olhar domado

Recolhe vosso espectro permanente.


Por igual pascentais a luz difusa
Que se reajusta ao corpo das igrejas,
E volve o pensamento à descoberta

De uma luta antiquíssima com o caos,


De uma reinvenção dos elementos
Pela força de um culto ora perdido,

Relíquias de dureza e de doutrina,


Rude apetite dessa cousa eterna.

FONTE: (MENDES, 1999b, p. 489)

Sob o impacto da Segunda Guerra Mundial, escreveu poemas que


expressavam o horror da situação, às vezes por meio de imagens, às vezes de
forma mais direta. Como forma de exemplificar tal questão, vejamos o poema que
se encontra em Mundo Enigma, de 1942:

Diurno Cruel
1
Servida a sinfonia, poderíamos nos sentar.
Cruel é o azul: de um buquê de vidas
Surge a guerra.
Sinistro planejamento...
Todos pisam em crianças que foram.
2
Miséria, diamante azul, abandono.
Flores despojadas da vida essencial:
Ai que o pensamento da guerra
É para impedir a sede
E acelerar
A crucificação.

FONTE: (MENDES, 1999b, p. 376)

166
TÓPICO 3 | AS VANGUARDAS DA EUROPA E SUA INFLUÊNCIA

Este poema possui imagens que retratam a guerra a partir do seu


surgimento: O buquê de flores causa a contradição e explicita as diferenças. O
resultado do combate é a “crucificação”, preço que se paga com a vida.

Em seu livro Tempo Espanhol (1959), já é possível perceber uma linguagem


mais direta que, segundo Haroldo de Campos:

Nessa semântica de concreções assim atingida pela última poesia de


Murilo Mendes, como se há de reparar, até os temas metafísicos do
poeta (que, é preciso que se diga, sempre tendeu a uma religiosidade
militante, de padreoperário, antes que ao misticismo de teor
contemplativo) se convertem em signos de física rigorosidade: seu
anjo é matemático, sua cruz é geométrica, sua morte é um tempo físico.
(1967, p. 62, grifos no original).

Ao prefaciar o livro Tempo Espanhol, Júlio Castañon Guimarães afirma que


Murilo Mendes concentra questões e estabelece conexões com diversos elementos.
Tal processo sinaliza que as mudanças não são bruscas e as diferentes etapas não
são isoladas e nem excludentes. No livro em questão, a poesia é de caráter mais
reflexivo, o poeta recorre à ausência de rimas, a uma métrica não constante.

Ainda segundo Guimarães, nessa linha de mudanças em que passou


o discurso poético de Murilo Mendes, Tempo Espanhol chama a atenção por
acrescentar novos dados, como a radicalização de certos elementos e a incorporação
definitiva da temática geográfico-cultural.

Murilo Mendes foi antologiado por Manuel Bandeira:

Modernismo

Canção do exílio
Os dois lados
Arte de desamar
Dupla louvação
Pedra e água
O impenitente
O poeta morto
Confidência
Emaús
O filho pródigo
Montanhas de Ouro Preto
Numância
São João da Cruz

FONTE: (BANDEIRA, 1996, p. 86)

Murilo Mendes foi um poeta sensível à modernidade, renovou sua arte


de compor, rompendo com as formas tradicionais, marcou seus escritos com a
preocupação da essência da vida humana.

167
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

O poeta Vinicius de Moraes também toma parte dessa preocupação, qual


seja: da desumanização da vida no mundo contemporâneo. Os críticos dividem a
produção poética de Vinicius de Moraes em duas fases: a primeira é mística, faz
uso do verso largo, com tons proféticos, ancorados na metafísica de impregnação
católica. Segundo Bosi (1994), nessa poesia inicial de Vinicius se percebe uma
forte influência da poesia católica francesa. São da primeira fase: O Caminho para
a Distância (1933), Forma e Exegese (1935), Ariana, a Mulher (1936), Novos Poemas
(1938) e Cinco Elegias (1943).

Já, a segunda fase é portadora de matizes coloridos, de inquietação e


busca. Evocou o sensualismo e dedicou-se à lírica de tendência social e amorosa.
Desta fase podemos citar os seguintes livros: Poemas, Sonetos e Baladas (1946),
Pátria Minha (1949), Antologia Poética (1954), Livro de Sonetos (1957) e Novos Poemas
(II, 1959).

Antonio Candido (2002), no entanto, defende a ideia de uma reelaboração


destes princípios para uma espécie de “humanização do sentimento religioso”,
sendo assim, no que tange à questão da religiosidade, elementos de caráter
metafísico se fazem presentes também na poesia final e nas canções, o que
contraria a ideia de uma divisão da poesia de Vinicius de Moraes.

Dentre as temáticas algumas se tornaram constantes, como, por exemplo,


o jogo entre felicidade e infelicidade, associadas à tristeza, sem, no entanto,
abandonar o social. O artista carioca participou também da MPB desde a Bossa-
Nova. Vejamos uma de suas muitas canções:

Pela luz dos olhos teus

Quando a luz dos olhos meus


E a luz dos olhos teus
Resolvem se encontrar
Ai que bom que isso é meu Deus
Que frio que me dá o encontro desse olhar
Mas se a luz dos olhos teus
Resiste aos olhos meus só p’ra me provocar
Meu amor, juro por Deus me sinto incendiar
Meu amor, juro por Deus
Que a luz dos olhos meus já não pode esperar
Quero a luz dos olhos meus
Na luz dos olhos teus sem mais lará-lará
Pela luz dos olhos teus
Eu acho meu amor que só se pode achar
Que a luz dos olhos meus precisa se casar.

FONTE: MORAES, Vinicius de. Disponível em: <http://letras.terra.com.br/vinicius-de-moraes/87180/>.


Acesso em: 2 abr. 2011.

168
TÓPICO 3 | AS VANGUARDAS DA EUROPA E SUA INFLUÊNCIA

Vinicius expressou o mistério, a paixão, a morte e a solidão,como podemos


ler em:

Soneto de Fidelidade

De tudo ao meu amor serei atento


Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento


E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure


Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):


Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

FONTE: (MORAES, 1960, p. 96)

O poeta dedicou-se também à escrita para o público infantojuvenil.

A casa

Era uma casa muito engraçada


Não tinha teto, não tinha nada
Ninguém podia entrar nela, não
Porque na casa não tinha chão
Ninguém podia dormir na rede
Porque na casa não tinha parede
Ninguém podia fazer pipi
Porque penico não tinha ali
Mas era feita com muito esmero
na rua dos bobos número zero.

FONTE: (MORAES, 2005, p. 228)

A produção literária de Vinicius é perpassada pela tentativa de


encontrar um sentido para a existência humana, talvez por isso seja tão lida,
aplaudida e atual.

169
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

No que se refere ao Modernismo, Mário de Andrade resumiu as funções


e objetivos desse movimento: “o direito à permanente pesquisa estética”, a
atualização da inteligência brasileira, a estabilização de uma consciência nacional.
(ANDRADE apud ABDALA JUNIOR; CAMPEDELLI, 1987, p. 212).

Sendo assim, podemos afirmar que esse projeto é ainda latente em nossa
literatura. Nos escritos de 1945, ao lado de obras imbuídas da preocupação social,
começam a se destacar produções literárias nas quais a tônica recai em torno da
própria linguagem literária, uma poesia de aspectos formalizantes.

Essa renovação é registrada por Tristão de Athayde em um artigo publicado


sobre a morte do Modernismo, no ano de 1945, com o novo movimento chamado
neomodernismo. Tal movimento se opunha ao anterior em alguns aspectos:

O primeiro era nacionalista e esteticista, o segundo, universalista


e preocupado com questões sociais e políticas; aquele fora
revolucionário, o segundo era reacionário em estética, isto é, voltava-
se estilisticamente à disciplina, às metrificações populares, aos ritmos
clássicos, às rimas. (COUTINHO, 2004b, p. 198).

Domingos de Carvalho também defendeu a existência de uma poesia


nova, sua tese não foi bem recebida por novos e velhos modernistas. Este mesmo
poeta lançou o rótulo de “Geração de 45”, uma geração de poetas dentre os quais
destacamos João Cabral de Melo Neto.

João Cabral de Melo Neto pregava que a poesia não está no sentimento do
poeta ou mesmo na beleza dos fatos, mas, sim, no preparo do texto, na exatidão de
sua construção: “O texto, entretanto, só será uma obra de arte se a representação
atingir uma forma adequada e criativa: se ela for simétrica”. (ABDALA JUNIOR;
CAMPEDELLI, 1987, p. 244). Para tanto, o fazer poético é trabalho rigoroso com
a linguagem. Desse modo, há que se fazer revisões constantes, um exercício
autocrítico.

João Cabral recuperou em seus trabalhos poéticos certos traços da poesia


de Drummond e de Murilo Mendes, como a poesia substantiva e a precisão dos
vocábulos, produzindo uma de caráter objetivo, sem sentimentalismo. A primeira
obra de João Cabral, Pedra do Sono (1942), apresenta uma objetividade e certo
contorno surrealista. No Poema da Desintoxicação, revela:

Em densas noites
com medo de tudo:
de um anjo que é cego
de um anjo que é mudo.
Raízes de árvores
enlaçam-me os sonhos
no ar sem aves
vagando tristonhos.

170
TÓPICO 3 | AS VANGUARDAS DA EUROPA E SUA INFLUÊNCIA

Eu penso o poema
da face sonhada,
metade de flor
metade apagada.
O poema inquieta
o papel e a sala.
Ante a face sonhada
o vazio se cala.
Ó face sonhada
de um silêncio de lua,
na noite da lâmpada
pressinto a tua.
Ó nascidas manhãs
que uma fada vai rindo,
sou o vulto longínquo
de um homem dormindo.

FONTE: (MELO NETO, 1977, p. 6)

Em sua obra O Engenheiro (1945), o poeta se afasta da linha surrealista,


pendendo ainda mais para a poesia com as palavras e ideias, de uma concretude
integral, como se ele próprio fosse o engenheiro.

Em Educação pela Pedra, o poeta reúne uma coletânea de vários poemas


marcados pelo didatismo, pois mesmo a pedra, um objeto inanimado, ensina o
homem. Vejamos o poema-título.

A educação pela pedra

Uma educação pela pedra: por lições;


para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão


(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.

FONTE: (MELO NETO, 1977, p. 51)


171
UNIDADE 2 | SÍMBOLOS, TENDÊNCIAS E VANGUARDAS

João Cabral é considerado um dos maiores poetas sociais, um renovador


da poética, seus temas, a paisagem nordestina com suas diferenças sociais são
apresentadas para os leitores. Além disso, o autor aborda uma forma que denota
certa inquietude, elaborando textos que enfatizam a palavra através da própria
palavra, edificando, desse modo, o poema, conforme podemos observar neste
que segue:

Tecendo a Manhã

Um galo sozinho não tece uma manhã:


ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,


se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

FONTE: (MELO NETO, 2005, p. 52)

O poema inicia com verbo no gerúndio – tecendo – tempo verbal que


dá ideia de movimento, de construção do tecido, aliado à manhã, primeira hora
do dia, momento em que também o galo canta, despertando a todos com o seu
canto. Nessa perspectiva, tal como o galo, Melo Neto sugere que o poeta também
desperta e encanta os leitores pela sonoridade das palavras.Tecer, neste caso, é a
metáfora mais relevante, podendo ser relacionada ao trabalho do escritor que tece
as palavras para compor o poema.

Do ponto de vista literário, o poema de João Cabral de Melo Neto é


metalinguístico, pois é perpassado da ideia de que um poeta não pode realizar
sozinho o trabalho de sensibilização à poesia, mas precisa de outros para que
possa ser tecida e disseminada. É certo dizer então, que, para o escritor, o poema
é um tecido que se eleva.

172
TÓPICO 3 | AS VANGUARDAS DA EUROPA E SUA INFLUÊNCIA

Lembre-se de que o Modernismo foi um movimento revolucionário,


especialmente no que se refere à poesia, dadas as mudanças formais. Coutinho
afirma que o movimento é sinônimo de liberdade de pesquisa estética, período
no qual cada poeta estabelece as suas próprias regras, ou segue as que melhor lhe
pareçam, sem determinações fixadas por escola. Contudo, segundo o autor, há
certas características que podem ser assinaladas:

[...] 1) na primeira fase, predominou o verso livre, e dentro desta


duas técnicas são mais ou menos constantes: a enumeração, como já
assinalava João Ribeiro, ou da associação de ideias. [...] 2) na segunda
fase, as técnicas já variam mais de poeta a poeta, mas acentua-se, a par
do verso livre, a presença do verso tradicional, da geração de 22, os da
geração de 30, embora possam ser, nos melhores casos, fortes poetas,
revelam-se em geral fracos artesãos; 3) na terceira fase, inaugura-se o
senso da disciplina, mas disciplina complexa, que não significa retorno
a formas tradicionais (embora em muitos poetas isso também exista), e
sim polícia de expressão e desenvolvimento do ângulo estético, isto é,
de construção e redação do poema. O próprio verso livre se faz menos
livre, isto é, às vezes aparenta senso de medida ou submete-se em
certos casos a ritmo preciso. (20004b, p. 224).

Estas características gerais são a base da forma na poesia moderna e que,


anterior à questão que envolve a poesia como arte da palavra, já havia preconizado
o social, a política, a religiosidade, a filosofia, dentre outras possibilidades.

173
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico você pôde aprofundar seus conhecimentos nos seguintes
conteúdos:

• O Futurismo foi um movimento de vanguarda que começou em Milão pelas


letras de Marinetti, autor do Manifesto do Futurismo, que fazia apologia à
velocidade, ao perigo, à energia, ao movimento, à audácia como argumentos
líricos, além disso propunha mudanças na maneira de escrever.

• O movimento dadaísta, no campo literário, caracterizou-se pela sintaxe


esdrúxula e sem ordenação, como se a revolta devesse também atingir as
palavras.

• O Surrealismo valoriza a intervenção fantasiosa da realidade, fazendo com que


a pintura e a literatura se expressassem de maneira audaciosa e brilhante.

• Sob o olhar do surrealista, a descrição do ser humano era cruel, pois os


seus seguidores eram favoráveis às ideias de Freud, ou seja, exploravam o
inconsciente, o sonho, a loucura e se afastavam de tudo que fosse da lógica.

• O Cubismo foi um movimento de vanguarda que influenciou a arte. Do ponto de


vista artístico, foi o movimento mais completo e radical. O Cubismo inaugurou
e personificou a ruptura com a tradição histórica, que seria apanágio da arte
moderna em geral.

• O Expressionismo propunha um subjetivismo total, colocando em relevo a


consciência pessoal, ou seja, a expressão de dentro para fora, uma realização
que advinha da alma.

• As vanguardas se caracterizavam pelas mudanças exercidas sobre a arte.


Especialmente na poesia, as propostas não estavam preocupadas tão somente
com a rima e os moldes formais, mas com outros aspectos, como, por exemplo,
o que pretendia comunicar.

• No período de transição na ficção, aparecem as ideias da filosofia bergsoniana


e da psicanálise de Freud. A narrativa passaria a contemplar as personagens e
suas ações.

• As características modernistas na poesia faziam alusão ao desejo de libertação,


uma liberdade conclamada e apresentada na Semana da Arte Moderna: libertar
a poesia das fórmulas acadêmicas, em que o poeta expressasse ao máximo a
originalidade, liberdade de forma e temas brasileiros.

174
• O poeta Mário de Andrade acentua uma das características do Modernismo: a
ruptura com as tradições acadêmicas, pela liberdade de criação e de pesquisa
estética. Também enfatiza a busca e valorização de nossas tradições culturais.

• Oswald de Andrade foi o precursor dos movimentos Pau-Brasil e Antropofagia.


Seus escritos são permeados pelo deboche, pela ironia e pela crítica aos meios
acadêmicos e à classe burguesa.

• O conceito de Modernismo de Oswald de Andrade divergia daquele pregado


pelos integrantes do grupo “Verdamarelo”. Defendia a valorização das origens
brasileiras, do passado histórico e cultural, de que extraía parte de seus temas,
porém conferindo-lhes uma visão crítica.

• Menotti del Picchia fez parte do grupo “Verdamarelo”, opondo-se aos


movimentos “Pau-Brasil” e “Antropofagia”. Defendeu também os ideais do
“Grupo da Anta”, que excediam os propósitos verdamarelistas.

• Manuel Bandeira valorizou a libertação das formas fixas e optou pela liberdade
formal, o que se tornaria uma das marcas registradas de seus escritos.

• Cecília Meireles é uma das maiores poetisas de nossa história. Defendeu a ideia
de nação menos ufanista. Em sua poesia, o tempo e a brevidade são presenças
constantes. Quanto ao plano estilístico, a autora emprega uma linguagem
carregada de musicalidade.

• Carlos Drummond de Andrade preconizava a nacionalização a partir do


cotidiano e o transcendental para além da realidade. Suas poesias são marcadas
pela sonoridade, pelo humor e pela malícia.

• Murilo Mendes chegou perto do ideal de uma arte antropofágica preconizada


por Oswald de Andrade. Sua obra é marcada pela cultura e a história brasileira.

• Murilo Mendes é considerado um poeta surrealista, por demonstrar um caráter


desafiador e denunciar a presença do homem em um constante dilema espírito
versus matéria.

• A poesia de Vinicius de Moraes é dividida pelos críticos em duas fases: a


primeira é mística, faz uso do verso largo, com tons proféticos, ancorados na
metafísica de impregnação católica. Já a segunda fase é portadora de matizes
coloridos, de inquietação e busca. Evocou o sensualismo e dedicou-se à lírica
de tendência social e amorosa.

• O poeta João Cabral de Melo Neto pregava que a poesia não está no sentimento
do poeta ou mesmo na beleza dos fatos, mas, sim, no preparo do texto, na
exatidão de sua construção.

175
• No que se refere às características da forma na poesia moderna, Coutinho afirma
que o modernismo é sinônimo de liberdade de pesquisa estética, período no
qual cada poeta estabelece as suas próprias regras, ou segue as que melhor lhe
pareçam, sem determinações fixadas por escola.

• Em março de 1913, em São Paulo, se realiza a primeira exposição de pintura


não acadêmica, com obras de Lasar Segall, que revelam uma forte influência do
expressionismo do grupo de Dresden, do qual Segall fazia parte.

• Em maio de 1914, Anita Malfatti chega da Europa e expõe seus trabalhos. No


ano de 1917 ocorre nova exposição da autora e, desta vez, Monteiro Lobato
publica um artigo criticando duramente a exposição da artista.

• O grupo de modernistas reunia-se com frequência para planejar ações e discutir


a arte brasileira. Nessas conversas germinou a ideia de uma semana dedicada
à arte, na qual o grupo apresentaria o que entendia e concebia como arte nova,
arte realmente brasileira.

• Entre os dias 11 e 18 de fevereiro ocorreu a Semana da Arte Moderna, que ficou


na história e marcou o desenvolvimento das artes e das letras brasileiras.

176
AUTOATIVIDADE

1 Elabore uma pequena síntese sobre as vanguardas europeias, especialmente


no plano literário.

2 Com base em Freud e Bergson, quais foram as mudanças ocorridas na


ficção, no que se refere à personagem?

3 Elabore um resumo sobre os fatos que antecederam a Semana da Arte Moderna.

4 Sintetize os acontecimentos que marcaram a Semana da Arte Moderna.

5 Leia o texto de Carlos Drummond de Andrade e, em seguida,


responda ao que se pede:

Sentimental

Ponho-me a escrever teu nome


com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
E debruçados na mesa todos contemplam
esse romântico trabalho.

Desgraçadamente falta uma letra,


uma letra somente
para acabar teu nome!

–  Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!

Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
Neste país é proibido sonhar.

a) Este poema é classificado como modernista porque nele:

( ) A uniformidade dos versos reforça a simplicidade e a preocupação com


a métrica.
( ) A temática reflete o ato de sonhar, valorizando-se o modo de composição
da linguagem surrealista.
( ) Satiriza-se o estilo da poesia modernista, defendendo os padrões da
poesia clássica.
( ) A linguagem coloquial dos versos livres apresenta com humor o lirismo
encarnado em uma cena do cotidiano.

177
  b) No poema podemos perceber características marcantes de um Drummond
modernista. São elas:

( ) O isolamento da personalidade lírica, a ironia e o estilo prosaico.


( ) A tendência metafísica e o discurso sentencioso.
( ) A lembrança familiar e a elocução fragmentada.
( ) A fala consternada e a forma fixa.
( ) A preocupação de cunho social e o pessimismo.

6 Leia o poema de Manuel Bandeira e, em seguida, responda: o poeta


indica uma qualidade que julgava pertinente para sua poesia. Qual é esta
qualidade?

O último poema

Assim eu quereria o meu último poema


Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos Intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

7 Leia o poema e, em seguida, responda ao que se pede:

Valsa

Cecília Meireles

Fez tanto luar que eu pensei nos teus olhos antigos


e nas tuas antigas palavras.
O vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos,
que tornei a viver contigo enquanto o vento passava.

Houve uma noite que cintilou sobre o teu rosto


e modelou tua voz entre as algas.
Eu moro, desde então, nas pedras frias que o céu protege
e estudo apenas o ar e as águas.

Coitado de quem pôs sua esperança


nas praias fora do mundo...
– Os ares fogem, viram-se as águas,
mesmo as pedras, com o tempo, mudam.

178
A partir do poema apresentado, é válido afirmar que a poética de
Cecília Meireles se caracteriza essencialmente:

a) ( ) Pela possibilidade de superação de todos os conflitos.


b) ( ) Pela musicalidade, preocupação com a fugacidade do tempo e a
precariedade das coisas e dos seres.
c) ( ) Pela exaltação da existência terrena.
d) ( ) Pela exploração da realidade cotidiana.

179
180
UNIDADE 3

MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir desta unidade você será capaz de:

• refletir sobre as características da ficção pós-moderna e contemporânea;

• identificar os autores e obras da literatura pós-moderna e contemporânea;

• ler e analisar alguns textos da literatura regionalista e do teatro moderno;

• reconhecer algumas vanguardas pós-modernas e seus representantes.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em 3 (três) tópicos que o/a levarão a entender a
ficção no modernismo, a literatura de Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e o
teatro moderno. Você estudará também a ficção de transição: Modernismo/
Pós-Modernismo. Em cada um dos tópicos você encontrará atividades que
o/a ajudarão a consolidar seus conhecimentos nestes temas.

TÓPICO 1 – A FICÇÃO NO MODERNISMO

TÓPICO 2 – A LITERATURA DE GUIMARÃES ROSA, GRACILIANO


RAMOS E O TEATRO MODERNO

TÓPICO 3 – A FICÇÃO DE TRANSIÇÃO: MODERNISMO/PÓS-


MODERNISMO

181
182
UNIDADE 3
TÓPICO 1

A FICÇÃO NO MODERNISMO

1 INTRODUÇÃO
A ficção no Brasil pode ser dividida em corrente regionalista e psicológica,
ambas advindas do romantismo, tendo por fio condutor a preocupação com o
homem e o meio. As duas correntes tiveram seu ponto de partida em escritores de
épocas anteriores que forneceram o modo de lidar com a matéria-prima na obra
literária, tanto no que se refere à escolha dos temas e descrições locais, bem como
a expressão dos costumes e dos tipos nacionais.

Portanto, no que tange à ficção, o alicerce já existia e, ao Modernismo,


coube a renovação nas formas e nas técnicas, operando mudanças significativas
na maneira de narrar e descrever as personagens.

Nesse sentido, na Unidade 3 a nossa reflexão será pautada na literatura


regionalista e psicológica, uma vez que estas correntes contribuíram para a
evolução do romance brasileiro.

2 OS FICCIONISTAS
A ficção no Brasil – romance e conto –, já na primeira década de 1900, havia
atingido certo grau de perfeição e com duas linhas bem definidas que caminham
paralelamente, e, por vezes, se cruzam, ambas oriundas do romantismo e com
uma preocupação com o humano. Uma das correntes é a regionalista, na qual
o homem é visto como perpassado pela hostilidade do meio: quer nas áreas
rurais e campesinas, quer nos grandes centros urbanos, encontra-se exposto aos
problemas do ambiente, diante dos quais se percebe sem forças para lutar.

A outra linha diz respeito ao homem diante de si mesmo, revelado na


corrente psicológica, preocupada com questões relacionas à conduta, aos dramas
da consciência – um ser sempre desejoso. No dizer de Lukács, a personagem é um
“herói sempre em busca”, característica do romance herdada da epopeia (1982, p. 66);
porém, vale lembrar que os heróis de Homero buscam glórias, conquistas, amores
e a paz em ilhas paradisíacas. Já o protagonista Dante, da Divina Comédia, desejava

183
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

o crescimento, o paraíso. Por sua vez, os heróis contemporâneos rompem com o


caos dentro de si, mergulham no abismo da alma para encontrar a liberdade – de
certa forma um paraíso. Assim, através da exploração do interior do protagonista,
o romance moderno procura, explorar as profundezas do inconsciente.

Foi no final do século XIX que aconteceram as primeiras mudanças


significativas na maneira de narrar e descrever as personagens. Nesse sentido, o
romance passa a descrever o choque entre o indivíduo, seu mundo interior e tudo
o que o cerca. A nova forma de conceber a literatura ocorre porque “a arte tornou-
se autônoma e por isso mesmo deixou de ser cópia, porque desapareceu qualquer
modelo; é totalidade criada, porque a unidade natural das esferas metafísicas está
para sempre quebrada”. (LUKÁCS, 1982, p. 36).

Há que se considerar que as duas correntes, regionalista e psicológica,


tiveram seu ponto de partida em Alencar. Segundo Coutinho, “Alencar forneceu
a sugestão exata de como deveria o ficcionista estabilizar a matéria-prima na obra
literária” (2004b, p. 264), tanto no que tange à escolha dos temas e descrições
locais, bem como a expressão dos costumes e dos tipos nacionais. Portanto, as duas
vertentes da ficção antes mesmo do Modernismo já haviam fixado sua estética e
temática e, ao Modernismo, coube a renovação nas formas e nas técnicas.

NOTA

Sobre a ficção no Modernismo sugerimos que você leia de Luiz Bueno, o livro
intitulado: Uma história do romance de 30, da editora EDUSP, cujo assunto versa sobre a
literatura brasileira – teoria e crítica. O autor em questão aborda uma discussão sobre o
período dos romances de 30, dando uma nova visão sobre o que se escreveu naquela época.

As contribuições que seriam de extraordinária fecundidade para a


evolução do romance brasileiro se operam desde a década de 1920, em especial,
1928, ano em que são publicadas Macunaíma, de Mário de Andrade, e A Bagaceira,
de José Américo de Almeida. Este ilustra um espaço social fustigado pela seca,
permitindo-nos uma tomada de consciência sobre a realidade nacional com
contornos psicanalíticos.

A história se passa entre 1898 e 1915. As personagens Valentim Pereira, sua


filha Soledade e o afilhado Pirunga, devido à seca, abandonam a fazenda na zona do
sertão e dirigem-se para as regiões dos engenhos. Chegam à propriedade do viúvo
Dagoberto Marçau e do filho Lúcio. Quando da chegada da família de retirantes,
o filho Lúcio se encontrava de férias no engenho e conhece Soledade, por quem

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TÓPICO 1 | A FICÇÃO NO MODERNISMO

se apaixona. O rapaz confirma ao pai seu intento de casar com a moça. O genitor
não aceita a decisão do filho, uma vez que Soledade convivia amasiadamente com
Dagoberto. Soledade e Dagoberto, acompanhados por Pirunga, deixam o engenho
em direção à fazenda. Pirunga provoca a morte do senhor do engenho para ficar
com Soledade.

O enredo é marcado pelo êxodo da seca que aniquila não somente a terra,
mas também o homem do sertão: “[...] vaqueiros másculos, como titãs alquebrados,
em petição de miséria, baralhavam-se num anônimo aniquilamento”. (ALMEIDA,
2005, p. 8).

Assim, o autor revela a fome e a inanição daquele sertanejo que vive em meio
à seca. Dois principais conflitos estão configurados: a luta pela sobrevivência num
ambiente inóspito e a disputa de três homens – Dagoberto, Lúcio e Pirunga – pelo amor
de Soledade, mulher de personalidade marcante, que, com seu modo descontraído, seus
banhos no açude ou na cachoeira, desnorteava os homens.

Dagoberto, o senhor de engenho, representa a força, o poder, sendo


que as pessoas são como que sua propriedade, com atitudes remanescentes da
escravidão, questões existenciais, presentes na maneira de viver daquela gente.
Lúcio não concorda com essa violência e exploração, posiciona-se na defesa dos
direitos e da dignidade dos sertanejos.

O escritor extrai desse contexto a sua matéria-prima, denunciando a


opressão do forte e as desigualdades econômicas, problemas que se configuram
naquela região. Harmoniza o enredo, a linguagem e os conflitos, com o cenário
geográfico do sertão paraibano.

UNI

A região nordestina prestava-se à maravilha para a valorização das tradições


culturais, daí a força com que o movimento regionalista se difundiu por toda a região, da
Bahia ao Ceará e mais ao norte. A fórmula era buscar no ambiente social, cultural e geográfico
os elementos temáticos, os tipos de problemas, os episódios que seriam transformados
em matéria de ficção. A técnica era realista e objetiva, os escritores, buscando valer-se
de uma coleta de material in loco, à luz da história social ou da observação de campo,
tornam os romances verdadeiros documentários ou painéis descritivos da “situação”
histórico-social. Não foi difícil, num momento de intensa propaganda de reforma social
e mesmo de revolução, como a década de 30, que os livros do grupo constituíssem
uma literatura engagée, de participação política, no sentido de “expor” as mazelas do
Estado vigente como premissa à necessária transformação revolucionária. Muitos desses
escritores tornaram-se até militantes políticos, vindo a constituir uma verdadeira literatura
de esquerda. (COUTINHO, 2004b).

185
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

Mário de Andrade, por sua vez, publicou neste mesmo ano Macunaíma,
uma combinatória de lendas, anedotas e personagens afroindígenas transportados
para a metrópole paulista; a justaposição de elementos faz do romance uma
rapsódia.

A rapsódia designava na Grécia antiga a recitação de poemas pelos


chamados rapsodos, poetas ou declamadores que iam de cidade em cidade a
declamar composições de autoria de escritores consagrados e que dispensavam o
acompanhamento da lira. O vocábulo foi adotado por compositores musicais, para
assinalar a compilação, numa mesma obra, de termos e assuntos heterogêneos e
de várias origens.

Assim fez Mário de Andrade em Macunaíma, “[...] constituiu a rapsódia das


principais lendas afroindígenas que compõem o substrato folclórico nacional”.
(MOISÉS, 2004, p. 378). A palavra que designa o título do romance Macunaíma
refere-se ao grande mal que nasceu:

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era


preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio
foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas
pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.

Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de


seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:

– Ai! Que preguiça!...

FONTE: (ANDRADE, 1993, p. 9)

O protagonista, Macunaíma, torna-se o imperador do Mato Virgem, ao


se casar com Ci, a mãe do mato. Desse amor nasce um filho que logo morre e
leva consigo a mãe que se transforma numa estrela. Ci havia dado a Macunaíma
um amuleto que se perde. A morte de Ci provoca a saída de Macunaíma e seus
irmãos rio abaixo, da terra das icamiabas. O trecho ilustra o início da partida
rumo à busca da pedra na cidade de “Macoa”, São Paulo:

Na frente Macunaíma vinha de pé, carrancudo, procurando no longe


a cidade. Matutava, matutava roendo os dedos, agora cobertos de berrugas de
tanto apontarem Ci estrela. Os manos remavam espantando os mosquitos e cada
arranco dos remos repercutindo nas duzentas igaras ligadas, despejava uma
batelada de bagos na pele do rio, deixando uma esteira de chocolate onde os
camuatás pirapitangas dorados piracanjubas uarus-uarás e bacus se regalam.

FONTE: (ANDRADE, 1993, p. 39)

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TÓPICO 1 | A FICÇÃO NO MODERNISMO

Macunaíma chega a São Paulo e a narrativa transcorre na metrópole,


o herói esperto, inteligente, vivia deitado espiando o trabalho dos outros, um
oportunista. Segundo Coutinho, “um acomodado que desconhecia o espírito de
luta e sacrifício” (2004b, p. 291).

Na narrativa, Andrade investe na composição de personagens, no espaço


urbano e regional, na divulgação da língua oral que se confere no livro através
do regionalismo da fala brasileira, linguagem coloquial. Um dos momentos nos
quais essa linguagem e parte do folclore se fazem presentes pode ser observada
quando Macunaíma, para ser libertado pela filha mais nova de Ceiuci, deverá
adivinhar pelo menos uma das charadas:

– Vou dizer três adivinhas, si você descobre, te deixo fugir. O que é o


que é: é comprido roliço e perfurado, entra duro e sai mole, satisfaz o gosto da
gente e não é palavra indecente?
– Ah! Isso é indecência sim!
– Bobo! É macarrão!
– Ahn... é mesmo!... Engraçado, não?
– Agora o que é o que é: Qual o nome do lugar onde as mulheres têm
cabelo mais crespinho?
– Oh, que bom! Isso eu sei! É aí!
– Cachorro! É na África, sabe!
– Me mostra, por favor!
– Agora é a última vez. Diga o que é:
Mano, vamos fazer
Aquilo que Deus consente:
Ajuntar pelo com pelo.
Deixar o pelado dentro.
E Macunaíma:
– Ara! Também isso quem não sabe! Mas cá pra nós que ninguém nos
ouça, você é bem senvergonha, dona!
– Descobriu. Não é dormir ajuntando os pelos das pestanas e deixando
o olho pelado dentro que você está imaginando? Pois si você não acertasse pelo
menos uma das adivinhas te entregava pra gulosa de minha mãe. Agora fuja
sem escarcéu, serei expulsa, voarei pro céu.

FONTE: (ANDRADE, 1993, p. 83)

Na obra, Andrade personifica “um herói sem nenhum caráter”, que se


situa além do bem e do mal e sintetiza a personalidade do homem brasileiro.
O romance abarca questões sobre a falta de definição de um caráter nacional,
a cultura submissa e dividida do Brasil, o descaso para com as tradições, a
preferência aos moldes europeus. (COUTINHO, 2004b). São problematizações
aliadas à preocupação do escritor que se vale de Macunaíma para buscar uma
identidade cultural brasileira, na qual prevaleceria a mistura de culturas regionais
com suas lendas, folclores, crendices, costumes, comidas, falares, fauna e flora.
Segundo Moraes (apud BERRIEL, 1990, p. 38),

187
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

na composição de Macunaíma e em seus escritos críticos da época


nota-se o cuidado rigoroso de efetuar o levantamento do material
que torna possível traçar o perfil do Brasil. Era intenção de Mário
de Andrade, em sua perspectiva analítica, ao justapor os variados
elementos culturais presentes na esfera nacional, chegar à definição
de um elemento comum que qualificasse todos como pertencentes ao
mesmo patrimônio cultural.

Assim, Andrade expressa sua inquietude, ao mesmo tempo que convida


o leitor a refletir sobre a formação de uma identidade nacional, que se efetivará
quando a nação superar alguns obstáculos, dentre os quais a opressão do europeu.
O Brasil só se consolidaria como entidade cultural se crescesse das próprias raízes.

O artista escreveu também contos dentre os quais destacamos O Besouro


e a Rosa (1923). Neste, o inseto será responsável por fazer a personagem Rosa
transformar-se em mulher. A moça de dezoito anos, inocente e infantil, vivia
enclausurada, fechada em si mesma, inexpressiva, de pouca conversa. Tais
características serão modificadas e o responsável dessa mudança é o besouro.
Rosa movida pelo calor abre a janela de seu quarto, por onde adentra o inseto
que mudará sua vida, passando, então, a pensar por si própria, abrindo-se para
o mundo.

Podemos então afirmar que Mário de Andrade revela-se, assim, como na


poesia, um ficcionista e um contista preocupado com os intentos dos modernistas
e atento às técnicas narrativas vanguardistas. Várias de suas obras foram
traduzidas para o alemão, espanhol, francês, húngaro, inglês e italiano.

Outro escritor responsável por enaltecer a ficção brasileira foi Oswald


de Andrade. Sempre preocupado com a renovação, publica, em 1924, Memórias
Sentimentais de João Miramar, romance que, para os críticos, representa uma inovação
da prosa modernista. Composto em 163 episódios, nos quais o eixo central é João
Miramar, protagonista e narrador, cujo foco narrativo é predominantemente na
primeira pessoa, como você poderá constatar nos exemplos que seguem:

“Entrei para a escola mista de D. Matilde” (ANDRADE, 1990, p. 46); “Saí


de D. Matilde porque marmanjo não podia continuar na classe com meninas”
(ANDRADE, 1990, p. 47); “Molhei secas pestanas para o rincão corcunda que vira
nascer meu pai”. (ANDRADE, 1990, p. 63).

Por vezes, o narrador Miramar dirige-se a Miramar – o homem – deslocando


o foco narrativo da primeira para a terceira pessoa. Em alguns episódios, o
narrador cede espaço a outros narradores que fazem uso da primeira. Fato que
poderá ser observado quando são transcritas cartas ou bilhetes.

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TÓPICO 1 | A FICÇÃO NO MODERNISMO

CARTA ADMINISTRADORA

Ilmo. Sr. Dr.

Cordeais saudações

Junto com esta um jacá de 15 frango que é para a criancinha se não


morrê.

Confirmo a minha de 11 próximo passado que aqui vai tudo em ordem


e a lavoura vai bem já estou dando a segunda carpa.

Fiz contrato com os colonos espanhol que saiu da Fazenda Canadá


assim mesmo perciso de algumas familhas a porca pintada deu cria sendo por
tudo 9 leitão e o Migué Turco pediu demissão arrecolhi na ceva mais de três
capadete que já estão no ponto a turbina não está foncionando bem esta semana
amanhã o Salim vem concertal.

O descascador ficou muito bom por aqui vão todos bom da mesma forma
com a graça de Deus que com D. Célia fique restabelecido da convalecença é o
que eu lhe desejo.

FONTE: (ANDRADE, 1990, p. 70-71)

O autor compõe a narrativa de capítulos curtos e cada um possui uma


interdependência, cada qual com um enigma a ser revelado. Com essa montagem
de textos em blocos sem uma suposta sequência de discurso, bem como uma
realidade não linear, Oswald inaugura o que ficou conhecido como “estética do
fragmentário”. (ABDALA JUNIOR; CAMPEDELLI, 1987, p. 219). Note que a obra
possui capítulos curtos, todos intitulados e numerados, como nos exemplos que
seguem:

33. VELEIRO

A tarde tardava, estendia-se nas cadeiras, ocultava-se no tombadilho quieto,


cucava té uma escala de piano acordar o navio.

Madame Rocambola mulatava um maxixe no dancing do mar.

Esquecia-me olhando o céu e a estrela diurna que vinha me contar salgada


do banho como estudara num colégio interno. Recordava-me dos noivados
dormitórios de primas.
Uma tarde beijei-a na língua.

[...]

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UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

40. COSTELETA MILANESA

Mas na limpidez da manhã mendiga cornamusas vieram sob janelas de grandes


sobrados.

Milão estendia os Alpes imóveis no orvalho.

FONTE: (ANDRADE, 1990, p. 55)

A história exibe a infância, o casamento, as amantes, as viagens e a viuvez


de Miramar. O escritor faz uso de recursos de linguagem, tais como a metonímia
presente na frase abaixo sublinhada e que significa mapa:

79. TERREMOTO

O Pantico estava na Bélgica em pleno perigo de ser fuzilado ou morrer de fome.

Mas depois de copos espumantes de leite eu acreditava de geografia aberta


sobre a mesa que a situação dos alemães não era brilhante. Em vinte dias eles
apenas tinham entrado em Bruxelas e tomado Liège, a cidade, conservando-se
nas mãos dos heróis belgas a linha de fortes quase completa. E na fronteira
intata da França deviam reunir-se com certeza nessa hora dois milhões de
soldados.

Além desta, outras figuras de linguagem se fazem presentes tais como a


onomatopeia: “No silêncio tique-taque da sala de jantar informei mamãe que não
havia Deus porque Deus era a natureza” (ANDRADE, 1990, p. 47); a aliteração:
“[...] punha patetismos pretos [...]” (ANDRADE, op. cit., p. 51); a sinestesia – “[...]
de janelas cerradas e acesos silêncios”. (ANDRADE, 1990, p. 51).

O emprego de vocábulos e expressões da língua inglesa, francesa,


espanhola dentre outras, é também marca desta obra. Vejamos: dancing/ habitué/
encuentro de ustedes/ si sinhore / board-house/ tour du monde.

Outro recurso expressivo muito empregado pelo autor é a criação de


vocábulos: ‘vagamundear, calva, comerciaturos neopropriedades, tombadilhavam,
automobilizados, fazendeiral, ourinóis, paisajal, mulatava, respeitabundos,
bestenamorada, charutal, frigorificavam, morenava, gramofônica, fordei,
fortunais, grandilocou, ramazevedos, seminudava’.

A obra também apresenta uma crítica ao casamento por interesse. O


protagonista João Miramar separa-se de Célia e o motivo da separação é a falência
financeira. Além disso, registra o uso do dinheiro público para financiar viagens
de artistas ao exterior. Como no capítulo que segue:

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TÓPICO 1 | A FICÇÃO NO MODERNISMO

22. MAÇONARIA

Avessos aos favores da cidade íamos perna aqui perna ali eu e Dalbert de sorte
excepcional.

Ruas quartos a chave bar desertos vibrações revoltas adultérios ênfases.

A estacada foi num casarão azul em vol-plané sobre o val-de-lírios inculto do


Anhangabaú.

A coroa do Teatro Municipal punha patetismos pretos no vermelho das auroras


noturnas.

O João Jordão que não era artista nem nada aparecia magro e uma tarde
arranjou o subsídio governamental para estudar pintura em Paris.

FONTE: (ANDRADE, 1990, p. 51)

Também lança mão da intertextualidade, para tanto referencia autores e


personagens de obras, como nos trechos que seguem, nos quais alude a Herodes
Rei da Galileia e ao poeta latino Virgílio, respectivamente:

98. HISTÓRIA DE FILM HISTÓRICO

Porque a Empresa Cinematográfica Cubatense propusera-lhe cenário


contratual, transferi mãe e filha para Santos.

Trabalhavam em pavilhão de papelão no estirão de areia suja e sulcada,


onde carroças interpenetravam horizontes marinhos com vigilantes corridas
mecânicas de minha William Six.

Ante o grande mar cabeludo como Herodes, ela compunha e dançava.

FONTE: (ANDRADE, 1990, p. 79)

163. ENTREVISTA ENTREVISTA

– Com que então o ilustre homem pátrio de letras não prossegue suas
interessantíssimas memórias?
– Não.
– Seria permitido ao grosso público ledor não ignorar as razões ocultas da
grave decisão que prejudica assim a nossa nascente literatura?
– Razões de estado. Sou viúvo de D. Célia.
– Daí?

191
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

– Disse-me o Dr. Mandarim que os viúvos devem ser circunspectos. Mais, que
depois dos trinta e cinco anos, mezzo del camin di nostra vita, nossa atividade
sentimental não pode ser escandalosa, no risco de vir a servir de exemplo
pernicioso às pessoas idosas.
– O Dr. Mandarim, com perdão da palavra, é uma besta!
– Engano seu. O Dr. Mandarim é baedeker de virtudes. Adoto-o.
– A crítica vai acusá-lo e a posteridade clamar porque não continuou tão rico
monumento da língua e da vida brasílicas no começo esportivo do século 20.
– Já possuo o melhor penhor da crítica. Li as Memórias, antes do embarque, ao
Dr. Pilatos.
– E ele?
– O meu livro lembrou-lhe Virgílio, apenas um pouco mais nervoso no estilo.

FONTE: (ANDRADE, 1990, p. 107)

O livro é prefaciado por uma personagem fictícia (Machado Penumbra).


Tal criação parece sugerir uma sátira aos intelectuais da época que Oswald
combatia. Leiamos algumas partes desse prefácio:

À Guisa do Prefácio

João Miramar abandona momentaneamente o periodismo para fazer a


sua entrada de homem moderno na espinhosa carreira das letras. E apresenta-
se como o produto improvisado e, portanto, imprevisto e quiçá chocante para
muitos, de uma época insofismável de transição. Como os tanks, os aviões de
bombardeio sobre as cidades encolhidas de pavor, os gases asfixiantes e as
terríveis minas, o seu estilo e a sua personalidade nasceram das clarinadas
caóticas da guerra. [...] Esperemos com calma os frutos dessa nova revolução
que nos apresenta pela primeira vez o estilo telegráfico e a metáfora lancinante.
O Brasil, desde a idade trevosa das capitanias, vive em estado de sítio. Somos
feudais, somos fascistas, somos justiçadores. Época nenhuma da história foi
mais propícia à nossa entrada no concerto das nações, pois que estamos na
época do desconcerto. [...] Nossa natureza como nossa bandeira, feita de glauco
verde e de amarelo jalde, é propícia às violências maravilhosas da cor. Justo é,
pois, que nossa arte também o queira ser. Quanto à glótica de João Miramar,
à parte alguns lamentáveis abusos, eu a aprovo sem, contudo, adotá-la nem
aconselhá-la. Será esse o Brasileiro do Século XXI? Foi como ele a justificou,
ante minhas reticências críticas. O fato é que o trabalho de plasma de uma
língua modernista nascida da mistura do português com as contribuições
das outras línguas imigradas entre nós e, contudo, tendendo paradoxalmente
para uma construção de simplicidade latina, não deixa de ser interessante e
original. A uma coisa apenas oponho legítimos embargos – é à violação das
regras comuns da pontuação. Isso resulta em lamentáveis confusões, apesar
de, sem dúvida, fazer sentir “a grande forma da frase”, como diz Miramar pro
domo sua. Memórias Sentimentais – por que negá-lo? — é o quadro vivo de

192
TÓPICO 1 | A FICÇÃO NO MODERNISMO

nossa máquina social que um novel romancista tenta escalpelar com a arrojada
segurança dum profissional do subconsciente das camadas humanas. Há, além
disso, nesse livro novo, um sério trabalho em torno da “volta ao material”
– tendência muito de nossa época como se pode ver no Salão d’Outono, em
Paris. Pena é que os espíritos curtos e provincianos se vejam embaraçados no
decifrar do estilo em que está escrito tão atuado quão mordaz ensaio satírico.
MACHADO PENUMBRA

FONTE: (ANDRADE, 1990, p. 43-44)

Serafim Ponte Grande (1929) é outra obra oswaldiana. Nesta, o escritor


dá continuidade ao processo iniciado anteriormente persistindo a estética de
montagem fragmentada. Segundo Coutinho, “Serafim Ponte Grande não é um
romance autobiográfico. O escritor não se conta, ouve o personagem. Até parece
que o primeiro imita o segundo”. ( 2004b, p. 300).

Através das técnicas usadas, desse mosaico, da narrativa descontínua,


Oswald de Andrade deflagra os alicerces da literatura e torna-se aquele para
quem as gerações futuras passam a orgulhar-se e consagrar.

3 OUTROS REPRESENTANTES DA FICÇÃO MODERNISTA


Os escritores que representaram a literatura brasileira após 1922 deixaram
suas marcas. Seus romances traziam em seus enredos a relação entre o homem,
meio e sociedade, de maneira crítica. Nesse sentido, a ficção no Brasil foi também
representada pela escritora Raquel de Queiroz, Jorge Amado e Érico Veríssimo,
dentre outros. A primeira publicou em 1930 O Quinze, uma obra de cunho
regionalista, com cenas e episódios característicos desse tipo de romance. Nele, a
autora explora, por exemplo, a cultura, os traços descritivos do retirante e aponta
os problemas do homem e da região nordestina.

O nome do romance faz alusão à terrível seca do Ceará de 1915, o qual


aborda a seca, o coronelismo e os impulsos passionais. A partir disso a autora
expõe uma preocupação social, o comportamento psicológico destas personagens
e a aceitação fatalista do destino. O romance é introspectivo, o narrador informa
as ações e questionamentos advindos das personagens.

Raquel ignora a separação entre ricos e pobres, cuja concepção é


percebida na personagem Conceição pertencente aos dois mundos. Sendo
assim, não condiciona inocentes ou culpados pela amarguras provenientes da
seca. Paralelamente à morte presente nas famílias de retirantes, surge a vida
representada na história pela fraternidade no campo de concentração.

193
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

UNI

O romance O Quinze narra a história do vaqueiro Chico Bento e sua família,


e a relação afetiva de Vicente e Conceição, a prima culta e professora. Conceição lia livros
de tendências feministas e socialistas, o que causa estranhamento às personagens que
representam as velhas tradições. Com o advento da seca, a família de Mãe Nácia decide ir
para a cidade e Vicente fica na região. Conceição trabalhava no campo de concentração,
local onde ficavam alojados os retirantes.

Parte comovente do livro é a marcha penosa do vaqueiro Chico Bento


com sua mulher e seus filhos. Para fugir da seca, atravessa o sertão e se dirige ao
Norte. No percurso passa por adversidades, dentre as quais a morte de um dos
meninos.

Lá se tinha ficado o Josias, na sua cova à beira da estrada, com uma


cruz de dois paus amarrados, feita pelo pai. Ficou em paz. Não tinha mais que
chorar de fome, estrada afora. Não tinha mais alguns anos de miséria à frente
da vida, para cair depois no mesmo buraco, à sombra da mesma cruz.

FONTE: (QUEIROZ, 2004, p. 67)

Tal qual a escritora Raquel de Queiroz, que retratou a problemática


social do Nordeste, a literatura regional teve outros representantes e de igual
importância, especialmente no que se refere à caracterização descritiva, espécie
de estudo sociológico. Com o movimento modernista, a questão foi reforçada e
passou a representar um papel relevante, tanto na prosa quanto na poesia.

Nesse sentido, a representação literária regional esteve, no estado da


Bahia, enfatizada por Jorge Amado (1912-2001), que, com talento, retratou os
acontecimentos da sua terra de modo que, no dizer de Coutinho (2004c, p. 271),
“[...] não retira uma nota, não força um elemento, não interfere no espetáculo que
por si a vida engendra e exibe”.

O arcabouço de cunho socialista que caracteriza um dado espaço, como


o local urbano e a região do cacau – sul da Bahia – se fazem presentes nos seus
romances e dentre os mais conhecidos podemos citar: Mar Morto (1936), Capitães
de Areia (1937), Gabriela Cravo e Canela (1960). “É inevitável, em todos os seus
livros, o testemunho com a imagem da terra”, afirma Coutinho. (2004c, p. 271).

A linguagem literária traduzida na fala das personagens é testemunha


da preocupação do escritor com a questão social, dotando a sua obra de um
espírito humanizador. Assim, o mar, a região do cacau e a cidade de Salvador
não são meros suportes inseridos no texto, mas “[...] existem efetivamente, em

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TÓPICO 1 | A FICÇÃO NO MODERNISMO

sua inteira representação plástica, como bases necessárias para que o romancista
prove aquela humanização se fazendo criador de tipos”. (COUTINHO, 2004c, p.
271). Sendo assim, a mesma se processa de maneira gradativa a cada romance
elaborado, humanização esta presente nos tipos sociais e na elaboração de suas
personagens que, segundo Coutinho (2004c, p. 271), são representados pelos
“saveiristas, os capitães de areia, os jagunços do cacau que cedem lugar primeiro
ao herói social [...] e depois ao herói literário”. Jorge Amado enfatiza o detalhe
psicológico de suas personagens, experiência individual que perpassa todos os
seus romances que falam da Bahia.

UNI

Dos livros de Jorge Amado que foram adaptados ao cinema encontramos:


• Gabriela (1983). Direção: Bruno Barreto. Com Sonia Braga e Marcello Mastroianni. Adaptação
do romance de Jorge Amado, que já rendera uma novela na Rede Globo (1975). Nos anos
20, na cidade baiana de Ilhéus, comerciante de origem árabe apaixona-se por sua cozinheira,
mas permite que o moralismo da sociedade interfira no casamento.
• Dona Flor e seus Dois Maridos ( 1976). Direção: Bruno Barreto.
Com Sonia Braga, José Wilker, Mauro Mendonça. Adaptação do Romance de Jorge Amado,
que se passa na Salvador dos anos 40. Dona Flor perde o marido boêmio, Vadinho, e se
casa com o farmacêutico Teodoro. Sentindo falta de Vadinho, Flor consegue trazer seu
“fantasma” de volta.
• Tieta do Agreste (1996). Direção: Cacá Diegues. Com Sonia Braga, Marilia Pêra, Chico
Anysio. Adaptação mais recente do romance de Jorge Amado. Tieta, expulsa da cidade de
Santana do Agreste, retorna ao lugar anos mais tarde, depois de enriquecer como prostituta.

O regionalismo literário também teve reflexos no Sul do Brasil, expressando


as condições geográficas e econômicas de um local quase extremado, banhado
pelo rio que serviu de acesso ao estado, bem como a fronteira que facilitou a
invasão de outros povos e influenciou a região do Prata. Como escritor dessa
região, citamos Érico Veríssimo (1905-1975), autor de crônicas, contos, e romances
que podem ser classificados em: romance urbano revelador da classe burguesa
de Porto Alegre, permeado pelo olhar otimista, pelo lirismo e a crítica, e pela
linguagem tradicional, do qual destaca-se Olhai os Lírios do Campo (1938). Outra
abordagem é o romance político, com o livro intitulado Incidente em Antares
(1973), que foi escrito no período da ditadura militar, no qual o autor denuncia o
autoritarismo da época e os abusos contra os direitos humanos.

Além destes, vale ressaltar o romance histórico, representado pela trilogia


O Tempo e o Vento, uma obra que abrange três volumes – O Continente, O Retrato
e O Arquipélago. O conteúdo deste livro aborda os acontecimentos dos duzentos
anos da história do Rio Grande do Sul, no período compreendido entre 1745 e
1945. Um dos protagonistas da primeira parte que descreve o Continente é o

195
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

capitão Rodrigo, personagem marcante e popular que chega à cidade de Santa


Fé, ao fim de uma das guerras contra os castelhanos. O texto é perpassado pelo
sentido épico, em face às batalhas das quais participou, comparado a Ulisses e
outros heróis das epopeias gregas. O Capitão Rodrigo idealizava a ação guerreira,
aquela que dava sentido à vida de um homem, juntamente com os outros prazeres,
por isso caracterizou um tipo ético, misto de bravura, generosidade e ideias de
liberdade.

A obra de Veríssimo não descreve somente questões sociopolíticas e


econômicas do Rio Grande do Sul, mas reflete sobre o significado da existência,
pelo confronto estabelecido dentro da narrativa entre duas forças antagônicas:
o tempo, que dá ideia de passagem e destruição. É elemento dominante, pois
tudo é submetido à sua ação e, desse modo, por expressar a força de trabalho,
está relacionado aos homens. O vento, por sua vez, oferece uma conotação de
repetição e continuidade. Representa simbolicamente as mulheres que são a
resistência humana em face às guerras e ao instinto. As personagens femininas
desse romance, através da memória, restabelecem lembranças dos que já se foram
e a ação de lembrar o passado – idas e vindas no tempo da memória –, pode ser
comparada ao movimento do vento.

DICAS

Caro acadêmico, para saber mais sobre a obra O Tempo e o Vento, assista
à minissérie que foi adaptada do livro e exibida pela Rede Globo em 1985. Apesar de levar
o nome da trilogia escrita por Érico Veríssimo, a minissérie desenvolveu apenas as tramas
abordadas no primeiro volume da obra – O Continente – especialmente a trajetória do Capitão
Rodrigo Cambará, em Santa Fé, desde a primeira conversa com Juvenal, o duelo com Bento
Amaral, seu casamento com Bibiana, até a sua morte na guerra. Se você quiser assistir parte
da minissérie, acesse o site: <http://www.youtube.com/watch?v=SrMsWLnZKtI>.

Sobre a literatura de Érico Veríssimo, vale enfatizar sua importância


no que se refere à divulgação dos aspectos regionais sulistas, além da questão
histórica tão presente nos seus textos. Assim, podemos dizer que esses autores
incorporaram em seus escritos a paisagem, os problemas, os tipos sociais, a
cultura regional, ou seja, um material local, aliado à subjetividade introspecta: o
psicológico.

196
TÓPICO 1 | A FICÇÃO NO MODERNISMO

LEITURA COMPLEMENTAR

Caro acadêmico! O texto que apresentaremos é de autoria do escritor


Mário de Andrade publicado no Jornal Diário Nacional, São Paulo, em 1929, no
qual o autor expressa sua opinião sobre as expressões artísticas daquela época.

TÁXI: MESQUINHEZ

Mário de Andrade

Temos que distinguir porém. Se é incontestável que existe em certas classes


de sublimadores da vida (artistas, mendigos etc.) uma sincera incompetência
pra viver, não é menos certo que muito indivíduo se aproveita disso pra não
tomar atitude ante os fenômenos sociais. Constatado que o artista, o cientista,
é um ser à parte, pois então vamos nos aproveitar disso, logo imaginam muitos
desses. Sistematizam esse “estado de off-side” que é inerente à psicologia deles e
na verdade já não estão apenas à parte mais, criam mas é uma salvaguarda de
indiferentismo, e até de senvergonhismo que lhes permite sacrificar tudo pelo
proveito pessoal.

Quando Julien Benda estabeleceu no seu livro barulhento, a condição


do “clerc”, ele não esqueceu de especificar bem que a contemplatividade do
“clerc” às direitas não impedia este de se manifestar a respeito de movimentos
políticos e tomar parte neles. Mas a pena é que Julien Benda tratou quase que
só de pensadores e literatos, de “intelectuais”. E é certo que estes, não sei se por
lidarem com o elemento diretamente intelectual das palavras, em geral são mais
foguetes, mais audaciosos, e vivem tomando partido. Felizmente pra eles que
assim pelo menos justificam mais socialmente, pra não dizer: humanamente, a
sua maneira de ser.

Mas entre pintores, músicos, arquitetos etc., a neutralidade é muito de


praxe. Neutralidade? É, eles chamam de neutralidade o que pelas palavras certas
é muito boa falta de caráter. É a “neutralidade” que consistia, por exemplo,
no governo de Carlos de Campos, em tudo quanto era concerto uma ou outra
pecinha desse músico lamentável aparecer no programa. E me vinham – Você
compreende, isto é banalíssimo, medonho, mas afinal nós que pertencemos à
classe dos músicos devemos honrar um... sim, um músico que está na presidência.
E como a bondade pessoal de Carlos de Campos era mesmo um fato, aquilo rendia
bem pro colega.

Este ano mesmo, um pintor mais que coitado me expunha as teorias


da honradez estética assim: – “Você compreende (usam e abusam deste “você
compreende” arranjador de cumplicidade), você compreende, tudo isto que eu
faço é porcaria, não é a minha arte não! Mas é disso que o povo gosta! Estas
orquídeas, isso é passadismo do mais ordinário, mas Fulano que você sabe a

197
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

importância dele na Prefeitura, queria por força que eu pintasse orquídeas, então
pintei e ele comprou. Estou envergonhado de ter um quadro assim na exposição
mas, você compreende, o dono afinal é figura muito importante na Prefeitura.
Mais tarde, quando eu não tiver mais cuidados pecuniários, então hei de fazer a
arte verdadeira que sinto em mim.”

Mas eu quero reverter todas estas observações ao momento de agora.


Me parece incontestável que nós estamos atravessando um momento muito
importante da nacionalidade, principalmente pelas possibilidades de que ele
tem de despertar no povo brasileiro uma consciência social de raça, coisa que ele
nunca teve. Ora tirando o pessoal de Minas e do Rio Grande do Sul e mais alguma
exceção rara no resto do país, não só músicos, pintores, arquitetos, mas até entre
os literatos mais novos estou percebendo uma pouca vontade vagarenta de
tomar atitude. Parece que estão muito preocupados em cantar a mãe-preta, o seu
rincãozinho e algum modismo vocabular pra tomarem consciência verdadeira do
momento que a nacionalidade atravessa e vai bastante mais além desses lugares-
comuns temáticos do modernismo de agora. No poema de Martin Fierro vem
aquela estrofe honesta de que gosto muito:

Yo he conocido cantores
Que era un gosto escuchar,
Mas no quieren opinar
Y se divíerten cantando;
Pero yo canto opinando,
Que es mi modo de cantar.

Eu acho que também temos que cantar opinando agora, pra ninguém
chegar atrasado no tragicômico festim. Há muito mais nobre virilidade em se ser
conscientemente besta que grande poeta de arte-pura.

FONTE: ANDRADE, Mário de. Táxi e crônicas no Diário Nacional. Estabelecimento de texto,
introdução e notas de Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo: Duas Cidades; Secretaria de Cultura,
Ciência e Tecnologia, 1976. p. 155-156. Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/
enciclopedia_lit/index.cfm?fuseaction=biografias_texto&cd_verbete=5243&cd_item=48>. Acesso
em: 2 abr. 2011.

198
RESUMO DO TÓPICO 1

No primeiro tópico você estudou sobre:

• A ficção no Brasil pode ser dividida em corrente regionalista e psicológica.


Ambas tiveram seu ponto de partida em Alencar que forneceu o modo pelo
qual os escritores deveriam lidar com a matéria-prima na obra literária.

• A corrente regionalista via o homem perpassado pela hostilidade do meio,


quer nas áreas rurais e campesinas, quer nos grandes centros urbanos, exposto
aos problemas do ambiente, diante dos quais se percebe sem forças para lutar.

• A linha psicológica diz respeito ao homem diante de si mesmo, revelado na


preocupação com questões relacionadas à conduta, aos dramas da consciência,
um ser sempre em busca.

• Em 1928, é publicada A Bagaceira, de José Américo de Almeida, que ilustra um


espaço social fustigado pela seca. O enredo é marcado a partir do êxodo da
seca que aniquila não somente a terra, mas também o homem do sertão.

• Mário de Andrade, por sua vez, publicou neste mesmo ano Macunaíma, uma
combinatória de lendas, anedotas e personagens afroindígenas transportados
para a metrópole paulista. A justaposição de elementos faz do romance uma
rapsódia.

• Mário de Andrade investe na composição de personagens, no espaço urbano


e regional, na divulgação da língua oral, do regionalismo da fala brasileira,
da linguagem coloquial e personifica “um herói sem nenhum caráter”, que se
situa além do bem e do mal e sintetiza a personalidade do homem brasileiro.

• Outro escritor responsável por enaltecer a ficção brasileira foi Oswald de


Andrade que publica, em 1924, Memórias Sentimentais de João Miramar, romance
que, para os críticos, representa uma inovação da prosa modernista. Outra
obra é Serafim Ponte Grande, na qual o escritor dá continuidade ao processo da
estética de montagem fragmentada.

• A ficção no Brasil foi também representada pela escritora Raquel de Queiroz,


que publicou em 1930, O Quinze, uma obra de cunho regionalista, com cenas
e episódios característicos desse tipo de romance em que explora a cultura, os
traços descritivos do retirante e aponta os problemas do homem e da região
nordestina.

199
• A literatura regional esteve, no estado da Bahia, representada por Jorge Amado
o qual retratou os acontecimentos da sua terra – o local urbano e a região do
cacau – sul da Bahia, cuja linguagem, traduzida na fala das personagens, é
testemunha da preocupação do escritor com a questão social, dotando a sua
obra de um espírito humanizador.

• O regionalismo literário também teve reflexos no Sul do Brasil, expressando as


condições geográficas e econômicas pelas letras de Érico Veríssimo, autor de
crônicas, contos e romances.

• Os autores regionais incorporaram em seus escritos a paisagem, os problemas,


os tipos sociais, a cultura regional, ou seja, um material local, aliado à
subjetividade introspecta: o psicológico.

200
AUTOATIVIDADE

1 No final do século XIX, aconteceram as primeiras mudanças significativas


na maneira de narrar e descrever as personagens. Com base nessa
afirmação, sintetize tais mudanças.

2 De que maneira a corrente regionalista concebia o homem?

3 Na obra Macunaíma, Mário de Andrade abarca questões sobre


a falta de definição de um caráter nacional e a cultura submissa
e dividida do Brasil. Por que o autor adotou tal postura?

4 Considere o texto que segue:

O alpinista
de alpenstock
desceu
nos Alpes.

Este texto pertence à obra Memórias Sentimentais de João Miramar e


exemplifica uma tendência do autor de:

a) ( ) Procurar as barreiras entre poesia e prosa, utilizando estilo alusivo e


elíptico.
b) ( ) Procurar “ser regional e puro em sua época”, negando influências das
vanguardas europeias.
c) ( ) Buscar uma interpretação lírica de seu país, explorando a força
sugestiva das palavras.
d) ( ) Explorar o poema em forma de prosa, satirizando as manifestações
literárias do Pré-Modernismo.

201
202
UNIDADE 3
TÓPICO 2

A LITERATURA DE GUIMARÃES ROSA,


GRACILIANO RAMOS E O TEATRO MODERNO

1 INTRODUÇÃO
Os textos literários têm por característica principal a retratação da realidade
através de um trabalho especial com a linguagem, além da inventividade. Essa
questão é um aspecto relevante para o escritor, dado o fato de ele lidar com várias
peculiaridades, como os falares, os costumes, o ambiente, os tipos humanos,
dentre outras, quando se propõe escrever.

Tal questão é ainda mais enfatizada quando se refere à descrição de


determinadas regiões, em face à multiplicidade de elementos que podem ser
abordados nesse tipo de literatura, a dita regional. Esse fato foi observado por
alguns romancistas e também por outros autores que escreveram textos teatrais e
autos, temas estes de que trataremos no próximo tópico.

2 O SERTÃO SOB O OLHAR DOS ARTISTAS: JOÃO


GUIMARÃES ROSA E GRACILIANO RAMOS
A propósito, Minas Gerais é o estado brasileiro em que a ficção regionalista
tem seu ponto alto, graças ao escritor João Guimarães Rosa que se destaca pela
individualidade e pelo modo como utilizou a palavra literariamente.

203
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

UNI

O escritor João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, em


1908 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1967. Fez os primeiros estudos na cidade natal.
Em Belo Horizonte cursou a Faculdade de Medicina, diplomando-se em 1930, e passou
a exercer a profissão no interior do Estado. Foi médico da Força Pública de Minas. Nos
vagares da profissão no interior, dedicava-se a estudar línguas estrangeiras. Em 1934, entra
para a carreira diplomática, depois de concurso em que tirou o segundo lugar. Viveu em
diversos países, em serviço diplomático. Foi internado prisioneiro na Alemanha durante
a guerra. A publicação de seus livros foi acompanhada de grande sucesso, granjeando-
lhe largo conceito nacional e internacional. Foi membro da Academia Brasileira de Letras.
(COUTINHO, 2004a.).

Em seus textos, encontramos a linguagem coloquial do sertanejo, aliada


aos neologismos que caracterizam a expressão do autor. A cultura local e a
paisagem são abordadas em todos os seus aspectos. No dizer de Rosa (1994), o
sertanejo não é somente um ser rústico que povoa essa grande região do Brasil,
ele é o próprio ser humano imbuído de problemas universais e eternos.

Esses conflitos são o enredo do romance Grande Sertão: Veredas o qual


enfatiza o ser humano e o seu destino, a luta entre o bem e o mal – Deus e o
Diabo. Também os contos desse escritor, num total de nove, seguem a mesma
linha e estão reunidos no livro Sagarana, editado em 1946, no qual encontramos
a seguinte epígrafe:

Lá em cima daquela serra,


passa boi, passa boiada,
passa gente ruim e boa
passa a minha namorada.

FONTE: (ROSA apud OLIVEIRA, 2000, p. 356)

A estrofe sintetiza os elementos centrais da obra: o estado de Minas Gerais,


o sertão, o gado bovino, vaqueiros e jagunços, a bondade e a maldade. O título
Sagarana faz alusão ao hibridismo pela junção da palavra saga, radical de origem
germânica que significa canto heróico, e rana, uma palavra da língua indígena
que significa espécie ou maneira. Para Coutinho (2004a, p. 284), os contos de
Sagarana,

[...] em cujas páginas a arquitetura literária – forma e estilo – a


observação de costumes e o vigor da análise em relação aos personagens
encontram o mais justo equilíbrio, sobretudo naquelas duas obras-
primas que são O Burrinho Pedrês e A Hora e a Vez de Augusto Matraga.

204
TÓPICO 2 | A LITERATURA DE GUIMARÃES ROSA,

Em Sagarana encontramos uma obra perpassada pela consciência literária


de João Guimarães Rosa, cujos escritos envolvem a polifonia pelo emprego de
palavras que dão musicalidade e ritmo. Segundo Candido (2002, p. 188), esse fato
se caracteriza pela “paixão de contar” e, nesse sentido, continua o teórico: “[...]
todos os meios e até a amplificação retórica são bons, desde que nos arrebatem da
vida transportando-nos para a vida mais intensa da arte”.

UNI

O conto A Hora e a Vez de Augusto Matraga (1966), de Guimarães Rosa


(do livro Sagarana), foi adaptado para o cinema sob a direção de Roberto Santos. Matraga
(representado por Leonardo Villar), homem do sertão das Gerais, escapa por pouco de morrer
numa tocaia armada por seus inimigos. Recebe os cuidados de um casal e muda radicalmente
de personalidade, buscando “ir para o céu nem que seja a porrete” (NICOLA, 2003, p. 397).

No romance Grande Sertão: Veredas, a questão estilística também é abordada


pelos estudiosos literários, uma vez que nesta obra Guimarães Rosa elaborou um
trabalho de escrita e observação rigorosa, uma das mais importantes da nossa
literatura, notável pela linguagem e pelo estilo. O livro foi publicado em 1956,
e, nele, Guimarães Rosa uniu elementos linguísticos e a temática regionalista,
criação única e inovadora.

O enredo descreve as duas guerras. A primeira, liderada pelo bando de


Joca Ramiro (e Hermógenes contra Zé Bebelo e os soldados do governo), e a
segunda organizada sob novas lideranças: de um lado Hermógenes e Ricardão,
assassinos de Joca Ramiro e traidores do grupo; de outro, Zé Bebelo – que volta
para vingar a morte de seu líder em companhia de Riobaldo e Diadorim.

A narrativa é caracterizada pela descrição dos acontecimentos que marcam


a passagem do tempo, mas o romance não se divide em capítulos. A história
do sertão é contada em primeira pessoa, por um narrador que faz digressões,
alternando, desse modo, o tempo da narrativa:

Viver é muito perigoso... Querer o bem com demais força, de incerto


jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar. Esses homens!
Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada
um só vê e entende as coisas dum seu modo. Montante, o mais supro, mais
sério – foi Medeiro Vaz. Que um homem antigo... Seu Joãozinho Bem-Bem,
o mais bravo de todos, ninguém nunca pôde decifrar como ele por dentro
consistia. Joca Ramiro – grande homem príncipe! – era político. Zé-Bebelo quis
ser político, mas teve e não teve sorte: raposa que demorou. Só Candelário
se endiabrou, por pensar que estava com doença má. Titão Passos era o pelo
preço de amigos: só por via deles, de suas mesmas amizades, foi que tão alto

205
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

se ajagunçou. Antônio Dó – severo bandido. Mas por metade; grande maior


metade que seja. Andalécio, no fundo, um bom homem-de-bem, estouvado
raivoso em sua toda justiça. Ricardão, mesmo, queria era ser rico em paz: para
isso guerreava. Só o Hermógenes foi que nasceu formado tigre, e assassim. E
o “Urutu-Branco”? Ah, não me fale. Ah, esse... tristonho levado, que foi – que
era um pobre menino do destino...

FONTE: (ROSA, 1994, p. 16)

Nesse primeiro momento, é inserida a figura de um interlocutor – Nonada


– e a fala de Riobaldo através do recurso in medias res, ou seja, no início do romance
o protagonista narra fatos do presente e, através do tempo da memória, retorna
ao passado. Riobaldo faz alusão a fatos ocorridos quando do segundo conflito no
sertão, da qual participou juntamente com Diadorim na tentativa vingar a morte
de Joca Ramiro.

Dando o dia, de repente, Zé Bebelo determinou que tudo e tudo


fosse pronto, para uma remarcha em exercícios, como geral. Só por festa.
Ao que os burrinhos comiam amadrinhados, em bom pasto: – “Menininhos,
responsabilidade de cangalhas em vocês, carregando a nossa munição!” – Zé
Bebelo mandou. Mas, montado, declarou: – “Meu nome d’ora por diante vai
ser ah-oh-ah o de Zé Bebelo Vaz Ramiro! Como confiança só tenho em vocês,
companheiros, meus amigos: zé-bebelos! A vez chegou: vamos em guerra.
Vamos, vamos, rebentar com aquela cambada de patifes!...” Saímos, solertes
entes”.

FONTE: (ROSA, 1994, p. 16)

Riobaldo conta ao interlocutor sobre o momento que seguiram para o


enfrentamento e também as andanças do bando pelo sertão, conforme podemos
ver no próximo excerto:

Para isso, a lua não era boa. Quem põe praça de cavalhadas, por
desbarranco de estradas lamentas, desmancho empapado de chão, a chuva
ainda enxaguando? Convinha esperar regras d’água – “O Rio Paracatu está
cheio...” alguém disse. Mas Zé Bebelo atalhou: – “O São Francisco é maior...”
Com ele tudo era assim, extravagável; e não queria conversas de cutilquê.
Rompemos. Melava de chover baixo, mimelava. Até o derradeiro do momento,
parecia que íamos atravessar o Paracatu. Não atravessamos. Tudo aquele
homem retinha estudado. Daí, distribuiu as patrulhas. O drongo dele, viemos,
pela beira, sempre o Paracatu à mão esquerda. Trovejou, de perturbar. Ele
disse: – “Melhor, dou surpresa... Só uma boa surpresa é que rende. Quero é
atacar!”. A gente ia para o Buriti-Pintado. A lá, consta de dez léguas, doze, –
“Na hora, cada um deve de ver só um algum judas de cada vez, mirar bem e
atirar. O resto maior é com Deus...” – já vai que falava. – “Para um trabalho
que se quer, sempre a ferramenta se tem”.

FONTE: (ROSA, 1994, p. 125-126)


206
TÓPICO 2 | A LITERATURA DE GUIMARÃES ROSA,

O relato de Riobaldo relembra suas lutas, seus medos e o amor reprimido


por Diadorim, personagem disfarçada de homem durante quase toda a narrativa.
Nas últimas páginas, o narrador conta que, depois da morte de Diadorim, quando
o corpo é despido e lavado, descobre que é uma mulher. Ela e Riobaldo haviam
se conhecido, quando ainda eram jovens, em uma travessia do Rio São Francisco.
Nessa época, dizia chamar-se Reinaldo, cujo nome era secreto no meio dos
jagunços, utilizado apenas nos momentos em que ela e Riobaldo estavam a sós.

Reinaldo, Diadorim, me dizendo que este era o real nome dele – foi
como dissesse notícia do que em terras longes se passava. Era um nome, ver
o quê. Que é que é um nome? Nome não dá: nome recebe. Da razão desse
encoberto, nem resumi curiosidades. Caso de algum crime arrependido fosse
fuga de alguma outra parte; ou devoção a um santo-forte. Mas havendo o ele
querer que só eu soubesse, e que só eu esse nome verdadeiro pronunciasse.
Entendi aquele valor. Amizade nossa ele não queria acontecida simples, no
comum, sem encalço. A amizade dele, ele me dava. E amizade dada é amor. Eu
vinha pensando, feito toda alegria em brados pede: pensando por prolongar.
Como toda alegria, no mesmo do momento, abre saudade. Até aquela, alegria
sem licença, nascida esbarrada. Passarinho cai de voar, mas bate suas asinhas
no chão.

FONTE: (ROSA, 1994, p. 215)

Riobaldo passa para o bando de Joca Ramiro, motivado pela presença


de Reinaldo/Diadorim por quem se apaixona, mas não compreende aqueles
sentimentos contraditórios, já que a paixão homossexual era uma relação
impossível de ser aceita no meio do grupo. Veja como ele se refere a Diadorim:

Era, era que eu gostava dele. Gostava dele quando eu fechava os olhos.
Um bem-querer que vinha do ar de meu nariz e do sonho de minhas noites.
O senhor entenderá, agora ainda não me entende. E o mais, que eu estava
criticando, era me a mim contando logro.

FONTE: (ROSA, 1994, p. 205)

Há que se enfatizar o ambiente, no qual os nomes citados podem parecer


estranhos, confundindo os leitores. No entanto, ao que parece, a inserção
de diversos nomes é proposital, recurso que cria no enredo ambientes como
Chapadão do Urucúia, Paredão e Fazenda dos Tucanos, cuja travessia constitui
uma metáfora da vida. Outro ponto forte do romance faz menção a Riobaldo e
seu pacto com o diabo:

Por curto: minto, se não conto que estava duvidoso. E o senhor sabe
no que era que eu estava imaginando, em quem. Ele é? Ele pode? Ainda hoje
eu conheço tormentos por saber isso; trastempo que agora, quando as idades
me sossegam. E o demo existe? Só se existe o estilo dele, solto, sem um ente

207
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

próprio – feito remanchas n’água. A saúde da gente entra no perigo daquilo,


feito num calor, num frio. Eu, então? Ao que fui, na encruzilhada, à meia-noite,
nas Veredas Mortas. Atravessei meus fantasmas? Assim mais eu pensei, esse
sistema, assim eu menos penso. O que era para haver, se houvesse, mas que
não houve: esse negócio. Se pois o Cujo nem não me apareceu, quando esperei,
chamei por ele? Vendi minha alma algum? Vendi minha alma a quem não
existe? Não será o pior?... Ah, não: não declaro. Desgarrei da estrada, mas
retomei meus passos. O senhor segurado não acha? Ao que tropecei, e o chão
não quis minha queda. De hoje em dia, eu penso, eu purgo. [...]

E o diabo não há! Nenhum. É o que tanto digo. Eu não vendi minha
alma. Não assinei finco. Diadorim não sabia de nada. Diadorim só desconfiava
de meus mesmos ares.

FONTE: (ROSA, 1994, p. 691)

O suposto pacto com o demônio faria de Riobaldo, sob o olhar de Diadorim


um herói, questão assim explicada por Coutinho (2004b, p. 508):

[...] a obsessão de Diadorim, sortilégio forte sobre o Riobaldo, era


liquidar Hermógenes. Uma fascinação que a Riobaldo parecia
demoníaca. Contudo, resolve ser também pactuário. Nas Veredas
Mortas, meia-noite, vende a alma ao diabo, pelas glórias do comando
– subjacentemente, a vontade de liquidar o Hermógenes, para crescer
aos olhos de Diadorim – a relação ambígua. Pacto feito, Riobaldo não
é mais o herói problemático irresoluto. Assume o comando com fortes
poderes. O mundo, agora, em suas mãos, é um brinquedo.

O diabo, segundo Riobaldo, não existe como entidade autônoma, mas se


materializa nos piores estados emocionais do ser humano. Vejamos:

Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem


– ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é
que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo. O senhor aprova? Me
declare tudo, franco – é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. Este
caso – por estúrdio que me vejam – é de minha certa importância. Tomara
não fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na
pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já
sabia, esperava por ela – já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter uma
aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca
vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este vosso servidor. Fosse lhe
contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos
homens. Até: nas crianças – eu digo. Pois não é o ditado: “menino – trem do
diabo”? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes... O
diabo na rua, no meio do redemunho...

FONTE: (ROSA, 1994, p. 7)

208
TÓPICO 2 | A LITERATURA DE GUIMARÃES ROSA,

Conforme podemos observar, para Riobaldo, o diabo se manifesta dentro


das pessoas, pelas próprias posturas, definido pelo protagonista: o homem dos
avessos. Para Coutinho (2004b, p. 509),

Deus e o Diabo coexistem e que, coexistindo, não se pode eliminar o


Diabo sem eliminar Deus. Mas ele quer uma solução. Então a força, por
via de um paralogismo: não existe o Demônio: o que existe é o homem
– o homem humano. É uma conclusão de um reacionarismo atroz.
Real fosse, e importaria em definir o homem como se originariamente
condenado.

Esse episódio do pacto foi amplamente explorado pelos teóricos literários,


sendo comparado à obra do escritor Goethe, sob o título Fausto.

UNI

Fausto, o protagonista do romance de Goethe, faz um pacto com o demônio,


com base na lenda alemã em que o médico e alquimista Dr. Johannes Georg Faust (1480-
1540) que, desiludido com o conhecimento de seu tempo, faz um pacto com o demônio.
Mefistófeles o dota de energia satânica, insuflando-o para a paixão pela técnica e pelo
progresso. O poema é considerado símbolo cultural da modernidade, pelas proporções
épicas que relatam a tragédia do Dr. Fausto. (COUTINHO, 2004a).

É possível observar que a fala de Riobaldo é perpassada de reflexões


acerca de sua vivência: as pessoas mortas nos confrontos e o pacto. Desse modo,
Guimarães Rosa mostra uma forma especial de escrita, comprovada pelos
recursos linguísticos, uma recriação do vocabulário regional da sintaxe, da frase
melodiosa e da narração que, sob a aparência de diálogo, é, no dizer de Coutinho
(2004b, p. 508), um monólogo que descreve a trajetória de Riobaldo, dividida em
três fases: “o jagunço, herói problemático; o fáustico, pactário – herói resoluto,
mas que se trai a si mesmo; e o místico, herói frustrado, a partir do qual é dada a
narrativa”.

Um dos aspectos mais relevantes dos textos de Guimarães Rosa é a


linguagem pela qual criou um dialeto literário, em face aos vários componentes
que inseriu, dentre os quais podemos citar: a incorporação do falar coloquial
sertanejo, apreendido quando exercia a profissão de médico; o falar do sertanejo;
expressões, ditos populares, incorporados em toda sua obra. “Ossenhor uturge,
mestre, a gente vinhemos, no graminha...”. (ROSA apud OLIVEIRA, 2000, p. 355).

Mesmo escrevendo em prosa o escritor utilizou recursos poéticos valendo-


se de recursos formais da poesia: “Cê vai, ocê”; “e, eu, rio abaixo, rio afora, rio
adentro – o rio”. (ROSA apud OLIVEIRA, 2000, p. 355).

209
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

Guimarães Rosa empregou ainda as rupturas sintáticas, a derivação


imprópria, os neologismos, os diminutivos e os aforismos, estes últimos são
características mais evidentes do escritor, cujos conceitos soam como máximas e
verdades: “Moço! Deus é paciência. O contrário, é o diabo”/ “Viver é muito perigoso.”
(ROSA apud OLIVEIRA, 2000, p. 355).

Todos esses elementos perfazem o estilo do escritor, expressam uma visão


intensa da vida e das coisas, como os acontecimentos que envolvem Diadorim.
Esse último constitui o centro da história contada por Riobaldo. Sobre essa questão
Antonio Candido (2000) enfatiza que Diadorim, dada a sua condição, homem e
mulher, confirma o mistério da travessia de Riobaldo. Vejamos como Rosa narra
o momento em que descobre a verdade sobre Diadorim:

Eu dizendo que a Mulher ia lavar o corpo dele. Ela rezava rezas da


Bahia. Mandou todo o mundo sair. Eu fiquei. E a Mulher abanou brandamente
a cabeça, consoante deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia. Não me
mostrou de propósito o corpo. E disse… Diadorim – nu de tudo. E ela disse:

– ‘A Deus dada. Pobrezinha…’

E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu não contei ao


senhor – e mercê peço: – mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo
de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube…
Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita… estarreci. A dor não
pode mais do que a surpresa. A coice d’arma, de coronha…

Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e
levantei mão para me benzer – mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei
as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim
era mulher como o sol não acende a água do rio Urucúia, como eu solucei meu
desespero.

O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem
termo real.

Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as


mãos para trás, incendiável; abaixei meus olhos. E a Mulher estendeu a toalha,
recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava
os cabelos. Cabelos que cortou com tesoura de prata… Cabelos que, no só ser,
haviam de dar para abaixo da cintura… E eu não sabia por que nome chamar;
eu exclamei me doendo:

– ‘Meu amor!…’

Foi assim. Eu tinha me debruçado na janela, para poder não presenciar


o mundo.

210
TÓPICO 2 | A LITERATURA DE GUIMARÃES ROSA,

A Mulher lavou o corpo, que revestiu com a melhor peça de roupa


que ela tirou da trouxa dela mesma. No peito, entre as mãos postas, ainda
depositou o cordão com o escapulário que tinha sido meu, e um rosário, de
coquinhos de ouricuri e contas de lágrimas de Nossa Senhora. Só faltou —
ah! — a pedra de ametista, tanto trazida… O Quipes veio, com as velas, que
acendemos em quadral. Essas coisas se passavam perto de mim. Como tinham
ido abrir a cova, cristãmente. Pelo repugnar e revoltar, primeiro eu quis: –
‘Enterrem separado dos outros, num aliso de vereda, adonde ninguém ache,
nunca se saiba…’ Tal que disse, doidava. Recaí no marcar do sofrer. Em real
me vi, que com a Mulher junto abraçado, nós dois chorávamos extenso. E todos
meus jagunços decididos choravam… Daí, fomos, e em sepultura deixamos, no
cemitério do Paredão enterrada, em campo do sertão.

Ela tinha amor em mim.

E aquela era a hora do mais tarde. O céu vem abaixando. Narrei ao


senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha
verdade. Fim que foi”.

FONTE: (ROSA, 1994, p. 862)

Ao que parece, a morte de Diadorim, seguida da descoberta sobre sua


identidade, constitui um dos fatos mais marcantes da narrativa. Essa questão é
percebida em virtude da fala de Riobaldo, mistério que ele tenta compreender
enquanto narra a história de sua vida. Sobre a relação com Diadorim, enfatiza
Coutinho (2004b, p. 507) que, para Riobaldo, parecia uma confusão de sentimento,

[...] – atração e repulsa: ignora, ainda, que Diadorim é mulher – o


mito da mulher vestida de guerreiro. Pacto feito, comando assumido,
guerra travada para ser de extermínio dos Herodes Hermógenes,
à hora do combate definitivo, no entrevero do Paredão, Riobaldo
ausenta-se da luta. Apenas da janela de um sobrado, assiste ao duelo
entre Diadorim e Hermógenes, no qual morrem os dois. Eis que é
quando descobre que Diadorim, filha de Joca Ramirez, poderia ser
seu amor, no normal, amor nascido desde a misteriosa atração, nas
margens do São Francisco, onde começara a estória.

Na relação entre memória e perda, Riobaldo apresenta uma prestação


de contas com o mundo e consigo. O mesmo expõe em termos linguísticos seus
sentimentos, sua vontade de entender o passado, ou seja, toda a narrativa e todos
os fatos nos chegam através dele. Riobaldo é o contador da própria história,
ressignificada pelo passado.

Do ponto de vista literário Grande Sertão: Veredas constitui a engenhosidade


do grande ficcionista, cujo significado do vocábulo “veredas” – caminho estreito
– encerra uma metáfora – travessia que pode ser entendida como a posse da sua
própria vida. “Guimarães Rosa fazia questão de afirmar que a “estória” (fábula)
não quer ser “história”, denunciando que o que contava não era o que usualmente

211
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

fica para os anais; mas que seus temas se valiam de episódios que serviam para
ilustrar a “travessia”, a conquista da alegria”. (OLIVEIRA, 2000, p. 356). Nesse
sentido, ao evocar os acontecimentos e ao indagar sua conduta, Riobaldo absorve
ensinamentos.

Outra agudeza de Guimarães Rosa é percebida por Coutinho (2004b, p.


510) quando analisa o nome dado à personagem Riobaldo. O teórico assim se
manifesta:

[...] Chamou-o, Guimarães Rosa, de Riobaldo. Que quis dizer? Medite-


se na lógica interna do livro. Todo o heroico esforço, razão suprema
de seu existir, no sentido do qual o personagem corria (rio), tornara-
se inútil – “baldo”: falho, frustração completa. “Baldo”, na linguagem
antiga: “sem modo de vida”. Eis a que chegou o herói Riobaldo.

A astúcia do escritor reside na sua obra, cujo cenário é o sertão, que,


segundo o autor, aceita todos os nomes, [...] não tem janelas nem portas. Um mundo
do latifúndio brasileiro, degradação do ser humano, afinal Guimarães Rosa fez,
de maneira literária. Procede assim uma denúncia social, aliada aos conflitos da
alma humana, questão esta que é confirmada na fala de Riobaldo: “Aparecia que
nós dois já estávamos cavalhando lado a lado, par a par, a vai-a-vida inteira. Que:
coragem – é o que o coração bate; se não, bate falso. Travessia – do sertão – a toda
travessia”. (ROSA, 1994, p. 719).

Caro acadêmico, enfatizamos que, pela riqueza literária, o romance em


questão, Grande Sertão: veredas, único do escritor, é uma obra surpreendente
na qual o épico e o lírico se fazem presentes, aspectos que perfazem o estilo de
Guimarães Rosa.

E
IMPORTANT

Lembre-se, caro acadêmico: o Modernismo é um movimento e não uma


revolução. Segundo Coutinho (2004b), o vocábulo revolução se aplica somente à Semana
da Arte Moderna. Por volta de 1940, o Modernismo oferece os primeiros sinais de exaustão.
Tristão de Athayde delimita o movimento modernista tomando por base marcos da vida
literária de Mário de Andrade, entre 1920 e 1945.

Os escritores brasileiros por vezes adotaram por temática os problemas


da terra, cuja ficção constituía uma denúncia social, por trazerem à tona injustiças
e a degradação humana. Essa concepção foi absorvida por Graciliano Ramos,
que compôs personagens que ampliam vivências e aspectos do seu mundo. Ele
ganhou notoriedade graças à capacidade de síntese, pela habilidade de dizer o
essencial em poucas palavras. É considerado, pela crítica literária, como um dos
maiores romancistas brasileiros, e a sua obra, a melhor ficção.

212
TÓPICO 2 | A LITERATURA DE GUIMARÃES ROSA,

Os seus textos inquietantes expõem a angústia do ser humano. Em seus


romances “[...] recursos ficcionais importantes são revelados e desvendam
gradativamente, através de sucessiva ampliação, a importância que assumem
dentro dessa representação da realidade”. (COUTINHO, 2004b, p. 391).

UNI

Graciliano Ramos nasceu em 1892 na cidade de Quebrângulo, em Alagoas,


e faleceu no Rio de Janeiro, em 1953. Fez os primeiros estudos no interior de Alagoas e os
posteriores em Maceió. Em Maceió exerceu o cargo de diretor da Imprensa Oficial do Estado
e também, em 1933, foi nomeado Diretor da Instrução Pública. Por suspeita de ligação
com o comunismo, foi demitido e preso em 1936. Enviado ao Rio de Janeiro, permaneceu
encarcerado na Ilha Grande, onde escreveu Memórias do Cárcere. Em 1945, aderiu ao
Partido Comunista Brasileiro. 

A sua obra é imbuída da compreensão da vida que neste caso se configura


na luta pela sobrevivência. A temática é o latifúndio, a opressão do sertanejo e
a seca e suas consequências. Segundo Candido (1975), pode-se dividir os seus
escritos em três grandes grupos: o primeiro – romances narrados em primeira
pessoa, dentre os quais estão: Caetés, São Bernardo e Angústia. Nesses, o autor
aborda questões inerentes à alma humana e elabora uma análise do contexto
sociopolítico.

Em outro grupo está o romance narrado em terceira pessoa, cujos exemplos


são Vidas Secas e os contos de Insônia, nos quais predominam, segundo Candido
(1975, p. 36), “[...] uma visão mais destacada da realidade, estudando modos de
ser e condições de existência, sem obsessiva análise psicológica dos outros”. É
certo dizer então, que o ponto de interesse é o homem vinculado ao seu meio
natural, o sertão.

As autobiografias fazem parte do terceiro grupo, e, neste último, o


autor elaborou dois livros: Infância e Memórias do Cárcere. Nestas, transcende
o individual, passando para o plano social e político e atinge o universal. Em
Memórias do Cárcere, Graciliano Ramos relata o período em que ficou preso,
além da situação do país e as humilhações e sofrimentos dos presos políticos do
período da ditadura de Vargas. Nas autobiografias, transparece o depoimento e,
desse modo, em sua arte “há um desejo intenso de testemunhar sobre o homem,
e que tanto os personagens criados quanto, em seguida, ele próprio, são projeções
deste impulso fundamental, que constitui a unidade profunda dos seus livros”.
(CANDIDO, 1975, p. 36).

Nos romances, a luta pela sobrevivência é recorrente, aspecto que se


confirma pela repetição da palavra “viventes”, especialmente em Vidas Secas,

213
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

cujo enredo aborda a defesa da vida, último romance de Graciliano Ramos e o


único em que o foco narrativo está em terceira pessoa, ou, no dizer de Coutinho
(2004b, p. 404), efetuado por “um narrador onisciente que não abusa do poder de
tudo saber e vasculhar, controlando-se com frequência no emprego do discurso
indireto livre”.

O autor descreve a história de uma família de retirantes nordestinos que


foge da seca, com uma economia da linguagem que poderia ser apontada como a
característica básica. Os textos são enxutos e concisos, ou seja, não há uma palavra a
mais ou a menos, uma escrita fragmentada.

Através de capítulos justapostos, o leitor entende a realidade das


personagens e do mundo que as cerca. É dividida em várias partes que se
encadeiam, “[...] cujos títulos anunciam o que se passa”. (COUTINHO, 2004b, p.
405). O romance é cíclico, inicia-se com a seca, cujo capítulo é intitulado Mudança
e encerra-se com os prenúncios de uma nova seca, no capítulo XIII, o que obriga
os retirantes a empreender nova fuga. A obra enfatiza as personagens de Fabiano,
Sinhá Vitória, os dois meninos e Baleia. Esta última, considerada como um
membro da família, acompanha o grupo e no decorrer da história é sacrificada
por estar doente.

Em meio à paisagem hostil do sertão, o grupo humano e a cachorra se


arrastam numa caminhada silenciosa. O menino mais velho deita-se no chão,
devido à exaustão. É incapaz de prosseguir, fato este que irrita Fabiano, seu pai,
que lhe dá estocadas com a faca no intuito de fazê-lo levantar:

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes.


Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. [...]

Arrastaram-se para lá, devagar, Sinhá Vitória com o filho mais novo
escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o
aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda
de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás. Os
juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pôs-se
a chorar, sentou-se no chão.

– Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai.

Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas


o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos.
Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse. Como
isto não acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo. [...]

– Anda, excomungado.

O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração


grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe

214
TÓPICO 2 | A LITERATURA DE GUIMARÃES ROSA,

como um fato necessário – e a obstinação da criança irritava-o. Certamente


esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro
precisava chegar, não sabia onde.

Tinham deixado os caminhos, cheios de espinhos e seixos, fazia horas


que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés.

Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a ideia de abandonar o


filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, coçou a barba
ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. [...] Fabiano meteu a faca na
bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se
encolhia, os joelhos encostados no estômago, frio como um defunto. Aí a cólera
desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do
mato. Entregou a espingarda a Sinhá Vitória, pôs o filho no cangote, levantou-se,
agarrou os bracinhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como cambitos.
Sinha Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou
os juazeiros invisíveis.

E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silêncio grande.

FONTE: (RAMOS, 1993, p. 3)

Primeiramente o autor descreve a paisagem, elemento fundamental, pois


a obra tem por base a luta do homem contra o meio adverso, confirmando uma
atmosfera pesada que envolve os protagonistas. De acordo com o texto, a mãe
carrega o filho mais novo, enquanto o menino mais velho, não resistindo ao cansaço,
sucumbe. Fabiano pensa em abandoná-lo, mas apieda-se dele, colocando-o nas
costas, tornando a viagem mais lenta, ainda que sem rumo.

Uma das questões exploradas pela crítica é o fato de os filhos de Fabiano


e Sinhá Vitória não terem nomes, são citados como “o menino mais novo” e
“o menino mais velho” diferentemente da cachorra que, sendo um animal, é
identificada por um nome próprio:

A família estava reunida em torno do fogo, Fabiano sentado no pilão


caído, Sinhá Vitória de pernas cruzadas, as coxas servindo de travesseiro aos
filhos. A cachorra Baleia, com o traseiro no chão e o resto do corpo levantado,
olhava as brasas que se cobriam de cinzas.

FONTE: (RAMOS, 1993, p. 34)

Nessa perspectiva, cada membro da família é nivelado pela condição


subumana de existência e em que homens, mulheres, crianças e o animal são
colocados no mesmo plano e tratados em igualdade pelo romancista. “Baleia,
no mesmo nível dos humanos, também tem seus sonhos”, afirma Coutinho
(2004b, p. 405).

215
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

As feições e gestos da personagem de Fabiano são apresentados por um


narrador onisciente, que invade o íntimo do sertanejo. Fabiano é um homem de
aparência sofrida. Acha-se um bicho, quando faz uma autoanálise.

– Um bicho, Fabiano.
[...] Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas criara
raízes, estava plantado. Olhou os quipás, os mandacarus e os xique-xiques.
Era mais forte que tudo isso, era como as catingueiras e as baraúnas. Ele, Sinhá
Vitória, os dois filhos e a cachorra Baleia estavam agarrados à terra.

FONTE: (RAMOS, 1993, p. 8)

Em Fabiano reside o interesse da narrativa, sobretudo pela situação


próxima à animalidade que, no dizer de Coutinho (2004b, p. 405), “[...] ao julgar-
se um bicho não poderia receber maior elogio, pois a vida em tais condições
era um desafio constante”. Além disso, outra questão faz alusão à brutalidade
linguística de Fabiano, que, por sua vez, tinha por ideal o modo de falar de seu
Tomás da Bolandeira. Se Fabiano desejava saber usar as palavras na hora certa,
Sinhá Vitória sonhava com algo mais simples – uma cama de couro e se queixava
com Fabiano sobre a dificuldade de dormir na cama de varas. “Pensou de novo
na cama de varas e mentalmente xingou Fabiano. Dormiam naquilo, tinham-
se acostumado, mas seria mais agradável dormirem numa cama de lastro de
couro, como outras pessoas. Fazia mais de um ano que falava nisso ao marido.”
(RAMOS, 1993, p. 21).

O pensamento de Sinhá Vitória estava sempre na cama de lastro de couro,


ou seja, “tudo para ela termina ali”, enfatiza Coutinho (2004b, p. 405). A esposa,
há mais de um ano que discutia com Fabiano a necessidade de uma cama decente.

Os treze quadros que compõem Vidas Secas fazem o leitor acompanhar


a caminhada dos retirantes, um percurso incerto daqueles flagelados que se
movem sob um sol que brilha como se existisse somente para castigá-Ios. Obra
da tradição literária brasileira, Vidas Secas reúne todos os elementos que lembram
a miséria sertaneja. A descrição precisa das personagens e imagens do sertão, sem
contornos sentimentais, revela o dia a dia dos retirantes e a ausência de qualquer
possibilidade de vida contínua. Tudo parece inerte no tempo, os membros da
família não conseguem estabelecer uma comunhão maior entre si: o que os une é
o silêncio, a não utilização da palavra para abrir possibilidades que os levariam a
conhecer o mundo, extrapolando os limites do cotidiano.

216
TÓPICO 2 | A LITERATURA DE GUIMARÃES ROSA,

UNI

Alguns romances deste autor foram adaptados para o cinema, como, por
exemplo: 1) Memórias do Cárcere (1984). Direção: Nelson Pereira dos Santos. Com Carlos
Vereza e Glória Pires. Adaptação do romance autobiográfico de Graciliano Ramos, preso
nos anos 30, durante a ditadura de Getúlio Vargas. O diretor buscou fazer, além da crônica
política, uma reflexão sobre a inutilidade da repressão.
2) Vidas Secas (1963). Direção: Nelson Pereira dos Santos. Com Átila Lório e Maria Ribeiro.
Adaptação do romance de Graciliano Ramos sobre a história dos retirantes – Fabiano, sua
mulher, Sinhá Vitória, os filhos e a cachorra Baleia – que tentam sobreviver em meio à seca
e à miséria do sertão nordestino.

Sobre a tipologia e os regionalismos, vários são os estudiosos que se valem


da literatura para o entendimento da sociedade brasileira, especialmente os
realizados por Gilberto Freire, o qual elaborou um estudo sobre as características
socioantropológicas de personagens do romance nacional. A pesquisa do
sociólogo, segundo Coutinho (2004b, p. 273), foi orientada a partir dos seguintes
itens os quais transcreveremos na íntegra:

I. Dos mitos e símbolos remotos aos atuais: palavras e gestos expressivos de


personalidade e de comportamento de personagem do romance.
II. Exterioridades do tipo físico e possíveis correspondências de personalidade
e de temperamento de personagens de romance com essas exterioridades
simbólicas ou não.
III. Símbolos sociais e sua expressão em símbolos artísticos em romances ou
novelas.
IV. Influência do sexo, da etnia, da classe social e de outros fatores no
condicionamento de personalidades e de comportamento de personagens de
romance: expressões simbólicas dessas influências em personagens positivos e
negativos do romance.
V. Predominâncias de tipo físico como projeções, quer de normalidades de
meio e de tempo sociais, quer de seus ideais de figura humana.
VI. Tipos ideais de físico e personalidade de heróis e de vilões romanescos
como expressões de ideias de personalidade e de conduta condicionados
por meios e tempos sociais e também por vindas de outros meios e de outros
tempos sociais. Especulações sobre futuro do romance ou da novela do ponto
de vista antropológico.

217
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

Gilberto Freire analisou aproximadamente duzentos romances


pertencentes a dois tempos distintos, o patriarcal e o pós-patriarcal. Do período
patriarcal, fase áurea do romantismo, a personagem geralmente é marcada por
pouca liberdade de atitudes, desprovida de autoridade, centralizada na pessoa
do patriarca. No pós-patriarcal, segundo o estudioso, aparecem personagens com
maior liberdade de atitudes, com vivências mais pessoais de reflexo individual,
uma personagem a caminho da emancipação. Tais estudos aplicados ao romance
são reveladores de questões que fazem alusão aos temas, costumes, tipos,
linguagem regionais e, além disso, acompanham as tendências e as mudanças
que se operam no meio social. (COUTINHO, 2004b).

3 A DRAMATURGIA BRASILEIRA
No Brasil, o teatro como atividade contínua somente se alicerça após a
Independência. No entanto, já no século XVI, os autos jesuíticos fazem parte da
vida cultural da Colônia. Apresentavam enredos relacionados a santos e eram
escritos em duas ou três línguas como forma de viabilizar os intentos catequéticos.
Segundo Coutinho,

nem chegam propriamente a ser autos, na acepção rigorosa do termo,


se considerarmos a ideia da unidade que a palavra auto suscita. Serão
antes uma série de episódios esparsos [...] uma importação europeia,
mal assimilada por um meio ainda não preparado para recebê-la.
(2004c, p. 11).

No século XII, aparecem as primeiras apresentações profanas realizadas


em datas comemorativas, confundindo-se com festividades públicas. No
século seguinte, começam os primeiros movimentos para o estabelecimento de
companhias teatrais. Poucos são os documentos para a elaboração de um estudo
sobre o teatro destes primeiros três séculos. Para Coutinho, tal fato revela que
a atividade teatral “[...] não deveria ser das mais prezadas nessa sociedade de
senhores e escravos, de sólida hierarquia e rígidos preconceitos”. (2004c, p. 11).

Com a chegada da Família Real, o teatro recebeu impulsos, uma vez


que viabilizou-se a construção de um teatro no Rio de Janeiro. Foi a partir da
Independência e do Romantismo que surge de fato a dramaturgia brasileira.
Nomes como Gonçalves Magalhães, Caetano dos Santos e Martins Pena fundam
a tragédia e a comédia teatral brasileira.

No Realismo, a discussão sobre os problemas sociais sobe aos palcos


brasileiros. A reação aos excessos românticos pode ser observada na peça A Lição
de Botânica, de Machado de Assis. Nesse período, dedicam-se à dramaturgia
Joaquim José da França Júnior, Artur de Azevedo, Coelho Neto, dentre outros
escritores.

218
TÓPICO 2 | A LITERATURA DE GUIMARÃES ROSA,

Enfatiza-se que a Primeira Guerra Mundial provocou um isolamento e, com


este, se manifesta uma temática de cunho regionalista, germina assim, um teatro
nacional nas obras de Cláudio de Sousa e Gastão Tojeiro. Desse modo, o teatro
brasileiro somente se organiza, por volta de 1920, quando o sentimento nativista
e as condições materiais propiciam a formação de companhias nacionais, período
em que o teatro floresce e conquista o prestígio do público. (COUTINHO, 2004c).

Em 1930, duas peças teatrais destacam-se: Vestido de Noiva e Deus lhe


Pague. Esta última peça de Juraci Camargo aborda temas de cunho político. Foi
representada pela primeira vez em São Paulo, em dezembro de 1932 e celebrizou
o ator Procópio Ferreira (1898-1979) que encenava o protagonista e enriquece
pedindo esmola na porta de uma igreja.

A outra peça, Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, apresenta três planos,


denominados pelo autor de: alucinação, memória e realidade. A peça inicia com
o som de buzina de automóvel, um barulho de derrapagem, estilhaços de vidro,
sirene de ambulância que representam o atropelamento da personagem Alaíde.
A vítima é levada ao hospital e sua luta contra a morte refere-se ao plano da
realidade, bem como a movimentação dos repórteres, o protesto de uma leitora
de um jornal sobre o abuso de velocidade, a conversa do marido, Pedro, com
a equipe médica, o velório, o luto, e o casamento de Pedro com Lúcia, irmã de
Alaíde.

Os planos da memória e da alucinação apresentam projeções exteriores do


subconsciente de Alaíde, inconformada com as convenções sociais, repressoras
da mulher. Desejosa por transgredir o que a sociedade preconizava, Alaíde seduz
todos os namorados da irmã e acaba por se casar com Pedro. A irmã promete
vingar-se. O casamento de Alaíde e Pedro começa a dar mostras de desgaste e,
então, Lúcia trama com Pedro uma maneira de descartar Alaíde, qual seja, seu
assassinato.

Na peça, Nelson Rodrigues explora a questão da libertação feminina


também com a personagem de Madame Clessi, uma prostituta do início do século,
que havia morado na casa dos pais de Alaíde. Esta localiza o diário da prostituta,
e após esse encontro, Clessi passa a povoar a mente de Alaíde, sendo apoio para a
reconstrução dos fatos passados, revelações do subconsciente desejoso. Vejamos
parte de um diálogo entre Glessi e Alaíde:

Madame Clessi: Quer falar comigo?


Alaíde (aproximando-se, fascinada): Quero, sim. Queria...
Madame Clessi: Vou botar um disco. (Dirige-se para a invisível vitrola,
com Alaíde atrás)
Alaíde: A senhora não morreu?
Madame Clessi: Vou botar um samba. Esse aqui não é muito bom. Mas
vai assim mesmo. (Samba surdinando) Está vendo como estou gorda, velha,
cheia de varizes e de dinheiro?

219
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

Alaíde: Li o seu diário.


Madame Clessi (cética): Leu? Duvido! Onde?
Alaíde (afirmativa): Li, sim. Quero morrer agora mesmo, se não é
verdade!
Madame Clessi: Então diga como é que começa. (Clessi fala de costas
para Alaíde)
Alaíde (recordando): Quer ver? É assim... (Ligeira pausa) “Ontem, fui
com Paulo a Paineiras”... (feliz) É assim que começa.
Madame Clessi (evocativa): Assim mesmo. É.
Alaíde (perturbada): Não sei como a senhora pôde escrever aquilo!
Como teve coragem! Eu não tinha!
Madame Clessi (à vontade): Mas não é só aquilo. Tem outras coisas.
Alaíde (excitada): Eu sei. Tem muito mais. Fiquei!... (Inquieta) Meu
Deus! Não sei o que é que eu tenho. É uma coisa – não sei. Por que é que eu
estou aqui?
Madame Clessi: É a mim que você pergunta?

FONTE: (RODRIGUES, 1981, p. 115)

Alaíde projeta suas fantasias e se identifica com a vida movimentada e


desregrada de Clessi, mostras freudianas, uma vez que os planos da alucinação
e da memória se passam no subconsciente de Alaíde. Segundo Coutinho, a peça
se destaca

[...] devido à soma de inovações que enfeixou: inovações de fundo,


pela revelação da psicologia pós-freudiana e pela importância dada
à sexualidade, tema central de nossa época; inovações de forma, pelo
uso de técnicas expressionistas, tais como focalização e desfocalização
da imagem, aceleração, retardamento do ritmo [...] correntes estéticas
que se vinham manifestando na Europa desde o começo do século.
(2004c, p. 33).

Foi a peça Vestido de Noiva uma das responsáveis pelo ingresso do teatro
brasileiro no domínio da literatura. O diretor polonês Ziembinski, considerado
um gênio, engrandeceu ainda mais o texto com a montagem de 140 mudanças de
cena, inúmeros refletores divididos em um palco de três andares, simbolizando a
memória, a realidade e a alucinação. Algo impensável para os padrões da época.

Nas décadas de 1950 e 1960, as peças descreviam uma trajetória próxima


à dos romances das duas décadas precedentes, com temas e personagens
populares. Esse movimento nacionalista é percebido no teatro pernambucano,
com abordagens próximas às raízes populares regionalistas, inspirações, por
vezes, advindas da literatura de cordel e dos espetáculos das feiras, formas
de arte encontradiças no Nordeste. O escritor Ariano Suassuna transcende o
regionalismo, com o Auto da Compadecida e alcança repercussão em todo o país.

220
TÓPICO 2 | A LITERATURA DE GUIMARÃES ROSA,

Na peça, João Grilo e Chicó arrumam emprego com um padeiro de uma


pequena cidade. O cachorro da mulher do padeiro adoece e os dois rapazes vão
à igreja para pedir ao padre que benzesse o animal. O padre a princípio não
concordou, mas ao ser informado que o cachorro era de Antônio Morais, homem
poderoso, o padre aceitou benzer. Assim a peça prossegue: trata-se de uma
reflexão sobre as relações entre Deus, fé e o homem. O escritor para tanto se vale
de uma fala próxima à caricatural, uma linguagem ingênua e com personagens
representantes do coletivo.

Já a dramaturgia paulista revela preocupação com questões econômicas


e ou políticas, mostras de uma sociedade atenta às transformações capitalistas,
como é o caso das peças de Abílio Pereira de Almeida e Jorge de Andrade. Todavia,
alguns teatrólogos “[...] rejeitam sumariamente tanto a estrutura capitalista, em
nome do marxismo, como o realismo burguês, em nome das experiências de
teatro político de um Piscator e de um Brechet. (COUTINHO, 2004c, p. 36).

Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal fazem parte desse grupo. O


primeiro escreveu Eles não usam Black-Tie e Boal, a Revolução da América do Sul. Os
dramaturgos em trabalhos conjuntos passam a buscar uma nova linguagem de
palco, amparada no apelo popular da música.

No Rio de Janeiro, aparecem os humoristas e a cidade torna-se berço


das gírias e das anedotas políticas que repercutiriam em todo o país, e no teatro
florescem as comédias. Dentre elas, da década de quarenta, vale destacar Um
Deus dormiu lá em Casa, de Guilherme Figueiredo e A Canção de um Pão, de autoria
de Raimundo Magalhães Júnior. Millôr Fernandes e João Bethencourt também se
enquadram nessa linha do humorismo.

Na década de cinquenta, aparecem textos teatrais marcados pela


preocupação com as questões sociais, como O Pagador de Promessas, de Dias
Gomes, que se transforma num grande sucesso. Foi adaptado para o cinema no
ano de 1962 por Anselmo Duarte que ganha a Palma de Ouro em Cannes.

A dramaturgia brasileira é rica, mas, segundo Coutinho,

não podemos sonhar, é certo, em restituir ao teatro uma posição de


predomínio que já foi sua e hoje pertence às artes de comunicação
mecânica: rádio, cinema, televisão. [...] O teatro tende, no mundo
moderno, a transformar-se num produto de luxo, apreciado por
uma elite relativamente pequena - e é nesse sentido que se torna
compreensível o esforço realizado nos últimos por tantas companhias
em favor de um teatro popular, como meio para escapar a esta
vocação aristocratizante que, se numa primeira etapa permite sem
dúvida um refinamento de repertório (compare-se o repertório dos
grandes atores do século passado com o dos seus êmulos atuais), é
provável que com o correr do tempo venha a revelar-se restritiva e
esterilizadora. (2004c, p. 39).

221
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

Há que se mencionar ainda Antunes Filho, aplaudido pela adaptação de


Macunaíma, de Mário de Andrade, e de Nelson Rodrigues, O Eterno Retorno. A
partir do final da década de 70, aparecem grupos de criação coletiva, irreverentes
e inovadores. O que os distingue de épocas anteriores é que, atualmente, “[...]
temos na dramaturgia brasileira homens de teatro – e não poetas e romancistas
que às vezes também escrevem peças de teatro”. (COUTINHO, 2004c, p. 40).

UNI

A televisão não se manteve alheia à criação literária e passou a fazer adaptações


de romances, peças de teatro, contos e crônicas, apresentadas na forma de novelas,
minisséries ou mesmo isoladamente. Assim, foram adaptadas obras do século XIX, como
A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo; Senhora e O Guarani, de José de Alencar; A
Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães; Helena e O alienista, de Machado de Assis. De obras
do século XX tivemos: O Feijão e o Sonho, de Orígenes Lessa; As três Marias e Memorial
de Maria Moura, de Raquel de Queiroz; O Homem que sabia Javanês, de Lima Barreto; Os
Ossos do Barão, de Jorge Andrade; O Tempo e o Vento e Olhai os Lírios do Campo, de
Érico Veríssimo; São Bernardo, de Graciliano Ramos; Grande Sertão: veredas, de Guimarães
Rosa; Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto; O Bem-Amado e o Pagador de
Promessas, de Dias Gomes; Riacho Doce, de José Lins do Rego; O Sorriso do Lagarto, de
João Ubaldo Ribeiro; Agosto, de Rubem Fonseca. (NICOLA, 2003, p. 410).

222
TÓPICO 2 | A LITERATURA DE GUIMARÃES ROSA,

LEITURA COMPLEMENTAR

Caro acadêmico, enfatizamos que os escritores que se expressaram no


período pós-moderno foram de grande importância para as nossas letras. Como
maneira de enriquecer os seus estudos, optamos por transcrever um texto que
trata do escritor João Guimarães Rosa, pois entendemos que sobre este autor há
muito ainda para se dizer.

UM REGIONALISMO UNIVERSAL/CÓSMICO

Ainda que Guimarães Rosa retrate o sertão das Gerais – sul da Bahia,
norte de Minas e norte e nordeste de Goiás – e a gente que ali vive, em particular
matutos, vaqueiros, crianças, velhos, feiticeiros, loucos –, sua obra não prioriza
questões regionais, mas universais.

O sertanejo vive um impasse existencial que pode ser vivido e/ou


compreendido por qualquer um, em qualquer espaço. Segundo a crítica Nelly
Novaes Coelho, a personagem de Rosa é um “homem organicamente integrado
no universo, e vórtice (redemoinho) em que confluem forças contraditórias”.
Essa personagem passa por uma crise existencial profunda, ou por uma sucessão
delas, que a faz rever o seu ser e estar no mundo e, ao mesmo tempo, confrontar-
se com o universo concreto, com aquilo que lhe é externo.

Prisioneira desse processo, a personagem Rosiana faz um questionamento


profundo e constante do sentido das coisas, da validade de certos esforços, da
legitimidade das normas sociais e daquilo que é correntemente aceito como
verdadeiro.

Mas Rosa é um otimista. Esses processos, quase invariavelmente,


conduzem as personagens a uma ascese ou a epifanias. Sofrem um conflito,
descem aos infernos de si mesmas, mas emergem renovadas, melhores, mais
fortes, mais sábias e iluminadas. O final último é a alegria, termo abundantemente
usado pelo autor para simbolizar a aceitação da condição de ser humano, com
tudo que isso implica, e a tomada de consciência de si mesmo como uma parte
essencial do cosmo. A alegria, em Guimarães Rosa, é elevação espiritual e/ou
moral a um estado puro; é inquestionável, um passo certo rumo ao mundo
das formas perfeitas de que falava Platão. Este, aliás, é uma das influências
mais perceptíveis, dentre as muitas encontráveis na obra de Guimarães Rosa.
Note-se que estamos falando de um homem que entendia, em profundidade,
de Filosofia, dos gregos antigos aos existencialistas; um homem cuja obra
denota um contato íntimo com a Psicologia, notadamente com Freud; além de
manifestar vasto conhecimento de religiões, do Oriente ao Ocidente.

223
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

Guimarães Rosa retoma a ideia platônica presente na Alegoria das Cavernas


que se fundamenta na ideia de que existem dois planos: o mundo sensível e o
mundo dos ideais, ou das formas perfeitas. O primeiro (a “caverna”) é aquele em
que estamos; apesar de nos parecer real, o que vemos nele não passa de projeção
daquilo que é verdadeiramente real e que se passa no segundo, onde residem as
formas e ideias perfeitas.

O antigo filósofo grego crê que a alma é eterna e, portanto – ainda que não
tenham vigorado em si os parâmetros de perfeição, sejam eles estéticos ou morais
–, têm uma espécie de memória residual daquele plano; e, inconscientemente,
busca voltar, ascender a ele, retomando os referenciais verdadeiros. Essa ascese é
movida, muitas vezes, pela dor, pelo conflito: algo rompe a planura do cotidiano,
conduzindo a personagem a uma crise, que a leva a um confronto consigo mesma
e a um redimensionamento de perspectivas. O resultado desse processo, na obra
de Guimarães Rosa, é sempre positivo.

É importante frisar que esse mecanismo platônico – que implica:


ignorância e obscurantismo (mundo sensível, estado de caverna), crise, dor e
ascese (mundo das ideias) – manifesta-se em várias filosofias e religiões. Deve-se
perceber que, ainda que tenha passado para a cultura ocidental notadamente por
meio de Platão, o mundo das ideias tem um correspondente no paraíso cristão, no
nirvana budista, no plano último das reencarnações da doutrina espírita e outros.

FONTE: Adaptado de: Oliveira, 2000, p. 356

224
RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico você pôde aprofundar seus conhecimentos nos seguintes


conteúdos:

• João Guimarães Rosa, autor regionalista, se destaca pela individualidade e pelo


modo como utilizou a palavra, literariamente. Em seus textos, encontramos a
linguagem coloquial do sertanejo, aliada aos neologismos que caracterizam a
expressão do autor.

• O romance Grande Sertão: Veredas enfatiza o ser humano e o seu destino, a


sua luta entre o bem e o mal – Deus e o Diabo, além da questão estilística, os
elementos linguísticos e a temática regionalista. A narrativa é caracterizada pela
descrição dos acontecimentos por um narrador que faz digressões, alternando,
desse modo, o tempo da narrativa.

• Graciliano Ramos adotou por temática os problemas da terra, cuja ficção


constituía uma denúncia social, por trazerem à tona injustiças e a degradação
humana. Em seus romances, a luta pela sobrevivência parece ser o ponto
comum entre os personagens, a exemplo de Vidas Secas que aborda a defesa da
vida em meio à paisagem hostil do sertão.

• Sobre a tipologia e os regionalismos, Gilberto Freire elaborou um estudo sobre


as características socioantropológicas de personagens do romance nacional.
Tais estudos são reveladores de questões que fazem alusão aos temas, costumes,
tipos, linguagem regionais.

• O teatro brasileiro se organiza por volta de 1920, quando o sentimento nativista


e as condições materiais propiciam a formação de companhias nacionais. Em
1930 duas peças teatrais se destacam: Vestido de Noiva e Deus lhe Pague.

• Nas décadas de 1950 e 1960, as peças teatrais descreviam uma trajetória


próxima dos romances das duas décadas precedentes, com temas e personagens
populares. O escritor Ariano Suassuna transcende o regionalismo. O Auto da
Compadecida aborda uma reflexão sobre as relações entre Deus, fé e o homem.

225
• Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal buscam uma nova linguagem de palco
amparada no apelo popular da música e escrevem, respectivamente, Eles não
usam Black-Tie e Boal, a Revolução da América do Sul.

• Na década de cinquenta, aparecem textos teatrais marcados pela preocupação


com as questões sociais, como O Pagador de Promessas, de Dias Gomes.

226
AUTOATIVIDADE

1 Riobaldo entrou para o bando de Joca Ramiro, motivado pela presença de


Reinaldo/Diadorim por quem se apaixona. Explique por que o amor por
Diadorim deixava o protagonista confuso.

2 “Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita… estarreci. A


dor não pode mais do que a surpresa. A coice d’arma, de coronha”. O
excerto apresentado do romance Grande Sertão: veredas faz alusão:

a) ( ) A Riobaldo quando descrevia o relacionamento com as mulheres.


b) ( ) A Diadorim quando dialogava com os integrantes do grupo.
c) ( ) Ao relato sofrido de Riobaldo quando descobre que Diadorim era mulher.
d) ( ) A Diadorim discriminada pelos jagunços, por ser mulher.

3 “Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos


agarraram-se, somaram as suas desgraças e os seus pavores.
O coração de Fabiano bateu junto do coração de Sinhá Vitória,
um abraço cansado aproximou os farrapos que os cobriam.
Resistiram à fraqueza, afastaram-se envergonhados, sem ânimo de afrontar
de novo a luz dura, receosos de perder a esperança que os alentava.”
Sobre o fragmento do romance Vidas Secas apresentado, é correto afirmar:

a) ( ) Graciliano Ramos, ao apresentar no texto ficcional sua leitura sobre a


miséria nordestina, assume um posicionamento diante dos problemas
sociais.
b) ( ) O texto descreve o homem nordestino em convívio pacífico com a
natureza generosa.
c) ( ) As marcas do texto ficam evidentes na exaltação romântica da região
nordestina.
d) ( ) O ambiente em que se encontrava a família de Fabiano era um espaço
de muita fartura.

4 Uma das questões exploradas pela crítica do romance Vidas Secas faz
alusão ao fato de os filhos de Fabiano e Sinhá Vitória não terem nomes. Na
sua opinião, por que o autor faz uso de tal recurso?

227
228
UNIDADE 3
TÓPICO 3

A FICÇÃO DE TRANSIÇÃO: MODERNISMO/PÓS-


MODERNISMO

1 INTRODUÇÃO
Falar de pós-modernismo no Brasil é tarefa complexa, uma vez que a
questão de conceituação desse termo já por si só é problemática, algo que não
pode ser definido como coeso ou unânime, pois, segundo a crítica literária, não
existiu apenas uma tendência pós-moderna, mas várias, e cada uma foi cunhada
num contexto distinto para servir a fins diferentes.

É certo que a chamada era pós-modernista foi caracterizada por


manifestações derradeiras de um movimento que outrora havia revolucionado
a literatura no Brasil. No entanto, posterior à década de 1945, surgiram outros
movimentos de vanguarda, importantes e significativos porque contribuíram
sobremaneira para o desenvolvimento de uma literatura e uma poética criativa.

Vanguardas como o Concretismo – o Neoconcretismo, a Poesia Práxis,


o Poema-Processo, a Arte-Correio, as quais abordaremos neste tópico, tiveram
grande adesão e expressão artística.

2 A TENDÊNCIA PÓS-MODERNA
A década de 1950 foi marcada pelos experimentos, particularmente, na
poesia. Na época, foi organizado o grupo denominado Noigandres – a flor que
afasta o tédio – que lançava a publicação de uma revista com o mesmo nome. A
palavra foi inspirada em Ezra Pound que, por sua vez, a retirou de uma canção
trovadoresca de Anauld Daniel e significava para o grupo “poesia em progresso”.

O grupo paulista, liderado inicialmente pelos irmãos Augusto e Haroldo


de Campos e Décio Pignatari, propunha a Poesia Concreta. No ano de 1954,
Ferreira Gullar lança, no Rio de Janeiro, o livro A Luta Corporal, com experiências
poéticas que consideravam o espaço em branco do papel e as possibilidades de
diagramação da palavra em poesia, atrelando significado e significante, numa
nova concepção que se alinhava às propostas concretistas de São Paulo. Segundo
Coutinho (2004a, p. 230), “[...] o Concretismo foi um dos movimentos mais

229
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

importantes da década de 50 no Brasil, não só por sua posição vitalizante na


poesia brasileira, como pela contribuição de uma poética criativa conteudística e
visualmente”.

Tais propostas foram levadas a público em 1956, na Exposição Nacional


de Arte Concreta que reuniu artistas paulistas e cariocas no Museu de Arte de
São Paulo – MASP. A mostra expôs poemas-cartazes e esculturas concretas, tendo
dentre os participantes: os irmãos Augusto (1931) e Haroldo de Campos (1929),
Décio Pignatari (1927), Ferreira Gullar(1930) – este último pertencia ao grupo
carioca. Mais tarde, os seus representantes começaram a discordar, sobretudo
porque os do Rio de Janeiro defendiam a subjetividade na poesia, contra o que
eles consideravam excesso de “cerebralismo” dos paulistas. No entanto, as ideias
destes prevaleceram, atraindo adeptos em outros estados brasileiros e fora do
país, como Alemanha, Japão, Inglaterra e Itália, entre outros.

Há que se considerar que os concretistas reconhecem, como precursores


do movimento, Mallarmé, Apollinaire, Ezra Pound, James Joyce, Oswald de
Andrade e João Cabral de Melo Neto, além dos futuristas e dadaístas. Segundo
Oliveira (2000), os representantes do Concretismo conceberam o espaço gráfico
como agente estrutural e exploraram, além dos aspectos semânticos, som e forma
visual. Também aboliram versos e estrofes, usando a palavra no espaço branco do
papel, como o arquiteto usa o tijolo no espaço tridimensional. Vejamos o exemplo
que segue:

FONTE: (CAMPOS apud OLIVEIRA, 2000, p. 380)

230
TÓPICO 3 | A FICÇÃO DE TRANSIÇÃO: MODERNISMO/PÓS-MODERNISMO

O poema Ovonovelo (1956) de Augusto de Campos foi elaborado no início


da poesia concreta, em que imagem e forma se enriquecem reciprocamente,
através do binômio redundância/informação. Como podemos perceber, o poema
projeta a forma oval, com múltiplas informações semânticas: ovonovelo, novo
no velho, ano mero nu, mero do zero etc., marcando também as assonâncias. As
estrofes de forma oval correspondem à imagem da célula-embrião, ou seja, o ovo.

Observemos outro exemplo da poesia concreta desse autor – Poema


Pós Tudo.

FONTE: Nicola, 2003, p. 402

Augusto de Campos é considerado o mais radical dos poetas


concretistas, pois jamais se afastou dos princípios desse movimento. Além
de poeta, durante a década de 1960, foi um atuante crítico musical e um dos
primeiros a perceber o talento de Caetano Veloso e de Gilberto Gil. Em parceria
com o irmão Haroldo e com Décio Pignatari, Augusto de Campos escreveu
vários ensaios, efetuou revisões textuais de autores nacionais e traduções de
escritores da Literatura Universal.

A poesia concreta tem por concepção a invenção e a construção poética,


aliada aos recursos e técnicas visuais, pressupostos que foram absorvidos também
por Décio Pignatari, autor do livro Poesia Pois É Poesia (1977). Esta obra contém os
poemas concretos e a poesia semiótica – que tem por objeto qualquer sistema de
signos e não palavras. Observe:

231
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

FONTE: (PIGNATARI apud OLIVEIRA, 2000, p. 379)

O poema em questão tem em seu núcleo o vocábulo terra gerador do


conjunto de palavras que forma o todo. O poema concreto possui, no dizer de
Pignatari (2000, p. 77), “[...] um instrumento de controle que evidencia e elimina
os elementos que entrem em contradição com sua estrutura rigorosa”.

A poesia concretista teve em Haroldo de Campos outro representante.


Destaca-se por seus inúmeros ensaios críticos, traduções de autores como
Maiakovski, muitas em coautoria com o irmão Augusto, e por trabalhos de
pesquisa sobre a Literatura Brasileira.

Para Haroldo, a poesia concreta não deveria desprover a palavra de


seus sentidos, mas sim utilizar todas as possibilidades significativas, conforme
podemos observar em nasce morre:

FONTE: (CAMPOS apud OLIVEIRA, 2000, p. 380)

232
TÓPICO 3 | A FICÇÃO DE TRANSIÇÃO: MODERNISMO/PÓS-MODERNISMO

Observe que há uma série de movimentações interativas entre o plano


fonológico e o morfológico, e a semântica comanda a relação entre as palavras.

A poesia concreta foi uma espécie de ponte entre a Geração de 45 e as


gerações posteriores. Esse movimento contribui para o surgimento de outras
formas de expressão como o poema-processo (poema-código) e os pop-cretos,
feitos com montagens de recortes, no qual esteve representado Wladimir Dias
Pino (1927).

Como a poesia concreta esteve sempre muito próxima do visual,


foi natural que se aprofundasse o não verbal, incorporando, na sua
estrutura básica, a fotografia, a colagem, desenhos e grafismos de toda
a ordem, em estágio adiante dos seus períodos iniciais. (COUTINHO,
2004a, p. 233).

Dias Pino foi um poeta que levou ao extremo as propostas concretistas,


utilizando, especialmente, signos visuais, cuja palavra era substituída por “novas
disposições tipográficas”, resultando um poema predominantemente visual,
“semiótico”, dotado de vários recursos. Vejamos:

FIGURA 13 – A AVE

FONTE: (DIAS PINO apud OLIVEIRA, 2000, p. 398)

Poesias como esta foram exploradas pelos representantes da poesia-


processo caracterizada por signos, gerando a poeticidade pela união da poesia
com a arte gráfica.

Outra tendência foi a poesia práxis, liderada por Mário Chamie (1932),
que surgiu em 1962 pela dissidência do grupo concretista. O representante em
questão enfatizou em seu manifesto que as palavras não são inertes, mas são
dinâmicas e ligadas a um contexto extralinguístico. Segundo Coutinho (2004a,
p. 244), “[...] o poema-práxis é definido, no manifesto, como aquele que organiza
e monta, esteticamente, situada, segundo três condições de ação: a) o ato de
escrever; b) a área de levantamento; c) o ato de consumir”.

233
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

Desse modo e, segundo o que preconizava Chamie (apud OLIVEIRA,


2000), o ato de escrever exige uma tomada de consciência, pois, para o autor-
práxis, a palavra é atuante, é uma fonte, um organismo que gera outras palavras.
O poema práxis estabelece relações semânticas, afinal a palavra não pode estar
presa a um contexto específico. Observe no poema a seguir:

O tolo e o sábio

O sábio que há em você


não sabe o que sabe
o tolo que não se vê.

Sabe que não se vê


o tolo que não sabe
o que há de sábio em você.

Mas do tolo que há em você


não sabe o sábio que você vê.

FONTE: (CHAMIE apud OLIVEIRA, 2000, p. 397)

É possível perceber que essa poesia favorece um elo entre o poeta e a


vida social e, nessa perspectiva, estaria o que Chamie denominou de segunda
condição de ação da poesia práxis – a área de levantamento, cuja realidade e
objeto são transformados em problemas e virtualizados pelos possíveis sentidos.
A terceira condição – o ato de consumir – faz alusão à relação entre o leitor e
autor, no dizer de Coutinho (2004a, p. 245)

[...] deixa de ser destinatário passivo e assume o papel de coautor


daquele, já que, pela estrutura móvel do texto práxis, ele pode
interferir na estrutura e tomá-la como pré-texto, para outras soluções
de linguagem e de seu redimensionamento de seu sentido original,
dentro da mesma área levantada.

Ainda por conta dos princípios estabelecidos por Chamie, a poesia práxis
se caracterizou pelo uso de neologismos, sonoridade, expressões estrangeiras,
elementos visuais, semântica e dinamismo das palavras e leituras diversas.

Além deste, outros poetas aderiram ao movimento praxista, dentre os


quais Mauro Gama, Armando Freitas Filho, Ailton Medeiros, José Guilherme
Melquior, Camargo Meyer, Lousada Filho e Antônio Carlos Cabral.

Esteve ainda atrelado à discordância com o radicalismo do pensamento


concretista a chamada Poesia Social, cuja temática centrava-se na denúncia dos
problemas, das desigualdades sociais do país e foi desencadeada especialmente
pela ditadura militar – bem como por aspectos que abalavam o mundo, como
a Guerra do Vietnã. Os autores dessa tendência retomaram o verso e o lirismo,
utilizando referências e linguagem próximas do cotidiano, ou seja, fizeram da
poesia um instrumento de participação sociopolítica.
234
TÓPICO 3 | A FICÇÃO DE TRANSIÇÃO: MODERNISMO/PÓS-MODERNISMO

Dentre os poetas dessa vertente literária, destacamos o maranhense


Ferreira Gullar (1930). Ele foi um dos adeptos da poesia concreta que, mais
tarde, desligou-se do grupo carioca do qual era integrante e passou a dedicar-se
a um tipo de poesia completamente distinto de suas produções anteriores que o
consagrou: a poesia de denúncia social e política. Observemos:

Traduzir-se

Uma parte de mim


é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

FONTE: (GULLAR apud NICOLA, 2003, p. 9)

235
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

UNI

Em 1969, Gullar foi preso no Rio de Janeiro, com o jornalista Paulo Francis e
os compositores Caetano Veloso e Gilberto Gil. Livre da prisão, autoexilou-se em Paris, no
Chile, Peru e na Argentina. Foi durante o período de exílio (1971-1976) que Ferreira Gullar
escreveu dois de seus mais conhecidos livros: Dentro da Noite Veloz e Poema Sujo. Além de
poeta, o autor se destaca como ensaísta, crítico de arte, dramaturgo, tendo inúmeras peças
encenadas. (OLIVEIRA, 2000, p. 399).

Lembre-se, caro acadêmico, de que no período em que floresceu a poesia


social o país passava por uma grande represália política e cultural, em face à
ditadura militar. Foi nesse contexto que outros escritores, a exemplo de Affonso
Romano de Sant’Anna, se expressaram literariamente, dando origem também ao
que a crítica chamou de poesia marginal.

A poesia marginal pretendeu uma expressão livre. Para tanto, os seus


representantes buscavam formas alternativas para divulgar os seus textos e
poesias. Além de Sant’anna, outros autores são reconhecidos a exemplo de Paulo
Leminski, Ricardo Carvalho Duarte, Francisco Alvim e Cacaso.

É importante enfatizar que esse movimento ocorreu num momento de


repressão política nos fins da década de 60, motivo pelo qual os textos eram
divulgados nas ruas, praças e locais que estavam longe do alvo da censura. Com
alguns traços do concretismo, a poesia marginal foi assim denominada porque, a
princípio, podia ser lida em diversos lugares: nos muros, nos postes, nas paredes
e portas de banheiros públicos; ou em qualquer espaço que permitisse expressar
a descontração, a subjetividade, o protesto e as propostas de seus autores.
Era, portanto, uma poesia que se encontrava à margem do circuito editorial.
(OLIVEIRA, 2000, p. 400).

Observe um poema sem título de autoria de Paulo Leminski:

Eu hoje, acordei mais cedo


e, azul, tive uma ideia clara
só existe um segredo
tudo está na cara.

FONTE: (LEMINSKI apud OLIVEIRA, 2000, p. 400)

Em plena ditadura militar, o escritor Affonso Romano de Sant’Anna


publica o livro Que País é Este? – uma coletânea de poemas que abarca um panorama
crítico da sociedade brasileira do período de então. O poema que dá título ao
livro foi traduzido para o espanhol, inglês, francês e alemão, transformado em

236
TÓPICO 3 | A FICÇÃO DE TRANSIÇÃO: MODERNISMO/PÓS-MODERNISMO

posters e colocado em escritórios, sindicatos, universidades e bares. (OLIVEIRA,


2000, p. 400). Vejamos outro poema deste grande autor contemporâneo:

Separação

Desmontar a casa 
e o amor. Despregar 
os sentimentos das paredes e lençóis. 
Recolher as cortinas 
após a tempestade 
das conversas. 
O amor não resistiu 
às balas, pragas, flores 
e corpos de intermeio. 

Empilhar livros, quadros, 


discos e remorsos. 
Esperar o infernal 
juízo final do desamor. 

Vizinhos se assustam de manhã 


ante os destroços junto à porta: 
- pareciam se amar tanto! 

Houve um tempo: 
uma casa de campo, 
fotos em Veneza, 
um tempo em que sorridente 
o amor aglutinava festas e jantares. 

Amou-se um certo modo de despir-se 


de pentear-se. 
Amou-se um sorriso e um certo 
modo de botar a mesa. Amou-se 
um certo modo de amar. 

No entanto, o amor bate em retirada 


com suas roupas amassadas, tropas de insultos 
malas desesperadas, soluços embargados. 

Faltou amor no amor? 


Gastou-se o amor no amor? 
Fartou-se o amor? 

No quarto dos filhos 


outra derrota à vista: 
bonecos e brinquedos pendem 
numa colagem de afetos natimortos. 

237
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

O amor ruiu e tem pressa de ir embora 


envergonhado. 

Erguerá outra casa, o amor? 


Escolherá objetos, morará na praia? 
Viajará na neve e na neblina? 

Tonto, perplexo, sem rumo 


um corpo sai porta afora 
com pedaços de passado na cabeça 
e um impreciso futuro. 
No peito o coração pesa 
mais que uma mala de chumbo.

FONTE: Disponível em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/aromano03.html#sep>. Acesso em:


2 abr. 2011.

UNI

Este e outros poemas foram recitados por Tônia Carrero e estão disponíveis no
CD ROM intitulado Affonso Romano de Sant’Anna por Tônia Carrero – cujos textos foram
retirados da coleção Poesia Falada.

Na perspectiva da expressão poética que compreendeu a década de


1960 em diante, há que se enfatizar que a mesma reuniu várias influências da
contracultura: a poesia de protesto, de denúncia social, de esmagamento do
indivíduo na sociedade capitalista industrial, na era da conquista espacial;
o psicodelismo. Essa expressão poética abordou também o prosaísmo, a
simultaneidade de ideias e de imagens, bem como as ideias do Concretismo. Por
tudo isso, a poesia desse período é também denominada sincrética, por reunir
várias tendências diferentes. (OLIVEIRA, 2000).

3 CLARICE LISPECTOR E OUTROS REPRESENTANTES


A literatura brasileira, a partir de 1945, toma novos rumos, período que
corresponde ao término da Segunda Guerra Mundial. Artistas em geral, escritores
e poetas ajustam-se a formas e a temáticas que consideram mais adequadas para
expressar e interpretar a vida e a sociedade.

238
TÓPICO 3 | A FICÇÃO DE TRANSIÇÃO: MODERNISMO/PÓS-MODERNISMO

No Brasil, os escritores que representaram o período em questão pertencem


à terceira geração modernista ou comumente conhecida como pós-modernista,
cujo momento cultural apresenta produções literárias marcadas pelas novidades,
temas e experimentos linguísticos. Nos romances e nos contos se expandiam e se
renovavam as técnicas de expressão. A exemplo do que já havia feito o escritor
João Guimarães Rosa, também Clarice Lispector pertence à seção de escritores
ficcionistas, caracterizados pela preocupação de fazer da literatura e da realidade
nacional instrumentos de trabalho.

UNI

Clarice Lispector nasceu em Tchetchelnik – Ucrânia, em 1920, vindo com a


família para o Brasil com dois meses de idade. Em 1924, os pais fixam residência no Recife.
Aos oito anos, a escritora perde a mãe e, três anos depois, transfere-se com seu pai e suas
irmãs para o Rio de Janeiro. Clarice frequenta a faculdade de direito e, após o ano de 1943,
trabalha como redatora na Agência Nacional e como jornalista no jornal A Noite. Seu primeiro
romance, Perto do Coração Selvagem, foi publicado em 1944. A primeira edição francesa
deste livro foi realizada em 1954, o qual teve a capa ilustrada por Henri Matisse. A escritora
faleceu no ano de 1977, no Rio de Janeiro.

O nome da escritora é, sobretudo, lembrado pela tendência intimista


moderna da literatura brasileira. O fio condutor de sua obra é o questionamento do
ser e o estar no mundo e a análise do humano, resultando desse fazer o romance
introspectivo. Sobre o seu modo de escrever, assim se explicava a autora: “Não tem
pessoas que cosem para fora? Eu coso para dentro”. Devido ao fato de questionar,
os textos de Clarice Lispector apresentam certa ambiguidade, pelas antíteses entre o
“ser” e o “não ser”, o “eu” e o “não eu” já observados também na obra de Guimarães
Rosa. (NICOLA, 2003). Na epígrafe à obra A Paixão segundo G.H, escrita em 1961, a
autora expõe essa questão ambígua quando afirma que: “Uma vida completa pode
acabar numa identificação tão absoluta com o não eu que não haverá mais um eu
para morrer”. (LISPECTOR apud NICOLA, 2003, p. 383).

Sobre a introspecção, Bosi (1980, p. 390) afirma que “[...] há uma contínua
densidade na experiência existencial e o reconhecimento de uma verdade que
despoja o “eu” das ilusões cotidianas e o entrega a um novo sentido da realidade”.
É uma imersão no interior do narrador-personagem como ocorre com G.H. que
busca, em si mesma, uma identidade e as razões de viver, sentir e amar. Vejamos:

[...] estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender.


Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quem ficar como
que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização
profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que
eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar

239
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque saberia depois para


onde voltar: para a organização anterior. A isso prefiro chamar desorganização,
pois não quero não me confirmar no que vivi — na confirmação de mim eu
perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro.

FONTE: (LISPECTOR apud NICOLA, 2003, p. 383)

O romance causa no leitor uma impressão de introspecção, afinal a


escritora tinha talento para o processo de análise psicológica. Aparentemente,
suas personagens estão envolvidas com o cotidiano, quando, de repente, são
tomadas por algo que as faz estremecer que as impele a uma viagem interior, que
de maneira inevitável contribui para uma transformação radical, sendo a paixão,
nas suas várias acepções, fundamental para esse processo de mudança.

As personagens de Lispector são perpassadas pela sensibilidade, cujos


sentimentos de solidão, de culpa e de abandono, por vezes, as põem em contato
com o mal e a inveja. Desse modo, sob o olhar intimista da autora, são analisadas
e esmiuçadas. Clarice Lispector se destaca pela busca do humano em “[...]
ultrapassar o conflito que o constitui existencialmente pela transmutação mítica
ou metafísica da realidade”. “[...] O conflito, assim ‘resolvido’, força os limites do
gênero romance e toca a poesia e a tragédia”, enfatiza Bosi (1980, p. 392).

Segundo a classificação de Wolfgang Kayser (apud SILVA, 1979, p. 684),


os romances de Clarice Lispector seriam “romances de personagem”, nos quais
a escritora desenha e estuda demoradamente uma personagem, em que ser
humano e memória são inseparáveis.

No que se refere à linguagem, a autora demonstra certa preocupação com


a valorização das palavras as quais as reveste, extrapola os seus significados,
trabalhando as metáforas e aliterações. Além disso, Lispector enfatiza em seus
escritos o que não está dito em palavras, mas está subtendido, ou seja, o que está
nas entrelinhas. Para Coutinho (2004b, p. 529),

[...] a linguagem de Lispector contém como que uma armadilha: a


sua simplicidade enganosa, podendo dar ao leitor a impressão de
uma planura sem fim, de uma superfície horizontal [...]. Poderíamos
mesmo dizer que essa linguagem comum, revestindo aparentemente
um desenrolar de aparências, é um correlato, ao nível da linguagem,
da opacidade do mundo.

Desse modo, o indizível efetua-se quando do trabalhado com a palavra.


A aparente falha na construção, recurso de estilo da autora, é, na realidade, a sua
linguagem literária. Essa questão também é abordada por Coutinho (2004a) no
que se refere aos contos, que, segundo o teórico, nesse gênero, a omissão, o jogo
de escrita, não constitui problema, ainda que as frases curtas possam ser uma
cilada para um leitor menos avisado. Leiamos um conto de Lispector:

240
TÓPICO 3 | A FICÇÃO DE TRANSIÇÃO: MODERNISMO/PÓS-MODERNISMO

Uma Galinha

Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove
horas da manhã.

Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não


olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram,
apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda
ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio. 

Foi, pois, uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto voo,
inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um
instante ainda vacilou – o tempo de a cozinheira dar um grito – e em breve
estava no terraço do vizinho, de onde, em outro voo desajeitado, alcançou
um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro
pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de
uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer
esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de
banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou
o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A
perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais
de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a
galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum
auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais
ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.

Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda,
concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e
enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer
por um momento. E então parecia tão livre.

Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga.


Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É
verdade que não se pode­ria contar com ela para nada. Nem ela própria contava
consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas
galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como
se fora a mesma. 

Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz
alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em
triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa
violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos.

Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo.


Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que
fora para a maternidade, pare­cia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o
ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração,

241
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez


aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a
tudo estarrecida. Mal, porém, conseguiu desvencilhar-se do acontecimento,
despregou-se do chão e saiu aos gritos:

– Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o
nosso bem!

Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem


parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem
alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum
sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem
propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça
de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:

– Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na


minha vida!

– Eu também! jurou a menina com ardor.

A mãe, cansada, deu de ombros.

Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com
a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper
a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: “E dizer
que a obriguei a correr naquele estado!” A galinha tornara-se a rainha da casa.
Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos,
usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.

Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido,


enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga – e circulava
pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo,
embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho
susto de sua espécie já mecanizado.

Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha


que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses
momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado
às fêmeas cantar, ela não cantaria, mas ficaria muito mais contente. Embora
nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no
descanso, quando deu à luz ou bicando milho – era uma cabeça de galinha, a
mesma que fora desenhada no começo dos séculos.

Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.

FONTE: (LISPECTOR apud MORICONI, 2001, p. 258)

242
TÓPICO 3 | A FICÇÃO DE TRANSIÇÃO: MODERNISMO/PÓS-MODERNISMO

No conto, nos é apresentada uma família que não considera a galinha como
um ser, mas como uma presa doméstica a ser devorada no almoço de domingo.
Uma galinha que procura a sobrevivência, retomando seu instinto selvagem de
luta e fuga, sendo perseguida, apanhada e presa.

A autora nos revela o fato que mudaria o rumo da narrativa. A galinha,


acuada e cansada da fuga no canto da cozinha, bota um ovo:

– Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o
nosso bem!.

Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem


parturiente. [...] Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal
decidiu-se com certa brusquidão:

– Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na


minha vida!
– Eu também! jurou a menina com ardor. [...]

FONTE: (LISPECTOR apud MORICONI, 2001, p. 258)

Após a postura do ovo, a situação da galinha muda, ninguém se sente à


vontade para transformá-la em almoço. A mesma passa a morar com a família e
ocupa um lugar importante na casa. Para Coutinho (2004b, p. 551), tudo decorre
“como se ao leitor se entregasse um dócil relato, um conto, cujo narrador
descreve com conhecimento os fatos, através de um discurso indireto livre e em
terceira pessoa”.

Outra composição da autora foi o romance A Hora da Estrela. Neste, ao


elaborar o texto, percorre dois caminhos: o primeiro o de Macabéa, cujo drama
enfatiza a moça alagoana sorvida pela cidade grande. O segundo é o do narrador
que parece duelar com as palavras e os fatos.

O enredo centra-se em Macabéa, uma nordestina que migra para o


Sudeste. Maca, como o narrador passa a chamá-la, no decorrer da história,
apresenta o heroísmo dos seus irmãos bíblicos, os sete macabeus. Observemos
o trecho que segue:

Ele se aproximou e com a voz cantante de nordestino que a emocionou,


perguntou-lhe:

– E se me desculpe, senhorita, posso convidar a passear?

– Sim, respondeu atabalhoadamente com a pressa antes que ele mudasse


de ideia.

– E, se me permite, qual é mesmo a sua graça?

243
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

– Macabéa.

– Maca – o quê?

– Bea, foi ela obrigada a completar.

– Me desculpe, mas até parece doença, doença de pele.

– Eu também acho esquisito, mas minha mãe botou ele por promessa
a Nossa Senhora da Boa Morte se vingasse, até um ano de idade eu não era
chamada, não tinha nome, eu preferia continuar a nunca ser chamada em
vez de ter um nome que ninguém tem, mas parece que deu certo – parou um
instante retomando o fôlego perdido e acrescentou desanimada e com pudor –
pois como o senhor vê eu vinguei... pois é...

– Também no sertão da Paraíba promessa é questão de grande dívida


de honra.

FONTE: (LISPECTOR, 1981, p. 13)

UNI

O nome Macabéa faz alusão a um dos livros dos Macabeus, assim denominados
por causa do apelido do mais ilustre filho de Matatias, Judas, chamado o Macabeu. O
primeiro Livro dos Macabeus teria sido originalmente escrito em hebraico no início do
século I a.C., mas o original se perdeu. O tema geral dos dois livros descreve as lutas dos
judeus, liderados por Matatias e seus filhos, contra os reis sírios e seus aliados judeus, pela
libertação religiosa e política da nação, opondo-se aos valores do helenismo.

Lispector, em A Hora da Estrela, delineia uma personagem humilde


e ignorada, em que sua condição humana não era percebida por ninguém, de
modo que o narrador Rodrigo S. M., conhecedor da personagem cita que: “[...]
a pessoa de quem vou falar é tão tola que à vezes sorri para os outros na rua.
Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem ao menos a olham”. (LISPECTOR,
1981, p. 6). Para a crítica literária, a alma feminina jamais foi tão exposta como
nesse romance, narrado por um suposto homem chamado Rodrigo.

A personagem mal tem consciência de existir, mas deseja tornar-se uma


estrela de cinema, a exemplo de Marylin Monroe. Ao final da narrativa, de certa
forma, a protagonista realiza esse seu sonho e, nesse sentido, o título A Hora da
Estrela combina com o momento da morte de Macabéa. Observe como o narrador
expressa esse episódio:

244
TÓPICO 3 | A FICÇÃO DE TRANSIÇÃO: MODERNISMO/PÓS-MODERNISMO

Acho com alegria que ainda não chegou a hora de estrela de cinema
de Macabéa morrer. Pelo menos ainda não consigo adivinhar se lhe acontece
o homem louro e estrangeiro. Rezem por ela e que todos interrompam o que
estão fazendo para soprar-lhe vida, pois Macabéa está por enquanto solta no
acaso como a porta balançando ao vento no infinito. Eu poderia resolver pelo
caminho mais fácil, matar a menina-infante, mas quero o pior: a vida. Os que
me lerem, assim, levem um soco no estômago para ver se é bom. A vida é um
soco no estômago.

FONTE: (LISPECTOR, 1981, p. 84)

Clarice Lispector elabora um narrador-personagem para contar a história


de Macabéa. Desse modo, o narrador, ainda que esteja inserido no enredo, não
conta fatos pessoais, mas sim os de Macabéa. O destino de Macabéa fora traçado,
diferentemente do que lhe dissera a cartomante: de que teria uma vida permeada
pelo amor de um homem, de beleza e de prosperidade. No entanto, a protagonista
é atropelada ao atravessar a rua.

A morte é um encontro consigo. Deitada, morta, era tão grande como


um cavalo morto. O melhor negócio é ainda o seguinte: não morrer, pois
morrer é insuficiente, não me completa, eu que tanto preciso. Macabéa me
matou. Ela estava enfim livre de si e de nós. Não vos assusteis, morrer é um
instante, passa logo.

FONTE: (LISPECTOR, p. 1981, p. 86)

Para o narrador a morte é o encontrar-se. A onipotência de Rodrigo


chega ao leitor, pelo diálogo que se estabelece na relação entre escrita e leitura. O
momento derradeiro da protagonista é também o do narrador. Para os críticos,
Macabéa é a metáfora da simplicidade que a escritora Clarice Lispector buscou
em sua composição, uma narrativa organizada e tecida em um todo coerente – o
texto literário.

245
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

UNI

A Hora da Estrela (1985). Direção: Suzana Amaral. Com


Marcélia Cartaxo e José Dumont. Adaptação do romance
da escritora Clarice Lispector. O filme conta a história de
Macabéa, uma nordestina instalada em São Paulo que
procura integrar-se à cidade grande e sobreviver a ela.

Cartaz do filme A hora da estrela. (NICOLA, 2003, p. 384).

O romance A Hora da Estrela enseja a dicotomia entre a ideia de vida e a


vida, aparência e forma, vai ao encontro de uma busca do conhecer a realidade,
provocando também no leitor a reflexão sobre a realidade.

Além dos livros já citados, destacamos ainda: O Lustre e A Cidade Sitiada


(1946) – A Maçã no Escuro (1949) – Laços de Família, um livro que reúne treze contos
(1960) – A Legião Estrangeira (1964) – Uma Aprendizagem ou Livros dos Prazeres (1969)
– Felicidade Clandestina (1971) – Água Viva (1973) – Um Sopro de Vida (1978) – A Bela
e a Fera (1979), dentre outros legados.

Nesse sentido, Clarice Lispector e os outros escritores da década de 45


apresentam marcas da pós-modernidade e os subsequentes a este período, ou
seja, os dos anos 70 e 80 deram continuidade a este processo, o que contribuiu
para uma pluralidade de tendência transformando tanto a ficção como a poesia.
Segundo Coutinho,

[...] cada uma das três primeiras correntes se aproxima de uma maneira
ou de outra do código pós-modernista pela ênfase no cotidiano e a
utilização da mídia jornalística no primeiro caso, o questionamento
da lógica racionalista e da estrutura linear da narrativa, no segundo,
e a acentuação da fragmentação do texto e da polifonia de vozes, no
terceiro. (2004c, p. 239).

246
TÓPICO 3 | A FICÇÃO DE TRANSIÇÃO: MODERNISMO/PÓS-MODERNISMO

Neste período de renovação contínua, enfatizamos ainda Geraldo Ferraz.


Dentre as suas obras, destacamos o romance Doramundo (1956). Neste são
enfatizados temas recorrentes da ficção, tais como o amor e o crime. Entretanto,
o escritor soube artisticamente apresentá-los de forma inovadora tanto na técnica
como na linguagem.

O ambiente da obra em questão é Cordilheira, cidade em que as mulheres


são minoria, motivo pelo qual os homens casados sentem-se no direito de assassinar
os solteiros para que estes não seduzam as mulheres casadas. Para acabar com os
crimes, Seu Flores manda buscar algumas prostitutas para abrandar os desejos
sexuais dos rapazes solteiros. Ironicamente, Ferraz faz uma denúncia ao sistema
social e à degradação do homem. Pelo seu modo de escrever, é apontado pela
crítica como um dos marcos importantes do novo romance brasileiro.

Além deste romancista destacaremos ainda o curitibano Dalton Trevisan.


O escritor dedicou-se ao trabalho de contista. Em 1945 publicou Sonata ao Luar, e,
no ano seguinte, Sete Anos de Pastor, livros que posteriormente foram renegados
pelo autor, reportando-se a eles como barbaridades. Suas obras foram traduzidas
para diversos idiomas: inglês, espanhol, alemão, polonês, italiano e sueco.

Trevisan sempre foi desfavorável a entrevistas, fotografias e badalações.


Em 1959, o livro Novelas Nada Exemplares lhe rendeu o Prêmio Jabuti da Câmara
Brasileira do Livro. Na ocasião enviou um representante para receber o prêmio.
Devido ao seu modo de ser, criou-se uma atmosfera de suspense em torno de seu
nome, e recebeu o apelido de “O Vampiro de Curitiba”. Leiamos do contista:

Nove Haicais

1
Dou com um perneta na rua e, ai de mim, pronto começo a manquitolar.
2
Uma bandeja inteira de pastéis. Como escolher um deles? São tantos.
– Fácil: deixe que ele te escolha.
3
A tipinha de tênis rosa para o avô que descola um dinheirinho:
– Pô, você me salvou a vida, cara!
4
O inimigo de futebol:
– O meu amor pela Fifi é maior que o amor pelo Brasil.
A doce pequinesa que sofre dos nervos com a guerra da buzina, corneta,
bombinha, foguete.
5
– Sabe o que o João deu para o nenê, filho dele? Meia dúzia de fraldas
e um pião amarelo.

247
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

6
– Casei com uma puta do Passeio Público. Tinha tanto piolho que, uma
noite dormia de porre, botei um pó no cabelo dela. Dia seguinte, lavou a cabeça
e ficou meio cega.
7
De repente a mosca salta e pousa na toalha branca. Você a espanta, sem
que voe – uma semente negra de mamão.
8
Parentes e convidados rompem no parabéns pra você. De pé na cadeira,
a aniversariante ergue os bracinhos:
– Para. Para. Para.
Na mesa um feixe luminoso estraga o efeito das cinco velinhas.
– Mãe, apaga o sol.
9
A chuva engorda o barro e dá de beber aos mortos.

FONTE: (TREVISAN, 1994, p. 60)

Dentre os contos do escritor curitibano escolhemos Penélope. Neste Trevisan


narra a história de um casal com uma vida metódica que perde a quietude após
o recebimento de cartas anônimas. O fato gera no marido um ciúme paranoico e
leva a mulher ao suicídio. No conto, está presente o intertexto com a personagem
Penélope, de Ulisses.

UNI

Penélope, personagem da Odisseia, teve sua fidelidade posta à prova, quando


esperava Ulisses que estava lutando em Troia, retornar a Ítaca. Durante essa espera, Penélope
é disputada por vários pretendentes e, para despistá-los, em silêncio, tece uma mortalha e à
noite desfaz o trabalho feito durante o dia.

O conto revela uma sociedade na qual as pessoas convivem com traumas,


paranoias e medos, tais como a incerteza da traição, que, no conto em questão,
aliada à evidência concreta – as cartas anônimas – afeta o marido que passa a
nutrir um ciúme paranoico.

Penélope, a esposa, por sua vez, não revela seus pensamentos. É


enigmática, e aparece em silêncio tecendo. É diferente da Penélope, esposa de
Ulisses, esta no silêncio de seu trabalho eterniza o amor pelo marido, tece a trama
da vida e do reencontro. Já no conto de Trevisan, Penélope aparece fiando a morte
e a separação: “Entrou na sala, viu a toalhinha na mesa – a toalhinha de tricô.
Penélope havia concluído a obra, era a própria mortalha que tecia – o marido em
casa”. (TREVISAN, 1998, p. 52).
248
TÓPICO 3 | A FICÇÃO DE TRANSIÇÃO: MODERNISMO/PÓS-MODERNISMO

Penélope, a protagonista, ao contrário da personagem de Homero,


não suporta a longa espera, qual seja, o marido superar a paranoia do ciúme e
reconhecer sua fidelidade. Diante disso, decide pôr fim ao drama, senhora de seu
destino, tece o final de sua história, e deixa o marido condenado à culpa por seu
suicídio. Vejamos:

Penélope

Naquela rua mora um casal de velhos. A mulher espera o marido na


varanda, tricoteia em sua cadeira de balanço. Quando ele chega ao portão, ela
está de pé, agulhas cruzadas na cestinha. Ele atravessa o pequeno jardim e, no
limiar da porta, beija-a de olho fechado.

Sempre juntos, a lidar no quintal, ele entre as couves, ela no canteiro de


malvas. Pela janela da cozinha, os vizinhos podem ver que o marido enxuga a
louça. No sábado, saem a passeio, ela, gorda, de olhos azuis e ele, magro, de
preto. No verão, a mulher usa um vestido branco, fora de moda; ele ainda de
preto. Mistério a sua vida; sabe-se vagamente, anos atrás, um desastre, os filhos
mortos. Desertando casa, túmulo, bicho, os velhos mudam-se para Curitiba.

Só os dois, sem cachorro, gato, passarinhos. Por vezes, na ausência


do marido, ela traz um osso ao cão vagabundo que cheira o portão. Engorda
uma galinha, logo se enternece, incapaz de matá-la. O homem desmancha o
galinheiro e, no lugar, ergue-se caco feroz. Arranca a única roseira no canto do
jardim. Nem a uma rosa concede o seu resto de amor.

Além do sábado, não saem de casa, o velho fumando cachimbo, a velha


trançando agulhas. Até o dia em que, abrindo a porta, de volta do passeio, acham
a seus pés uma carta. Ninguém lhes escreve, parente ou amigo no mundo. O
envelope azul, sem endereço. A mulher propõe queimá-lo, já sofridos demais.
Pessoa alguma lhes pode fazer mal, ele responde.

Não queima a carta, esquecida na mesa. Sentam-se sob o abajur da sala,


ela com o tricô, ele com o jornal. A dona baixa a cabeça, morde uma agulha,
com a outra conta os pontos e, olhar perdido, reconta a linha. O homem, jornal
dobrado no joelho, lê duas vezes cada frase. O cachimbo apaga, não o acende,
ouvindo o seco bater das agulhas. Abre enfim a carta. Duas palavras, em letra
recortada de jornal. Nada mais, data ou assinatura. Estende o papel à mulher
que, depois de ler, olha-o. Ela se põe de pé, a carta na ponta dos dedos.

– Que vai fazer?

– Queimar.

Não, ele acode. Enfia o bilhete no envelope, guarda no bolso. Ergue a


toalhinha caída no chão e prossegue a leitura do jornal.

249
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

A dona recolhe a cestinha, o fio e as agulhas.

– Não ligue, minha velha. Uma carta jogada em todas as portas.

O canto das sereias chega ao coração dos velhos? Esquece o papel no


bolso, outra semana passa. No sábado, antes de abrir a porta, sabe da carta à
espera. A mulher pisa-a, fingindo que não vê. Ele a apanha e mete no bolso.

Ombros curvados, contando a mesma linha, ela pergunta:

– Não vai ler?

Por cima do jornal admira a cabeça querida, sem cabelo branco, os olhos
que, apesar dos anos, azuis como no primeiro dia.

– Já sei o que diz.

– Por que não queima?

É um jogo, e exibe a carta: nenhum endereço. Abre-a, duas palavras


recortadas. Sopra o envelope, sacode-o sobre o tapete, mais nada. Coleciona-a
com a outra e, ao dobrar o jornal, a amiga desmancha um ponto errado na
toalhinha.

Acorda no meio da noite, salta da cama, vai olhar à janela. Afasta a


cortina, ali na sombra um vulto de homem. Mão crispada, até o outro ir-se
embora.

Sábado seguinte, durante o passeio, lhe ocorre: só ele recebe a carta?


Pode ser engano, não tem direção. Ao menos citasse nome, data, um lugar.
Range a porta, lá está: azul. No bolso com as outras, abre o jornal. Voltando
as folhas, surpreende o rosto debruçado sobre as agulhas. Toalhinha difícil,
trabalhada havia meses. Recorda a legenda de Penélope, que desfaz à noite, à luz
do archote, as linhas acabadas no dia e assim ganha tempo de seus pretendentes.
Cala-se no meio da história: ao marido ausente enganou Penélope? Para quem
trançava a mortalha? Continuou a lida nas agulhas após o regresso de Ulisses?

No banheiro fecha a porta, rompe o envelope. Duas palavras... Imagina


um plano? Guarda a carta e dentro dela um fio de cabelo. Pendura o paletó no
cabide, o papel visível no bolso. A mulher deixa na soleira a garrafa de leite, ele
vai-se deitar. Pela manhã examina o envelope: parece intacto, no mesmo lugar.
Esquadrinha-o em busca do cabelo branco – não achou.

Desde a rua vigia os passos da mulher dentro de casa. Ela vai encontrá-
lo no portão – no olho o reflexo da gravata do outro. Ah, erguer-lhe o cabelo
da nuca, se não tem sinais de dente... Na ausência dela, abre o guarda-roupa,

250
TÓPICO 3 | A FICÇÃO DE TRANSIÇÃO: MODERNISMO/PÓS-MODERNISMO

enterra a cabeça nos vestidos. Atrás da cortina espiona os tipos que cruzam a
calçada. Conhece o leiteiro e o padeiro, moços, de sorrisos falsos.

Reconstitui os gestos da amiga: pós nos móveis, a terra nos vasos de


violetas úmida ou seca... Pela toalhinha marca o tempo. Sabe quantas linhas a
mulher tricoteia e quando, errando o ponto, deve desmanchá-lo, antes mesmo
de contar na ponta da agulha.

Sem prova contra ela, nunca revelou o fim de Penélope. Enquanto lê,
observa o rosto na sombra do abajur. Ao ouvir passos, esgueirando-se na ponta
dos pés, espreita à janela: a cortina machucada pela mão raivosa.

Afinal compra um revólver.

– Oh, meu Deus... Para quê? – espanta-se a companheira.

Ele refere o número de ladrões na cidade. Exige conta de antigos


presentes. Não fará toalhinhas para o amante vender? No serão, o jornal aberto
no joelho, vigia a mulher – o rosto, o vestido – atrás da marca do outro: ela erra
o ponto, tem de desmanchar a linha.

Aguarda-o na varanda. Se não a conhecesse, ele passa diante da casa.


Na volta, sente os cheiros no ar, corre o dedo sobre os móveis, apalpa a terra
das violetas – sabe onde está a mulher.

De madrugada acorda, o travesseiro ainda quente da outra cabeça. Sob


a porta, uma luz na sala. Faz o seu tricô, sempre a toalhinha. É Penélope a
desfazer na noite o trabalho de mais um dia?

Erguendo os olhos, a mulher dá com o revólver. Batem as agulhas, sem


fio. Jamais soube por que a poupou. Assim que se deitam, ele cai em sono
profundo.

Havia um primo no passado... Jura em vão, a amiga: o primo aos onze


anos morto de tifo. No serão ele retira as cartas do bolso – são muitas, uma de
cada sábado – e lê, entre dentes, uma por uma.

Por que não em casa no sábado, atrás da cortina, dar de cara com o
maldito? Não, sente falta do bilhete. A correspondência entre o primo e ele, o
corno manso; um jogo, onde no fim o vencedor. Um dia tudo o outro revelará,
forçoso não interrompê-la.

No portão dá o braço à companheira, não se falam durante o passeio,


sem parar diante das vitrinas. De regresso, apanha o envelope e, antes de abri-
lo, anda com ele pela casa. Em seguida esconde um cabelo na dobra, deixa-o
na mesa.

251
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

Acha sempre o cabelo, nunca mais a mulher decifrou as duas palavras.


Ou – ele se pergunta, com nova ruga na testa – descobriu a arte de ler sem
desmanchar a teia?

Uma tarde abre a porta e aspira o ar. Desliza o dedo sobre os móveis:
pó. Tateia a terra dos vasos: seca.

Direto ao quarto de janelas fechadas e acende a luz. A velha ali na cama,


revólver na mão, vestido brando ensanguentado. Deixa-a de olho aberto.

Piedade não sente, foi justo. A polícia o manda em paz, longe de casa
à hora do suicídio. Quando sai o enterro, comentam os vizinhos a sua dor
profunda, não chora. Segurando a alça do caixão, ajuda a baixá-lo na sepultura;
antes de o coveiro acabar de cobri-lo, vai-se embora.

Entra na sala, vê a toalhinha na mesa – a toalhinha de tricô. Penélope


havia concluído a obra, era a própria mortalha que tecia – o marido em casa.

Acende o abajur de franja verde. Sobre a poltrona, as agulhas cruzadas


na cestinha. É sábado, sim. Pessoa alguma lhe pode fazer mal. A mulher pagou
pelo crime. Ou – de repente o alarido no peito – acaso inocente? A carta jogada
sob outras portas... Por engano na sua.

Um meio de saber, envelhecerá tranquilo. A ele destinadas, não virão,


com a mulher morta, nunca mais. Aquela foi a última – o outro havia tremido
ao encontrar porta e janela abertas. Teria visto o carro funerário no portão.
Acompanhado, ninguém sabe, o enterro. Um dos que o acotovelaram ao ser
descido o caixão – uma pocinha d’água no fundo da cova.

Sai de casa, como todo sábado. O braço dobrado, hábito de dá-lo à


amiga em tantos anos. Diante da vitrina com vestidos, alguns brancos, o peso
da mão dela. Sorri desdenhoso da sua vaidade, ainda morta...

Os dois degraus da varanda – “Fui justo”, repete, “fui justo” —, com


mão firme gira a chave. Abre a porta, pisa na carta e, sentando-se na poltrona,
lê o jornal em voz alta para não ouvir os gritos do silêncio.

FONTE: (TREVISAN, 1998, p. 52)

Podemos afirmar que Dalton Trevisan e a sua criação literária estão em


sintonia com a modernidade. Rompe com a tradição e ao mesmo tempo a resgata
para compor o novo. Trevisan ao escrever sobre a fragilidade dos laços conjugais
e do homem, tece a literatura com fios da realidade circundante.

Destacaremos também, caro estudante, Luis Fernando Veríssimo. Este


nasceu em 1936, na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Filho do escritor
Érico Veríssimo, foi jornalista, colunista no jornal Zero Hora e na Folha da Manhã.

252
TÓPICO 3 | A FICÇÃO DE TRANSIÇÃO: MODERNISMO/PÓS-MODERNISMO

Participou também da televisão, criando quadros para o programa Planeta dos


Homens, bem como a série Comédias da Vida Privada, adaptada para a televisão
tendo por base o livro homônimo.

Um escritor perito em iludir os leitores. Segundo Manuel da Costa


Pinto, “[...] ele quer nos fazer acreditar que suas crônicas e narrativas são apenas
exercícios de humor e estilo que podem ser lidos durante o café da manhã e
esquecidos depois do almoço. Mas há algo de permanentemente sério nesse
divertimento”. (2001, p. 9).

Veríssimo soube individualizar o riso e tirar proveito ao marcar seus escritos


com um toque de humorismo, no qual o amargo é justaposto ao divertido. Seria
o riso o provocador da reflexão. Assim, o escritor não se afastou dos problemas
sociais e morais, pelo contrário, apresentou-os em situações “cômicas”.

Nesse sentido, podemos nos valer dos estudos do escritor italiano Luigi
Pirandello. Para o autor o humorismo é diferente do cômico, este não leva à
reflexão. É do humor que surge a reflexão e, a partir desta, a representação frente
à realidade passa a ser profunda, pois ao se refletir, abre-se mão do divertimento.
Em citação do próprio autor, em seu ensaio L’umorismo, existe a explicação dessa
diferença:

Vejo uma velha senhora, com os cabelos retintos, [...] toda ela torpemente
pintada e vestida de roupas juvenis. Ponho-me a rir. [...]. Assim posso,
à primeira vista e superficialmente, deter-me nessa impressão cômica.
[...] advertimento do contrário. Mas se agora em mim intervém a
reflexão e me sugere que aquela velha senhora [...] pensa que, assim
vestida, escondendo assim as rugas e as cãs, consegue reter o amor
do marido, muito mais moço do que ela, eis que já não posso mais
rir disso como antes, porque precisamente a reflexão, trabalhando
dentro de mim, me leva a ultrapassar aquela primeira advertência, ou
antes, a entrar mais em seu interior: daquele primeiro advertimento do
contrário ela me fez passar a esse sentimento do contrário. E aqui está
toda a diferença entre o cômico e o humorístico. (PIRANDELLO apud
GUINSBURG, 1999, p. 147).

A primeira impressão grotesca da mulher demasiadamente maquilada é


o que Pirandello chama de “advertimento do contrário”, ou seja, o cômico. A
reflexão trabalha no sentido de ultrapassar o advertimento e chegar ao sentimento
do contrário, o humorismo. Assim, nos parecem ser os escritos de Veríssimo. Com
base nesse pressuposto, convidamos você a refletir, lendo as duas crônicas.

O Apito

Tudo o que o Mafra dizia, o Dubin duvidava. Eram inseparáveis, mas


viviam brigando. Porque o Mafra contava histórias fantásticas e o Dubin
sempre fazia aquela cara de conta outra.
– Uma vez...
– Lá vem história.

253
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

– Eu nem comecei e você já está duvidando?


– Duvidando, não. Não acredito mesmo.
– Mas eu nem contei ainda!
– Então conta.
– Uma vez eu fui a um baile só de pernetas e...
– Eu não disse? Eu não disse?
O Mafra às vezes fazia questão de provar as suas histórias para o Dubin.
– Dubin, eu sou ou não sou pai de santo honorário?
O Dubin relutava, mas confirmava.
– É.
Mas em seguida arrematava:
– Também, aquele terreiro está aceitando até turista argentino...
Então veio o caso do apito. Um dia, numa roda, assim no mais, o Mafra
revelou:
– Tenho um apito de chamar mulher.
– O quê?
– Um apito de chamar mulher.
Ninguém acreditou. O Dubin chegou a bater com a cabeça na mesa,
gemendo:
– Ai meu Deus! Ai meu Deus!
– Não quer acreditar, não acredita. Mas tenho.
– Então mostra.
– Não está aqui. E aqui não precisa apito. É só dizer “vem cá”.
O Dubin gesticulava para o céu, apelando por justiça.
– Um apito de chamar mulher! Só faltava essa!
Mas aconteceu o seguinte: Mafra e Dubin foram juntos numa viagem
(Mafra queria provar ao Dubin que tinha mesmo terras na Amazônia, uma
ilha que mudava de lugar conforme as cheias) e o avião caiu em plena selva.
Ninguém se pisou, todos sobreviveram e depois de uma semana a frutas e
água foram salvos pela FAB. Na volta, cercados pelos amigos, Mafra e Dubin
contaram sua aventura. E Mafra, triunfante, pediu para Dubin:
– Agora conta do meu apito.
– Conta você – disse Dubin, contrafeito.
– O apito existia ou não existia?
– Existia.
– Conta, conta – pediram os outros.
– Foi no quarto ou quinto dia. Já sabíamos que ninguém morreria. A
FAB já tinha nos localizado. O salvamento era só uma questão de tempo. Então,
naquela descontração geral, tirei o meu apito do bolso.
– O tal de chamar mulher?
– Exato. Estou mentindo, Dubinzinho?
– Não – murmurou Dubinzinho.
– Soprei o apito e pimba.
– Apareceram mulheres?
– Coisa de dez minutos. Três mulheres.
Todos se viraram para o Dubin incrédulos.

254
TÓPICO 3 | A FICÇÃO DE TRANSIÇÃO: MODERNISMO/PÓS-MODERNISMO

– É verdade?
– É – concedeu Dubin.
Fez-se um silêncio de puro espanto. No fim do qual Dubin falou outra
vez:
– Mas também, era cada bucho!

FONTE: (VERÍSSIMO, 1982, p. 15)

A aliança

Esta é uma história exemplar, só não está muito claro qual é o exemplo.
De qualquer jeito, mantenha-a longe das crianças. Também não tem nada a ver
com a crise brasileira, o apartheid, a situação na América Central ou no Oriente
Médio ou a grande aventura do homem sobre a Terra. Situa-se no terreno mais
baixo das pequenas aflições da classe média. Enfim. Aconteceu com um amigo
meu. Fictício, claro.

Ele estava voltando para casa como fazia, com fidelidade rotineira, todos
os dias à mesma hora. Um homem dos seus 40 anos, naquela idade em que já
sabe que nunca será o dono de um cassino em Samarkand, com diamantes nos
dentes, mas ainda pode esperar algumas surpresas da vida, como ganhar na
loto ou furar-lhe um pneu. Furou-lhe um pneu. Com dificuldade ele encostou
o carro no meio-fio e preparou-se para a batalha contra o macaco, não um dos
grandes macacos que o desafiavam no jângal dos seus sonhos de infância, mas
o macaco do seu carro tamanho médio, que provavelmente não funcionaria,
resignação e reticências... Conseguiu fazer o macaco funcionar, ergueu o
carro, trocou o pneu e já estava fechando o porta-malas quando a sua aliança
escorregou pelo dedo sujo de óleo e caiu no chão. Ele deu um passo para pegar
a aliança do asfalto, mas sem querer a chutou. A aliança bateu na roda de um
carro que passava e voou para um bueiro. Onde desapareceu diante dos seus
olhos, nos quais ele custou a acreditar. Limpou as mãos o melhor que pôde,
entrou no carro e seguiu para casa. Começou a pensar no que diria para a
mulher. Imaginou a cena. Ele entrando em casa e respondendo às perguntas da
mulher antes de ela fazê-las.

– Você não sabe o que me aconteceu!


– O quê?
– Uma coisa incrível.
– O quê?
– Contando ninguém acredita.
– Conta!
– Você não nota nada de diferente em mim? Não está faltando nada?
– Não.
– Olhe.
E ele mostraria o dedo da aliança, sem a aliança.
– O que aconteceu?

255
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

E ele contaria. Tudo, exatamente como acontecera. O macaco. O óleo.


A aliança no asfalto. O chute involuntário. E a aliança voando para o bueiro e
desaparecendo.
– Que coisa – diria a mulher, calmamente.
– Não é difícil de acreditar?
– Não. É perfeitamente possível.
– Pois é. Eu...
– SEU CRETINO!
– Meu bem...
– Está me achando com cara de boba? De palhaça? Eu sei o que aconteceu
com essa aliança. Você tirou do dedo para namorar. É ou não é? Para fazer um
programa. Chega em casa a esta hora e ainda tem a cara de pau de inventar
uma história em que só um imbecil acreditaria.
– Mas, meu bem...
– Eu sei onde está essa aliança. Perdida no tapete felpudo de algum
motel. Dentro do ralo de alguma banheira redonda. Seu sem-vergonha!
E ela sairia de casa, com as crianças, sem querer ouvir explicações. Ele
chegou em casa sem dizer nada. Por que o atraso? Muito trânsito. Por que essa
cara? Nada, nada. E, finalmente:
– Que fim levou a sua aliança? E ele disse:
– Tirei para namorar. Para fazer um programa. E perdi no motel.
Pronto. Não tenho desculpas. Se você quiser encerrar nosso casamento agora,
eu compreenderei.
Ela fez cara de choro. Depois correu para o quarto e bateu com a porta.
Dez minutos depois reapareceu. Disse que aquilo significava uma crise no
casamento deles, mas que eles, com bom-senso, a venceriam.
– O mais importante é que você não mentiu pra mim.
E foi tratar do jantar.

FONTE: (VERÍSIMO, 2000, p. 37)

Nessa perspectiva, é válido afirmar que a literatura brasileira se


desenvolveu com a participação de escritores veteranos, novos e novíssimos.
Não é mais uma literatura paroquial, é uma literatura traduzida e lida em várias
línguas e reconhecida pelo seu alto nível, que se fez através da tradição e do novo.
(COUTINHO, 2004c). Autores estão sempre surgindo, prova de que a literatura
brasileira está atuante.

A literatura de nosso país tem, como nos diz Umberto Eco, “um poder
imaterial que de alguma forma pesa”, um convite à leitura por deleite, por
curiosidade de desvendar os segredos da alma, por prazer em apreciar uma forma
“especial” de linguagem que se difere da forma cotidiana e, por isso, chamada de
arte. (ECO, 2002, p. 6).

256
TÓPICO 3 | A FICÇÃO DE TRANSIÇÃO: MODERNISMO/PÓS-MODERNISMO

4 REFLEXÕES SOBRE A METODOLOGIA


Refletir sobre a literatura em sala de aula é pensar em questões que
envolvem a criança e o jovem leitor e sua relação com o livro, uma vez que caberá
ao professor orientá-lo para a descoberta das letras, motivá-lo a procurar outras
leituras e construir o conhecimento. Ligadas a estas há que se considerar, quando
do trabalho com a literatura, que este envolve objetivos ligados na leitura e a
produção textual. Nesse sentido,

[...] além do domínio de conteúdos referentes à teoria e história


da literatura, dispor do embasamento teórico metodológico que
lhe forneça, pelo menos, conceitos fundamentais sobre educação,
procedimentos, habilidades e competências que podem melhorar seu
desempenho na prática da sala de aula. (CAVALCANTE, 2004, p. 139).

Sendo assim, o professor deverá ter um discurso persuasivo, no intuito de


atrair o aluno e chamar-lhe atenção para o gosto da leitura e conhecimentos sobre
a temática a ser desenvolvida. Portanto, é fundamental e imprescindível que o
professor goste de ler e que seja ele também leitor.

Além disso, é preciso considerar a bagagem do aluno ou do grupo, a


fim de recomendar e averiguar o processo de trabalho com a literatura. Outro
aspecto necessário é a contextualização do texto literário em questão, ou seja, o
professor será aquele que orienta o aluno no tempo e espaço da obra a ser lida,
uma vez que entender o contexto leva o aluno a justapor a leitura ao mundo no
qual ela foi produzida e contrapondo com o momento e ou sociedade atual. Para
contextualizar a literatura, o professor poderá lançar mão de várias linguagens:
filmes, novelas de televisão, fotos, pinturas, dentre outras que poderão ser
também encontradas na internet.

Proveitoso também é remeter o texto que será abordado a outros textos


da mesma época ou de épocas diferentes. Neste caso, a intertextualidade poderá
ser idealizada, se o professor assim preferir, escolhendo um item para discutir
com a turma. Por exemplo: durante nossos estudos percebemos que há temáticas
recorrentes, uma mostra disso é a questão do ciúme. O professor, então, escolhe
dois ou mais textos e, a partir do intertexto, levanta discussões que levem à
comparação sobre as formas de abordar essa temática.

Outro fator importante diz respeito à oportunidade de expressão viabilizada


ao aluno, que poderá expor suas ideias e, durante a aula, ser emissor e receptor de
mensagens. O momento de contato com a literatura não constitui decorar listas de
livros, autores e anos, pois essa metodologia não estimula a aula e muito menos o
interesse pela literatura. É preciso ainda atentar para o biografismo e para os dados
alheios ao texto, cujos procedimentos tornam-se malsucedidos.

Os textos propostos em sala de aula devem levar em conta temas que


sensibilizem os alunos e que sejam significativos para a formação. Família,
sexualidade, trabalho, mídia, diversão, comportamento, entre outros, constituem

257
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

as opções de escolha, são atrelados à afirmação e ao projeto de vida desses jovens.


A partir da definição de espaço em que circula a diversidade de classes sociais e
econômicas, de sentimentos e de cultura é que a escola se confirma como lugar
em que é construído o conhecimento.

Nessa perspectiva, a crônica se constitui como um gênero apropriado


para essa concepção de ensino, comprometido com o aprendizado e a formação
do aluno. A crônica é ideal porque abarca relatos, memórias, figuras e tipos,
paisagens, dentre outros, configurando-se, portanto, uma viagem por meio das
palavras.

Crônica é uma palavra que encerra vários sentidos, mas todos fazem menção
à noção de tempo. Segundo Moisés (2004), na era cristã, os acontecimentos eram
relatados, em sequência cronológica, sem o aprofundamento das interpretações.
Na Idade Média a crônica atingiu o seu auge, sendo que no Renascimento o termo
foi substituído por história. Na Modernidade, a crônica a priori abordava questões
sociais, políticas e artísticas, e mais tarde o seu conceito passou a aludir o gênero
de fatos literários. “Na verdade, classifica-se como expressão literária híbrida ou
múltipla, de vez que pode assumir a forma de alegoria, necrológio, entrevista,
invectiva, apelo, resenha, confissão, monólogo, diálogo em torno de personagens
reais e/ou imaginárias”. (MOISÉS, 2004, p. 111).

Por se estruturar em pequenos textos com comentários irônicos e líricos,


alguns críticos atribuem o caráter de gênero exclusivo da nossa literatura. Por
vezes, ela é texto jornalístico, outras, opinião ou um lugar em que confluem
outros gêneros. É nesse fazer que se firma a sua permanência.

Acerca da metodologia apresentamos uma alternativa de abordagem em


sala de aula. Com isso, não pretendemos oferecer uma “receita” de como poderia
ser explorada a literatura, porém entendemos que, ao viabilizar uma sugestão, esta
poderia ser um início de uma metodologia que abarque a literatura, enfatizada
nas reflexões propostas. Para tanto nos valemos dos estudos de Luana Soares
de Souza, cuja atividade intitulada Pixadores e poetas: do muro para a sala de aula –
transcreveremos na íntegra:

Determinação do horizonte de expectativas

São afixadas no quadro-negro algumas manchetes de jornais para que


os alunos selecionem aquelas que desejam submeter a debate; ao final deste, é
feita uma votação para identificar os assuntos que despertaram maior interesse
na classe. Supondo que o grafite (pichação) tenha sido a matéria mais votada,
o professor pergunta quais são as mensagens que aparecem escritas com
maior frequência nos muros da cidade, a forma de sua apresentação e solicita
exemplos de palavras, frases e desenhos expostos daquela maneira e que são
lembrados pelo grupo.

258
TÓPICO 3 | A FICÇÃO DE TRANSIÇÃO: MODERNISMO/PÓS-MODERNISMO

Atendimento do horizonte de expectativas

A partir das ideias levantadas, a classe deve procurar os elementos


temáticos ou estruturais presentes naqueles que mais despertam a atenção,
localizando seus similares em textos literários. No caso, o professor apresenta
alguns poemas concretistas, como os de Augusto de Haroldo de Campos, de
José Paulo Paes, de Décio Pignatari, entre outros, para serem confrontados
com os grafites. Nessa comparação, são estabelecidas as formas e os conteúdos
encontrados nos textos, sendo o resultado do exame relatado oralmente; após
o término, os alunos deverão relatar a sensação que foi despertada pelas
mensagens.

Ruptura do horizonte de expectativas

Alertando que, via de regra, tanto no grafite quanto no poema


concreto, a temática passa pelo eixo dos atuais problemas urbanos, o professor
recomenda que esta receba uma leitura mais aprofundada, sugerindo o poema
“Mau cheiro” de Ferreira Gullar [...] em que o sentido das palavras, também,
surge a partir da observação da cidade, das pessoas e de seu sofrimento, isto
é, do cotidiano transformado em poesia pela visão crítica do poeta ligado ao
social. Tornando-se voz de um protesto, muitas vezes silencioso. Finalizada
a atividade, os alunos, divididos em pequenos grupos, são encarregados de
escrever um texto de caráter social em que duas palavras em cada verso são
suprimidas e deixadas lacunas em seu lugar. Os escritos são trocados para
serem completados os espaços com as palavras consideradas mais adequadas
ao sentido destes. Terminada a tarefa, os poemas completados são lidos por
seus autores originais para julgamento da nova versão à luz da ideia geral do
texto, selecionando-se algumas soluções para exposição no painel da sala de
aula; finalmente, a turma discute as semelhanças e diferenças entre aquelas e
os poemas concretistas.

Questionamento do horizonte de expectativas

Na próxima aula, o professor retoma a atividade de análise de grafites e


indaga ao grupo se este não gostaria de elaborar uma mensagem como aquela.
Para isso, são levantados alguns problemas sociais dos grandes centros e, a
partir daí, cada aluno escolhe um de sua preferência ou de sua vivência e cria
a sua mensagem para exposição à turma, podendo ser utilizados materiais
diversos, como pincel atômico, recortes de jornais, figuras, desenhos, entre
outros.

Após a finalização da tarefa, os alunos colam os textos na parede da


sala, seguindo-se a escolha dos mais criativos quanto à forma de abordagem do
conteúdo e ao apelo visual da mensagem. Através das perguntas, o professor
retorna às características do poema concretista, pontuando as semelhanças e
diferenças com as produções apresentadas pela classe.

259
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

Ampliação do horizonte de expectativas

Os comentários coletivos anteriores devem ser direcionados para a


identificação das similaridades básicas existentes entre o poema concretista e o
grafite – incorporações dos signos da sociedade moderna, unindo a exploração
de aspectos formais e a observação e representação crítica da realidade. A
partir desse fato, o professor incentiva a turma a relacionar o que foi estudado
com outros tipos de textos que contemplam a crítica social, atual ou passada,
devendo ser selecionados alguns deles para leitura posterior, seguida da
retomada do método recepcional em outras tendências contemporâneas, como,
por exemplo, na poesia marginal.

FONTE: Adaptado de: SOUZA, Luana Soares de. Explorando texto e horizontes: a estética da
recepção no ensino da literatura. In: Ensino de Língua e Literatura: alternativas metodológicas –
Canoas: Editora ULBRA, 2004. p. 179-197.

Caro acadêmico para encerrar a nossa discussão sobre a literatura


moderna e pós-moderna, apresentamos um texto de Afrânio Coutinho o qual
aborda questões inerentes a esse período literário no Brasil, especialmente no que
se refere ao período após 1945.

260
TÓPICO 3 | A FICÇÃO DE TRANSIÇÃO: MODERNISMO/PÓS-MODERNISMO

LEITURA COMPLEMENTAR

VISÃO FINAL

É possível traçar um quadro da literatura brasileira na atualidade. Em


1945, cessada a Segunda Guerra Mundial, ela foi percorrida por duas correntes.

1. De um lado, a constituída pelo grupo de poetas – sobretudo poetas – que


passaram a ser conhecidos como “geração de 45”: Ledo Ivo, João Cabral de
Melo Neto, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Domingos Carvalho da Silva,
Ciro Pimentel, André Carneiro, José Paulo Moreira da Fonseca, [...] uns de São
Paulo outros do Rio de Janeiro; estes tiveram o seu porta-voz na revista Orfeu
e na Antologia poética da geração de 45, publicada por Milton Godói Campos
(1966); e, em São Paulo, o Clube da Poesia, com a Revista Brasileira de Poesia. A
eles, podem juntar-se alguns prosadores, como Fernando Sabino (O Encontro
Marcado, 1956).

A tendência desse grupo ou geração é caracterizada por uma continuação


com aprofundamento e redirecionamento do Modernismo. É uma terceira fase
do movimento iniciado em 1922, embora noutra pauta. Reagiu contra o caráter
desleixado do Modernismo, contra o verso livre, procurava reencontrar a forma,
as disciplinas formais, o rigor formal, e, por esta preocupação geral, foi acusada
de neoparnasiana. Buscavam-se as raízes do fazer poético, a retórica do verso, do
poema, ao mesmo tempo novos significados e conteúdos, através de um trabalho
rigoroso e bem acabado, daí a preocupação com a poética e a retórica.

Não houve uma ruptura radical com o Modernismo, ao contrário, a


geração é uma continuação dele, máxime porque surgiu depois do trabalho de
reconstrução da geração que caracterizou a fase de 1930 a 1945. Mário de Andrade,
morto em 1945, atravessara as duas fases, a primeira da rebelião e destruição da
era pós-parnasiana, e a segunda, na qual se produziu uma reconstrução, por ele
mesmo propugnada no ensaio “Elegia de abril”.

A terceira fase, a da geração de 45, completou aprofundando nesse


trabalho de reconstrução. A modernidade está de pé. A tendência renovadora se
faz sentir fortemente, sob uma forma em que domina a preocupação estética,
cessada a fase de pesquisa, a que se referiu Mário de Andrade. Essa mudança
inclui as outras artes, como a pintura, com Scliar, e a música com Marlos Nobre
e Cláudio Santoro.

Além disso, o período teve um sentido universalista, uma preocupação


com o homem, graças a influências e leituras novas – Eliot, Proust, Valéry,
Ungaretti, Fernando Pessoa, Rilke, Lorca, que produziram uma abertura grande
para novos horizontes. Era, assim, pode-se dizer, uma geração aristocrática, que
não rejeitava a contemporaneidade com os grandes da primeira e segunda fase
do Modernismo. Foi, portanto, não a criadora de um novo período literário – O

261
UNIDADE 3 | MODERNISTAS E PÓS-MODERNISTAS

Neomodernismo – como a designou impropriamente Tristão de Athayde, mas a


terceira fase do período modernista, terminada no final da década de 60.

2. A partir dessa década, o Brasil foi percorrido por uma inquietação renovadora
entre os jovens, que se fazia sentir em toda parte do país. Se a geração de
45 também se preocupa com inovar, em relação ao Modernismo, embora
constituindo antes a terceira fase, por outro lado notam-se os sinais evidentes
de uma ânsia de inovação muito mais radical. Estavam esgotados os cânones
modernistas. Havia que procurar uma saída. E desde o início da década de 50
essa inquietação se fazia sentir, inclusive já com manifestações inequívocas e
precursoras de algo novo a surgir.

[...] Também a crítica literária passou por idêntico esforço renovador.


A velha crítica feita nos rodapés dos periódicos, aleatória, impressionista,
jornalística, mero noticiário mais ou menos opiniático, sem profundidade e
conteúdo doutrinário, mera recensão de livros publicados no momento, cedeu
lugar à “nova crítica”, poética, baseada na análise e julgamento estético do texto
ou obra, em que se empenhou, a partir da década de 50, Afrânio Coutinho, em
consequência de cujo trabalho as gerações novas de críticos vêm produzindo com
seriedade nas universidades e nas revistas.

[...] A partir de 1960, vários movimentos surgem com características


peculiares. E realmente novas, mostrando diferentes tendências: Concretismo,
Neoconcretismo, Poesia-Práxis, Poema-Processo, Poema-Objeto, Catequese
Poética, e grupo de poesia “alternativa”, e poesia marginal. Desde Guimarães
Rosa que está em jogo a busca de uma nova linguagem ou expressão artística
para a literatura. A palavra poética será para todos o objeto de uma pesquisa
que leve a um aprofundamento, a uma valorização, em consequência do fato de
se considerarem esgotados os recursos estilísticos tradicionais. Para isso muitos
foram buscar a associação com outras artes de domínio do plástico, do figurativo
e musical, a fim de torná-la mais apropriada às exigências da comunicação.

A consequência tem sido grande no campo das artes visuais, tornadas


muito mais significativas, desfazendo a distância entre o emissor e receptor,
penetrando neste último fortemente, quase com agressividade, com capacidade
de convicção. Ainda não possuímos perspectiva histórica para denominar o novo
período, caracterizá-lo e delimitá-lo.

Mas por volta de 1960, o Modernismo está morto. Há que registrar e


considerar as suas contribuições válidas e realizações positivas, que tiveram os
seus efeitos benéficos nos posteriores. Nenhum movimento literário tem início
e término fixos. Entrosam-se antecessores e sucessores, interpenetram-se os
elementos de uns passando para outros ou originários de antes. Ao mesmo tempo
que o modernismo termina pela terceira geração – a de 1945 – vão surgindo sinais
de nova fase. Foi o que ocorreu nas décadas de 45 e 60. Superpõem-se as correntes
antiga e nova. A geração de 45 legou aos seguintes a preocupação com a forma, a
linguagem, a busca da expressão.

262
TÓPICO 3 | A FICÇÃO DE TRANSIÇÃO: MODERNISMO/PÓS-MODERNISMO

As novas aprofundaram e revolucionaram essa tendência, criando


verdadeira revolução estético-estilística. Tanto na poesia quanto na ficção, o
Brasil, atualmente, é visto em si mesmo, uma região do mundo que merece um
mergulho de pesquisa para descobrir a sua magia, traduzi-la em mitos e símbolos.
O fato é que, em resumo, a literatura brasileira, na altura do final do século XX, e
à custa da produção dos escritores atuais, afirma-se como uma literatura própria,
autônoma, peculiar, com autonomia e identidade nacionais, sem nada a dever às
demais do Continente e da Europa. Já existe como literatura, que merece o respeito
e consideração da crítica universal.
FONTE: Adaptado de: Coutinho, 2004b, p. 362-366

Caro acadêmico, como você pôde observar, a criação artística brasileira,


que compreendeu o período do Realismo até a Contemporaneidade, foi
sobremaneira explorada em todas as suas possibilidades, especialmente na
literatura cuja trajetória foi marcada por textos que abarcam questões sobre a
descrição da realidade humana e social, sempre levando em conta as tendências
de estilo e as vertentes de cada movimento.

263
RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico você pôde ampliar seus conhecimentos acerca dos


seguintes conteúdos:

• A década de 1950 foi marcada pelos experimentos, particularmente na poesia.


Um grupo paulista, liderado pelos irmãos Augusto e Haroldo de Campos e
Décio Pignatari, propunha a Poesia Concreta.

• Os representantes do Concretismo conceberam o espaço gráfico como agente


estrutural e exploraram, além dos aspectos semânticos, som e forma visual.
Também aboliram versos e estrofes, usando a palavra no espaço branco do
papel, como o arquiteto usa o tijolo no espaço tridimensional.

• O poema concreto possui, no dizer de Pignatari, um instrumento de controle


que evidencia e elimina os elementos que entram em contradição com sua
estrutura rigorosa.

• Para Haroldo de Campos, a poesia concreta não deveria desprover a palavra


de seus sentidos, mas sim utilizar todas as suas possibilidades significativas.

• A poesia concreta, ponte entre a Geração de 45 e as gerações posteriores,


contribui para o surgimento de outras formas de expressão como o poema-
processo (poema-código) e os pop-cretos, feitos com montagens de recortes.

• A poesia-práxis, liderada por Mário Chamie, surgiu em 1962 pela dissidência do


grupo concretista. O representante enfatizou em seu manifesto que as palavras
não são inertes, mas são dinâmicas e ligadas a um contexto extralinguístico.

• Outro movimento foi a chamada Poesia Social, cuja temática centrava-se na


denúncia dos problemas, das desigualdades sociais do país e desencadeada
especialmente pela ditadura militar – bem como em aspectos que abalavam o
mundo. Os autores dessa tendência retomaram o verso e o lirismo, utilizando
referências e linguagem próximas do cotidiano, fizeram da poesia um
instrumento de participação sociopolítica.

• A expressão poética que compreendeu 1960 em diante reuniu várias influências


da contracultura: a poesia de protesto, de denúncia social, de esmagamento do
indivíduo na sociedade capitalista industrial, na era da conquista espacial, o
psicodelismo.

• A literatura brasileira, a partir de 1945 toma novos rumos, período em que


artistas em geral, escritores e poetas ajustam-se a formas e a temáticas mais
adequadas para expressar e interpretar a vida e a sociedade.

264
• Clarice Lispector pertence à seção de escritores ficcionistas, caracterizados pela
preocupação de fazer da literatura e da realidade nacional instrumentos de
trabalho. É lembrada pela tendência intimista moderna da literatura brasileira,
pois suas personagens são perpassadas pela sensibilidade, cujos sentimentos
de solidão, de culpa e de abandono as põem em contato com o mal e a inveja.

• No que se refere à linguagem, Lispector demonstra certa preocupação com a


valorização das palavras das quais as reveste, extrapola os seus significados e
trabalha as metáforas e aliterações.

• Clarice Lispector cria em A Hora da Estrela uma personagem miserável e


humilhada na cidade grande. Macabéa mal tem consciência de existir, mas tem
o desejo de tornar-se uma estrela de cinema. O título A Hora da Estrela condiz
com o momento da morte de Macabéa – o seu momento de estrela, o mais feliz
de sua vida.

• Geraldo Ferraz escreveu o romance Doramundo, no qual são apresentados


temas recorrentes da ficção, tais como o amor e o crime.

• Dalton Trevisan criou uma atmosfera de suspense em torno de seu nome, e


recebeu o apelido de O Vampiro de Curitiba.

• A literatura brasileira se desenvolveu com a participação de escritores veteranos,


novos e novíssimos. Uma literatura traduzida e lida em várias línguas e
reconhecida pelo seu alto nível, que se fez através da tradição e do novo.

265
AUTOATIVIDADE

1 Por que Clarice Lispector é denominada uma escritora


intimista?

2 Sobre a poesia concreta, identifique a alternativa que contém as palavras


que completam o pensamento dessa forma de expressão.
Os representantes do Concretismo conceberam o espaço ___________como
agente estrutural e exploraram, além dos aspectos _____________, som e
forma visual. Também aboliram __________e estrofes, usando a palavra no
espaço branco do _____________, como o arquiteto usa o tijolo no espaço
tridimensional.

a) ( ) gráfico – semânticos – versos – papel.


b) ( ) aleatório – formais – rimas – texto.
c) ( ) comum – poéticos – versos – poema.
d) ( ) poético – discursivos – palavras – verso.

3 Considere o fragmento do romance de Clarice Lispector:


“Acho com alegria que ainda não chegou a hora de estrela de cinema de
Macabéa morrer”. Qual relação pode ser estabelecida entre o título do livro
e o momento da morte de Macabéa?

266
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