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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

São Cristóvão/SE | 2021


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REITORA PRO TEMPORE | L������� �� S���� O������� B������


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������������ �� �������� ��������� | Maíra Carneiro Bittencourt Maia
����������� ������� | Luís Américo Silva Bonfim

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Alisson Marcel Souza de Oliveira


Ana Beatriz Garcia Costa Rodrigues
Carla Patrícia Hernandez Alves Ribeiro César
Cristina de Almeida Valença Cunha Barroso
Fernando Bittencourt dos Santos
Flávia Lopes Pacheco
Jacqueline Rego da Silva Rodrigues
Joaquim Tavares da Conceição
Luís Américo Silva Bonfim
Maíra Carneiro Bittencourt Maia (Presidente)
Ricardo Nascimento Abreu
Yzila Liziane Farias Maia de Araújo

������� ������� � ���������� ���������� � ���� | Jeane de Santana


����/ E������ �� ���. Ó��� S/ ���� | Artista plático Pedro Pereira
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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL


UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

Obra selecionada e publicada com recursos públicos advindos


do Edital 001/2020 do Programa Editorial da UFS.

BY NC SA
Cidade Universitária “Prof. José Aloísio de Campos”Jardim Rosa Elze.
CEP: 49100-000 São Cristóvão - Sergipe
Contatos: +55 (79) 3194-6920 Ramais 6922 ou 6923 - e-mail: editora.ufs@gmail.com
www.ufs.br/editora
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APRESENTAÇÃO

Tratar das relações entre filosofia e literatura é sempre desafiante.


Historicamente tomadas como campos inconciliáveis e, em certos ca-
sos, excludentes, estas permaneceram reféns de uma crítica, em grande
medida equivocada, do pensamento platônico para com a poesia. Nesse
sentido, a produção de trabalhos acadêmicos que busquem estimular,
não somente o uso da filosofia como ferramenta teórico-metodológica
aplicada à literatura, mas como parte integrante do tecer argumentati-
vo, ao modo de uma “transa”, tão bem formulada por Benedito Nunes,
é duplamente desafiante. Primeiro, devido às regras acadêmicas que
estruturam os cursos de filosofia e de letras nas Universidades que, no
geral, reforçam os modelos e enrijecem os parâmetros individuais de
métodos, conceitos e referenciais bibliográficos dificultando diálogos
mais criativos em relação a esses dois campos de saberes.
Em segundo lugar, o pouco estímulo à realização de trabalhos
focados no valor da literatura como forma de pensamento e, assim,
no caráter reflexivo e problematizador da obra literária, esta encara-
da como caminho de acesso crítico à realidade e ao conhecimento,
reforça preconceitos históricos, particularmente no campo da filo-
sofia, sobre literatura.
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Os trabalhos que compõem o livro aqui apresentado são curtos-


-circuitos, isto é, colapsos, pequenos choques que desestruturam, mas,
também, permitem passagens de excessos que provocam (causam e
estimulam) problemas. Frutos de investigações desenvolvidas no âm-
bito da Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Sergipe,
no período de 2014 a 2019, sob a minha orientação, os capítulos são
recortes específicos que revelam os esforços e amadurecimentos de
pesquisadores que, em certos casos, se tornaram doutorandos e seguem
na trilha filosófico-literária. Este é o caso de Rodrigo Michell Araujo, re-
cém doutor (2020) em Filosofia na Universidade do Porto (Portugal) e
Ramón Diego Câmara Rocha, atualmente doutorando em Letras pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. As temáticas transitam
entre a literatura brasileira e francesa. Em O Haikai em Paulo Leminski: tra-
dição e fundamentos de Rodrigo Araújo temos um exercício hermenêuti-
co em que os elementos orientais, presentes na obra do poeta curitiba-
no, são tratados, dentre outros marcos, à luz do pensamento filosófico
de M. Heidegger, em suas conexões poética com o Zen-budismo na-
quilo que converge para uma experiência da linguagem em seu caráter
fundante e originário. Ramon Diego, por sua vez, envereda pelos rastros
da memória na literatura brasileira, buscando compreender em que me-
dida a introdução de um novo formato de narrativas, especificamente a
memoralista, na literatura brasileira, permitiu o trânsito de um microcos-
mo (memória) para um macrocosmo (cotidiano) permitindo uma com-
preensão dos fatos sociais a partir de vivências pessoais que podem ser
descritas como uma disposição biográfica da realidade. O texto de Erick
Camilo da Silva Gouveia, busca pensar no caráter hermenêutico interno
à obra de Machado de Assis como possibilidade de acercamento não
somente às questões presentes no contexto histórico brasileiro, mas da
imbricação, interna ao jogo machadiano, entre a condição existencial
baseada nas relações senhor e escravo.
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Focando na obra de Balzac, A Comédia humana: estudos de cos-


tumes: cenas da vida privada, Otávio Monteiro, baseando-se, em par-
ticular, no pensamento de W. Benjamin, explora a imagem esgrimis-
ta deste autor como elemento decisivo para a criação de uma nova
forma de romance em que a mercantilização, expressa pelos valores
representados em seus personagens, é protagonista tanto da vida
social, como da literatura graças à revolução industrial e suas conse-
quências no campo das artes em geral.
Ricardo Itaboraí constrói sua reflexão sobre A peste, de A. Ca-
mus, explorando o que há de afluências entre a filosofia e a literatura.
Balizando-se nas reflexões de Benedito Nunes, Itaboraí problematiza
o aspecto disciplinar que norteava as relações, na antiguidade clássi-
ca, entre filosofia e literatura, chegando à conclusão de que, há uma
desarticulação, na obra de Camus, graças ao aspecto de resistência a
essa disciplinaridade, que permite o postulado de uma prosa que, ao
se apropriar dos elementos abstratos filosóficos, se enquadraria no
que poderíamos chamar de romance filosófico.
De modo que temos cinco olhares construídos a partir dos
exercícios fronteiriços em que a filosofia e a literatura se ligam ca-
pacitando transmissões e correntes de ideias que se intensificam e
se configuram em curtos-circuitos que provocam e estimulam o pen-
samento. Gostaria de agradecer a Elí Celso Araújo Dantas da Silveira
pela leitura atenta e sugestões.
Prof. Dr. Cícero Cunha Bezerra
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SUMÁRIO

08 O Haikai em Paulo Leminski: tradição e fundamentos


Rodrigo Michell Araujo

58 Os rastros da memória na literatura brasileira:


uma abordagem hermenêutica
Ramon Diego Câmara Rocha

79 Machado de Assis: “Memórias póstumas de Brás


Cubas”,um olhar hermenêutico da realidade.
Erick Camilo da Silva Gouveia

101 Balzac: a capitalização do espírito humano


Otávio Monteiro

156 Afluências da escrita narrativa e filosófica e espaço


literário em A Peste, de Albert Camus
Ricardo Itaboraí Andrade de Oliveira
O HAIKAI em Paulo Leminski: tradição e fundamentos1
Rodrigo Michell Araujo2

INTRODUÇÃO

Paulo Leminski foi um poeta inquieto, e


talvez um dos nomes mais versáteis da litera-
tura brasileira contemporânea. Seus disfarces
logo se notam nas suas assinaturas, transi-
tando de Paulo Leminski à “p. leminski”, como
passou a assinar em alguns textos, ou simples-
mente Leminski. Poeta mestiço, meio polonês,
meio negro, nascido em 1944, nas proximida-
des do fim de um grande Guerra Mundial que
daria outra coloração ao mundo. Uma espécie
de tímido frenético, navegando pelo concre-
tismo, flertando as vanguardas. Foi jornalista,

1 Este artigo é uma versão, com algumas modificações,


do terceiro capítulo de nossa dissertação de mestrado,
Haikai de mim haikai do mundo: o nada na poesia de
Paulo Leminski, defendida em 2014 na Universidade Fe-
deral de Sergipe.
2 Doutor em Filosofia pela Faculdade de Letras da Uni-
versidade do Porto, Portugal (2020). Mestre em Letras
(Estudos Literários) pela Universidade Federal de Sergi-
pe (2014). Investigador Colaborador do Grupo “Raízes
e Horizontes da Filosofia e da Cultura em Portugal”,
ligado ao Instituto de Filosofia da Universidade do Por-
to, e membro do CIMEEP (Centro Internacional e Mul-
tidisciplinar de Estudos Épicos), ligado à Universidade
Federal de Sergipe, na linha Épica, Filosofia e Religião.
E-mail: rodrigo.literatura@gmail.com

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profissão que mais admirou e à qual se prestou até quase o final da


vida, publicitário, músico, professor, escritor, ensaísta, contista, tra-
dutor. Sua vida, um verdadeiro fluxo. Homem vário, mas sem nunca
deixar de lado o poético.
Escriba, anarquista com altas ideias pintando à mente, espírito
ambulante e delirante da contracultura, como se, hippie, irisasse o
Woodstock. Assim podemos definir a “linha Paulo Leminski”, sinuosa,
ondeada, de altos e baixos, sobretudo nos decisivos anos 1970, em
que uma grande onda lisérgica se espalhava por Curitiba, sua cidade,
principalmente na segunda metade deste decênio, fase de grande
importância para Leminski, pelas suas parcerias com grandes músi-
cos, mas também pelo mergulho no universo dos “graffitis” e da “poe-
sia espontânea”.
Caracterizar o poeta Paulo Leminski é nunca perder de vista o
seu empenho e comprometimento com a poesia, fazendo desta a
sua profissão mais nobre. A poesia estava em tudo, pois ela é o “ali-
cerce” tanto da sua vida quanto da sua obra. Basta tomarmos a sua
obra de ensaios, curiosamente intitulada Ensaios e anseios crípticos.
Apesar de ser uma coletânea de textos que alterna entre o teórico e
o prático, isto é, que vai de ensaios que versam temas mais abrangen-
tes a exercícios críticos de alguns de seus autores de predileção, po-
demos observar alguns ensaios escritos em verso, como “A recupera-
ção da informação”, “Poesia de produção e poesia de comunicação”3,
sem passar ao lado o poema “Invernáculo” que abre a obra, invocan-
do, em seus versos, os “anseios” em forma de ensaio que ali o leitor
encontrará. Se Leminski encerra este poema com o verso “Eu, meio,
eu dentro, eu, quase” (LEMINSKI, 2011, p. 11), já nos deixa a pista da
“diluição” da poesia no gênero ensaístico.

3 Ambos ensaios constam da segunda edição de Ensaios e anseios crípticos (2012), não
figurando a primeira edição, de 2011, pela Editora da Unicamp.

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Para o nosso propósito de analisar os haikais de Paulo Leminski,


que por si só constituem um volumoso corpus em sua obra, é incontor-
nável destacar uma linha de força que é central em toda sua obra, que
é o comprometimento com a linguagem – advindo daí o íntegro com-
promisso com a poesia. Invariavelmente isto perpassa para o seu esti-
lo de vida, talvez o mais autêntico dentre os poetas de sua geração, ou
seja, Leminski desde cedo travou uma constante luta com a linguagem,
mas para nela se diluir e se desmanchar4, minando sua obra de humor, de
angústias e de muitos anseios. Nas malhas da linguagem Leminski quis
“transar bem todas as ondas” (LEMINSKI, 1995, p. 24), justificando aí sua
inquietação por experimentar de tudo no campo da poesia, do visual ao
sonoro. Sua obra é um constante jorrar de “palavras saindo das palavras”
(REBUZZI, 2003, p. 42), até o ponto em que ele próprio se converta em
sua obra e tornem-se um só, basta lembrarmos dos seguintes versos: “vai
vir o dia / quando tudo que eu diga / seja poesia” (LEMINSKI, 1983, p. 58).
E quanto a isso, teve muita pressa, como se já pressentisse, em espécie
de presságio, que a vida seria tão rápida quanto um haikai, uma vez que
morre aos quarenta e quatro anos, em 1989.
Mas a paixão de Leminski pela linguagem tinha um objetivo. Com
a linguagem, Leminski quis levar a poesia à vida, certamente dinami-
tando aqui um velho legado formalista que confinou a obra literária
numa espécie de invólucro contra a realidade – de algum modo, todo
o projeto da poesia de vanguarda brasileira e a dita poesia marginal
teve esse foco muito bem estabelecido, e não só, note-se todo o traba-
lho crítico de Antonio Candido voltado para aquele “direito à literatura”
de se relacionar com o contexto, com sua época, quando o externo se
constitui no interno5.A obra literária não pode estar de costas voltadas
4 Fazemos referência aos seguintes versos de Leminski, “Apagar-me / diluir-me / desman-
char-me”, em Caprichos e Relaxos (1983, p. 66).
5 Apropriamo-nos da seguinte citação de Antônio Cândido, no ensaio “Crítica e Sociolo-
gia”, de 1961: “Importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento
que desempenha certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, in-

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à realidade, e Leminski tomou isto como uma bandeira. Seu projeto


sempre foi, portanto, fazer uma poesia ao serviço da vida. Em muitas
cartas a Régis Bonvicino, seu biógrafo, Leminski trata desta questão, a
exemplo da “Carta 10”: “É a linguagem que está a serviço da vida / não
a vida a serviço da linguagem” (LEMINSKI, 1999, p. 53).
Da vida, podemos retornar à própria poesia, completando uma
circularidade. Não obstante encontrarmos algumas cartas onde
o poeta afirma que “[...] são as palavras que estão na vida / não é a
vida que está nas palavras” (carta 30)6, bem como “é a poesia q [sic]
está dentro da vida, não o contrário...” (carta 42)7, podemos interpre-
tar que, no horizonte da relação poesia/vida, Leminski perfilou a sua
obra de vida para que, no fim, se tornasse um texto-pulsação. Por isso
mesmo Leminski, dentre os seus contemporâneos, seja um herdeiro
direto daquela geração que melhor mesclou poesia e vida, a saber:
a geração beat. Uma geração norte-americana que levou às últi-
mas consequências a intensa confluência das esferas da “produção
simbólica, da vida e dos acontecimentos históricos e sociais” (WILLER,
2009, p. 26). Entre a escritura e o mundo, uma literatura de estrada,
viajante, pulsante, vivaz, veloz, e que certamente deságua na poesia-
-vida leminskiana e na poesia despojada do momento contracultural
no qual o poeta estava inserido.
Desta forma, o compromisso com a linguagem quer dizer com-
promisso com a vida, e sobretudo com o lugar que o poeta ocupa
nesta. Advém daí o nosso interesse pelo estudo dos haikais em seu
corpus. Para além de Leminski ter tido uma vida tão breve como um
haikai, e pese o fato de todas as suas obras de poesia conterem esta
forma nipônica de composição, reside aqui, ao nosso ver, o essencial
da poesia de Paulo Leminski: a brevidade. Breve e veloz, o próprio
terno” (CANDIDO, 2000, p. 6, grifo do autor)
6 Leminski, (1999, p. 83).
7 Idem, p. 113.

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Leminski diz que “a brevidade pertence à essência mesma da poesia”


(LEMINSKI, 1999, p. 194). Se foi projeto de Leminski unir poesia e vida,
em levar a poesia à vida, nada mais adequado a este projeto que o
haikai, gênero que carrega em si uma brevidade essencial.
Convém notar que na fortuna crítica de Leminski uma investiga-
ção centrada em seus haikais ainda permanece às escuras. Nas obras de
maior circulação de seus intérpretes, podemos encontrar algumas apro-
ximações, mesmo que à margem, em Manoel Ricardo de Lima (2004, p.
97), que tece algumas “pontes” com o Zen-budismo, e em Fábio Vieira
que, em seu Oriente Ocidente através (2010), dedica algumas passagens
à “influência” nipônica na obra do poeta de La vie en close. Tanto nessas
obras como em antologias críticas de fôlego, como A linha que nunca
termina (2004), sob a organização de André Dick e Fabiano Calixto, a in-
vestigação do haikai e da influência do pensamento oriental se dá ape-
nas de forma tangenciada, com tímidas ilustrações ou como capítulos
– como é o caso da tese de Elizabeth Rocha Leite, A experiência dos limites
(2008, p. 91-116), dedicando o capítulo final ao Zen-budismo e ao haikai
pela esteira da síntese disjuntiva em Gilles Deleuze. Deste modo, acre-
ditamos ser necessária uma investigação que se debruce sobre a pro-
dução haikaística de Leminski, especialmente voltada para os seus elos
com a tradição nipônica, que é o nosso objetivo.
Podemos dizer, portanto, que se Leminski fez “da realidade uma
das linhas de força de sua poética”, como afirma Maria Esther Maciel
(2004, p. 171), poderemos assim tomá-la como fio condutor rumo à
análise desta composição tradicional advinda dum certo Oriente – o
que nos obriga, num primeiro momento, a destacar, mesmo que de
maneira abreviada, algumas questões acerca do gênero haikai, bem
como daquilo que está envolto, isto é, a cultura, apenas para não cor-
rermos o risco de cair em questões monolíticas acerca de um velho
“interesse” do Ocidente pelo Oriente.

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A tese que aqui defenderemos é a de que os haikais de Leminski


dialogam com a tradição e por isso mesmo estabelecem uma densa
carga imagética e contemplativa da natureza, o que nos possibilitará
argumentar que o haikai, em Leminski, é uma possível via para uma
experiência contemplativa, fazendo da palavra uma palavra búdica.
Para isso, propomos a análise de duas obras fundamentais de seu cor-
pus poético: Caprichos e relaxos e La vie en close, obras que englobam
a sua produção dos anos 1970 e 1980, mas que ao mesmo tempo nos
fornecem um rico material para a investigação, devido à intensida-
de de criação desta brevidade essencial que carrega o gênero haikai,
revelando assim um grande fôlego poético do autor. Justificaremos,
ao longo do trabalho, que tal estudo se faz necessário não apenas
pelo volumoso número deste tipo de composição no conjunto de
sua obra, mas por demonstrar a centralidade da presença nipônica
tanto em sua vida quanto em sua obra.

O HAIKAI, OU A PALAVRA BÚDICA

Uma página em branco. Uma página-silêncio. Estática, mas à es-


pera de algo que vem de não se sabe onde, algo que a preencha, que
a invada, que se derrame sobre a absoluta imensidão de seu hori-
zonte. Profundidade tão abismal a ponto de fazer aquele diante da
página, o leitor, perder-se, fugir e também pôr tudo a fugir. Mas o
leitor está diante de um silêncio que fala. Um silêncio que quer ser
ouvido, que chama, que se movimenta. E com isso se põe a meditar.
Página-meditação. Nesse palco-página que a escritura perfura e se
dispersa até às últimas camadas, como um córrego desenfreado a
tudo preencher, as palavras dançam pelas frestas. Veloz, como um
lance mallarmaico, é na totalidade página à espera que os versos cor-
ram soltos e loucos, em frenéticas idas e vindas.

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A tradicional poesia japonesa sempre versou em uma composi-


ção de cinco e sete sílabas, e um grande pilar característico de sua for-
mação foi a noção de brevidade. Duas principais formas poéticas des-
tacam-se: o tanka, poema composto de cinco versos em duas estrofes
e contemplando trinta e uma sílabas, difundido a partir do século VII,
no Período Nara; (710 d.C. – 794 d.C.); e o renga, engenhosa composi-
ção coletiva bastante praticada entre os séculos XII e XVI (isto é, vai do
Período Heian ao Período Muromachi), compreendendo duas estrofes
em que a primeira estrofe (hokku) figurava um esquema de “cinco-se-
te-cinco” sílabas, e a segunda com sete sílabas, assim sucessivamente,
formando um longo poema. Dois gêneros basilares para a evolução
literária japonesa, por trazerem para a criação literária, cada um com
seus usos particulares de linguagem, a realidade. É no momento de
passagem para o século XVII que reside a gênese do haikai: no despo-
jamento do renga, quando a estrofe hokku ganha autonomia e passa a
ser simplesmente haikai, isto é, uma composição de três versos distri-
buídos em um esquema de “cinco-sete-cinco” sílabas poéticas.
Embora o haikai seja um gênero curioso pela sua síntese na es-
trutura, tendo marcado não só a literatura japonesa, como tendo des-
pertado interesse de uma legião de poetas no Ocidente, aos olhos da
teoria e crítica literárias ainda fica reservado à penumbra8.
8 Nos manuais de teoria literária, muito pouco se fala de haikai em matéria de formas
poéticas. Encontramos em Hênio Tavares, no seu compêndio Teoria Literária (1981), a
classificação de haikai na seção de gênero lírico, e assim nos diz: “espécie literária japo-
nesa, de forma fixa, em estrofes de três versos. A estrofe deve conter dezessete sílabas
métricas” (TAVARES, 1981, p. 285). Em Massaud Moisés, notório estudioso de literatura
portuguesa e da criação literária, também pouco se vê a despeito do haikai, apenas
uma breve passagem, em Literatura: mundo e forma (1982, p. 308-309) ao abordar o
limite ó[p]tico das formas em consonância com a realidade, embora seja em seu Dicio-
nário de termos literários (2004) que encontremos uma justa definição, e que a nós nos
interessa em particular: “Semelhante pela forma ao epigrama, o haicai deve concen-
trar em reduzido espaço um pensamento poético e/ou filosófico, geralmente inspira-
do nas mudanças que o ciclo das estações provoca no mundo concreto. Destituído de
rima no original, o haicai pressupõe a leitura silenciosa, visual e mental a um só tempo,
e encerra força onomatopaica ou imitativa, de modo que se fundam a carga semântica
e a massa sonora, a percepção e o significado. Busca alcançar o reino da Sensação [...]”

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Tradicionalmente, a matéria do haikai é a realidade, as estações do


ano, a natureza, são estes os seus temas maiores. O haikai capta a realida-
de como se a fotografasse. Um recorte. Um fragmento. Um documento
do mundo, ou melhor, como afirma Fernando Rodríguez-Izquierdo, em
Haiku japonés: historia y traducción (2010, p. 30), o haikai “se ocupa só da
vida. É como a flor da existência, e despreocupa-se do transcendente,
mas desvela nas coisas uma natureza divina imanente a elas”9.
Note-se que o haikai remete ao século XVII – Era Genroku (1668
– 1703), ou Período literário Kinsei10 –, e advém daí o poeta Matsuó
Bashô, que popularizou o gênero em maior grau que o renga. Edu-
cado desde cedo a ser samurai, Bashô teve uma vida errante e em
seu nomadismo “se lançou a uma vida de pobreza e peregrinação
para adquirir conhecimento diretamente da natureza” (RODRÍGUEZ-
-IZQUIERDO, 2010, p. 68)11. Para Bashô, a poesia só era possível com o
contato do poeta com a natureza – por isso o haikai tem fortemente
um tom rural e bucólico, fruto de tais experiências. Quanto à forma,
vale destacar que Bashô não se opõe à tradição nem é precursor de
novos modelos, mas a sua importância e sua originalidade estão em
revigorar a difusão do gênero poético através de uma “excessiva sim-
plicidade, prosaísmo, jogos verbais” (Idem, p. 65)12 que aproxima cada
vez mais a poesia do seu público leitor, desatando os nós com uma

(MOISÉS, 2004, p. 217). Interessa-nos este verbete de Massaud Moisés por elencar as
duas grandes características presentes na poesia japonesa da época e que o haikai
herdará: a brevidade e a inscrição das estações do ano. Veloz em sua estrutura, como
se querendo chegar mais rápido ao leitor, sua busca pelo “reino da sensação” percorre
uma natureza sem fim e faz do próprio haikai uma poesia das sensações.
9 “El haiku se ocupa sólo de la vida. Es como la flor de la existencia, y se despreocupa del
más allá, pero desvela en las cosas una naturaleza divina inmanente a ellas”. Tradução
literal nossa.
10 Cf. especialmente a oitava parte da obra História da cultura japonesa (1986, p. 149-
182), de José Yamashiro.
11 “Se lanzó a una vida de pobreza e peregrinaje para aprender directamente de la natu-
raleza”.
12 “Excesivasimplicidad, prosaísmo, juegos verbales”.

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poesia erudita em que preponderava certo hermetismo da antiga


forma tanka. A lição que deixa Bashô para o haikai (e para os poetas
futuros) é que a poesia deve ser fruto de uma intensa observação
direta e imediata do mundo, ou seja, “uma forma de ver e de viver o
mundo” (FRANCHETTI, 2012, p. 20).
O haikai curiosamente rompeu as fronteiras orientais e encon-
trou solo fértil em muitos outros países, especialmente pelo caráter
veloz, ganhando a admiração de muitos poetas que se valeram do
gênero para fotografar o mundo – por isso o haikai desperta sem-
pre um interesse semiótico13 – mas também para estabelecer um elo
mais “íntimo” com a natureza.
No Brasil, podemos encontrar alguma bibliografia que se volta
às origens e recepção do haikai em nossa literatura. Sem dúvida, a
obra de Luiza Lobo, O haikai e a crise da metafísica, é de algum modo
pioneira pelo seu estudo hermenêutico filosófico-literário, afirmando
que “no ocidente, a busca do haikai deriva de uma necessidade de se
reencontrar o símbolo, de se superar a fragmentação resultante dos
efeitos do capitalismo e do cosmopolitismo modernos, que acarre-
tam o excesso de fragmentação” (LOBO, 1993, p. 68). A obra de Lobo
faz um breve panorama da prática do haikai no Brasil, muito embora
a autora se perca em algumas colocações generalizadas de que “ser
haikaísta significa pertencer a um clube seleto e intelectual” (Idem,
p. 66) – o grande empenho de Bashô é que o haikai justamente não
seja de um grupo seleto e muito menos intelectual; e como veremos
adiante, no Brasil essa concepção não condiz. Não obstante o estudo
realizado por Luiza Lobo, com suas ressalvas14, torna-se incontorná-
13 Vale conferir, em Ensaios e anseios crípticos (2011, pp. 139-143), o ensaio “Click: Zen
e a arte da fotografia”, onde Leminski explora esta relação entre a poesia (haikai) e a
imagem (fotográfica).
14 Para uma leitura mais informatizada e até didática, vale conferir o ensaio de Paulo
Franchetti, “Haikai no Brasil” (2012), sem dúvida uma leitura de fôlego, passando tanto
pela crítica literária, em Afrânio Coutinho, até o uso do haikai pelos modernistas, che-

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vel a obra de Masuda Goga, O haicai no Brasil (1998), que tenta seguir
a trilha de imigrantes japoneses entre as décadas de 1930 e 1940 que
compuseram haikais no Brasil – embora a obra se limite até a década
de 1950, ela constitui um bom corpus de haikaístas da primeira me-
tade do século.
Ao passo que alguns modernistas brasileiros se interessaram pelo
haikai, pela sua rapidez e, digamos, pela sua aparente simplicidade na
composição (não percamos de vista o largo salto temporal operado
aqui), outros poetas certamente foram mais longe, no sentido de res-
gatar a tradição nipônica, ou pelo menos percorrer o caminho trilha-
do por Bashô no século XVII e que, de algum modo, é o “caminho” do
haikai. Invariavelmente é neste caminho que Leminski se insere.
Como o haikai encontra solo fértil em nossa literatura, antes
precisamos demarcar o interesse por um certo Oriente. Quando pen-
samos neste “Oriente distante”, e mais especificamente no Japão, é
mais ou menos comum recorremos ao chavão de “país fechado”, ideia
que ficou no imaginário de certo Ocidente.
Sempre que falamos de Japão, imaginamos, portanto, a terra do
poente, de samurais, clãs, imperadores. Terra de grandes templos e
de gueixas que tanto dedilharam o imaginário ocidental pela beleza
cintilante. Falar da cultura japonesa é falar de uma cultura imageti-
camente rica, profusa visual e gestualmente, o que ratifica o nosso
imaginário de país das exuberâncias e do fascínio. Muito se buscou
traduzir a essência da alma japonesa, se isto é possível. Esse é o pon-
to de partida das investigações do antropólogo Claude Lévi-Strauss
acerca do Japão. Sempre deixando claro em seus escritos sobre a cul-
tura japonesa a sua dificuldade de tratar de um país em que não

gando em Guilherme de Almeida (um dos fundadores da revista modernista Klaxon)


e no próprio Leminski.

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nascera e do qual muito menos domina o idioma, Lévi-Strauss atenta


para o fato de que conviver em um país e dominar o idioma não ga-
rantem atingir o mais íntimo de uma cultura, “pois as culturas são por
natureza incomensuráveis” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 12). Lévi-Strauss
interessou-se pela música, e seus tons particulares, e pela mitologia,
constatando que diversos elementos mitológicos do mundo ali de-
saguaram, tornando a cultura nipônica um lugar de encontros, mas
atuando como uma espécie de filtro, “destilando uma essência mais
rara e mais sutil que as substâncias carregadas pelas correntes da his-
tória que ali foram se combinar” (Idem, p. 22). O que podemos con-
cluir com Lévi-Strauss é que, diante deste “outro”, o nosso exame críti-
co tende a ser uma “compreensão aproximada” do elemento cultural
– aproximação é o termo mais adequado para a antropologia –, isto
se levarmos em conta a imbricada relação entre literatura e cultura15.
Acreditamos que seja necessário sublinhar a questão cultural
sempre que se fala de um Oriente não apenas insistentemente “dis-
tante”, mas de um Oriente que ficou no imaginário mítico como, por
um lado, o “caminho” da sabedoria e, por outro, o lugar do “exótico”,
tão bem estudado pela Antropologia. Destacamos, portanto, esse fa-
tor para não cairmos em questões monolíticas e tratá-los como “blo-
cos” tão distintos e tão distantes.
Assim, acreditamos que o terreno pode ficar bem estruturado
para tratarmos de um autor que, entre aqueles que compuseram
haikais no Brasil, foi o que mais popularizou o gênero – sem esque-
cermos, claro, de mencionar Millôr Fernandes, outro nome incontor-
nável na produção deste gênero. Mas, antes, falamos de um poeta

15 Para uma leitura mais aprofundada, vale conferir também a obra do historiador e di-
plomata pernambucano Oliveira Lima, No Japão: impressões da terra e da gente (1997).
Aplaudida por amigos como Gilberto Freyre, a obra de Oliveira Lima é um preciso tes-
temunho das riquezas da história e da cultura nipônica, embora, tenha-se em mente,
seja uma “impressão” de um diplomata que documenta não só o cultural, mas também
as transformações políticas e sociais daquele país.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

que teve desde cedo uma paixão pelo Oriente, principalmente


pela cultura e literatura japonesas, que remonta desde seus estu-
dos, em juventude, no Mosteiro de São Bento, em São Paulo. Uma
leitura atenta em sua biografia nos revela desde logo a erudição de
um poeta, mas sobretudo o grande interesse pela cultura nipônica,
demonstrada não apenas no seu estilo de vida (a paixão pelo judô,
além de conhecer muito bem o idioma japonês), como também nas
traduções e nos estudos que realizou, a saber: a tradução de um en-
saio-manifesto de Yukio Mishima, e da biografia de Matsuó Bashô. A
presença nipônica é, sem dúvida, uma questão nuclear na vida e na
obra de Paulo Leminski.

1. ENTRE CAPRICHOS E RELAXOS

Em Ensaios e anseios crípticos, Leminski esboça um panorama


das gerações de 1960 e 1970, num bem-sucedido ensaio intitulado
“O boom da poesia fácil”, destacando as principais características
daqueles anos setenta frente à poesia mais ou menos engajada da
década anterior. Poesia “fácil” queria dizer poesia mais instantânea,
se espalhando por todos os cantos do urbano, colando-se aos mu-
ros em forma de “graffiti”, poesia curta, mas sem abandonar o lirismo,
muito menos perdendo de vista o eco rebelde tanto daquele maio de
1968 estudantil francês, quanto das vozes “impressas” nos subways
nova-iorquinos. Leminski, ao definir o “fácil”, caracteriza inconscien-
temente o haikai: “Nos anos 1970, esteve muito em voga um certo
tipo de prática poética, poemas curtos, ‘flashes’ instantâneos, regis-
tros-relâmpago de mini experiências, estalos líricos, de breve dura-
ção e efeito imediato” (LEMINSKI, 2011, p. 59).
Este é o contexto pelo qual passará o haikai na década de 1970
no Brasil, caracterizado por Leminski como o momento de uma poe-

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

sia “informal”, para “curtição”, ou a “pura fruição da experiência imedia-


ta” (Idem, p. 61). Aproveitaremos esta ideia de “fácil” para pensarmos
o haikai. A pista que Leminski nos dá – e, para nós, não haveria me-
lhor definição deixada pelo poeta – está no próprio título desta que é
uma das suas mais importantes obras: Caprichos e relaxos. Temos de
ter algum cuidado para não subjugar o fácil ao “desprovido de arte”. O
próprio título, ao nosso ver, define bem o gênero, é uma composição
que está entre o capricho (rigor) e o relaxo (simplicidade).
De caprichos e relaxos advém uma das características mais sin-
gulares do gênero haikai: o desafio ao pensamento. Falamos em de-
safio porque o haikai de certo se aproxima do pensamento oriental,
especificamente do Zen-budismo. Falar do Zen é sempre difícil, pois
foi encerrado nos confins da compreensão, ao mesmo tempo em que
pensadores buscavam “decodificá-lo”. A própria compreensão de Zen
invariavelmente passa pela compreensão do próprio Budismo – que,
por si só, já nos impõe alguma dificuldade em situá-lo no terreno da
filosofia ou da religião: se é uma filosofia de vida, ou se é uma “filoso-
fia do sofrimento” (HUMPHREYS, 1997, p. 98), um caminho para um
aniquilamento absoluto do ser, como defende Léon de Millou é em
Bouddhisme (1907, p. 130), ou tão somente uma filosofia meditativa,
como entende Entai Tomomatsu (1935, p. 156-169).
Interpretamos aqui o haikai como um “desafio” porque, de maneira
análoga ao Zen, falar de haikai é sempre falar de um “chegar a ser”. Quan-
to a isto, nos apropriamos de uma definição do espírito Zen por Toshihi-
ko Izutsu, que vê no Zen um desafio à lógica (aristotélica) ao olhar para
um objeto, como se vê nessa longa, porém necessária citação:
Não se pode chegar a ser água porque a observamos por fora,
quer dizer, porque o ego, como um espectador, observa a água
como um objeto. Ao invés de atuar deste modo, prossegue
o Zen, primeiro deve-se aprender a esquecer o próprio ego-

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

sujeito e a deixar-se absorver completamente pela água. Então,


transcorreria como um rio16 (IZUTSU, 2009, p. 79, grifos do autor).

Leminski esteve sempre atento a estas questões, uma vez que,


em Ensaios e anseios crípticos, encontramos diversas passagens so-
bre o Zen – veja-se, por exemplo, o poema “Variações para silêncio
e iluminação”, que abre a obra de ensaios, mas que foi previamente
escrito em forma de crônica, tendo sido publicada inicialmente na
Folha de São Paulo, em 1985, intitulada “Fala, frei Boff!”, em que faz
um percurso pelo silêncio de Buda, passando por Pitágoras, chegan-
do em nomes como Graciliano Ramos.
Um breve parêntesis. Dois são os momentos que gostaríamos
de destacar em que esse “desafio” inerente ao haikai é demonstrado
por Leminski. Primeiro, um próprio haikai publicado em La vie en clo-
se e que, para nós, tem um teor metalinguístico, explicando a própria
prática haikaística:
Saber é pouco
Como é que a água do mar
Entra dentro do coco?
(LEMINSKI, 1994, p. 115).

Entendemo-lo metalinguístico pela condensação do máximo (a


água do mar) no mínimo (coco), isto é, o haikai falando do próprio
gênero haikai. Um segundo momento é no ensaio “Bonsai: niponiza-
ção e miniaturização da poesia brasileira”, onde compara o haikai ao
Bonsai, que é uma planta em miniatura, uma técnica milenar de culti-
vo de uma árvore (o máximo) em um pequeno recipiente (o mínimo),
eis a fórmula do haikai. Diz Leminski (2011, p. 328): “Essas brevida-
des [o haikai] lembram aquelas árvores japonesas, as árvores ‘bonsai’,
16 “No se puede llegar a ser agua porque la observamos desde fuera, es decir, porque el
ego, como un espectador, observa el agua como un objeto. En lugar de actuaren este
modo, prosigue el Zen, primero se debe aprender a olvidar el propio ego-sujeto y a
dejarse absorber completamente por el agua. Entonces discurriría como el río”.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

carvalhos criados dentro de vasos minúsculos, signos e seres vivos,


produtos da arte e da paciência”.
Neste sentido, nos dedicaremos agora a uma análise de haikais
de Paulo Leminski, onde se manifesta uma continuidade da tradição,
ou seja, onde o poeta compõe à Bashô, o que nos possibilita argu-
mentar que a palavra poética de Leminski, via haikai, é uma palavra
búdica, funcionando também como um exercício de contemplação.
Começamos com Caprichos e relaxos, publicado em 1983, sen-
do o primeiro livro de Leminski, quer dizer, a primeira publicação em
grande tiragem, feita pela Editora Brasiliense, embora reunisse outras
obras independentes publicadas pelo autor na década de 1970. O
que dá um caráter de importância a Caprichos é justamente ser uma
obra que reúne a produção de um momento de transição de uma
década para outra – década que, diga-se de passagem, foi a eferves-
cência da produção poética de Leminski. A obra constitui-se de sete
seções. A primeira seção, homônima, contém poemas de versos mais
longos e com um tom mais prosaico, que como lembra Manoel Ri-
cardo de Lima (2002, p. 101), é a sua herança dos beats. Já a seção se-
guinte, Polonaises, traz poemas que olham mais diretamente para o
social, para a dor (dureza) do cotidiano, mas que também sentem por
isso e se envolvem em um invólucro de nostalgia – a própria epígrafe
de Polonaises dá a pista, esse movimento tão rosiano: “choveram-me
lágrimas limpas, ininterruptas” (LEMINSKI, 1983, p. 45). Vale sublinhar
que as duas primeiras seções não trazem nenhum haikai, que apare-
cerá nas cinco seções seguintes e com intensidade nas duas primei-
ras. Haikais que inscrevem a noite, a natureza, o movimento das coi-
sas, haikais para serem vistos e sentidos, ou melhor, experienciados.
Deste modo, daremos atenção aos haikais das seções Não fosse isso e
era menos. Não fosse tanto e era quase e Ideolágrimas a partir de três
ângulos: o primeiro, destacando um Leminski noturnal, uma poesia

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

que vive, ouve/escuta a noite, quer dizer, é noite; o segundo, que cha-
mamos de haikoans, quando a poesia se encontra com o enigma dos
koans Zen-budistas; o terceiro, o vazio, quando a sua poesia encontra
o caminho do meio, isto é, quando se dá a vivência do nada.

Ângulo 1 - Leminski noturnal

A noite. Quantos poetas, de diferentes gerações, nações e es-


téticas, não escreveram sob a inspiração da noite. Quantos poetas
não a cantaram. Quanto simbolismo não há na noite. Noite dos apai-
xonados, dos loucos, do sono, dos insones, da solidão, da morte. Se
uma face da noite é o abrigo dos românticos e dos parnasianos, que
ouvem as estrelas e em que a própria beleza do mundo é estelante,
a outra face da noite é a dos spleens românticos, das cavernas, do ne-
grume. Se uma face da noite é a esperança do sono (conforto), a outra
é a pura melancolia (desespero). Silêncio. Noite morta, para lembrar-
mo-nos do simbólico poema de Manuel Bandeira17, e ainda: noite trá-
gica. Diante desta dupla face da noite, ou da armadilha da noite, para
sermos mais blanchotianos, uma escritura que se faça noturna quer
dissipar-se em sua escuridão, pois na noite tudo desagua e se acaba.
Uma escritura noturna deseja, então, diluir-se neste imenso silêncio
noturnal – o que para Blanchot seria propriamente oportuno para a
literatura, diluir-se para depois, dos escombros, reerguer-se. Selecio-
naremos dois haikais de Leminski que seguem este encontro com a
noite. Encontro que mais parece uma união. O primeiro haikai en-
contra-se na seção Não fosse18; o outro se encontra em Ideolágrimas.

17 Poema “Noite Morta” (BANDEIRA, 1986, p. 89).


18 A partir daqui, usaremos esta abreviatura para a seção Não fosse isso e era menos. Não
fosse tanto e era quase.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

A noite
me pinga uma estrela no olho
e passa
(LEMINSKI, 1983, p. 73).

O primeiro verso já inscreve a síntese: o espaço da noite. Que é


também um espaço de silêncio. Pelo poema, a noite nos fala. Diz. E
se diz. Diante da noite, o poema a olha, a contempla, a deseja, quer
se unir a ela, integrar-se. Neste espaço o poema quer cantar a noite.
Ser noite. Mas há um movimento contrário, que é dado pelos versos
seguintes, ou seja, há um duplo movimento de olhar. Não é apenas
o poema quem olha para a noite, sua deusa contemplativa. É a noite
que também o olha. A noite flerta com o poema. E pinga-lhe uma
estrela. O segundo verso é um heptassílabo, ou redondilha maior, um
metro que é usado em trovas populares. Um verso que é, na verdade,
um encontro: entre o sujeito e o objeto, entre aquele que vê (o olho)
e aquela que é olhada (a noite). O olho contemplante, mas também
a noite contempladora. Entre ambos, uma estrela gotejada. Uma in-
tertextualidade com a “Noite estrelada” de Vincent van Gogh? Uma
estrela que faz luz à sombra da noite, uma claridade para revelar,
mesmo o que pode estar encoberto, oculto. Claridade para desvelar.
Clareira. E se voltarmo-nos para a mitologia, não é a própria Nyx, deu-
sa da Noite e filha do Caos, que gera Hemera, a personificação do Dia,
e Éter, extrema luminosidade? Luz e noite, mesma oposição que en-
contramos na Teogonia de Hesíodo, Érebo, irmão de Nyx (masculino)
e Hemera (feminino), ser e não-ser19. Aliás, se o mito é sempre atual
e sempre vem causando interesse no seio de uma sociedade, natu-
ral que o próprio Leminski tenha se interessado pelo mito, a ponto

19 Prefácio de Jaa Torrano à Teogonia de Hesíodo, (1995, p. 31-39). Na Teogonia, a Noite


também é descrita como aquela que abriga o Tártaro, o abismo, o espaço nevoento,
como se pode ver na quarta estrofe da “Descrição do Tártaro”: “a casa terrível da Noite
trevosa” (HESÍODO, 1995, p. 110).

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

de escrever o seu vibrante romance Metaformose, uma viagem pelo


imaginário grego20.
Quanto ao movimento que o poema opera, podemos observá-
-lo a partir de dois verbos: pingar (segundo verso) e passar (terceiro
verso). Percebemos que o haikai mais se assemelha a um koan, pois
não é a própria estrela que acidentalmente cai, é a noite que a deixa
cair, isto é, lhe oferece o seu brilho. E se a noite prossegue em seu
movimento natural, esta passagem do brilho estelar é um momento
único. Momento de entrega, momento de doação.
Compreendemos que o haikai, que também se assemelha a
uma película dos primórdios do cinema, uma película de Méliès, tal-
vez – um poema-trucagem – capta uma noite que não é um símbolo
da morte, como podemos ver na crítica que Blanchot faz de Kafka21,
mas da transitoriedade dos fenômenos (a noite passa, como se vê
no último verso dissílabo). E além: a noite como uma morada. Se o
haikai opera um encontro entre sujeito/objeto, a noite é moradia do
contemplante. Podemos ver como esse olho, órgão por excelência
da fenomenologia do olhar, elide a distância com o objeto para fa-
zer abrigo no céu noturnal. Uma fuga para a noite? Não. Pois, bache-
lardianamente, a oniricidade do encontro está traçada. O haikai já
operou a simbiose. Dizemos: um caminho para a noite, pois esta é a
condição necessária para a beleza do poema.
O seguinte haikai, que abre a seção Ideolágrimas, parece seguir
o mesmo fio condutor:
Hoje à noite
até as estrelas
cheiram a flor de laranjeira
(LEMINSKI, 1983, p. 99).

20 Leminski (1994).
21 Blanchot (2011, p. 177-186).

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

Em ambos os haikais o tema primordial é a noite, descrita já no


primeiro verso. Ambos também não obedecem à forma métrica do
haikai, e podemos perceber como Leminski dá uma elasticidade ao
próprio haikai. Se tomássemos os haikais como fotogramas (cada ne-
gativo de um filme), este haikai seria um “plano detalhe” (PD, como
é usado no jargão fotográfico) do primeiro. O primeiro verso, trissi-
lábico, já indica o aqui e agora do poema, o seu presente (advérbio
“hoje”), assim como encontramos o tempo presente no haikai ante-
rior, pela transitoriedade. Um elemento que é comum a ambos os
poemas é o corpo celeste estrela, mas se ela apresenta movimento
no haikai da seção Não fosse (do horizonte celeste ao olho), aqui o es-
tático prevalece (o que justifica pensarmos este haikai como um foto-
grama ampliado). Não mais estrelas que servem de clareira para seu
contemplante, mas estrelas que exalam um doce aroma, o aroma da
flor de laranjeira – veja-se a harmonia do segundo e terceiro versos
em sua última sílaba poética (esTREla – laranJEIra), além da presença
de assonância na semivogal e (Hoje à noite) e no e mais fechado (Es-
trelas / cheiram a flor de laranjeira).
Neste poema há algo próprio da poesia. As estrelas têm cheiro.
Só na poesia sentimos o cheiro das coisas que não têm cheiro. Só na
poesia se vê o que não está visto, ou se diz o que a linguagem não
consegue. Por isso a poesia é o senão das coisas. Mas não só as estre-
las têm seu aroma. Tudo, ao redor do poema, exala o aroma da flor
de laranjeira (veja-se o segundo verso “até as estrelas”), que possuem
um perfume peculiar. Logo, quando o poema diz cheira, quer muito
mais que aproximar a noite da flor de laranjeira, mas quer tornar-se
flor e a seu perfume render-se, entregar-se.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

Poesia também é o outro lado da margem (ela a constrói). Por


ela, o leitor faz suas travessias, transviaja. Assim podemos chegar ao
seguinte haikai:
Luxo saber
além destas telhas
um céu de estrelas
(LEMINSKI, 1983, p. 104).

No primeiro verso podemos observar a elisão do verbo ser: “luxo


(é) saber”. Supressão proposital. Ora, elidir o verbo ser é encontrar
com o Zen, com a autonegação, com o apagamento do Eu empírico.
No segundo verso, o substantivo “telha” já constrói uma camada que
separa o dentro e o fora de um espaço. A telha forma o teto, que
por sua vez dá forma a casa, à morada, ao abrigo: habitação que é
proteção, espaço de cosmicidade, ou pensando bachelardianamen-
te, o nosso canto do mundo, o pedaço de nossa infância, o lirismo da
concha22. Mas este espaço, descrito pelo poema, já não é mais o que
poderia ser um instrumento de topoanálise23. Há uma ruptura, cisão.
O advérbio “além” (segundo verso) dá o indício: o saber que além
destas telhas há um céu de estrelas, quer dizer, além deste dentro há
um campo de possibilidades, de luminosidade em um fora. O poema
joga, então, com a oposição interior/exterior, luz/sombra. Está, mais
uma vez, o poema jogando com o mito, neste caso o mito da caver-
na, da República de Platão? Mas vai além desta oposição e inscreve
seu desejo, um desejo de encontro com o céu luminoso (veja-se o
primeiro verso, “luxo saber”). Esse desejo é o querer tornar-se céu
de estrelas. O tornar-se Zen-budista: união, fusão, encontro sujeito/
objeto. A poesia se unindo ao mundo.

22 A poética do espaço, capítulo I, “A casa: do porão ao sótão”, Gaston Bachelard (1978, p.


199-221).
23 A poética do espaço, capítulo II, “A casa e o universo”, Gaston Bachelard (1978, p.222-
244).

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

Com esses três haikais, podemos concluir que todos eles olham
as estrelas e mantêm relação (de movimento ou não) com ela. Esse
desejo de tornar-se estrela, que é um desejo de tornar-se o objeto,
união Zen-budista do sujeito com o objeto (o poema em estado de
chegar a ser objeto, pois todo o universo é aquele objeto, no caso,
tudo é a estrela) também pode significar uma relação mallarmeana.
Temos aqui um Leminski que digere as constelações de Mallarmé
para seus haikais búdicos e contemplantes. Basta lembrarmo-nos dos
versos finais do antológico “un coup de dés jamais n’abolira le hasard”:
[...] Uma constelação

fria de olvido e dessuetude


não tanto
que não enumere
sobre alguma superfície vacante e superior
o choque sucessivo
sideralmente
de um cálculo total em formação
vigiando
duvidando
rolando
brilhando e meditando
antes de se deter
em algum ponto que o sagre
Todo pensamento emite um Lance de Dados

(MALLARMÉ, 1991, p. 147).

É especialmente esse uso da linguagem que Mallarmé opera,


isto é, uma linguagem movente, que interessa a Leminski. Uma
linguagem que se estilhaça no branco da página para projetar uma
possibilidade de constelação, ou como diz Haroldo de Campos,
construções de “miragens gráficas” (CAMPOS, 1991, p. 188). O recurso
que Mallarmé emprega é o do espacejamento, não apenas para libe-
rar os versos da forma fixa das estrofes. É um espacejamento signifi-
cativo para o próprio signo, naquilo que Evando Nascimento (2012,
p. 57) chama de “o (não) livro de Mallarmé”. Diz ainda Evando (Ibidem,
grifo do autor): “espacejar é mais do que o procedimento anódino de

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

afastar letras e palavras, é pôr em relevo o caráter icônico, material,


concreto [...] de todo signo, que passa a ser valorizado em seus aspec-
tos verbivocovisuais”. Ora, como Leminski digere Mallarmé, só poderia
dar essa “significação” ao signo pela via do haikai, que é concisão. De-
glute, antropofagicamente, uma constelação que vigia, duvida, rola,
brilha e medita. Se Mallarmé abriu a palavra para a constelação medi-
tante, Leminski, em seus haikais, consagrará a sua palavra meditante.
Quando Mallarmé explora o branco da página, está, na verdade,
apontando para o branco Zen da página (está lançando o dado para
este acaso do branco Zen, basta verificar o último verso do poema:
“todo pensamento emite um lance de dados”), quer dizer, para o seu
silêncio. Quando Leminski traça sua constelação mallarmeana, nos
haikais aqui expostos, e inscreve a noite, está cingindo o silêncio, pois
a noite é silêncio, ou o silêncio habita o coração da noite. O Leminski
noturnal que defendemos a partir dos três haikais é a face de um au-
tor que põe a escritura em um alto grau de experienciação, pois neste
caso podemos ver os poemas experienciando um fenômeno, que-
rendo ser fenômeno. Mas por que Leminski incide na noite? Por que
não escolhera o dia, tal como um de seus ícones, Yukio Mishima, que
perseguiu em sua literatura o sol e o aço? Ora, não cabe à figura do
agitador Leminski pôr sua escritura para contemplar o dia (Hemera).
Um depoimento do próprio Leminski (apud VAZ, 2001, p. 151), nos
idos de 1972, pode nos dar a pista: “Mas acontece que na mecânica
de transmissão do saber há um ponto incompatível com meu lado
contracultural, meio hippie, meio bandido. Acordar às 8 horas, em
plena segunda-feira, para dar aula é incompatível comigo”. Não cabe
a Leminski, portanto, seguir as pegadas de Mishima, para assim lem-
brarmos da citação do próprio poeta e que utilizamos neste trabalho
como epígrafe24. O pêndulo entre o singelo e o rebelde só é possível
24 Resgatemos a citação de Leminski (1999, p. 111): “Bashô disse: não siga as pegadas dos
antigos. Procure o que eles procuravam”.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

na noite. Portanto, o brilho que almejará a poesia de Leminski não


é o brilho do dia, enquanto fenômeno, mas sim a iluminação (éveil),
palavra iluminada no abrir-se para a noite, para o mundo.

Ângulo 2 – Haikoans

Entendemos aqui por “haikoans” uma mistura de haikai com


os koans Zen-budistas. Os koans são espécies de “charadas” que
desafiam a lógica e, de algum modo, ilustram a “ilogicidade” do Zen-
budismo. Citemos, a título de demonstração, um clássico koan de
Shan-hui, poeta chinês do século V:
Observai a pá nas minhas mãos vazias
Enquanto montado num touro vou andando a pé
Quando passo sobre a ponte não é a água que corre,
E sim a ponte
(SHAN-HUI apud SUZUKI, 1961, p. 59).

O koan responde diretamente ao coração da lógica. Pode uma


ponte mover-se? A articulação da linguagem a que o koan procede
tira as coisas do lugar, move o imóvel, estilhaça as linhas para todos
os lados25. Os koans, e também os haikais, causam certo desconforto
justamente por conduzirem o leitor a esse caminho de libertação, no
terreno do pensamento. O próprio Leminski (LEMINSKI, 1986, p. 22),
em uma crônica para a Folha de São Paulo, escreve sobre o koan: “que
são os ‘koans’, historietas exemplares do Zen, senão anedotas, de um
humor superior e transcendental?”.
25 Quando o Zen argumenta que o homem pode absorver-se pelas águas do rio e chegar
a ser rio, ele toca no centro da lógica, ou o que Suzuki aponta como a escravidão da
lógica: “enquanto permanecemos assim escravizados somos miseráveis e sujeitos a
indizíveis sofrimentos [...]. Temos de fazer o possível para conquistar um novo ponto
de vista [...]” (SUZUKI, 1961, p. 63). O que fazer? Como deixar levar-se pela ponte? O
Zen aponta, então, para um caminho de liberdade: de antíteses, dualismos, lógicas,
dogmas. Suzuki igualmente responde: “caso estejas habituado a pensar logicamente,
de acordo com as regras do dualismo, liberta-te delas e chegarás a algo parecido com
o ponto de vista Zen” (Idem, p. 92).

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

Gostaríamos, neste tópico, de demonstrar um Leminski experi-


mentador, que vai do erudito ao popular. Para isso, verificaremos uma
relação pendular em dois haikais da seção Não fosse. Temos o primeiro:
Entro e saio
dentro
é só ensaio
(LEMINSKI, 1983, p. 70).

Quanto à forma, é um haikai bastante peculiar pelas suas figu-


ras de harmonia, tanto a aliteração em ‘s’ (entro e saio / dentro / é só
ensaio) quanto as assonâncias em ‘e’ e ‘o’ (entro e saio / dentro / é só
ensaio), dando um eco próprio ao poema, além das rimas coroadas
(internas: entro / saio; só / ensaio) e das rimas interpoladas (saio /
ensaio). Pela forma, pode-se perceber como a acústica do poema é
ondulante. O segundo haikai26 segue uma forma semelhante:
Passa e volta
a cada gole
uma revolta
(LEMINSKI, 1983, p. 82).

Neste, vê-se o recurso à assonância em ‘a’ (passa e volta / a cada


gole / uma revolta). Se o haikai anterior sugere uma acústica mais
redonda pela assonância em ‘o’, neste, o haikai sugere uma acústi-
ca mais aberta, em ‘a’ – quanto à rima, veja-se a semelhança, com a
mesma presença de rima coroada (passa / volta) e rima interpolada
(volta / revolta). Além das rimas, os dois haikais se assemelham no
movimento: no primeiro, temos os verbos de movimento “entrar” e
“sair”; no segundo, os verbos “passar” e “voltar”. Dinâmicos, são dois
haikais que se soltaram no tempo, quer dizer, que a escritura tomou
voo, como linhas moventes no espaço da página. Mas há uma cisão
26 Observa-se que esse haikai se repete na seção seguinte, Ideolágrimas. Cf. Leminski
(1983, p. 101).

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

entre ambos, o que chamamos de um movimento pendular. Um pên-


dulo que vai do fechado para o aberto, do dentro para o fora.
Embora o primeiro haikai transite entre o interior e o exterior
(verbo “entrar” e “sair”), o seu caminho é para o dentro, para o interior,
para o subjetivo. Lá, apenas ensaia. Seu espaço interior e subjetivo é
de tentativa e experiência. E como ensaia, medita. O primeiro haikai
visto neste Ângulo é, portanto, uma reflexão da própria palavra me-
ditante que é o haikai. O próprio haikai é esse dentro que é só en-
saio, mesmo na duplicidade da acepção de ensaio: tanto no plano
da experiência (verbo ensaiar), quanto no gênero literário – é perti-
nente lembrar que o gênero ensaio é o espaço por excelência para
os encontros de linhas paralelas, um espaço-entre, ou ainda: “o ensaio
seria o gênero em que literatura e filosofia se contemplam, se tocam,
intercambiam elementos e funções [...]” (NASCIMENTO, 2004, p. 62).
Enquanto o primeiro poema se põe a pensar o próprio papel
do haikai e da própria palavra búdica, em estado de meditação e de
experiência (um olhar para o dentro), o segundo, não obstante, con-
figura um olhar para o fora, para o cotidiano, ou para o simples desse
cotidiano. O gole já circunscreve o espaço do contracultural dos anos
1970, da rebeldia, da onda lisérgica e de todo ideal libertário e de
resistência à ditadura. Cada gole carrega o seu sentimento de angústia
e de raiva (vê-se como o espaço do poema é de muitas agruras, pois
cada gole tem a sua revolta). A própria geração de 1970 experimen-
tou o álcool como libertação, quase divino, pois libera a mente dos
trilhos do racional, inverte a lógica – basta lembrar que Leminski foi,
até o fim da vida, consumidor do álcool, com breves intervalos de
abstinências (o que o levou, inclusive, à cirrose). Em última instância,
podemos concordar com o deleuziano Daniel Lins (LINS, 2013, p. 37)
que, em uma recente tese, afirma ser o alcoólatra – misto de criança e
diabo, monstro e belo, o poeta das noites – um “quase-acontecimen-

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

to”. Embora aqui não caiba uma leitura apurada deste olhar para o
social nos haikais de Caprichos e relaxos, o que nos interessa é como
neste segundo poema o olhar para o cotidiano se apresenta como
um olhar fotográfico e com uma linguagem próxima deste cotidiano
(o gole, isto é, uma marca da oralidade). Neste segundo haikai temos,
então, a abertura para o encontro da palavra (signo verbal) com a
imagem (não-verbal). O interstício. As imagens-mundo que a palavra
poética fabrica. Pois cada gole também carrega o seu conjunto de ima-
gens-mundo, ou imagens dinâmicas.
Com os seguintes haikais, podemos concluir que a operação
do movimento pendular, do mais metalinguístico ao mais foto-
gráfico do cotidiano, é o próprio movimento pendular da escritu-
ra leminskiana, que vai do erudito ao popular, transando todas as
ondas, a escritura em laboratório, o devir da escritura movente. Par-
timos agora para o encontro do haikai com o koan na natureza da
palavra búdica, ou o que chamamos de haikoan. Para isso, citemos
o seguinte haikai de Ideolágrimas:
Duas folhas na sandália
o outono
também quer andar
(LEMINSKI, 1983, p. 99).

Podemos afirmar que este haikoan também se assemelha a um


fotograma. Um fotograma de uma natureza fluida. Tudo no poema
é movimento. Tudo se põe a mover. Leminski, aqui, faz sua primeira
grande abertura para o diálogo de sua poesia haikai com a tradição
do haikai nipônico, movimento que completa seu círculo em La vie en
close, ou seja, neste haikoan Leminski dialoga diretamente com Bashô.
Com as folhas na sandália, é preciso partir. E a trilha que Leminski per-
correrá encontra com a trilha de Bashô. O poeta nipônico também
pegou suas sandálias para percorrer, errante, os confins da natureza.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

Quando Bashô desprendeu-se de tudo para ser um poeta nômade,


escreveu três diários narrando seu nomadismo e, em cada diário, es-
creveu haikais, registros das paragens misteriosas nas quais vaguea-
va. Dos três diários, o mais simbólico e mais poético é o último, “Trilha
estreita ao confim”, escrito em 1689 e fruto de uma errância de quatro
anos. Um dos haikais de Bashô que melhor traduz a sua vida Zen é o
seguinte, quando Bashô atravessa a floresta de pinheiros de Kinoshita:
Flores de íris
nas sandálias enlaço
talismã na jornada
(BASHÔ, 2008, p. 43).

Neste momento de intertextualidade é que Leminski e Bashô


levam sua escritura ao desprendimento. Mas no poema de Leminski,
não só a sandália conduz ao movimento, à partida. O outono tam-
bém quer andar. Faz-nos lembrar do koan do poeta chinês Shan-hui,
quem anda não é o indivíduo sobre a ponte, mas sim a ponte. No
haikai de Leminski, não apenas as sandálias (signo) movem-se, o ou-
tono também quer mover-se, fazer parte do nomadismo. Como pode
o outono (fenômeno) andar junto com aquele que anda? O haikoan
de Leminski propicia essa comunhão, esse consórcio. Não pelo cami-
nho da racionalidade, ou da lógica, mas por um caminho outro, um
caminho Zen. Sujeito e mundo, juntos, caminhando, movendo-se,
nada mais é que o coração do Zen: fluxo. As sandálias (objeto) que-
rem sentir o mundo, a ele não apenas movimentar-se pela mesma
via, mas querem integrar-se ao mundo e seu fluxo. Basta guiarmo-
-nos pela seguinte colocação de Alan Watts (2011, p. 52): “[...] pois o
Zen é mover-se com a vida [...]”. Um haikoan, portanto, que leva a um
estado de liberdade de espírito.
Outro ponto em que Leminski, neste haikoan, dialoga com a
tradição haikaísta de Bashô é o fotografar das estações do ano. Um

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

registro imagético tão movente que não caberia, em nenhuma ins-


tância, um barthesiano congelar-se – aliás, é incompreensível que
o próprio Barthes, que conheceu o Zen27 e o pensamento oriental28,
não ter acreditado que a imagem fotográfica pudesse mover-se e so-
nhar. Fotografar o outono é realizar o que chamamos de passagem
para o imagético. Palavra-câmera. Imagem de um outono que é, mes-
mo, uma estação de entremeio, entre o verão e o inverno. Estação da
colheita, das folhas que caem, do balançar das árvores. Uma estação
que carrega sua solidão, como diz o próprio Bashô (2008, p. 28): “[...] e
a solidão do outono atingiu meu coração”.
Se o koan é um enigma, uma charada, que tira as coisas dos tri-
lhos da lógica, inverte-a e usurpa-a para que o objeto transcenda,
então o haikai (e mais propriamente o nosso haikoan) é um enigma
de uma natureza circundante, pois a palavra poética consagra sem-
pre um movimento em direção ao absoluto. Mais uma vez nos dei-
xemos guiar pela colocação oportuna de Octavio Paz (1982, p. 234):
“a experiência poética [...] não nos ensina nem nos diz nada sobre a
liberdade: é a própria liberdade”. A poesia nada ensina. A poesia é.
Ainda no diálogo com Bashô e com a tradição do haikai, outros
poemas de Caprichos & Relaxos centralizam essa natureza movente,
sejam haikais ou outras formas poéticas. Citemos, agora, outro hai-
koan, ainda em Ideolágrimas, para vermos como a força búdica nele
se manifesta:
A água que me chama
em mim deságua
a chama que me mágua
(LEMINSKI, 1983, p. 99).

27 O Neutro (2003, p. 356-360).


28 Idem (p. 362-382).

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

Podemos logo observar que o haikai possui um eco aberto: uma


rima emparelhada (deságua / mágua) e a assonância em ‘a’ (a água
que me chama / em mim deságua / a chama que me mágua). A asso-
nância, junto com uma presença do vocábulo ‘m’, parece sugerir um
eco de uma gota d’água ao romper o silêncio da água parada. Neste
ponto, o poema causa um estranhamento em todos os três versos. (i)
a água que me chama: aqui, é o objeto (água) quem chama o sujeito,
quem o convida para o encontro. Um convite para a completa unifica-
ção Zen-budista, da qual falava Toshihiku Izutsu. Se esse convite pode
balançar a estrutura da lógica aristotélica, é porque o próprio pensa-
mento aristotélico não permite tal convite. Esse convite à união não
é endereçado ao eu empírico, não para o cogito cartesiano. Lembre-
mo-nos do Zen, é preciso disciplinar a mente, suprimir o eu empírico
e ultrapassar tal estranhamento. Só assim o sujeito pode atender ao
convite do objeto, da água. Água que (ii) em mim deságua: é preciso
mergulhar nessas águas. Aqui temos um Leminski que leva às últimas
consequências o haikai como aquilo que toca, com sensibilidade, no
profundo da vida. Que capta, em sua concisão, este profundo e ao
mesmo tempo se lança no absoluto. Um dos que facilmente perce-
beu esse poder da poesia japonesa foi o poeta e cineasta do tempo,
Andrei Tarkovsky, que, ao analisar um haikai de Bashô, diz-nos algo
extremamente pertinente para este haikai de Leminski, ou para este
desaguar de águas: “o leitor do haicai deve se incorporar a ele como
à natureza; deve mergulhar, perder-se em suas profundezas como
no cosmo, onde não existem nem o fundo nem o alto” (TARKOVSKY,
1998, p. 124, grifo nosso). Um mergulho em estado puro. Por fim, no
último verso, (iii) “a chama que me mágua”, o último estranhamento:
a chama (fogo) em antítese à água. Um enigma koan. Podemos ler o
haikai da seguinte maneira, com as seguintes supressões:
água

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

deságua
m’água.

O vocábulo criado por Leminski (mágua) e usado na expressão


“me mágua” embaralha, confunde, inverte as coisas, joga com a per-
cepção do leitor. Com a supressão que sugerimos, pelo uso da após-
trofe (m’água), podemos estabelecer uma amizade entre os opostos,
entre o fogo e a água (não é esse o tipo de amizade que só a poesia
consegue estabelecer?). O poema, então, vai de encontro ao que re-
sulta dessa amizade. O m’água (que deságua no ser) é, portanto, o
chegar a ser da poesia de Leminski. É o íntimo e o brilho de sua poe-
sia. Quando o calor do fogo encontra com a água, a poesia se encon-
tra com o interior das coisas, com o interior dos seres. É pelo m’água
que a palavra poética de Leminski desperta o satori, ilumina-se.
Natureza excelsa. Phýsis contemplante e contemplada, se pen-
sarmos com Plotino, onde tudo é contemplação, e a própria phýsis
como fruto de uma contemplação dada na realidade inteligível. Ou
se quisermos pensar heideggerianamente, phýsis como abertura ori-
ginal do ser29. As imagens opulentas que os haikoans de Leminski fa-
zem surgir captam o fato central da vida. Se o caminho do haikai é
um caminho para os sentidos, podemos, então, dizer que Leminski,
neste caminho pelos sentidos, é devedor de Fernando Pessoa, sob
o heterônimo de Caeiro. Caeiro, o pastor andante que via o mundo
com simplicidade. O Caeiro Zen-budista que via e escrevia uma natu-
reza com os sentidos. Caeiro não quer o pensamento, foge dele. Quer
o não-pensamento, por isso não tem filosofia, mas sim “sentidos”.
Quando Caeiro entende que pensar é estar doente dos olhos,
ele está renunciando a toda forma de intelectualismo, pois a poesia é
experiência, tanto pelo sentido quanto pela percepção. Poesia/vida.
Esse é o caminho do haikai, de Leminski, do Zen.
29 Introdução à metafísica (HEIDEGGER, 1987, p. 168).

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

Ângulo 3 - Vazio

Contra a ideia de ser o haikai o terreno do “fácil”, fica claro que


o espaço do haikai está mais para um espaço de “fundo sem fundo”,
imagem muito utilizada na mística. Está mais próximo a um artesanato
da linguagem (é preciso tê-lo para a concisão dos versos) que a uma
facilidade retórica. Basta olharmos para a obra de Leminski e ver como
o poeta dialoga com a tradição de Bashô e com a filosofia Zen-budis-
ta. Neste tópico, analisaremos dois haikais que constroem um espaço
para o que chamamos de encontro de linhas; haikais na zona do vazio.
Para isso, circundaremos três temas: a morte, o tempo, o vazio.
Verde a árvore caída
vira amarelo
a última vez na vida
(LEMINSKI, 1983, p. 101).

O poema fala da transitoriedade das coisas no mundo. Uma árvo-


re verde que já não mais é. Findou-se. Caída, como um grou em queda
livre, seu verde desaparece. Amarela, a árvore encontra seu estar-no-
-fim. Conta-nos Toninho Vaz, na biografia de Leminski, que este haikai
foi composto quando a árvore favorita de Miguel, filho recém-falecido
de Leminski, em 1979, tombou30. Com o findar da árvore (“a última vez
na vida”), o poema coloca, mesmo, no centro do espaço literário a vida
e a morte. A vida, existência. Morte, fim. É muito corriqueiro tomar vida
e morte como blocos separados e distantes. Em contrapartida, muitos
foram os que viram não mais uma distância, mas uma proximidade en-
tre ambas. Decerto uma estreita relação. Problematizando-a, admiran-
do-a, ou até amando-a, como fizeram alguns poetas românticos do sé

30 Conferir Vaz (2001, p. 220).

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

culo XIX. Entre poetas e filósofos, muitos falaram deste encontro vida/
morte. Foi possível, então, olhar para a morte31.
Sem perdermos de vista aquela máxima heideggeriana de que
a temporalização da temporalidade é uma possibilidade para as
modalidades de existência do Dasein, vemos que, quando o poema
traça a transitoriedade da árvore, a temporalização foi já materializa-
da na linguagem. Tempo que é o agora, ou o “‘fluxo’ dos agora” (HEI-
DEGGER, 2011a, p. 518).
Então, o “fim” quer dizer uma espécie de “ponto final” na exis-
tência? Não, responderia o budismo. Para o budismo, a morte é uma
transmigração, quer dizer, travessia. Um ciclo contínuo que só é rom-
pido quando se alcança o satori (iluminação). É a morte um mal? Em
determinados pontos do pensamento antigo, tanto o bem, quanto a
vida, e até Deus, estão para o ser, assim como todo o contrário está
para o não-ser. Se olharmos para um certo Oriente, e se lembrarmo-
-nos do escritor-samurai Yukio Mishima, encontramos aquilo que
Blanchot chama de morte como tarefa artística32. Mishima se prepa-
rou (fisicamente) para a morte, cultuou o corpo para que a bainha da
espada pudesse cumprir o ritual. Nos samurais do Japão medieval,
31 Desde um Montaigne (2010, p. 59), para o qual “filosofar é aprender a morrer”, passan-
do por Schopenhauer (2000, p. 59), que via a morte como “musa da filosofia”, até o ra-
dicalismo de Emil Cioran, que rompe de vez com as distâncias vida/morte, que pensa
uma morte que ocupa a vida em toda a sua estrutura, uma morte “pura e sublime” (CIO-
RAN, 1990, p. 95). Não só a filosofia problematizou a morte. A literatura configurou-
se um espaço privilegiado para a morte. A escritura carrega a morte, tese defendida
pelo crítico literário Maurice Blanchot, que via em seus autores de predileção – Kafka,
Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé e Hölderlin – um espaço literário que era um espaço
da morte, uma ideia em que o homem se dissimula na morte (cf. BLANCHOT, 2011, p.
275). Blanchot entende que a literatura possui um direito à morte pois esta é o poder
prodigioso do negativo, ou a liberdade, pois a morte resulta no ser. Ora, aqui as teses
de Blanchot nos são úteis, pois constituem uma abertura para aquilo que Heidegger
defende, em Ser e tempo, no parágrafo 49, de que “a morte é um fenômeno da vida”
(HEIDEGGER, 2011a, p. 321), uma interpretação existencial da morte e do ser-para-a-
-morte, que já é, em si, uma possibilidade existenciária do Dasein – tese do parágrafo
52 (cf. HEIDEGGER, 2011a, p. 336). Ora, na ontologia heideggeriana, o ser é ser-para-o-
-fim porque é temporal, logo, a finitude é um caráter da temporalização do Dasein.
32 Conferir Blanchot (2011, p. 131).

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

a morte era um dever ético, morria-se por honra e por obediência à


hierarquia das castas, basta consultarmos a extensa obra de Maurice
Pinguet (1987) sobre a morte voluntária no Japão.
Se o haikai de Leminski capta o instante da morte (relembre-
mos o último verso: “a última vez na vida”), sua poesia a vê e, então, a
materializa. É totalmente verdadeira, e útil para o haikai em questão,
uma citação do antropólogo Louis Vincent-Thomas em uma volumo-
sa obra, Antropología de la muerte (1983, p. 186, grifo nosso), quan-
do diz que “representar a morte não é apenas vivê-la em imagens,
em nossos sonhos, obsessões, impulsos, para desejá-la ou temê-la; é
também materializá-la em frases, formas, cores, sentidos”33. A transição
do verde da árvore para o amarelo é a transitoriedade das coisas pela
sua temporalidade existencial. O seu amarelo materializou a morte, a
finitude, o estar-para-o-fim.
Se no haikai anterior a escritura encontra-se num estar-lançado
para a morte, carregando-a, o haikai seguinte é uma abertura para o
nada absoluto, para a vacuidade:
Debruçado num buraco
vendo o vazio
ir e vir
(LEMINSKI, 1983, p. 103).

O espaço do poema diz respeito a um tempo exato: o agora.


O primeiro plano do haikai (dois primeiros versos) é observacional.
O poema vê o vazio. O vazio é o nada absoluto do Zen. O nada ori-
ginário mesmo do Ser. A nulidade. O nada que “desvela a nulidade
que determina o fundamento do Dasein” (HEIDEGGER, 2011a, p. 391).
No mundo circundante, é o ser-aí, ser-no-mundo, que está debruçado
vendo o vazio. Por ser-no-mundo, a melhor definição é mesmo a de
33 “Representarse la muerte no es sólo vivir la en imagen, en nuestros sueños, obsesio-
nes, impulsos, para desearla o temerla; es también materializarla en frases, en formas,
en colores, en sonidos”.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

Benedito Nunes (1992, p. 86, grifos do autor): ser-no-mundo “conota


preliminarmente morar, habitar, ser familiar a”. Dasein que é transcen-
dência no mundo como horizonte transcendental. Pois, como lembra
Heidegger no parágrafo 31 de Introdução à filosofia (2009, p. 239), “a
transcendência, porém, é a constituição essencial do ser-aí”. Na trans-
cendência é que ele mantém uma relação essencial com o nada.
Pelo fio condutor da transcendência passamos para o segundo
plano do poema (o último verso): o ir e vir. Da observação do vazio,
o último verso põe o próprio vazio em movimento pelos verbos ir e
vir. Quer dizer, se já há uma articulação originária entre o nada e o
Dasein, o segundo plano sai da observação (estática) e dissemina-se
no vazio: dispersão, acepção muito bem empregada por Heidegger
no parágrafo 37 de Introdução à filosofia, acerca do ser-jogado na
existência, mas uma dispersão que também já é originária34. Com
os verbos de movimento do segundo plano, temos uma abertura à
possibilidade de o poema mergulhar no nada, vivenciar o nada. Ou
melhor, “corporalizar” o nada, termo empregado por Agustín Zavala
(2013, p. 139): “a corporalização do Nada Absoluto se manifesta na
corporalização do mundo e da sociedade”35. Note-se que a abertura
não se dá apenas pelos verbos de movimento, o próprio espaceja-
mento que há no último verso já dá a possibilidade de abertura para
a vivência do nada. Espacejamento (mallarmeano?) que já é um pró-
prio nada. Dito isto, ir e vir significa a liberdade do poder-ser livre, ou
como interpreta Benedito Nunes (1992, p. 112) o problema da angús-
tia heideggeriana, “a vertigem da liberdade, porém mergulhando na
finitude do Dasein”.

34 Cf. parágrafo 37, item c, “Facticidade e ter-sido-jogado. Nulidade e finitude do ser-aí.


Dispersão e singularização” (HEIDEGGER, 2009, p. 354-362).
35 “La corporalización de la Nada Absoluta se manifiesta en la corporalización del mundo
y de la sociedad”.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

Na combustão deste movimento e desta vivência, é que o ser-si


mesmo se descobre, e o poema irrompe no nada. No nada do funda-
mento do ser. Nada que mais é um “acontecimento ao próprio Dasein”
(NUNES, 1992, p. 115, grifo do autor). Vacuidade (sunyata). Podemos
inferir que a poesia também mantém uma relação essencial com o
nada, com o vazio. É nesta relação que a palavra poética pode dilatar-
-se no nada36. A poesia encontrou o caminho do meio.

O close: grande plano

O close é o grande plano. É o estar próximo. É a tomada que dá


o detalhe. Antes de sua morte, Leminski organizou uma obra, que
só viria a ser publicada posteriormente, em 1991. O destino de La
vie en close já estava traçado. Esta obra póstuma é, certamente, a
mais densa de Leminski, quer dizer, é uma obra de muitos poemas
com certa coloração existencial. Régis Bonvicino, que escreveu uma
matéria jornalística em 1991 para a recepção crítica de La vie en clo-
se, entende que a obra releva todas as faces de Leminski. Se a década
de 1970 foi de grande efervescência para a sua produção poética,
a década seguinte seria de grandes ondulações. Numa consulta na
biografia do poeta pode-se constatar que Leminski perdeu, em pe-
ríodos curtos, alguns ícones de sua vida. Como em 1978, ao perder
a mãe (o pai já havia morrido em 1973), e no ano seguinte assistir a
morte do filho de dez anos, Miguel. Ainda em 1986 recebe a notícia
de suicídio do irmão, Pedro Leminski. Já nos últimos anos de vida,
Leminski enfrenta uma onda de grande depressão e total entrega ao
álcool (o álcool foi uma parceira da vida de Leminski, no entanto o
poeta já havia tido complicações de saúde, como em 1978)37. Como
36 José Carlos Michelazzo (2009, p. 101) dá um enfoque na tradução e interpretação de
sunyata como dilatação.
37 Conferir Vaz (2001, p. 208).

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

classifica seu biógrafo (2001, p. 281), tínhamos, então, a figura de “um


homem saturado de emoções”. Antes que desabemos em um velho
abismo de justificar a poesia pela vida do autor (e antes que uma pa-
trulha estruturalista se manifeste, para a qual a vida do autor nada
interessa ou tenha a contribuir), preferimos seguir o pensamento de
partir da vida do autor para a obra, pois, como visto, Leminski opera
com a junção vida/obra. O que temos em La vie en close são poemas
tempestuosos, em transpenumbra, poemas em lápides. Pois “sofrer,
vai ser minha última obra” (LEMINSKI, 1994, p. 74).
Do diálogo com a tradição nipônica do haikai e com o Zen, La vie
en close fecha um ciclo: em um primeiro momento veremos como os
haikais selecionados constituem uma canção-homenagem feita por
Leminski para seus mestres; em um segundo momento, será verifica-
do como sua poesia dilui-se no nada aberto pela angústia – que, di-
gamos, atravessa toda a obra La vie en close, dos haikais aos poemas
mais longos.
Se é um traço característico de Leminski compor poemas sem
títulos, aqui se encontra uma série de poemas intitulados, alguns de-
les já fazendo referencialidade a suas influências. Um dos primeiros
poemas do livro, “Limites ao léu”, define o que é poesia a partir do
pensamento de vários autores:
POESIA: “words set to music” (Dante
via Pound), “uma viagem ao
desconhecido” (Maiakóvski), “cernes e
medulas” (EzraPound), “a fala do
infalável” (Goethe), “linguagem
voltada para a sua própria
materialidade” (Jákobson),
“permanente hesitação entre som e
sentido” (Paul Valéry), “fundação do
ser mediante a palavra” (Heidegger),

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

“a religião original da humanidade”


(Novalis), “as melhores palavras na
melhor ordem” (Coleridge), “emoção
relembrada na tranquilidade”
(Wordsworth), “ciência e paixão”
(Alfred de Vigny), “se faz com
palavras, não com idéias” (Mallarmé),
“música que se faz com idéias”
(Ricardo Reis/ Fernando Pessoa), “um
fingimento deveras” (Fernando
Pessoa), “criticism of life” (Mathew
Arnold), “palavra-coisa” (Sartre),
“linguagem em estado de pureza
selvagem” (Octavio Paz), “poetry is to
inspire” (Bob Dylan), “design de
linguagem” (Décio Pignatari), “lo
imposible hecho posible” (Garcia
Lorca), “aquilo que se perde na
tradução” (Robert Frost), “a liberdade
da minha linguagem” (Paulo Leminski)...
(LEMINSKI, 1994, p. 10).

A citação a Heidegger poderá conduzir nossa leitura. De todas


as citações, a de Heidegger é a que toca naquilo que é essencial ao
homem: a palavra (essa tese de Heidegger parece mesmo ter muito a
dialogar com Leminski). Quando Heidegger toma Hölderlin para di-
zer que o homem se funda na palavra, quer chegar naquilo que ele
chama de “essência da Poesia: que é a Poesia fundação do Ser pela
palavra”38 (HEIDEGGER, 1994, p. 30). Mesmo refletindo sobre a poesia,
essa reflexão continua ligada à questão central de toda sua filosofia: a
questão do Ser. O que nos interessa deste Heidegger é: chegar ao Ser
pela poesia. A poesia como abertura ao Nada originário. Poesia que
é “na maior parte do seu tempo escuta” (HEIDEGGER, 2003, p. 59), já
38 “Esta esencia de la Poesía: que es la Poesía fundación del Ser por la palabra”.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

que somos sempre diálogo, “dialogação”, e estamos sempre ouvindo


uns aos outros. Muito menos está Heidegger sendo teórico da poe-
sia. Quanto a isso, seguimos os passos de Benedito Nunes (1993, p.
87, grifo do autor), que vê na poesia em Heidegger uma “busca do
poético, a aproximação compreensiva da Poesia”. A poesia expõe o
Dasein. A poesia é sua morada. A poesia constrói a essência de sua
morada. Eis que Heidegger nos revela : é a poesia que confere a ha-
bitação do homem no mundo, “é a poesia que permite ao homem
habitar sua essência” (HEIDEGGER, 2010, p. 178).
Feita a abertura com o poema “Limites ao léu”, podemos entrar
em La vie en close. Nesta obra não há seções, mas podemos dividi-la
em duas partes. A primeira parte da obra contém poemas em que
a maioria são intitulados. Nesta parte, há dois haikais com um olhar
muito particular ao social, onde ver é doloroso – um dos haikais, inti-
tulados, faz uma paráfrase à Céline. A segunda parte da obra é quase
inteiramente constituída de haikais. Contém cinquenta e oito haikais,
dos quais três são intitulados. Esta segunda parte da obra é aberta
com um poema chamado “Kawásu”, que mais parece funcionar como
epígrafe ao que se segue.
“Kawásu” é “sapo”, em japonês.
Imagino ter relação original com
“kawa”, “rio”. O batráquio é o animal
totêmico do haikai, desde aquele
memorável momento em que Mestre
Bashô flagrou que, quando um sapo
“tobikômu” (“salta-entra”) no velho
tanque, o som da água.
(LEMINSKI, 1994, p. 107).

O tom em primeira pessoa do poema deixa exposto certo teor


confessional. Seria um exercício de tradução do próprio poeta? O
poema, além demostrar um Leminski atento ao ofício de tradutor, in-

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troduz toda a tradição do haikai: o batráquio (a rã, animal vertebrado,


sinônimo de anuros e da classe Amphibia) como um símbolo sagrado
(totêmico), perpetuado pelo mestre Bashô – vê-se aí a referencialida-
de. Epigráfico, o poema vem colocar em xeque o próprio fato de ser
o haikai tão dinâmico e veloz como o salto do sapo no velho tanque.
O poema seguinte é intitulado “Mallarmé Bashô”, um dos três haikais
intitulados desta parte da obra:
MALLARMÉ BASHÔ
Um salto de sapo
jamais abolirá
o velho poço.
(LEMINSKI, 1994, p. 108).

Este poema intertextualiza, entretanto, com um clássico haikai


de Bashô, que foi traduzido para várias línguas, e em língua portu-
guesa tendo sido traduzido por vários poetas. Tomemos uma de suas
traduções, feita pelo próprio Leminski:
A velha lagoa
o sapo salta
o som da água
(BASHÔ apud LEMINSKI, 2013, p. 93).

O sapo, símbolo forte na cultura japonesa, mergulha, lança-se


no acaso, no acaso mallarmaico, e entrega-se a um lugar profundo
do tanque. Mergulha para habitar o tanque. Um habitar onírico? Do
mergulho, salto ou tombo, o sapo visita esse espaço como se qui-
sesse integrá-lo. Sapo entre o tanque e a água. Sapo que vivifica o
tanque, se “presentifica” nele, pois não haveria rumor de água sem
seu pulo, sem seu salto. Pois é assim que o sapo torna-se tanque: mo-
mento de união. Sapo (sujeito) e tanque (natureza) unindo-se misti-
camente em um ato espontâneo e livre. Veja-se que, na tradução, há
um espaçamento entre o sapo e o salto. É o momento do lance, do

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pulo, do voo, do encontro, do tornar-se. Leminski, em sua biografia


de Bashô, comenta o haikai da seguinte forma:
O velho tanque
De todas as formas poéticas do Oriente, o haikai parece ser o que
melhor se aclimatou na floresta de signos da literatura ocidental.
[...]
O sapo salta
O segundo verso exprime a ocorrência do evento, o acaso da
acontecência, a mudança, a variante, o acidente casual.

O som da água
A terceira linha do haikai representa o resultado da interação en-
tre a ordem imutável do cosmos e o evento
(LEMINSKI, 2013, p. 109-112, grifos do autor).

O momento do salto do sapo é o momento do acaso mallar-


meano, é o agora Zen, o instante. Voltando ao haikai de Leminski, a
inserção de Mallarmé no título configura-se como um perfeito con-
sórcio. Bashô projetando o salto do sapo no silêncio do tanque, quer
dizer, no silêncio da poesia – lembremo-nos de uma celebre citação
de Benedito Nunes (1993, p. 96) encontrada em seu ensaio “Herme-
nêutica e poesia”: “toda grande poesia termina no silêncio que ela
mesma gera”. Mallarmé lançando os dados ao acaso (não para aboli-
-lo, pois ele é constituinte mesmo da poesia). Mallarmé e Bashô tam-
bém trazem à tona toda a teoria da intertextualidade e todo o debate
da referencialidade. Afinal, “a citação sempre faz aparecer a relação do
autor que cita com a biblioteca [...]” (SAMOYAULT, 2008, p. 49). Portan-
to, neste haikai “Mallarmé Bashô” Leminski reescreve palimpsestuo-
samente os poetas Mallarmé e Bashô. Aqui, tem-se o salto do sapo,
como um lance de dados, diante do poço, o acaso, ou como analisa
Fábio Vieira (2010, p. 103), é o espaço-tempo da “indeterminação”.

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Outro haikai de La vie en close é decisivo para o diálogo com a


tradição de Bashô:
O corvo nada em ouro
nem o céu estraga o vôo
nem o vôo dana o céu.
(LEMINSKI, 1994, p. 155).

O primeiro verso deste haikai capta uma paisagem contrastan-


te: um corvo negro, tão negro quanto o céu do anoitecer, e a lumi-
nosidade do ouro. O primeiro verso de um haikai é como uma len-
te de uma câmera fotográfica que quer captar, pela objetividade, o
máximo do cotidiano. O segundo contraste apresentado no haikai é
entre o pequeno corpo de corvo e a infinidade absoluta do céu. Pelos
segundo e terceiro versos notam-se a imbricação entre corvo e céu,
onde um não interfere no outro – a brincadeira entre os verbos nadar
e danar já denota a influência concretista em Leminski. Da ocorrên-
cia, um pequeno corvo na imensidão do céu, chega-se à interação:
se o céu não estraga o voo do corvo, este não lhe dana, mas sim se
lança nele, dissipa-se no céu. Um corvo que se esgota na totalidade
do céu. E perguntaria, com razão, o leitor: não haveria algo de me-
talinguístico nesse esgotar-se? Isto é, um pequeno corpo (o haikai)
que se esgota na imensidão do céu (a página em branco)? Este voo
no horizonte também nos leva a Bashô. Em um haikai que também
traz a figura do corvo, podemos ver a presença do poeta japonês na
poética de Leminski:
Um corvo pousado
num ramo seco –
entardecer de outono.
(BASHÔ apud FRANCHETTI, 2012, p. 57).

Se o haikai é este incessante voar na imensidão, a figura do


corvo é a ponte entre esses dois poetas. As imagens captadas por

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Bashô – rama seca, corvo e tarde de outono – parecem dialogar com


as imagens captadas por Leminski, assim como há uma conexão
entre os contrastes – no haikai acima de Bashô, o mesmo corvo negro
e a tarde de outono, ao fundo, o envolvendo.
Se em Caprichos e relaxos pudemos ver o haikai como experiên-
cia mística e contemplativa, um Leminski que vai ao pensamento
oriental (budismo Zen) e leva para sua poesia a experiência Zen da
vacuidade (sunyata), em La vie en close, quando dizemos que se com-
pleta um ciclo, quer dizer: se concatena a nossa tese de que a poe-
sia de Leminski funda-se no nada – um nada originário. Leminski vai
também à Heidegger e dele busca não só a “essência” da poesia. Com
Heidegger, podemos afirmar que há em Leminski uma poesia suspen-
sa no nada39.Na obra de Leminski, podemos fazer a seguinte averi-
guação: há em Caprichos e relaxos um nada manifestado pela angús-
tia (como tentamos demonstrar no tópico “Ângulo 3: Vazio”) e há em
La vie en close um nada manifestado pelo tédio. Nesta obra póstuma,
temos poemas carregados de tédio, solidão e morte. “Tudo é vago
e muito vário” (LEMINSKI, 1994, p. 64), já anuncia um verso sobre o
peso deste vazio. Poemas de dor, de luto, de tristeza, como podemos
ver nos versos finais do poema “Luto por mim mesmo” (Idem, p. 92):
“uma dor que goza / como se doer fosse poesia”. Como Leminski bus-
cou diluir-se totalmente na poesia, tudo em La vie en close é dor. Dor
de experimentador40. Da dor ao tédio das horas. Aqui nos deteremos

39 Convém notar que o nada já foi aberto por Heidegger pela angústia. Se Heidegger, em
Ser e tempo, viu na angústia a abertura privilegiada para o nada – ou manifestação do
nada, como escreve em Que é metafísica? (HEIDEGGER, 1989, p. 39) –, em Os conceitos
fundamentais da metafísica Heidegger verá no tédio (na manifestação do tédio) o li-
bertar-se do ser-aí.
40 Mais uma vez somos levados a Caprichos e relaxos, especialmente em um poema bas-
tante peculiar pela sua sonoridade e pela sua forma: “ver / é dor / ouvir / é dor / ter
/ é dor / perder / é dor” (LEMINSKI, 1983, p. 59). Um poema que dialoga com um dos
haikais de La vie en close, onde temos “ver é violento / que golpe / aplicar no vento?”
(LEMINSKI, 1994, p. 114).

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em dois haikais (cuidadosamente ambos vêm seguidos) que trazem


essa manifestação de tédio.
Vazio agudo
ando meio
cheio de tudo
(LEMINSKI, 1994, p. 123).

Já é uma particularidade dos haikais de Leminski um eco fecha-


do produzido pela assonância em ‘o’ (vazio agudo / ando meio / cheio
de tudo) e pela rima interpolada (agudo / tudo), além de uma rima
encadeada (meio / cheio). Toninho Vaz nos conta que este haikai foi
escrito em um bar, junto com alguns outros, na fase mais radical de
Leminski por conta do excesso do álcool (em 1987)41. O primeiro ver-
so expõe a intensidade do vazio, o seu peso (“agudo”). Um sentimen-
to de tristeza, tédio, ou até mesmo um estado de saturação, pouco se
manifestou em Caprichos e relaxos. Podemos dizer que a sua tonali-
dade afetiva estava adormecida, e aqui se encontra desperta42.

41 Cf. Vaz (2001, p. 265).


42 Em Os conceitos fundamentais da metafísica, Heidegger chama de “tonalidades afeti-
vas” sentimentos como tristeza, melancolia, ira, e estas tonalidades são intrínsecas ao
ser do homem. Ela é o “como” de nosso ser-aí e não simplesmente um “estado de alma”.
Ela é o “jeito fundamental como o ser-aí enquanto ser-aí é” (HEIDEGGER, 2011b, p. 88).
Heidegger atenta para o fato de que é preciso despertar estas tonalidades afetivas
adormecidas. Despertá-las é um modo de “deixar o ser-aí como ele é ou como ele,
enquanto ser-aí, pode ser” (Idem, p. 90). Se há várias tonalidades afetivas, que estão
sempre variando, qual deve ser despertada? Heidegger responde no parágrafo 19 que
o tédio (lembrando que o tédio, em Heidegger, se encontra em relação com tempo,
com o longo tempo – o tempo, que lança as perguntas metafísicas pelo mundo, pela
finitude e pela singularização) é a tonalidade afetiva fundamental e que se encontra
velado. É preciso deixar o tédio acordar para libertar o Dasein. A concretude do des-
pertar desta tonalidade afetiva fundamental no haikai se concretiza nos dois últimos
versos, onde brota o entediar-se. Andar (meio) cheio de tudo é o próprio irradiar do
tédio por todos os lados (o próprio verbo de movimento “andar” já se relaciona com a
irradiação). É um estar-entediado do ser que não se encontra ocupado com os afaze-
res, os passatempos da vida – cf. parágrafo 23, “o ser-entediado e o passatempo”, de
Os conceitos fundamentais da metafísica, onde Heidegger fala que o passatempo é a
hesitação do tempo que nos aflige, pois é no passatempo que dispersamos o tempo,
isto é, é nossa ocupação (Idem, p. 123-140).

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

No haikai acima, não nos parece que se está entediado por isto
ou aquilo (o que Heidegger chama de primeira forma de tédio, o en-
tediar-se por algo43), mas por algo indeterminado, que não se sabe:
vazio – note-se que Heidegger nomeia esta indeterminação de se-
gunda forma de tédio44, e aí se dá a dialogação com o haikai, pois o
vazio absorve este ser-entediado: ser-deixado-vazio, pois “o que nos
deixa vazios é o entediante” (HEIDEGGER, 2011b, p. 153). O poema
deu espaço para o vazio porque ele se fez vazio, mergulhou no vazio
agudo. E quantos de nós não nos entediamos a todo o momento,
não somos absorvidos por esse vazio agudo (que Heidegger chama
de tédio profundo). Aberto o ser-aí, o haikai subsequente completa a
aurora da tonicidade afetiva:
Fruto suspenso
a que susto
pertenço?
(LEMINSKI, 1994, p. 124).

Tudo vem à tona neste haikai a partir da pergunta nos versos


finais: o tédio, a angústia, inconformação, tristeza. O abalo produzido
pelo “susto” revela a não identificação do “eu lírico” com o mundo. O
susto revela um não estabelecimento de presença, uma insatisfação
determinada pela indeterminação. Esta marca de insatisfação é, en-
tão, o entediante para o ser-entediado que se entediou por isto? Se o
susto tem por função o choque, tudo é intranquilidade? O que fazer
diante do abalo? Como a todo momento somos bombardeados por
abalos, catástrofes, guerras, miséria, parece mesmo que o melhor é
um estar-ausente45. O primeiro verso do poema já nos direciona: a
suspensão. Suspender-se dentro do nada. Diante deste fruto suspen-
43 Idem, p. 103-140.
44 Conferir terceiro capítulo (Idem, p. 141-173).
45 Lembra-nos Heidegger no parágrafo 16 de Os conceitos fundamentais da metafísica
que mesmo um estar-ausente, é preciso estar-aí, “precisamos estar aí para podermos
estar-fora” (HEIDEGGER, 2011b, p. 85).

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so, ousamos afirmar que, pelo haikai, somos conduzidos à fundação


do ser pela via poética, a um Dasein poético46. Chegamos, então, à
habitação. Habitação poética.
Com La vie en close completou-se um ciclo no diálogo com a
tradição oriental, nos permitindo estabelecer “pontes” com a filoso-
fia, mais especificamente com Heidegger, pois, por mais que o haikai
seja breve, nas suas três linhas, ele nos conduz a inúmeras “pontes”
no pensamento, seja ele Ocidental ou Oriental.

CONCLUSÃO

Se em Caprichos e Relaxos é possível encontrar timidamente a


presença bashoniana nos haikais que percorrem o mundo circun-
dante, presença que se dá pelo tom de simplicidade empregado
no haikai, em La vie en close o encontro se efetiva. O que resulta é
uma poesia despojada e desprendida, que aprendeu com o budismo
Zen a simplicidade, o enigma e o não-pensamento. Uma poesia que
aprendeu que para voar não precisa de asas. Quem voa é o horizonte.
Concluímos que a obra de Paulo Leminski parece nos fazer entrar
mesmo em um espaço esgazeado e movediço, também labiríntico.
Tudo se estilhaça, mas nunca se perde o charme. A obra de Leminski
é um espaço de encontros. Aqui, podemos observar como Leminski
é com os outros. É diálogo com. Inclassificável, aprendeu com os mo-
dernistas, com os concretistas (deles devedor), surfou na poesia mar-
ginal, nos outdoors, na música, e o fruto de toda essa aprendizagem
foi um poeta elástico que afetou e foi afetado por aqueles com quem
encontrou no caminho. O que buscamos nesta pesquisa foi abrir al-
guns destes encontros e de seguir a trilha de um Leminski que apren-
46 Em dois momentos Benedito Nunes nos fala deste Dasein poético: primeiro, em Passa-
gem para o poético (NUNES, 1992, p. 271): “[...] porque o Dasein está enraizado à tota-
lidade do ente pelos filamentos poéticos da linguagem”; segundo, em Hermenêutica e
poesia (1999, p. 158): “o próprio Dasein é considerado poético [...]”.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

deu com o Oriente novos caminhos para a poesia. Um Leminski que


aprendeu com Mishima a ser um experimentador da linguagem. Mas
é com Bashô que Leminski aprende a beleza e a simplicidade da pala-
vra poética. Aprende o nomadismo, o desprendimento, a atenção e a
escuta conferidos pelos haikaístas à poesia. A poesia podia olhar para
o objeto e ser o objeto, chegar a ser o objeto. A poesia era o vir-a-ser.
Com Bashô e com a tradição oriental, Leminski sem dúvida aprende
que “o mais fundo / está sempre na superfície” (LEMINSKI, 2001, p. 61).

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Os rastros da memória na literatura
brasileira: uma abordagem hermenêutica1
Ramon Diego Câmara Rocha2

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

No Brasil, apesar de vislumbrarmos, já no


romance realista, um tratamento dos acon-
tecimentos modelados por uma intrusão de
um eu, agora narrador e personagem de sua
própria história, tal aprofundamento desse
modelo homodiegético3 só se deu, de forma
efetiva, em um momento histórico posterior à

1 O texto do presente artigo fez parte das discussões le-


vantadas no capítulo 1 da minha dissertação de mes-
trado intitulada “O espaço literário na narrativa me-
morialista de Zélia Gattai”, defendida em Fevereiro de
2018, na Universidade Federal de Sergipe cujo acesso
está liberado no portal repositório institucional da
UFS: (https://ri.ufs.br/jspui/handle/riufs/8205).
2 Doutorando em literatura comparada pela Universi-
dade Federal do Rio Grande do Norte. Mestre em
estudos literários pelo programa de pós-gradua-
ção em letras da Universidade Federal de Sergipe.
Contato: ramomdidi@gmail.com
3 Homodiegético significa aqui, aquele que é introduzido
de forma orgânica na diegese, ou seja, cuja participação
no enredo se dá de maneira indissociável. Tal movimen-
to acontece quando narrador e personagem são a mes-
ma persona, conduzindo o relato em primeira pessoa.

| 58 |
| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

II Grande Guerra, aprofundando-o no desenvolvimento de al-


guns enredos.
Esse novo formato das narrativas ancorou-se à força de repre-
sentação dos fatos enquanto rompimento com uma razão totalizan-
te, que não abarcava aspectos profundos de nossa humanidade e
vivência perante eles. A partir disto, a crítica da época denominou
estas narrativas de memorialistas, baseando tal nomenclatura na in-
tervenção poética dos relatos de memória – deduzindo, de um mi-
crocosmo, um macrocosmo – que conseguia transpor certa percep-
ção do cotidiano a partir de uma disposição biográfica da realidade.
Realizando um trabalho com o relato biográfico que o fundia à
ficção, partia-se de uma construção estética que “Não pretende ser
uma investigação do que foi, sem que, por isso, o mundo de fora dei-
xe de tocá-la”. (LIMA, 2006, p. 225). Nesse processo, o procedimento
hermenêutico de compreensão da realidade, em que sujeito-obra-
-mundo atuam na significação de determinadas identidades e, mais
do que isso, no resgate da memória coletiva e individual, é colocado
em questão por meio de dois movimentos de compreensão, que mu-
dariam, de forma dialógica, a forma de pensar a memória e a relação
do indivíduo com ela por meio do texto literário.
Dado esse momento de pré-compreensão dos fatos, é justa-
mente nesse sentido dialógico, tentando compreender como essas
narrativas surgem e se potencializam na literatura brasileira, que esse
trabalho se desenvolve, tentando lançar uma luz, de forma crítica, so-
bre dois momentos de estruturação estética da memória, compreen-
dendo-os em face das discussões de seu próprio tempo e valendo-
-nos, metodologicamente, de um diálogo entre a literatura brasileira
e a filosofia hermenêutica.
Trazendo à tona estilos diversificados, lançaremo-nos à com-
preensão de como, em nossa literatura, esse percurso de incorpo-

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

ração mnemônico se deu de maneira mais aprofundada, dividindo,


metodologicamente nossa abordagem, a partir de duas formas de
tratamento da memória na expressão verbal escrita. A primeira, to-
mando o processo de recordação enquanto matéria-prima para o
desenvolvimento da diegese. A segunda, elevando a memória a ob-
jeto central do texto, confundindo a condução do fato com o próprio
processo de recordar.
A partir desse percurso almejamos, por meio de uma leitura
apoiada na hermenêutica, refletir sobre como esses dois tipos de
abordagem relacionam-se e, de que forma contribuem, enquanto
rastros, tanto para a revisitação de um espaço literário na literatura
brasileira moderna, quanto para a fusão deste ao espaço biográfico.

A MEMÓRIA ENQUANTO MATÉRIA-PRIMA


NA COMPOSIÇÃO NARRATIVA

Muitos autores e autoras no Brasil apostaram, no começo do sé-


culo XX, em uma escrita do íntimo, ou seja, evocando no momento
da narração, a própria ordem do narrado, compondo uma poética da
experiência. Isso acabou valorizando o acontecimento da narração
memorialista tanto como testemunho, quanto autoconsciência de si,
sem tropeçar em uma reflexão auto-referencial sobre a linguagem,
ainda que imbuída dela.
Antônio Cândido, realizando um estudo mais aprofundado
acerca desse aspecto e atento às narrativas de autores modernos e
contemporâneos, como Graciliano Ramos, Drummond, Pedro Nava,
entre outros, publica, em 1975, uma breve conferência sobre um es-
tudo realizado por ele, tratando da produção de 40 a 75 no Brasil,
atento ao surgimento de uma nova configuração dentro do seio fic-

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

cional, que valorizava, agora, o tratamento com o fato de maneira


diferenciada, nos diz ele:
Em tais livros, os fatos narrados na primeira pessoa correspon-
dem sem dúvida a biografia de um homem; mas tratados de tal
modo que se leem também como obras de ficção. Os valores an-
tes procurados no romance, parece que agora estão sendo for-
necidos cada vez mais por livros deste tipo, de que a literatura
recente oferece bons exemplos. (CANDIDO, 1975, p. 13).

Essa ornamentação da linguagem, incorporada à escrita de al-


guns(umas) autores(as), em busca de um discurso que potenciali-
zasse a sua narrativa, no entanto, não só gerou um encantamento
em relação ao que era resgatado pela memória, como fez com que a
imagem sobre o fato fosse absorvida de maneira mais efetiva, apos-
tando menos no estranhamento e na desarticulação de uma lingua-
gem convencionada e mais na reflexão e na própria condução me-
morialista que a narrativa carregava, dando origem a toda espécie
de romance autoficcional, autobiográfico, memorialista entre outros,
que se transformariam em um norte para a produção contemporâ-
nea brasileira.
Em uma análise dialética, Cândido teria chegado a essas conclu-
sões, apoiado em um tripé metodológico composto por a) uma análise
sociológica dos movimentos que geraram determinadas produções;
b) o processo de recepção e circulação das obras; c) o caráter estético-
-discursivo dessas obras como representação do seu próprio tempo.
Nessa direção, o crítico estabeleceu, por meio desses parâme-
tros críticos, uma importante reflexão sobre o comportamento de
determinada produção, realizando um recorte temporal específico.
Nos interessa, para essa nossa análise, menos um esforço sociológico
e mais uma reflexão filosófica da ideia de memória em determinadas
obras, buscando compreender como esse processo de ficcionaliza-
ção mnemônico se altera no decorrer do tempo, compreendendo-o

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

a partir de uma hermenêutica da expressão verbal, apoiada no cará-


ter estético da obra de arte.
Para isso, partiremos das obras e de sua relação com a socieda-
de da época, não com vistas a uma compreensão do processo social
implicado nelas e por elas, mas do movimento estético discursivo
que tais obras, em uma esfera individual e coletiva, empreendem no
processo hermenêutico de interpretação crítica da realidade, com-
preendendo a obra não como representação do real, mas como re-
fração crítica dele, atrelada à memória individual e coletiva de duas
maneiras distintas ao decorrer dos séculos, afinal, “Representações e
modos de ver ou modos de pensar e juízos estéticos de valor históri-
cos, uma interpretação historicamente condicionada do mundo e da
existência humana no mundo penetram inevitavelmente no pensa-
mento de cada um […]” (CORETH, 1973, p. 66).
Dito isto e, atentos aos rastros da memória na estruturação dos
textos literários brasileiros, não é difícil perceber que os textos que
partiram determinado trabalho com a mnemônico, mesmo no séc.
XIX, já anunciavam uma transformação da escrita sobre ela, toman-
do-a, em um primeiro momento, como elemento que condicionava
a elaboração de certa diegese4 e, em um segundo, tornando-se o pró-
prio objeto da narração.
No primeiro momento, o trabalho com a recordação fora toma-
do como percurso para se conhecer os mistérios da alma, relacio-
nando-o, por parte de alguns escritores, a um plano de evasão, onde
alcançariam determinada liberdade criativa e existencial. Ou, Como
nos diz Alfredo Bosi, atento à produção dessa época, era comum se
perceber “[...] fundos traços de defesa e evasão, que os leva a postu-
ras regressivas: no plano da relação com o mundo (retorno à mãe-na

4 Conceito referente ao conjunto de ações que movimentam o enredo desenvolvido


no romance.

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tureza, refúgio no passado, reinvenção do bom selvagem, exotismo)


e no das relações com o próprio eu” (BOSI, 1975, p.100).
Nesse contexto, temos, tanto em alguns países do continente
europeu, quanto no Brasil, um pensamento romântico que se desen-
volveu de forma mais incisiva, por meio de uma espécie de nostalgia
formadora, que se deu como fonte primeira de uma escrita que pre-
tendia resgatar os sentimentos do passado. Não é difícil, portanto,
supor que a necessidade dessa evocação da memória se entrelaçava
à incapacidade de reviver aquilo que não é mais presente, trabalhan-
do, sobretudo, com uma ideia de memória enquanto reminiscência,
que angustiava aquele que conduzia tal processo de rememoração:
Aprender, diz ele, não é outra coisa senão recordar. Se esse ar-
gumento é de fato verdadeiro, não há dúvida que, numa época
anterior tenhamos aprendido aquilo de que no presente nos
recordamos. Ora, tal não poderia acontecer se nossa alma não
existisse em algum lugar antes de assumir, pela geração, a forma
humana. Por conseguinte, ainda por esta razão é verossímil que
a alma seja imortal. (PLATÃO, 1972, p. 82).

A explicação acerca desse processo ocorre, a partir da perspec-


tiva platônica, em uma tentativa de associar a figura daquele obje-
to primeiro à figura do objeto em si, no plano ideal. Ainda seguindo
essa linha de raciocínio, por não ter a imagem nítida do objeto no
plano ideal, de onde a alma teria vindo, o indivíduo, em contato com
o objeto do mundo sensível, apenas lembraria de algo que já teria
conhecido em outro plano.
Explicando melhor este processo e, valendo-se da antiga con-
cepção platônica de conhecer como sinônimo de reconhecer, no séc.
XVIII, os escritores desse período realizaram, por meio de sua produ-
ção literária, uma atualização dessa concepção de memória em seu
aspecto mais idealista, em que o olhar para o passado representava
um retorno humanista para ligarmo-nos a uma condição existencial

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perdida. Algo que se realizara por meio de um conjunto de imagens,


a que ligavam-se à ideia de uma humanidade de viés essencialista.
A literatura romântica, ancorada a esse estado de angústia face
à rememoração nostálgica, aposta, então, em uma produção essen-
cialmente poética, no resgate de um sentimento que só se dá en-
quanto lembrança ou possibilidade de lembrança, primeiro diante
da construção do gênero lírico, logo, “O eu romântico, objetivamente
incapaz de resolver os conflitos com a sociedade, lança-se à evasão”.
(BOSI, 1975, p. 101).
Neste caso, os primeiros rastros de um trabalho estético com a
memória ficam evidentes, então, ao observarmos uma vontade de
romper com o presente, apoiando-se em um sentimento sobre o
passado que toma forma na rememoração, mas por isso mesmo, im-
possível de se concretizar no mundo sensível, como vemos em poe-
mas, principalmente, dos escritores da considerada segunda geração
romântica brasileira, como Casimiro de Abreu:
MEUS OITO ANOS
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
(ABREU, 1858, p. 14).

Aqui, a própria perspectiva temporal, representada pela demar-


cação dos verbos, já nos anuncia um tempo ao qual a memória in-
terliga-se. Enquanto a saudade é sentida no presente da enunciação,
materializada pelo verbo “ter” no presente do indicativo, “Oh! que
saudades que tenho”, em seguida, a própria negação desse tempo

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presente se desenvolve a partir do advérbio de negação que, opon-


do-se à presentificação ou ao indicativo de presença, referenda a
infância por meio de um espaço-tempo que não pode mais ser ma-
terializável, a não ser por meio da linguagem “Da minha infância que-
rida/que os anos não trazem mais”.
Também motivado pela negação do presente e pelo anseio de
interligar-se, existencial e misticamente a uma memória ou reconhe-
cimento do passado, como morada do seu ser, ou de sua humanida-
de, Álvares de Azevedo é outro poeta que nos diz:
Eu podia na sombra dos amores
Tremer num beijo o coração sedento...
Nos seios da donzela delirante
Eu podia viver inda um momento!
Ó anjo de meu Deus! se nos meus sonhos
Não mentia o reflexo da ventura,
E se Deus me fadou nesta existência
Um instante de enlevo e de ternura...
(AZEVEDO, 1996, p. 17).

Também é possível uma leitura hermenêutica a partir da uti-


lização de certos tempos na expressão verbal, como “Eu podia
na sombra dos amores/tremer num beijo o coração sedento”, em
que temos, no pretérito imperfeito, a incerteza do acontecido e,
em figuras de linguagem como “sombra dos amores”, a confirma-
ção do aspecto turvo de um sentimento passado, materializado
por tal metáfora, confirmando que o eu-lírico, no momento da
enunciação, vive um simulacro de um mundo ou passado ideal.
O fato é que, apesar de diferenciarem-se no âmbito do estilo
individual, outros tantos poetas compartilharam, assim como os es-
critores mencionados, uma época de compreensão coletiva da me-
mória que nos interligaria, de forma nostálgica, a um estado de hu-

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

manidade, bondade e inocência ancorado na fuga, no delírio ou na


negação do tempo presente.
Essa compreensão do aspecto mnemônico, materializado na
expressão verbal, nos mostra, que a primeira incorporação do me-
morialismo na literatura, se fundamenta em um rastro estético-filo-
sófico da memória enquanto matéria-prima da produção artística,
ainda muito ligada a uma busca pelo conhecimento de si, por meio
do reconhecimento do passado, dando nova roupagem a ideia de
reminiscência platônica.
Já no final do romantismo e no início do realismo, no entanto,
há uma diferença do tratamento da memória, que apesar de funcio-
nar, essencialmente, como matéria-prima da composição literária,
acaba realizando uma variação na forma de manifestar, alterando-se,
aos poucos, para uma concepção mnemônica de caráter mais aris-
totélico, obtendo, por meio da realização mimética, um efeito mais
contrastante diante da realidade social.
Nesse momento, sobretudo, o próprio gênero através do qual a
memória prevalece, dentro da composição verbal, é o romance. Des-
cola-se, paulatinamente, do trabalho quase iniciático com a palavra
poética, diante de uma pulsão humanizadora, estabelecendo a as-
censão de um novo modo de refração crítica da realidade, a partir de
um modelo que agora trazia, em seus elementos conceituais, muito
menos trabalho com a polissemia discursiva e muito mais labor com
a criação imagética de quadros e cenas.
Não por acaso, um dos nossos escritores mais conhecidos, Ma-
chado de Assis, represente tão bem essa transição, apostando na
memória, por meio de um movimento irônico, como salvo conduto
de seus personagens. O escritor consegue construir uma atmosfera,
ao mesmo tempo, de encantamento, ao mostrar como essa memó-
ria nos é narrada e transposta para o discurso e, de desconfiança, ao

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

tempo em que esta se descortina e nos são revelados os arquivos


existenciais e sombrios que essas recordações possuem.
Como exemplo dessa composição calcada em uma oratória que
nos ludibria, podemos citar duas de suas grandes obras, Dom Cas-
murro (1889) e Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). Esta última,
carregando, já no título, sua carga significativa e enigmática, fazendo
referência direta ao tratamento do mnemônico em sua composição
em tom igual ou até mais corrosivo do que no primeiro romance.
No segundo livro, especificamente, a ó[p]tica de um indivíduo de
posses – foco narrativo muito adotado pelo escritor – nos revela a vida
de um aristocrata a partir de sua condição pós-mortem, que legitima
sua narração, mas que não o absolve de seus erros em vida, impressos,
agora, pela maneira ácida com a qual conduz sua rememoração, sele-
cionando, julgando e transmitindo, através da expressão verbal, a con-
dição estética de sua condenação: ser destinado a não esquecer, ou
seja, de remoer seu passado e suas ideias à exaustão ou, como o pró-
pria abordagem fantástica desse enredo sugere, por toda a eternidade:
Deus te livre, leitor, de uma ideia fixa; antes um argueiro, antes
uma trave no olho. Vê o Cavour; foi a ideia fixa da unidade italia-
na que o matou. Verdade é que Bismarck não morreu; mas cum-
pre advertir que a natureza é uma grande caprichosa e a história
uma eterna loureira. (ASSIS, 2006, p. 05).

O escritor, a exemplo de outros romancistas do período de tran-


sição entre o romantismo e o realismo no Brasil, parte de um apro-
fundamento psicológico de seus personagens, como quem tenta
apreender, no particular, uma inquietação coletiva. Apoiando-se na
lembrança como aquela parte da experiência que deve ser preserva-
da como uma chaga, como um rastro de nossa incompletude. Cons-
truindo, no leitor, uma situação de eterna desconfiança que parte, de
um microcosmo particular, para um macrocosmo social.

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A repetição, tanto no primeiro trecho quanto no segundo, am-


bos retirados do romance Memórias póstumas de Brás Cubas, apon-
tam para uma morte causada pela impossibilidade de se livrar de
determinada concepção ideológica sobre sucesso, glória e auto-
-realização. Concepção esta que é enraizada no entendimento que
o personagem possui sobre o mundo, desencadeando seu fluxo de
rememoração, como vemos também no seguinte excerto:
Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confes-
sar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver im-
pressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas
caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas.
Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do fo-
guete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito;
fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis.
Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma
virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia
e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: — amor da
glória. (ASSIS, 2006, p. 04).

A reconstituição do fato, aqui, é menos importante do que a


possibilidade, por parte do leitor, de acreditar ou não que o fato te-
nha acontecido tal qual nos é narrado, por meio das estratégias de
articulação estética e discursiva presente neles. A desconfiança acer-
ca dessa memória, gera um conflito entre o que é dito e o que não se
mostra. No entanto, como afirma Paul Ricoeur, “Se podemos acusar
a memória de se mostrar pouco confiável, é precisamente porque
ela é o nosso único recurso para significar o caráter passado daquilo
de que declaramos nos lembrar”. (RICOEUR, 2007, p.40). Nessa linha
composicional, o bruxo do Cosme Velho constrói um personagem
aristocrata que, mesmo depois de morto, é motivado pela constru-
ção de sua memória apoiada em seus possíveis dias de glória. O que
nos leva enquanto leitores, a questionar a confiabilidade daquilo que
nos é narrado e, ao mesmo tempo, a angústia de não poder lidar com
o esquecimento.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

O fato é que, de todo modo, Machado parece adequar sua ex-


pressão verbal, a um trabalho com o não-dito, que utiliza-se da te-
mática da memória e do esquecimento como aliados à faculdade de
compreender, instigando, em ato, a produção de um conhecimento
em potência, por meio da criação artística. Ou seja, as imagens do
presente e de sua percepção, como elementos ou gatilhos criativos,
atestam que:
[...] é nas formas sensíveis que os objectos entendíveis existem.
Estes são os designados «abstracções» e todos os estados e
afecções dos sensíveis. Mais, por isso, se nada percepcionásse-
mos, nada poderíamos aprender nem compreender. Além disso,
quando se considera, considera-se necessariamente, ao mesmo
tempo, alguma imagem. As imagens são, pois, como sensações,
só que sem matéria. Já a imaginação é algo diferente da afirma-
ção e da negação, pois o verdadeiro e o falso são uma combina-
ção de pensados. (ARISTÓTELES, 2010, p. 124).

A percepção, gravada enquanto memória, forneceria, então,


o material para o entendimento e para a imaginação, ligando-se à
produção do conhecimento como uma espécie de matéria primei-
ra. Imaginar, neste caso, se relacionaria a conhecer, mas não a um
conhecer em ato, e sim em potência5, como já dissemos nessa seção.
Nesse sentido, podemos dizer que há, de fato, uma pequena alte-
ração na concepção sobre a memória que transpassa esteticamente a
construção literária desses dois momentos abordados até aqui, no en-
tanto, tanto na perspectiva romântica quanto na realista, fica claro que
a memória apresenta-se como elemento que condiciona o enredo.
Ao fazer isso coloca-se em movimento o que é narrado, seja no
romantismo como uma lembrança passada que se presentifica, im-
possibilitando a concretização efetiva de um presente que é rejeita-
do pela ideia, seja, no realismo, como uma desconfiança acerca do
5 Aqui destaca-se a diferença entre conhecimento em ato, que seria um conhecimento
de maneira direta, e o conhecimento em potência, ou seja, o processo de reflexão que
pode nos levar a conhecer sobre algo.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

discurso individual, como uma imposição de uma memória indivi-


dual à coletiva ou mesmo das relações entre memória e esquecimen-
to como percepções críticas de determinada(s) imagem(ns) de si.
Dito isto, para que possamos, portanto, interpretar o impacto
dessas modulações estéticas da memória na composição da litera-
tura memorialista, lancemo-nos, pois, a uma segundo momento da
memória na expressão verbal de alguns textos literários brasileiros,
identificando, no período moderno, como a reminiscência torna-se
o próprio objeto da narração, relegando ao ordenamento dos fatos,
um papel ainda mais secundário em relação à narrativa e, fazendo
surgir o ordenamento poético da experiência íntima como princípio
estruturante da ficcionalização do eu na modernidade.

A MEMÓRIA ENQUANTO OBJETO DA NARRATIVA

Se ao final do realismo brasileiro, especificamente marcado pela


concepção memorialística machadiana – por meio das experimentações
do foco narrativo – tivemos uma grande contribuição para compreen-
dermos o ensimesmamento do sujeito no final do séc. XIX, é no início do
século XX que as imagens de si vão basicamente nortear a perspectiva
narrativa moderna, especialmente auxiliadas por uma nova visão sobre
relação entre fato e percepção, mediados pela memória.
Nesse caminho tivemos, de forma precisa, grandes influências
das experimentações estéticas europeias, a partir de narrativas que
despontavam enquanto novas concepções e tratamentos da memória
dentro do âmbito literário. Nesse rol, é impossível não citarmos a obra
do escritor francês Marcel Proust. Foi a partir do esforço desse escritor,
na primeira metade do séc. XX, que começamos a conhecer uma trans-
formação da matéria da memória em efetivo objeto da narração. Em

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O caminho de Swann, publicado inicialmente em 1913, sendo volume


integrante da grande obra do escritor francês, Em busca do tempo per-
dido, a memória obteve, de forma sui generis, seu lugar de destaque.
A partir daqui, entrou-se em um segundo momento do mne-
mônico nos textos literários, corroborando para a revisitação do pas-
sado como elemento central dessas narrativas, aproximando-as do
processo de rememoração e ficcionalizando a experiência da vida
privada, como vemos no seguinte trecho:
Sua memória, a memória de suas costelas, de seus joelhos, de
suas espáduas, apresentava-lhe, sucessivamente, vários dos
quartos onde havia dormido, enquanto em torno dele as pa-
redes invisíveis, mudando de lugar segundo a forma da peça
imaginada, redemoinhavam nas trevas. E antes mesmo que meu
pensamento, hesitante no limiar dos tempos e das formas, tives-
se identificado a habitação, reunindo as diversas circunstâncias,
ele — meu corpo — ia recordando, para cada quarto, a espécie
do leito, a localização das portas, o lado para que davam as ja-
nelas, a existência de um corredor, e isso com os pensamentos
que eu ali tivera ao adormecer e que reencontrava ao despertar.
(PROUST, 2006, p. 8).

Em uma leitura hermenêutica do texto, observa-se que o recordar


é posto em foco, diante do livro que compõe a grande obra de Proust,
agora, como objeto central do discurso, transformando a evocação da
memória, em lugar privilegiado no qual o narrador tenta se instalar,
digredindo e descrevendo-nos seu mundo a partir dos movimentos da
memória e das percepções sensoriais a partir das quais a reelaboração
de sua experiência se manifesta, por meio de imagens como “em torno
dele as paredes invisíveis, mudando de lugar segundo a forma da peça
imaginada, redemoinhavam nas trevas” (PROUST, 2006, p. 8).
Esse processo criativo, de autoconsciência da narração, tomado
como centro da narrativa, tanto motivou outros autores a arriscar es-
tilisticamente, como instigou teóricos da própria literatura acerca do
tratamento da memória na fusão entre tempo, narrativa e linguagem.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

Na literatura brasileira, tal tipo de composição não foi, de ma-


neira alguma, rejeitado, muito pelo contrário. Algum tempo depois
da Semana de arte moderna, ocorrida em 1922 no Teatro Municipal
de São Paulo, grandes nomes do romance nacional apostaram, em
meados da década de 40, em uma composição estética na qual a me-
mória, o tempo e a narração fundiam-se de maneira a tecer uma rede
de eventos, que se desenrolavam de modo multifacetado, estabele-
cendo a composição do enredo.
A exemplo de toda uma geração que agora toma a memória
em um segundo movimento de incorporação na literatura brasileira,
temos uma composição em cima de duas facetas do tempo na lin-
guagem, ou como nos diz o filósofo e crítico de literatura Benedito
Nunes, em seu livro O tempo na narrativa (1988):
O tempo da narrativa, explicitado pela teoria da literatura, é, ao
lado do ponto de vista o foco, do modo de apresentação e da voz,
uma das categorias do discurso. Mas as suas variações não po-
dem ser apreendidas se apenas visamos o discurso independen-
temente da história ou apenas a história independentemente
do discurso. O tempo da narrativa só é mensurável sobre esses
dois planos, em função dos quais varia. Ele deriva, portanto, da
relação entre o tempo do narrar (Erzãhlzeit) e o tempo narrado
(erzãhlte Zeit) (...). (NUNES, 1988, p. 30).

Um grande exemplo desse estilo de composição se dá na obra


Grande Sertão: Veredas (1986), do escritor modernista Guimarães Rosa.
Nele Riobaldo, narrador-personagem do romance, elabora um roteiro
de sua vida por meio da narração e encadeamento de fatos que lhe
acometeram, fixados de maneira sui generis em sua memória. A narra-
ção de suas aventuras e desventuras se estabelece em um tempo não-
-linear, culminando em um processo de rememoração que seleciona
os fatos e os desloca de sua espacialidade e cronologia primeiras.
Além disso, há um trabalho na linguagem, como busca daquilo
que, por tentar abarcar o não-dito, compõe-se mediante um esmero

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

da palavra, reinventando-a de acordo com uma tentativa de recriar o


fato, por meio do discurso. O que, mediado pela potencialidade retó-
rica de Rosa e, por sua capacidade criativa, acaba obtendo maior rele-
vo do que o próprio enredo em si, a exemplo do trecho que se segue:
Os nossos olhos donos de nós dois. Sei que deve de ter sido um
estabelecimento forte, porque as outras pessoas o novo nota-
ram – isso no estado de tudo percebi. O menino me deu a mão:
e o que mão a mão diz é o curto; às vezes pode ser o mais adi-
vinhado e conteúdo; isto também. E ele como sorriu. Digo ao
senhor: até hoje para mim está sorrindo. Digo. Ele se chamava o
Reinaldo. (ROSA, 1986, p. 118).

O acontecimento se estabelece a meio caminho entre a materia-


lização da linguagem e o terreno escorregadio da memória, o conhe-
cimento sobre Reinaldo se dá agora no tempo do narrar e não mais
no tempo do narrado. A percepção é fixada como lembrança e ma-
terializada na palavra, dando um enfoque maior a própria materiali-
zação. Ora esse memorialismo na literatura recaía sobre um tempo
do acontecido ou tempo do narrado6, privilegiando o fato enquanto
fenômeno na linguagem, ora ele era esboçado como uma revisitação
do próprio ato de narração, em um tempo do narrar7.
Isso, de certa forma, provoca-nos uma reflexão direta sobre o
trato do ficcional a partir de uma ilusão do biográfico. Afinal, como
nos diz Pierre Bordieu:
Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história,
isto é, como o relato coerente de uma sequência de aconteci-
mentos com significação e direção, talvez seja conformar-se
com uma ilusão retórica, uma representação comum da existên-
cia que toda uma tradição literária não deixou e não deixa de
reforçar. (BOURDIEU, 1998, p. 185).

6 Cabe aqui uma consideração acerca desse tempo do narrado. Este corresponderia ao
tempo no qual se desenvolvem os acontecimentos transpostos na narração, diferen-
ciando-se do tempo do narrar.
7 Sobre o tempo do narrar, é importante que se diga que este é o tempo em que, por
meio do discurso, a narração se estabelece, ou seja, é um tempo de revisitação do fato
na narrativa.

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Contudo, ao decorrer do tempo, esses limites, entre a ficção –


pertencente ao espaço literário – e a autobiografia – pertencente ao
espaço do biográfico – foram ficando cada vez mais estreitos. Aos
poucos, já não havia mais um equilíbrio entre a revisitação do fato e
sua transposição na linguagem, atuando em uma via de mão dupla,
ou melhor dizendo, em um espaço de fronteira entre o literário e o
memorialístico.
Tais marcas composicionais, apoiadas nos rastros que a
memória deixa em sua experiência discursiva, sobretudo, par-
tindo do âmbito da literatura, é o que nos motiva a estudar es-
sas relações em um caminho de confluência entre o que é dito,
como relato, e da potencialidade do não-dito, por meio de um
tratamento poético em obra.
Nesse domínio, alguns escritores brasileiros, como Graciliano
Ramos, Pedro Nava e Zélia Gattai, trabalharam incessantemente
essa recriação discursiva, tanto no sentido de engajamento políti-
co acerca do dito, como no de ruptura de certo espaço institucio-
nal ao qual atrelavam-se determinadas proposições ideológicas.
Não por acaso esse tipo de narrativa alinha-se ao surgimen-
to da perspectiva fenomenológica, na tentativa de preencher es-
paços da memória e transpô-los para a linguagem, no processo
de criação e espacialização do vivido que poderia ser estudado
no âmbito dos significados possíveis, partindo da interpretação
de certa vivência através da sua espacialidade verbal.
Algo que se coaduna a uma perspectiva da memória, de caráter
fenomenológico, teria dado impulso a determinada produção estéti-
ca. Em seu livro mais debatido a respeito do tema, Matéria e memória
(1896), o filósofo francês Henri Bergson, dedicado ao estudo sobre a
percepção da realidade objetiva, nos fala, por exemplo, a partir dessa

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

perspectiva, da matéria da memória como arcabouço para uma orde-


nação do entendimento, definindo-a como:
[...] um conjunto de “imagens”. E por “imagem” entendemos uma
certa existência que é mais do que aquilo que o idealista chama
uma representação, porém menos do que aquilo que o realista
chama uma coisa - uma existência situada a meio caminho entre
a “coisa” e a “representação”. (BERGSON, 1999, p. 2).

Para o autor em destaque, o mundo sensível só poderia ser sen-


tido e, sobretudo, gravado de determinadas maneiras, porque o per-
cebemos e o racionalizamos a partir de nossas sensações em relação
a ele, ou seja, das afecções, no próprio movimento de mediação com
essa realidade na qual estamos inseridos. Afinal, conhecer certa rea-
lidade seria, agora, pensado em relação ao nosso corpo e ao nosso
movimento na produção dessas imagens mnemônicas.
Trazendo essa compreensão para a criação dos textos moder-
nos e contemporâneos, o que entra em questão aqui, nem é o es-
clarecimento de sua composição a partir da análise da experiência
empírica de seu autor, tampouco a busca pela intencionalidade do
autor, “mas a temporalidade da compreensão, o compreender-se-
-em-vista-de-algo enquanto compreender-se-como-algo.” (GADA-
MER, 2010, p. 94), espacializando, por meio da linguagem, uma arti-
culação estética da memória.
Algo que fica muito nítido, por exemplo, neste trecho de Zélia
Gattai, refletindo sobre um modus operandi da narrativa de memória
e sobre esse aprofundamento e afecção de um espaço-tempo inte-
rior sobre um exterior:
Em livro anterior precipitei-me e escrevi com detalhes o que por
direito deveria caber neste livro, caso minhas histórias seguis-
sem uma linha cronológica. Só que esta linha não existe, escrevo
por linhas tortas. Não consigo encarreirar fatos um atrás do ou-
tro no correr do calendário. Embalo-me ao sabor das lembranças
à medida que elas me vêm à memória. (GATTAI, 1992, p. 110).

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

Nesse sentido, realizando um movimento de transição entre sua


experiência, gravada na memória, e sua posterior verbalização, ago-
ra, distorcida, por uma perspectivação do que fora percebido, Zélia,
a exemplo de outros tantos memorialistas da época, percebe que a
“Experiência não é, consequentemente, a passiva aceitação de uma
realidade exterior, e sim uma elaboração” (LLEDO, 1991, p. 15). Nesse
viés, atesta sobre o aspecto fenomenológico do dito em uma con-
cepção de si e do mundo como fica explícito em “escrevo por linhas
tortas”, ou mesmo “embalo-me ao sabor das lembranças”, o que se
torna um marco importante para implementação desse tipo de abor-
dagem não só nos textos memorialistas modernos, mas na própria
concepção de prosa contemporânea, em que a condução do fato é,
quase sempre, mediada pelas afecções de um narrador que caminha
pelos terrenos escorregadios e, por vezes labirínticos da memória.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dessa forma, ao chegarmos ao fim desse caminho de compreen-


são e interpretação acerca das principais teorias da memória dentro
e fora da literatura, bem como estabelecendo um parâmetro crítico
acerca de como elas influenciaram a criação de um espaço literário
nas narrativas memorialistas brasileiras, pudemos perceber como
determinados rastros da memória manifestaram-se enquanto rastros
dentro da obra literária.
Nessa direção analisamos, sob o viés da filosofia hermenêutica,
dois momentos em que as concepções mnemônicas dão contribui-
ções significativas para a construção estética do texto literário, mo-
vimentando-o a partir de marcas composicionais na forma de traba-
lhar a relação sujeito-obra-mundo.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

No primeiro movimento, norteados por concepções tanto platô-


nicas quanto aristotélicas, percebemos a memória como uma espé-
cie de matéria-prima para elaboração de determinados enredos, ou
seja, atuando, muitas vezes, como pretexto para narração ou como
tema que era tangenciado, por meio do relato, seja em primeira ou
em terceira pessoa.
Já em um segundo momento, pudemos perceber, uma nova
abordagem da concepção memorialística como fator de influência
para as narrativas modernas e contemporâneas, pensando na ques-
tão memorialística, agora, a partir de um viés fenomenológico, em
que fato e narração do fato são pensados em uma perspectiva de
afecção do narrado, em que pomos, enquanto narradores, aspectos
de nossa percepção na condução de certos relatos. Perspectiva esta
que não só permeou a literatura moderna brasileira, mas que firmou
o terreno das reflexões sobre uma fragmentação do sujeito contem-
porâneo por meio do foco narrativo, influenciando a composição li-
terária do Brasil em seu aspecto temático de viés memorial, quanto
na própria condução de um olhar hermenêutico sobre a modificação
dos procedimentos estéticos.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

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ed. Campinas: Editora Unicamp, 2007.

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Machado de Assis: “Memórias póstumas de Brás Cubas”,
um olhar hermenêutico da realidade1.
Erick Camilo da Silva Gouveia2

INTRODUÇÃO

Nas Memórias póstumas de Brás Cubas


(2014 [1881]), Machado de Assis constrói uma
narrativa com níveis de significação clivados,
o que possibilita uma espécie de jogo entre
“mostrar” e “esconder”, característica de um
narrador sem credibilidade, que se vale de um
conhecimento enciclopédico e de uma “prosa
culta” para angariar certa respeitabilidade, em
contradição com sua real condição intelec-
tual de fachada. Essa condição representava
o nível estamental dominante na sociedade
brasileira da época. Tal estratificação, se por

1 Este capítulo é parte integrante da dissertação intitulada


“Contemporaneidade póstuma: uma abordagem estéti-
ca das Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado
de Assis” defendida junto ao Programa de Pós-Gradua-
ção em Letras da Universidade Federal de Sergipe.
2 Mestre em Letras - Estudos Literários, pela Universidade
Federal de Sergipe (UFS). Especialista em Ensino de Lín-
gua Portuguesa e suas Literaturas, pela Universidade
de Pernambuco (UPE) e Graduado em Letras - Língua
Portuguesa e suas Literaturas, também pela Universi-
dade de Pernambuco - Fac. de Ciências, Educação e Tec-
nologia de Garanhuns. Atualmente é professor Litera-
turas africanas de língua portuguesa, da Universidade
de Pernambuco

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

um lado era fixa, baseada numa divisão rígida de suas camadas (esta-
mentos), por outro lado, começava a permitir um movimento relacio-
nado ao surgimento de “classes” sociais, com certa mobilidade, mas,
como veremos no decorrer de nosso trabalho, sem legitimidade, e
por isso, sem poder político.
Em muito poderíamos justificar a necessidade de contextualizar
as Memórias póstumas de Brás Cubas (2014), principalmente, por ser
uma obra na qual seu autor realizou arguta análise da situação social
de seu momento, mesmo que, de forma assente acerca desta, seja
“(...) sua vocação verdadeira: contar a essência do homem, em sua
precariedade existencial” (COUTINHO, 2004, p. 159). Alguns de seus
contemporâneos – notadamente Sylvio Romero, que “(...) negou a
autenticidade do retratista” (FAORO, 1988, p. 477) – não conseguiram
alcançar o cerne da obra machadiana, que se debruçava analitica-
mente sobre as relações sociais de sua época. Partimos do pressu-
posto de que Machado não estava preocupado em fazer cópia fiel, ao
modo da compreensão da mímesis aristotélica como simples repro-
dução do real, mas em problematizar as instituições e não menos as
relações que encadeavam o tecido social. Este, posto a descoberto,
numa escrita que vai à lama do solo e ao estrume a ele misturado
para tecer uma genealogia das camadas dominantes, mesmo que es-
sas já estejam caracterizadas desde o início do romance, como assi-
nala Roberto Schwarz quando diz que “O tom é de abuso deliberado,
a começar pelo contra-senso do título, já que os mortos não escre-
vem” (2000, p. 17) (sic).
A genealogia, que as Memórias póstumas de Brás Cubas expõe
no capítulo “O menino é pai do homem” (ASSIS, 2014, p. 75), coloca
o traço das vicissitudes de caráter na formação dos indivíduos mais
abastados da sociedade brasileira. O apanágio de “retratista” não en-
contrava em Machado eco. Disso apercebeu-se Roger Bastide, desta

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falta de vocação de Machado para retratista, chamando-lhe “paisa-


gista”, explicando:
Quando, por conseguinte, se lhe censura a banalidade das des-
crições rápidas que insinuava por vezes, em traços ligeiros, entre
as linhas da narrativa, esquece-se a reivindicação que elas por-
ventura encerram: o desejo de não cair no exotismo, porque o
exotismo é ver o próprio país com olhos de estrangeiro – a von-
tade de exprimir o que vê o olho habituado à paisagem, o olho
de um escritor que nunca saiu de sua terra, que não tem que
fazer comparações, que grava o conjunto, e não o pitoresco de
certos pormenores tropicais (BASTIDE, 2003, p. 196).

Machado prezava pela análise dos caracteres, desnudando “O


homem do subterrâneo”3, como atesta Augusto Meyer, quando diz:
Mas o verdadeiro drama da “consciência doentia” não se resume
apenas nisso [a luta pela vida], começa com o fato da consciência
por amor à consciência, da análise por amor à análise, – então sim,
nasce o “homem do subterrâneo”. (...) Havia em Machado de Assis
esse amor vicioso que caracteriza o monstro cerebral, a volúpia da
análise pela análise, mas havia também – e nisto vejo o seu drama
– a consciência da miséria moral a que estava condenado por isso
mesmo, a esterilidade quase desumana com que o puro analista
paga o privilégio de tudo criticar e destruir (MEYER, 2008, p. 18-19).

Deste modo, não se deve esperar, na obra machadiana, um


olhar de transferência direta do real. Assim, segundo Alfredo Bosi,
“A imaginação, mesmo quando parece mimética, é heurística: des-
cobre na personagem de ficção virtualidades e modos de ser que a
coisa empírica não entrega ao olhar supostamente realista e, na ver-
dade, apenas rotulador” (BOSI, 2007, p. 32). Corroborando com Bosi,
Raymundo Faoro, que não era crítico literário, mas cientista político,
soube perceber a que se propunha a obra machadiana – e sua disten-
são em relação ao movimento realista –, quando fala:

3 Título de ensaio de Augusto Meyer, em Machado de Assis, 1935-1958 (2008, p. 15).

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

Entre a cópia imitativa e o capricho está a criação artística. Aqui,


entre os polos, está a realidade, transfigurada, mas essencial-
mente a realidade. Consciente, coerentemente, um realista, o
realista Machado de Assis, desafeto do realismo escola, partiu
na caça de suas personagens e na aventura da obra literária.
A perspectiva é a da mímesis, liberta do copismo e da imitação
dos fatos, que se representam passivamente no espelho (FAORO,
1988, p. 483) (grifo nosso).

Acreditamos que o realismo de Machado não é aquele que se per-


de nos detalhes. Machado só expõe aquilo que tem função. Nesse sen-
tido, tomamos como ponto de partida o caráter hermenêutico interno
à construção narrativa machadiana que não somente lança luz sobre
o contexto histórico brasileiro vivenciado pelo autor, mas exige uma
compreensão interna da obra em que conteúdo e forma convergem
no exercício interpretativo da condição existencial envolvida na rela-
ção de senhor e escravo. Para uma melhor exposição, dividimos nosso
trabalho em dois momentos: o caráter hermenêutico da obra macha-
diana e forma e matéria: a afronta como expressão dos impasses sociais.

O CARÁTER HERMENÊUTICO DA OBRA MACHADIANA

O contexto da escritura das Memórias póstumas de Brás Cubas,


segunda metade do século XIX – publicado em livro no ano de 1881
–, fora um período de crise econômica e política, um momento de
transição. A abolição do tráfico negreiro, em 1850, abalara as bases
da economia açucareira – profundamente arraigada no Nordeste do
país –, acelerando sua decadência; em decorrência, “ (...) o deslocar-se
o eixo de prestígio para o Sul e os anseios das classes média urbanas
compunham um quadro novo para a nação, propício ao fermento
de ideias liberais, abolicionistas e republicanas” (BOSI, 2006, p. 163),
ideias que colocaram em questão também o excesso de poder nas
mãos do imperador, Dom Pedro II, bem como em relação à política

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

de maneira geral, pois não se tratava de uma representação legítima


da população. Eram oligarquias que se mantinham no poder através
tanto da promulgação de leis, que restringiam o número de votantes,
quanto pela coerção do eleitorado. As eleições eram um verdadeiro
teatro. Embora o desfecho para essas ideias, importadas da Europa,
não tenham sido imediatos, se firmariam, em 1888, com a abolição
da escravidão; e em 1889, com a proclamação da República.
Assim, o distanciamento analítico de Machado, alcançado a par-
tir da realização das Memórias póstumas de Brás Cubas (2014 [1881]),
o permitiu expressar em suas várias dimensões conflitos sociais de
relevância, tal como o embate entre as oligarquias – que detinham,
principalmente, o poder político, mas também o econômico – e os
pobres, representados pelos homens livres. Foram, pois, conflitos so-
ciais de grande importância dentro da estética literária machadiana e
responsável pela determinação de sua visão de mundo. Entendemos
que, da compreensão da escrita machadiana, um caráter hermenêuti-
co daí emane, tendo em vista a força de sua constituição como fonte
de novas perspectivas acerca dela própria, bem como acerca de seu
próprio horizonte histórico, pois deve-se pensar a hermenêutica para
além de uma simples ferramenta metodológica, para abordagem da
obra, posto que remete à estrutura própria da compreensão. Dessa
maneira, apontando, ainda, para a construção de relações, visto que a
interpretação é sempre outra, dada a inflexão de cada intérprete. Disso
resulta podermos falar em certo “caráter hermenêutico” das obras de
arte, posto se tratar de uma inflexão do artista sobre a realidade.
Com isso, na obra machadiana em questão, observamos tal as-
pecto devido ao que chamamos anteriormente de “significações cli-
vadas”, que permitem “(...) que cada grupo e cada época encontrem
as suas obsessões e as suas necessidades de expressão” (CANDIDO,
2011, p. 18).Partilhando da nossa visão, Hill nos fala que

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

É como livro que Brás Cubas lê a vida [sendo a vida constituí-


da de “edições”]. (...) Pode-se compreender essa metáfora como
uma das construções mais apropriadas. Evidenciando-se como
a revisão da vida, como uma interpretação, o livro é o objeto
próprio para sofrer esse tipo de investigação, pois é o objeto
hermenêutico por excelência. Brás Cubas faz hermenêutica da
vida. Esta expressão não passaria de bela imagem se não hou-
vesse nas Memórias intimidade entre vida e livro (HILL, 1976, p.
50) (grifo nosso).

Citando as palavras de Friedrich Schleiermacher (precursor da


hermenêutica): não se pode mais limitar a hermenêutica só às produ-
ções literárias; acontece frequentemente que, numa conversação par-
ticular, eu me surpreendo a fazer hermenêutica (apud Hill, 1976, p. 51).
Dessa proximidade entre a atitude de Brás e uma espécie de “reno-
vação hermenêutica”, Hill nos fala que “(...) a leitura constata a validade
da metáfora primordial do livro [as edições da vida], não pela sua novi-
dade, mas pela propriedade às Memórias póstumas” (HILL, 1976, p. 51).
Esta condição, para nós – do caráter hermenêutico da escrita
machadiana –, já deixa entrever em famoso ensaio publicado qua-
se uma década anterior às Memórias póstumas de Brás Cubas (1881).
Referimo-nos ao Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacio-
nalidade (1959 [1873]). O seguinte excerto que, para nós, é revelador:

Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nas-


cente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe
oferece a sua região, mas não estabeleçamos doutrinas tão ab-
solutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor an-
tes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem de
seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos
no tempo e no espaço (ASSIS, 1959, p. 31) (grifo nosso).

Este “certo sentimento íntimo”, a nosso ver, se trata do horizonte


de sentido, de dentro do qual o intérprete, mesmo “(...) quando trate
de assuntos remotos no tempo e no espaço”, se resguarda de uma
possível alienação, mantendo certa distância. Em outras palavras, so-

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bre esta questão, compreender é entender a partir de seu horizonte


histórico (sentido) e ter no texto, que se quer interpretar, a possibili-
dade de uma alteridade de opinião. Desse modo, a compreensão se
dá através do entrecruzamento dos horizontes do texto e do intér-
prete, rechaçando ou confirmando os “pré-conceitos” deste.
Em vista disso, além de possibilitar o exame de pontos capitais
da sociedade, o mesmo distanciamento analítico também permitiu a
Machado resolver o paradoxo da utilização da forma “romance”, fren-
te ao conteúdo social. Questão não meramente literária, posto que a
mera presença da escravidão desautorizava sua utilização, haja vista
ter o romance surgido no seio da burguesia, sendo esta de valores
incompatíveis com o momento ideológico do cenário brasileiro do
século XIX. Tais valores, atrelados a esta forma, dizem respeito à ideo-
logia liberal. A classe burguesa, “(...) no processo de sua afirmação
histórica (...) postulara a autonomia da pessoa, a universalidade da
lei, a cultura desinteressada, a remuneração objetiva, a ética do tra-
balho etc.” (SCHWARZ, 2012, p.17), valores contrários às práticas aqui
vigentes, nominalmente, o “paternalismo” e a “política do favor”. Mas,
se a escravidão também fora fruto do capital comercial – este, base
da ideologia burguesa –, então seria natural o aporte do liberalismo
para a formação da incongruência ideológica nacional.

A AFRONTA E O EMBATE FORMA E MATÉRIA

Dessa maneira, tendo esta configuração social como pano de


fundo, para a obra machadiana da segunda fase, Roberto Schwarz
(2000) nos diz que a “afronta” é o mecanismo que permite a Macha-
do resolver o impasse da falta de unicidade entre forma/conteúdo.
Se, segundo Alfredo Bosi, “(...) o modo de ver o novo quadro [a in-
congruência ideológica nacional] e os modos de dizê-lo no regime

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

da ficção não obedecem a uma relação mecânica – como queria Syl-


vio Romero – de causa e efeito com aqueles referentes” (ROMERO,
2007, p. 152), então, fazia-se necessário a Machado um dispositivo
que trouxesse para o primeiro plano a dualidade ideológica de nossa
sociedade, não ressaltando o distanciamento entre elas, mas sim a
maneira peculiar como interagiam e, mesmo, coexistiam, sendo tão
opostas. Portanto, a “afronta” é a chave de resolução. Tal dispositivo
para Schwarz é a “(...) estilização de uma conduta própria à classe do-
minante brasileira” (SCHWARZ, 2000, p. 18). Ao colocar este mecanis-
mo à frente, Machado, acintosamente, demarca a postura contraditó-
ria da elite de seu tempo, a qual se dá pela repetição, salientando-a.
À afronta, que é “(...) o constante desrespeito de alguma
norma” (SCHWARZ, 2000, p. 29), liga-se a volubilidade do narrador,
marcada pela constante mudança de postura. É um recurso técnico
utilizado por Machado que alinha forma e conteúdo. Se o aspecto
fragmentário, caracterizado pela afronta que impõe a volubilidade,
marca o conteúdo, impossibilitando o enfeixar do múltiplo Brás
Cubas – através de suas constantes mudanças de postura –, a
forma acompanha-lhe o movimento. O inverso é também válido na
mesma proporção, pois, se disséssemos que à forma fragmentária,
composta por grande número de capítulos, bem como um sem nú-
mero de formas outras, incutidas no romance, numa “volubilidade”
das formas, nunca se fixando, seria forçoso afirmar que o conteúdo
também lhe acompanharia o movimento. Essa interpenetração re-
mete a unicidade entre forma e conteúdo de que fala Mikhail Ba-
khtin, quando diz que:
(...) o conteúdo e a forma se interpenetram, são inseparáveis, po-
rém, também são indissolúveis para a análise estética, ou seja,
são grandezas de ordem diferente: para que a forma tenha um
significado puramente estético, o conteúdo que a envolve deve
ter um sentido ético [princípios] e cognitivo [conhecimento pré-
-existente] possível, a forma precisa do peso extra-estético do

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

conteúdo, sem o qual ela não pode realizar-se enquanto forma


(BAKHTIN, 2010, p. 37).

M. Bakhtin nos fala de “sentido ético” devido à presença dos prin-


cípios do artista que, incontestavelmente, entram na constituição da
obra de arte como resultado de seu horizonte de sentido, isto é, de
sua visão de mundo. Da mesma forma, refere-se ao aspecto “cogniti-
vo” no sentido de que o conhecimento pré-existente também parti-
cipa na formação da obra de arte, não o conhecimento puro, porque
A arte cria uma nova forma como uma nova relação axiológica
com aquilo que já se tornou realidade para o conhecimento e
para o ato: na arte nós sabemos tudo, lembramos tudo. (...) [Já]
O conhecimento e o ato são primordiais, isto é, eles criam seu
objeto pela primeira vez: o conhecido não é reconhecido nem
relembrado num novo sentido, mas é definido pela primeira vez;
o ato é vivo apenas pelo que ainda não existe: aqui tudo é novo
desde o início, portanto não há novidade (BAKHTIN, 2010, p. 34).

Se tudo é sempre novo e não há novidade4, tampouco há origi-


nalidade. Deste modo, o conhecimento e o ato se afastam da obra de
arte por não aceitarem a “avaliação ética nem a formalização estéti-
ca” (BAKHTIN, 2010, p. 31). O isolamento dessas categorias – forma e
conteúdo – só se justificaria para uma abordagem didática. Assim, se,
junto a Schwarz, dissemos que a afronta é a chave de solução, então a
volubilidade é o princípio formal que traspassa toda a obra, nos mais
variados níveis, como atestado por Schwarz (2000).
Não obstante, esta falta de coesão, pontuada através dos aspectos
fragmentários tanto do conteúdo quanto da forma, é apenas aparente,
visto que, a certa distância, apercebendo-lhe a engrenagem-mestra,
esta põe-se a mover-se em todos os níveis e remete às linhas gerais da
constituição dos estamentos/classes da sociedade da época.

4 Novidade no sentido de “surpresa”, como uma nova perspectiva de algo já existente,


visto que, sendo o conhecimento “definido pela primeira vez”, sempre se remete a algo
estabelecido pela primeira vez e não há carga histórica.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

De um olhar mais direto sobre o contexto social da época, a so-


ciedade brasileira tinha sua estratificação disposta em latifundiários,
homens livres e escravos, com uma relação bem definida apenas entre
os primeiros e os últimos. Os homens livres eram na verdade, depen-
dentes. Constituíam-se, de modo geral, dos agregados, mas poderiam
ser escravos alforriados (como o Prudêncio, nas Memórias póstumas de
Brás Cubas), ou mesmo estrangeiros que migravam para o Brasil, atraí-
dos pelo comércio – esses grupos eram os pobres –, os quais depen-
diam da boa vontade dos proprietários, ou seja, eram materialmente
dependentes do “favor”, pois “O favor, ponto por ponto, pratica a de-
pendência da pessoa, a exceção à regra, a cultura interessada, remune-
ração e serviços pessoais” (SCHWARZ, 2012, p. 170) – o oposto à ideolo-
gia burguesa –, campo vasto para o olhar crítico machadiano.
Desse modo, no âmago das mais diversas personagens de Ma-
chado, trava-se uma ferrenha luta pela ascensão social. Se, por um lado,
percebemos se tratar de uma sociedade estamental, praticamente fe-
chada à mobilidade entre as camadas que a compunham, dominada
pelas oligarquias; por outro lado, como movimentos recentes, surgiam
aqueles oriundos do estamento dos homens livres, os quais enrique-
ciam, no mais das vezes, através do comércio ou da especulação, mas
que não gozavam da consideração das elites oligárquicas, necessi-
tando, para isso, angariar algum “título” ou “insígnia” que o permitiria
adentrar os umbrais daquelas. Nas palavras de Raymundo Faoro:
O estamento impede, obscurece, denigre a classe, com suas
riquezas e pompas. (...) A riqueza ainda não ganhara respeito.
(...) Na sociedade do século XVIII, um rico comerciante fugia da
situação de classe, para granjear o respeito e a estima, com os
títulos e as insígnias da nobreza. (...) [Este era] outro fenômeno
da sociedade do tempo, mesclada de classes e estamentos: o
trânsito da situação de homem rico para a de fidalgo. Embora o
dinheiro não seja, em si, qualificação para o ingresso no luzido
mundo do estamento, pode ele, ao tempo que proporciona cer-
to estilo de vida, modelo de educação e prestígio social, condu-

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zir à outra camada. (...) [Pois,] O homem abastado (...) somente se


ilustra com o título de barão (FAORO, 1988, p. 18-19).

Esse “terceiro estado”5, para dourar-se e obter a legitimidade do


estamento, se utiliza dessa nobreza de fachada. Aspecto semelhante
ocorre no plano nacional, no entanto, em relação às ideias liberais,
visto que a “política do favor”, que em tese se colocaria contrária a es-
sas ideias, pautadas em “liberdade, igualdade e fraternidade”, absor-
ve-as num amálgama, no qual escravismo e liberalismo coexistem. A
utilização, pelo Brasil, da ideologia liberal, traduz-se numa máscara
de modernidade, representada pelos ideais importados da Europa,
onde o país se espelhava e seguia à distância buscando legitimar sua
“modernidade”. Aqui, a nobreza de fachada é substituída por uma
ideologia de fachada, constituindo “As ideias fora do lugar”6. O mo-
vimento é o mesmo, das camadas intermediárias, de onde é possível
(não provável) ascender ao acme da sociedade, considerando a folga
pautada no poder aquisitivo e as condições que ele gera; bem como
do país, que se quer moderno aos olhos estrangeiros, mas não abre
mão da escravidão, aliás, dá as mãos como elo entre o liberalismo e
a escravidão. Esta associação entre posições ideológicas tão díspares
não seria uma infração? Roberto Schwarz questiona e, em seguida,
ele mesmo responde:
Nestas circunstâncias, os amigos do progresso e da cultura po-
dem ser inimigos da escravidão? Não deveriam ser amigos dela?
Os inimigos da instituição nefanda [escravidão] não seriam tam-
bém inimigos do Direito, da Constituição e da Liberdade? Ou
melhor, além de infração, a infração é norma, e a norma, além de
norma, é infração, exatamente como na prosa machadiana. Em
suma, a defesa progressista do tráfico negreiro suscitava proble-
mas ideológicos difíceis de resolver, e encarnava a parte de afe-
5 “Nome dado, em França até 1789, a todos os que não eram nobres, nem padres, por-
tanto os plebeus laicos (burgueses, artífices, operários, camponeses), à exceção dos
servos que não faziam parte de nenhum estado” (MOURRE, 2005, p. 1342).
6 Título do primeiro capítulo do livro Ao vencedor as batatas: forma literária e processo
social nos inícios do romance brasileiro (2012), de Roberto Schwarz.

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tação e afronta que acompanha a vida das ideias nas sociedades


escravistas modernas. A ambivalência tinha fundamento real, e
Machado de Assis (...) soube imaginar-lhe as virtualidades próxi-
mas e remotas (SCHWARZ, 2000, p. 43).

Ademais, visto ser óbvia a situação do escravo, em sua condi-


ção de objeto, a relação entre a oligarquia e a camada intermediária,
mesmo quando esta se encontra em sua opulência – mas sem legiti-
midade –, operava-se numa espécie de reificação, no sentido mesmo
teorizado por Lukács, “(...) em que relações entre pessoas tomam o
caráter de relações entre coisas” (LUKÁCS, apud CROCCO, 2009, p. 52).
Aspecto que, por sinal, já fora levantado por Antônio Cândido como
uma face mais ampla da filosofia do Humanitismo, em Vários escritos,
no ensaio “Esquema de Machado de Assis”, quando diz:
Os críticos (...) interpretam o Humanitismo como sátira ao Posi-
tivismo e em geral ao Naturalismo filosófico do século XIX, prin-
cipalmente sob o aspecto da teoria darwiniana da luta pela vida
com sobrevivência do mais apto. Mas, além disso, é notória uma
conotação mais ampla, que transcende a sátira e vê o homem
como um ser devorador em cuja dinâmica a sobrevivência é um
episódio e um caso particular. Essa devoração geral e surda ten-
de a transformar o homem em instrumento do homem, e sob
este aspecto a obra machadiana se articula, muito mais do que
poderia parecer à primeira vista, com os conceitos de alienação
e decorrente reificação da personalidade, dominantes no pensa-
mento e na crítica marxista de nossos dias (CÂNDIDO, 2011, p. 29).

Esta relação, objetificada e objetificadora, através do processo


de reificação, dava-se por meio de trocas, no entanto, de maneira
assimétrica: o oligarca, em relação ao homem livre, mas pobre, ce-
dia-lhe favores em troca do que Roberto Schwarz (2000) chama de
“compensações imaginárias”, a subjugação, a adulação, enfim, pura
subserviência que, entretanto, não apagava a nódoa de sua condi-
ção originária. Se o favor se consumasse pelo casamento entre os
estamentos, favorecendo ao pobre, pesava-lhe a condição de não
ser merecedor, além de manter-se subjugado. Aos pobres não eram

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facultados direitos. Se trabalhavam e mesmo assim mendigavam


(exemplo de D. Plácida), a elite se desobrigava de qualquer ajuda; se
não trabalhavam, eram vagabundos. Schwarz coloca a situação dos
pobres em termos claros:
Nos dois casos, trata-se para ele [Brás Cubas] de ficar por cima,
ou mais exatamente, de ficar desobrigado diante da pobreza:
não devo nada a quem trabalhou, e quem não trabalhou não
tem direito a nada (salvo à reprovação moral). Segundo a con-
veniência, valem a norma burguesa ou o desprezo por ela. Esta
escandalosa duplicidade ou alternância de critério (...) é o essen-
cial da volubilidade que sugerimos a princípio. Ela é da situação
histórica das camadas dirigentes brasileiras no século XIX, que
tinham um pé no instituto da escravidão, e outro no progresso
europeu, nos dois casos com proveito (SCHWARZ, 1983, p. 47).

Não havia como tornar a situação mais suportável, devido à falta


de mobilidade social – por sua estrutura estamental. O que resta? Resta
(...) queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer
mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoe-
cendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez,
triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre
com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia
na lama ou no hospital (ASSIS, 2014, p. 164).

Para a vida do pobre, não há segurança nem certezas. O traba-


lho duro, na lavoura, ou seja, a base econômica do país, estava sobre
os ombros dos escravos e, não possuindo bens (casa; terras etc.), não
restava opção. Desse modo, uma vez mais, nas palavras de Schwarz:
A situação dos pobres define-se complementarmente, e o que é
folga histórica para os ricos – os dois pesos e as duas medidas –
para eles é falta de garantia. Não tendo propriedade, e estando
o principal da produção econômica a cargo dos escravos, vivem
em terreno escorregadio: se não trabalham são uns desclassifi-
cados, e se trabalham só por muito favor serão pagos ou reco-
nhecidos (SCHWARZ, 1983, p. 47).

Para Bosi, Machado exprimia, em sua obra, “(...) o reconhecimen-


to da soberania exercida pela forma social burguesa. Isto é: a aceita-

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ção pós-romântica da impotência do sujeito quando o desampara


o olhar consensual dos outros” (BOSI, 2007, p. 101). Em decorrência
desta posição, surge, na obra machadiana, a “Teoria do medalhão”7,
na qual é melhor parecer, tendo a consideração dos outros, do que
ser. Prega a superioridade das aparências.
Ao homem livre, de origem humilde, mas rico, Faoro nos fala
que a ascensão não era impossível, havia um “(...) ritual, na verdade
pouco rígido, [mas] não seria flexível” (FAORO, 1988, p. 27). Havia al-
gumas exigências das quais a elite não abria mão, como parte da le-
gitimação ao acesso, numa espécie de método:
Havia a necessidade de um título de instrução superior, reputa-
ção profissional ou brilho no jornalismo. Ajudava um título de
comendador ou cavalheiro, uma patente da Guarda Nacional ou
um título de nobreza. Ajudava é pouco: seria recomendação va-
liosa, trunfo quase certo para entrar no jogo (FAORO, 1988, p.27).

A distribuição de títulos e insígnias fora um dispositivo, no sen-


tido que lhe dá Giorgio Agamben8, utilizado pela monarquia, numa
busca de tentar manter coesa a estrutura de governo. De acordo com
Sérgio Buarque de Holanda:
Na monarquia eram ainda os fazendeiros escravocratas e eram
filhos de fazendeiros, educados nas profissões liberais, quem
monopolizava a política, elegendo-se ou fazendo eleger seus
candidatos, dominando os parlamentos, os ministérios, em geral
todas as posições de mando, e fundando a estabilidade das ins-
tituições nesse incontestado domínio (HOLANDA, 1995, p. 73).

7 Conto do livro Papéis avulsos (2011, p. 99).


8 “(...) chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a
capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegu-
rar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente,
portanto, as prisões, os manicômios, o Panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as
disciplinas, as medidas jurídicas etc., cuja conexão com o poder é num certo sentido
evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, (...)
a navegação (...) – por que não – a própria linguagem, que talvez é o mais antigo dos
dispositivos, em que – há milhares e milhares de anos um primata – provavelmente
sem se dar conta das consequências que se seguiriam – teve a inconsciência de se
deixar capturar” (2009, p. 41).

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Se a rede de “nobreza” mantinha centralizado o poder político,


bem como sua manutenção, era esta mesma rede que possibilitava
ao rico, de origem humilde, adentrar o “jogo do poder”. Operava-se
uma espécie de qualificação das classes sociais – entenda-se: de seus
potentados – que eram “(...) poucos comerciantes (...); na sua maioria,
os fazendeiros [como afirmou Sérgio Buarque de Holanda]; e políti-
cos, militares, professores, mesmo homens de letras (...) – os expoen-
tes, os notáveis” (FAORO, 1988, p. 43). Exigia-se status para participar
das grandes decisões da nação. Não. A exigência era maior, como nos
disse acertadamente Alfredo Bosi, “Ter status é existir no mundo em
estado sólido” (BOSI, 2007, p. 99).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Finalmente, o aspecto de uma escrita, que não reproduz, mas
reinventa a realidade, baseia-se no par aristotélico mímesis/mythos,
sendo o primeiro a representação ou agenciamento dos fatos e o se-
gundo “o quê” se representa, nesse caso a “composição de intriga”,
que, não obstante, segundo Paul Ricoeur, “(...) devem ser considera-
dos operações e não estruturas” (2010, p. 59). Se, para nós, a escrita
machadiana das Memórias póstumas de Brás Cubas comporta este
aspecto de “representação ou agenciamento” e o mythos – sendo
este as ações vinculadas na representação –, esta “dimensão configu-
rante” aproxima-se da operação que, segundo Gadamer, nos fala da
real consumação do jogo em arte se dá através da “transformação em
configuração” (GADAMER, 1997). Desse modo, essa ação nos mostra
que o que havia não há mais. O mundo em que ocupamos o nosso lu-
gar é completamente “suspenso”, sem “transição” ou “intermediação”.
O próprio Gadamer ressalta que esta operação vai além, pois, “(...)
na medida em que [esta operação] é configuração, encontrou em si

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

mesma, concomitantemente, sua medida e a nada se compara que


esteja fora de si mesmo (1997, p. 189), haja vista que, agora, o que
existe é unicamente aquilo que é representado. Neste sentido, de
acordo com Luiz Costa Lima:
A principal característica da função estética está em sua opo-
sição à função pragmática. Submetido à função pragmática, o
objeto se põe a serviço de algo, torna-se instrumento para uma
ação. (...) Ante a função pragmática, a estética se diferencia por
ser uma forma sui generis de comunicação. Sui generis porque
só indiretamente estabelece uma relação com o real. E nisto a
mímesis se distingue das outras formas de representação social
(LIMA, 2003, p. 93).

Machado, nas Memórias póstumas de Brás Cubas, não reproduz,


mas problematiza as relações e estruturas sociais do Segundo Reina-
do, movimento que – para quem não compreendeu a ação – expri-
miu falta de competência, posto que buscasse correspondência dire-
ta. De maneira mais clara, repetiremos as palavras de Luiz Costa Lima:
O intento do ficcionista é criar uma representação desestabiliza-
dora do mundo. Como este já é demarcado pelas múltiplas repre-
sentações dos frames9 cotidianos, o correto será dizer que ele cria
uma representação desestabilizante das representações. Repre-
sentação segunda, a do ficcionista, que não tem o propósito de
re-duplicar a primeira, o que a tornaria ociosa (LIMA, 1989, p. 102).

Seja o papel da leitura primordial para à escrita, leitura de outras


obras, seja uma leitura da conjuntura social de seu tempo, como se
percebe na obra machadiana, este movimento é a mola-mestra tanto
da constituição dos mundos ficcionais, quanto da possibilidade de
interpretá-los. Mundos suficientes em si mesmos e que nos deslum-
bram com suas infinitas significações.
Machado de Assis, por intermédio das Memórias Póstumas de
Brás Cubas, ao se debruçar sobre a sociedade de sua época, procede
uma profunda análise e problematiza as relações sociais. Com isso, te-

9 “(...) representações naturalizadas pela automatização” (LIMA, 1989, p. 97).

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mos a construção de uma compreensão, a qual referenciamos como


o olhar hermenêutico machadiano, imprescindível para se expor as
engrenagens sociais a se moverem através da história. Avizinhar-se
deste “olhar machadiano” é fator preponderante para um aprofun-
damento em sua obra e para vislumbrar os meandros da estrutura
social brasileira do Segundo Reinado.

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| 100 |
Balzac: a capitalização do espírito humano1

Otávio Monteiro Pereira2

Entre uma morte voluntária e a fe-


cunda esperança que atraiu um
jovem a Paris, só Deus sabe quan-
tas concepções frustradas, quantas
poesias abandonadas, quantos de-
sesperos e gritos sufocados, quantas
tentativas inúteis e obras-primas
abortadas! (BALZAC, 1998, p. 36)

INTRODUÇÃO

Vários autores imprimiram uma marca no


seu tempo, quer seja pela expressividade de
sua obra, quer seja pelos revezes de sua vida,
Balzac marcou seu tempo pelos dois aspectos.
Tomando o último aspecto, Balzac poderia ser
aproximado a Benjamin sob o signo do fra-
casso. Tendo nascido numa família simples,
provinciana, da cidade de Tours, desde muito

1 Este trabalho é parte da Dissertação de Mestrado inti-


tulada Entre Balzac e Benjamin : a perda da experiência e
a capitalização do espírito humano defendida junto ao
Programa de Pós-Graduação em Letras da UFS (2015).
2 Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Ser-
gipe (2007) e Mestre em Letras pela Universidade Federal
de Sergipe (2015). Atualmente é professor do Instituto
Federal de Alagoas.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

cedo ele vislumbrou não querer trilhar o mesmo caminho que seu
pai, um funcionário público.
Balzac não foi sempre Balzac, nasceu Balssa. Honoré de Balzac,
autor de Ilusões perdidas, era filho de Bernard-François e neto de um
camponês que tinha “Balssa” como sobrenome. A vida na província
parecia não seduzir o então jovem Balzac. Paris, ainda com aspirações
de glória, de riqueza e monarquia (ainda que no início do século XIX)
habitava os sonhos de Balzac. Vale lembrar que a partícula “de” no
nome representava então nobreza e poder. Assim, na surdina, Ho-
noré se ocupou de inserir em seu nome o “de” a fim de imprimir uma
ancestralidade nobre à sua genealogia.
Não consideramos aqui a vida de um autor como uma chave
essencial de interpretação da sua obra ou o contrário. Contudo, tão
candente é o reflexo da vida de Balzac em seus romances, que re-
cusar essa possibilidade seria incorrer em um lapso. A transição da
província para a cidade, os desejos de glória, fortuna e sucesso tão
presentes nos personagens balzaquianos, incluindo o de nossa pos-
terior análise, Lucien de Ilusões perdidas e denota a empreitada da
obra do autor francês.
Há uma interpenetração na vida e obra de Balzac, por uma agu-
da concepção de mundo, conforme assevera Lukács:
Dos colóquios do Wilhelm Meister goethiano, passando por Bal-
zac e chegando até Tolstói, existe uma ininterrupta cadeia de
cumes de unidade orgânica entre eficácia literária e profundida-
de teórica. A grandeza poética desses gigantes da literatura de-
pende estreitamente da altitude de sua concepção de mundo.
(LUKÁCS, 1968, p. 231).

O seu projeto literário, muito audacioso, fez com que os críticos


literários e escritores da época o olhassem de soslaio, com ilustres ex-
ceções, como Victor Hugo. Audacioso também era o título dado pelo
autor ao conjunto de sua obra: a Comédia humana. Claríssima alusão

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

a Comédia de Dante, que era divina. Balzac desejava ombrear-se aos


grandes personagens da história, exemplo disso é que “a imagem de
Napoleão não saía da sua memória. Desejava tornar-se um conquis-
tador também” (MONTENEGRO, 1954, p.5). Sua conquista não viria
pela espada, mas por sua pena.
Significativo ainda é o contraponto entre espada e pena. Balzac
não foi um revolucionário em seu tempo, ao contrário, ele desejava
inserir-se em uma sociedade burguesa, aristocrática, numa palavra,
rica. Daí teremos o cruzamento entre vida e obra: fosse Balzac rico,
não tivesse sofrido duras privações financeiras, talvez não tivéssemos
uma crítica tão ácida ao capitalismo e às relações financeiras como
tivemos. Uma leitura apressada de sua produção e algum conheci-
mento de sua biografia poderia reforçar a “imagem lendária de que
Balzac é o homem coberto de dívidas, cuja obra toda fala em dinheiro”
(TAILANDIER, 2009, p. 12). Tal imagem não surgiu de modo aleatório,
pois, de fato, Balzac em vida foi um homem com graves problemas
financeiros. Inicialmente porque seu pai nunca despendeu grandes
fundos para a empreitada de escritor e, depois, os empreendimentos
de Balzac foram em sua maioria fracassados. O investimento em uma
editora não deu certo, também fracassou ao fundar “três revistas de
pouca duração: Le Feuilleton des Journaux Politiques (1830), La Chroni-
que de Paris (1836-37) e La Revue Parisienne (1840)” (BENJAMIN, 2006,
p. 791). É possível fazer uma aproximação entre a conturbada vida
financeira do autor francês e algumas de suas obras como Ilusões
Perdidas, cujo tema da imprensa e da mercantilização da literatura
é candente. E Balzac sentiu na pele a urdidura do mercado literário
parisiense. Outra aproximação entre vida e obra balzaquiana se en-
contra no seu Ascensão e queda de César Birotteau. Essa obra de 1837
apresenta de maneira mordaz a vida do honesto e visionário César,

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

burguês, o qual chega à ruína graças ao seu desejo de ser aceito pe-
los ilustres de Paris e às tramas maquinadas por esses últimos.
A obra de Balzac, entretanto, não é um diário de desabafos.
Além da “busca de uma escrita que abarque tudo, o charme das pai-
sagens e os mecanismos da indústria papeleira, as verdades eternas
e as qualidades das cortinas” (TAILLANDIER, 2009, p. 15), Balzac é pio-
neiro em seu estilo. Seu olhar penetrante sobre a sociedade, longe
de matizar esta com elementos transcendentais, como os autores
alemães do movimento “Tempestade e ímpeto” 3, tenta dissecá-la
com um realismo que consegue capturar as nuances de seu tempo.
Apesar do desejo de ser um novo Napoleão, sua literatura não visa-
va os grandes feitos dos homens de seu tempo, mas a mesquinhez
escondida no verniz social, a barbárie não moralizada que fazia de
tudo por status, que “esquece primeiro a morte do pai do que aquele
que pôs a mão em seu bolso” (MAQUIAVEL, 2005, p.209). Desvendar
o que há por trás do gesto de uma filha que prefere ver a ruína de seu
pai a perder um vestido novo para ir a uma festa, como acontece no
emblemático Pai Goriot (1834): essa é a empreitada de Balzac.
Balzac era um esgrimista. Quando tratamos aqui do ofício de
esgrimista estamos nos reportando à ideia da esgrima refletida por
Benjamin. Este último retirou essa imagem do poema de Baudelaire,
“O sol”, no qual o autor de As flores do mal diz: “exercerei a sós a minha
estranha esgrima” (BAUDELAIRE, 2009, p.98). Ao pensar no homem
da multidão, aquele que vive nos grandes centros, embrutecido pela
correria, pelo modo capitalista de viver, Benjamin destaca que “a ima

3 O movimento “Tempestade e Ímpeto” (Sturm und Drang), surgiu a partir da peça de


Friedrich Maximilian von Klinger, publicada em 1776, e preconizava um nacionalismo
ou germanismo a partir de matrizes estéticas como a arquitetura gótica e poesia. Vários
autores como Herder e Schiller se destacaram nesse movimento. Segundo Antônio Re-
zende, o ponto máximo do movimento se deu com Werther (A Paixão do Jovem Werther,
1774) de Goethe, que se afirmou como a obra mais conhecida do movimento, graças à
fama que adquiriu pela sua intriga sentimental e trágica” (REZENDE, 2007, p. 178).

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gem do esgrimista pode ser decifrada: os golpes que desfere desti-


nam-se a abrir-lhe o caminho através da multidão” (BENJAMIN, 2000,
p.113). De um modo mais conotativo, todos os indivíduos, de cidades
grandes ou pequenas, precisam aprender alguma esgrima, a saber,
aprender os códigos necessários para o trânsito na cidade, das regras
mais elementares, estabelecidas pelo direito, até as mais complexas,
ditadas – ainda que tacitamente – pela moralidade. Contudo, o ofício
do esgrimista assume outras possibilidades quando associado à ativi-
dade de escritor. Balzac tentou lutar com os códigos literários de seu
tempo, mas parece que eles não satisfizeram o autor da Comédia hu-
mana. Temos então com o escritor francês uma nova forma de roman-
ce. Para esse nosso trabalho, dividimos nossa exposição nos seguintes
capítulos: a) Mercantilização do espírito humano; b) O fracasso da ex-
periência em Lucien; c) Avareza e vivência em Eugénie Grandet.

MERCANTILIZAÇÃO4 DO ESPÍRITO HUMANO

Antes de iniciarmos a análise das obras de Balzac a que nos


propomos em nossa dissertação, a saber, Ilusões perdidas e Eugénie
Grandet, contextualizaremos ambas dentro de seu grande projeto, a
Comédia Humana. Imbuído do desejo de ser o secretário da socieda-
de parisiense, Balzac empreendeu um grandioso projeto gestado e
executado em pouco mais de vinte anos. Vários fatores comandaram
as escolhas da escrita de Balzac, dos escritos históricos motivados pe-
los conflitos políticos de sua época, a primeira metade do século XIX,
ao tema fantástico de A pele de Onagro (1830-1831), motivado pelo
seu interesse na alquimia, temos um autor múltiplo. Novelas, contos,
peças teatrais, crônicas foram gêneros tateados pelo autor francês.
4 Aqui utilizamos a nomenclatura “mercantilização” fazendo referência à ideia de mer-
cantilização como fenômeno de tornar uma mercadoria. Não estamos nos reportando
ao sistema econômico anterior ao capitalismo.

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Contudo, foi definitivamente o romance o gênero que trouxe à


tona a envergadura da obra balzaquiana, Tours, que não se conten-
tou com a vida da província e o fez lançar não apenas um olhar sobre
um povo, mas sobre um tempo.
Em língua portuguesa temos uma excelente tradução de suas
obras completas, bastante fiel à edição francesa e que contou com
o cuidadoso empenho de Paulo Rónai, talvez o maior balzaquista no
Brasil até hoje. Os 89 livros que figuram a Comédia Humana estão dis-
tribuídos em 17 volumes, ordenados pela temática de cada romance.
Vale ressaltar que essa divisão é do próprio Balzac, o qual concebeu sua
obra sob três grandes eixos: estudos de costumes, estudos filosóficos
e estudos analíticos. Dentro dos estudos dos costumes temos a maior
parte de suas publicações e aqui elencamos suas subdivisões: cenas
da vida privada, cenas da vida provinciana, cenas da vida parisiense,
cenas da vida política, cenas da vida militar e cenas da vida rural.
Eugénie Grandet e Ilusões perdidas estão situadas no mesmo
conjunto dos estudos de costumes: cenas da vida provinciana. Con-
vém ressaltar que o romance Eugénie Grandet transcorre majoritaria-
mente no interior, Saummur, enquanto Ilusões perdidas representa
uma transição da vida provinciana para a vida parisiense.
Ilusões perdidas constitui a obra central de uma trilogia que re-
presenta o cerne do pensamento de Balzac: O pai Goriot, Ilusões per-
didas e Esplendores e misérias das cortesãs. Como já afirmamos ante-
riormente, uma das características da escrita balzaquiana que a torna
tão peculiar é o retorno dos personagens. Lucien é o protagonista
de Ilusões perdidas mas também comparece em Esplendores e misé-
rias das cortesãs. A Paris arrivista, selvagem e desumana encontrada
por Lucien é forjada desde O pai Goriot, obra inicial da trilogia, sob
os dissabores de outro personagem importante da Comédia Huma-
na: Eugéne Rastingnac. Este último, personagem importante em O

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pai Goriot, reaparece em Ilusões perdidas bem sucedido e secundário


enquanto Lucien protagoniza dissabores bem mais agudos em sua
estreia na capital da França.
Ilusões perdidas é uma obra relativamente extensa, contendo
entre 700 e 800 páginas, a depender da edição. Dividida em três par-
tes: “Os dois poetas”, “Um grande homem da província em Paris” e “Os
sofrimentos do inventor”, Balzac congregou elementos que são di-
retrizes para compreensão de seu projeto: província, Paris, ambição,
relações sociais embrutecidas, entre outros.
A primeira parte lança um olhar sobre a cidade de Angoulême.
Nessa província temos uma divisão peculiar: uma pequena aristocra-
cia local, a qual se arrogava títulos de nobreza, algumas vezes duvi-
dosos e a periferia que havia crescido na parte baixa, às margens do
rio Charente, composta por comerciantes e trabalhadores de modo
geral. Os principais personagens são nessa seção apresentados e
descritos à maneira Balzac: um modo minucioso que visa descrever o
físico como imagem da história de cada indivíduo e sua história pro-
priamente dita revelando na ancestralidade o modo de ser de atores
da obra prima de Balzac, as Ilusões perdidas. Os principais atores do
primeiro capítulo são: o velho Séchard, um avarento, seu filho David
Séchard, o qual regressa de Paris após alguns anos de estudo, Lucien
Chardon, jovem colega de David, sua irmã Ève, e sua mãe Charlotte,
que era parteira. Contrapostos a esses personagens temos a plêiade
da aristocracia local, composta pela senhora de Bargeton, o senhor
du Chatêlet (o qual comandará uma série de intrigas contra Lucien),
e por fim alguns secundários bisonhos como o senhor Astolphe (que
decorava trechos de Cícero para parecer culto), senhora Sénonches,
entre outros. É candente notar que tais personagens “eram devora-
dos pelo desejo de parecerem parisienses e negligenciavam suas
casas onde tudo ia mal” (BALZAC, 2010, p. 101). Destacamos aqui o

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senhor de Rastignac que era “muito próximo da corte para se envol-


ver com as tolices da província” (BALZAC, 2010, p.103).
Interrompemos essa breve descrição da seção inicial da obra para
frisar que o senhor de Rastignac é o pai de Eugéne de Rastignac, jovem
que espezinha Lucien quando este último chega a Paris. Contudo, é o
mesmo Rastignac que em O Pai Goriot era também um jovem cheio de
ilusões, mas as perdeu amargando duras provações. Esse é um bom
exemplo do retorno dos personagens, técnica de escrita balzaquiana
mencionada anteriormente: o jovem Rastignac de O Pai Goriot meta-
morfoseia-se no orgulhoso dândi de Ilusões perdidas.
É no primeiro capítulo que temos delineado o conflito de desejos
entre a vida da província e a vida em Paris. Lucien, indivíduo da classe
mais baixa é introduzido no salão da senhora de Bargeton graças à
sua verve literária, lá ele “mordeu a maçã do luxo aristocrático e da
glória” (BALZAC, 2010, p. 75), e cobiçou tornar-se de fato “o grande
homem da província” como seria posteriormente chamado em
Paris, não sem ironia. Enquanto Lucien alimentava-se das quimeras
prometidas pela senhora de Bargeton, seu amigo David Séchard
iniciaria uma empreitada que o arruinaria: seu pai vendera uma
tipografia obsoleta a um preço exorbitante e aliado a isso, seu gênio
não era de comerciante, mas de inventor, o que será atestado na
última parte. Cumpre enfim, destacar que alimentado pelos sonhos
de glória e instigado pela senhora de Bargeton, e já apaixonado por
esta, Lucien deseja ir morar em Paris e assim será fechado o primeiro
ciclo da província em Ilusões perdidas.
Tendo entrevisto o desenrolar do primeiro capítulo das Ilusões
perdidas, podemos iniciar a sua análise destacando aquilo que lhe é
mais fundamental, a caracterização da província. Conforme acentua-
mos anteriormente, tradicionalmente o interior comparece nos ro-
mances como o lugar pequeno, o reino do mesquinho e do tacanho.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

Contudo, cumpre destacar que Balzac rompe, ou tenta romper, com


essa visão polarizada província-Paris.
Com efeito, na fabricação desse objeto estético novo, que é a
cidadezinha de interior, uma lógica diferente está em gestação
tanto quanto uma estética. Toda a Comédia Humana protesta
contra uma oposição simplista, do tipo preto e branco, entre Pa-
ris e a província. (MOZET, 1998, p.14)5.

É possível verificar tal objetivo desde o início das Ilusões perdi-


das, menos pela caracterização topográfica, e mais pela caracteriza-
ção dos personagens. Longe de serem apenas pessoas interessadas
em parecer parisienses, os personagens provincianos são coloridos
com tintas que em nada os pinta bucólicos, mas são embrutecidos e
ávidos pelo ganho. O velho Séchard é descrito com olhos
Cinzentos, onde cintilava a astúcia da avareza que nele tudo ma-
tava, mesmo a paternidade, conservavam sua esperteza até na
embriaguez. [...] o velhote não via pai e filho nos negócios. Se
reconhecera inicialmente em David seu único filho, mais tarde
nele reconhecera um comprador natural cujos interesses opu-
nham-se aos seus: ele desejava vender caro, David deveria com-
prar barato, seu filho tornava-se assim um inimigo a ser vencido.
[...] habituado às trapaças de camponês, e nada conhecendo dos
amplos cálculos parisienses, o pai surpreendeu-se com a rápida
aceitação do filho. (BALZAC, 2010, p. 17, 18, 26).

A relação entre pai e filho acima, a qual sintetiza a transação de


venda da tipografia do pai para seu filho, é modelar para a compreen-
são de que a penetração dos valores do capital havia suplantado qual-
quer tradição familiar ou afetiva. Nessa perspectiva podemos entender
que as matrizes da mercantilização do espírito humano não estão uni-
camente nos grandes centros, mas também na província. É importante
destacar que essa construção despe o homem do campo de qualquer

5 En effet, dans la fabrication de cet objet estéthique nouveau qu’est la ville de province, une
logique différente est en gestation tout autant qu’une estétique. Tout La Comédie humaine
proteste contre une oposition simpliste, du type blanc contre noir, entre Paris et la province.

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traço idílico e mais que isso, a província de Balzac rompe com a tradi-
ção literária em torno da província constituída por autores como
Montigny em “Le Provincial à Paris”, ou Jacob-Kolb em “Le Fron-
deur ou observations sur les mœurs de Paris et de province, au
commencement du XIXème siècle” (1829) que não ultrapassam
o tema do retorno do provinciano a Paris, e seu conformismo
denuncia um conhecimento muito superficial da província. [...] a
província não poderia aceder ao romance senão a partir de uma
dupla recusa – aquela do passado, mas igualmente aquela do
exotismo. (MOZET, 1998, pp. 28, 29)6.

Balzac retira do passado distante e do exotismo as representa-


ções da província, pois à medida que seus personagens entram em
consonância com os ditames do capital, temos refutados valores da
tradição, como o exemplo da família citado anteriormente. O conhe-
cimento do autor francês sobre a província é extenso, pois além de
ter nascido e vivido por alguns anos em Tours, ele percorrera várias
províncias em suas idas e vindas à Paris. A escolha de Angoulême
para cenário da primeira parte de sua obra tem um veio geográfico:
apesar de sua descrição rural, essa cidade dispõe de uma divisão eco-
nômica e social que parte de sua topografia:
Angoulême é uma velha cidade; construída no cume de uma
rocha em formato de pão de açúcar que domina os prados nos
quais corre o rio Charente. A importância que tinha essa cidade
no tempo das guerras religiosas está comprovada por suas mu-
ralhas [...] sua situação tornava-a antigamente um ponto estraté-
gico precioso, mas sua força de outrora constituiu sua fraqueza
atual, impedindo-a de se estender às margens do Charente, suas
muralhas e a encosta muito íngreme do rochedo condenaram-
-na à mais funesta imobilidade. [...] Todas as empresas que vivem
do rio agruparam-se na baixa Angoulême para evitar as dificul-
dades que apresentam seu acesso. [...] No alto a nobreza e o po-
der; embaixo, o comércio e o dinheiro, duas zonas sociais cons-

6 Montigny dans Le provincial à Paris ou Jacob-Kolb dans Le Frondeur ou Observations sur


les mœurs de Paris et de la province au commencement du XIXème siècle (1829), ne dé-
passsent guère le thème archi-rebattu du « Provincial à Paris », et leur conformisme dé-
nonce une connaissance très superficielle de la province. [...]La province ne peut accéder
au roman qu’à partir d’un double refus – celui du passé, mais aussi celui de l’exotisme.

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tantemente inimigas em todas as questões, a ponto de ser difícil


adivinhar qual das duas cidades detesta mais sua rival. (BALZAC,
2010, p.45-46).

A “capitalização do espírito” é antagonizada com a imagem de Da-


vid Séchard, um símbolo da experiência perdida desde suas aspirações:
seu desejo de ser poeta é frustrado, pois ele é obrigado a assumir os ne-
gócios do pai, o que contrariava sua natureza, conforme assevera Balzac:
As pessoas generosas dão maus comerciantes. David era uma
destas naturezas pudicas e ternas que temem uma discussão e
que cedem no momento em que o adversário lhes ofende um
pouco mais o coração. [...] Um amor atingiu seu coração e suas
preocupações científicas, sua boa índole o impediram de ter
apego ao ganho que constitui o verdadeiro comerciante e que o
faria estudar as diferenças que distinguem a indústria provincia-
na da indústria parisiense. (BALZAC, 2010, vol I, p.25 e 30).

Ainda que representante de uma “indústria” provinciana, enten-


damos David como aquele que se liga a uma tradição. O papel (sen-
tido denotativo) que ele consegue produzir deveria ser seu grande
segredo e chave de seu sucesso econômico. Contudo, sua natureza
maleável, seu pouco apego ao ganho, sucumbe à ambição desmesu-
rada da casa Cointet, tipografia concorrente na região, ávida por en-
golir sua tipografia e monopolizar as negociações do ramo, digamos
assim, “publicitário” da região.
O fracasso do empreendimento de David cumpre uma função
decisiva na conjuntura balzaquiana, no tocante ao processo de capi-
talização do espírito humano. Ora, David, conforme já apontamos, não
era um homem de negócios e sim um poeta, sua existência na obra
balzaquiana demonstrará a transição de algo muito maior que a pro-
dução do papel. Sua tentativa para produzi-lo mais barato representa
Este processo de transformação em mercadoria da literatura em
toda a sua amplitude, em sua totalidade: depois da produção do
papel até as convicções, pensamentos e sentimentos dos escri-
tores, tudo se torna mercadoria. E Balzac não se contenta com

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uma constatação geral das consequências dessa dominação do


capitalismo, mas revela em todos os domínios (jornais, teatros,
editoras) o processo concreto da capitalização em todas as suas
etapas e suas determinações. (LUKÁCS, 1999, p.46) 7.

A presença de David Séchard será fundamental na compreen-


são da capitalização do espírito humano, aqui exemplificada na
relação entre a produção literária e sua comercialização. A derrota
comercial de David para os irmãos Cointet é o símbolo da “experiên-
cia” em sentido largo frente à “vivência” da repetição provocada pela
técnica. Não é aleatório o fato de a primeira parte da obra Ilusões
perdidas concentrar a atenção também na natureza de David e seu
paulatino afundamento em dívidas, o que será cristalizado no fim do
romance. Podemos opor David Séchard a Lucien, o primeiro é posto
como aquele que vai cuidar do jardim, remissão claríssima ao Cândi-
do, de Voltaire, enquanto o segundo encarna a “prostituição da litera-
tura pelo capitalismo” (LUKÁCS, 1999, p.53)8.
Na província balzaquiana os sentimentos de tradição são corta-
dos pela avareza. Assim, podemos fazer um cruzamento entre essa
perspectiva da província e o fim da tradição nas narrativas, como
empreendido por Walter Benjamin. Longe de impor os signos da ex-
periência e da vivência no sentido benjaminiano como categorias a
serem aplicadas, temos uma relativização na possibilidade de com-
preensão dos elementos que entrecortam as relações província-Paris
presentes na obra Ilusões perdidas.

7 Ce processus de la transformation en marchandise de la littérature dans toute son am-


pleur, dans sa totalité: depuis la production du papier jusqu’aux convictions, pensées
et sentiments des écrivains, tout devient marchandise. Et Balzac ne se contente pas
d’une constatation générale des conséquences idéologiques de cette domination du
capitalisme, mais révèledanstous les domaines (journaux, thèâtres, maisons d’edition)
le processus concret de la capitalization dans toutes ses étapes et ses determinations.
8 La prostitution de la littérature par le capitalisme.

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O FRACASSO DA EXPERIÊNCIA EM LUCIEN

As relações desiguais de ordem ideológica e social, já can-


dentes nas relações provincianas, são acentuadas em Paris. Balzac
atesta no Prefácio de Ilusões perdidas que as relações do homem da
província em Paris são “a chaga desse século” (2010, p. 247). A saber,
as terríveis reações provocadas nas crenças dos provincianos frente à
cidade grande e nas fatais ilusões depositadas pelas famílias nos seus
filhos considerados inventivos, ou com algum dom artístico. “Paris é
para eles [os jovens] o que a batalha é para os soldados, todos se ga-
bam pela manhã de estarem com vida à noite pois os mortos serão
contados apenas no dia seguinte” (BALZAC, 2010, p. 254). Essa ima-
gem produzida por Balzac, a do campo de batalha, é modelar para
a compreensão do que representa a relação entre os indivíduos nos
grandes centros. Conforme Renato Franco,
Há muito os homens em certas situações se deparam com tal
fato. É o caso, por exemplo, do enfrentamento corporal nas ba-
talhas durante as guerras. A diferença fundamental entre esses
acontecimentos especiais e as ocorrências cotidianas da moder-
nidade, reside justamente no fato de que, agora, tais ocorrências
não constituem exceção nem casos excepcionais que rompem a
normalidade da vida. (FRANCO, 2003, p. 145).

Na obra Ilusões perdidas, é possível depreender diversos temas


candentes no modo de viver do século XIX, dentre eles podemos
elencar o desejo de aceitação nas grandes cidades, o que talvez nos
remeta ao grande esforço de assumir uma identidade como “um alvo
a ser atingido” (BERND, 2007, p. 27) e todas as imbricações que se
impõem aos que cobiçam assumir o modo de viver de outrem, como
foi o caso de Lucien.
Segundo Georg Lukács, em sua obra Balzac et le réalisme fran-
çais (1967), este inaugura um novo tipo de romance, de importância
capital para o século XIX. Balzac inicia “o tipo de romance da desilu-

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são, o tipo de um romance no qual se mostra como as ideias falsas,


mas surgidas pela necessidade, dos personagens sobre o mundo,
quebram-se necessariamente no contato com a força bruta da vida
capitalista” (LUKÁCS, 1999, p.48)9
A ideia de desilusão em Balzac é demonstrada com Lucien10,
o qual representa uma “juventude que queria o poder e o prazer”
(LUKÁCS, 1999, p.50)11. Tais buscas permeiam toda a existência dos
indivíduos, na medida em que a ascensão profissional (no caso de
Lucien, a ascensão no jornalismo), as relações amorosas e familiares
estão matizadas, ou mais ainda, determinadas, pelo capital. Com isso,
a obra “Ilusões Perdidas apresenta-se como a epopeia tragicômica da
capitalização do espírito” (LUKÁCS, 1999, p.51)12.
A recepção de Lucien em Paris foi espinhosa mesmo antes de sua
chegada, ainda a caminho da capital francesa, pois para ele “que viajava
em diligência pela primeira vez em sua vida, surpreendeu-se ao ver dissi-
pada na estrada de Angoulême a Paris quase toda a soma que destinava
à sua vida de um ano” (BALZAC, 2010, p.181). Havendo fugido com a se-
nhora de Bargeton, ambos provincianos, Lucien não tardou em perceber
os sofrimentos a que eram condenadas em Paris as pessoas de “fortuna
medíocre” (BALZAC, 2010, p. 182). Mas isso seria apenas o começo da
série de desilusões e fracassos aos quais seria sujeitado.

9 “le type du roman de la désillusion, le type d’un roman dans lequel on montre com-
ment les idées fausses, mais apparues par nécessité, des personages sur le monde, se
brisent nécessairement au contact de la force brutale de la vie capitaliste”.
10 É importante esclarecer que o termo “escritor” será utilizado algumas vezes para desig-
nar aquele que produz literatura, no caso da Obra Ilusões perdidas nossa remissão mais
frequente será a Lucien, personagem principal. Distinções como: poeta, escritor, jorna-
lista e autor eram, à época, tênues, sendo frequentemente utilizadas por Balzac para
o mesmo personagem. Contudo, vale ressaltar que o uso de diferentes denominações
indica diferentes referenciações ao personagem. Recorrentes vezes o personagem é
chamado de “o grande poeta da província”, expressão carregada de ironia posto que
usada em momentos de frustração na capital.
11 “ jeunesse voulait le pouvoir et le plaisir”.
12 “Illusions perdues sont l’épopée tragi-comique de la capitalisation de l’espírit”.

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Após ver a quantia que carregava ser consumida quase por com-
pleto no percurso da viagem, Lucien enfrenta outro choque com as
implacáveis regras da sociedade francesa: a senhora de Bargeton por
quem ele nutria esperanças de um feliz relacionamento dispensa-o
ao entender que o poeta da província era apenas mais um jovem a
tentar a sorte e representaria para ela um estorvo em um futuro mui-
to próximo. Pelas mãos do barão du Châtelet o laço de Lucien foi cor-
tado com a senhora de Bargeton: homem ardiloso e conhecedor das
convenções advertiu-a sobre a temeridade de uma mulher chegar a
Paris fugida com um jovem, o barão “falara a linguagem da sociedade
a uma mulher da sociedade” (BALZAC, 2010, p. 185). Ela compreen-
deu bem essa linguagem. Desprezou de maneira cordial o poeta, dei-
xando-o sozinho em Paris e verificou em seguida que cada palavra
do barão sobre a sociedade era uma profecia: mulheres muito mais
perspicazes, jovens muito mais instruídos, convenções que a provín-
cia desconhece. Balzac cria, inclusive, um neologismo para retratar a
situação da senhora de Bargeton, que nesse momento é símbolo da
província recém chegada na capital: era preciso se “desangoulemisar”
(BALZAC, 2010, p. 189).
Essa necessidade, de se despir dos modos da província, não tar-
dou a ser despertada em Lucien. Já em seus primeiros passeios pelos
bulevares de Paris o jovem espelhou-se nos homens da capital, olhou
para sua casaca e não percebeu “nenhuma casaca naqueles jovens
elegantes, [e] se percebia um homem de casaca, era um velho fora
da lei, um pobre diabo” (BALZAC, 2010, p. 196). Além da casaca todo
o conjunto estava em desalinho, era gritante a diferença entre ele e
o conjunto parisiense; por fim “reconheceu a feiura de seus trapos, os
defeitos que marcavam de ridículo sua roupa ultrajantemente des-
graciosa” (BALZAC, 2010, p. 196).

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

“É preciso tudo ousar para tudo ter” (LUKÁCS, 1999, p.64) 13.
Tudo ousar para tudo ter? Sim, essa é a regra infernal das relações
entrecortadas pelo capitalismo. A ousadia da aposta será a perspec-
tiva do amor e também do jogo, sem nenhuma garantia de sucesso.
É na constelação de estranhamento e aspirações de um
universo de aparências que Balzac constrói o personagem Lucien
Chardon. Apesar de deter outros desdobramentos, vamos nos ater
a dois aspectos importantes dos elencados por Walter Benjamin
e presentes em Balzac, a saber, a perda da noção tradicional de
tempo e sua ligação com a conjunção jogo e sorte que atravessa
o modo de agir dos personagens, se pensarmos nas construções
elaboradas pelo autor de Esplendores e misérias das cortesãs e o
modo de viver reificado dos indivíduos dos grandes centros, con-
forme a abordagem benjaminiana.
“O homem novo tem que emergir das ruínas do antigo” (ROUA-
NET, 1990, p. 52). Essa assertiva demonstra de maneira concisa o movi-
mento de constante desejo de adequação e mudança de sentido por
aqueles que se reconhecem diferentes em um mundo que não reco-
nhece o diferente. O jovem Lucien ao chegar esfuziante à Paris sentiu-
-se “surpreso com a multidão para qual era um estranho, esse homem
imaginativo sentiu algo como uma imensa diminuição de si mesmo.
[...] Paris transformar-se-ia num terrível deserto.” (BALZAC, 2010, p. 191).
Tal sentimento não foi exclusividade da criação balzaquiana, pelo con-
trário, o modo autômato, a rapidez, e embrutecido afiguram o modo
de receber aqueles estranhos a esses ritmos, bem como o imperativo
da adequação, sem a qual a miséria seria o destino dos que se recusam
ou não conseguem inserir-se nessa engrenagem.
13 « Il faut tout oser pour tout avoir. » Essa assertiva, tomada como exemplar por Lukács, é
na verdade de Balzac, encontra-se na p. 202, do Vol. II das Ilusões perdidas. Ministrando
uma terrível preleção sobre a verdadeira face da sociedade, ambiciosa, egoísta e bru-
tal, Vautrin, personagem que assumirá o lugar central da obra seguinte (Esplendores e
Misérias das Cortesãs), se encarrega de despir Lucien de suas derradeiras ilusões.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

Segundo Walter Benjamin,


A multidão metropolitana despertava medo, repugnância e
horror naqueles que a viam pela primeira vez. O habitante dos
grandes centros incorre novamente no estado de selvageria, isto
é, de isolamento. A sensação de dependência em relação aos ou-
tros, outrora permanentemente estimulada pela necessidade,
embota-se pouco a pouco no curso sem atritos do mecanismo
social (BENJAMIN, 2000, p. 124).

A beleza singular, quase feminina de Lucien, não foi suficiente


para garantir-lhe o desejado sucesso. A complexidade de tramas, de
interesses e de revezes que é formada em uma sociedade preocupa-
da com glórias, fama e poder, sufocaram-no e tornaram-no sua pre-
sa. Mas a sociedade tem o lugar para os fracassados: os lugares da
prostituição e do jogo; para lá vão os que não têm nada a perder. No
caso da Paris balzaquiana, havia o Frascati14, uma casa de jogos para
os inveterados, degenerados que tem a ilusão de dominar sua sorte
com um número, assim como para o libertino que sonha com o seu
tipo ideal, imaginando poder mover o curso de sua sorte, que quase
sempre aponta para o infortúnio e a catástrofe, como foi no caso de
Lucien, o qual se tornara refém da
Bolinha de marfim rolando para a próxima casa numerada, [para]
a próxima carta em cima de todas as outras, [é a] verdadeira an-
títese da estrela cadente. Esse é o tempo infernal, em que trans-
corre a existência daqueles a quem nunca é permitido concluir o
que foi começado (BENJAMIN, 2000, pg. 129).

Lucien, não esqueçamos, era um homem sem a instrumenta-


ção necessária à vida urbana, sem tradição e, mais que isso, sem um
passado mais ou menos remoto direcionado em uma perspectiva de
realização no futuro. E é justamente do passado e do futuro que o
jogador é privado, sua temporalidade é infernal: o ritmo do sempre

14 Frascati foi uma das principais casas de jogo de Paris. Ficava na rua de Richelieu, nº
108. (nota do próprio Balzac, em Ilusões perdidas, vol. I, p. 497).

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

igual. Insere-se, neste, o indivíduo ocioso, o jogador, o ocupado e o


trabalhador fabril. Na figura do jogador está concentrada a imagem
da pobreza e da perda da experiência.
Desse modo, é pertinente demonstrar com que voracidade
essa pobreza consumiu não apenas o dinheiro do jovem poeta, mas
também suas esperanças e sonhos. Lucien “sozinho no jogo apostou
seus trinta luíses no vermelho e ganhou. Incentivado pela voz secreta
que os jogadores às vezes escutam, pôs tudo no negro e... perdeu!”
(BALZAC, 2010, pg. 498) esse fracasso do personagem em alguns dos
momentos mais lancinantes de toda a composição da obra Ilusões
perdidas é justificado com o modo de entender o jogo, já apontado
por Benjamin. Aqui o citamos novamente: “O jogo ignora totalmen-
te qualquer posição conquistada. Méritos adquiridos anteriormente
não são levados em consideração, e é nisto que o jogo se distingue
do trabalho. O jogo... liquida rapidamente a importância do passado”.
(BENJAMIN, 2000, p. 127).
No caso de Lucien o jogo é uma marca distintiva do fracasso em
seus empreendimentos literários, posto que não há mérito na vitória
ou derrota naquela atividade que é antitética ao esforço do poeta em
ser um poeta famoso. A constelação do jogo aponta para um signifi-
cado bem mais complexo do que o desejo de ganhar ou enriquecer,
em Balzac. A aparição das casas de jogos são a esperança dos deses-
perados, são
O mundo encantado dos contos de fadas, com seus príncipes
e rainhas, mistura valores aristocráticos com o mundo burguês; os
espíritos do passado assombram o jogador [...]. Na perspectiva de
Benjamin, a aposta visa ao ganho, mas nele menos o dinheiro, e mais
o confronto do destino. (MATOS, 2006, p. 1139).
O mundo encantado de Lucien seguramente não era o das fa-
das, mas o da nobreza, o mundo no qual o sobrenome Rubempré

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

enterrasse definitivamente o estigma Chardon. Quanto ao destino,


a tentativa de singrar o mundo da aristocracia por meio do jogo,
constitui a impotência de vencer a sociedade arrivista pela literatura
agarrando o sucesso pelo acaso. É na mesma constelação do jogo
que se instaura o fracasso de Lucien no campo amoroso, pois como
indivíduo privado de uma experiência sedimentada, ele aposta no
amor como em uma loteria. “No bordel e no salão de jogos trata-se
do mesmo deleite: enfrentar o destino no prazer” (BENJAMIN, 2006,
p. 531). Cumpre esclarecer que Lucien se apaixonou por uma atriz
após publicar pela primeira vez uma crítica em um jornal. Tendo sido
consagrado como um jornalista perspicaz pela sua primeira publica-
ção, o grande homem da província, como o denomina Balzac, teve
um breve momento de triunfo no mundo jornalístico, o que então
representava certo domínio sobre o mundo artístico. O jornalismo
desse período tinha o poder de erguer ou demolir um autor de uma
peça ou uma atriz. Ao vislumbrar o mundo do teatro, o poeta, que era
“ainda inocente, respirava o vento da desordem e o ar da volúpia. [...]
Foi como um narcótico para Lucien, e Coralie acabou por mergulhá-
-lo em uma alegre embriaguez” (BALZAC, 2010, p. 348). Coralie pros-
tituía-se sob uma das perspectivas, já mencionada anteriormente na
seção “Literatura, mercado e luxo”: ela era sustentada por um homem
por quem tinha repugnância, o “papai Camusot”. Vivia em um palace-
te com uma criada e possuía os bens materiais que qualquer francesa
da época podia desejar, entretanto, tal como seu amado Lucien, ela
não possuía nobreza e mais que isso: sua riqueza material, chave de
ingresso na alta sociedade apoiava-se sob o frágil andaime de um
caso amoroso que não era pautado pelo amor. Assim, como no [x]
não há previsão de ganho no jogo, a aposta de encontro com o amor
do jornalista neófito foi uma aposta que engendrou a sua ruína.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

É importante notar, acerca da prostituição, que ela tem contor-


nos mais amplos que aqueles da mulher que se vende por um ves-
tido ou para viver em uma boa casa. O desejo de uma vida financei-
ra tranquila, repleta de prazeres não era um privilégio unicamente
feminino. Os jovens da “alta sociedade” alienavam a sua moral para
usufruir das possibilidades que os homens ricos podiam despender.15
Antes, porém, de matizar essa ideia a algum personagem balzaquia-
no, cumpre esclarecer que aqui não estamos elaborando um juízo
de valor em favor de uma moral em detrimento de outra. Vale situar
o período do qual depreendemos nossa análise: a França do século
XIX, marcada por resquícios de monarquia e pela religião católica, pe-
ríodo este que sob o jugo desta religião prescrevia (como prescreve
ainda hoje) uma moral pautada na monogamia, no casamento e em
todas as obrigações advindas desses dois elementos.
Seguindo a esteira aristotélica, sob a qual “a virtude é mais per-
feita e melhor que toda arte” (ARISTÓTELES, 2004, p. 332), a morali-
dade católica se assentou sobre a ideia de virtude alinhada aos bons
modos, costumes comedidos, os quais já frisamos anteriormente no
que tange ao problema da civilidade e veio sendo construída lenta-
mente desde a Idade Média, com a retomada de alguns princípios
gregos cristianizados. Esse processo pleiteou uma mescla dos valores
cristãos à construção de civilidade absorvida pelas sociedades até a
contemporaneidade do século XIX e XX. A associação de virtude à
felicidade parecia estar em consonância tanto frente às matrizes gre-
gas como posteriormente para as matrizes cristãs, sendo que estas
associaram a virtude aos valores teológicos com fins de assegurar
unidade a um povo que transpunha limites de território e de língua: o

15 A prostituição masculina é um tema abordado por Balzac no Pai Goriot. Como é pre-
visível para a moral da época, o rapaz que se vendia não era mal visto, ao contrário
era considerado um conquistador e orgulhava-se de exibir como troféus as damas de
virtude com quem já havia se relacionado.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

povo cristão. Já no século XX, com Nietzsche, a moralidade ocidental,


de matriz cristã será posta em xeque na medida em que a felicidade,
a qual percorrera uma longa tradição sendo associada à virtude, será
“sinônimo de instinto” (NIETZSCHE, 2009, p.33), o que remete à crítica
da moral vigente para “discutir o valor dos valores, sendo necessário
conhecer as condições e os meios ambientes em que nasceram e se
desenvolveram e se deformaram (a moral como consequência, más-
cara, hipocrisia).” (NIETZSCHE, 2005, p. 238).
A hipocrisia moral, já constatada por Kant quase um século
antes de Nietzsche, não passou incólume a Balzac. O realismo bal-
zaquiano põe em discussão algumas práticas de seu tempo, que
evidenciam tanto algumas condições como meios ambientes, os
terrenos propícios ao crescimento de uma moral envernizada de ci-
vilização, mas que escondiam sob luxuosos espetáculos de ópera e
jantares opulentos interesses fomentados pelo poder e pelo prazer.
Em um rico jantar, propostas de relações a três, pautadas pelo desejo
e pelo dinheiro, não eram algo fora do comum, o amante de Coralie,
o vendedor de sedas,
propôs secretamente a Coralie um título de seis mil libras de
renda do “Grande Livro” da dívida pública, que sua esposa não
conhecia, se ela quisesse permanecer sua amante; ele, por sua
parte, consentiria em fechar os olhos em relação aos seus amo-
res com Lucien. (BALZAC, 2010, p. 408).

A partir da ideia de relativização moral, é possível estabelecer um


nexo entre as relações sociais que muitas vezes tinham um limite mui-
to tênue entre aquilo que estava no escopo do aceitável, do moral-
mente aceito e aquilo que representava a margem da sociedade, como
é o caso da prostituição. A relativização de procedimentos sociais jul-
gados como corretos ou não, objetiva entender que tratamos aqui de
uma sociedade de conceitos ambivalentes que se transmutam a partir
de interesses sociais e relações de poder. Além disso, compreender a

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

denúncia de uma época: a era do capital que subjuga valores morais às


suas demandas. A respeito da prostituição, Balzac a descreverá ampla-
mente em seu ambiente sóbrio, depressivo e lancinante de Paris. Além
das localizações históricas da prostituição, temos uma confrontação da
ilusão, ainda existente no poeta Lucien, com a miséria humana, que
capitaliza os corpos e muito mais irá capitalizar a literatura, que de há
muito é uma mercadoria, como um boné ou qualquer outro objeto,
conforme já anunciamos anteriormente.
De todas as pontas de Paris, moças de vida fácil acorriam a fazer
“seu Palácio”. As Galeries-de-Pierre pertenciam às casas privile-
giadas que pagavam o direito de expor criaturas vestidas como
princesas, enquanto na Galeries-de-Bois forneciam um terreno
público para a prostituição, o “Palácio” por excelência, nome que
significava então o templo da prostituição. Uma mulher podia
se dirigir até lá e sair acompanhada de sua presa [...]. Era horrí-
vel e alegre. [...] As pessoas distintas, os homens mais marcantes,
eram cotejados por pessoas de fisionomia patibular. Essas mons-
truosas misturas tinham um não-sei-quê de picante, os homens
mais insensíveis ficavam comovidos. (BALZAC, 2010, p. 308-309)

A descrição balzaquiana é extensa, se alonga por algumas pági-


nas. Não gratuitamente, o autor francês porá em revista os tipos mais
eivados da pobreza da “experiência”, como aqui temos destacado o
jogador e a prostituta, pois estes serão a chave de compreensão da
construção de uma “vivência”, na qual seus “participantes” creem pos-
suir o domínio, mas que, na verdade, não irão constituir nada além de
elementos de uma trama social embrutecida. Embrutecimento que
se reverberará de modo muito mais abrangente que tão somente
uma forma de ganhar a vida. A prostituição porá em xeque a natu-
reza humana, a qual se concebe dentro dos ditames judaico-cristãos
em sua natureza procriadora, maternal, dócil, frágil. Essa natureza hu-
mana feminina, a qual confere a capacidade biológica de gerar filhos,
confronta-se com a construção social de mulher esposa dedicada. A
atualidade desse embate parece-nos mais veemente quando consi-

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

deramos não haver uma determinação biológica que justifique ar-


quétipos sociais. A prostituição dará uma resposta incisiva a respeito
da condição humana, agora capitalizada. Segundo Walter Benjamin,
em seu texto Jogo e Prostituição,
Na prostituição se manifesta o aspecto revolucionário da técni-
ca. Como se as leis da natureza, às quais o amor se submete, não
fossem mais tirânicas e mais odiosas que as da sociedade![...] o
homem alcançará tal intensidade, que intimará as leis da natu-
reza a mudar suas leis - quando as mulheres não quiserem mais
tolerar as provações da gravidez, as dores do parto e o aborto, a
natureza ver-se-á constrangida a inventar outra coisa para que o
homem se perpetue sobre a terra. [...] deve-se considerar a pros-
tituição não tanto como um elemento antagônico ao amor, mas
sim como a sua decadência (sobretudo na forma cínica praticada
nas galerias parisienses, no final do século [XIX]) (2000, p. 242).

Temos a técnica como um dos fatores determinantes para a


decadência do amor. Há pertinência nessa perspectiva quando
compreendemos que a técnica atravessa âmbitos mais largos que
o mundo do trabalho e dos negócios. O embrutecimento selvagem
localizado no domínio e na complexificação da técnica (a qual impôs
ao indivíduo a inversão na relação homem–máquina: o homem se
adequa ao ritmo da máquina e não o contrário) está também nas re-
lações afetivas, bem como no jogo, já mencionado antes.
É importante notar que a reflexão benjaminiana degrada a tradi-
cional oposição entre prostituição e amor. Notemos que Benjamin, na
primeira metade do século XX, levanta tal questão quando ainda havia
a oposição – nas sociedades ocidentais – entre as moças de família,
que deveriam casar virgens e ser eternamente submissas aos seus ma-
ridos e as moças de vida “fácil”. O indicativo de que a prostituição não
era antagônica, mas de fato representava a decadência do amor será
o prognóstico das gerações futuras. O fim das “zonas” de prostituição,
antes encravadas nas regiões mais desprezíveis das cidades, acarretou
a sua diluição em todas as esferas da sociedade. Não devemos aqui

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

incorrer na ingênua compreensão de que no período pré-capitalista


as “moças de família” de fato eram realmente o que pareciam ser. Aqui
não está em questão a pulsão do indivíduo: esta sempre existiu e dessa
compreensão não podemos nos furtar. O anúncio benjaminiano apon-
ta, sim, para o sintoma da decadência do amor.
Poderíamos aqui retomar uma ideia fundamental para com-
preensão da “vivência”, a de que os homens devoraram tudo, ficaram
saciados e exaustos. Não se trata de não poder, mas sim de não que-
rer – esse conflito entre desejar o diferente, e abandonar o padrão
que não reflete mais o modo de viver contemporâneo. É agressivo o
choque entre Das Erlebnis (vivência) e Die Erfahrung (experiência). As
mudanças operadas pela sociedade em relação aos seus modos de
viver não se dão de forma estanque. O convívio entre o tradicional e
o novo é sempre provocante e muitas vezes frustrante.
Lousteau, personagem de Ilusões perdidas que fez as vezes de
preceptor de Lucien no jornalismo, iniciou este último nas relações
amorosas parisienses. Habituado ao mundo do teatro, Lousteau
mantinha um relacionamento com uma atriz, Florine, que era sus-
tentada por “Matifat, homem gordo, rico droguista da Rua de Lom-
bards” (BALZAC, 2010, p.329), o qual era tratado com chacotas por
sua amante e explorado pelo amante da amante, no caso, Lousteau.
Escandalizado com esse quadro, Lucien, que ainda não visualizara a
ideia de em breve estar na mesma condição, indaga como é possível
tal situação e ouve a resposta: “- Ora, minha criança, não sabe nada
a respeito da vida parisiense -respondeu Lousteau- Há necessidades
que é preciso aceitar! É como se o senhor amasse uma mulher casa-
da, é tudo. A gente se acostuma” (BALZAC, 2010, p. 331).
O escândalo de Lucien diante de Lousteau não durou muito. Ele
pertencia realmente à geração que Lukács denominou desejosa de
poder e prazer. Logo utilizou o mesmo expediente do amigo para

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

satisfazer suas vontades, uniu-se à Coralie, a atriz rival de Florine e foi


com ela morar. Junto à Coralie o poeta foi narcotizado pelo
encantamento do luxo, sob o império da boa carne; seus instin-
tos caprichosos despertavam, bebia pela primeira vez vinhos da
elite, conhecia as requintadas iguarias da alta cozinha; via um
ministro, um duque e sua dançarina, misturados aos jornalistas,
admirando seu atroz poder; experimentava um terrível desejo
de dominar esse mundo de reis, sentia-se com forças para domi-
ná-lo. (BALZAC, 2010, p. 370).

O jovem provinciano, que ao chegar à capital francesa, tendo


frustrado suas primeiras ilusões literárias, havia programado para si
uma vida de austeridade. Porém faltava-lhe o amadurecimento ne-
cessário para compreender as sutilezas, as malícias e as tramas que
eram forjadas contra si. Ele sentiu-se dono dos jornais e da sociedade,
estava inebriado, “aquele luxo agia sobre sua alma como uma pros-
tituta age sobre um colegial com suas carnes nuas e suas meias bem
esticadas. [...] ele já tinha sede dos prazeres parisienses, amava a vida
fácil, faustosa e magnífica” (BALZAC, 2010, pp. 377-394). Assim como
o flâneur de Benjamin detém a ilusão de conseguir decifrar os de-
sejos dos indivíduos a partir de sua fisionomia, Lucien cria dominar
uma sociedade cujo encantamento o havia hipnotizado. As primeiras
frustrações sofridas na capital francesa pareciam ser elementos do
passado: a deselegância provinciana fora deixada para trás, os pri-
meiros nãos recebidos na porta dos editores também eram julgados
como algo remoto. Entretanto, desconhecendo os ardis parisienses,
tanto do mundo amoroso como do mundo literário, ele não conse-
guiu se desvencilhar das malhas tramadas contra si.
Podemos partir da ideia das primeiras frustrações de Lucien e da
noção da prostituição que atravessa toda sociedade, para apontar al-
guns desdobramentos da mercantilização da literatura. Dividiremos
esses desdobramentos em dois momentos: no primeiro pensaremos

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

a produção da literatura subjugada aos parâmetros do capital e,


como consequência desse fenômeno, poremos em revista a comer-
cialização dessa literatura-mercadoria. Para tanto, lançaremos mão
da reflexão dialética de Benjamin a respeito da degradação da aura
e da experiência.
A partir do séc. XIX a Revolução Industrial penetrou no mundo
das artes e da literatura. Tal revolução, que empreendeu novos mé-
todos de produção se espraiara por domínios que não se limitavam
apenas às tradicionais atividades na seara dos minérios, das matrizes
energéticas, etc. Foi precisamente na
Década de 1830 que a literatura e as artes começaram a ser aber-
tamente obsedadas pela ascensão da sociedade capitalista, por
um mundo no qual todos os laços sociais se desintegravam ex-
ceto os laços entre o ouro e o papel-moeda. A Comédie Humaine
de Balzac, o mais extraordinário monumento literário dessa as-
censão, pertence a essa década (HOBSBAWM, 1982, p. 43).

São patentes as alterações na produção literária da época, das


quais a obra de Balzac é testemunha, como o foi também o próprio
autor, que chegava a escrever por mais de 18 horas consecutivas.
Testamentária desse processo de mudança, a obra Ilusões perdidas
aponta para o duplo fenômeno destacado por Hobsbawm: o insolú-
vel laço entre o ouro e o papel-moeda, bem como o escritor mercan-
tilizado serão a tônica da produção literária no século XIX.
Uma chave de compreensão da relação mercantilizada na litera-
tura com a frustração das ilusões do personagem Lucien certamen-
te se deve ao choque entre subjetividade, tradicional qualidade dos
poetas, e a objetividade industrial, expediente dos engenhos jorna-
lísticos e literários de então. O jovem escritor desconhecia os ditames
da produção literária capitalista, a qual era comandada por regras
que visavam unicamente o lucro. A posse dos meios de produção,
categoria amplamente analisada por Marx, é um bom exemplo disso.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

Foi espinhoso o caminho percorrido por Lucien para que compreen-


desse que “trabalhar não é o segredo da fortuna em literatura, tra-
ta-se de explorar o trabalho de alguém. Os proprietários dos jornais
são empresários, nós somos operários” (BALZAC, 2010, p. 292). Nesse
bojo, além dos jornalistas, aqui demonstrados por Balzac de modo
exemplar para referir-se a uma geração que produz literatura,
Tanto escritores como críticos, tornam-se especialistas subme-
tidos à divisão do trabalho. O escritor fez de sua interioridade
uma profissão. Ainda que esta profissão não conduza, como na
imensa maioria dos escritores, a uma adaptação completa às exi-
gências cotidianas do mercado editorial, ainda que o comporta-
mento de tais escritores represente subjetivamente uma tenaz
oposição a este mercado e às suas exigências, a relação do escri-
tor com a vida e, necessariamente, com a arte, se amesquinha e
deforma (LUKÁCS, 1968, p. 216).

A incongruência entre os comandos do mercado editorial e uma


possível subjetividade foram sem dúvida algumas das razões pelas
quais sucumbiria Lucien diante do mundo literário parisiense: em
seu primeiro artigo, uma crítica a uma peça de teatro, foi derramado
todo sentimento e verve poética, ele “cometera um grande erro de
mostrar toda sua inteligência, um artigo fraco o teria servido [...] a in-
veja corroía Lousteau [...] que resolveu permanecer amigo de Lucien,
para explorar o recém chegado tão perigoso” (BALZAC, 2010, p. 362).
A respeito do caso específico da literatura, boa parte das ilusões
perdidas de Lucien se assentará justamente sobre as amargas frustra-
ções do mercado literário parisiense. O jovem poeta com sua primei-
ra obra, o romance “O arqueiro de Carlos IX” peregrinará de editor em
editor, crendo ingenuamente que sua verve poética será suficiente
para lhe assegurar sucesso no mundo literário parisiense. Depois de
tantas frustrações em Paris, Lucien
Foi dominado por mil reflexões [...], compreendera que para
aqueles livreiros, os livros eram como os bonés de algodão são

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

para os fabricantes de bonés: uma mercadoria a ser vendida cara


e comprada a preço baixo. “Enganei-me”, disse a si mesmo, cho-
cado, no entanto, com o aspecto brutal e material que assumia a
literatura. (BALZAC, 2010, p. 238, grifo nosso)

A precisão com que Balzac descreve as maquinações do mun-


do literário pode ser considerada ainda mais pertinente se a com-
preendemos a partir da ó[p]tica da realidade vivenciada: o próprio
autor investiu em uma tipografia e fracassou. A tônica de sua crítica
à mercantilização da literatura será o cerne do pensamento. Este se
engendra em torno da literatura e, por conseguinte, do espírito hu-
mano adestrado aos imperativos capitalistas, a fim de se manter vivo.
Antes de partir, o poeta ainda sofrerá o cadinho da humilhação
em Paris: tendo morrido sua amante, Coralie, ele não tinha condições
para enterrá-la. A única oportunidade para conseguir algum dinheiro
e então sepultar sua amada, era compondo canções de troça para bê-
bados: “que noite essa em que a pobre criança colocava-se em busca
de poesias a serem oferecidas aos beberrões, escritas à luz dos círios,
ao lado do padre que rezava por Coralie!” (BALZAC, 2010, p. 544). O
dinheiro ganho foi perdido no jogo. Por fim, Bérénice, a fiel criada de
Coralie, precisou se prostituir para ganhar o dinheiro do enterro e do
retorno de Lucien para a província, “aquele dinheiro queimava-lhe as
mãos, queria devolvê-lo. Mas foi forçado a guardá-lo como um últi-
mo estigma da vida parisiense.” (BALZAC, 2010, p. 549). Destacamos
aqui o fatal desfecho da presença de Lucien em Paris, pois nele o au-
tor conjuga no fracasso do poeta dois elementos fundamentais da
degradação da experiência: jogo e prostituição.
O processo de desilusão sofrido por Lucien em Paris será cris-
talizado no seu retorno para Angoulême. Na terceira parte da obra,
denominada “Os sofrimentos do inventor”, testemunharemos o des-
fecho de alguns elementos postos ainda no início da obra. A última
seção das Ilusões perdidas será arrimada pela derrocada comercial de

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

David Séchard e toda sua família, com exceção do Pai Séchard, o qual
comandado pela sua avareza não se apiedará de seu filho, mesmo
estando este na prisão. É importante apontar que o fracasso das ilu-
sões de Lucien, como um redemoinho, põe toda sua família em uma
desgraça financeira e moral.
O retorno de Lucien à província nada se parece com sua despedi-
da, pois enquanto nesta última temos o poeta em uma diligência, seu
retorno foi uma verdadeira viagem de um mendicante: dormindo ao
relento, na boleia de carruagens como um clandestino, a ainda junto a
animais. Qual não fui sua surpresa ao despertar pela manhã e perceber
que se encontrava como clandestino da Senhora de Bargeton! Contu-
do, as frustrações ainda o aguardavam em Angoulême. A ligação da
última parte de Ilusões perdidas com o restante da obra é atestada pelo
próprio Balzac, no Prefácio da Terceira Parte, de 1844: “há três causas,
de uma ação perpétua, que unem a província a Paris: a ambição do
nobre, a ambição do comerciante enriquecido, a ambição do poeta.
O espírito, o dinheiro e o grande nome vêm buscar a esfera que lhes
é própria” (BALZAC, 2010, p. 255). Nas seções anteriores da obra teste-
munhamos a ambição do nobre que tritura a ambição do poeta, aqui
na terceira e última seção, temos a ambição do poeta espezinhada
pela ambição desmedida do comerciante enriquecido.
Irão orquestrar a desgraça sobre Lucien e sua família os ricos ti-
pógrafos da região, os irmãos Cointet, já mencionados na análise so-
bre a província, Petit-Claud, ex-colega de colégio de Lucien e Cérizet,
aprendiz do próprio David Séchard. Cérizet encarna a ambição des-
leal que atravessa a província e a capital: assim como ele trai David
em Angoulême, trai Cesár Birotteau, o pródigo perfumista16 de Paris.

16 César Birotteau é o protagonista da obra Ascensão e queda de César Birotteau. Essa é


uma obra de enlevo de Balzac, considerada por diversos estudiosos um verdadeiro
testemunho das operações financeiras comerciais da França do século XIX, pois esta-
belece um nexo entre o mundo comercial e o mundo bancário de então.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

Asseveramos que Lucien comandou a desgraça da família, dado que


ainda em Paris falsificou a assinatura do cunhado em uma Letra (es-
pécie de promissória da época) de três mil francos. Não tendo como
pagar essa dívida do cunhado, David se encontra em uma difícil si-
tuação: torna-se objeto de cobiça na medida em que é ainda o pro-
prietário da única tipografia concorrente dos Cointet e anda em vias
de descobrir um segredo que revolucionaria a indústria tipográfica:
um papel produzido com vegetais mais baratos. Boniface, o irmão
Cointet, chamado de “o grande”, escondia “sob modos finórios, sob
um exterior quase indolente, a tenacidade, a ambição do padre e a
avidez do negociante devorado pela sede de riquezas e de honras”
(BALZAC, 2010, p. 36).
É importante destacar que, na última parte da obra, uma perso-
nagem assume uma postura que segue na contramão de seu tempo:
Ève, a irmã de Lucien. Em uma sociedade machista e conservadora,
onde a mulher deveria estar longe dos negócios e preocupar-se com
os bons modos, em ser coquete, ou ainda, no caso das jovens, con-
seguir um bom casamento, ela surge como irmã de um poeta perdu-
lário e esposa de um inventor sem ambições ou apegos financeiros.
Ève era a única naquela casa que gozava de uma razão suficiente-
mente sagaz para perceber as manobras urdidas a fim de arruinar sua
família. Depois de tomar conhecimento dos modos escusos como vi-
via seu irmão, Ève acordou do torpor em que a idolatria por Lucien
a havia mergulhado, como o despertar de alguém sob efeito de nar-
cóticos. Apesar de atribuída à intuição, é pertinente verificar que é a
mulher, em meio às maquinações do mundo comercial masculino,
quem tem atitudes de coragem e lucidez. Atitudes essas forjadas nos
percalços e na perda de suas ilusões, prova disso é a indagação de
Balzac ao narrar a decepção de Ève ao saber o que realmente fizera
seu irmão: “A quantas ilusões dava ela adeus? [...] dois dias após ler

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

essa resposta, Ève foi obrigada a contratar uma ama, pois seu leite se-
cara!” (BALZAC, 2010, pp. 47-66). A resposta em questão é uma carta
recebida de Paris, enviada por um antigo amigo de Lucien, falando
dos feitos do grande poeta da província em sua estadia na capital.
Não nos deteremos nos detalhes do fracasso material sofrido
pelo protagonista Lucien e sua família, basta mencionar que David
é preso por causa da dívida e o próprio pai o deseja nessa condição
para extorquir o seu segredo. Todas as maquinações engendradas na
província contra o inventor são a coroação daquilo que ocorria em
Paris e tal como na capital, na província, o espírito inventivo e os laços
familiares são vencidos pela ambição, pelo desejo de ter. A máxima
de tudo ousar para tudo ter pelejou contra a cobiça e o acúmulo dos
que tudo já possuíam e perderam.
Vencido pelos tipógrafos da região, David perdeu também suas
ilusões, a sua “descoberta entrou na fabricação francesa como o ali-
mento em um grande corpo. Graças à introdução de materiais dife-
rentes do trapo, a França pôde fabricar papel mais barato do que em
qualquer outro país da Europa” (BALZAC, 2010, p. 240). Tal golpe, de
ver a invenção que quase lhe custara a vida, revolucionar o mercado
europeu sem que dela pudesse tomar parte, o fez renunciar comple-
tamente à vocação de inventor.
Lucien? Não suportou ser a razão da ruína de sua família e deci-
diu se suicidar. Entretanto, enquanto olhava para as águas onde iria
se afogar, foi abordado por um abade espanhol que passava em uma
diligência que o persuadiu a não mais tirar sua vida e lhe transmi-
tiu os valores dos homens desonestos. Parecia que toda a sua per-
manência em Paris havia sido brincadeiras de criança. O domínio do
mundo não haveria de passar pelas inspirações belas, ou pelo sim-
ples desejo de vencer, mas por uma conjugação que vai da aparência
ao controle de tudo:

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

Tenha bela aparência! Esconda o avesso da sua vida, e apresente


uma face muito brilhante. A discrição, divisa dos ambiciosos, é
a de nossa Ordem, torne-a sua. [...] Quando o senhor se senta
a uma mesa de jogo, acaso lhe discute as condições? As regras
estão dadas, o senhor as aceita. O senhor não somente esconde
seu jogo, mas ainda procura fazer com que acreditem, quando
está certo de vencer, que irá tudo perder? [...] Os avaros habitam
o mundo da fantasia e das fruições. O avaro tem tudo, até mes-
mo o sexo dentro do cérebro. (BALZAC, 2010, pp. 200, 202, 210).

O estatuto dos homens ambiciosos é enfim delineado por um


mestre. O verniz social das aparências deve esconder a sorte lancinan-
te do jogo para aqueles a quem a prostituição dos sentimentos é uma
máxima de determinação. Lucien foi seduzido, mais uma vez, pelo fogo
das paixões e fortunas e é com esse reavivamento das ilusões do pro-
tagonista que Balzac conclui a sua obra. É uma tirada folhetinesca que
encerra as Ilusões Perdidas: “Quanto a Lucien, seu regresso a Paris é do
domínio das Cenas da vida parisiense” (BALZAC, 2010, p. 241). O que foi
feito desse jovem ambicioso? Lembremos que Balzac publicava seus
romances em jornais, portanto era preciso manter um suspense sobre
o que estava por vir, era preciso agarrar novas assinaturas nos jornais.
É preciso esclarecer o que houve com Lucien e quem era esse
funesto abade, para termos concluído o ciclo do jovem poeta e para
compreendermos a epígrafe deste capítulo intitulado “A capitaliza-
ção do espírito humano”, a qual aponta para a morte voluntária, ou
seja, o suicídio. Lucien seguiu com o abade para Paris e lá se fez re-
conhecer por uma brilhante fortuna de origem desconhecida. Essa
fortuna, nós sabemos, era escusa, resultado de uma ciranda de trapa-
ças do abade, que na verdade não era abade, e sim Vautrin, um dos
mais perversos personagens balzaquianos que apostou em Lucien
sua sorte, como se aposta numa mesa de bilhar. Lucien mais uma vez
fracassou e teve uma morte coberta numa ignomínia: enforcou-se
numa prisão imunda, com a reputação igualmente enlameada.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

Talvez ambos personagens não atenderam ao “Código dos ho-


mens honestos” de Balzac. Nessa breve obra, que mais parece uma
versão do Príncipe de Maquiavel para os bandidos, está inscrito que “o
ladrão deve vencer ou ser enforcado” (BALZAC, 1998, p. 19). Nisto eles
sucumbiram, mas, mesmo sem ter lido a obra de seu próprio criador,
eles lhe foram fieis, pois “em todos os tempos os homens sempre es-
tiveram enamorados da fortuna. [...] e desde que o mundo é mundo o
dinheiro foi adorado e buscado com o mesmo ardor” (BALZAC, 1998,
p. 21). É ainda sob esse terrível código que Balzac dá a sentença final
sobre os meandros que comandaram o mundo jornalístico, tema das
Ilusões perdidas: “quando um jornalista vende seus elogios, é uma es-
croqueria flagrante, pois, por mais célebre que seja, cem linhas não
valem cem tostões” (BALZAC,1998, p. 68). Lucien não tinha um tostão
no bolso quando se enforcou.

AVAREZA E VIVÊNCIA EM EUGÉNIE GRANDET

Avareza. Poremos em revista nesta seção a articulação entre a


ideia de avareza presente na obra de Balzac, Eugénie Grandet (1833).
Para tanto buscaremos articular as características da avareza na li-
teratura com as suas encarnações no Senhor Grandet, personagem
destacado neste estudo. O arcabouço teórico que orientará nossa
análise será basicamente as reflexões em torno do mal, problema tra-
tado de modo exemplar na história da filosofia, o qual, como tantos
outros, mostra-se em aberto, posto seu caráter subjetivo. Entretanto,
orientará nossa análise a noção de mal preconizada por Paul Ricoeur,
a qual é estabelecida sob a égide moral e desdobra-se na conjunção:
mal cometido e mal sofrido. Para o autor francês
nem sempre é possível estabelecer o mal sofrido como resulta-
do direto do mal cometido pelo homem [...] essa discordância
entre mal moral cometido e mal sofrimento imerecido repropõe

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

a questão [...] deslocando-a do plano ontológico para o plano


ético: todo mal é mal moral, todo mal é mal cometido. Não se
trata de discutir de onde vem o mal? Mas de esclarecer por que
fazemos o mal? (RICOEUR, 1988, pp. 8, 9).

Nossa acepção de mal, então, nos direciona para a questão


da liberdade do sujeito que o pratica. Faz-se necessário assim, em-
preender uma breve inflexão a respeito da construção do sujeito. É
em Santo Agostinho, em sua fundação da interioridade, que temos
desenvolvida a ideia de liberdade humana, ou livre arbítrio, como
mediadora das escolhas entre bem e mal. Kant despojou definitiva-
mente o homem de um “telos” divino, impondo a este a noção de mal
radical, retirando da ação humana qualquer caráter esotérico que in-
tente isentar do próprio homem sua ação livre. Em um movimento
dialético, Hegel forjou o conceito de história como algo universali-
zante ou totalizante, demonstrando como os fundamentos da his-
tória estão assentados nos grandes eventos da humanidade, como
que em saltos de tigre. O conceito hegeliano não passou incólume
às reflexões de Walter Benjamin, em suas “Teses sobre o conceito de
história”. Naturalmente não compete à natureza deste trabalho por
em revista um extenso apanhado da filosofia da história, entretanto,
na esteira da reflexão em torno do mal, Paul Ricoeur em sua obra, O
mal (1988), lança novas luzes sobre a problemática do mal, a qual pa-
rece estar consoante à conjugação com a avareza do senhor Grandet.
Situado entre os romances classificados como “Cenas da Vida
Provinciana”, Eugénie Grandet foi por algum tempo uma das obras
mais conhecidas de seu autor, o qual se sentia irritado de ser chama-
do de “o autor de Eugénie Grandet”. Curiosidades à parte, a obra tem
a marca do realismo balzaquiano: longe de ser uma idílica história de
amor, temos uma narrativa marcada pela crueza de um pai que tinha
diante se si apenas um objetivo: enriquecer mais. Na pequena cidade
de Saumur, vivia Eugénie com seu pai e mãe e a “grande Nanon”, a

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

fiel empregada de muitos anos, que, como todos da casa, vivia sob o
rigoroso regime do senhor Grandet. “A necessidade tornou tão ava-
renta a pobre moça, que Grandet acabou por gostar dela, como se
gosta de um cão, e Nanon deixara que lhe pusessem no pescoço uma
coleira tão pontuda cujas farpas já não a farpeavam” (BALZAC, 2006,
p. 36), assim era a constituição da fiel servidora da casa.
Em torno dos Grandet, havia ainda duas famílias que disputa-
vam a mão da rica herdeira da fortuna: os Cruchots e os Des Grassins,
únicos com o acesso franqueado à casa do homem que tudo media e
calculava, inclusive quem poderia cortejar sua filha. Para além dos in-
teresses provincianos, um evento surpreende a todos: a chegada do
sobrinho do senhor Grandet: Charles, rapaz parisiense, filho de seu
irmão Guillaume Grandet. O motivo de sua chegada à província era
fatal: sem o saber, o jovem fora enviado pelo pai com uma carta des-
tinada ao irmão, na qual continha uma sinistra sentença: confiava-lhe
seu filho único, Charles, pois logo em seguida ele se suicidaria. Moti-
vo: não suportaria encarar a sociedade em sua condição de falência,
mergulhado em uma dívida de dois milhões de francos.
A partir desse momento a narrativa assume novos contornos:
o pai Grandet se ocupa em mandar embora para as Índias o seu so-
brinho, Eugénie se apaixona por ele, a grande Nanon se ocupa em
mediar a avareza de seu patrão com a vontade de sua filha e, por fim,
a mãe de Eugénie é eclipsada na obra. A pujança da avareza daque-
la casa parece ocupar os espaços que poderiam ser de sentimentos
afetivos maternos.
Na obra Eugénie Grandet, temos construído um dos persona-
gens mais avarentos de toda literatura universal, talvez perdendo
apenas para o avarento de Molière. Cumpre aqui fazermos uma in-
cursão na caracterização dos elementos constitutivos da avareza
para verificarmos a encarnação desta na personagem balzaquiana.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

A etimologia latina da palavra avarento aponta para avarus que, por


sua vez, é originada do verbo habere, o qual significa “ter”. Assim, o
avarento é aquele que tem paixão pelo ter, pelo acúmulo, pelo ganho
de dinheiro. É importante também lembrar que a ideia de avareza
constela entre os sete pecados capitais (luxúria, ira, inveja, gula, pre-
guiça, soberba). Entretanto, apesar de calcados na tradição cristã, os
pecados capitais estão “longe de serem considerados assuntos pura-
mente religiosos, os pecados estão mais integrados do que nunca ao
nosso cotidiano. Eles agora fogem do domínio religioso para serem
louvados ou vituperados pelo homem moderno.” (MARQUES, 2001,
p. 8). Mais que comportamentos exteriores, os pecados capitais estão
incrustados na constituição humana. Esse fenômeno pode ser com-
preendido quando matizado a dois fatores fundamentais que en-
gendraram a constituição do indivíduo na modernidade. O primeiro
deles já foi invocado anteriormente, ao tratarmos da experiência de
choque, a qual transpôs os limites da exceção e passou a comandar
a normalidade da vida. O segundo, e por seu turno anterior ao pri-
meiro, remonta a uma ruptura com o pensamento grego tradicional.
Ora, pautada na coletividade e no bem comum, a ética grega se
assentou como um conjunto moral no qual a ação individual só era
compreendida no bojo coletivo e como tal deveria ser julgada e pos-
sivelmente punida também no âmbito coletivo, o da pólis. A ruptura
com tal ética começa a ser desenvolvida com Agostinho, quando este
põe em questão o problema da relação entre interioridade e liberdade,
agora denominada de livre arbítrio, o qual é “fundamentalmente uma
manifestação da vontade que coloca o homem em contato com suas
faculdades interiores. A liberdade do homem é, assim, experimentada,
em primeiro lugar, em sua relação consigo mesmo e com seus desejos”
(COSTA, 1992, p. 333). A fundação do conceito de interioridade agosti-
niano tem pertinência aqui, sobretudo, por retirar dos ombros divinos

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

(gregos ou cristãos) a responsabilidade da conduta humana, pois é


candente “superar a contradição entre a existência de Deus e a exis-
tência do mal. Nem sempre é possível estabelecer o mal sofrido como
resultado direto do mal cometido pelo homem, como uma punição
da culpa” (RICOEUR, 1988, p. 8). Assim, doravante a compreensão do
mal está livre de qualquer atribuição cósmica, mas é o mal individual.
Agostinho entabula uma discussão a respeito da ontologia do mal, re-
tirando deste a substância17, ou seja, a ação divina.
O movimento que inicialmente aponta estar em oposição, a sa-
ber, a fundamentação dada ainda no medievo à ação livre do indiví-
duo – que a propósito, tornou-se uma das pedras fundamentais da
modernidade – e o obscurecimento do sujeito moderno – agora des-
centrado –parece ser o elo que possibilita a livre ação do indivíduo
para o mal. “Kant declara o homem mal por natureza” (TERRA, 1986,
p. 62)18. Desta feita, temos um descolamento da ideia de mal como
algo associado à religiosidade cristã, pondo em xeque a possibilida-
de de uma polaridade maniqueísta, sob a qual o bem e o mal defron-
tar-se-iam como campos de força capazes de precipitar o indivíduo
na redenção ou no inferno. Como escolha deliberada, o mal está na
seara na liberdade humana, que como tal engendra implicações so-
ciais, e no caso da avareza, acentuadamente econômicas. Em Kant a
discussão do mal passa necessariamente pela moral, sendo esta últi-
ma associada ao dever, pois

17 Lembremos que a Idade Média, herdeira de várias problemáticas da Antiguidade, pro-


põe diversas questões pertinentes à metafísica, uma delas, talvez a mais pródiga em
nível discursivo filosófico, seja a da substância [A ousia aristotélica]. Essa discussão al-
cança inclusive a modernidade, com o cogito cartesiano. Em Descartes, enfim haverá a
separação “res cogito”“res extensa”, separação de fundamento do racionalismo moderno.
18 É importante destacar o que Kant distingue como natureza, a saber, “1-A natureza
como origem do bem (providência, fim, racionalidade). 2-A natureza como origem do
mal (natureza selvagem, bruta, etc), 3-Natureza como natureza humana. Os dois pri-
meiros destes três conceitos expressam possibilidade e como tal confluem no terceiro
definindo-o” (TERRA, 1986, p. 61).

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

Onde a liberdade corrompe o próprio pressuposto do “dever”,


põe-se em risco a lei moral em seu sentido último. [...] não bas-
ta a boa vontade dos indivíduos tomados isoladamente. Tam-
pouco uma legislação que impedisse por coação as más ações
dos outros, porque a moralidade ou é livre ou não é moralidade.
(HERRERO, 1991, p. 48).

Aparentemente teríamos um conflito nas concepções de mal kan-


tiana e agostiniana. Contudo, tanto em um como em outro, o mal ou
mesmo o bem, só pode ser engendrado com a compreensão da ação
livre do indivíduo e, como tal, essa ação só é livre a partir do momento
em que há consonância entre a ação e, digamos assim, a verdadeira
intenção individual. O que aqui estamos vulgarmente denominando
intenção é o que Agostinho chamou de interioridade e Kant de mora-
lidade propriamente dita. Para este último, “nós somos civilizados até
a saturação por toda espécie de boas maneiras e decoro social. Mas
ainda falta muito para nos considerarmos moralizados” (KANT, 1986, p.
19). Nesse ponto nos remeteremos ao senhor Grandet: suas ações, por
vezes maquiadas de boa fé e generosidade, eram corroídas pela ambi-
ção que o tornava indiferente ao mal causado aos outros, seja no âm-
bito econômico, ou mesmo emocional, no caso de sua filha e esposa.
Ainda na esteira do cruzamento entre a ação má e sua relação
com o indivíduo, Ricoeur retoma a concepção de história hegeliana
quando afirma que para o autor alemão “o sofrimento é inelutável,
como negatividade cujo sentido é ser propulsora da evolução do Es-
pírito”. (RICOEUR, 1988, p. 10). Não trataremos aqui da noção de pro-
gresso, a qual possui vários desdobramentos na modernidade, mas
não podemos nos furtar da conjugação entre a concepção histórica
de Hegel e sua possível legitimação de uma cultura dominante. O
próprio Ricoeur não recusa esse cruzamento quando assevera que
se os grandes homens da história possuem uma felicidade frus-
trada pela história que fazem deles, que dizer de suas vítimas
anônimas? [...] quanto mais o sistema prospera, mais as vítimas

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

são marginalizadas. O êxito do sistema faz o seu fracasso. O so-


frimento através da lamentação é o que se exclui do sistema.
(RICOEUR, 1988, p. 42).

Cumpre lembrar que a crítica de Ricoeur é testamentária, como


nós o somos na contemporaneidade, das tantas atrocidades, em
maiores ou menores proporções, dos feitos, ditos grandes, em nome
do progresso, civilização e, como aqui tratamos da avareza, sucesso
econômico. É Walter Benjamin um dos críticos da noção de história
hegeliana, a qual subjugou aos pés [pôs de joelhos], muitos que for-
jaram a história, as “vítimas anônimas”, como denominou Ricoeur. É
pertinente reiterar a crítica benjaminiana de uma história vista de
baixo, na qual os eventos sagrados na história canônica são lições
dos vencedores e engendram e perpetuam modos de dominação.
O que a grande história, a história dos grandes feitos, a história
chamada universal, tem a ver com a pequena província de Saumur
onde, escondida, a pobre Eugénie Grandet vivia? É justamente a cor-
veia anônima, cujos tributários, igualmente anônimos, tiveram que
“sacrificar as forças, neles adormecidas [que] permaneceram inativas
e foram reprimidas (...)” (ENGELS, 1848, p. 36s apud BENJAMIN, 2000,
p. 114). Na dureza do mal, tanto em relação àquele que o comete
como aquele que o sofre, Eugénie, exemplo modelar, sofre os dita-
mes da capitalização do espírito, por causa da avareza do pai.
Poderíamos conjecturar ainda que Balzac não o intitulou “O pai
Grandet”, para não se repetir com o título O pai Goriot. O persona-
gem Goriot, visto em efeito negativo de Grandet, “ocupa um lugar
de destaque na obra de Balzac, pelo caráter oposto: é pródigo, ge-
neroso em relação às duas filhas, que o exploram até o último centa-
vo, acabando por deixá-lo na miséria e no mais completo abandono”
(AGUIAR, 2001, p. 41).De qualquer forma, tanto este de 1835 como
aquele de 1833 são parte de uma constelação de personagens cujas

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

contradições, e controvertidos modos de entender as relações fami-


liares, denunciam o espírito de uma época, marcada pela penetração
aguda do capital na vida social.
Eugénie Grandet conjugará os signos da experiência e da vivên-
cia desde seu título: este remete à jovem que dá crédito à família e
aos tradicionais valores ensinados às moças de sua época. A obra
parece, entretanto, acentuar os desdobramentos da vida de um
velho toneleiro, seu pai, o qual enriqueceu vendendo trigo a juros
exorbitantes e sedimentando todos os artifícios dos homens de
negócios bem-sucedidos. Insistir na questão do título Eugénie Gran-
det pode ser significativo se considerarmos que
No lugar do romance edificante que uma imagem adoçada po-
dia apresentar, todos insistem na violência. Vemos aí uma inver-
são dos contos de fadas e, em Eugénie uma Bela Adormecida
condenada ao gozo fantasmático e transpondo em seu amor a
avareza de Grandet (GLEIZE, 1994, p. 51)19.

Sob esse prisma é possível asseverar que a “capitalização do


espírito humano”, para utilizar o termo lukácsiano, está plenamen-
te concentrada em Eugénie. Muito mais do que no velho Grandet,
o qual desde cedo viu-se embrutecido pela necessidade de sobre-
viver às agruras da Restauração francesa. Eugénie foi educada sob
a rigorosa tutela de pai e mãe. Entretanto, a educação feminina do
período impunha às moças sonhos idílicos de grandes amores pelos
quais elas suspiravam. A avareza do pai, com uma influência devasta-
dora, eclipsou o que havia de romântico, transformando-o em coisa
fantasmagórica. Uma boa demonstração desse adestramento quase
selvagem sobre Eugénie é o modo como esta continua vivendo mes-
mo após a morte de seu pai e de sua mãe:

19 “Au lieu du roman édifiant qu’une image édulcorée pouvait présenter, toutes insistent
sur la violence. On y voit une inversion du conte de fées, et dans Eugénie une Belle
au bois dormant condamnée à la jouissance fantasmatique, et transposant dans son
amour l’avarice de Grandet”.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

Tem todas as nobrezas da dor, [...] a rigidez da solteirona e os


hábitos mesquinhos da vida limitada da província. Apesar das
800 mil libras de renda, vive como vivera a pobre Eugénie Gran-
det, só acendendo a lareira do quarto nos dias em que outrora
seu pai lhe permitia acender o fogo na sala, apagando-a de acor-
do com o programa em vigor nos anos da juventude. (BALZAC,
2006, p. 208-209).

Muito mais que resignação ou hábito, o fato da herdeira milio-


nária do velho Grandet manter os mesmos hábitos do pai aponta
para um fenômeno candente na constituição do seu caráter avaro:
“é como se a filha fosse uma extensão dele próprio, propriedade sua
tanto quanto os cofres ou os sacos de dinheiro que tanto gosta e se
regozija em contemplar sozinho de tempos em tempos” (AGUIAR,
2001, p. 43). Essa é sem dúvida a razão pela qual desde cedo Eugénie
era adestrada nos imperativos da mesquinhez. Um momento exem-
plar dessa extensão da avareza para a filha é demonstrado logo no
início da narrativa, o aniversário de Eugénie. Anualmente o pai pre-
senteava a filha com uma moeda de ouro, essas moedas eram pe-
riodicamente vistoriadas pelo pai, com o intuito de se certificar que
elas não haviam sido gastas. Frente a esse comportamento, indaga o
narrador: “Acaso não significava passar o dinheiro de um cofre para
outro, e por assim dizer, cevar a avareza da herdeira?” (2006, p. 39).
Aqui tomaremos a passagem da moeda de ouro para iniciar
uma aproximação entre as características fundamentais da avareza
e o comportamento do velho Grandet. A primeira característica é o
amor ao dinheiro, sobretudo quando este é transmutado em metal.
Conforme Aguiar, “o amor exagerado à riqueza em si, principalmente
se vazada em ouro, manifesta-se agudamente no prazer extremo com
que, às escondidas, observam e manuseiam seu tesouro, empilhado
em moedas, cédulas ou pedras” (2001, p. 44 -45). O senhor Grandet
seguia à risca esse mandamento dos avarentos e é comandado por

| 141 |
| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

tal paixão que o vemos protagonista de uma das cenas mais emble-
máticas de toda a Comédia Humana,
Vendia [o senhor Grandet] colheitas e transmutava tudo em
ouro e prata, que iam juntar-se secretamente aos sacos empi-
lhados no gabinete. Chegaram enfim, os dias de agonia, durante
os quais a forte constituição do bom Grandet pelejou contra a
destruição. Quis ficar sentado ao pé do fogo, diante da porta do
gabinete. Puxava para si e enrolava todas as cobertas e dizia: -
Guarde, guarde, para ninguém roubar. Quando conseguia abrir
os olhos, nos quais se refugiara toda a sua vida, voltava-os para
a porta do gabinete onde jaziam seus tesouros, dizendo à filha:

- Estão lá? Estão lá? – com uma voz que denotava uma
espécie de pânico.
- Estão papai.
- Cuide do ouro, ponha o ouro na minha frente.
Eugénie espalhava os luíses sobre a mesa, e ele fica horas
inteiras com o olhar fixo nos luíses. (BALZAC, 2006, p. 183).

A loucura pelo ouro do senhor Grandet concentrara enfim todas


as energias de sua vida e seria enfim o coroamento dessa existência
que tanto calculara. Convém ainda matizar a relação entre ouro e ava-
reza, bem como as razões pelas quais ele é o objeto maior da cobiça
dos avarentos. Na tradição literária o ouro comparece como elemento
fundamental de acúmulo e de riqueza. Para além do senhor Grandet,
tomaremos ainda como exemplo o personagem de Molière, Harpagão,
o maior de todos os avarentos da literatura. O qual, segundo seu pró-
prio filho, é “um pai avaro, e tal, que já no coração não tem senão me-
tal!... [...] os pobres, quando o são, é por culpa da sorte ou sua, mas em
nós a miséria é culpa minha? Sabemos que há ouro em casa, e muito!”
(MOLIÈRE, 2006, p. 27-28). E ele mesmo, Harpagão, reforça esse pensa-
mento em diversos momentos, como em uma simples conversação:
“Que queres perder? Uma apostinha. Como há-de ser? Eu ponho doze
vinténs, e tu esses brincos de ouro!” (MOLIÈRE, 2006, p. 62). A atração

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tão magnética pelo ouro ou metais preciosos, como a prata, tem uma
razão de ser: é a maior fonte de entesouramento. Ora, a condição para
que uma mercadoria exerça o papel de medida de valor são as suas
propriedades qualitativas e quantitativas. Naturalmente, a conjugação
desses dois elementos irá mensurar o poder e o alcance da medida de
valor. As diversas formas de medida de valor têm variações significati-
vas no elemento qualitativo: peles, sementes, animais de modo geral,
plantações, podem ter enormes variações qualitativas referentes ao
clima e outras tantas adversidades, até a moeda em papel sofre com
variações externas,20 já
O ouro e a prata são sempre idênticos a si mesmos [...] na qua-
lidade de meios de circulação eles oferecem a vantagem sobre
outras mercadorias, de que a seu peso específico elevado, o qual
representa um peso relativamente grande em pouco espaço, [...]
o alto valor específico dos metais preciosos, sua duração, sua re-
lativa indestrutibilidade, sua inalterabilidade ao ar [...] indepen-
dentemente de sua raridade, a grande maleabilidade do ouro e
da prata comparados com o ferro e até com o cobre impede que
se lhes utilize para ferramentas, tirando-lhes em grande parte a
qualidade sobre a qual repousa o valor de troca dos metais em
geral. (MARX, 2008, p. 193-194).

Permitimo-nos aqui a citação relativamente extensa de Marx,


pois, ainda que não trate diretamente a respeito da avareza, elucida
alguns elementos destacados nesse capítulo como as características
dos avarentos. Há fundamentos para ter o ouro como verdadeiro ídolo:
é possível concentrar enormes fortunas em ouro em um volume que
precisaria ser redobrado caso fosse em qualquer outra moeda. Sobre
essa alta concentração de valor em um volume menor do que em qual-
quer outra moeda de circulação, é importante destacar uma manobra
funesta do senhor Grandet: sendo o inverno excessivamente rigoroso

20 Faz-se necessário apontar para o fato de que o fenômeno do entesouramento na mo-


dernidade, especificamente no século XIX, período em que transcorre a escrita de Bal-
zac, esteve calcado na economia burguesa. É Adam Smith, em A riqueza das nações, que
investiga os ditames econômicos que favoreceram o acúmulo em proporções nacionais.

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naquele ano, a venda das colheitas de todos os vinhateiros da região


pareciam estar comprometidas. A salvação das colheitas de todos de-
pendia então de uma negociação com os belgas e o senhor Grandet,
aquele tigre que com garras de aço a ninguém poupava, fez uma tran-
sação em segredo, saiu de madrugada, auxiliado pela sua fiel Nanon,
carregando um barril transbordando de ouro e então vendeu toda a
sua colheita com o máximo de lucro. Ante tal transação, o experiente
vinhateiro disse à mulher que o vinho estava vendido e que depois de
três meses o valor seria a metade do preço, essas
palavras foram pronunciadas com um tom calmo, mas profunda-
mente irônico, que os cidadãos de Saumur, reunidos então na pra-
ça, amatilhados pela notícia da venda que acabava de ser feita por
Grandet, teriam sentido um calafrio se ouvissem. O pânico teria
feito o vinho baixar cinquenta por cento. (BALZAC, 2006, p. 97).

A resistência ao tempo é outro elemento pródigo do ouro21, permi-


tindo ao avarento sua prática de adoração perpétua: contemplar, empi-
lhar, manusear, esconder, enterrar (se preciso for, para esconder) o ouro.
Cumpre aqui apontar outra característica da avareza: o medo do
roubo, a saber, “a ansiedade e a desconfiança permanentes concen-
tram-se sobretudo no temor de que tenham seu tesouro roubado, in-
cluindo nesta desconfiança os entes mais chegados” (AGUIAR, 2001,
p. 44). No momento de sua morte, Grandet cristaliza esse terror e
medo de ser roubado, como já vimos em citação anterior, o que tam-
bém o motivava frequentemente a querer ver o ouro, a fim de conferir
se permanecia intacto. Certamente Balzac construiu em Grandet um
mestre na avareza, esteira trilhada também por outros personagens

21 Acerca do caráter durável do ouro, reproduzimos aqui o mesmo exemplo de Marx ao


comparar o metal precioso a outras moedas: “Peter Martyr, que parece ter sido um
grande entusiasta do chocolate, ao falar dos sacos de cacau observa que constitui
uma das moedas mexicanas: ‘Oh! Bem-aventurada moeda, que dá ao gênero humano
uma beberagem doce e útil e imuniza seus possuidores contra a peste infernal da ava-
reza, pois não pode ser enterrada nem conservada por muito tempo!’” (MARX, 2008, p.
195, grifo nosso).

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balzaquianos. Em La Maison du chat-qui-pelote [Ao “chat-qui-pelote”,


em português], uma das primeiras obras do autor francês, temos o
Senhor Guillaume, um rico burguês, dono de uma loja de tecidos
(chamada “Chat-qui-pelote”) cujos cálculos e economias tudo alcan-
çava. Ele censura o futuro genro em uma assertiva típica dos avaros:
“Se para os pródigos o dinheiro é redondo, é chato para as pessoas
econômicas, que o empilham e acumulam” (BALZAC, 2012, p.164).
Ao lado do senhor Grandet e do senhor Guillaume, podemos invocar
também o velho Séchard, personagem das Ilusões perdidas, obra ca-
pital de Balzac. Esta obra é iniciada com a venda da tipografia do ve-
lho Séchard ao filho David, sendo este último espoliado pelo primei-
ro, pois “se o velho tipógrafo não houvesse dado há tanto tempo a
medida de sua cega avareza, sua abdicação bastaria para pintar o seu
caráter. [...] Mas, para o velhote não havia pai e filho nos negócios. [...]
seu filho tornava-se assim um inimigo a ser vencido.” (BALZAC, 2010,
p. 18). Esses três personagens balzaquianos cristalizam ainda outra
característica da avareza, a idade: “as personagens avarentas são to-
das idosas e, se o traço da avareza já existe há mais tempo, ele não é
particularmente enfatizado na juventude – cria-se assim em relação
à paixão da posse uma diferença acentuada entre procedimento dos
pais e dos filhos” (AGUIAR, 2001, p. 44). No caso das personagens ci-
tadas, elas comparecem nas obras já com a idade avançada e sobre o
seu passado temos o relato de uma vida de trabalho, dificuldades e
economias, atravessada ainda por momentos históricos de guerra ou
necessidade de modo geral.
Outra expressão candente da avareza é a mudança radical de
comportamento do avarento por causa de algum elemento externo.
Para Aguiar “a interferência de um elemento inesperado, seja de natu-
reza sobrenatural ou não, provoca nos avarentos uma mudança radi-
cal em suas atitudes, tornando-os acessíveis e generosos, no caso de

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Grandet uma mudança fingida” (AGUIAR, 2001, p. 44). Essa estranha


mudança no comportamento daquele a quem tudo são cálculos se dá
por uma razão capital de sua avareza: com a morte da esposa, a jovem
Eugénie tem o direito de reivindicar a herança da mãe. O velho Gran-
det não havia atinado para isso, quando seu amigo Cruchot o adverte:
Pense em que situação você ficaria perante sua filha, se a sra.
Grandet morresse. Precisaria prestar contas a Eugénie, porque
está casado em comunhão de bens. Sua filha terá o direito de
exigir a partilha de sua fortuna. Enfim, ela sucede à mãe, de
quem você não pode herdar. Essas palavras caíram como um
raio sobre o bom Grandet. (BALZAC, 2006, p. 172).

A constatação dessa possibilidade exerceu uma força tal sobre o


senhor Grandet, que este, após a morte de sua esposa, desdobrou-se
em afagos e atenção para com Eugénie, a qual “acreditou conhecer
mal a alma do seu velho pai, ao se ver alvo de sua atenção e de sua
ternura; [...] enfim, ele a contemplava como se ela fosse ouro. O ve-
lho toneleiro se parecia tão pouco com o que fora, tremia diante da
filha” (BALZAC, 2006, p. 178). É mister ressaltar que essa mudança,
conforme asseverou Aguiar, era fingida e durou tão somente o curto
período necessário para convencer a filha a despojar-se de toda sua
herança em favor do pai, e assim ela o fez. Enfim, o ato de suplantar
relações familiares ou afetivas, em vista de um objetivo “maior” não
era problema para eles, tanto que Grandet sentia-se “feliz por poder
explorar os sentimentos da filha” (BALZAC, 2006, p. 181).
Cumpre ainda, para finalizar a aproximação entre as caracte-
rísticas da avareza e do senhor Grandet, acentuar que os limites da
mesquinhez são bem extensos, são mensurados desde as grandes
fortunas em ouro até os elementos mais básicos da existência mate-
rial, roupa, comida, etc., “a parcimônia com que se vestem, moram,
comem, estende-se aos que o cercam, sendo exigido de todos um ri-
gor e uma extrema modéstia de hábitos” (AGUIAR, 2001, p. 44). Eram

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contabilizados naquela casa os pedaços de pão e açúcar consumi-


dos, as velas para iluminar a casa e o próprio almoço era consumido,
por todos, em pé, rapidamente. O bom Grandet
nunca fazia barulho, parecia economizar tudo, até movimentos.
[...] Mãe e filha cuidavam de toda roupa da casa e empregavam
seus dias com tanto zelo nesse verdadeiro trabalho de operária
que, se Eugénie quisesse bordar uma gola para a mãe, era obri-
gada a roubar algumas horas do seu sono, enganando o pai para
ter luz. Fazia tempo que o avarento distribuía a vela para a filha
e a Grande Nanon, assim como, todas as manhãs, distribuía o
pão e os alimentos necessários para o consumo do dia. (BALZAC,
2006, p. 28, 34, 35, grifo nosso).

São abundantes os exemplos da escassez vivida ali, “ninguém


nunca via um tostão naquela casa cheia de ouro” (BALZAC, 2006, p.
122). Quando a apaixonada Eugénie desejou dar algum conforto ao
seu primo precisou travar verdadeiras batalhas domésticas, fortale-
cida por um sentimento que por breves momentos a retirou de seu
torpor e lhe conferiu uma força que ela mesma não considerava ter.
As existências de mãe e filha são trituradas pela avareza do “bom”
Grandet, não sendo exagero considerar a relação deste último como
despótica em todos os seus movimentos.
Indiferença e mecanicidade, reflexos de uma sociedade embru-
tecida, são destacados com o velho Grandet, o qual com uma paixão
e loucura desmesuradas pelo dinheiro, terá no momento da sua mor-
te a cristalização do que ele foi em toda a sua vida, pois
no momento em que o vigário foi administrar-lhe a extrema
unção, seus olhos aparentemente mortos, reanimaram-se com
a visão da cruz e da caldeirinha de prata. Quando o padre apro-
ximou o crucifixo para que ele o beijasse, Grandet fez um mo-
vimento tão medonho para agarrá-lo e esse esforço supremo
custou-lhe a vida. (BALZAC, 2006, p. 183)

Uma aproximação é possível entre Grandet e Lucien: não há ne-


les o reconhecimento de um estado de embrutecimento. O ato de

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suplantar relações familiares ou afetivas, em vista um objetivo não


era problema para eles, tanto que Grandet sentia-se “feliz por poder
explorar os sentimentos da filha” (BALZAC, 2006, p. 181), assim como
Lucien não titubeou em espoliar sua irmã e o cunhado David, como
atesta Balzac: “David cambaleou ao receber de seu cunhado esse bi-
lhete cruel: descontei três Letras em seu nome, em meu favor, com
vencimento em um, dois e três meses.” (BALZAC, 2010, p. 41).
Seria possível decodificar o velho Grandet sob o prisma do tempo
infernal do jogo ou dos libertinos? Sim, mas não do modo convencio-
nal ou óbvio, como o jogador inveterado que assume o risco de perder
dinheiro ou subjugar-se aos gastos do amor, algo impensado para um
avarento. O senhor Grandet incorporou o comportamento do jogo em
sua versão mais perversa. Sua sagacidade é demonstrada com
o olhar de um homem acostumado a extrair altos juros de seus
capitais, tal como o olhar voluptuoso, do jogador ou do corte-
são, adquire, necessariamente, certos hábitos indefiníveis, mo-
vimentos furtivos, ávidos, misteriosos que não escapam a seus
correligionários (BALZAC, 2006, p. 25).

Desse modo, o velho Grandet se movimenta no mundo dos ne-


gócios, não como um jogador cortado da tradição, para o qual seus
movimentos e lances podem ser sinônimo de derrota. Não, o bom
Grandet sabe muito bem em que lances investir com a certeza do
retorno multiplicado, ainda que às custas do espólio do outro. Assim,
ele o fez com seu sobrinho Charles, o qual ainda estava fragilizado
com a morte do pai.
Aqui, é importante destacar o caráter simbólico desse evento
que marca o romance: o senhor Grandet, da cidadezinha de Saumur,
possuía um irmão em Paris que gozava de grande prestígio e repu-
tação. No entanto, a Casa Grandet de Paris – assim denominada pelo
próprio Balzac – estava falida e mergulhada em uma dívida de dois
[2] milhões de francos. Balzac simboliza com isso um fenômeno rela-

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tivamente comum ao período: as envernizadas e gentis casas france-


sas, por vezes falidas e feridas naquilo que lhes é mais caro: o poder
transmitido pelo dinheiro. Poder esse que era detido pelo rude Gran-
det de Saumur, para quem tudo é presentificado pelo dinheiro como
imperativo normativo, pois “os avarentos não acreditam em vida fu-
tura; para eles, o presente é tudo. Essa reflexão lança uma luz horrível
sobre a época atual, quando, mais que em qualquer outra, o dinheiro
domina leis, política e costumes” (BALZAC, 2006, p.101). A ideia de
que não há vida futura para o avarento o livra de uma moralidade
calcada em qualquer forma de temor numa religiosidade e sua ação
poderia então despir-se de moralidade. Grandet, que em tudo via o
lucro, exclamou ao ver os objetos de ouro do seu sobrinho, derradei-
ra lembrança dos tempos de riqueza deste último:
- O que é isso? Exclamou o bom Grandet com os olhos acesos
diante de um punhado de ouro que Charles lhe mostrou.
- Senhor, reuni todos os meus botões, meus anéis, todas as coi-
sas supérfluas que possuo e que podiam ter algum valor [...] gos-
taria de lhe pedir que...
- Eu lhe compre isso? (BALZAC, 2006, p. 141).

Grandet não hesitou em se antecipar na compra do ouro de seu


sobrinho, assim como no futuro próximo, em uma investida certeira,
ele assumirá a dívida do irmão falecido para poder obter lucro. Con-
tudo, essa compra do ouro do sobrinho comparece nesse momento
não para destacar apenas a paixão dos avaros pelo ouro, o que já
pontuamos antes, mas para sinalizar o início do processo de embru-
tecimento a que foi submetido o sobrinho de Grandet. Assim como
Eugénie e a mãe, as quais a avareza do pai e marido haviam imiscuído
em um abatimento e um tolhimento, em Charles haveria de gestar
sua dureza e embrutecimento típicos dos avarentos, assim, a “causa
principal de sofrimento é a violência exercida sobre o homem pelo

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homem: em verdade fazer o mal é sempre, de modo direto ou indi-


reto, prejudicar outrem, logo é fazê-lo sofrer [...] o mal cometido por
um encontra sua réplica no mal sofrido por outro”. (RICOEUR, 1988, p.
25). O mal cometido por Grandet, encarnado na sua avareza provoca
réplicas diversas nos seus familiares. Em Charles reverberou-se na sua
própria avareza e, por conseguinte, a destruição de qualquer propó-
sito desprovido de interesse.
Enquanto Eugénie cristaliza o modo tradicional do amor, aquele
que tudo espera, tudo conquista e se renova com a mínima fagulha
de esperança de retorno, o autor da Comédia Humana pronuncia a
fatal realidade. Lembremos que o pai de Eugénie, o “bom Grandet”
como Balzac tanto o denomina (de modo irônico, sem dúvida), en-
gendrou um modo de se livrar do fardo que era ter em sua casa seu
sobrinho Charles: enviá-lo para as Índias. E assim ele o fez, mas não
sem antes o espoliar. A pobre Eugénie ficou docemente lembrando
o seu amado primo, com quem esteve por tão pouco tempo, mas
o suficiente para ter provocado nela um turbilhão de emoções das
quais nunca provara. E ela ficou a rezar por ele. No entanto, Charles
ainda que atribuísse seus primeiros sucessos à mágica influência
dos votos daquela moça meiga, mais tarde pelas negras, as mu-
latas, as brancas, as javanesas, as egípcias dançarinas, suas orgias
de todas as cores e as aventuras que teve em diversos países apa-
garam completamente a lembrança de sua prima de Saumur, da
casa, do banco, do beijo no corredor. (BALZAC, 2006, p. 190).

Ao invocar as diversas nacionalidades das prostitutas com quem


Charles havia estado e com as quais havia esquecido Eugénie, Balzac
desloca o problema da prostituição unicamente do eixo Europa-Pa-
ris. O fenômeno da prostituição não é privilégio dos parisienses e
muitos menos se conjuga ao capitalismo, que a tudo embrutece na
industrializada Europa do século XIX.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na prostituição, na análise de Benjamin, e no amor da jovem Eugé-


nie de Balzac, temos a coroação do acaso sobre a necessidade. A pros-
tituição na depressiva e ao mesmo tempo mágica zona do “Palácio” é
comandada pelo acaso, o qual determina que uma mercadoria (prosti-
tuta) seja vista antes ou depois por este ou por aquele cliente. Também
a pobre Eugénie acreditava que detinha algum poder sobre seu amado
Charles. Com toda sua devoção e preces sucumbiu ao perceber que ele
esteve com tantas quantas apareceram na sua frente e mais que isso:
tantas quantas representavam alguma vantagem financeira.
A ideia de totalização é sempre temerária, posto as diferenças
éticas e morais de cada tempo e lugar. Contudo, se pensarmos no al-
cance do capitalismo com sua produção em larga escala e os modos
de vida que tendem cada vez mais para a conformação padronizado-
ra, poderemos compreender que a análise da obra de Balzac confi-
gura uma “luta contra a degradação capitalista do homem” (LUKÁCS,
1999, p. 67)22. Charles, de Eugénie Grandet, acostumado à fartura e
ao dispêndio, típicos dos jovens dândis da Paris, precisa rapidamen-
te aprender os códigos da brutalidade e avareza com seu tio Gran-
det para sobreviver. E aí ele obteve êxito, pois “em contato perpétuo
com interesses, seu coração esfriou, contraiu-se, secou. O sangue dos
Grandets não renegou seu destino” (BALZAC, 2006, p. 189).
Apesar de não ser esse o objetivo do nosso trabalho aqui, pode-
mos perceber que Balzac aponta para uma ideia de natureza huma-
na. No caso de Charles, o “sangue” dos Grandets não renegou sua na-
tureza predominantemente capitalista. Entretanto, mesmo que nos
furtemos da reflexão em torno da natureza humana, o que seria um
tema extenso e complexo, podemos conjugar o elemento da avare-
za, face perversa do capitalismo. Assim, teremos que enquanto Eugé-
22 Lutte contre la dégradation capitaliste de l’homme.

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nie o espera em sua província, rememorando o tempo em que esti-


veram juntos, Charles no afã de tudo possuir, custasse o que custasse,
esqueceu-se da prima e ao lado de outras mulheres prostituiu o seu
sentimento. A prostituição velada e envernizada, comum na socieda-
de daquela época (e de outras), a saber, o casamento por interesse,
é por fim a encarnação da avareza de Charles. Estamos aqui tratan-
do das mulheres bem nascidas que tinham que aprender também a
se vender. Não como as frequentadoras das ruas do “Palácio” que se
oferecem e buscam uma presa que pareça interessante, mas aquelas
que se oferecem com toda sorte de estratégias, feições enrubescidas,
trejeitos pretendendo mostrar-se sem pretensão alguma, e com isso
casar-se com um homem que lhes garanta uma vida tranquila.
Não foi diferente com nossos ilustres personagens, seus casamen-
tos são permeados por interesses financeiros. Charles, o grande amor
de Eugénie, recebe a sentença fatal e capitalista de seu possível sogro,
o marquês de Aubrion, o qual diz que “não lhe daria a mão da filha, a
não ser que todos os seus credores fossem pagos” (BALZAC, 2006, p.
205). E por fim, a própria Eugénie casa-se, sem amar, com o Sr. De Bon-
fons, sabendo que este cobiçava tão somente sua fortuna. A confor-
mação de Eugénie parece cristalizar seu estado de embrutecimento.
Cumpre enfim acentuar a relação existente entre a noção de
avareza e seus desdobramentos em nossa análise de Eugénie Gran-
det. Obra de grande estatura na Comédia Humana, o romance balza-
quiano retoma um tema candente nas reflexões literárias: a avareza.
A grande diferença da avareza mostrada por Balzac, e a mesma de
períodos precedentes, reside certamente na conjuntura histórica e
social: a paixão pelo dinheiro é de agora em diante mediada pelo ca-
pitalismo. Frente os apelos do dinheiro, transmutado de preferência
em ouro, surge uma reflexão que parece ainda aberta: sendo o ho-
mem provido de liberdade, seria a avareza um ato livre e deliberado?

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Categorizada como pecado capital, a avareza se desenvolve na seara


da teologia largamente, entretanto, é nos limites da razão humana e
sua possível ação moral que a avareza se tornará incontornável. A re-
ligiosidade de Eugénie não fora suficiente para livrar-lhe das peias da
ganância do pai e mais que isso: a penetração da avareza, fosse pelo
hábito, fosse pelo medo, a fez reproduzir aquilo que seu pai cultivara.
A ideia de história comparece nesse artigo menos porque o
indivíduo não pode ser compreendido fora de seu tempo, do que
a compreensão de um tempo, com sua história, não pode ser com-
preendida de modo totalizante ou universal. Os feitos considerados
grandes são constructos de diversos processos econômicos, sociais
e políticos. As adversidades da juventude de Grandet forjaram cer-
tamente o seu caráter e seu comportamento, bem como a sua ação,
consciente, frise-se isso, interferiu nas ações de outrem.
Acerca das ações de outrem, destacamos nesta dissertação a
presença de Charles Grandet, sobrinho do senhor Grandet, que se
metamorfoseou durante o romance graças ao tratamento recebido
do tio e por suas incursões em terras estrangeiras. Charles certamen-
te é o exemplo modelar da capitalização e prostituição dos senti-
mentos em detrimento da avareza.

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RICOEUR, P. O mal, um desafio à filosofia e à teologia. Tradução: Maria da


Piedade Eça de Almeida. Campinas: Papirus, 1988.

ROUANET, S. P. Édipo e o anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamin. Rio


de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.

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Afluências da escrita narrativa e filosófica e
espaço literário em A Peste, de Albert Camus1

Ricardo Itaboraí Andrade de Oliveira2

Nunca se insistirá o suficiente na


arbitrariedade da antiga oposição
entre arte e filosofia. Se pretender-
mos entendê-la num sentido bem
preciso, certamente ela é falsa. Se só
quisermos dizer que cada uma des-
sas duas disciplinas tem seu clima
particular, isto sem dúvida é verda-
de, porém vago.
(CAMUS, 2010, p. 100)

INTRODUÇÃO

Primariamente, o confronto e conse-


quente divisão entre os discursos literário
e filosófico reporta, na história da cultura
ocidental, à expulsão dos poetas da cidade
ideal concebida por Platão em A República.
A determinação platônica residia na ameaça

1 Esse capítulo é parte integrante da dissertação de Mes-


trado intitulada Acontecimento, linguagem e resistência
em A Peste, de Albert Camus defendida junto ao Pro-
grama de Pós-Graduação em Letras da Universida-
de Federal de Sergipe.
2 Graduado em Letras Português-Francês pela Universidade
Federal de Sergipe (2009). Mestre em Letras pelo Progra-
ma de Pós-Graduação em Letras (UFS)

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

que a linguagem poética portava, naquele período ligada à ideia de


sedução e de ambiguidade, em contraponto ao discurso da filosofia
enquanto manifestação do pensamento verdadeiro e político. Uma
dicotomia que apresentava a literatura – à época uma poesia - como
um acontecimento puramente mimético e, portanto, não portado-
ra de qualquer tipo de discernimento. Enquanto a filosofia era vista
como um evento, eminentemente lógico, intelectual, de julgamento.
Benedito Nunes3, reconhecidamente uma das vozes mais distin-
tas em nosso país quanto aos estudos sobre os vínculos da literatura
com a filosofia, propõe que essa dicotomia entre o logos, na acepção
de uma inteligência ativa, e o poiético, enunciando a criação artísti-
ca, era, no princípio, na Grécia antiga, de ordem disciplinar, porque
a poesia e a filosofia se apresentavam, previamente, como “unicida-
des separadas – aquela pertencente ao domínio da criação verbal,
da fantasia, do imaginário, esta ao do entendimento, da razão e do
conhecimento do real” (NUNES, 2010, p. 01).
Essa fronteira, da arte com a filosofia, é desarticulada na obra de
Camus pela resistência ao arbítrio desse limite e dessa divisão, crian-
do uma abordagem narrativa, em muitas passagens repleta de prosa
poética que se apropria do pensamento abstrato tão característico
da especulação filosófica.
É preciso destacar que em seu estudo, intitulado Confluências, B.
Nunes, além de ilustrar suas reflexões com uma epígrafe retirada de
Heidegger, muito expressivo para esse contexto de relações – “Cantar
e pensar são dois troncos vizinhos do ato poético” – esclarece que o
termo filosofia

3 Benedito Nunes, poucos anos após o lançamento de A Peste, reconheceu temporã-


mente a força dramática do romance de Camus, publicando no Jornal Folha do Norte,
do Pará, o artigo Considerações sobre A Peste, uma análise primorosa dessa obra. Para o
filósofo paraense, tratava-se de “um símbolo, na medida em que traduz uma visão da
vida, submetida aos imperativos e exigências de uma outra realidade, que transcende
à habitual e que não podemos compreender” (NUNES apud CANGUSSU, 2015, p. 99).

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

designa seja o pensamento, de cunho racional, seja a elaboração


reflexiva das concepções do real e de seu conhecimento respec-
tivo. Fica estabelecido que o primeiro sentido de poesia não fica
restringido ao verso; acompanha o poético do romance, do con-
to e da ficção em geral (NUNES, 2010, p. 01).

Ressalte-se que para ele o vocábulo “filosofia” se expande desde


um sistema e elaboração reflexiva à denominação de escritos, tex-
tos ou obras filosóficas que os organizam. A escrita de Camus, mes-
mo composta em gêneros distintos como teatro, contos, romances
e ensaios dialoga no que diz respeito aos seus conteúdos e ideias
subjacentes com o filosófico. Sua obra romanesca, versa, mormente,
sobre uma outra ordem de articulação, de correspondência em seu
molde de elaboração, descrita por Nunes – para essa espécie de cria-
ção literária, da qual são representativas também a ficção de Sartre,
Beauvoir, Malraux, entre outros – como de ordem transacional, pois
se vamos de uma para a outra, quer isso dizer que, guardando
distância, podem aproximar-se entre si. A relação transacional é
uma relação de proximidade na distância. A filosofia não deixa
de ser filosofia tornando-se poética, nem a poesia deixa de ser
poesia tornando-se filosofia. Uma polariza a outra sem assimila-
ção transformadora” (NUNES, 2010, p. 13).

No entanto, as possíveis aproximações e mais estreita harmoni-


zação entre os dois campos, o da filosofia e o da literatura, não se de-
ram num salto mágico da ordem disciplinar para a ordem transacio-
nal. De acordo com Nunes, foram os primeiros românticos alemães
que, através de um segundo tipo de ordem definida por ele como
extra ou supradisciplinar,
defenderam a incorporação mútua das duas disciplinas, de tal
modo que uma fecundasse a outra. Se hesitamos entre duas
expressões, extra ou supradisciplinar para nomear esse segun-
do tipo, devemo-la à circunstância de que entre os românticos
alemães, por volta de 1795, quando Friedrich Schlegel escreveu
aforismos para o Athaeneum e Novalis projetou sua Enciclopedia,
as disciplinas todas, inclusive Filosofia e Poesia, para não falar-

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

mos da Religião, da Ciência e da Política, foram desvinculadas de


seus tradicionais moldes clássicos (NUNES, 2010, p. 07).

Essa corrente de alteração do pensamento, de uma admissão filo-


sófica da dimensão poética da linguagem – portadora de uma intuição
reveladora da realidade do mundo – antecipa a quebra da subordina-
ção hierárquica, bem como de ruptura da separação entre literatura e
filosofia. Do vínculo das partículas extra ou supra, compreendidas no
sentido suplementar, de aditivo de um saber universal, do qual a filo-
sofia sempre foi detentora de modo normativo até o classicismo, para
a ordem transacional, o idealismo germânico teve influência decisiva
em direção a uma convergência disciplinar que terá campo aberto na
realização de diversas produções literárias do século XX.
Com Goethe, a consciência introspectiva, subjetiva, aliada à
percepção extrínseca da Natureza se entrelaçam “numa só aspiração
ao infinito, fundada na reflexão do Eu. A filosofia será concebida sob
esse mesmo padrão fichtiano da extrema reflexividade do sujeito,
que se autoproduz produzindo o real, na medida em que intui inte-
lectualmente” (NUNES, 2010, p. 08). O presente trabalho, portanto,
propõe-se analisar as relações entre escrita literária e reflexão filosó-
fica no romance A Peste (1947), de Albert Camus; a partir do pensa-
mento do filósofo Benedito Nunes acerca dos vínculos dessas duas
disciplinas: a literatura e a filosofia. Para tanto, esse trabalho aproxi-
mará a fusão de linguagens desses dois campos presentes na obra do
escritor franco-argelino ao inseri-los na categoria do espaço literário
estudada por autores como Luís Alberto Brandão, Gérard Genette e
Maurice Blanchot.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

CAMUS ENTRE O MITO E A FILOSOFIA

Camus se autodescrevia como “um artista que cria mitos na medi-


da de sua paixão e de sua angústia”4 (CAMUS, 1964, p. 325). Com todo
o seu entusiasmo criador e sua inquietude reflexiva, convém ressaltar
que esse escritor transmutou mitos gregos, suas ações e condenações,
para melhor ilustrar, através da sua arte narrativa, aspectos da condi-
ção humana. Sísifo, Prometeu e Nêmesis são tomados, respectivamen-
te, como símbolos de uma situação absurda, de uma manifestação de
revolta e resistência e, por fim, de uma Nêmesis que seria consagrada
às suas reflexões e representações romanescas e dramáticas no anun-
ciado, porém jamais concluído ciclo acerca da medida, da justiça e do
amor. Deusa da proporção e da represália dos crimes,
ela [Nêmesis] representa a justiça distributiva e o ritmo do des-
tino, encarnando a indignação face ao excesso ou exagero. Ela
castiga aqueles que vivem um excesso de felicidade entre os
mortais, ou o orgulho excessivo entre os reis. Nas tragédias gre-
gas Nêmesis aparece principalmente como aquela que pune a
hibris, o pecado da desmedida (SILVA, 2011, p. 02).

O pensamento romanceado de Camus foi inspirado em grande


medida por Nietzsche, cuja obra filosófica está repleta de poesia –
o que lhe agradava e o inspirava. Existe um influxo considerável do
“filósofo-poeta nos escritos de Camus, sobretudo, durante a sua ju-
ventude. O mesmo entusiasmo-pessimista, o mesmo interesse pela
cultura clássica, pelo teatro, pelo mito” (BORRALHO, 1984, p. 182).
Todavia, em sua maturidade artístico-filosófica Camus se aproxi-
ma do niilismo nietzschiano em direção a um avivamento do seu pen-
4 “Un artiste qui crée des mythes à la mesure de sa passion et de son angoisse”. Ainda
acerca do ofício de escritor, ao tempo em que tinha o romance A Peste em curso de
criação, Camus registrou que “a primeira coisa que um escritor tem a aprender é a arte
de transpor o que ele sente para o que ele quer fazer sentir. As primeiras vezes conse-
gue-o por acaso. Mas em seguida é preciso que o talento venha substituir o acaso. Há
também uma parte de sorte na raiz do gênio” (CAMUS apud TODD, 1998, p. 327).

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samento mediterrâneo, pagão e solar, de afirmação da vida, já presen-


te em seus primeiros escritos: L’envers et l’endroit5 (1937), Noces (1938),
e também no menos conhecido La mort hereuse (publicado postuma-
mente em 1971 – identificado como gênese de O estrangeiro, embora
seja um livro autônomo no que diz respeito ao seu enredo).
À época dessas publicações, ele estava imerso no lirismo
inaugural de sua obra, animado pela leitura de André Gide (na
sensualidade hedonista presente em Os frutos da terra), e, mediterra-
neamente, no Cemitério marinho, de Paul Valéry. Os dois estavam em
consonância com as núpcias quanto à natureza do Magreb. Camus,
sobretudo inspirado em Gide, escrevia: “Nourritures terrestres [Ali-
mentos terrestres]: essa apologia das sensações” (CAMUS apud TODD,
1998, p. 59). Se é verdade que todos os escritores criam seus precur-
sores, Camus estava criando os seus. Nesse momento, anotava: “Os
acontecimentos me aborrecem, são a espuma das coisas, o mar é o
que me interessa” (CAMUS apud GONZÁLEZ, 1982, p. 11). No entanto,
não tardaria, os acontecimentos históricos do seu tempo haveriam
de lhe chamar para o combate, e, ainda assim, Camus se conservaria
fiel ao seu prospecto literário, na criação de uma obra heterogênea,
híbrida em seu conteúdo, a um só tempo, lírico e meditativo.

5 Em português: O avesso e o direito, Núpcias, A morte feliz. A propósito deste último li-
vro, lembremos Duarte Mathias na análise comparativa que realizou entre O estrangei-
ro e A morte feliz em seu estudo A felicidade em Albert Camus: “Abramos um pequeno
parêntesis sobre A Morte feliz, de que muito se falou como sendo um primeiro rascu-
nho de O Estrangeiro. Ora, esta impressão não resiste a uma leitura mais atenta. Com
efeito, para além de algumas afinidades inegáveis, tais como o insubstituível décor
argelino, a quase homonímia dos nomes principais e o relato de um crime que está na
base de ambos os livros, nada na realidade assemelha as duas obras separadas uma da
outra pelo espírito e pela forma. Não se vê, de resto, possível confronto entre os dois
romances porquanto A Morte Feliz, sem embargo do equilíbrio e da beleza de algumas
páginas, é uma obra sem envergadura, desalinhada e fragmentária” (MATHIAS, 1978,
p. 120). A homonímia da qual nos fala Mathias Duarte se refere ao nome dos dois pro-
tagonistas: Patrice Mersault, de A morte feliz e Meursault, de O estrangeiro.

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Segundo González, em A libertinagem do sol:


O mar de Camus se desamarra rapidamente de sua substância
simbólica, desses acordes heroicos que combinam sons mitoló-
gicos. Permanece o tema dos extremos que se olham: o rei-
no das coisas inertes que sempre estamos a interrogar e
a história: essas espumas que sempre recomeçam com a
luta dos homens. Essa meia distância entre a natureza e
a sociedade contêm a rocha viva de toda a literatura de
Camus (GONZÁLEZ, 1982, p. 11).

A circunstância é que a partir do seu primeiro ciclo de obras,


mantendo-se a meia distância entre o sol e a história, ele incorpora a
uma reflexão sobre a ontologia dionisíaca o que havia de apolíneo na
filosofia da Europa. Ainda de acordo com González, em Camus,
os centros da vida – o sol e a sociedade dos homens – são dois
soberanos que obrigam a uma particular vassalagem: a equidis-
tância. No entanto, saibamos fechar os olhos e pensar que classe
de lugar é essa meia distância. Não seria ela, propriamente, uma
estação literária? (GONZÁLEZ, 1982, p. 12).

É o que se analisará mais adiante acerca desse tipo de “estação”


ou mais precisamente de um espaço literário onde dialogam duas
linguagens, empenhadas por Camus quando faz do lugar, do qual nos
fala González, um tablado para a interlocução entre prosa poética e
olhar reflexivo sobre a sociedade, metaforizada no enredo de A Peste.
Em Um Elogio do Ensaio, Manuel da Costa Pinto esclarece que
a publicação praticamente simultânea de O Mito de Sísifo e O Es-
trangeiro, em 1942, estabeleceu desde cedo entre o ensaio e o
romance um nexo reforçado pelo próprio Camus – que em car-
ta a Pierre Bonnel e num fragmento dos seus Carnets (editados
postumamente) definiu os dois livros como marco zero de sua
obra literária e filosófica (PINTO, 2010, p. 05).

Em fevereiro de 1941, Camus registra em seus Carnets: “Termina-


do Sísifo. Os três absurdos estão terminados. Prelúdios da liberdade”
(CAMUS, 2014, p. 79). Havia assim finalizado o que corresponderia

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

ao ciclo da negação que continha O Estrangeiro, Calígula e O mito de


Sísifo e se orientava, em meio às suas atividades6 clandestinas de Re-
sistência à Ocupação nazista através do jornal Combat, em direção à
iniciativa libertária, para ele, da criação de A Peste e de suas represen-
tações dramáticas (Estado de Sítio e Os Justos) e de ideias (O Homem
Revoltado) que iriam compor o segmento assertivo da sua obra, de
uma concepção de vida que não estivesse voltada para a morte, a
negação ou o niilismo pessimista. O que o fez sempre se desesperar
não eram os traços repulsivos da natureza humana, os quais com-
batia de modo pessoal e político, mas a constatação das grandezas
humanas assediadas pela finitude do ser humano, portador de uma
potencialidade rúptil.
Nos remetemos aqui, sobre o desespero acima citado, à resenha
que Camus fez de A Náusea, de Sartre, em 1938, para o Alger Républicain:
O herói de Sartre talvez não tenha entendido o verdadeiro sen-
tido de sua angústia quando insiste no que lhe é repugnante
no homem, ao invés de fundar em algumas de suas grandezas
os motivos para se desesperar. Constatar o absurdo da vida não
pode ser um fim, mas apenas um começo. Não é esta descoberta
que interessa, e sim as consequências e as regras de ação que se
tira dela (CAMUS, 1998, p. 136).

Podemos extrair dessa passagem dois aspectos relevantes para


a compreensão desses dois autores. A negatividade, ou angústia
reinante, segundo Camus, presente na produção ficcional de Sar-
tre, antecipa diferenças afloradas entre os dois anos depois – até o
rompimento definitivo no início dos anos 50, com a publicação de O

6 Camus tentou se alistar como soldado, mas a tuberculose que o acometia desde 1930,
quando tinha 17 anos, o impediu. Essa doença “controlava sua vida no dia-a-dia – ele
tossia sangue, muitas vezes ficava exausto [...] foi declarado inapto para dar aulas e
para o serviço militar” (ARONSON, 2007, p. 41). Ele sofreu ao longo de toda sua vida vá-
rias recaídas, incluindo crises de hemoptise, que o obrigou a se retirar de suas tarefas
para se tratar. Por isso, durante a guerra sua atuação na Resistência se fez através dos
editoriais que escrevia no jornal clandestino Combat, do qual era editorialista e dava
voz a toda uma comunidade de resistentes.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

Homem revoltado. Os dois se conheceriam pessoalmente em junho


de 1943, na primeira encenação da peça de Sartre As moscas. É o que
nos conta Ronald Aronson em Camus & Sartre: o polêmico fim de uma
amizade no pós-guerra:
Quando Sartre estava no saguão do teatro, segundo Simone de
Beauvoir, ‘um homem jovem e moreno apresentou-se: era Albert
Camus’. Seu romance O estrangeiro, publicado um ano antes,
fora uma sensação literária, e seu ensaio filosófico O mito de Sí-
sifo havia aparecido seis meses antes. O jovem da Argélia havia
sido abandonado na França devido à guerra. Enquanto estava
convalescente de uma crise de tuberculose crônica em Le Pane-
lier, perto de Chambon, Camus fora separado de sua esposa pela
conquista aliada da África do Norte francesa e a consequente
invasão alemã da França não-ocupada, em novembro de 1942.
Ele queria se encontrar com o cada vez mais conhecido novelis-
ta e filósofo – e agora autor teatral – cuja ficção ele havia rese-
nhado anos antes, e que acabara de publicar um longo artigo
sobre os próprios livros de Camus. Foi um encontro breve. ‘Eu
sou Camus’, disse. Sartre imediatamente achou simpática a sua
personalidade. Em novembro, Camus se mudou para Paris para
começar a trabalhar como revisor para seu (e também de Sar-
tre) editor, Gallimard, e a amizade deles começou efetivamente”
(ARONSON, 2007, p. 24).

O segundo aspecto, concerne, em particular, a Camus, quando


já em 1938, portanto antes da criação do seu segundo ciclo de obras,
o primeiro estava em andamento, prenuncia o tema do absurdo, “co-
locado no final de O mito de Sísifo como um ponto de partida teóri-
co para conclusões mais práticas” (BARRETO, 1970, p. 66). Ou seja, o
tema da revolta, que viria a se constituir o segundo passo de sua evo-
lução intelectual, marcada por um receio do autor em ver o atributo
da revolta ser traduzido por revolução.
A primeira é uma filosofia de vida, enquanto a segunda é um
fenômeno político e social. L’Homme révolté é o estudo, ou como
o próprio Camus chamou-o, uma confidência a respeito dos
movimentos de revolta desde os gregos até os nossos dias. Este
estudo não é somente uma descrição, mas um levantamento

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

crítico do pensamento revoltado e de suas repercussões no


panorama político contemporâneo (BARRETO, 1970, p. 69).

Camus, que sempre recusou o rótulo de ser um autor existen-


cialista7, não obstante suas obras e aquelas do grupo de Sartre pos-
suírem temáticas em comum – cujo tema maior trata da condição
humana posta sob sua própria provação em situações conflitantes,
ou casos-limite – a literatura do franco-argelino está mais próxima
do que poderíamos chamar de um realismo-existencial, uma vez que
seu estilo e trato com a linguagem literária encerra uma tessitura
clássica de narrar carregada, paradoxalmente, de reflexões sobre a
situação humana. Em A inteligência e o cadafalso, Camus afirma que
ser clássico é repetir a si mesmo. Encontramos assim, no coração
de nossas grandes obras romanescas, uma certa concepção do
homem que a inteligência se esforça por colocar em evidência
em meio a um pequeno número de situações. Esta arte é uma
revanche, uma maneira de suplantar um destino difícil impon-
do-lhe uma forma. Aprendemos com ela a matemática do des-
tino e a maneira de nos libertarmos dela (CAMUS, 1998, p. 11).

Para William Styron, em Perto das trevas, Camus havia criado “a


obra de um escritor que combina a paixão moral com um estilo de
grande beleza e cuja visão clara atinge assustadoramente o âmago
da alma” (STYRON, 1991, p. 27).

LITERATURA E POIESIS
Sua literatura pode ser traduzida como uma ‘poiética’, cuja criação
se alicerça numa confluência da ética – tomada no sentido de uma mo-
ralidade de agir no mundo –, com uma estética inscrita na linhagem
7 Segundo Onfray, em L’ordre libertaire – la vie philosophique d’Albert Camus, “Camus
s’inscrit donc dans le lignage français des philosophes existenciels, mais surtour pas
existencialiste [...] Camus fut três tôt associé à l’existencialisme; aussi vite, il protesta de
cette assimilation” (ONFRAY, 2012, p. 13). Em grande medida as afinidades que apro-
ximavam Camus e Sartre estavam na paixão em comum pelo teatro, e na “rejeição de
todo esquema de compreensão que não se centrasse na experiência e ações huma-
nas” (ARONSON, 2007, p. 96).

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

dos moralistas franceses; na linha tênue entre a literatura e a filosofia


– como bem apontou Costa Pinto ao esclarecer que há, em sua obra,
uma “hesitação entre o ficcional e o referencial, que podemos reen-
contrar em La Rochefoucauld, La Bruyère, Pascal ou Chamfort”, e leva a
determinar a preferência temática pela ‘anatomia do coração’ (La
Rochefoucauld) em autores que são por isso chamados de mo-
ralistas [...] o moralismo pode ser entendido como a descrição de
nossa segunda natureza, essência não-fenomênica que procura-
mos penetrar segundo os ditames da honestidade e da coerên-
cia frente à precariedade de uma visão de mundo que sempre
retorna a seu suporte de carne [...] A moral é o corolário prático
da filosofia (que subordina a ação à meditação), ao passo que,
para o ensaísmo do século XVII, toda meditação já é uma ação
sobre o mundo, um ato de volição (PINTO, 1998, p. 42).

Camus acreditava na meditação como ação. Politicamente, ele


era mais um pacifista, próximo à tradição de Thoreau, Tolstói8, Gan-
dhi, ou ao perfil de um Amós Oz, para lembramos um autor contem-
porâneo. O pacifismo contido em A Peste se traduz na solidariedade
como uma arma de combate, porém
sua mensagem pacifista não foi muito bem recebida pelo meio
intelectual: no pós-guerra, onde os ânimos políticos se radicali-
zam, a mensagem contra a violência armada não foi muito bem

8 A influência do escritor russo sobre Camus vai além do pacifismo moral, como nos
mostra Todd em relação ao aspecto romanesco desse autor que tanto atraiu o franco-
-argelino. Em meio a uma séria crise de tuberculose de Camus, escreve Todd: “O escri-
tor acha que vai morrer, com sua grande obra por fazer, e pensa em Tolstoi. “nascido
em 1928. Escreveu Guerra e paz entre 1863 1869. Entre 35 e 41 anos.” Camus tem trinta
e seis anos. “Melville aos 35 anos: ‘Consenti na aniquilação’”. Nos períodos difíceis Ca-
mus reencontra seus guias romanescos, Melville e Tolstoi. Ele faz balanços:”Setembro
de 1949. O único esforço de minha vida, sendo que o resto me foi dado, e amplamente
(salvo a fortuna, que me é indiferente): viver uma vida de homem normal. Eu não que-
ria ser um homem dos abismos, esse esforço desmedido não serviu para nada. Pouco
a pouco, em vez de ter cada vez mais êxito em meu empreendimento, vejo o abismo
se aproximar.” Camus registra suas reações: “Fim de outubro de 1949. Recaída [grifo
meu]. [...] Depois de uma certeza tão longa de cura, esse retorno deveria me arrasar.
De fato, está me arrasando. Mas, depois de uma série ininterrupta de arrasamentos, fi-
nalmente me leva a rir, eis-me liberto, a loucura também é libertação.” Ele se detém em
Hawthorne, Shelley, Keats – mais um tuberculoso –, e Melville, mais uma vez Tolstói,
Fichte, Stendhal, Rimbaud, Delacroix, Maritain” (TODD, 1998, p. 516).

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

recebida pelos setores mais à esquerda. Camus, aparentemente,


se colocava contra a Revolução, por isso ele foi visto por muitos
como um anticomunista [...] Ele não batalharia nunca como um
soldado, jamais carregaria um fuzil, mas ele seria redator-chefe de
um jornal clandestino – Combat! – em que a partir da análise dos
fatos e das projeções, ele criaria novas redes de sociabilidade, que
reforçariam a oposição ao regime nazista (PINO, 2014, p. 123)

Portanto, estava longe de se propor, com sua escrita literária,


um revolucionário. Sua revolução veio por meio de uma busca e rea-
lização entre os seus atos e os fatos da história. Mas antes, desconfia-
va tanto das religiões como da história. Para Camus, compreender o
mundo era reduzir esse mesmo mundo à esfera das experiências hu-
manas. Por isso a peculiaridade de quase todas as suas personagens
ser a resistência a um drama ou destino fixos, lançando-as na maior
parte dos casos num embate contra a realidade.
Em 1958, por exemplo, escreve num prefácio – para a reedição
de O avesso e o direito (de 1937), portanto mais de vinte anos de-
pois da sua primeira e única publicação – que contém um registro
autobiográfico, bem como sua proposta estética, onde expressa, de
modo contundente e com uma elegância literária de rara beleza, sua
afeição pelos seus primeiros escritos, por sua Argélia natal e pelo
dever do artista. De acordo com Costa Pinto, “o mais importante e
comovente registro do escritor sobre sua própria obra” (PINTO, 1998,
p. 109). Lembra bem o tom dos seus Discursos da Suécia:
Cada artista mantém, assim, no fundo de si mesmo uma fonte
única que alimenta durante a sua vida o que ele é e o que diz.
Quando a fonte secou, vê-se pouco a pouco a obra endurecer,
fender-se. São as terras ingratas da arte que a corrente invisível
já não irriga. Com cabelo já raro e seco, o artista, protegido com
palha, está maduro para o silêncio, ou para os salões, que vêm a
dar no mesmo. Por mim, sei que a minha fonte está em O avesso
e o direito, nesse mundo de pobreza e de luz em que vivi por
muito tempo e cuja recordação me preserva ainda dos dois pe-
rigos contrários que ameaçam todos os artistas: o ressentimento
e a satisfação. A pobreza, em primeiro lugar, nunca foi para mim

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

uma desgraça: a luz derramava sobre ela as suas riquezas. Mes-


mo as minhas revoltas foram por ela iluminadas. Foram quase
sempre, creio poder dizê-lo sem fazer batota, revolta por todos
e para que a vida de todos seja construída na luz. Não é certo
que meu coração estivesse naturalmente disposto a esta espécie
de amor. Mas as circunstâncias ajudaram-me. Para corrigir uma
indiferença natural, achei-me colocado a meia distância entre a
miséria e o sol. A miséria impediu-me de crer que tudo está bem
debaixo do sol e na história; o sol ensinou-me que a história não
é tudo” (CAMUS, s/d, p. 12).

Segundo Aronson, a própria designação O Homem revoltado era


um marcador de atitude:
O indivíduo desafiador no centro do livro de Camus foi cons-
truído em oposição ao revolucionário. Mesmo em sua formula-
ção mais exploratória e menos polarizada, publicada em 1945,
a revolta é “um protesto obscuro que não envolve nem sistema
nem razões”; tem “alcance limitado” e “não é mais que um tes-
temunho”. A revolução “começa a partir de uma ideia clara, en-
quanto que a revolta, ao contrário, é o movimento que vai da
experiência individual à ideia” [...] Vimos Sartre se tornando re-
volucionário e Camus, um revoltado. A construção político-dra-
mático-intelectual central de Sartre foi Goetz, o líder que aceita
a violência como preço da mudança social. Camus trabalhou tão
profundamente quanto para modelar sua própria criação, o ho-
mem revoltado, para o qual a violência nunca poderia ser justifi-
cada (ARONSON, 2007, p. 198).

Um aspecto importante para a constituição da linguagem literá-


ria e filosófica, em Camus, diz respeito à prática do grupo existencia-
lista9 – conservado por Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, e do
qual Camus fez parte de 1943 ao início dos anos 1950 – que explora-
va a propensão de combinar a percepção francesa da filosofia como
9 De acordo com Samara Geske, “apesar de sempre aproximado do existencialismo sar-
treano, Camus era, de fato, adepto do “absurdismo”. Enquanto o niilismo parte da falta
de sentido racional da existência para derivar a falta de sentido da ética, Camus, ao
contrário, via no absurdo o desafio contra o qual encontrar a base das ações morais.
No famoso ensaio O mito de Sísifo (1942), em que desenvolve sua ‘filosofia do absurdo”,
a questão central é saber se, frente a ele, a alternativa lógica ou necessária não seria o
suicídio. Camus conclui que não: é a revolta, a compaixão e a liberdade. Se a filosofia
jamais fez de sua arte uma “literatura de tese”, não deixou de impregná-la profunda-
mente com os grandes questionamentos de nosso tempo” (GESKE, 2014, p. 05).

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

parte integrante de uma cultura fundamentalmente literária, apre-


sentando personagens, via de regra, portadores de um humanismo
destemido, dispostos à luta, rejeitando gestos ditos heroicos, postos
para a defrontação com situações-limite. Para J. Derrida, “tratava-se
de uma ficção literária fundada numa emoção filosófica, o sentimen-
to de existência como excesso, o ser-em-demasia, o próprio além do
sentido que dava origem à escritura” (DERRIDA, 2014, p. 50).
Para Camus, “Pensar é reaprender a ver, dirigir a própria cons-
ciência, fazer de cada imagem um lugar privilegiado” (CAMUS, 2010,
p. 51). As imagens do pensamento ou pensamento em imagens, essa
rota de mão dupla, é o espaço favorecido para a articulação da arte
narrativa com a reflexão filosófica, característica da literatura camu-
siana como resultado da intuição intelectual da qual nos fala Bene-
dito Nunes. Uma experiência de pensamento, de cognição do sujeito
que se traduzirá, na ficção modernista, da qual A Peste é egressa, em
um cogito emocional, de percepções e memórias, através de recur-
sos narrativos como o fluxo de consciência10.
Esse processo, representado primordialmente no romance mo-
dernista por James Joyce e Virginia Woolf, teve impacto também na
produção romanesca de Camus. Passagens de O estrangeiro, bem
como do relato do Dr. Rieux, se apropriam dessa técnica, que tam-
bém está presente, sobremodo, no monólogo que se constitui A
Queda, onde o elemento descritivo de todo o discurso é o pró-
prio confessor Clamence. Em A arte da ficção, David Lodge considera
que “o fluxo de consciência é a expressão literária do solipsismo, a
doutrina filosófica segundo a qual nada é necessariamente real além

10 Segundo Lodge, “o fluxo de consciência foi um termo cunhado por William James, o
psicólogo irmão de Henry James, o romancista, para definir o fluxo contínuo de pen-
samentos e sensações na mente humana. Mais tarde os críticos literários tomaram-no
emprestado para descrever um tipo específico de ficção moderna que tentava repro-
duzir esse processo” (LODGE, 1992, p. 51).

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

das fronteiras da nossa mente” (LODGE, 1992, p. 52). Todavia, o fato é


que esse artifício do fluxo nos dá acesso, por meio da apropriação do
leitor, às imagens, aos pensamentos e sensações interiores de outros
seres humanos, ainda que imaginários.
Em A Inteligência e o Cadafalso Camus escreve: “um romance nada
é senão uma filosofia posta em imagens” (CAMUS, 1998, p. 133). Essa
asserção ressalta como no texto literário camusiano as imagens ficcio-
nais permitem reflexões outorgadas no interior da narrativa. Desde os
seus primeiros escritos de juventude, compilados em O Avesso e o Di-
reito (1937) e em Núpcias (1938) há uma medida entre ideias, imagens
e formas do estilo que conduzem a produção narrativa desse ‘primeiro
Camus’ no sentido de uma fundição combinatória à qual Camus de-
nominou fusão secreta; e que poderíamos denominar ensaios líricos,
onde coabitam, em meio a descrições e falas, os pensamentos, os afo-
rismos idiossincráticos e percepções poéticas da realidade.
Dessa maneira, Camus encontrou na elaboração de sua criação
literária, sobretudo no gênero romance,
o ponto de aplicação de uma reflexão moral que, quando se
volta para uma reflexão sistemática sobre a condição humana,
descobre-se enclausurada num universo opaco, estático e vazio
– que faz de suas representações uma invenção e que confere à
sua escritura a forma de um ensaio (PINTO, 1998, p.193).

Com esse entendimento, tendo em vista algumas linhas de for-


ça, ao longo da história, da produção do gênero romance, tais quais
o romance concebido como transgressão, como registro da história
ou enquanto puro entretenimento tem-se o romance como ensaio,
ou seja, “estruturalmente, esse tipo de romance coloca no lugar do
enredo uma preocupação com a discussão de ideias, funcionando
como um ensaio com estrutura narrativa e com linguagem literária”
(NETO, 2014, p. 85).

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

Aparentemente conflitantes, o diálogo entre linguagem literá-


ria e linguagem filosófica está assegurado na ficção de Camus pela
tomada de elementos do ensaio como componentes da estrutura da
narrativa. Essa afluência faz viver, nos diálogos das personagens e no
contexto ficcional, as ideias e os temas mais recorrentes do universo
camusiano: a questão do suicídio, o sentido do exílio, a gratuidade
dos acontecimentos, a ausência de transparência do mundo, a afir-
mação da vida e a consciência constante da morte, que são também
algumas das preocupações e reflexões que esse autor elaborou em
seus dois ensaios filosóficos.
Carpeaux associa A Peste como pertencente ao domínio ensaísti-
co e romanesco porque nela se configura o espaço de criação em que
realidade e ficção apontam para a condição própria do ser humano en-
quanto animal que se enfrenta com uma estranha natureza que o sal-
va, mas também o aniquila. Trata-se, segundo o ensaísta austríaco, de
uma alegoria transparente da situação da França sob ocupação
alemã, mas passível de tantas interpretações diversas que deixa
de ser alegoria para elevar-se à categoria de símbolo. Essa posi-
ção da epidemia, entre uma praga real e, por outro lado, várias
possibilidades de praga em sentido figurativo, cria a atmosfera
onírica, de pesadelo, que enche o romance. A peste de Camus
não é uma epidemia clássica, assim como constam nos manuais
de medicina. Talvez não haja mais epidemias clássicas, assim
como não há mais guerras clássicas, da declaração das hostilida-
des até o tratado de paz. Mas salientando esse momento de im-
previsibilidade e inevitabilidade, Camus escreveu o livro clássico
sobre a peste do nosso tempo. Clássico também é o estilo da
obra, contrastando vivamente com a atmosfera angustiosa na
cidade assediada e isolada do mundo. As discussões têm caráter
de ensaios elaborados. Camus é, como Broch ou Musil, roman-
cista-ensaísta (CARPEAUX, 2014, p. 2816).

Como esses autores citados por Carpeaux, Camus é herdeiro da


tradição do romance-filosófico11 que advém, por exemplo, de ilumi-
11 Também Hölderlin – cuja poesia Camus apreciava: é do poeta de Lauffen a epígrafe
que abre L’Homme revolté, extraída de A morte de Empédocles –, buscou resultados

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nistas franceses como Voltaire, e sua novela mais exemplar: Cândido


ou o Otimismo (1759)12.
A Peste é resultado de uma manifestação de resistência do autor
que em vida participou dos acontecimentos históricos mais premen-
tes de sua época. Escrever um romance sobre o tema do exílio e da
separação, e o inerente problema do mal foi, para Camus, uma maneira
de combater a alienação e expressar sua revolta através da arte narra-
tiva. De acordo com Pino, ao analisar os Cadernos (1939-42), de Camus,
no seu segundo exílio em Orã, ele descobriu uma forma de comba-
ter: escrever um romance sobre a guerra. Embora o livro só tenha
sido publicado em 1947, a ideia e as pesquisas iniciais em relação a
esse projeto foram desenvolvidas neste caderno. A cidade das hor-
rendas construções é acometida pela peste bubônica, que funciona
como uma alegoria da guerra. Os portões da cidade são fechados;
não se permite nem a entrada nem a saída dos cidadãos, que mor-
rem em pilhas, sozinhos, no isolamento. Assim, a cidade de Orã
transforma-se agora no estrangeiro: é nela que vemos escancarada
a absurda condição humana (PINO, 2014, p. 122).

A obra ficcional de Camus está regulada por dois planos de ação


criadora: a vontade de inventividade narrativa e a urgência do pen-
samento filosófico:
Para Camus a responsabilidade do escritor está à altura do lugar
que ele ocupa no campo social, ele rejeita a obra de tese e con-
dena a literatura de propaganda, mas reúne em sua produção
híbridos. De acordo com Benedito Nunes, para os românticos alemães “o nexo entre
poesia e filosofia justificava um gênero misto de criação verbal, que nos daria obras de
mão dupla, poéticas sob um aspecto e filosóficas por outro [...] Hölderlin, um inconfor-
mista, à margem da onda romântica, escreveu Hyperion, de certo modo, um romance
filosófico, que apela para a intuição intelectual, nutriz do pacto entre a arte e a filosofia
para o idealismo romântico” (NUNES, 2010, p. 09).
12 Um conto filosófico, picaresco e satírico, onde Jean François Marie Arouet se utiliza da
arte narrativa para imprimir reflexões acerca dos embates entre o pessimismo e o oti-
mismo do jovem Cândido. Este oscila entre os ensinamentos do seu mentor Pangloss e
os acontecimentos da época, caso do terremoto de Lisboa (1755) e da Guerra dos Sete
Anos. Esses momentos históricos, bem como outros fictícios atingem o protagonista ao
ponto final de formular uma medida introspectiva, e de resistência, aos devaneios do
mundo, transcrita pela preservação de si mesmo, na seguinte frase: “é necessário cultivar
nosso jardim (Il faut cultiver notre jardin)” – última sentença dessa novela.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

o artístico, o filosófico e o social, por não acreditar na arte desli-


gada das condições sociais e culturais que a tornam possível. A
dimensão estética não se separa da dimensão ética na produção
de Camus, para quem o senso de beleza é inseparável do senso
de humanidade, e para quem a nobreza do ofício de escritor está
na resistência à opressão (SILVA, 2014, p. 117).

Por extensão, a dimensão poética da linguagem composta por


Camus, marcada pelas inserções do pensamento abstrato, funde éti-
ca e estética13 em sua criação artística, traduzindo imagens ficcionais
por um sentido moral que lançam a experiência humana em
um mundo cujos segredos não podemos penetrar, o que faz
de cada representação uma representação do vazio do qual ela
mesmo nasce. O conhecimento surge, portanto, da incompati-
bilidade entre a opacidade do mundo e nosso desejo de com-
preendê-lo” (PINTO, 1998, p. 191).

Portanto, as fronteiras entre uma escrita literária e outra filosó-


fica são espessamente sutis, ou seja, são duas atividades de criação
salvaguardadas apenas pela atmosfera particular dos seus campos e
espaços metodológicos, uma vez que sempre se entrecruzam esses
dois timbres, se implicam com intensidade formando uma unidade
discursiva no âmbito da linguagem humana.
Em uma seção intitulada “A Criação Absurda”, última parte de
O mito de Sísifo, Camus tece reflexões entre a filosofia e o romance:
O artista tanto quanto o pensador, compromete-se com sua
obra e se transforma dentro dela. Tal osmose levanta o mais im-
portante dos problemas estéticos. Ademais, nada mais útil que
essas distinções por métodos e objetos para quem está conven-
cido da unidade das metas do espírito. Não há fronteiras entre
as disciplinas que o homem emprega para compreender e para
amar. Elas se interpenetram e a mesma angústia as confunde
(CAMUS, 2010, p. 100).

13 Do ponto de vista dessa relação entre ética e estética na obra de Camus, ver o artigo de
Danilo Rodrigues Pimenta: A filosofia posta em imagens de Albert Camus. Disponível em:
https://seer.ufs.br/index.php/prometeus/article/download/8611/6847

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como conclusão diríamos que a literatura pensante14 de Camus


concilia o que descreve com o predicado de busca de sentidos para a
descrição. Desde a sua juventude já havia uma intenção clara de es-
crever uma obra filosófica e uma outra literária, registrada como pla-
no de escrita em uma passagem dos seus Cadernos de 1936, quando
ele contava 23 anos e anotava: “Obra filosófica: a absurdidade. Obra
literária: força, amor e morte sob o signo da conquista. Nas duas, mis-
turar os dois gêneros respeitando o tom particular [...]” (CAMUS, 2014,
p. 30). Trata-se, essa mescla, de uma conjunção entre os polos da re-
flexão e das imagens ficcionais proporcionando uma experiência de
pensamento que dispõe de caracterizações descritivas e meditativas
operadas no espaço da linguagem. Segundo Geske, Camus esboçava
uma concepção muito particular de literatura, baseada na relação
profunda entre a escrita literária e a reflexão filosófica. Essa concep-
ção dará origem a uma escrita por ciclos, compostos sempre por
uma narrativa, uma peça de teatro e um ensaio filosófico, a partir de
um tema comum: o absurdo, a revolta e o amor (GESKE, 2014, p. 73)

Em síntese, sua obra, por essa concepção particular da arte nar-


rativa, comporta uma simbologia cuja percepção da vida é acentua-
da pelo resgate do tecido das relações humanas a um só tempo sub-
metidas e transcendidas pela resistência aos acontecimentos, bem
como pela experiência limite que eles suscitam; ao que Benedito
Nunes, em Considerações sobre A Peste, interpreta como uma consta-
tação segundo a qual, nesse livro, Camus entende que
o homem está subjugado por um poder estranho, incompa-
tível com a segurança e a felicidade com que se desenvolve a

14 Tomamos de empréstimo a noção consagrada no Brasil por Evandro Nascimento, ao


analisar a obra de Clarice Lispector como um espaço de criação e reflexão em que
filosofia e literatura convergem em uma narrativa que não se opõe ao pensar. Sobre o
tema ver: NASCIMENTO, E. Clarice Lispector: uma literatura pensante. São Paulo: Civili-
zação Brasileira, 2012.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

vida no plano quotidiano. Esse poder está inconscientemente


presente sem que nós percebamos. Para a visão de mundo que
o escritor necessita exprimir é necessário que o homem fique
face a face com as situações extremas da experiência (NUNES
apud CANGUSSU, 2015, p. 99).

A expressão da visão de mundo, à qual Nunes remete ao olhar de


Camus está, em vista disso, refletida em A Peste pela fusão das duas lin-
guagens referidas num mesmo escopo de movimento e realização da
escrita: o espaço15 da linguagem; espaço este que ultrapassa sua mais
recorrente representação, aquela da espacialidade na narrativa onde
nem se chega a indagar o que é espaço, pois ele é dado como ca-
tegoria existente no universo extratextual. Isso ocorre sobretudo
nas tendências naturalizantes, as quais atribuem ao espaço carac-
terísticas físicas, concretas. Aqui se entende espaço como ‘cenário’,
ou seja, lugares de pertencimento ou trânsito dos sujeitos ficcio-
nais, recurso de contextualização da ação (BRANDÃO, 2013, p. 59).

Porquanto essa espécie de abordagem esteja naturalmen-


te presente em A Peste, nas vestes da cidade de Orã (cenário16 do
15 Segundo Blanchot, acerca dessa noção de espaço da linguagem: “A obra somente é
obra quando ela se converte na intimidade aberta de alguém que a escreveu e de
alguém que a leu, o espaço violentamente desvendado pela contestação mútua do
poder de dizer e do poder de ouvir” (BLANCHOT, 2011, p. 29).
16 Sobre as relações entre A Peste e a peça Estado de sítio, de Camus, a inspiração desta
encenação veio de seu amigo ator Jean-Louis Barrault (eles se conheceram durante a
guerra) que projetava escrever uma adaptação de O diário do ano da peste, de Defoe,
de acordo com os princípios do teatro de Antonin Artaud. Os dois tinham afeição pe-
los métodos do dramaturgo surrealista. Em Le thèâtre et son double, ele escreve: “assim
como a peste, o teatro é feito para lancetar coletivamente abscessos [...]. O teatro,
como a peste, é uma crise que se resolve pela morte ou pela cura. E a peste é um mal
superior porque ela é uma crise completa, à qual não sobra nada senão a morte ou
uma extrema purificação. Também o teatro é um mal porque é o equilíbrio supremo
que não se adquire sem destruição” (ARTAUD apud REY, 2002, p. 08). Barrault havia se
encantado com o talento de Camus como encenador, quando este, em 19 de março
de 1944, na residência de Michel Leiris, para uma representação em câmara de uma
peça de Picasso – Désir attrapé par la queue – fora executada por Camus. Entretanto,
segundo Pierre-Louis Rey “enquanto Barrault considerava a praga um fenômeno sal-
vador, o autor de A peste, resistente e militante do Combat, não poderia concebê-la
de outra maneira senão como um símbolo do mal. Mesmo correndo o risco de dar
subsídios àqueles que julgam o conjunto da obra de Camus como sendo coberto de
boas intenções, é possível dizer que ao discípulo fiel de Artaud se opunha o filósofo e

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

embate entre a comunidade e a epidemia), o tipo de espaço que


nos propomos aqui sondar diz respeito a um outro, mais subjetivo,
semiótico, da linguagem que remete o espaço literário à sua condi-
ção simbólica. Onde os signos dialogam como parte significativa da
comunicação, o que no dizer de Genette faz a linguagem se espa-
cializar “a fim de que o espaço, nela, transformado em linguagem,
fale-se e escreva-se” (GENETTE, 1972, p. 106).
Camus tira partido do diálogo de duas linguagens, a saber: a
linguagem poética e a linguagem filosófica para, assim, imprimir o
agenciamento desses dois modos, formando uma força textual teci-
da a partir da confluência da literatura com a filosofia. Faz-se necessá-
ria, dessa forma, uma territorialidade literária cuja função é se armar
como estrado para a realização dessa simbiose, encarnada pela espa-
cialidade da linguagem. Mais uma vez, recorremos a Brandão quan-
do o mesmo afirma que
a feição espacial da literatura se traduz na alegação de que há
uma espacialidade própria da linguagem verbal. Afirma-se que a
palavra é também espaço. Gérard Genette, no artigo ‘La Littéra-
ture et l’espace`, chega a advogar que a linguagem [verbal] pa-
rece naturalmente mais apta a exprimir as relações espaciais do
que qualquer outra espécie de relação e, portanto, de realidade”
(BRANDÃO, 2013, p. 63).

A realidade que se espacializa na linguagem se materializa por


intermédio da palavra enquanto manifestação sensorial, permitindo
uma concretude do signo verbal. Trata-se, portanto, de um espaço
moralista. A peça, que já estava a perigo pela inspiração diversa de seus dois autores,
tinha mais a perder do que a ganhar, quando se acrescentaram as colaborações con-
ceituadas, mas excêntricas, de Honnegger para a música e de Balthus para os cenários.
Diferentemente de Calígula e de O mal-entendido, Estado de sítio teve que ser escrita
rapidamente, e o título definitivo foi encontrado um pouco antes da representação.
“Título da peça. ‘A inquisição em Cádiz. Epígrafe: A inquisição e a Sociedade são as duas
pragas da verdade.’ Pascal”, escreve Camus durante o verão de 1948. A longa prepara-
ção de A peste (estudos dos sintomas da doença e das atitudes que ela desencadeia
nos habitantes de uma cidade, reflexão sobre o flagelo do totalitarismo) serviu para a
peça, a ponto de ela aparecer, apesar da negativa de Camus, como uma adaptação do
romance” (REY, 2002, p. 09). A peça de Camus é dedicada a Jean-Louis Barrault.

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

mais conotado que denotado. Em última instância, transfigurado em


uma metáfora espacial, um espaço literário caracterizado pela possi-
bilidade de nele mesmo se expressar toda espécie de discurso, seja
ele político, estético ou histórico. O literário, “não cria um mundo de
representações apartado do mundo empírico, mas abre um interva-
lo [...] tempo/espaço em que a literatura se afirma como literatura
sendo sempre mais do que literatura porque [vai] apontando para
esferas do conhecimento a partir das quais o signo literário alcança
a representação” (BARBOSA apud PINTO, 1998, p. 87). Assim, a litera-
tura “textualiza significados históricos, psicológicos e sociais, cria um
espaço ficcional” (BARBOSA, 1998, p. 87).
Nessa perspectiva, o espaço assume uma função ou pode ser
pensado fora das categorias comuns, uma vez que a linguagem se
reveste da sua representação espacial mais própria. Para Brandão,
o espaço passa a ser tratado não apenas como categoria iden-
tificável em obras, mas como sistema interpretativo, modelo de
leitura, orientação epistemológica. Simultaneamente à amplia-
ção do escopo, e coerentemente com a tendência não mimética
baseada na concepção autotélica de linguagem, passa-se a falar
de maneira bastante genérica, e usualmente metafórica, em “es-
paço da linguagem” (BRANDÃO, 2013. p. 25)

A justaposição entre ficção e reflexão não ocorre disposta de um


modo seriado a cada parágrafo lido em A Peste. Antes, é preciso falar
em uma intermitência desse agenciamento no texto. Com efeito, ou
há fusão dos dois procedimentos, ou são postos em relevo de forma
isolada, ainda que o isolamento do aspecto reflexivo concorra para
uma quase ocultação do mesmo no decorrer da narrativa.
A apartação da linguagem poética fundida em prosa é mais evi-
dente, por exemplo, na descrição de uma paisagem sitiada como tra-
dução sensorial da atmosfera da cidade empesteada que se encontra
na seguinte passagem:

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

Com o crepúsculo que chegava bem mais rápido nesta época,


as ruas ficavam desertas e só o vento soltava lamúrias contínuas.
Do mar agitado e sempre invisível, vinha um cheiro de algas e
de sal. Esta cidade deserta, branca de poeira, saturada de odores
marinhos, toda sonora dos gritos do vento, gemia então como
uma ilha infeliz (CAMUS, 2017, p. 158).

Em contrapartida, pode-se constatar, numa mesma ocasião, a


confluência das linguagens referidas, em registros típicos da crônica
que se inserem no mesmo espaço literário onde se inscrevem pensa-
mentos que tratam do amor em Orã:
Há cidades e países em que as pessoas, de vez em quando, sus-
peitam que existam mais alguma coisa. Isso, em geral, não lhes
modifica a vida. Simplesmente houve a suspeita, o que significa
algo. Orã, pelo contrário, é uma cidade aparentemente sem sus-
peitas, quer dizer, uma cidade aparentemente moderna. Não é
preciso, portanto, definir a maneira como se ama entre nós. Os
homens e as mulheres ou se devoram rapidamente, no que se
convencionou chamar ato de amor, ou se entregam a um longo
hábito a dois. Também isso não é original. Em Orã, como no resto
do mundo, por falta de tempo e de reflexão, somos obrigados a
amar sem saber (CAMUS, 2017, p. 08).

Percebe-se a força da dissimulação de extratos representativos


de reflexões instituídas no interior da narrativa através da costura
que Camus faz de descrições objetivas, intercaladas com o encaixe
de sentenças cuja concentração de ideias e sentimentos despontam,
como no seguinte fragmento:
O narrador sabe perfeitamente quanto é lamentável não poder
relatar aqui algo de verdadeiramente espetacular como, por
exemplo, algum herói altruísta ou alguma ação brilhante, seme-
lhantes aos que se encontram nas velhas histórias. É que nada é
menos espetacular que um flagelo e, pela sua própria duração,
as grandes desgraças são monótonas (CAMUS, 2017, p. 126).

Ou ainda neste outro:


Ele sabia o que a mãe pensava e que nesse momento ela o ama-
va. Mas sabia também que não é grande coisa amar um ser, ou

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| Literatura e Filosofia: curtos-circuitos |

que, pelo menos, um amor nunca é bastante forte para encon-


trar a sua própria expressão. Assim, sua mãe e ele amar-se-iam
sempre em silêncio (CAMUS, 2017, p. 201).

Tanto a sentença “pela sua própria duração, as desgraças são


sempre monótonas”, quanto “um amor nunca é bastante forte para
encontrar a sua própria expressão”, se destacam na narrativa como
aforismos, pois encerram um pensamento de ordem particular e se
sobrecarregam de um valor moral. Que valor é esse? É o valor do
amor em seu silêncio, ou de uma desgraça que nunca passa. São va-
lores tomados como premissas, pois tomam partido de situações e
sentimentos da vida para a reflexão dela mesma.
Os aforismos são exemplos de proposições que Camus inse-
re em sua obra seguindo a tradição de moralistas franceses como
Chamfort e La Rochefoucauld, autores cuja influência, como já res-
saltamos, foram decisivas para a sua criação artística17. Mas o que é
uma máxima quando se quer coroar o que acontece no sentido de
ilustrar um pensamento por imagens? Ou de possibilitar a permissão
ao entendimento, à compreensão da realidade por vias indiretas da
linguagem, posta ao leitor como uma via de mão dupla. O que é, com
efeito, uma máxima18?

17 Costa Pinto, tratando da questão do narrador nos romances de Camus, sublinha esse
traço de linhagem literária à qual o autor pertence, através de um ponto de análise de
Roger Quilliot em Présentation de La Peste: “Em A Peste, a monotonia trágica dos fatos,
que transforma suas personagens (Tarrou, Rambert, Grand) em “mimos”, é conseguida
pela auto-aniquilação do narrador, que só descobrimos ser o dr. Rieux no último ca-
pítulo. “Num certo sentido, ele é todas as personagens” anotou Camus sobre Rieux à
margem do manuscrito do romance. Essa identidade entre Rieux e as demais persona-
gens, porém, é uma identidade negativa, pois cada uma delas veste uma máscara que
a despersonaliza, de modo a melhor submetê-la ao “olhar curioso do moralista, hábil
em distinguir as atitudes comuns das reações de grupo ou de classe” (Quilliot). E isso
só é possível porque a voz de Rieux se destaca de seu corpo, porque ele desaparece
sob a ação do autor/narrador” (PINTO, 1998, p. 139).
18 Ainda de acordo com Costa Pinto “o exemplo singulariza as sentenças, transforman-
do-as em máximas que, a partir de Montaigne, tendem a compor um quadro mais
fragmentário. É como se, tendo os Ensaios estabelecido o horizonte de representações
próprio ao moralista, os aforismos de La Rochefoucauld ou Vauvenargues pudessem

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Simplificando, podemos dizer que é uma equação em que


os signos do primeiro termo se encontram de modo exato no
segundo, mas numa ordem diferente. Por isso a máxima ideal
sempre pode ser invertida. Toda a sua verdade está nela mesma
(CAMUS, 1998, p. 37).

Como uma fórmula numérica, seguindo a sua observação, bem


algébrica, trata-se de um acontecimento curioso que a máxima “te-
nha sido cultivada com tão rara felicidade na França e particularmen-
te no século XVII, que é o século dos matemáticos” (1998, p. 37).
Portanto, uma vez mais, recorremos ao pensamento de Genette
ao afirmar que diante da velha retórica, deve-se esperar não o seu con-
teúdo, “mas a ideia paradoxal de Literatura como uma ordem baseada
na ambiguidade dos signos, no espaço exíguo, mas vertiginoso, que se
abre entre duas palavras do mesmo sentido, dois sentidos da mesma
palavra: duas linguagens da mesma linguagem” (GENETTE, 1972, p. 212).
Dado o exposto, entendemos que a linguagem, tornada espaço
singular do espectro literário, nela deflagrado, acolhe o diálogo, no
estrado textual, do poético e do reflexivo. Um diálogo transfigurado
em pensée reveuse, ou, em outras palavras, como a exposição de um
pensamento imagético.
O uso da imaginação ou da faculdade cognitiva torna possível,
cada qual, ser acessada em um instante particular. Factível ir de uma a
outra quando necessário, em movimentos recíprocos, porém isolados
como processos psíquicos. Ocorre que no texto literário camusiano
há, de modo intermitente, uma confluência no âmbito da linguagem,
desse território onde se entrelaçam reflexões e imagens ficcionais, no
interior de uma interlocução entre aspectos descritivos e filosóficos.
então se entregar a sua dispersão formal sem por isso se confundirem com o legado
de estóicos e céticos – e daí a importância de se estudar Montaigne para compreen-
der o que são o ensaio e sua variante mínima (os aforismos), pois os Ensaios parecem
concentrar quase todos os desenvolvimentos posteriores dos moralistes. Ao mesmo
tempo, os aforismos narrativos de La Bruyère ou Chamfort demonstram a relação ín-
tima que há entre a máxima e a “prosa narrativa” (Lafond) do exemplo – apartando-se
ambos do caráter impessoal e generalizante da sentença” (PINTO, 1998, p. 102).

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Trata-se de um movimento apofático, na medida em que o tex-


to literário denega um procedimento comum, inato em nosso coti-
diano, de apartação dos dois processos psicológicos. Mas que se re-
constituem numa interface conjunta, quando acessada a leitura, nas
articulações das narrativas criadas por Camus. Um espaço no qual
prospera um acontecimento: aquele da filosofia, plasmada às ima-
gens ficcionais, formalizando a “narrativa como acontecimento que,
enquanto tal, prepara, em sua dinamicidade, o espaço-texto como
abertura para o por vir” (BEZERRA, 2017, p. 05). Assim, torna-se, ela
mesma, a narrativa, um acontecimento19 da linguagem.

19 Para Blanchot, “o caráter narrativo não é percebido quando nele se vê o relato verda-
deiro de um acontecimento excepcional, que ocorreu e que alguém tenta contar. A
narrativa não é o relato do acontecimento, mas o próprio acontecimento, o acesso
a esse acontecimento, o lugar aonde ele é chamado para acontecer, acontecimento
ainda por vir e cujo poder de atração permite que a narrativa possa esperar, também
ela, realizar-se” (BLANCHOT, 2016, p. 08).

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