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Literatura

Portuguesa

Autores
Stélio Furlan
José Carlos Siqueira

2008
© 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos
direitos autorais.

F985 Furlan, Stélio; Siqueira, José Carlos. / Literatura Portuguesa.


/ Stélio Furlan; José Carlos Siqueira. — Curitiba : IESDE
Brasil S.A. , 2008.
248 p.

ISBN: 978-85-7638-872-2

1. Literatura Portuguesa. 2. História e Crítica. 3. Movimentos


Literários. 4. Poesia. 5. Prosa. I. Título.

CDD 869.09

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Sumário
Trovadorismo: 1198-1418 | 7
Contexto histórico | 8
A poesia trovadoresca | 10
A Cantiga de Amor | 12
Cantiga de Amigo | 14
Cantigas de Escárnio e Maldizer | 16
Principais trovadores | 18
A permanência do Trovadorismo | 18

O Humanismo | 25
O homem como centro do universo | 26
O Humanismo em Portugal | 27
Gil Vicente (c. 1465-c. 1537): a grande figura literária do Humanismo | 29

Classicismo: 1527-1580 | 45
A Renascença Portuguesa | 45
Os gêneros clássicos | 46
Épica: Os Lusíadas, um prodígio arquitetônico | 47
Os Lusíadas: episódios | 50
Conclusão sobre Os Lusíadas | 56
A lírica camoniana | 57
Os sonetos de Camões | 58
Amor com engenho e arte | 60

Barroco (1580-1756) | 65
Pode-se falar em Barroco? | 65
Poesia barroca portuguesa | 67
Prosa barroca portuguesa | 71
Conclusão | 76

Arcadismo (1756-1825) | 79
A reação contra o Barroco literário | 79
Principais lemas dos poetas árcades | 82
Bocage e o Arcadismo | 86
Conclusão | 87

O Romantismo: prosa | 95
Romantismo e burguesia | 95
A sensibilidade romântica e o gênero romance | 96
O estabelecimento do liberalismo em Portugal e o romance | 100
A sedimentação do romance em Portugal | 111

O Romantismo: poesia | 121


A arte como mercadoria | 121
A sensibilidade romântica e a poesia | 123
As idéias liberais, o ultra-romantismo e o nacionalismo | 127
A originalidade e a autenticidade tornadas convenção | 135

O Realismo (1865-1890) | 141


O “realismo” como arma de crítica social e política | 141
A poesia realista | 148
A prosa realista | 153

Simbolismo | 163
Portugal simbolista | 169
O simbolismo português | 170
Modelos para o Modernismo | 177

O Saudosismo | 183
A Sociedade Renascença Portuguesa e o Saudosismo | 183
Florbela Espanca (1894-1930): uma poesia em suspensão | 190
Precursores do modernismo | 193

Modernismo:geração de Orpheu | 197


A revista Orpheu | 197
Fernando Pessoa (1888-1935) | 199
Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) | 208
Almada Negreiros (1893-1970) | 209
A epopéia portuguesa moderna: de Os Lusíadas a Mensagem | 211

Modernismo Presencista | 215


O direito à liberdade de criação | 215
A república e a ditadura de Salazar | 216
A revista Seara Nova (1919-1974) | 216
A revista Presença (1926-1940) | 218
A autonomia da literatura e sua relação mediada com a realidade | 226

Gabarito | 231

Referências | 239
Apresentação
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Carlos Drummond de Andrade
“Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: ‘Navegar é preciso,
viver não é preciso’. Quero para mim o espírito (d)esta frase, transformada a
forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessá-
rio é criar”: esta conhecida passagem de Fernando Pessoa serve-nos de mote
para justificarmos as travessias e os percursos pelo vasto espaço da Literatura
Portuguesa.
O objetivo principal é o de compreender elementos para o estudo crí-
tico-produtivo das manifestações canônicas da Literatura Portuguesa, entre
1189 e 1915, situando-a no contexto da literatura ocidental.
Como estratégia de leitura, vamos centrar nosso investimento discur-
sivo e investigativo no que singulariza as diferentes manifestações literárias
do medievo ao início do século XX, a saber:
– Trovadorismo (1198-1418),
– Humanismo (1418-1527),
– Classicismo (1527-1580),
– Barroco (1580-1765),
– Arcadismo (1756-1825),
– Romantismo (1825-1865),
– Realismo (1865-1890),
– Simbolismo (1890-1915),
– Saudosismo (a partir de 1912), e
– Modernismo (a partir de 1915).
Você deve se perguntar o porquê do ano 1189, o porquê do ano 1915.
Utilizaremos essas datas menos como marcos definitivos que como balizas
temporais para localizarmos, entre aproximações e distanciamentos, cada
arte poética ao longo desse recorte temporal.
Alguns estudiosos das origens da Literatura Portuguesa consideram
1189 um dos anos prováveis da escrita da “Canção da Ribeirinha”, de Paio
Soares de Taveirós, a quem se atribui o primeiro poema escrito em língua
portuguesa. Outros pesquisadores consideram a publicação da revista
Orpheu, em 1915, com a participação fundamental de Fernando Pessoa,
o marco inicial do Modernismo em Portugal. Se tais datas não passam de
convenções (não consensuais, diga-se de passagem), não é menos certo di-
zer que derivam de um esforço reflexivo e investigativo sobre as condições
de possibilidade da textualidade lusitana.
Em última instância, desejamos que estas páginas sobre Literatura
Portuguesa estimulem a reflexão sobre a importância da Literatura como
um modo privilegiado de conhecimento, como uma maneira especial de ver
e dizer o mundo. E também que possam incentivar o contato prazeroso com
o Texto, ao que chamaremos fruição textual.
Em A Lírica Trovadoresca, Segismundo Spina escreve que para se
compreender a Literatura da Idade Média é necessário amá-la. Pode-se
acrescentar que não só a compreensão da literatura medieval, mas a Litera-
tura Portuguesa de modo geral, das primeiras cantigas de amor e de amigo
às textualidades contemporâneas, solicita um envolvimento amoroso.
Nesse sentido, consideramos oportuno iniciarmos a nossa travessia
literária com uma reflexão sobre a arte de amar (ars amatoria), tema por
excelência do lirismo trovadoresco medieval.
Stélio Furlan e José Carlos Siqueira
O Romantismo: prosa
José Carlos Siqueira
Não busco nesta vida glória ou fama:
Das turbas que me importa o vão ruído?
Hoje, deus... e amanhã já esquecido
Como esquece o clarão a extinta chama!

Antero de Quental

Romantismo e burguesia
A burguesia fede
A burguesia quer ficar rica
Enquanto houver burguesia
Não vai haver poesia

A burguesia não repara na dor


Da vendedora de chicletes
A burguesia só olha pra si
A burguesia só olha pra si
A burguesia é a direita, é a guerra

A burguesia fede
A burguesia quer ficar rica
Enquanto houver burguesia
Não vai haver poesia

(CAZUZA; NEVES; ISRAEL, 2008)


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Os versos acima fazem parte da canção “Burguesia”, de autoria de Cazuza, Ezequiel Neves e George
Israel. A contundente crítica que aí aparece à classe burguesa, atribuindo a ela a impossibilidade de ha-
ver poesia no mundo, não é, todavia, uma novidade. Já no século XIX, os escritores faziam fortes críticas
ao materialismo burguês e à sua falta de humanitarismo. No entanto, assim como podemos conside-
rar uma contradição um artista como Cazuza, nascido e criado no cerne da cultura burguesa, atacar tão
frontalmente a burguesia, aqueles que criticavam os burgueses no século XIX na sua maior parte provi-
nham desta mesma classe social. Para entender isso, é preciso que conheçamos melhor o que foi o mo-
vimento romântico.

A sensibilidade romântica e o gênero romance


As palavras romance e romantismo têm nos dias de hoje diversos sentidos e, quando se trata
de história da literatura, podem confundir o leitor desavisado. Se no sentido corriqueiro esses termos
se referem a tudo aquilo que diz respeito ao amor entre duas pessoas, na historia literária são coisas
bem diferentes.
A palavra romance diz respeito a um gênero literário de origem bastante polêmica. Alguns críti-
cos consideram que sua origem remonta às novelas de cavalaria da Idade Média, ou mesmo à epopéia
clássica dos gregos, enquanto outros defendem que é um gênero eminentemente burguês e, portanto,
próprio do período dos séculos XVIII e XIX, ligado ao movimento literário romântico.
Sem entrar no debate em torno de sua origem, vale lembrar que o romance foi a forma literária
em prosa que mais fez sucesso no século XIX. Como todos sabemos, um romance é a narração por escri-
to de uma história de certo fôlego, que apresenta uma intriga central e diversas outras paralelas, sendo
que, ao caminhar para o seu final, as pequenas intrigas se fecham para que se feche finalmente aquela
que é central. Esse modelo surgiu nos folhetins do século XIX.
Folhetim era o nome que se dava a uma história publicada em fascículos num jornal, tal qual são
transmitidas as novelas televisivas de hoje, que, por sinal, tiveram no folhetim romântico seu mode-
lo. Do mesmo modo que as novelas televisivas, o romance folhetinesco romântico caracterizava-se por
apresentar uma história de apelo popular, que colocava em cena a vida burguesa e, em geral, atacava o
materialismo e elegia o amor como a solução para todos os problemas da vida.

Origens do romantismo
Mas, para melhor compreensão do que dissemos acima, precisamos entender o que na história
da literatura designamos de “romantismo”. O termo se reporta a um movimento literário específico, que
tem início, na Europa, no final do século XVIII e perdura por quase todo o século XIX. O romantismo foi
uma nova forma de conceber e sentir o mundo. Daí ser possível falar em “sensibilidade romântica”, não
no sentido corriqueiro de sentimento amoroso, mas no sentido de uma nova visão de mundo, surgida
no final do século XVIII com a ascensão da burguesia na França, na Inglaterra e na Alemanha. Para en-
tender isso, precisamos lembrar que no século XVIII era a aristocracia que dominava política e cultural-
mente na Europa. Toda ordem social estava vinculada à aristocracia e ao seu modo de ver o mundo. O
trabalho manual e a preocupação financeira, por exemplo, eram aspectos desvalorizados da vida por
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um aristocrata, já que não precisava se preocupar em trabalhar para enriquecer, pois sua riqueza era
herdada. Além disso, detinha uma vasta cultura literária e filosófica de fundamentação clássica greco-
romana, só possível de ser adquirida por meio de uma educação que demandava muito tempo.
A burguesia, como não tinha títulos de nobreza e nem herdara terras do rei, conseguiu ascender
graças ao trabalho e à especulação financeira, portanto lidando com duas coisas que a nobreza des-
prezava: trabalho e administração do dinheiro. No final do século XVIII, a Inglaterra gerou o que ficou
conhecido como a “revolução industrial”, que significou o aprimoramento do trabalho em série e o sur-
gimento das fábricas. Isso possibilitou a ascensão econômica da classe burguesa naquele país e a per-
da do poder da aristocracia. Na França se deu algo semelhante e, em 1789, quando ocorreu a Revolução
Francesa, a aristocracia foi deposta e a burguesia subiu ao poder. Na Alemanha, a burguesia também se
uniu e fez com que o rei perdesse poder. Portanto, no início do século XIX, a classe burguesa era quem
governava os mais importantes países da Europa daquele momento e toda a produção material e cul-
tural passou a ser dirigida por e para ela. A nova ordem social gerou um novo quadro de valores, que no
âmbito da literatura ganhou a designação de movimento romântico.

A Revolução Industrial possibilitou a ascensão da


burguesia.

A literatura que passava a ser produzida para o burguês não estigmatizava o trabalho e rejeitava
a cultura clássica greco-romana, optando por um conjunto de valores cristãos que estariam mais pró-
ximos de sua realidade. Portanto, houve a troca do panteão de deuses clássicos pelos santos e mártires
do cristianismo. Passou-se também a valorizar a cultura popular, já que a burguesia precisava das clas-
ses populares para constituir o estado-nação, isto é, um Estado que, para além de ter uma demarcação
territorial e política, como era o Estado aristocrático absolutista, tivesse agora uma identidade cultural
que lhe garantisse a coesão. A burguesia precisava do operário para produzir em suas fábricas, e do ci-
dadão patriota para lutar em suas guerras. Enquanto a aristocracia agia pela coerção, obrigando os súdi-
tos ao trabalho e à guerra, a burguesia passou a dominar através da ideologia, induzindo o trabalhador
a acreditar que seu salário é justo e convencendo a todos os diferentes grupos sob sua jurisdição que
pertenciam a uma mesma coisa, chamada nação, e que deviam lutar por ela. Daí uma das características
do romantismo ser o nacionalismo.
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Todavia, a sensibilidade romântica é marcada ainda por um outro aspecto que diz respeito à con-
cepção de sujeito. Como a especulação financeira e a exploração do trabalho foram os principais meios
de ascensão da burguesia, houve no interior da própria burguesia uma forte reação de viés espiritual
que resistia à redução da vida a uma dimensão materialista. Tendo em vista que a Igreja católica e as di-
versas igrejas protestantes tinham no acúmulo do capital sua prática mais constante, os românticos fo-
ram buscar, tanto no cristianismo medieval ou na igreja primitiva, quanto nas religiões orientais, novos
paradigmas espirituais. A espiritualidade passou, portanto, a ser algo extremamente valorizado entre
os escritores e artistas românticos, funcionando como forma de resistência à mercantilização das rela-
ções humanas. Tal qual a espiritualidade, também o amor passou a ocupar um lugar de resistência, prin-
cipalmente porque o casamento funcionava ainda como uma negociação entre famílias, uma maneira
de manutenção ou de ascensão social. Daí a grande importância que o sentimento amoroso ganhou
nos textos literários desse período.

O gênio romântico era solitário, sonha-


dor e conectado com o universo, tal
qual O viajante Perante o Mar de Nuvens,
de Caspar David Friedrich.

A construção do sujeito romântico


Como a burguesia pregava o princípio do self-made-man,1 o império do sujeito passa a ser a tô-
nica de sua visão de mundo. O que importa é garantir a liberdade do sujeito e a partir daí tudo correria
bem e a ordem social se estabeleceria de forma justa. Com relação à economia, desenvolvia-se o postu-
lado básico do liberalismo, isto é, o livre-comércio: permissão para a livre circulação de produtos, pois o
mercado automaticamente se equilibraria. No âmbito da literatura, isso se expressa de modo peculiar.
Os românticos negavam a tradição clássica e postulavam a originalidade e a transgressão como referên-
1 Self-made-man, isto é, “o homem que se faz sozinho”, é o princípio que norteou a ideologia liberal, partindo do pressuposto de que a socie-
dade funcionaria perfeitamente se cada um tivesse seus direitos garantidos e procurasse fazer o seu próprio destino, o seu próprio negócio.
É o mesmo princípio que inspirou o “sonho americano”, fazendo com que cada americano do século XX se acreditasse capaz de se tornar um
milionário. Desconsiderava-se, entretanto, que uma nação não pode ser constituída por uma população de milionários. Economicamente
falando, para a existência de um único milionário é necessário um correspondente exército de pobres e miseráveis. No caso americano, vale
lembrar o romance Por um milhão de dólares (1934), escrito por Nathaniel West (1903-1940), que foi roteirista de Hollywood e nesse livro ironiza
de forma muito inteligente o princípio do self-made-man.
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cias maiores para se julgar o valor de uma obra literária. Ser verdadeira, autêntica, sincera, sem se pren-
der a normas preestabelecidas, eis o maior valor que uma obra poderia ter, pois ela estaria expressando
a subjetividade do seu autor — a experiência específica e única de um sujeito, que não poderia ser vei-
culada caso fossem respeitadas as convenções características da literatura clássica. Em outras palavras,
a ordem do dia era deixar a imaginação cavalgar livremente, libertar-se das regras da arte, entregar-se
somente à intuição. Isso gerava um grave problema, pois, sem os critérios clássicos dos manuais de po-
ética e retórica, qualquer um poderia ser escritor e se considerar original. Como, então, julgar o valor de
uma obra literária?
Surgiu, entretanto, a noção de “gênio”, que diz respeito ao sujeito inspirado, que teria um vínculo
especial com toda a ordem do universo, enfim, o eleito, uma espécie de messias da arte. O gênio literá-
rio escreveria a grande obra. Se qualquer um poderia aprender a escrever e se tornar um bom escritor,
somente o gênio ficaria para a posteridade, pois a genialidade não se aprendia, era uma dádiva. E como
reconhecer o gênio? Só a posteridade poderia dizer. Portanto, os critérios para julgar uma obra românti-
ca eram bastante subjetivos, dizendo respeito à sua originalidade e a sua transgressão, oriundas de um
gênio literário.

A mistura de gêneros e de estilos era um dos postulados do romantismo, como podemos ver no Castelo
da Pena, em Sintra, Portugal.

Recapitulando: a valorização do trabalho, da tradição cristã e de toda e qualquer forma de espi-


ritualidade, do sentimento amoroso, da cultura popular, da identidade nacional, da originalidade, da
transgressão, do gênio literário, gerou os elementos distintivos do movimento romântico. Mas, se sabe-
mos o que é o gênero romance e o que foi o movimento romântico, cabe agora perguntar como ambos
chegaram a Portugal, que não era dos países mais desenvolvidos da Europa naquele momento. Na ver-
dade, Portugal ficou até o início do século XIX à margem da industrialização que acontecia na Europa.
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O estabelecimento do liberalismo em Portugal e o romance


No início do século XIX, Portugal sofreu graves crises políticas. A primeira delas diz respeito à inva-
são de Napoleão àquele país. Com o final da Revolução Francesa e a subida ao trono de Napoleão, o im-
perador francês adotou uma política expansionista e passou a invadir vários países europeus. Em 1807,
com os exércitos franceses nas fronteiras de Portugal e sem que este país possuísse força para resistir à
investida napoleônica, a Inglaterra, principal adversária da França nesse momento, resolveu patrocinar
a fuga da família real portuguesa para o Brasil, que aqui chegou em 1808.

Apesar de ter posto fim à Revolução Francesa, Napoleão era um


ídolo dos liberais.

Durante mais de uma década a família real ficou no Brasil, enquanto Portugal era administrado
pelos ingleses. Todavia, em 1820, a emergente burguesia portuguesa exigiu o retorno da família real e
o estabelecimento de uma monarquia constitucional. Até ali, Portugal fora uma monarquia absolutis-
ta, na qual todo o poder estava nas mãos do rei. Em uma monarquia constitucional, como reivindicava
a burguesia, o poder seria descentralizado, pois haveria uma Constituição, à qual até mesmo o rei esta-
ria subordinado.
O Romantismo: prosa | 101

D. João VI retornou a Portugal, mas logo morreu em 1826, o que gerou uma crise sucessória com
a disputa entre o nosso D. Pedro I (em Portugal, D. Pedro IV), legítimo herdeiro ao trono, e seu irmão D.
Miguel. Resultando numa traumática guerra civil, a disputa durou até 1834, quando finalmente D. Pedro
venceu o irmão e instaurou uma monarquia constitucional de cunho liberal no país.

A disputa pelo trono entre os irmãos D. Pedro e D. Miguel


merecia muitas charges nos jornais da época.

Em meio a tais conflitos, o romance em forma de folhetim começava a freqüentar as páginas dos
jornais portugueses. Primeiramente na forma de textos traduzidos, geralmente da literatura francesa,
e posteriormente elaborado por escritores portugueses. O primeiro a exercitar esse gênero literário foi
Almeida Garrett que, em 1846, publicou Viagens na Minha Terra, considerado um marco entre os textos
da prosa romântica portuguesa. Mas antes de falar da obra, falemos um pouco do próprio Garrett.

Almeida Garrett (1799-1854)


Almeida Garrett nasceu em uma família de posses e teve sua primeira educação destinada à vida
eclesiástica. Começou nas letras escrevendo poemas e peças de teatro de gosto neoclássico e só mais
tarde adotou a estética romântica. Em 1825 publicou um longo poema intitulado Camões, hoje consi-
derado o marco inaugural do romantismo português. Durante a disputa pelo trono entre o absolutis-
ta D. Miguel e o liberal D. Pedro, Garrett, liberal convicto, tomou o partido de D. Pedro. Com a vitória
do liberalismo, foi encarregado de revitalizar o teatro nacional português, quando escreveu Frei Luís de
Sousa (1844), peça que se tornou um paradigma do teatro lusitano. Em 1853, escreveu um livro de po-
emas que também se tornou modelar para a poesia romântica portuguesa, intitulado Folhas Caídas.
Entre suas obras, vale ainda lembrar os livros de poemas D. Branca (1826), Adozinda (1828), Lírica de João
Mínimo (1829), Romanceiro e Cancioneiro Geral (1843-1851), Flores Sem Fruto (1845) e os textos em prosa
O Arco de Santana (1845-1850) e o inconcluso Helena (1871).
102 | Literatura Portuguesa

Almeida Garrett inaugurou a literatura


romântica em Portugal.

Viagens na Minha Terra


Apesar de termos nos referido a Viagens na Minha Terra como se fosse um romance, a verdade é
que a classificação em termos de gênero desse texto é muito difícil, pois ali se emprega tanto estraté-
gias textuais típicas do romance, da narrativa de viagem, do jornalismo opinativo e do gênero epistolar,
entre outras formas. Mas se lembrarmos que uma das características do romantismo é justamente não
respeitar a divisão de gêneros (os românticos, por exemplo, criaram seu teatro misturando a tragédia
com a comédia, coisa inconcebível para um autor clássico), temos em Viagens na Minha Terra um texto
sobretudo romântico. Cita ali, por exemplo, Lawrence Sterne, Xavier de Maistre, Eugene Sue, Vitor Hugo,
entre outros escritores referenciais para a sensibilidade romântica de viés crítico.

Retratar o país era um dos prin-


cipais propósitos da literatura
romântica portuguesa.
O Romantismo: prosa | 103

Publicado originalmente na forma de folhetim na Revista Universal Lisbonense entre 1845 e 1846,
Viagens na Minha Terra narra um percurso de trem entre Lisboa e Santarém realizado por Garrett, que as-
sume o lugar do narrador. Inspirado no que vê na paisagem, o narrador faz uma série de severas críticas
à realidade portuguesa, observando o quanto parte dessa sociedade está inerte para as coisas do espí-
rito, voltada toda para o materialismo mais elementar. Em meio a tais observações, narra a história amo-
rosa entre os primos Carlos e Joaninha, a menina de olhos verdes, que passaram juntos a infância numa
casa no Vale de Santarém, na companhia de avó cega Francisca e de um franciscano rigoroso chamado
Fr. Dinis. Carlos vai estudar em Coimbra e, depois de um desentendimento com Fr. Dinis, parte para a
Inglaterra. Lá se envolve com três irmãs, das quais uma se chama Georgina, com quem pretendia se ca-
sar. No entanto, em meio às lutas entre liberais e absolutistas, Carlos, um liberal, retorna a Portugal e a
Santarém, onde reencontra Joaninha, envolvendo-se amorosamente com ela. Volta, todavia, para casar-
se com Georgina que, por sua vez, sabendo do caso de Carlos com Joaninha, desiste do compromisso.
Ao final, Carlos acaba por descobrir que era filho de Fr. Dinis com a filha da avó Francisca. Georgina tor-
na-se freira. Joaninha enlouquece e morre. Carlos torna-se barão.
A estruturação do texto é bastante original, já que alterna grandes blocos de capítulos que nar-
ram a viagem e fatos diversos com outros grandes blocos de capítulos que narram a história do casal
amoroso, fazendo com que o leitor fique com a narrativa amorosa suspensa por muitas páginas, geran-
do assim um tipo de expectativa muito densa.
O texto discute como a vida espiritual em Portugal se encontra morta, pois a realidade está mar-
cada por uma mentalidade estagnada e decadente, e o homem novo, liberal, volta-se apenas para a vida
material. Carlos é o paradigma do homem português liberal, que, entre optar pela pureza e simplicida-
de campesinas da tradição portuguesa, expressa na figura de Joaninha, a “menina dos rouxinóis”, e pela
urbanidade elegante da Europa industrializada, representada na figura de Georgina, acaba optando por
se tornar um barão gordo e burguesamente materialista. Seu percurso vai de um idealista a um materia-
lista, tal qual seria o percurso, segundo Garrett, de geração liberal a que pertencia.
Ao final da história, o narrador, um liberal, encontra Fr. Dinis, um conservador, que lhe conta o fim
que levou cada personagem daquela história. O narrador pergunta sobre Carlos:
— Mas Carlos?!
— Carlos é barão: no lho disse já?
— Mas por ser barão?...
— Não sabe o que é ser barão?
— Oh se sei! Tão poucos temos nós?
— Pois barão é o sucedâneo dos...
— Dos frades... Ruim substituição!
— Vi um dos tais papéis liberais em que isso vinha: e é a única coisa que leio dessas há muitos anos. Mas fizeram-mo ler.
— E que lhe pareceu?
— Bem escrito e com verdade. Tivemos culpa nós, é certo; mas os liberais não tiveram menos.
— Erramos ambos.
— Erramos e sem remédio. A sociedade já não é o que foi, não pode tornar a ser o que era: — mas muito menos ainda
pode ser o que é. O que há de ser, não sei. Deus proverá.
(ALMEIDA GARRETT, 2005, p. 250)

Percebe-se por essa última fala de Fr. Dinis um total descontentamento com a realidade portu-
guesa do momento, funcionando o livro como uma forma de se refletir profundamente sobre ela.
104 | Literatura Portuguesa

Alexandre Herculano (1810-1877)


Junto com Almeida Garrett, Alexandre Herculano foi um dos introdutores do romantismo em
Portugal. Também liberal, tornou-se um paradigma ético no meio político português. Nascido em
Lisboa, no seio de uma família modesta, não pode freqüentar a universidade. No entanto, por esforço
próprio, cedo ingressou no meio literário português. No decorrer de sua vida, ocupou vários cargos de
direção em diversas bibliotecas. Esse contato com os arquivos históricos e sua paixão pela matéria re-
sultaram na publicação de série de documentos intitulada Monumentos Históricos de Portugal (do sécu-
lo VIII ao XV), além dos livros A História de Portugal (1853) e História e Origem da Inquisição em Portugal
(1859). Desde muito cedo, publicou narrativas ficcionais de cunho histórico, que, em 1851, foram reuni-
das num volume intitulado Lendas e Narrativas. Escreve também romances históricos, como O Monge de
Cister (1839), O Bobo (1843) e finalmente sua obra mais apreciada, Eurico, o Presbítero (1844). Herculano
é considerado o fundador do romance histórico em Portugal, inspirado na obra do escocês Walter Scott.
Em 1851, participou da elaboração e instauração do movimento político de Regeneração, mas logo se
decepcionou com os rumos que este tomou e, em 1867, se auto-exilou na Quinta de Vila de Lobos, em
Santarém, abandonando tanto a política quanto a vida intelectual.

Herculano era um escritor apaixona-


do pela história de Portugal.

Eurico, o Presbítero (1844)


O romance Eurico, o Presbítero conta a história de amor entre Hermengarda e Eurico. Passa-se no sé-
culo VIII, na Espanha Visigótica do império de Vitiza. Eurico combate em favor do imperador contra os mon-
tanheses rebeldes e contra os francos. Vencida a batalha, Eurico, já apaixonado por Hermengarda, pede-a
em casamento ao seu pai, Duque de Fávila. O nobre nega-lhe a filha por saber que Eurico tinha origem
simples, fazendo-o acreditar que Hermengarda o repelia. O jovem, decepcionado, entrega-se ao sacerdó-
cio, ordenando-se presbítero de Cartéia. Passa a compor poemas e hinos religiosos para se esquecer de
seu grande amor. Todavia, a península é invadida pelos árabes e Eurico vê-se na obrigação de combatê-los,
mas, sendo padre, aparece nas batalhas com o disfarce de Cavaleiro Negro. Torna-se assim um conhecido
herói nessas batalhas e ganha a admiração dos godos, renovando-lhes o ânimo para o combate.
O Romantismo: prosa | 105

Quando tudo caminha para a vitória dos godos, Sisibuto e Ebas, os filhos do imperador Vitiza, por
ambicionarem o trono de seu pai, traem seu povo e se unem aos árabes. Os invasores começam a ven-
cer a guerra e atacam o Mosteiro da Virgem Dolosa, raptando Hermengarda. O Cavaleiro Negro conse-
gue, no entanto, salvá-la quando estava prestes a ser violentada. Hermengarda é levada desmaiada à
gruta Covadonga, nas montanhas das Astúrias, onde estava Pelágio, seu irmão. Já em segurança, en-
contra-se com Eurico, que lhe revela que o Presbítero de Cartéia e o Cavaleiro Negro são a mesma pes-
soa. Hermengarda declara seu amor a ele, mas Eurico, por ter feito voto de castidade, já não pode mais
concretizar seu amor pela donzela. Ao final, Hermengarda enlouquece e Eurico parte para uma batalha
suicida contra os árabes.

O cristianismo primitivo
era um modelo para os
românticos.

Como se percebe, a história tem fundo histórico e retoma um período do cristianismo considera-
do pelos românticos como mais puro e verdadeiro no aspecto da fé. Eurico é digno, honrado, abnegado,
fiel a Deus, ao seu amor por Hermengarda e à palavra dada, enfim, um modelo ético, tanto no aspec-
to religioso, quanto no aspecto pessoal e político. Na história, o compromisso social da personagem se
sobrepõe a seus desejos e interesses individuais, algo ausente no mundo da burguesia do século XIX e
que o romantismo queria revitalizar. Herculano idealiza, portanto, o passado na tentativa de reformar
eticamente o seu presente.
Assim tem início o romance:
A raça dos visigodos, conquistadora das Espanhas, subjugara toda a Península havia mais de um século. Nenhuma das
tribos ger­mânicas que, dividindo entre si as províncias do império dos césares, tinham tentado vestir sua bárbara nudez
com os trajos despedaçados, mas esplêndidos, da civilização romana soubera como os godos ajun­tar esses fragmentos
de púrpura e ouro, para se compor a exemplo de povo civilizado. Leovigildo expulsara da Espanha quase que os derra-
deiros soldados dos imperadores gregos, reprimira a audácia dos francos, que em suas correrias assolavam as provín-
cias visigó­ticas d’além dos Pireneus, acabara com a espécie de monarquia que os suevos tinham instituído na Galécia e
expirara em Toletum depois de ter estabelecido leis políticas e civis e a paz e ordem públicas nos seus vastos domínios,
que se estendiam de mar a mar e, ainda, transpondo as montanhas da Vascônia, abrangiam grande porção da antiga
Gália narbonense. (HERCULANO, s.d., p.12)

Veja como o estilo do texto se aproxima muito do texto histórico. É verdade que, com o desenro-
lar da narrativa, começam a aparecer diálogos, descrições e digressões que nos afastam do tom sisudo
desse parágrafo, mas ainda assim o estilo historiográfico perpassa todo o texto, cumprindo a função de
lhe atribuir, sobretudo, verossimilhança.
106 | Literatura Portuguesa

Camilo Castelo Branco (1825-1890)


Camilo é, em geral, associado à segunda geração de românticos portugueses, conhecida como
ultra-romântica. No entanto, ao final da vida, passou a fazer uma literatura de viés realista. Foi, sobretu-
do, um novelista, mas também escreveu contos, poesia, peças teatrais, crônicas, críticas literárias, que
somam cerca de 260 títulos.

Camilo é a própria encarnação do


romantismo português.

Teve uma vida que se revela mais rocambolesca que alguns de seus romances. Órfão de mãe aos
dois anos e de pai aos dez, viveu com uma tia e depois com uma irmã até os dezesseis, quando se casou
com Joaquina Pereira. Do casamento nasceu uma filha. Abandonou a esposa e a filha, que morreram
alguns anos mais tarde. Foi para o Porto, onde freqüentou e abandonou a escola de Medicina. Seguiu
para Coimbra a fim de iniciar sua carreira literária. Raptou a órfã Patrícia Emília de Barros e voltou para
o Porto, onde ambos foram presos. Teve também uma filha com Patrícia e do mesmo modo abando-
nou as duas. Teve um caso com uma freira, Isabel Cândida, e depois com uma escritora, Maria Browne.
Finalmente apaixonou-se por Ana Plácido, o grande amor de sua vida, mas ela estava prometida a outro,
com quem se casou. Ana Plácido, no entanto, acabou abandonando o marido e fugindo com Camilo.
Ficaram presos por algum tempo e, na cadeia, Camilo escreveu O Romance de um Homem Rico e Amor
de Perdição. Quando o marido de Ana Plácido morreu, os dois passaram a morar juntos. Teve diversos fi-
lhos com ela, um deles com problemas mentais. Nesse percurso, adquirira sífilis, fazendo com que o co-
tidiano de Camilo e Ana não fosse dos mais fáceis. Com outro de seus filhos, Nuno, concebeu e realizou
o rapto de Maria Isabel, herdeira rica, para que o filho pudesse fazer um grande casamento. Viveu de en-
comendas literárias até Ana Plácido morrer e ele começar a ficar cego devido à sífilis. Chegou a receber
o título de visconde, mas, já muito deprimido, suicidou-se com um tiro na cabeça.
Sua atribulada vida pessoal deve-se, em parte, ao fato de ter sido um dos primeiros homens em
Portugal a viver exclusivamente do que escrevia. A escrita era sua forma de sobrevivência, o que não era
uma tarefa fácil, obrigando-se a recorrer a alguns expedientes pouco convencionais. Essa é uma das ra-
zões pela qual sua obra é muito extensa. Apenas para dar um exemplo de cada gênero que cultivou, po-
demos lembrar que escreveu: poemas (Juízo Final e O Sonho do Inferno, 1845); comédias (O Morgado de
Fafe em Lisboa, 1862); dramas sentimentais (Abençoadas Lágrimas, 1862); dramas históricos (Agostinho de
Ceuta, 1848); narrativas de caráter histórico (Perfil do Marquês de Pombal, 1882); crítica literária (Esboços
de Apreciação Literária, 1866); contos (Noites de Lamego, 1863); e principalmente novelas de caráter his-
tórico (O Judeu, 1866), satírico (A Queda de um Anjo, 1866) e passional (Amor de Perdição, 1863).
O Romantismo: prosa | 107

Seu gênero preferido era a novela, que, em linhas gerais, se diferencia do romance apenas por se
concentrar na trama central, sem apresentar enredos paralelos. No entanto, diante de um texto literário,
nem sempre é fácil dizer se trata-se de um romance ou de uma novela, pois a crítica diverge muito em
relação à definição desses gêneros. De qualquer modo, Camilo foi um dos maiores prosadores românti-
cos que a cultura portuguesa viu nascer, tanto na qualidade, quanto na quantidade de suas obras.

Amor de perdição (1863)


O texto narra a história de amor entre Teresa de Albuquerque e Simão Botelho. As famílias dos
Albuquerques e dos Botelhos são inimigas, mas os jovens Teresa e Simão acabam se apaixonando. Simão,
que era rebelde e arruaceiro, após apaixonar-se por Teresa torna-se estudioso e comportado. Tadeu de
Albuquerque, pai de Teresa, deseja casá-la com um primo, Baltasar Coutinho, mas, ao descobrir o discre-
to namoro entre a filha e o filho de seu odiado vizinho, obriga Teresa a optar entre se casar com o primo
ou ir para um convento. Teresa opta pelo convento. Simão, avisado por carta de tal fato, tenta encontra-
se com Teresa com o auxílio do ferreiro João da Cruz, mas é surpreendido por Baltasar Coutinho e dois
capangas. No embate, Simão é ferido e os capangas são mortos por João da Cruz. Teresa é enviada ao
convento. Simão estreita relações com João da Cruz (que fora salvo da forca pelo pai de Simão, Domingos
Botelho) e com sua filha, Mariana. Esta cuida do ferimento de Simão e se apaixona secretamente por ele.
Passado algum tempo, Tadeu de Albuquerque resolve transferir a filha para um convento em que se en-
contra uma tia de Teresa. Simão tenta falar com Teresa antes de sua nova partida, mas ocorre um en-
contra casual com o pai e o primo da moça, em que mata Baltasar Coutinho. Ao invés de fugir, assume a
autoria do crime, sendo primeiramente condenado à morte e, atenuada a pena, ao degredo na Índia por
dez anos. Nesse ínterim, João da Cruz é assassinado e Mariana, órfã, passa a dedicar sua vida a Simão. O
herói parte para a Índia, e Teresa, no convento, morre quando vê o navio que leva Simão. Mariana segue
para a Índia junto com o degredado. No entanto, o rapaz morre de febre no navio e seu corpo é jogado
ao mar. Mariana então se atira atrás dele e, abraçada ao corpo de Simão, morre afogada.

O amor era visto como uma


forma de combater o materia-
lismo burguês.

As personagens não têm profundidade psicológica, pois cada uma age de acordo com um aspec-
to bem definido. Teresa é a encarnação do amor fiel; Mariana, o exemplo do amor abnegado; e Simão, o
do amor impulsivo e do poder de regeneração do amor. Podemos considerar a novela de Camilo como
108 | Literatura Portuguesa

uma reedição muito bem-sucedida de Romeu e Julieta, de Shakespeare. Além do elogio que o livro faz
ao amor em vários níveis, há ainda uma forte crítica ao tradicionalismo da ordem social e dos valores da
família portuguesa, calcada nos modelos da monarquia absolutista, onde a vontade do indivíduo não
é levada em conta.
O narrador da história é um sobrinho de Simão Botelho, que conta a história na posição de nar-
rador em terceira pessoa, onisciente, fundamentando-se nos livros de assentamentos das cadeias da
Relação do Porto e na correspondência trocada entre os amantes. Assim, a obra ganha em verossimi-
lhança, pois estaria fundamentada num fato ocorrido na própria família do narrador, alicerçada, além
disso, em documentos. Emprega exaustivamente o discurso direto, fornecendo teatralidade e agilida-
de à trama. As peripécias acontecem com rapidez, pois o romance se apóia na quantidade de aconteci-
mentos inusitados que se sucedem num ritmo célere.
Para além da trama amorosa, o texto de Camilo é muito crítico e irônico em relação à sociedade
portuguesa. Para termos idéia dessa ironia, vejamos um trecho do primeiro capítulo, quando o narrador
descreve o avô de Simão Botelho:
Já está dito que ele se atreveu aos amores do paço, não poetando como Luís de Camões ou Bernardim Ribeiro; mas na-
morando na sua prosa provinciana, e captando a benquerença da rainha para amolecer as durezas da dama. Devia de ser,
afinal, feliz o “doutor bexiga” – que assim era na corte conhecido – para se não desconcertar a discórdia em que andam ri-
xados o talento e a felicidade. Domingos Botelho casou com D. Rita Preciosa. Rita era uma formosura, que ainda aos cin-
qüenta anos se podia prezar de o ser. E não tinha outro dote, se não é dote uma série de avoengos, uns bispos, outros
generais, e entre estes o que morrera frigido em caldeirão de não sei que terra da mourisma; glórias, na verdade, um pouco
ardente, mas de tal monta que os descendentes do general frito se assinaram Caldeirões. (CASTELO BRANCO, 2000, p. 70)

Cortejando uma das damas da rainha, Domingos Botelho é tratado com franco deboche, dizen-
do-se que, apesar de ser um sujeito sem talento e sem dotes físicos, conseguiu casar-se com uma for-
mosa dama da corte, cuja história de família também é ridicularizada, pois seu sobrenome Caldeirões
faz referência ao seu antepassado que foi frito pelos inimigos. Enfim, Camilo desqualifica em sua origem
o orgulho dos Botelhos, que será o pivô de todo o drama amoroso, demonstrando o quanto se revelam
equivocados os valores dessa sociedade de mentalidade aristocrática.

Júlio Dinis (1839-1871)


Joaquim Guilherme Gomes Coelho nasceu em Porto, numa família burguesa, com ascendência
inglesa por parte de mãe. Ali mesmo licenciou-se em medicina na Escola Médico-Cirúrgica, onde tam-
bém foi professor. Começou sua carreira literária ainda na faculdade, escrevendo peças teatrais, reuni-
das no volume Teatro Inédito (1946-1947). Também tentou a poesia de verve ultra-romântica, publicada
em 1874, pouco depois de sua prematura morte por tuberculose, no volume Poesias (1874). Mas foi na
prosa que mais se destacou, em especial no gênero romance. Além do livro de contos e novelas intitu-
lado Serões da Província (1870), publicou os romances As Pupilas do Senhor Reitor (1867), A Morgadinha
dos Canaviais (1868), Uma Família Inglesa (1868) e Os Fidalgos da Casa Mourisca (1871). Deixou inédita
O Romantismo: prosa | 109

uma verdadeira arte do romance em suas idéias que me Ocorrem, escritas entre 1869 e 1870, e publica-
das no volume Inéditos e Esparsos (1910). Como escritor, utilizou vários pseudônimos, sendo Júlio Dinis
o que o tornou mais conhecido.

Júlio Dinis morreu muito


jovem, mas deixou uma
madura obra literária.

Apesar da mentalidade romântica, sua escrita já apresentava traços do que viria a ser o movimen-
to realista, quer pelo tratamento que dá às personagens, procurando penetrar em suas consciências,
quer pela valorização da descrição como estratégia analítica, ou ainda pelo objetivo pedagógico atri-
buído ao romance. Todavia mantém sua sensibilidade romântica na forma idealista e otimista de con-
ceber a realidade que o cerca, apresentando personagens excepcionais e soluções harmoniosas para
os conflitos.

As Pupilas do Senhor Reitor (1867)


O romance trata do envolvimento amoroso entre Daniel e Margarida, ou Guida. Ainda crianças,
o estudante Daniel e a pastorinha Guida se apaixonam. Daniel preparava-se para ingressar no seminá-
rio, mas quando o reitor descobre seu inocente namoro e conta a seu pai, José das Dornas, este decide
enviá-lo para estudar medicina no Porto. Passados dez anos, Daniel retorna à aldeia, já como médico, e
reencontra Margarida, agora professora, que se mantém fiel ao amor que partilharam. Ele, no entanto,
transformado pelos hábitos da cidade, havia se transformado num conquistador barato, sem compro-
misso, e já nem se lembrava de sua paixão de infância. Nessa época, Pedro, irmão de Daniel, estava noivo
de Clara, irmã de Margarida. Daniel fica fascinado pela futura cunhada e tenta conquistá-la. Clara, por vai-
dade, alimenta os cortejos de Daniel, mas quando percebe a gravidade da situação, desiste da brincadei-
ra. Na tentativa de colocar fim àquela situação, aceita se encontrar com ele no jardim de sua casa, onde
são surpreendidos por Pedro. No entanto, Margarida, para salvar o inconseqüente casal, toma o lugar da
irmã. A divulgação de tal encontro macula a reputação de Margarida e Daniel finalmente acaba por reco-
110 | Literatura Portuguesa

nhecer nela o antigo amor de infância. Verdadeiramente apaixonado por Guida, procura reconquistá-la,
mas ela o rejeita. No entanto, ao final, acaba por se reconciliar com Pedro e o casal finalmente se une.

Uma intriga simples e uma linguagem


direta contribuíram para o sucesso
deste livro.

Vemos que o desfecho da narrativa não poderia ser mais romântico. Enfim, tudo se arranja da me-
lhor forma possível. Sem dúvida, a mentalidade que gerou a intriga era romântica, opondo o amor vul-
gar ao amor verdadeiro, saindo este último vencedor. Todavia, não há aqui, como em Amor de Perdição,
um obstáculo externo à concretização do amor, mas sim um obstáculo interno, produzido pela pró-
pria frivolidade do protagonista Daniel. Portanto, mais uma vez Júlio Dinis se afasta da perspectiva ro-
mântica, fazendo com que o conflito amoroso tenha origem no caráter das personagens e não em
algum evento excepcional. Apesar disso, a caracterização das personagens tem um viés romântico, já
que Daniel é o representante do donjuanismo, enquanto Margarida exprime a pureza amorosa e a inte-
gridade moral. Em contraste, a personificação e o comportamento de Clara se aproximam mais da pers-
pectiva realista.
Vejamos um trecho do romance, quando a Sra. Joana, governanta do médico João Semana,
encontra-se com Clara, logo após toda a aldeia ter tomado conhecimento do encontro ocorrido no
jardim.
— Então que doidices foram aquela lá por casa? - perguntou Joana, que não era para rodeio, e ia logo direta ao fim que
tinha em vista. — Aquilo é coisa que se faça? Ainda se fosse consigo, não me admirava eu tanto, mas a Guida!
Clara ficou surpreendida com o que ouvia a Joana. Margarida para acalmar à irmã os escrúpulos em aceitar o sacrifício,
dera-lhe a entender que, a exceção de Pedro, ninguém mais na aldeia suspeitava a cena do quintal. Agora adquiriu ela
certeza do contrário.
— Então você sabe?... — perguntou timidamente, não ousando olhar para Joana.
— Se eu sei! E quem não o há de saber, filha, se por aí não se fala em outra coisa?
— Que diz, Joana?
— Pois que cuidava? Ai está bom, está! É o que eu digo! Aí tem que ontem... Mas a mim custa-me a crer! Pois a Guida?
O Romantismo: prosa | 111

— Joana! Por quem é, não fale dessa maneira. Se soubesse...


— Pois não falo, não... Ainda que de eu falar não é que vem o mal. Assim não andassem por aí outras línguas danadas...
— Então dizem? Ó meu Deus! Meu Deus!
— Dizem tudo, e mais alguma coisa: é o costume. Pois ainda aí está! Bem o digo eu!
— Jesus Senhor! E falam de Guida?!
— Que dúvida! Há lá manjar mais doce para essas boquinhas cá da terra, do que uma novidade daquelas? Falam dela,
e de modo que já me fizeram ferver o sangue. Olhe que estive para obrigar uma das tais a engolir a língua peçonhenta,
a ver se a envenenava com ela. Ora imagine a Zefa da Graça a contar história e veja lá o que não diria!
Clara ocultou o rosto com as mãos; a dor e a desesperação estavam-na torturando.
— E então o pior não é isso — continuava Joana. — O pior é que a essas desalmadas meteu-se-lhes em cabeça que
as filhas corriam perigo, continuando a ser ensinadas por a sua irmã; e é de crer que já hoje... Mas veja aquelas tolas,
que mais o que sabem é estragar os filhos com maus exemplos e com más palavras, a fazerem-se agora de escrúpulos!
Impostoras!
— Oh! isto é demais! — bradou Clara, tremendo de indignação.
— A Rosa alfaiata, por exemplo — prosseguiu Joana. — Ora digam se não é mesmo de uma pessoa perder a paciência
ouvir aquela desbocada com medos que lhe estraguem a filha? A filha, que se não sair das que nem o demônio quer,
não há de ser por falta de diligências que faça a mãe para isso.
Clara não podia já reter as lágrimas.
— E a Joaquina do Moleiro? Pois não querem ver aquela senhora também com delicadezas? Ora isto! Isto é de uma pes-
soa morrer com riso. A Joaquina do Moleiro , que eu conheci... Cala-te, boca.
E por esta forma continuou a Sr.ª Joana fazendo a severa crítica das suas escrupulosas patrícias, e aumentando, sem o
saber, a grande aflição em que estava Clara.
Ao separar-se da velha governante de João Semana, ia Clara com uma resolução formada, a qual se lhe podia adivinhar
na firmeza do olhar e na expressão do semblante.
— É demais! murmurava ela — vou procurar Pedro; vou dizer-lhe tudo; quero que todos saibam... (DINIS, 2000, p. 339-341)

Mais que a angústia e o remorso de Clara de ver sua inocente irmã pagar por um erro que ela co-
metera, emerge desse diálogo o mundo de fofocas e intrigas que move a pequena aldeia portuguesa.
Se a situação que precede a cena, a troca de lugares entre as irmãs no encontro secreto, é indiscutivel-
mente de gosto romântico, Júlio Dinis dá um tratamento muito realista ao modo como a Sra. Joana
conduz a conversa com Clara, sempre em defesa de Guida, mas sem deixar de revelar sua surpresa ou
enumerar todas as conseqüências do seu suposto ato. Portanto, na prática, condenando-a sumariamen-
te como todas as outras. Eis, pois, um claro exemplo desse lugar ambíguo que o texto de Júlio Dinis ocu-
pa entre o romantismo e o realismo.

A sedimentação do romance em Portugal


Foi graças ao trabalho árduo dos escritores românticos como Almeida Garrett, Alexandre
Herculano, Camilo Castelo Branco e Júlio Dinis que o gênero romance pôde sedimentar-se em Portugal.
Gênero em prosa que marcará todo o século XIX e também o século XX, o romance serviu ainda de
modelo para a narrativa do cinema, criado no final do século XIX, e mesmo para as novelas televisivas,
como já fora mencionado.
112 | Literatura Portuguesa

É um gênero que fez e que hoje ainda faz história na literatura portuguesa e em todas as outras li-
teraturas nacionais, permitindo que possamos encontrar, ainda que momentânea e ficcionalmente, cer-
ta ordem, unidade e sentido no caótico mundo em que vivemos.

Dicas de estudo
::: Ferreira, Alberto. Perspectiva do Romantismo Português, 1834-1865. Lisboa: Edições 70,
1971. – Apesar dos mais de 30 anos de publicação dessa obra, ela continua a ser inspiradora e
polêmica, dando um enfoque inovador ao estudo do romantismo. Ferreira mostra que há uma
maior articulação entre o romantismo e o realismo do que se pode pensar, e que condições
próprias da sociedade lusitana tiveram um peso relativo maior do que normalmente se supõe
no desenvolvimento da cultura romântica portuguesa.
::: <http://purl.pt/96/1>. – O site da Biblioteca Nacional de Lisboa possui diversas páginas espe-
cialmente construídas para certos autores e sua obra. No nosso caso, indicamos o projeto de-
dicado a Almeida Garrett por ocasião do bicentenário de seu nascimento.

Texto complementar
Qual é o estado da nossa literatura?
Qual é o trilho que ela hoje tem a seguir?
(HERCULANO, 1834)
Estas duas perguntas pedem nada menos do que a dolorosa confissão da decadência em que
se acha em Portugal a poesia e a eloqüência, e o encargo dificultoso de indicar os meios de melho-
ramento no ensino e no estudo delas. Sem pretender que sejam as únicas, nem as melhores, expo-
remos a série das nossas idéias sobre este duplicado objeto.
A convicção de uma verdade literária produziu no 16o e 17o século um erro na Itália, que, esten-
dendo-se à Espanha e a Portugal, transviou da legítima direção todos, ou quase todos os escritores
da época chamada do seiscentismo. Sentiu-se que a metáfora, a mais bela de todas as figuras poéti-
cas e oratórias, a mais repetida, a mais necessária mesmo nos discursos comuns da vida, abundava
por isso nos bons escritores clássicos e modernos, que já nesse tempo ilustravam a Europa: viu-se
que as passagens belas ou sublimes de Horácio, Píndaro e Virgilio, de Dante e Ariosto, deviam-lhe
em grande parte a sua beleza e sublimidade, e isto era certo; inferiu-se daí que a metáfora era o prin-
cipal e talvez o único meio da poesia e eloqüência, e que ela devia revestir todas as imagens e su-
O Romantismo: prosa | 113

jeitar ao seu império todos os gêneros, todos os estilos, e isto foi um erro: a vertigem metafórica se
apossou dos poetas e oradores, e, por uma conseqüência natural, o fundo das idéias esqueceu e só
se olhou para as formas: à sombra desta mania prosperavam os conceitos e as agudezas, chegando
as letras a cair numa barbárie, que tanto mais irremediável parecia por ser filha da civilização literá-
ria já exagerada. O Zodíaco Soberano, os Cristais d’Alma, a Fênix Renascida e outros muitos escritos
desse tempo são lamentáveis monumentos da corrupção de gosto a que chegou Portugal no prin-
cipio do 18o século.
Porém o mal não foi sem remédio, e os membros da Arcádia fizeram volver as letras à severa
singeleza das puras formas da Grécia. Muito se deve a Garção, Gomes e Quita; mas ninguém tanto
como Dinis mostrou a superioridade do gênio e do gosto que caracterizaram a segunda metade do
seculo XVIII. Dando os seus principais cuidados à poesia chamada pindárica, gênero difícil pelo au-
daz das figuras, pelo gigantesco das imagens, ele soube escapar aos defeitos e frioleiras do seiscen-
tismo que bebera na escola, em composições nas quais era mui fácil introduzir-se o mau gosto; e
ainda que Quita e Garção tentaram o mesmo gênero, em nosso entender, Dinis não foi emulado. Ca-
paz de todos os tons, no burlesco, no pastoril, no ditirâmbico, nos deixou apreciáveis exemplos, e as
suas dissertações sobre a poesia campestre são ditadas por um grande conhecimento da arte, ainda
que não excedam em merecimento teórico as anotações de Gomes às próprias poesias, nem os tra-
balhos de Freire e posteriormente de Barbosa e Fonseca sobre as poéticas de Aristóteles e Horacio.
Entretanto nenhum dos poetas e literatos do século de José I olhou as letras de um ponto de
vista eminente. Semelhantes aos escritores do século de Luís XIV, foram muito eruditos, mas pou-
co filósofos, e assim o caráter das duas literaturas é a confusão dos princípios absolutos com os de
convenção. Cingindo-se quase cegamente à autoridade dos antigos, miudeada e explanada pelos
comentadores, a sua obediência ilimitada a alheias opiniões contribuiu muito para a posterior deca-
dência. A impertinente questão dos arcaísmos e neologismos veio tomar o lugar das discussões da
Arcádia e essa ocupação dos meios talentos e da meia instrução, influindo sobre objetos mais im-
portantes, viciou e acanhou toda a literatura. Se as notas que sobre palavras e frases Francisco Ma-
nuel ajuntou às suas poesias fossem dedicadas a coisas, quão ricas messes nós colheríamos do saber
deste homem! Mas infelizmente não foi assim, e a polêmica suscitada sobre o mérito do imortal can-
tor de Os Lusíadas, pelos insultos que contra ele vomitou o orgulhoso autor do gelado Oriente, mos-
traram a que mesquinho estado tinha a crítica chegado em Portugal. Parte dos reparos que Macedo
copiou dos críticos franceses ficaram sem cabal resposta, porque os sistemas estéticos mais liberais
e filosóficos que o dos antigos, e o da escola de Boileau, eram em geral desconhecidos entre nós, e
estamos persuadidos de que o juízo a respeito do tão grande quanto infeliz Camões ainda resta a
fazer, apesar da abundância de escritos que sobre este objeto se publicaram.
Enquanto assim entre nós a crítica se apoucava, um sentimento vago de desgosto pelas anti-
gas formas poéticas, a influencia da filosofia na literatura, a necessidade que sentia o gênio de be-
ber as suas inspirações num mundo de idéias mais análogas às dos nossos tempos, e enfim, várias
outras causas difíceis de enumerar, começaram a criar na Europa uma poética nova, ou, digamos
antes, a fazer abandonar os cânones clássicos. A Alemanha foi o foco da fermentação, e foi lá que os
princípios revolucionários em literatura começaram a tomar desde a sua origem uma consistência,
e a alcançar uma totalidade de doutrinas metódicas e conseqüentes, não dada, ainda hoje, ao resto
das nações. Lá não havia a lutar com a glória nacional para a introdução de novas idéias, porque os
monumentos da escola afrancesada de Opitz não honravam demasiadamente o dogmatismo into-
114 | Literatura Portuguesa

lerante do século de Luís XIV, impropriamente chamado clássico, e Bodmer e Breitinger deram co-
meço à revolução ousando preferir a poética de Shakespeare e de Milton à de Racine e de Boileau;
contudo as opiniões na Alemanha têm-se desviado, em parte, desta direção e as idéias de Schlegel
já têm reagido na sua tendência um tanto nova sobre a literatura inglesa donde tiveram origem.
Na França, o antigo sistema, amparado pelo renome de muitas produções imortais, disputa ainda a
campanha às inovações que entre esse povo, extremo em tudo, têm chegado a um desenfreamen-
to bárbaro e monstruoso.
Mas a Portugal não coube o figurar nesta lide. A parte teórica da literatura há 20 anos que é en-
tre nós quase nula: o movimento intelectual da Europa não passou a raia de um país onde todas as
atenções, todos os cuidados estavam aplicados às misérias públicas e aos meios de as remover. Os
poemas “D. Branca” e “Camões” apareceram um dia nas páginas da nossa história literária sem pre-
cedentes que os anunciassem, um representando a poesia nacional, o romântico; outro a moderna
poesia sentimental do Norte, ainda que descobrindo às vezes o caráter meridional de seu autor. Não
é para este lugar o exame dos méritos e deméritos destes dois poemas; mas o que devemos lembrar
é que eles são para nós os primeiros e até agora os únicos monumentos de uma poesia mais liberal
do que a de nossos maiores.
Contudo, não existindo ainda um só livro sobre as letras consideradas de um modo mais geral
e mais filosófico do que os que possuímos; sem uma só voz se ter levantado contra a autoridade de
Aristóteles e de seus infiéis comentadores, será impossível emitir um juízo imparcial sobre escritos
de semelhante natureza. Julgá-los por formas que o poeta não admitiu será um absurdo enquan-
to se não provar a necessidade dessas formas; e isto, mesmo que elas sejam legítimas, só pode ser
resultado de um maduro exame ou de uma polêmica sincera. Antes disso os velhos eruditos, ven-
do ofendida a inviolabilidade de um tropel de preceitos que julgavam imprescritíveis, só darão ao
gênio nascente o sorriso do desprezo; e os mancebos poetas, a quem o sentimento incerto das
opiniões contemporâneas dirige por estradas que muitas vezes não conhecem, farão que as suas
poesias corram brevemente parelhas com os desvarios que tem ultimamente manchado a mais bela
das artes na França e na Inglaterra.
Um curso de literatura remediaria os danos que devemos temer, e serviria ao mesmo tempo
de dar impulso às letras. Em Portugal ainda há homens cheios de vasta erudição, de filosofia e de
gênio. Tiranias mais ou menos longas, mais ou menos cruéis os têm conservado na obscuridade
de que devem sair, agora que se não receia a instrução, agora que os resguarda a égide da lei. Nós
não desejaríamos, porém, que uma tal obra fosse puramente órgão desta ou daquela escola; des-
te ou daquele partido. Convém que os princípios opostos sejam examinados de boa-fé e sem acri-
mônia: a intolerância em idéias políticas ou religiosas é odiosa; em matérias científicas, é ridícula.
Se coubesse nas nossas diminutas forças um trabalho de tanta magnitude, nós começaríamos por
discutir qual é o objeto da poesia, e desta questão nos parece que já se tirariam importantes resul-
tados, e que as duas características – o icástico e o ideal – que distinguem as tendências do antigo
e do novo sistema, surgiriam dela para nos servirem depois na resolução de vários problemas que
se nos apresentariam na série das nossas indagações. O exame das diferentes teorias sobre o belo e
o sublime, e as conseqüências, objeto imediato a que nos conduziriam os primeiros raciocínios, da-
riam em resultado os princípios necessários e universais de todas as poéticas, e conseqüentemente
aqueles sobre que deveríamos emitir uma opinião absoluta e exclusiva: no resto respeitaríamos as
opiniões de cada povo, de cada época, em tudo aquilo em que elas se não opusessem aos princípios
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gerais. Indagando a história da poesia nos diversos tempos e nações, vê-la-íamos depois da queda
da bela literatura greco-latina, surgindo do norte com um sublime de melancolia e mesmo de fero-
cidade, próprio dos povos que a inventaram: veríamos esta poesia fundida com os restos da roma-
na, e posteriormente com a árabe, produzir as diversas espécies do romântico, dessa poesia variada
e verdadeiramente nacional, na França e nas duas penínsulas, e termo médio entre a bela simetria
clássica e o sublime gigantesco do setentrião: acharíamos essa originalidade nascente da literatu-
ra da meia-idade destruída quase no ressurgimento das letras, e substituída por teorias antigas,
que, conservando sempre o mesmo nome, foram sendo enxertadas em idéias, em preceitos moder-
nos: encontraríamos, finalmente, o espírito de liberdade e de nacionalidade da atual literatura – o
quadro das novas opiniões nas suas variedades todas, as vantagens ou danos resultantes de cada
uma comparada com os elementos universais da arte, nos poria em estado de formar um corpo de
doutrina que determinasse as proporções essenciais da futura poesia portuguesa, completando ao
mesmo tempo uma série de juízos imparciais sobre as produções das diferentes eras e das diferen-
tes escolas, em relação ao seu gênio particular, e à filosofia geral das letras.
Todos sabem que os antigos dividiam a eloqüência em três gêneros, que muitas vezes se con-
fundem: um destinado ao elogio ou à invectiva; outro a fazer condenar ou a absolver, a invocar a lei
a favor do inocente, a invocá-la contra o criminoso; outro, enfim, destinado a ventilar os grandes in-
teresses das nações nos congressos ou na tribuna popular. Foi a estas três classes que eles reduziram
a oratória, divisão que ainda hoje se conserva e que, apesar da sua arbitrariedade, nós respeitare-
mos em nossas reflexões. Em Portugal, onde a representação nacional não existia, onde os tribunais
eram fechados às defesas orais e aos juízos públicos, e a arte de defender e acusar consistia geral-
mente em conhecer os meios de opor entre si a nossa ora mesquinha, ora contraditória, ora obscura
legislação, e numa dialética as mais das vezes pueril, tanto o gênero deliberativo como o judiciário
não tinham quase aplicação: ficava somente a eloqüência dos panegíricos para o orador profano, e
uma mistura de todos os três gêneros para o orador sagrado; mas em nenhuma das duas classes te-
mos de que nos gloriar neste século. Por uma parte elogios de encomenda ou feitos com miras de
interesse pessoal não podiam sair da boca do orador acompanhados das inspirações do entusias-
mo; e sem convicção e persuasão própria não se pode convencer nem persuadir os outros: por outro
lado a eloqüência sagrada nunca pôde preencher inteiramente o fim da arte, uma vez que não diva-
gue do seu objeto – a moral religiosa. O fim da eloqüência é persuadir; para isto não só é necessário
mover os afetos, mas também obrigar a razão. O usar deste meio, nervo principal da oratória entre
as nações civilizadas, seria ridículo perante um auditório cristão. O incrédulo não vai ouvir sermões,
e o orador que empregasse uma lógica severa para provar a conveniência da moral do cristianismo,
a quem disso está de antemão convencido, obraria com tanta impropriedade como se o missionário
diante de homens de diversa crença buscasse tão somente mover os afetos sem falar à razão.
O exemplo de dois grandes homens parece opor-se ao que temos acabado de dizer. São eles
Bourdalone e Bossuet: o primeiro empregando a severidade do raciocínio, o segundo tateando to-
das as cordas do sentimento, excitando todos os terrores, todas as esperanças da imaginação, e
ambos considerados como grandes modelos. Mas de que são eles modelos? É, justamente, dessa
eloqüência imperfeita, cujo vício se contém na sua própria natureza. Com efeito, Bourdalone não
preencheu, nos discursos em que se lançou no abismo dos mistérios, o objeto da arte: esta dirige-se
à vontade, pela ação; e a defesa metafísica bem que eloqüente dos dogmas cristãos não requer ação
alguma. Bossuet está no caso contrário: para que as suas orações tenham efeito é necessária a fé. O
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homem indiferente em matérias de religião, e que não possuir gosto bastante para avaliar seu me-
recimento, dormirá tranqüilamente à leitura de qualquer delas, enquanto uma filípica ou olíntia de
Demóstenes fará sempre impressão em todo o homem que tiver uma pátria, uma fortuna a perder.
Sabemos quanto nos podem opor sobre estes dois oradores, e sobre a oratória sagrada em geral;
mas, não sendo possível o entrar aqui numa questão bastante vasta que estas reflexões não com-
portam, lembraremos só aos leitores que nós consideramos os panegíricos e os sermões de contro-
vérsia como alheios do pulpito; que Bourdalone, de todos os oradores sacros o que mais sentiu a
necessidade dos raciocínios como meio da eloqüência, nos seus panegíricos fugia constantemente
para a moral, o que nos faz crer que ele a considerava o objeto da sua arte como acima dissemos.
Em último lugar transcreveremos uma cita da tentativa sobre a eloqüência do pulpito pelo abade
Maury, obra a mais acreditada entre as desta natureza: J’avoue, diz ele, qu’il est très-rare de pouvoir
suivrecette marche didactique dans nos chaires, où les discussions morales nesont jamais problémati-
ques, et où la conscience, qui ne ment jamais, nesaurait contester la vérité à ses remords. O que entra
justamente na ordem de nossas idéias, tanto sobre o objeto como sobre o defeito constitutivo da
eloqüência sagrada.
Voltando ao nosso país, na mesma eloqüência do púlpito, a única em Portugal cultivada, só
um orador deixou pela estampa monumentos dignos de exame, se atendermos à fama popular que
para seu autor granjearam: já se vê que falamos do padre Macedo. Como orador sagrado, Macedo
deveu a popularidade de que gozou a um falso brilho no fundo das idéias, e sobretudo a essa ins-
trução perfunctória que começa a invadir a capital e que é mais danosa às letras do que a igno-
rância. Sem vislumbres da sublimidade de Bossuet, sem a unção de Fenelon, sem a profundeza de
Bourdalone, sem a nobre e evangélica simplicidade de Paiva d’Andrade, ganhou seu renome com
os ouropéis de Sêneca; mas tal renome, se ainda soar na posteridade, não será para as suas cinzas
um bafejo consolador de glória.
Porém não é a eloqüência sagrada que deve hoje chamar a nossa atenção: ela tem sido o
luxo da religião, e nós desejamos vê-la substituída por meios mais conducentes a fazer prospe-
rar esta. A bela e sublime moral do evangelho não precisa dos socorros da arte de Demóstenes e
Cícero; e a religião prática dum clero virtuoso seria a homilia mais eloqüente para insinuar a moral
do Crucificado.
Antes de passar avante ocorreremos a um reparo que farão os leitores: o de não falarmos sobre
a eloqüência desenvolvida nas cortes da nossa primeira época de liberdade, que forma uma exce-
ção de quanto dissemos sobre a eloqüência portuguesa do 19.º século. Tivemos para isso razões, e
talvez a principal seja o quão longe nos levaria o exame de alguns discursos ali pronunciados; entre-
tanto diremos por honra da nossa pátria que então apareceram mui grandes homens, e que deseja-
ríamos ver publicar uma escolha das opiniões e relatórios então ventilados, à maneira do que se fez
em França das orações dos representantes nacionais desde o princípio da revolução.
É, portanto, a educar homens que ventilem dignamente as questões de interesse público nas
câmaras legislativas, ou que defendam a inocência e persigam o crime nos tribunais já públicos, que
o estudo e ensino desta parte da literatura se deve dedicar: é assim que nós faríamos da essência
destes dois gêneros de oratória o objeto da segunda parte de um curso literário, tocando apenas de
leve quanto é formal na arte e que sapientíssimos retoricões, copiando-se uns aos outros, de sobejo
explicaram; mas tratando com profundeza os princípios aplicáveis principalmente aos gêneros judi-
ciário e deliberativo em relação à nossa situação política. Para isto seria do exame da eloqüência nos
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diferentes tempos e lugares, que nós partiríamos em nossas indagações: veríamos Demóstenes, tro-
vejando na tribuna, armado da razão e da indignação, admiravelmente conciso e misturando com
esta concisão os sublimes movimentos do patriotismo, arrastar após si a opinião das multidões; ve-
ríamos Cícero defender os seus clientes, tratar os mais importantes negócios da república quase
sempre com uma gravidade e eloqüência estudadas: na historia da oratória moderna acharíamos a
vigorosa razão de Mirabeau acompanhada de um estilo raras vezes rasteiro; acharíamos nos discur-
sos de Maury os mais belos monumentos de uma eloqüência máscula mas tranqüila; e, finalmente,
o frenesi inspirado pelo amor às velhas formas do absolutismo nas orações de Montlosier: passando
à da Inglaterra exporíamos o gênero de Pitt, gênero severo, renovado hoje por Makintosh e Burdett,
a que sucedeu o igualmente nervoso, porém mais cheio de artifício, de Burke, Sheridan e Caning, e
o gênero médio de Fox, terminando assim o exame das fontes verdadeiras da eloqüência.
Seria a desta última nação que nós proporíamos como principal modelo sem excetuar contu-
do as outras. Entre os gregos, romanos, e franceses há muito que aproveitar; mas, se é verdade que a
literatura em parte depende de certa harmonia com as circunstâncias de cada povo, nenhuma elo-
qüência é mais digna para nós de estudo do que a inglesa. Nem entre os antigos, nem na repúbli-
ca francesa, ela estava na mesma relação com as instituições sociais que vai estar na nossa pátria.
O orador, na discussão de uma lei perante a plebe, que deve votar sobre ela ou influir na votação,
como acontece no calor das revoluções, tem de usar de meios diferentes dos que há de empregar
para a impugnar ou defender em uma câmara, cujos membros são, ou devem ser, os mais conspícu-
os da nação por suas luzes e virtudes. No primeiro caso os raciocínios convêm sejam acompanhados
dos meios formais da arte para dirigir as paixões populares; no segundo, expostos a homens que co-
nhecem a arte tão bem como o orador, sem alcançarem o seu efeito, os artifícios só atrairiam sobre
ele a suspeita de má-fé: isto sem pretendemos dizer que ele discuta com a secura de um geômetra
as questões do público interesse; porém os seus movimentos devem surgir sinceros de um coração
intimamente comovido e de nenhum modo dar a conhecer que foram tranqüilamente calculados
pelos preceitos de Quintiliano.
Entre os romanos, a pequena porção de leis que havia ainda nos últimos tempos da república
e o espírito de generalidade a que se limitavam dava motivo a que nas causas particulares o advo-
gado ou acusador de qualquer réu buscasse despertar a compaixão ou a sanha dos juízes, de quem
muitas vezes era guia único o senso comum e a moralidade, na falta de disposições preceptivas, e
apesar da semelhança dos tribunais civis e criminais de Roma com os nossos modernos jurados,
existe entre nós e eles uma diferença enorme por causa das circunstâncias legais. Hoje, entre os po-
vos livres, há, ou deve haver, um código que previne todos os casos com clareza e exação, e o mister
do orador reduz-se a provar se o seu cliente está ou não no caso da lei: então todo o pleito deverá ser
uma questão de fatos provados ou prováveis, e vice-versa. Daqui se colhe quão sóbrio ele deve ser
empregando os meios que lhe ministra a arte. Clareza, ordem de idéias, lógica severa, eis os meios
principais da eloqüência do foro e das câmaras legislativas.
Tal é o rápido quadro do nosso modo de pensar sobre a atual literatura portuguesa, e sobre
os meios de a dirigir. As curtas reflexões que temos feito sobre a poesia e a eloqüência são as bases
em que julgamos dever-se fundar um curso de literatura, que serviria como de introdução aos es-
tudos mais profundos do poeta e do orador. Oxalá que dentre os nossos literatos algum se encarre-
gue desta útil e importante tarefa.

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