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Literatura

Portuguesa

Autores
Stélio Furlan
José Carlos Siqueira

2008
© 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos
direitos autorais.

F985 Furlan, Stélio; Siqueira, José Carlos. / Literatura Portuguesa.


/ Stélio Furlan; José Carlos Siqueira. — Curitiba : IESDE
Brasil S.A. , 2008.
248 p.

ISBN: 978-85-7638-872-2

1. Literatura Portuguesa. 2. História e Crítica. 3. Movimentos


Literários. 4. Poesia. 5. Prosa. I. Título.

CDD 869.09

Todos os direitos reservados.


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Sumário
Trovadorismo: 1198-1418 | 7
Contexto histórico | 8
A poesia trovadoresca | 10
A Cantiga de Amor | 12
Cantiga de Amigo | 14
Cantigas de Escárnio e Maldizer | 16
Principais trovadores | 18
A permanência do Trovadorismo | 18

O Humanismo | 25
O homem como centro do universo | 26
O Humanismo em Portugal | 27
Gil Vicente (c. 1465-c. 1537): a grande figura literária do Humanismo | 29

Classicismo: 1527-1580 | 45
A Renascença Portuguesa | 45
Os gêneros clássicos | 46
Épica: Os Lusíadas, um prodígio arquitetônico | 47
Os Lusíadas: episódios | 50
Conclusão sobre Os Lusíadas | 56
A lírica camoniana | 57
Os sonetos de Camões | 58
Amor com engenho e arte | 60

Barroco (1580-1756) | 65
Pode-se falar em Barroco? | 65
Poesia barroca portuguesa | 67
Prosa barroca portuguesa | 71
Conclusão | 76

Arcadismo (1756-1825) | 79
A reação contra o Barroco literário | 79
Principais lemas dos poetas árcades | 82
Bocage e o Arcadismo | 86
Conclusão | 87

O Romantismo: prosa | 95
Romantismo e burguesia | 95
A sensibilidade romântica e o gênero romance | 96
O estabelecimento do liberalismo em Portugal e o romance | 100
A sedimentação do romance em Portugal | 111

O Romantismo: poesia | 121


A arte como mercadoria | 121
A sensibilidade romântica e a poesia | 123
As idéias liberais, o ultra-romantismo e o nacionalismo | 127
A originalidade e a autenticidade tornadas convenção | 135

O Realismo (1865-1890) | 141


O “realismo” como arma de crítica social e política | 141
A poesia realista | 148
A prosa realista | 153

Simbolismo | 163
Portugal simbolista | 169
O simbolismo português | 170
Modelos para o Modernismo | 177

O Saudosismo | 183
A Sociedade Renascença Portuguesa e o Saudosismo | 183
Florbela Espanca (1894-1930): uma poesia em suspensão | 190
Precursores do modernismo | 193

Modernismo:geração de Orpheu | 197


A revista Orpheu | 197
Fernando Pessoa (1888-1935) | 199
Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) | 208
Almada Negreiros (1893-1970) | 209
A epopéia portuguesa moderna: de Os Lusíadas a Mensagem | 211

Modernismo Presencista | 215


O direito à liberdade de criação | 215
A república e a ditadura de Salazar | 216
A revista Seara Nova (1919-1974) | 216
A revista Presença (1926-1940) | 218
A autonomia da literatura e sua relação mediada com a realidade | 226

Gabarito | 231

Referências | 239
Apresentação
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Carlos Drummond de Andrade
“Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: ‘Navegar é preciso,
viver não é preciso’. Quero para mim o espírito (d)esta frase, transformada a
forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessá-
rio é criar”: esta conhecida passagem de Fernando Pessoa serve-nos de mote
para justificarmos as travessias e os percursos pelo vasto espaço da Literatura
Portuguesa.
O objetivo principal é o de compreender elementos para o estudo crí-
tico-produtivo das manifestações canônicas da Literatura Portuguesa, entre
1189 e 1915, situando-a no contexto da literatura ocidental.
Como estratégia de leitura, vamos centrar nosso investimento discur-
sivo e investigativo no que singulariza as diferentes manifestações literárias
do medievo ao início do século XX, a saber:
– Trovadorismo (1198-1418),
– Humanismo (1418-1527),
– Classicismo (1527-1580),
– Barroco (1580-1765),
– Arcadismo (1756-1825),
– Romantismo (1825-1865),
– Realismo (1865-1890),
– Simbolismo (1890-1915),
– Saudosismo (a partir de 1912), e
– Modernismo (a partir de 1915).
Você deve se perguntar o porquê do ano 1189, o porquê do ano 1915.
Utilizaremos essas datas menos como marcos definitivos que como balizas
temporais para localizarmos, entre aproximações e distanciamentos, cada
arte poética ao longo desse recorte temporal.
Alguns estudiosos das origens da Literatura Portuguesa consideram
1189 um dos anos prováveis da escrita da “Canção da Ribeirinha”, de Paio
Soares de Taveirós, a quem se atribui o primeiro poema escrito em língua
portuguesa. Outros pesquisadores consideram a publicação da revista
Orpheu, em 1915, com a participação fundamental de Fernando Pessoa,
o marco inicial do Modernismo em Portugal. Se tais datas não passam de
convenções (não consensuais, diga-se de passagem), não é menos certo di-
zer que derivam de um esforço reflexivo e investigativo sobre as condições
de possibilidade da textualidade lusitana.
Em última instância, desejamos que estas páginas sobre Literatura
Portuguesa estimulem a reflexão sobre a importância da Literatura como
um modo privilegiado de conhecimento, como uma maneira especial de ver
e dizer o mundo. E também que possam incentivar o contato prazeroso com
o Texto, ao que chamaremos fruição textual.
Em A Lírica Trovadoresca, Segismundo Spina escreve que para se
compreender a Literatura da Idade Média é necessário amá-la. Pode-se
acrescentar que não só a compreensão da literatura medieval, mas a Litera-
tura Portuguesa de modo geral, das primeiras cantigas de amor e de amigo
às textualidades contemporâneas, solicita um envolvimento amoroso.
Nesse sentido, consideramos oportuno iniciarmos a nossa travessia
literária com uma reflexão sobre a arte de amar (ars amatoria), tema por
excelência do lirismo trovadoresco medieval.
Stélio Furlan e José Carlos Siqueira
Simbolismo
José Carlos Siqueira
Antes de tudo, a música.

Paul Verlaine

A Ladainha de Satã
Anjo belo demais, tu, mais sábio dos anjos,
deus que a sorte traiu, deus sem louvor de arcanjos,

Ó Satã, tem piedade da minha miséria!

Príncipe do exílio, punido injustamente


e que mesmo vencido volta mais potente,

Ó Satã, tem piedade da minha miséria!

Ah, tu que tudo sabes, rei das catacumbas,


curandeiro habitual das angústias profundas,

Ó Satã, tem piedade da minha miséria!

Esse é, na tradução de Jorge Pontual, apenas o trecho inicial do poema de Charles Baudelaire, que
compõe o livro As Flores do Mal, publicado em Paris em 1857. Charles Baudelaire (1821-1867) é talvez a
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referência maior da poesia oitocentista francesa. Homem de idéias radicais, foi um forte crítico de sua
época, tanto no âmbito da política, quanto no da arte. Foi quem primeiro traduziu Edgar Allan Poe para
o francês, tendo sido um grande crítico de artes plásticas. Além de As Flores do Mal, publicou Paraísos
Artificiais (1860), Curiosidades Estéticas (1868), A Arte Romântica (1868), Meu Coração Desnudado (1909),
entre outras obras. O poema anterior retrata Deus como entidade opressora, desumana e autoritária e
Satanás como entidade injustiçada, humana e oprimida. A inversão aqui produzida provoca um efeito
desconcertante no leitor, que se vê obrigado a rever a idéia que tem dessas duas figuras e questionar a
legitimidade de suas representações.
Ao humanizar Satanás e desumanizar Deus, Baudelaire questiona a hierarquia das entidades cris-
tãs que têm relação direta com a hierarquia social, pois reis e governantes sempre estiveram ligados à
escolha divina, enquanto trabalhadores e pobres foram sistematicamente demonizados: “O meu nome
é Legião”, dizia o espírito maligno para Jesus, na Bíblia.
Essa inversão da hierarquia divina que questiona a ordem social vigente no século XIX na França
associava-se a uma postura bastante original no modo de conceber a natureza. Um outro poema de
Baudelaire, com tradução de Jorge Pontual, intitulado “Correspondências”, assim define a natureza:

Da Natureza, templo de vivos pilares,


Uma fala confusa muitas vezes sai;
Pela selva de símbolos o homem vai
Sob a contemplação de íntimos olhares.

Como ecos distantes que confundem tons


Numa crepuscular e profunda unidade,
Tão vasta como a noite e como a claridade,
Conversam os perfumes, as cores, os sons.

Há cheiros frescos como dos recém-nascidos,


Doces como oboé, verdes como um jardim
– e outros triunfais, ricos e corrompidos,

Com toda a expansão dessas coisas sem fim,


Como âmbar, almíscar, benjoim e incenso,
Que cantam os sentidos e a mente em ascenso.

É evidente que este não é um poema de fácil entendimento. Nada aqui é dito de forma direta,
estabelecendo, já nos dois primeiros versos, relações entre a dimensão espacial e arquitetônica de “pi-
lares” e a dimensão lingüística de “fala” (no original francês paroles). Portanto, logo no início já temos a
sobreposição de dois mundos que não se relacionam diretamente em termos lógicos: a dimensão do
espaço e a dimensão da língua. E mais adiante irá dizer “Tão vasta como a noite e como a claridade, /
Simbolismo | 165

Conversam os perfumes, as cores, os sons”. Portanto, uma sobreposição de sensações e de sentidos: au-
dição, visão, olfato.

Charles Baudelaire (1821-1867).

Podemos, portanto, inferir que o eu poético fala das correspondências entre os sentidos, entre as
linguagens das artes (arquitetura e literatura), que geram o que ele designa de “natureza”, uma “selva de
símbolos”. A natureza aqui não é uma coisa exterior ao homem, a qual somente se contempla, mas é,
sim, algo construído pelos nossos sentidos e pelas relações que fazemos entre as diversas formas que
temos de sentir e de representar o mundo.
Essa idéia de natureza construída pelos sentidos tem na forma do poema sua demonstração, pois
sua composição gera um texto um tanto impreciso e obscuro, tal qual apreendemos pelos sentidos o
mundo e a natureza. Nada é, portanto, claro, explícito e exato na proposta estética de Baudelaire: nem
sua crítica social, nem sua percepção de mundo, nem o sentido de suas composições.
Vale ainda notar que Baudelaire entendia a arte como autônoma em relação às outras esferas da
vida social. A idéia da “arte pela arte” está pressuposta em sua concepção literária, não se admitindo sua
subordinação a causas sociais ou a interesses pessoais e imediatistas.
Tais princípios estéticos funcionaram como modelo para o que mais tarde ganharia na França o
nome de escola simbolista, inaugurada pelo poeta Jean Moréas, que fundou a revista Le Symboliste em
1886. Foi uma escola que se restringiu quase que exclusivamente à poesia, tendo sido poucos os prosa-
dores que a ela aderiram.
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Poète mort porté par un centaure


(Poeta morto carregado por um
centauro), de Gustave Moreau.

Outros poetas também foram importantes para os simbolistas, como Verlaine, Rimbaud e
Mallarmé, que têm poemas exemplares do modo de composição que essa vertente literária adotou.
Paul Verlaine (1844-1896) foi um importante escritor francês que transgrediu em vários aspectos:
era republicano num período em que a França ainda era monarquista, era alcoólatra e apaixonou-se
por outro homem, o também escritor Arthur Rimbaud, a quem feriu com um tiro. Por conta disso, ficou
preso dois anos. Morreu pobre e doente, tendo publicado Poemas Saturninos (1866), As Festas Galantes
(1869) e A Boa Canção (1870), Romances sem Palavras (1874) e Sabedoria (1881), Outrora e Agora (1884),
além de coletâneas religiosas e eróticas, entre outros textos dispersos.
Arthur Rimbaud (1854-1891) começou sua atividade poética muito cedo. Aos 16 anos compõe
Bateauivre. Aos 17 anos passa a ter um relacionamento amoroso com Verlaine, viajando com ele para a
Bélgica e para a Inglaterra. Quando é ferido por Verlaine, escreve Uma Estadia no Inferno. Cedo também
abandonou a poesia e passou a viajar pela Europa, Oriente Médio e África, tornando-se um administra-
dor de um escritório comercial. É um dos primeiros poetas a adotar o verso livre.
A obra de Stéphane Mallarmé (1842-1898) é geralmente dividida em duas fases: 1) a de sua cola-
boração com o Parnaso Contemporâneo e alguns poemas esparsos; 2) a de seus poemas mais longos e
com uma forma de composição muito original, como “A tarde de um fauno” (1876) ou “Um lance de da-
dos jamais abolirá o acaso” (1897).
Vejamos trechos do poema “Arte poética”, de Verlaine:

Antes de qualquer coisa, música


e, para isso, prefere o Ímpar
mais vago e mais solúvel no ar,
sem nada que pese ou que pouse.
[...]
Porque nós ainda queremos o Matiz,
nada de Cor, nada a não ser o matiz!
Simbolismo | 167

Oh! O matiz único que liga


o sonho ao sonho e a flauta à trompa.
[...]
Oh! Quem dirá os malefícios da Rima?
Que criança surda ou que negro louco
nos forjou esta jóia barata
que soa oca e falsa sob a lima?

A tradução de Gilberto Mendonça Telles é livre. (O poema é todo em eneassílabos — nove sílabas
por verso —, com acentos nas quartas e nas nonas sílabas, com rimas opostas e por vezes internas), mas
dá conta do sentido que aqui nos interessa. A música é eleita a grande referência para a poesia, isto é, a
musicalidade no poema é mais importante do que qualquer outro de seus aspectos. Isso está de acordo
com a idéia de que a poesia, diferentemente da prosa, deve sugerir mais do que dizer, multiplicar sen-
tidos mais do que restringi-los. Quando ouvimos uma música clássica ou instrumental não podemos
dizer sobre o que ela trata, mas podemos nos entregar ao sentimento que ela sugere: tristeza, alegria,
melancolia, dramaticidade etc. A idéia é que, se o escritor investisse mais na musicalidade das palavras
e menos no sentido literal que possuem, estaria mais próximo dos sentimentos, das sensações, afrou-
xando a relação direta com a realidade imediata, com a apreensão racional do mundo, como faria em
geral um romance ou um conto.
Nos “malefícios da rima” há também a negação da rima fácil, que caracterizou certa poesia român-
tica. Os simbolistas apreciam a rima rara, rica, e retomam alguns valores da arte poética neoclássica, mas
de modo a atualizá-la de forma original, sem tornarem-se escravos servis das artes poéticas.

Arthur Rimbaud (1854-1891).

Agora vejamos “Vogais”, um curioso poema de Rimbaud (tradução de Jorge Vilhena Mesquita),
que trabalha as correspondências propostas por Baudelaire:
A negro, E branco, I carmim, U verde, O azul:
vogais, de vós direi as matrizes latentes:
A, peludo corpete negro de luzentes
moscas volteando em pútrido, cruel paúl,
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golfos de sombra; E, tendas, graça dos vapores,


lanças do gelo, brancos reis, tremor de umbelas;
I, púrp’ras, hemoptises, rir de bocas belas
na cólera, em remorsos embriegadores.
U, ciclos, vibrações divinas do verdeado
mar, paz dos apascentos, paz do enrugado
que a alquimia imprime às frontes sobre os fólios;
O, supremo Clarim, cheio de silvos fundos,
silêncios trespassados de Anjos e de Mundos:
— O de Ómega, raio violeta dos Seus Olhos.

Escritos no comprimento de verso preferido dos simbolistas, isto é, em versos alexandrinos (do-
decassílabos), o eu poético atribuiu sentidos às vogais, fazendo com que a cada uma corresponda um
sentido diverso. Todavia, os sentidos que lhes são atribuídos não são precisos. Apenas podemos dizer,
por exemplo, que “A” sugere o pútrido, o mórbido, o sombrio, ou que o “O” sugere luminosidade, divin-
dade, glorificação. Enfim, as relações estabelecidas são vagas, obscuras, polissêmicas, provocando mais
nossas sensações e sentimentos do que nosso pensamento analítico, tal qual faz a música clássica ou
instrumental.

O Beijo, (1907). Gustav Klimt.

Portanto, se quisermos resumir as características da escola simbolista que apareceram até aqui,
podemos dizer que seus poemas são caracterizados pela valorização da subjetividade, do experimen-
talismo sensorial, pela recuperação do satanismo baudelairiano, pela recriação da tradição neoclássica,
tudo isso apontando para uma rejeição de uma visão racionalista, positivista e cientificista da realidade,
rejeitando também o sentimentalismo romântico, pois o sentimento aqui evocado é hermético, senso-
rial, psicológico, impessoal. Desse modo, toda poesia simbolista é marcada pelo sutileza, pela comple-
xidade, pela sugestão.
Simbolismo | 169

Portugal simbolista

O Ultimatum inglês
A escola simbolista surge em um momento dramático da história de Portugal no contexto euro-
peu. Na segunda metade do século XIX, diversos países da Europa disputavam o direito à colonização
das terras africanas. Aqueles que tinham presença histórica nas regiões da África podiam reivindicar as
terras como suas. Portugal fez isso com diversas localidades, entre elas a área hoje ocupada pela Zâmbia
e pelo Zimbábue, região que fica entre Angola e Moçambique. Segundo acordo firmado na Conferência
de Berlim em 1884 e 1885, essa região foi cedida a Portugal, delineando uma área que ficou conhecida
como “mapa cor-de-rosa”.
Mapa cor-de-rosa

Janus Online.

A distribuição de terras africanas de Portugal, segundo o


mapa acima, faria com que esse país tivesse acesso aos dois
oceanos através de um contínuo territorial.

Todavia, a Inglaterra também acreditava ter direitos sobre aquele território e em 11 de janeiro de
1890 o governo inglês enviou um documento intimando Portugal a não ocupar aquelas terras. Como D.
Carlos, rei de Portugal, sabia da dependência econômica de seu país frente aos britânicos, além de re-
conhecer a enorme inferioridade bélica de seu exército em relação ao do opositor, acatou de imediato a
intimação inglesa, episódio que ficou conhecido como Ultimatum inglês e que gerou uma forte reação
de indignação por parte de todo o povo lusitano.
Todos se sentiram humilhados com aquela sujeição aos mandos ingleses, gerando um forte des-
gaste para a imagem da família real e da monarquia. A partir daí, esta teria seus dias contados e, em 1º
de fevereiro de 1908, D. Carlos acabaria assassinado, assim como seu filho e herdeiro do trono D. Luis
Filipe. O regicídio gerou uma crise que culminou com o fim da monarquia portuguesa e a instauração
em 1910 de um governo republicano encabeçado por Teófilo Braga, que se tornou presidente interino.
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O Simbolismo Português
O simbolismo português surge na gestão do Ultimatum inglês, sendo obrigado a dialogar, quer
por negação, quer por afirmação, com a crise da identidade nacional portuguesa, que se via como nun-
ca desprestigiada frente ao contexto europeu e frente aos olhos dos próprios portugueses.

Eugênio de Castro (1869-1944)


O escritor que irá inaugurar a estética simbolista em Portugal é Eugênio de Castro, que começa a
divulgação dessa nova concepção poética na revista Os Insubmissos e em Boêmia Nova, ambas de 1889.
Já autor de diversas obras poéticas, publica em 1890 o livro Oaristos, cujo prefácio acabou sendo consi-
derado uma espécie de manifesto do Simbolismo Português. A este, segue-se o livro Horas (1891), que
também traz um prefácio similar.

Eugênio de Castro (1869-1944).

Além destes, Eugênio de Castro publicou diversos outros livros, tais como Sylva (1894), Interlúnio
(1894), Belkiss (1894), Tirésias (1895), Sagramor (1895), Salomé e Outros Poemas (1896), A Nereide de Harlém
(1896), Constança (1900), Depois da Ceifa (1901), A Sombra do Quadrante (1906), O Anel de Polícrates
(1907), A Fonte do Sátiro (1908), O Cavaleiro das Mãos Irresistíveis (1916), Canções desta Negra Vida (1922),
Cravos de Papel (1922), A Caixinha das Cem Conchas (1923), Descendo a Encosta (1924), entre diversos ou-
tros. A extensão de sua produção poética é impressionante.
Foi um mestre na musicalidade de seus poemas. Vejamos apenas um trecho do poema XI do livro
Oaristos (que significa “encontros amorosos”):
Simbolismo | 171

Na messe, que enlourece, estremece a quermesse...


O sol, o celestial girassol, esmorece...
E as cantilenas de serenos sons amenos
Fogem fluidas, fluindo à fina flor dos fenos...
As estrelas em seu halos
Brilham com brilhos sinistros,
Cornamusas e crotalos,
Cítolas, cítaras e sistros,
Soam suaves, sonolentos,
Sonolentos e suaves,
Em suaves,
Suaves, lentos lamentos,
De acentos,
Graves,
Suaves...

Não há como ler estes versos sem um dicionário nas mãos. Já o título do livro, Oaristos, pede a
consulta ao dicionário. O vocábulo raro, que revitalize a língua e faça com que o dicionário não se torne
um depósito de palavras desconhecidas, é uma das preferências simbolistas.
Este trecho do poema descreve o pôr-do-sol durante uma quermesse no campo. A sonoridade
do poema é embriagante e, mesmo sem saber exatamente o sentido das palavras, podemos ter prazer
em recitar o poema apenas por conta de seu ritmo, de sua musicalidade. “Antes de tudo, a música”, di-
zia Verlaine. Nesse poema, Eugênio de Castro seguiu o preceito à risca. As aliterações, as repetições de
palavras, a métrica, que sai de um verso alexandrino e chega a um verso de duas sílabas, tudo leva para
uma apoteose sonora e musical. Note como a disposição dos versos também e calculada, fazendo com
que os versos tornem-se mais curtos em analogia ao minguar da luz do sol.
Temos em Eugênio de Castro a encenação de um perfeito nefelibata, isto é, o homem vive nas nu-
vens, pois em pleno Ultimatum inglês o poeta resolve falar de encontros amorosos de um modo extre-
mamente sofisticado, deixando seus contemporâneos sem saber o que pensar daquela poesia elitista.
Vale lembrar que no prefácio do livro o escritor deixa claro que não se preocupa com a opinião do públi-
co, nem espera ser lido ou aceito por ele e pelos críticos. Apenas tem certeza que fez um bom trabalho.
É uma postura bastante provocativa para um país que afundava econômica e politicamente.
172 | Literatura Portuguesa

António Nobre (1867-1900)


Outro poeta paradigmático do simbolismo português é Antônio Nobre. Ao contrário de Eugênio
de Castro, Nobre teve vida e obra muito curtas. Morreu aos 33 anos de tuberculose e deixou publica-
do em vida apenas um livro intitulado Só, que obteve duas edições: uma em Paris, em 1892, e outra em
Lisboa, em 1898; esta com várias alterações, que passou a ser a versão definitiva do livro.
Foi um dos fundadores da já mencionada revista Boêmia Nova, tendo deixado, além do livro Só,
um outro livro incompleto que estava preparando, intitulado Despedidas (1902), e uma coletânea de
suas primeiras obras, intitulada Primeiros Versos (1921), ambos publicados postumamente.

Antonio Nobre (1867-1900).

Considerado por parte da crítica como um neo-garrettiano ou mesmo um neo-romântico, em


função do forte saudosismo que aparece em sua obra e pelo tom aparentemente romântico que apre-
senta em seus poemas, é, no entanto, tomado por outra parte da crítica como um simbolista que já traz
traços claros do Modernismo que ainda virá. Importa perceber que na obra de António Nobre encontra-
mos a convergência de diversas vertentes estéticas, sem que nenhuma delas dê conta de contemplá-la
em toda a sua complexidade.
O livro Só é um livro orgânico, que apresenta um eu poético do começo ao fim. É possível dizer
que todos os poemas do livro traçam um percurso um tanto impreciso desse eu poético. Não é um livro
de teor narrativo, mas, de forma fragmentada, acaba nos apresentando o percurso de António ou, mais
afetivamente, Anto. Tal percurso partiria do eu poético coletivo António para o eu poético existencial
Anto. Definido nos dois primeiros poemas do livro como um exilado e, portanto, predominando o sen-
tido social e político dessa figura, António caminhará no decorrer do livro para a perspectiva mais inti-
mista e existencial de Anto, sem abandonar o sujeito socialmente definido.
É impossível não observar que o eu poético tem o mesmo nome do autor, o que induz a sobre-
posição entre sua vida e sua obra. Nobre utiliza essa estratégia menos para dar verossimilhança aos
seus versos, como faziam os românticos, do que para confundir o leitor, que espera encontrar ali um
Simbolismo | 173

eu poético romântico, mas se vê ludibriado pela constante auto-ironia dele. Nunca sabemos se deve-
mos ler os sofrimentos de António de forma séria ou debochada, e isso produz o desconcerto na leitu-
ra desses versos. Importante é jamais confundir o escritor e cidadão António Nobre com o eu poético
António ou Anto, pois o eu poético é sempre uma construção ficcional e não pode ser tomado como
o próprio escritor.

Vejamos a “Balada do caixão”, do livro Só.

(NOBRE, 1891)
O meu vizinho é carpinteiro,
Algibebe de Dona Morte,
Ponteia e cose, o dia inteiro,
Fatos de pau de toda a sorte:
Mogno, debruados de veludo,
Flandres gentil, pinho do Norte...
Ora eu que trago um sobretudo
Que já me vai aborrecer,
Fui-me lá ontem: (era Entrudo,
Havia imenso que fazer...)
– Olá, bom homem! quero um fato,
Tem que me sirva? – Vamos ver...
Olhou, mexeu na casa toda.
– Eis aqui um e bem barato,
– Está na moda? – Está na moda.
(Gostei e nem quis apreçá-lo:
Muito justinho, pouca roda...)
– Quando posso mandar buscá-lo?
– Ao pôr do Sol!. Vou dá-lo a ferro:
(Pôs-se o bom homem a aplainá-lo...)
Ó meus Amigos! Salvo erro,
Juro-o pela alma, pelo Céu:
Nenhum de vós, ao meu enterro,
Irá mais dândi, olhai! Do que eu!
Paris, 1891.

O eu poético quer ir elegante para o túmulo. Tanto a morte como o dandismo são aqui ironiza-
dos. A expressão dandismo vem da palavra inglesa dandy, que designava no século XVIII os homens bur-
gueses que pretendiam se vestir e se comportar como aristocratas. No século XIX, o dândi passou a ser
aquele homem que procurava se distinguir da população como um todo, mesmo da aristocracia, em ra-
zão de suas roupas um tanto extravagantes, de seu comportamento peculiar (mas sempre refinado), de
seu gosto cultivado e mesmo exótico. Um exemplo da postura de um dândi foi Charles Baudelaire.
Esse poema de Antonio Nobre é satírico e de fato não há como levar o eu poético a sério. O grotes-
co associado à morte e ao túmulo está aqui amenizado pelo humor, que ironiza fundamentalmente a vai-
dade consumista que caracteriza o burguês do século XIX, representada na crítica pela figura do dandy.
174 | Literatura Portuguesa

Mas a crítica de Nobre também dialoga mais explicitamente com o seu momento histórico.
Vejamos o soneto de número 2 do Só.

Em certo Reino, à esquina do Planeta,


Onde nasceram meus Avós, meus Pais,
Há quatro lustres, viu a luz um poeta
Que melhor fôra não a ver jamais.
Mal despontava para a vida inquieta,
Logo ao nascer, mataram-lhe os ideais,
À falsa-fé, numa traição abjeta,
Como os bandidos nas estradas reais!
E, embora eu seja descendente, um ramo
Dessa arvore de Heróis que, entre perigos
E guerras, se esforçaram pelo Ideal:
Nada me importas, País! seja meu Amo
O Carlos ou o Zé da T’reza... Amigos,
Que desgraça nascer em Portugal!
NOBRE, 1889.

O mencionado Carlos do final do poema é uma referência a D. Carlos, então rei de Portugal, sen-
do a expressão “Zé da T’reza” equivalente à expressão brasileira “Zé Mané”, que significa “qualquer um”.
Portanto, o eu poético conclui dizendo que não importava quem fosse o governante da nação, seria
sempre uma desgraça nascer em Portugal. Se lembrarmos que o poema é de 1889 e que, no ano seguin-
te, ocorreria o Ultimatum Inglês, temos em Nobre um sujeito antenado com o seu tempo.
Vale observar ainda o elemento saudosista no início do poema, que coloca em confronto o pas-
sado glorioso de Portugal com o presente miserável, fazendo com que a miséria do presente seja po-
tencializada.
É preciso notar que, tanto neste como no poema anterior, Antonio Nobre não trabalha com o
mesmo grau de obscuridade e opacidade que aparece nos poemas dos autores anteriormente mencio-
nados. Sua dicção é mais clara e direta. Todavia, a sugestão aqui não é abandonada, já que fala da reali-
dade portuguesa de forma mediada, pois não sabemos ao certo qual é o fundamento de sua crítica, por
que se sente traído em seus ideais. Somente o sentimento de traição e de descaso com a vida nacional
é que permanece vivo ao final do poema.
É, portanto, difícil classificar a obra de Nobre dentro de parâmetros desta ou daquela escola.
Importa, sim, perceber o quanto ela se revela crítica em relação à realidade.

Camilo Pessanha (1867-1926)


Assim como António Nobre, Camilo Pessanha também publicou apenas um livro em vida,
Clepsidra, impresso em Lisboa em 1920. Passou quase toda sua vida em Macau, na China, onde foi tra-
balhar para o governo português, tendo ali se casado e se viciado em ópio.
Simbolismo | 175

Camilo Pessanha (1867-1926).

Pessanha viu primeiramente seus poemas publicados na revista Centauro (1916), editada por Luís
de Montalvor, por intervenção de Ana de Castro Osório. Posteriormente, a maior parte desses poemas
foram reunidos e publicados em Clepsidra. Além dos poemas, publicou em 1912 um prefácio para o li-
vro Esboço Crítico da Civilização Chinesa, de Morais Palha, tendo escrito outros textos sobre cultura e li-
teratura chinesas. Toda a obra de Pessanha se resume a isso.
O título de seu livro, Clepsidra, faz referência a um relógio de água de origem egípcia, que mede
o tempo pelo escoamento de água em um recipiente graduado, relógio que controlava o tempo de
fala de oradores. Portanto, constatamos que já na escolha do título há um rigor exemplar, uma vez que
clepsidra remete ao tempo de fala de um discurso. Com isso, associa a noção de tempo à noção de lin-
guagem e à fluidez da água, sintetizando no titulo tudo o que iremos encontrar no livro. Os poemas ali
presentes, tomados como tempo discursivo, são repletos de referências ao elemento água.
Vejamos, por exemplo, o poema “Vênus”.

Vênus
(A Pires Avellanoso)
I
Á flor da vaga, o seu cabelo verde,
Que o torvelinho enreda e desenreda...
O cheiro a carne que nos embebeda!
Em que desvios a razão se perde!
Pútrido o ventre, azul e aglutinoso,
Que a onda, crassa, num balanço alaga,
E reflui (um olfacto que se embriaga)
Como em um sorvo, múrmura de gozo.
O seu esboço, na marinha turva...
De pé flutua, levemente curva;
Ficam-lhe os pés atrás, como voando...
E as ondas lutam como feras mugem,
A lia em que a desfazem disputando,
E arrastando-a na areia, co’a salsugem.
176 | Literatura Portuguesa

II
Singra o navio. Sob a água clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina...
- Impecável figura peregrina,
A distância sem fim que nos separa!
Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuamente cor-de-rosa,
Na fria transparência luminosa
Repousam, fundos, sob a água plana.
E a vista sonda, reconstrui, compara.
Tantos naufrágios, perdições, destroços!
- Ó fúlgida visão, linda mentira!
Róseas unhinhas que a maré partira...
Dentinhos que o vaivém desengastara...
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...
(Camilo Pessanha)

Fácil constatar o quanto esse poema é vago, sutil, complexo. Há muitas elipses, muita ambigüi-
dade, muita sugestão, um vocabulário incomum, uma sintaxe obscura. Seria difícil definir do que trata
o poema, se não fosse o título. Vênus, deusa do amor e da beleza, nasceu da espuma formada sobre o
mar pelo sêmen de Urano, que fora mutilado por seu filho Saturno (Cronos). Portanto, no mito de ori-
gem de Vênus temos Cronos, que é o tempo. Temos também o elemento água em todo o poema, na
presença do mar.

O nascimento de Vênus, de Botticelli.

Se quisermos estabelecer uma relação com o título do livro, falta somente a referência à lingua-
gem para completar a associação dos três elementos presentes em Clepsidra. Poderíamos dizer que o
próprio poema é a linguagem, mas há uma outra instância dessa linguagem mais complexa e mais in-
teressante que depende de uma interpretação do poema para ser apreendida.
Fazendo uma análise bem sucinta do poema, podemos dizer que o primeiro soneto que o com-
põe representa o nascimento e morte de Vênus. Na primeira estrofe temos uma menção ao nascimen-
Simbolismo | 177

to de Vênus e, na segunda, a sua decomposição, uma vez que nasce de um “pútrido ventre”. O corpo de
Vênus, nas duas estrofes seguintes, acaba por se desfazer na praia.
No segundo soneto, o foco do eu poético muda, pois é como se estivesse num barco, olhando
para um belo fundo de mar, que sempre lhe foge à vista. Quando, na terceira estrofe, olha e analisa com
mais atenção, percebe que as pedrinhas eram na verdade pedacinhos de ossos, e que as conchinhas
eram de fato unhinhas, enfim, restos mortais de naufrágios.
Desse modo, a Vênus aqui retratada está associada a naufrágios e à morte, a tudo aquilo que faz
parte do grotesco e não do belo, segundo os padrões clássicos de beleza. Logo, se considerarmos que
o eu poético nos fala da beleza, já que Vênus é um dos símbolos desta, teremos que concluir que, para
ele, o belo não está somente no modelo clássico evocado na figura de Vênus, mas também naquilo que
o Classicismo considerava grotesco.
Portanto, temos nesse poema uma redefinição da beleza clássica, integrando a ela o fascínio do
mórbido e do grotesco. Assim, o conjunto de versos desconexos da primeira leitura ganha sentido e for-
ça, ainda que não a partir de uma lógica racional e aristotélica, mas a partir de sugestões e analogias,
permitindo, portanto, uma infinidade de outras leituras e interpretações.

A cidade de Macau, possessão portuguesa na China.

Seria possível, por exemplo, ler a passagem da visão do belo fundo do mar em sua versão mór-
bida e tétrica, como uma representação da auto-estima portuguesa naquele momento histórico, que
apresentava uma aparência de paz e tranqüilidade (já que não havia nem guerras, nem revoluções),
mas se encontrava decadente e humilhada (em razão da situação de Portugal no final do século XIX).
Esse aspecto polissêmico do poema é uma característica central da poesia simbolista e particular-
mente da poesia de Camilo Pessanha.

Modelos para o Modernismo


Todo esse trabalho sofisticado com a linguagem fez com que os simbolistas se transformassem
em poetas de referência para os modernistas, que irão prosseguir na pesquisa da linguagem e romper
cada vez mais com os padrões neoclássicos e com o repertório romântico. Fernando Pessoa, por exem-
plo, será um grande admirador de Nobre e de Pessanha.
178 | Literatura Portuguesa

Dicas de estudo
::: Uma outra fonte de inspiração importante para os simbolistas foi a pintura dos pré-rafaelitas,
grupo de pintores ingleses (Dante Gabriel Rossetti, William Holman Hunt, John Everett Millais,
Edward Burne-Jones). Há várias publicações sobre eles e muitas reproduções de suas obras na
internet. Vale a pena conferir!

Ophelia, 1851-1852. John Everett Millais. Londres.

Texto complementar
Assim tem início e se conclui um dos poemas mais conhecidos e importantes de Antonio Nobre, que
apresenta uma visão crítica da história de Portugal e da realidade portuguesa oitocentista.

Lusitânia no bairro latino


(NOBRE, 1891-1892)
1
............................................ Só!
Ai do Lusíada, coitado,
Que vem de tão longe, coberto de pó.
Que não ama, nem é amado,
Lúgubre Outono, no mês de Abril!
Simbolismo | 179

Que triste foi o seu fado!


Antes fosse pra soldado,
Antes fosse próprio Brasil...

Menino e moço, tive uma Torre de leite,


Torre sem par!
Oliveiras que davam azeite,
Searas que davam linho de fiar,
Moinhos de velas, como latinas,
Que São Lourenço fazia andar...
Formosas cabras, ainda pequeninas,
E loiras vacas de maternas ancas
Que me davam o leite de manhã,
Lindo rebanho de ovelhas brancas;
Meus bibes eram de sua lã.

Antônio era o pastor desse rebanho:


Com elas ia para os Montes, a pastar,
E tinha pouco mais ou menos seu tamanho,
E o pasto delas era o meu jantar...
E a serra a toalha, o covilhete e a sala.
Passava a noite, passava o dia
Naquela doce companhia.
Eram minhas Irmãs e todas puras
E só lhes minguava a fala
Pra serem perfeitas criaturas...
E quando na Igreja das Alvas Saudades
Que era da minha Torre a freguesia
Batiam as Trindades,
Com os seus olhos cristianíssimos olhavam-me,
Eu persignava-me, rezava «Ave-Maria...»
E as doces ovelhinhas imitavam-me.
180 | Literatura Portuguesa

Menino e moço, tive uma Torre de leite,


Torre sem par!
Oliveiras que davam azeite...
Um dia, os castelos caíram do Ar!

As oliveiras secaram,
Morreram as vacas, perdi as ovelhas,
Saíram-me os Ladrões, só me deixaram
As velas do moinho... mas rotas e velhas!
[...]
E a procissão passa. Preia-mar de povo!
Maré-cheia do Oceano Atlântico!
O bom povinho de fato novo,
Nas violas de arame soluça, romântico,
Fadinhos chorosos da su’alma beata.

Trazem imagens da Função nos seus chapéus.

Poeira opaca. Abafa-se. E, no céu, ferro e oiro,


O Sol em glória brilha olímpico, e de prata,
Como a velha cabeça aureolada de Deus!

Trombetas clamam. Vai correr-se o toiro.


Passam as chocas, boas mães I passam capinhas.
Pregões. Laranjas! Ricas cavaquinhas!
Pão-de-ló de Margaride!
Aguinha fresca de Moirama!
Vinho verde a escorrer da vide!

À porta dum casal. um tísico na cama,


Olha tudo isto com seus olhos de Outro-Mundo,
E uma netinha com um ramo de loireiro
Enxota as moscas do moribundo.
Simbolismo | 181

Dança de roda moças o coveiro.


Clama um ceguinho:
«Não há maior desgraça nesta vida,
que ser ceguinho!»
Outro moreno, mostra uma perna partida!
Mas fede tanto, coitadinho...
Este, sem braços, diz «que os deixou na pedreira...»
E esse, acolá, todo o corpinho numa chaga,
Labareda de cancros em fogueira,
Que o sol atiça e que a gangrena apaga,
Ó Georges, vê! que excepcional cravina...

Que lindos cravos para pôr na botoeira!

Tísicos! Doidos! Nus! Velhos a ler a sina!


Etnas de carne! Jobes! Flores! Lázaros! Cristos!
Mártires! Cães! Dálias de pus! Olhos-fechados!
Reumáticos! Anões! Delíriums-trémens! Quistos!
Monstros, fenómenos, aflitos, aleijados,
Talvez lá dentro com perfeitos corações:
Todos, à uma, mugem roucas ladainhas,
Trágicos, à uma, mugem roucas ladainhas,
Trágicos, uivam «uma esmolinha plas alminhas
Das suas obrigações!»
Pelo nariz corre-lhes pus, gangrena, ranho!
E, coitadinhos! fedem tanto – é de arrasar...

Qu’é dos Pintores do meu país estranho,


Onde estão eles que não me vêm pintar?

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