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Não sabemos
Hoje, obras literárias estão eclipsadas pela realidade
12.abr.2020 à 1h38
Como meu amigo e colega Gregório Duvivier, eu também entrei na quarentena achando
que iria ler "Em Busca do Tempo Perdido" enquanto escreveria um romance de 800
páginas, um roteiro de longa e uma peça de teatro.
Três semanas mais tarde, porém, devo admitir que a minha inspiração tem desaguado
principalmente no Twitter e em mensagens para grupos de WhatsApp. Nem a leitura
tem sido muito produtiva: em vez de me empanturrar com as madeleines de Proust,
futuco a internet atrás de toda e qualquer migalha sobre a pandemia.
Tenho conversado com amigos escritores e a pane criativa parece ser geral. Não estar
conseguindo criar, no entanto, é um problema secundário se comparado à encrenca de
quem tem obras inéditas ou em produção.
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12/04/2020 Não sabemos - 12/04/2020 - Antonio Prata - Folha
Adams Carvalho/Folhapress
A pergunta que nos fazemos é: será que nossas obras terão algum sentido no mundo
pós-Covid? O que será o mundo pós-Covid? Como seremos nós, os sobreviventes da
Covid? Quereremos livros, filmes, séries e peças sobre a doença, o isolamento, ou
comédias leves que nos façam esquecer o passado recente?
Não sabemos. Não saber, aliás, é uma das angústias desta peste. Não sabemos quantas
pessoas morrerão. Se teremos parentes e amigos que morrerão. Se contrairemos a
doença. (Sete bilhões de pessoas imaginam, diariamente, a própria morte).
Qual será a extensão da quebradeira econômica? Teremos emprego daqui a três meses?
O que este sociopata que ocupa a Presidência da República ainda aprontará para piorar
a vida dos brasileiros? O coronavírus adiantará o fim do estafermo ou lhe dará meios
para executar o tão sonhado golpe de estado?
A única certeza é que a tragédia atual deixará marcas profundas em todos nós. E aí
reside mais um problema para os escritores com obras inéditas ou em produção. É
preciso inserir estas marcas nos personagens. Lançar um livro em dezembro de 2020
em que nenhum personagem mencione o coronavírus é como lançar um livro na Paris
ocupada em 1944 ignorando o nazismo.
Mas como inserir estas marcas se não sabemos quais serão? O medo da morte, somado
ao isolamento social, vai produzir um futuro próximo sob o signo da melancolia ou vai
todo mundo fazer suruba na rave cheirando lança perfume? Augusto dos Anjos ou
Village People?
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Não temos a mais vaga ideia e prostrados ficamos, sem saber se escrevemos "Vês!
Ninguém assistiu ao formidável/ Enterro de tua última quimera/ Somente a ingratidão
""esta pantera""/ Foi tua companheira inseparável" ou "It's fun to stay at the Y.M.C.A".
Hoje, contudo, todas estas obras estão eclipsadas pela realidade. O jornalismo tomou o
lugar da ficção. É com as notícias que choramos, sentimos medo, esperança, raiva,
empatia. Não vejo a hora desta loucura acabar, de voltarmos para nossas vidas e termos
que buscar na arte alguma beleza e sentido para nossas saudosas banalidades.
Antonio Prata
Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”.
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