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EDIÇÃO 3 | DEZEMBRO_2006

mundo literário

DIÁRIO ARQUIVADO
Para decepção dos pesquisadores de Guimarães Rosa, seus herdeiros impedem a publicação de
cartas e anotações do autor de Sagarana
CASSIANO ELEK MACHADO
O diplomata Guimarães Rosa aos 31 anos, quando escreveu em Hamburgo, no início da II Guerra Mundial, um diário
(capa acima), onde critica Machado de Assis por usar ``Artifícios Baratos`` FOTO: ACERVO DOS ESCRITORES
MINEIROS, CENTRO DE ESTUDOS LITERÁRIOS DA FACULDADE DE LETRAS, UFMG

N
o fundo da quinta e última gaveta de um arquivo de metal branco,
numa sala do terceiro andar da Biblioteca Central da Universidade
Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, está guardado um
envelope pardo. Dentro dele, enrolado num papel protetor contra acidez
e umidade, há um volume em formato de livro, com 20 centímetros de
comprimento, 13 de largura e dois de lombada. A capa é feita de um
papel mais grosso do que o miolo, com motivos gráficos que imitam
mármore, numa cor indecisa entre o bege e o rosa-claro. Uma caligrafia
miúda, com letras ligeiramente inclinadas para a direita, preenche boa
parte do livreto. Entremeando as anotações, há pequenos desenhos toscos
e, colados nas páginas, dezenas de recortes de jornais alemães. O
conteúdo das anotações e das reportagens fornece indícios sobre a forma,
a autoria, o período e o lugar em que o caderno foi feito. É um diário,
escrito por um brasileiro que acompanha, na Alemanha, o começo da ii
Guerra Mundial.
Ao longo das 208 páginas, o autor narra bombardeios, descreve o barulho
das sirenes e diz como o silêncio das noites era recortado por tiros. Conta
a primeira vez que viu um judeu com uma estrela amarela costurada na
roupa. Relata como uma bomba no Jardim Zoológico de Hamburgo
dizimou camelos. Registra o que anunciava uma pequena tabuleta num
parque: “Lugar de brinquedo para crianças arianas”. O autor do diário
era um jovem diplomata que servia pela primeira vez fora do Brasil, no
posto de cônsul-adjunto de Hamburgo. Aos 31 anos, tinha aspirações
literárias, mas ainda não havia publicado nada. Chamava-se João
Guimarães Rosa.

Em agosto de 1939, data das primeiras anotações, ele não faz literatura.
Sua escrita é prosaica, sem artifícios. Ainda assim, espalha pelo diário
figuras de linguagem, observações e poemetos que, lidos hoje, são
claramente “rosianos”. Seus flertes com a poesia são constantemente
relacionados à exaltação da natureza. “A noite começa debaixo das
árvores”, anota num canto, ao lado dos registros de um bombardeio e de
recortes de anúncios de escritórios de advogados e de um hotel em
Hamburgo.

Em outro ponto, põe no papel um poema que começa com a estrofe “As
lagoas são armadilhas armadas para pegar a lua/ porque a lua não se
reflete (não desce a) na mata, nem no chão (terra dura)”. Ao lado dos
escritos mais pessoais, de invencionices subjetivas, ele acrescenta o sinal
M%, que significaria, segundo especialistas na obra de Guimarães Rosa,
“meu 100%”. O símbolo aparece, por exemplo, ao lado de um escrito
intitulado A Ladeira: “A ladeira da vida inteira… Tudo é vaidade, tudo é
besteira, só uma coisa é que é verdadeira: subindo a ladeira, sobe-se a
ladeira da vida inteira…”.

Mais próximas da linguagem que apresentaria em obras como Grande


Sertão: Veredas são as listas de palavras. Numa delas, Rosa enumera
vinte temperos usados para fazer uma sopa típica de Hamburgo. Noutra,
arrola diferentes gestos – “de sensação”, como “cabecear sonolento” ou
“tremer de frio”, “de sentimento”, “de ação” e “de irritação”, como o
certeiro “tremer a cabeça como sexagenário”.

Num dos comentários mais surpreendentes do diário, paradoxalmente, o


jovem diplomata critica o maior escritor brasileiro pelo hábito de se valer
de anotações na criação de suas obras: “Adquiri certeza, quase absoluta,
de que ele, antes mesmo de compor os seus livros, ia anotando:
pensamentos, frases etc., em livro ou em cadernos especiais, espécie de
surrão ou alforje, de onde sacava, aos punhados, ou pinçava, um a um, os
elementos de reserva que houvessem resistido ao tempo conservando-se
bem (processo aliás muito louvável. Tanto quanto o hábito de
‘compulsar’ dicionários, visível em M. de. A.)”.

“M. de. A.” era ele, Machado de Assis. Na anotação que se presume a
mais antiga do diário, pois seus escritos nem sempre são datados e
ordenados, o jovem Rosa faz outras três observações sobre o autor de
Memórias Póstumas de Brás Cubas, a partir da leitura, como admite,
“apressada” do romance. Na primeira, afirma que Machado “gosta, usa e
abusa da construção terciária: silogística ou hegeliana (premissa maior —
premissa menor — conclusão; ou tese — antítese — síntese). A cada
passo a gente esbarra com vestígios desse vezo, quando não com a
armação completa, a qual pode ser decomposta de várias maneiras: um
pulinho para a direita, outro para a esquerda, outro para a frente…
quando não para trás”.

Os elogios ficam guardados para outro tópico: “De verdadeiramente


interessante é no livro: a) o capítulo ‘É minha’, onde o autor descobre a
‘lei da equivalência das janelas’; b) o capítulo ‘O momento oportuno’,
onde escreve: ‘Não há amor possível sem a oportunidade dos sujeitos’; c)
a filosofia ‘humanitática’ de Quincas Borba.” Ao lado do “humanitática”
o autor tasca outro dos seus “M%”.

A catimbada fica para o final. Depois de afirmar que não pretende ler
mais nada do escritor, “a não ser seus afamados contos” e, talvez, o
começo do Dom Casmurro, ele escreve: “Acho-o antipático de estilo,
cheio de atitudes para ‘embasbacar o indígena’; lança mão de artifícios
baratos, querendo forçar a nota da originalidade; anda sempre no mesmo
trote pernóstico, o que torna tediosa a sua leitura”. Rosa não para aí:
“Quanto às ideias, nada mais do que uma desoladora dissecação do
egoísmo, e, o que é pior, da mais desprezível forma de egoísmo: o
egoísmo dos introvertidos inteligentes”. Para terminar, lança um “Bem,
basta; chega de Machado de Assis”. No canto direito inferior da página
acrescenta a data: “Hamburgo, 15 de agosto de 1939”. Duas semanas
depois, Hitler invadiria a Polônia, marco zero da II Guerra Mundial.

A diatribe contra Machado de Assis, morto no mesmo 1908 em que Rosa


nasceu, acabaria por se revelar um momento raro não só nos diários, mas
na vida do escritor, um homem de temperamento contemporizador,
pouco dado a sinceridades indelicadas com seus pares. E, no entanto,
assim como o conjunto do diário, a crítica jamais foi publicada em livro.

Não por falta de interesse. “O diário é de importância crucial para a


compreensão da biografia e do processo de criação literária de Guimarães
Rosa, além de ser muito esclarecedor sobre o cotidiano de um diplomata
brasileiro na Alemanha, durante a II Guerra”, afirma Eneida de Souza.
Professora emérita de literatura brasileira da Universidade Federal de
Minas Gerais, a UFMG, ela é uma das poucas pesquisadoras que
conhecem os escritos de Hamburgo. Outros dois são, não por acaso, seus
colegas de universidade: os professores Reinaldo Marques e Georg Otte.
O diário chegou até eles por veredas vicinais.

Em maio de 1973, Aracy Moebius de Carvalho, viúva do escritor,


permitiu que Henrique Gregori, então presidente da Xerox do Brasil e
futuro proprietário da editora José Olympio, fizesse cinco reproduções
dos cadernos de Hamburgo.

Uma dessas cópias ficou com a mulher do empresário, Ana Elisa Gregori,
que por sua vez a cedeu para uma tia, a poeta Henriqueta Lisboa. Com a
morte de Henriqueta, sua biblioteca foi doada à ufmg. No dia 18 de
dezembro de 1989 o volume com os escritos alemães de Rosa ganhou um
carimbo azulado: “Biblioteca Universitária — 3354989-03 — ML-
00007762-9”. Nenhum arquivo público tinha até então as anotações do
cônsul-adjunto Guimarães Rosa. Nem mesmo o do Instituto de Estudos
Brasileiros da Universidade de São Paulo, maior depositário de
informações sobre o escritor desde 1973, quando comprou 20 mil
documentos deixados por Rosa.

Mesmo com a chegada a uma biblioteca pública, o diário de Hamburgo


seguiria pela sombra. No início de 2001, a professora Eneida de Souza e
seus parceiros foram procurados pela editora Nova Fronteira, que desde
1984 publica a obra do escritor. A ideia era que Eneida e Reinaldo
Marques, associados ao alemão Georg Otte, que poderia servir como
tradutor dos recortes de jornais, preparassem o texto para publicação.
Reinaldo Marques conta que a edição começou a desandar no final
daquele ano, quando se noticiou que o diário alemão de Rosa viria à tona.
“A família ficou preocupada e mandou recado, dizendo que deveríamos
parar com o trabalho”, recorda Marques. O diário voltou ao seu envelope
pardo, que foi posto no fundo da gaveta de um arquivo.

G
uimarães Rosa casou-se pela primeira vez em 27 de junho de 1930,
dia em que completou 22 anos. Lygia Cabral Penna, sua noiva, era
uma moça morena, vizinha desde tempos de infância. Tinha o
apelido de Lili. Estava com 16 anos, era magra e usava cabelos lisos e
curtos. No final do ano, Joãozito, como ela o chamava, formou-se em
medicina. Orador da turma, fez um discurso repleto de citações, que
terminava com um provérbio eslovaco: “Kdyz je nouze nejvissi, pomoc
byva nejblissi!” (Quando mais terrível é o desespero, aí é que o socorro já
vem perto!).

Pouco depois de casado, Rosa perambulou com a mulher pelo interior de


Minas Gerais, trabalhando como médico. Lygia lhe deu duas filhas,
ambas nascidas nessas itinerâncias, em partos feitos pelo próprio escritor.
Vilma nasceu em Itaguara, em 1931, e Agnes em Barbacena, dois anos
depois.

Em 1934, ele estava desiludido com a profissão. “Não nasci para isso”,
escreveu numa carta a um amigo. Prestou então concurso para o
Itamaraty e foi aprovado em segundo lugar. A família Rosa se mudou
para o Rio de Janeiro. Pouco depois de formado, Rosa foi designado para
o posto de cônsul-adjunto do Brasil em Hamburgo. Em maio de 1938 o
jovem diplomata toma um navio para a Alemanha. Viajou sem a mulher
e as filhas.

Em Hamburgo, Guimarães Rosa conheceu sua segunda mulher, Aracy.


Bonita, morena, de feições à la Vivien Leigh em E o vento levou, ela
trabalhava na seção de passaportes do consulado brasileiro. Também
havia se casado uma vez e tinha um filho, o pequeno Eduardo. Rosa e
Aracy ficariam juntos até a morte do escritor, em 1967.

O espólio de Guimarães Rosa está dividido em três ramos: as duas filhas


e a viúva. Vilma e Agnes moram no Rio de Janeiro. Aos 98 anos, Aracy
vive em São Paulo, mas por conta de problemas de saúde tem seus
direitos administrados por um neto, Eduardo Carvalho Tess Filho, de 50
anos.

Tess, especializado em direito internacional, mora em São Paulo. Seu


escritório fica num casarão creme, numa zona valorizada, a Avenida
Brasil. Quase sem se mexer na cadeira, com os cabelos imobilizados por
gel, os olhos grandes e claros estacionados na parede oposta, ele enumera
friamente problemas com as irmãs Vilma e Agnes. As desavenças
começaram já na época do inventário. O testamento estabelecia, segundo
Tess, que a avó teria direito à metade dos direitos autorais da obra do
marido. Ele diz que, devido ao “comportamento das filhas”, a feitura do
inventário estendeu-se por um período “longo e desagradável”. Como
resultado, Aracy teria feito uma composição e dividido tudo por três.
Naquele momento, definiu-se que qualquer publicação ou
comercialização, qualquer licença ou autorização que envolvesse a obra
de Rosa teria de receber a permissão do trio. Com uma única exceção: por
terem sido doados em vida a Aracy, os direitos de Grande Sertão não
entrariam no bolo.

Na interpretação de Vilma Guimarães Rosa, a primogênita, a situação é


diferente. “Para publicar algo de papai, é preciso pedir autorização à
minha irmã e a mim”, ela diz, num tom de voz suave. Com 75 anos,
Vilma publicou oito volumes de contos, além de um livro de memórias,
Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai.

Ao menos num assunto, Tess e as irmãs Guimarães Rosa concordam: o


diário de Hamburgo não sai da gaveta porque Agnes não deixa. “Agnes
faz de conta que a separação do Joãozinho da mãe delas nunca houve”,
diz Tess, “e o diário de Hamburgo é justamente da fase em que ele
conheceu minha avó”.

O advogado sustenta que Rosa já embarcou para a Alemanha desquitado


de Lygia e, portanto, a história de amor com Aracy não seria adultério. Já
Vilma diz que o pai ainda era casado quando se envolveu com Aracy,
que é citada constantemente no diário. “Por isso é que minha irmã fica
danada; ela achou uma falta de respeito com minha mãe,” afirma.

Agnes não entra em detalhes sobre seus motivos. “Católica apostólica


romana”, diz recear “sensacionalismos” em torno de seu pai. Formada em
geografia, ela não escreve, mas se considera ótima leitora. No ano
passado ela releu o diário de Hamburgo. “Não tenho interesse em que
seja publicado, não tem nada ali que acrescente”, diz. Mais adiante,
confessa que acha algumas passagens interessantes. “Se eu pudesse fazer
um expurgo e publicar só as coisas que interessam do diário, aí
publicaria. Mas as picuinhas, os diz-que-me-diz, não.”
Em 2001, quando Vilma, Tess e a editora Nova Fronteira se interessaram
em publicar os escritos de Hamburgo, Agnes usou um expediente
infalível para barrar o processo. “Insistiram tanto que eu pedi um preço
absurdo. Quando você não quer uma coisa e diz que não quer, as pessoas
não compreendem, e então resolvi pedir um valor que nem me lembro —
uma loucura.” Ela conta que, desde então, repetiu o expediente.

Vilma chegou a conviver com Aracy no final dos anos 40, quando foi
morar com ela e o pai em Paris. “Ela foi muito boa para o meu pai”,
atesta. “Ela se apagou para que meu pai brilhasse.” A irmã caçula conta
que esteve poucas vezes com a madrasta: “Papai gostava muito de nos
levar para um passeio à Ilha de Paquetá, aos domingos. Ele ia fazendo
um joguinho com a gente, de sinônimos. Aracy ia junto. Ela tinha uma
pontinha de ciúme, uma bobagem. Filha é filha, não tem como lutar.”

S
e alguns aprendem francês só para ler Proust, a austríaca Kathrin
Rosenfield pode dizer que estudou português por conta de Rosa.
“Quando comecei a ler Grande Sertão pela primeira vez, em 1984,
um pouco antes de chegar ao Brasil, não conhecia o português. Entrei no
sertão rosiano (e no meu, linguístico) me orientando com meus
conhecimentos de outras línguas latinas (o francês, o espanhol e o
italiano)”, explica ela no prefácio do seu livro Desenveredando Rosa
(editora Topbooks). Professora de literatura da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, ela estuda a obra do escritor desde aquela época e
nunca conseguiu ver os diários de Hamburgo

“Acho lamentável que seja tão difícil conhecer os documentos de um


autor da importância de Rosa”, diz a professora. “Duplamente
lamentável, aliás, porque esse desconhecimento cria também mitos como
aquele que um colega me expôs um dia. Ele disse que, no serviço
consular em Hamburgo, Rosa era mulherengo. Segundo esse relato, Rosa
não teria dado o passaporte a uma bela judia por ela não ter respondido à
cantada dele. Quando eu quis saber de onde vinha essa história,
encontrei um cipoal inextricável de rumores.”
Da mesma forma, o veto à publicação do diário por conta de menções a
Aracy, que Rosa chamava de Ara, pode dar a entender que os escritos de
Hamburgo contenham passagens picantes. Não é assim. “Ele sempre fala
da Aracy, mas de forma muito tímida, quase não dá informações sobre
ela”, diz Reinaldo Marques. O máximo que se pode encontrar nos diários
são registros como “Dormi em casa de Ara, que partiu hoje cedo para
München”. Ela é presença constante, mas discreta: “Comi a macarronada
da Ara (!)”; “Lohengrin com Ara”; “Diz Ara que o jornal da tarde ataca
furiosamente Roosevelt, chamando-o de ‘inimigo no 1 da paz do mundo’,
e dizendo que ele deveria ser fuzilado”.

Segundo a pesquisadora carioca Ana Luiza Martins Costa, além do diário


de Hamburgo, pelo menos três outros conjuntos de anotações de
Guimarães Rosa continuam no fundo das gavetas. Um deles é o diário
que o escritor manteve em Paris, na passagem dos anos 40 para os 50,
quando serviu na embaixada brasileira. “Nos escritos de Paris, ele fala
sobre a ansiedade de escrever, sobre a questão da onisciência, sobre a
necessidade de fixar coisas no papel”, conta a pesquisadora. “Dizem que
a família não gosta de publicar revelações pessoais, mas não há nada
disso nos escritos parisienses.”

Existem, também, anotações das viagens de Rosa pela Europa,


arquivadas nos quatro armários do Arquivo Guimarães Rosa do IEB. A
filha Vilma diz que Florença era uma das cidades prediletas do escritor.
Ana Luiza acredita que a difusão das anotações que Rosa fez lá, na
Toscana, seria fundamental para “explodir o estigma do sertão” que
marcaria a obra do autor. Ela chama a atenção, por fim, para a troca de
cartas do escritor com o pai, Florduardo Pinto Rosa. Dono de um
armazém em Cordisburgo, ele recebia cartas constantes do filho, que lhe
indagava sobre histórias reais do sertão. Parte da correspondência entre o
pai e o filho foi publicada nas memórias de Vilma, Relembramentos.

O acesso às cartas trocadas por Rosa com seus tradutores para o francês,
o inglês e o espanhol é igualmente difícil. Em alguns casos, o material
está até preparado para publicação, como a correspondência com Harriet
de Onis, uma das tradutoras da primeira edição de Grande Sertão em
inglês. Para seu trabalho de mestrado, apresentado na Universidade
Estadual Paulista em 1994, a pesquisadora Iná Rodrigues Verlangieri,
hoje afastada da vida acadêmica, organizou toda a correspondência de
Rosa com a tradutora americana, que também assinaria a versão de
Sagarana. A professora tentou publicá-la durante algum tempo, mas não
obteve nem resposta dos detentores dos direitos. Acabou desistindo.

Organizadora da correspondência de Guimarães Rosa com o tradutor


alemão, Curt Meyer-Clason, outra pesquisadora, Maria Apparecida Faria
Marcondes Bussolotti, também demonstra desânimo. Mesmo com a ajuda
de Meyer-Clason, Cida, como costumam chamá-la, teve enormes
dificuldades de conseguir a liberação das cartas. Ela iniciou o trabalho de
organização em 1994, como tese de mestrado na USP. A dissertação foi
apresentada em 1997, e ela teve de esperar seis anos até ver o material
publicado. “Quando procurei Eduardo Tess para obter a autorização, ele
pediu que eu contasse quantas vezes apareceria o título do livro Grande
Sertão. Seria cobrada uma taxa correspondente a cada vez que ele fosse
mencionado”, relembra.

“É uma dificuldade real, eu mesma acabei desistindo”, afirma a curadora


do Arquivo Guimarães Rosa no Instituto de Estudos Brasileiros, Sandra
Guardini Teixeira Vasconcelos, professora de literatura da USP. “Quando
fui publicar em livro a minha tese de doutorado, resultado de anos de
pesquisa no arquivo, tentei conseguir autorização da família para fazer
um fac-símile de alguns documentos da obra de Guimarães Rosa. Só
consegui de uma parte da família, não do restante. No final, o livro saiu
sem isso”, conta a professora. “Não há a menor dúvida de que a postura
da família atrapalha.”

Pesquisadora de Rosa desde os anos 70, Sandra Vasconcelos diz que só


tomou conhecimento recentemente do diário de Hamburgo. Ela acredita
que os embaraços provocados pelos herdeiros explicam a inexistência de
uma boa biografia de Guimarães Rosa. “Pensei em fazer uma e desisti”,
diz. “É tanta confusão para conseguir autorizações que as pessoas acabam
mudando de idéia.” Vilma Guimarães Rosa reconhece que a ideia é
exatamente esta: dificultar a vida dos pesquisadores. “Não existem
biografias dele e não damos licença para ninguém”, diz ela. “Muita gente
quer fazer sensacionalismo, quer ganhar dinheiro à custa de gente
famosa”, afirma a primogênita do escritor. “Quem quiser saber de meu
pai que leia o meu livro e está muito bom.”
Dono do maior acervo privado de literatura brasileira, o empresário e
bibliófilo José Mindlin, de 92 anos, passou a vida se digladiando com
herdeiros. “Muitos deveriam colocar no cartão de visitas, onde consta
profissão, a palavra herdeiro. Sem ter trabalho nenhum, se beneficiam do
trabalho do antepassado”, afirma. Uma das principais estudiosas de
Rosa, a professora Walnice Nogueira Galvão, da USP, tem a mesma
opinião: “Para o artista, é uma obra de arte; para o herdeiro, é
mercadoria”. Mindlin acredita que a única saída para “os abusos de
herdeiros” é a diminuição do período de validade da lei de direitos
autorais. Atualmente, a propriedade intelectual vale até o 1o de janeiro
seguinte ao dos 70 anos da morte do autor.

Lucia Riff, agente literária que administra direitos autorais de escritores


de renome, tanto no time dos vivos (Luis Fernando Veríssimo) como no
dos mortos (Carlos Drummond de Andrade), acha que é excessiva a
irritação de pesquisadores e editores com os herdeiros. “Existe a noção de
que ser herdeiro é algo quase ilícito, mas isso não acontece com quem
herda apartamentos ou fazendas.” Lucia Riff reconhece que não é fácil
lidar com o espólio de um grande escritor. O herdeiro, diz ela, tem de
estar disposto a considerar uma infinidade de pedidos de todo tipo, e
muitas vezes completamente esdrúxulos. Ela conta que, recentemente,
um dos maiores bancos brasileiros procurou-a para comprar os direitos
de reprodução de uma frase de Drummond em talões de cheque no país
todo. “Sabe quanto eles ofereceram por isso?” Ela responde: “Mil reais.
Alegaram que já estava escrito mesmo, que era uma homenagem”.

Ainda que defenda a posição dos herdeiros, Lucia Riff conta uma história
exemplar. No final dos anos 90, foi contratada para cuidar dos direitos
autorais de um projeto da editora Objetiva, o volume Os Cem Melhores
Contos Brasileiros do Século, organizado por Ítalo Moriconi, crítico e
professor de literatura. Ele selecionou três histórias de Guimarães Rosa,
Às Margens da Alegria, A Terceira Margem do Rio e Desenredo. Para
liberar os três textos, no entanto, os herdeiros pediram um valor
equivalente ao que havia sido gasto com outros noventa escritores.
Moriconi não teve como publicar os três contos e explicou os motivos na
abertura do volume.
O
diário de Hamburgo termina de forma abrupta. Em 28 de janeiro de
1942, o Brasil anuncia o rompimento de relações diplomáticas com
os países do Eixo. Dois dias depois, Guimarães Rosa termina suas
anotações. Com a mesma caligrafia que permitia um bom espaçamento
entre cada uma das palavras anota apenas: “Viemos para Berlin”. A
jornada do jovem diplomata na Alemanha não terminaria ainda. Logo em
seguida, ele seria confinado pelo governo alemão num hotel na cidade
turística de Baden-Baden, ao sul do país, em companhia de colegas como
Cyro de Freitas Vale, do artista Cícero Dias e de outros diplomatas sul-
americanos. Foi liberado somente cem dias depois, em troca de
diplomatas (acusados de espionagem) alemães que estavam presos no
Brasil. No verão de 1943, quando Hamburgo sofreu um dos maiores
bombardeios da Guerra, a chamada Operação Gomorra, Guimarães Rosa
estava bem longe, em Bogotá, servindo como primeiro-secretário na
embaixada brasileira.

A Alemanha ficara para trás, e Rosa pouco falaria desse período. Uma
faceta bem pouco conhecida da temporada de Hamburgo, não registrada
nos diários, viria à tona depois. O casal Rosa e Aracy, mais ela do que ele,
agiu para salvar judeus da perseguição nazista durante a estadia em
Hamburgo. Aracy, funcionária da área dos passaportes, teria ajudado
dezenas de judeus a escaparem para o Brasil. O feito foi reconhecido pelo
governo israelense, e Aracy foi homenageada pela fundação Yad Vashen.
O sobrenome Guimarães Rosa está afixado no memorial do holocausto
da instituição, em Jerusalém.

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