Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
mundo literário
DIÁRIO ARQUIVADO
Para decepção dos pesquisadores de Guimarães Rosa, seus herdeiros impedem a publicação de
cartas e anotações do autor de Sagarana
CASSIANO ELEK MACHADO
O diplomata Guimarães Rosa aos 31 anos, quando escreveu em Hamburgo, no início da II Guerra Mundial, um diário
(capa acima), onde critica Machado de Assis por usar ``Artifícios Baratos`` FOTO: ACERVO DOS ESCRITORES
MINEIROS, CENTRO DE ESTUDOS LITERÁRIOS DA FACULDADE DE LETRAS, UFMG
N
o fundo da quinta e última gaveta de um arquivo de metal branco,
numa sala do terceiro andar da Biblioteca Central da Universidade
Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, está guardado um
envelope pardo. Dentro dele, enrolado num papel protetor contra acidez
e umidade, há um volume em formato de livro, com 20 centímetros de
comprimento, 13 de largura e dois de lombada. A capa é feita de um
papel mais grosso do que o miolo, com motivos gráficos que imitam
mármore, numa cor indecisa entre o bege e o rosa-claro. Uma caligrafia
miúda, com letras ligeiramente inclinadas para a direita, preenche boa
parte do livreto. Entremeando as anotações, há pequenos desenhos toscos
e, colados nas páginas, dezenas de recortes de jornais alemães. O
conteúdo das anotações e das reportagens fornece indícios sobre a forma,
a autoria, o período e o lugar em que o caderno foi feito. É um diário,
escrito por um brasileiro que acompanha, na Alemanha, o começo da ii
Guerra Mundial.
Ao longo das 208 páginas, o autor narra bombardeios, descreve o barulho
das sirenes e diz como o silêncio das noites era recortado por tiros. Conta
a primeira vez que viu um judeu com uma estrela amarela costurada na
roupa. Relata como uma bomba no Jardim Zoológico de Hamburgo
dizimou camelos. Registra o que anunciava uma pequena tabuleta num
parque: “Lugar de brinquedo para crianças arianas”. O autor do diário
era um jovem diplomata que servia pela primeira vez fora do Brasil, no
posto de cônsul-adjunto de Hamburgo. Aos 31 anos, tinha aspirações
literárias, mas ainda não havia publicado nada. Chamava-se João
Guimarães Rosa.
Em agosto de 1939, data das primeiras anotações, ele não faz literatura.
Sua escrita é prosaica, sem artifícios. Ainda assim, espalha pelo diário
figuras de linguagem, observações e poemetos que, lidos hoje, são
claramente “rosianos”. Seus flertes com a poesia são constantemente
relacionados à exaltação da natureza. “A noite começa debaixo das
árvores”, anota num canto, ao lado dos registros de um bombardeio e de
recortes de anúncios de escritórios de advogados e de um hotel em
Hamburgo.
Em outro ponto, põe no papel um poema que começa com a estrofe “As
lagoas são armadilhas armadas para pegar a lua/ porque a lua não se
reflete (não desce a) na mata, nem no chão (terra dura)”. Ao lado dos
escritos mais pessoais, de invencionices subjetivas, ele acrescenta o sinal
M%, que significaria, segundo especialistas na obra de Guimarães Rosa,
“meu 100%”. O símbolo aparece, por exemplo, ao lado de um escrito
intitulado A Ladeira: “A ladeira da vida inteira… Tudo é vaidade, tudo é
besteira, só uma coisa é que é verdadeira: subindo a ladeira, sobe-se a
ladeira da vida inteira…”.
“M. de. A.” era ele, Machado de Assis. Na anotação que se presume a
mais antiga do diário, pois seus escritos nem sempre são datados e
ordenados, o jovem Rosa faz outras três observações sobre o autor de
Memórias Póstumas de Brás Cubas, a partir da leitura, como admite,
“apressada” do romance. Na primeira, afirma que Machado “gosta, usa e
abusa da construção terciária: silogística ou hegeliana (premissa maior —
premissa menor — conclusão; ou tese — antítese — síntese). A cada
passo a gente esbarra com vestígios desse vezo, quando não com a
armação completa, a qual pode ser decomposta de várias maneiras: um
pulinho para a direita, outro para a esquerda, outro para a frente…
quando não para trás”.
A catimbada fica para o final. Depois de afirmar que não pretende ler
mais nada do escritor, “a não ser seus afamados contos” e, talvez, o
começo do Dom Casmurro, ele escreve: “Acho-o antipático de estilo,
cheio de atitudes para ‘embasbacar o indígena’; lança mão de artifícios
baratos, querendo forçar a nota da originalidade; anda sempre no mesmo
trote pernóstico, o que torna tediosa a sua leitura”. Rosa não para aí:
“Quanto às ideias, nada mais do que uma desoladora dissecação do
egoísmo, e, o que é pior, da mais desprezível forma de egoísmo: o
egoísmo dos introvertidos inteligentes”. Para terminar, lança um “Bem,
basta; chega de Machado de Assis”. No canto direito inferior da página
acrescenta a data: “Hamburgo, 15 de agosto de 1939”. Duas semanas
depois, Hitler invadiria a Polônia, marco zero da II Guerra Mundial.
Uma dessas cópias ficou com a mulher do empresário, Ana Elisa Gregori,
que por sua vez a cedeu para uma tia, a poeta Henriqueta Lisboa. Com a
morte de Henriqueta, sua biblioteca foi doada à ufmg. No dia 18 de
dezembro de 1989 o volume com os escritos alemães de Rosa ganhou um
carimbo azulado: “Biblioteca Universitária — 3354989-03 — ML-
00007762-9”. Nenhum arquivo público tinha até então as anotações do
cônsul-adjunto Guimarães Rosa. Nem mesmo o do Instituto de Estudos
Brasileiros da Universidade de São Paulo, maior depositário de
informações sobre o escritor desde 1973, quando comprou 20 mil
documentos deixados por Rosa.
G
uimarães Rosa casou-se pela primeira vez em 27 de junho de 1930,
dia em que completou 22 anos. Lygia Cabral Penna, sua noiva, era
uma moça morena, vizinha desde tempos de infância. Tinha o
apelido de Lili. Estava com 16 anos, era magra e usava cabelos lisos e
curtos. No final do ano, Joãozito, como ela o chamava, formou-se em
medicina. Orador da turma, fez um discurso repleto de citações, que
terminava com um provérbio eslovaco: “Kdyz je nouze nejvissi, pomoc
byva nejblissi!” (Quando mais terrível é o desespero, aí é que o socorro já
vem perto!).
Em 1934, ele estava desiludido com a profissão. “Não nasci para isso”,
escreveu numa carta a um amigo. Prestou então concurso para o
Itamaraty e foi aprovado em segundo lugar. A família Rosa se mudou
para o Rio de Janeiro. Pouco depois de formado, Rosa foi designado para
o posto de cônsul-adjunto do Brasil em Hamburgo. Em maio de 1938 o
jovem diplomata toma um navio para a Alemanha. Viajou sem a mulher
e as filhas.
Vilma chegou a conviver com Aracy no final dos anos 40, quando foi
morar com ela e o pai em Paris. “Ela foi muito boa para o meu pai”,
atesta. “Ela se apagou para que meu pai brilhasse.” A irmã caçula conta
que esteve poucas vezes com a madrasta: “Papai gostava muito de nos
levar para um passeio à Ilha de Paquetá, aos domingos. Ele ia fazendo
um joguinho com a gente, de sinônimos. Aracy ia junto. Ela tinha uma
pontinha de ciúme, uma bobagem. Filha é filha, não tem como lutar.”
S
e alguns aprendem francês só para ler Proust, a austríaca Kathrin
Rosenfield pode dizer que estudou português por conta de Rosa.
“Quando comecei a ler Grande Sertão pela primeira vez, em 1984,
um pouco antes de chegar ao Brasil, não conhecia o português. Entrei no
sertão rosiano (e no meu, linguístico) me orientando com meus
conhecimentos de outras línguas latinas (o francês, o espanhol e o
italiano)”, explica ela no prefácio do seu livro Desenveredando Rosa
(editora Topbooks). Professora de literatura da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, ela estuda a obra do escritor desde aquela época e
nunca conseguiu ver os diários de Hamburgo
O acesso às cartas trocadas por Rosa com seus tradutores para o francês,
o inglês e o espanhol é igualmente difícil. Em alguns casos, o material
está até preparado para publicação, como a correspondência com Harriet
de Onis, uma das tradutoras da primeira edição de Grande Sertão em
inglês. Para seu trabalho de mestrado, apresentado na Universidade
Estadual Paulista em 1994, a pesquisadora Iná Rodrigues Verlangieri,
hoje afastada da vida acadêmica, organizou toda a correspondência de
Rosa com a tradutora americana, que também assinaria a versão de
Sagarana. A professora tentou publicá-la durante algum tempo, mas não
obteve nem resposta dos detentores dos direitos. Acabou desistindo.
Ainda que defenda a posição dos herdeiros, Lucia Riff conta uma história
exemplar. No final dos anos 90, foi contratada para cuidar dos direitos
autorais de um projeto da editora Objetiva, o volume Os Cem Melhores
Contos Brasileiros do Século, organizado por Ítalo Moriconi, crítico e
professor de literatura. Ele selecionou três histórias de Guimarães Rosa,
Às Margens da Alegria, A Terceira Margem do Rio e Desenredo. Para
liberar os três textos, no entanto, os herdeiros pediram um valor
equivalente ao que havia sido gasto com outros noventa escritores.
Moriconi não teve como publicar os três contos e explicou os motivos na
abertura do volume.
O
diário de Hamburgo termina de forma abrupta. Em 28 de janeiro de
1942, o Brasil anuncia o rompimento de relações diplomáticas com
os países do Eixo. Dois dias depois, Guimarães Rosa termina suas
anotações. Com a mesma caligrafia que permitia um bom espaçamento
entre cada uma das palavras anota apenas: “Viemos para Berlin”. A
jornada do jovem diplomata na Alemanha não terminaria ainda. Logo em
seguida, ele seria confinado pelo governo alemão num hotel na cidade
turística de Baden-Baden, ao sul do país, em companhia de colegas como
Cyro de Freitas Vale, do artista Cícero Dias e de outros diplomatas sul-
americanos. Foi liberado somente cem dias depois, em troca de
diplomatas (acusados de espionagem) alemães que estavam presos no
Brasil. No verão de 1943, quando Hamburgo sofreu um dos maiores
bombardeios da Guerra, a chamada Operação Gomorra, Guimarães Rosa
estava bem longe, em Bogotá, servindo como primeiro-secretário na
embaixada brasileira.
A Alemanha ficara para trás, e Rosa pouco falaria desse período. Uma
faceta bem pouco conhecida da temporada de Hamburgo, não registrada
nos diários, viria à tona depois. O casal Rosa e Aracy, mais ela do que ele,
agiu para salvar judeus da perseguição nazista durante a estadia em
Hamburgo. Aracy, funcionária da área dos passaportes, teria ajudado
dezenas de judeus a escaparem para o Brasil. O feito foi reconhecido pelo
governo israelense, e Aracy foi homenageada pela fundação Yad Vashen.
O sobrenome Guimarães Rosa está afixado no memorial do holocausto
da instituição, em Jerusalém.