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Sampa

Caetano Veloso

Alguma coisa acontece no meu coração


Que só quando cruza a Ipiranga e Avenida São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas
Ainda não havia para mim Rita Lee
A tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e Avenida São João

Quando eu te encarei frente a frente e não vi o meu rosto


Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos mutantes
E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso

Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas


Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva
Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba
Mas possível novo quilombo de Zumbi
E os Novos Baianos passeiam na tua garoa
E novos baianos te podem curtir numa boa

Galos, Noites e Quintais


Belchior

Quando eu não tinha o olhar lacrimoso,


que hoje eu trago e tenho;
Quando adoçava meu pranto e meu sono,
no bagaço de cana do engenho;
Quando eu ganhava esse mundo de meu Deus,
fazendo eu mesmo o meu caminho,
por entre as fileiras do milho verde
que ondeia, com saudade do verde marinho:

Eu era alegre como um rio,


um bicho, um bando de pardais;
Como um galo, quando havia...
quando havia galos, noites e quintais.
Mas veio o tempo negro e, à força, fez comigo
o mal que a força sempre faz.
Não sou feliz, mas não sou mudo:
hoje eu canto muito mais
Bahiuno
Belchior

Já que o tempo fez-te a graça de visitares o Norte leva notícias de mim


Diz àqueles da província que já me viste a perigo na cidade grande enfim
Conta aos amigos doutores que abandonei a escola pra cantar em cabaré, baiões
bárbaros, baihunos, com a mesma dura ternura que aprendi na estrada e em Che

Ah! metrópole violenta que extermina os miseráveis negros párias, teus meninos!
Mais uma estação no inferno, Babilônia, Dante eterno! há Minas? Outros destinos?
Conta àquela namorada que vai ser sempre o meu céu mesmo se eu virar estrela
(O par de botas de couro combina com o meu cabelo já tão grande quanto o dela.)
E, no que toca à, família, dá-lhe um abraço apertado que a todos possa abarcar
Fora-da-lei, procurado me convém família unida contra quem me rebelar

Cai o Muro de Berlim - cai sobre ti, sobre mim nova ordem mundial
Camisa-de-força-de-Vênus
Ah! quem compraria, ao menos, o velho gozo animal?

Já que o tempo fez-te a graça de visitares o Norte leva noticias de mim


O cara caiu na vida, vendo seu mundo tão certo assim tão perto do fim
Dá flôres ao comandante que um dia te dispensou do serviço militar
Ah! quem precisa de heróis: feras que matam na guerra e choram de volta ao lar

Gênios-do-mal tropicais, poderosos bestiais vergonha da Mãe Gentil


Fosse eu um Chico, Gil, um Caetano e cantaria, todo ufano: "Os Anais Da Guerra Civil"
Ao pastor de minha igreja diz que essa ovelha negra jamais vai ficar branquinha
Não vendi a alma ao diabo
O diabo viu mau negócio nisso de comprar a minha
Se meu pai, se minha mãe se perguntarem, sem jeito
Onde foi que a gente errou?
Elogiando a loucura, e pondo-me entre os sonhadores diz que o show já começou
Trogloditas, traficantes, neonazistas, farsantes: barbárie, devastação.
O rinoceronte é mais decente do que essa gente demente do Ocidente tão cristão.

Paralelas
Belchior

Dentro do carro
Sobre o trevo
A cem por hora, ó meu amor
Só tens agora os carinhos do motor

E no escritório em que eu trabalho


e fico rico, quanto mais eu multiplico
Diminui o meu amor

Em cada luz de mercúrio


vejo a luz do teu olhar
Passas praças, viadutos
Nem te lembras de voltar, de voltar, de voltar

No Corcovado, quem abre os braços sou eu


Copacabana, esta semana, o mar sou eu
Como é perversa a juventude do meu coração
Que só entende o que é cruel, o que é paixão

E as paralelas dos pneus n'água das ruas


São duas estradas nuas
Em que foges do que é teu

No apartamento, oitavo andar


Abro a vidraça e grito, grito quando o carro passa
Teu infinito sou eu, sou eu, sou eu, sou eu

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