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Rural e
Urbana
Indaial – 2022
1a Edição
Elaboração:
Prof.ª Andressa Lídicy Morais Lima
200p.
ISBN 978-85-515-0614-1
ISBN Digital 978-85-515-0615-8
“Graduação - EaD”.
1. Antropologia 2. Rural 3. Urbana
CDD 306.981
Bibliotecário: João Vivaldo de Souza CRB- 9-1679
Impresso por:
APRESENTAÇÃO
Prezado acadêmico! Bem-vindo à disciplina de Antropologia Rural e Urbana.
Este é o nosso livro didático, material elaborado com o objetivo de auxiliar e contribuir
para a formação profissional e o avanço nos seus estudos. Este material lhe ajudará
a conhecer um universo de muito conhecimento a respeito da vida social entre grupos
humanos, a antropologia se caracteriza pelo estudo da diversidade dos modos de
vida, nos proporciona um conhecimento vasto acerca das diferentes línguas, hábitos
culturais, religiões, formas de direito, sentidos de justiça, artes, modos de existir e
construir relações entre grupos sociais pertencentes a localidades distintas. Por isso,
você pode usar este material como base para iniciar a sua imersão em um conteúdo que
hoje pode parecer muito familiar, como é a cidade, a vida urbana ou a vida rural, suas
formas de organização social, mas aqui você poderá conhecer um pouco do relevante
processo histórico de formação e transformação da vida humana a partir dos fenômenos
rural e urbano e das suas interferências e interfaces.
Neste livro você encontrará os conteúdos que lhe serão úteis para sua
formação. Entretanto, lembre-se que o conhecimento é uma fonte inesgotável e aqui
é um bom ponto de partida para você navegar pela Antropologia Rural e Urbana tendo
como perspectiva que essas reflexões despertem o desejo pelo conhecimento, pela
investigação antropológica, pela leitura de etnografias de temas que estão movendo os
debates contemporâneos.
Sabemos que neste livro será apresentado um conjunto de abordagens, escolas
de pensamento, categorias de análise e linhas de pesquisa, fornecendo assim um mapa
para facilitar a compreensão deste tema tão desafiador. Aproveite e navegue pelos
estudos antropológicos.
Desejo a você um bom estudo e que as leituras deste livro ampliem seus
horizontes na busca por sempre renovar o interesse pelo conhecimento.
Boa leitura!
QR CODE
Olá, acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você –
e dinamizar, ainda mais, os seus estudos –, nós disponibilizamos uma diversidade de QR
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que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para
utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois,
é só aproveitar essa facilidade para aprimorar os seus estudos.
ENADE
Acadêmico, você sabe o que é o ENADE? O Enade é um
dos meios avaliativos dos cursos superiores no sistema federal de
educação superior. Todos os estudantes estão habilitados a participar
do ENADE (ingressantes e concluintes das áreas e cursos a serem
avaliados). Diante disso, preparamos um conteúdo simples e objetivo
para complementar a sua compreensão acerca do ENADE. Confira,
acessando o QR Code a seguir. Boa leitura!
LEMBRETE
Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma
disciplina e com ela um novo conhecimento.
REFERÊNCIAS........................................................................................................ 67
REFERÊNCIAS...................................................................................................... 139
REFERÊNCIAS...................................................................................................... 199
UNIDADE 1 —
ANTROPOLOGIA URBANA
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.
CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.
1
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 1!
Acesse o
QR Code abaixo:
2
UNIDADE 1 TÓPICO 1 —
CONTEXTO: O URBANO, AS CIDADES
E OS SUJEITOS
1 INTRODUÇÃO
A antropologia se consolidou a partir de importantes estudos etnográficos do
final do século XIX. Neles, os antropólogos dedicavam-se ao estudo aprofundado de
diversas sociedades, tomando como premissa entender a diversidade dos modos de vida
em relação com a da sociedade do pesquisador. Assim, as ricas etnografias clássicas da
antropologia colocavam em evidência um conjunto robusto de descrições dos povos com os
quais conviveram em suas pesquisas, um exemplo desse tipo de trabalho é o centenário
“Os Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos
nativos nos Arquipélagos da Nova Guiné Melanésia” do antropólogo polonês Bronislaw
Malinowski, publicado em 1922. Acadêmico, a seguir você verá uma imagem do antropólogo
Malinowski interagindo entre trobriandeses durante sua pesquisa de campo.
3
DICA
Quer saber mais a respeito de um dos livros mais importantes
da história da Antropologia? Assista ao vídeo das “Aulas abertas:
teorias e histórias da antropologia – o centenário de argonautas”.
Promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade Federal de Campinas (UNICAMP), com a
presença da Prof.ª Dra. Mariza Peirano (Universidade de Brasília):
https://bit.ly/3osZpsv.
Acadêmico, neste momento, você pode se perguntar: quais seriam então essas
“sociedades quentes”? Pois bem, já adiantamos a você: são aquelas das quais pertenciam
os pesquisadores e antropólogos. Além disso, é importante que você saiba que ambos os
termos, sociedades “frias” e “quentes”, foram introduzidos pelo antropólogo francês Claude
Lévi-Strauss, na tentativa de identificar e classificar as estruturas inconscientes básicas
que definiriam as culturas humanas. Assim, aquelas sociedades que estavam mais perto
do estado de natureza cujo volume de pessoas era menor e embora dinâmicas nutriam
resistência às mudanças culturais foram chamadas de sociedades frias ou simples. Por
outro lado, as sociedades quentes ou complexas são aquelas marcadas pelos processos
industriais e que foram afetadas pela globalização, pelo progresso e apresentam maior
desarmonia e conflitos de desordem social, possuem ainda entre suas características o
grande contingente populacional, históricas, estão mais distantes do estado de natureza.
ESTUDOS FUTUROS
Abordaremos o estudo da Antropologia Rural em nossa próxima unidade.
4
A partir disso, outro importante conceito antropológico merece atenção: trata-se do
relativismo. Este conceito possibilita o conhecimento da diversidade, entendendo
os seus próprios valores e contextos, nos quais se realizam, portanto, no encontro com
o “Outro” e com a diferença. Assim, o relativismo cultural nos auxilia a não hierarquizar
ou emitir juízos de valor que estejam investidos de preconceitos. É importante lembrar
que esse Outro se trata daqueles que não pertencem à mesma cultura que o “nós” do
pesquisador.
NOTA
Sistema de parentesco: conforme bom apontamento da
antropóloga Cynthia Sarti (1992, p. 71) quando falamos em
sistemas de parentesco na antropologia estamos nos referindo as
estruturas formais de relação social, que resultam da combinação
de três tipos de relações básicas: a) a relação de descendência,
que é a relação entre pai e filho e mãe e filho; b) a relação de
consanguinidade, que é a relação entre irmãos; e c) a relação
de afinidade, ou seja, a que se dá por meio do casamento, pela
aliança. Essas três relações são básicas e o estudo do parentesco é
o estudo da sua combinação. Essas relações são a estrutura formal
universal. Qualquer sociedade se forma pela combinação dessas
três relações. A variabilidade está em como se faz essa combinação.
2 O URBANO
Caro acadêmico, até aqui podemos considerar que você já está um pouco
familiarizado com o universo da antropologia, uma riqueza sem fim de informações e
conhecimento das formas de vida, agora vamos nos aprofundar um pouco no contexto
da antropologia urbana, uma subárea da antropologia, na qual se dará nossa disciplina.
6
DICA
FILME TEMPOS MODERNOS – CHARLIE CHAPLIN
Modern Times (Tempos Modernos) é um filme do cineasta Charlie Chaplin, no qual seu
famoso personagem "O Vagabundo" tenta sobreviver em meio ao mundo moderno
e industrializado. Lançado em 5 de fevereiro de 1936 (Nova Iorque), com produção,
roteiro, direção e música (Smile) composta por Charlie Chaplin.
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Em 1903, o sociólogo alemão George Simmel publicou um interessante ensaio
intitulado “A metrópole e a vida mental”, e trouxe para o debate científico no campo
das ciências sociais essas preocupações em torno das mudanças no binômio rural e
urbano. Simmel apresentou um impressionante olhar sobre os estilos de vida urbanos e
a questão da personalidade nesse contexto. Sua contribuição observa a organização
social e as práticas culturais que caracterizavam as áreas urbanas como consequência da
grande aglomeração de pessoas. Em sua rica descrição, somos instigados a perceber as
características físicas da cidade em correlação com as características sociais de seus
habitantes.
ESTUDOS FUTUROS
Abordaremos o estudo da migração e do êxodo rural no Brasil na
próxima Unidade deste livro, quando aprenderemos Antropologia Rural.
8
Sua narrativa coloca em evidência aspectos como “a intensificação da vida
nervosa”, seu fundamento psicológico e as consequências de uma vida agitada, com
alta concentração de indivíduos e que produz menos consciência das diferenças. O
raciocínio sociológico de Simmel atua em distinções importantes para compreender
a dinâmica do fenômeno urbano, quando ele problematiza diferentes dicotomias
(individuo/sociedade, cidade/campo, intelectual/sentimental, cultura subjetiva/cultura
objetiva). Uma das principais contribuições está na maneira de observar as emoções
oriundas do urbano, da cidade, da intensa relação de indivíduos que passam a naturalizar
um ritmo de vida acelerado, um código temporal medido em relógios para marcar o
tempo do trabalho, a experiência coletiva de deslocamento em transportes coletivos,
quando passa a ser dominante os “egoísmos econômicos” e, portanto, a presença mais
comum do sentimento de indiferença.
9
uma “atitude de reserva” no meio social. Nas descrições do contexto de surgimento
do fenômeno urbano, a vida na cidade é definida por uma alta diferenciação social,
e Simmel (2013) destaca um conjunto de práticas de sociabilidade, assim como de
atitudes psicológicas (“leve aversão”, “repulsa mútua”, “indiferenças” e “aversões”) que serão
próprias desse meio urbano.
3 AS CIDADES
Caro acadêmico, a reflexão que propomos aqui permitirá a você o entendimento
da complexidade das mudanças da cidade moderna, principalmente nas grandes
metrópoles, ao observarmos como esse evento influenciou decisivamente para a
consolidação de pesquisas e escolas de investigação dessa área de conhecimento. A
segunda metade do século XIX marca profundamente o interesse de diversos estudiosos
pertencentes a áreas diferentes na busca pelo entendimento do que estava acontecendo
no contexto de grande efervescência por onde surgiam as grandes metrópoles urbanas
e é aqui que a cidade assume relevante interesse, tratada enquanto uma categoria de
análise científica e um objeto de investigação desse fenômeno urbano.
NOTA
Na antropologia, usamos o termo morfologia social para descrever
de que maneira uma sociedade está estruturada. O estudo dessas
estruturas permitiria ao antropólogo entender como funcionava
e de que maneira estariam interligadas as diferentes partes que
integram uma sociedade.
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Em seu famoso ensaio “A cidade: sugestões para a investigação do comporta-
mento humano no meio urbano”, publicado originalmente em março de 1916, Robert Ezra
Park definirá cidade como um “estado de espírito, um corpo de costumes e tradições
e dos sentimentos e atitudes organizados, inerentes a esses costumes e transmitidos
por essa tradição”. Em outras palavras a cidade é para este autor um laboratório para
entender os processos sociais, Park (1979, p. 26) ainda diz “a cidade não é meramente
um mecanismo físico e uma construção artificial. Está envolvida nos processos vitais das
pessoas que a compõem; é um produto da natureza, e particularmente da natureza
humana”.
A partir desse ponto de vista podemos perceber alguns fatores que são
considerados primários na abordagem da cidade, aquilo que motivou um intenso grupo
de pesquisadores em uma investigação científica sobre tais transformações.
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A Revolução Industrial foi um acontecimento histórico que revolucionou as
formas de viver em sociedade, transformando aspectos físicos, espaciais e coletivos
como também aspectos da vida mental, da subjetividade, das emoções e moralidades
entre os indivíduos. De acordo com o antropólogo brasileiro Gilberto Velho, no Brasil, até
mais ou menos os anos 1970 os eixos de pesquisa dominantes na antropologia eram a
etnologia, as relações interétnicas e os estudos camponeses ou estudos tradicionais,
todos eles estavam dentro dos chamados “estudos de comunidade”. Conforme veremos
adiante foi mais precisamente neste período que os estudos urbanos ganharam outro
enfoque, assim a cidade passou a ser um objeto de interesse científico e um campo
fértil de estudos para antropólogos brasileiros interessados em estudar as “redes” e os
“sistemas de relações” que se referem às interações sociais (VELHO, 2003, p. 11-12).
12
de narrativas, experiências, práticas, arranjos de organização social e de gestão
administrativa que varia de uma cidade para outra. O conjunto dessas informações
possibilita, do ponto de vista antropológico, um conhecimento vasto e diversificado a
respeito dos diferentes modos de vida no meio urbano. Qual seria, então, a contribuição
específica da antropologia nesse entendimento da cidade e o meio urbano? Podemos
definir dois critérios iniciais, a saber, o primeiro responde ao tipo de trabalho de
investigação científica que se ocupa das relações em escala microssociais.
NOTA
Quando nos referimos ao termo microssocial, estamos falando dos
processos por meio dos quais as pessoas constroem suas relações de
interação, em perspectiva de escala, nos referimos às interações face
a face entre pessoas de uma mesma família, grupo juvenil, vizinhança
e assim por diante para estudar a integração do indivíduo e sociedade.
São relações mais próximas, rotineiras, entre poucos parceiros. Para
entender melhor, notem que usamos o termo macrossocial quando
queremos designar outras relações, aquelas que dizem respeito ao
Estado, sistema político ou modelo econômico, estas são relações
estruturais, que estuda a estrutura da sociedade buscando entender
o seu modo de funcionamento, quais os mecanismos e as partes que
compõem uma sociedade e como se articulam.
Para termos uma noção mais concreta dessas múltiplas percepções que a
cidade pode revelar da vida social, consideremos a coexistência de práticas individuais
inseridas em um espaço social e culturalmente diferente daquele encontrado na vida
rural. Se, por um lado, aqueles indivíduos que migram da zona rural para o meio urbano
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veem a cidade como uma fonte de oportunidades, liberdade e futuro da modernidade,
noutros termos, “a cidade é encarada como um espaço de liberdade e possibilidades, na
medida em que o emprego regular é visualizado como uma segurança e independência,
inexistentes no campo” (OLIVEN, 2007, p. 36).
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Caro acadêmico, você já pode se familiarizar um pouco com as principais re-
ferências e aspectos das mudanças com a introdução da vida urbana, olhamos para
os fenômenos sociais mais amplos e nos aproximamos de um conjunto de categorias
conceituais importantes para entendermos essas mudanças e nos aproximar de um
exercício reflexivo em que de forma autônoma você possa refletir sobre essas transfor-
mações usando esse mapa conceitual. Agora, no próximo, vamos fazer um mergulho
nesse sujeito social, aquele indivíduo que chega no meio urbano e como ele é afetado
por esse novo lugar.
4 OS SUJEITOS
Robert Ezra Park (1979, p. 28), proeminente representante dos estudos urbanos
desenvolvidos na renomada Escola de Chicago, afirmava em 1916 que “o homem
civilizado é um objeto de investigação igualmente interessante, e ao mesmo tempo sua
vida é mais aberta à observação e ao estudo”. Nesse sentido, o indivíduo urbano passou
a ser visto como um sujeito dotado de diversidade cultural, e justamente por isso,
renovava o interesse e a atualidade da Antropologia e do fazer antropológico que em
muito poderia contribuir para entender os problemas urbanos postos com a chegada
em massa de indivíduos às grandes cidades.
NOTA
“A sociabilidade é a forma pela qual os indivíduos constituem uma unidade
no intuito de satisfazer seus interesses, onde forma e conteúdo são na
experiência concreta processos indissociáveis” (SIMMEL, 2006, p. 65).
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INTERESSANTE
Que tal conhecer um pouco mais das questões de gênero, sexualidade e antropologia?
Espia essa dica de Podcast:
17
A essa altura cabe considerar que aspectos foram sendo transformados entre
o contexto de surgimento das cidades industriais e as cidades urbanas da maneira
como habitamos hoje em dia. No início, as pesquisas colocavam uma ênfase a respeito
da questão macrossociológica procurando entender as instituições, a estrutura e os
componentes que fazer o urbano e a cidade, deixando de lado o interesse pelos sujeitos
em sua dimensão microssociológica.
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RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:
19
AUTOATIVIDADE
1 Com base em nossos estudos, há uma contribuição específica da antropologia para o
entendimento da cidade e o meio urbano. Sobre ela, assinale a alternativa CORRETA:
20
3 “O urbanismo como modo de vida” do sociólogo estadunidense Louis Wirth (1979) é
considerado um importante estudo para a abordagem do urbano na antropologia
brasileira. O autor é considerado um dos mais notáveis estudiosos do fenômeno
urbano nos Estados Unidos e foi muito influenciado pela sociologia de Simmel. A
partir das contribuições de Wirth, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as
falsas:
Fonte: WIRTH. L. O urbanismo como modo de vida. In: VELHO, O. (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro,
Zahar Editores, 1979. p. 89-112.
4 A antropologia é uma ciência social que pode ser definida pelo estudo da diversidade das
formas de vida. Uma das grandes áreas de concentração é a Antropologia Urbana
que surge de um contexto social de extrema mudança. A partir disso, disserte sobre o
fenômeno que deu origem ao subcampo da antropologia urbana.
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UNIDADE 1 TÓPICO 2 —
ENTRE ESCALAS E ESCOLAS DE
ETNOGRAFIA URBANA
1 INTRODUÇÃO
O termo “antropologia urbana” designa uma subárea da antropologia que, no
Brasil, tem seus primeiros estudos na década de 1940 com os chamados “estudos de
comunidade”. Tais estudos foram fortemente influenciados pela tradição de estudos da
renomada “Escola de Chicago”, nos Estados Unidos, cuja principal característica era o
interesse por uma investigação antropológica sobre as cidades e as mudanças a partir
da urbanização. Naquele contexto fatores relacionados às transformações sociais,
econômicas e culturais que marcaram o final da Segunda Guerra Mundial, sobretudo,
após os anos 1960, contribuíram para um inovador ponto de reflexão acerca das
condições de vida no contexto da modernidade.
Conforme vimos até aqui a ideia de uma antropologia urbana veio de uma
preocupação com aspectos do dia a dia nas cidades industriais, principalmente
relacionadas com fenômeno urbano em amplo desenvolvimento que acompanha eventos
históricos importantes como o enorme contingente populacional e a intensa migração
de europeus na passagem do século XIX para o século XX. A partir desse crescimento
uma série de conflitos e mudanças ocorrem na cidade e tais manifestações passam a ser
chamadas de “patologia social”, exemplo delas são a delinquência, os conflitos entre
grupos étnicos, assim como problemas de planejamento urbano como a circulação,
mobilidade e as precárias habitações (VELHO, 1979, p. 7-8). Daí o renovado interesse
por pesquisas empíricas que pudessem nutrir informações e diagnósticos acerca do que se
consolidou como “fenômeno urbano”.
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DICA
Que tal conhecer um pouco mais dois importantes antropólogos
brasileiros no campo da antropologia urbana? Olha, acadêmico,
aqui você encontra uma entrevista com o antropólogo Gilberto
Velho realizada em 13 de agosto de 2009 para o projeto Memória
das ciências sociais no Brasil. Confira o seguinte endereço: https://
bit.ly/3otqICO.
E não para por aí! Acadêmico, conheça um pouco mais do perfil e
da formação do antropólogo Guilherme Magnani nessa entrevista
concedida em 9 de outubro de 2017, ao projeto Memória das
Ciências Sociais no Brasil. Acesse: https://bit.ly/3cJdMpR.
2 ESCOLA DE CHICAGO
A tradicional Escola de Chicago dominou os estudos de sociologia urbana logo
das primeiras décadas do século XX, mais precisamente nos anos de 1920. Surgiu a partir
da iniciativa de um conjunto de professores e pesquisadores que estavam sediados na
Universidade de Chicago, onde surgiu também o primeiro Departamento de Sociologia
estabelecido, assim como o primeiro jornal sociológico, o American Journal of Sociology,
que passou a ser publicado a partir de 1895. A grande doação do empresário norte-
americano John Rockerfeller, investidor da indústria do petróleo, impulsionou o projeto de
formação e consolidação de um proeminente conjunto de pesquisadores reunidos em
torno das pesquisas sobre Chicago.
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A fundação dessa escola está intimamente ligada ao processo de desenvol-
vimento das grandes metrópoles relacionadas com o desenvolvimento industrial. Até
1830, Chicago tinha cerca de 350 habitantes reunidos em torno de uma pequena comu-
nidade, meio século depois a cidade de Chicago expandiu-se muito rapidamente che-
gando a ter três milhões de habitantes – e, como consequência desse intenso processo
de urbanização e modernização, vieram também problemas sociais como o aumento da
pobreza e do desemprego, bem como acentuada criminalidade e delinquência juvenil,
presença de imigração, formação de guetos sociais, verticalização e gentrificação urba-
nas, segregação e violências urbanas. Todos esses problemas foram considerados pelos
estudiosos da Escola de Chicago “patologias sociais” e se tornariam objeto de interesse
e investigação por parte de seus pesquisadores.
Robert Ezra Park (1864-1944), entrou para Escola de Chicago em 1911, trazendo
sua experiência como jornalista de investigação e a forte influência das publicações
do sociólogo alemão Georg Simmel, formulou um programa de investigações que
combinava uma análise dos grupos de minorias sociais e a sua relação com o fenômeno
urbano. Sua principal característica era a realização de estudos por meio de pesquisas
qualitativas combinando ainda conceitos ecológicos para o estudo das cidades e do
urbano, assim a sociedade era entendida como um organismo social.
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Para Park (1979), a cidade era um grande laboratório social a ser estudado, a partir
dele poderíamos conhecer o homem urbano e o seu “habitat natural”. O estudo qualitativo
da cidade captaria assim as relações sociais entre os cidadãos ali reunidos bem como o meio
social onde vivem e sua constante transformação. Foi um dos primeiros a formar seus
alunos para aplicação de pesquisas com métodos empregados pela antropologia, pois
em seu entendimento esse método possibilitava a investigação dos costumes, crenças,
valores, práticas sociais e culturais da vida social no meio urbano.
A cidade era pensada como um espaço por onde se exerce influência nos
indivíduos que nela habitam, isto porque ela agrega diferentes elementos da vida social
do sujeito moderno como a moradia, o local de trabalho, a vida econômica, a vida política
e cultural agregando inclusive indivíduos em sua diversidade de atividades, mas também
de acordo com o seu pertencimento de gênero, sexualidade, raça e etnia. Para Wirth,
quanto maior a cidade maior será a “diferenciação social” expressa no afrouxamento
26
dos vínculos sociais, em uma maior competitividade social, acentuado controle dos
indivíduos e mais propensões às distorções da personalidade (anonimato, hiper
individualismo, superficialidade, baixa afetividade, menor participação social, ruptura de
laços comunitários).
Para Hughes (1937, p. 404), a carreira deveria ser compreendida como uma
“sequência de papéis, status e cargos realizados pelo indivíduo”. Tal concepção incorpora
duas perspectivas de análise de uma sociologia das profissões: objetiva e subjetiva. A
primeira é aquela que corresponde ao estudo do status e dos cargos já estabelecidos
em uma determinada sociedade e a outra coloca em evidenciar a própria percepção
dos indivíduos sobre a sua própria vida, isto é, “uma perspectiva dinâmica pela qual a
pessoa concebe sua vida como um conjunto e interpreta o significado de suas diversas
características, das ações e das coisas que lhe ocorrem” (HUGHES, 1937, p. 409-410).
28
O sociólogo norte-americano Herbert Blumer (1900-1987) chamou de
interacionismo simbólico uma perspectiva teórica que considera o caráter processual
da ação dos indivíduos. Blumer estaria interessado na ação interpessoal, partindo da
premissa de que o indivíduo tem a capacidade única de criar e fazer uso de símbolos, por
exemplo, linguagem e comunicação. Nessa perspectiva, uma teoria da ação pressupõe
que o indivíduo pode aprender e assumir papéis moldando o “self” em uma atividade
reflexiva. Assim, ele pode apreender, moldar, formular e transformar ações sobre o seu
próprio comportamento. Exemplar disso é o uso das redes sociais hoje em dia. Pensa bem,
acadêmico, ao entrar na internet e usar as redes sociais encontramos uma infinidades
de informações disponíveis, com o passar do tempo vamos aprendendo a utilizar a
linguagem virtual, adotando formas de nos comunicar melhor e de maneira mais clara,
também vamos aprendendo que nem tudo pode ser dito ou compartilhado que há leis e
normas sociais que vão moldando a nossa forma de nos comunicar nessa nova era.
Para Blumer (1969, p. 2), os indivíduos agem em relação às coisas com base
nos significados que essas coisas têm para eles, entendendo que tais significados
derivam da interação social vivida entre os próprios indivíduos e esses significados são
controlados por meio dos processos de interpretação que um indivíduo usa para lidar
com as situações e as coisas com as quais ele interage.
29
O pragmatismo se consolidou como uma importante filosofia. Talvez porque
sua perspectiva sugere uma diversidade de verdades que podem surgir da experiência
de interação social em que linguagem, regras, atitudes são avaliadas a partir das
consequências e do valor de seu uso. Assim, para William James (1907), por exemplo,
o pragmatismo é a tentativa de interpretar cada noção traçando suas respectivas
consequências práticas.
Resumidamente, este tópico trouxe uma leitura em ampla escala daquela que
pode ser considerada a mais proeminente escola sociológica de estudos urbanos no
mundo. Há uma rica produção empírica que merecidamente poderia ser descrita não
fosse os objetivos que devemos cumprir com a nossa disciplina, isto é, conhecer a
Antropologia Urbana sob a influência dessa escola de pensamento.
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Tudo isso é parte dessa “ordem espacial” e que ao pesquisador interessado em
conhecer a cidade pode, por meio do interacionismo simbólico, encontrar suas zonas
fronteiriças, suas demarcações imaginadas e os sentidos próprios que os indivíduos dão
para esses contextos, é na observação das pessoas, das relações sociais, que podemos nos
aproximar do sentido forte de uma antropologia urbana a partir das lentes da Escola de
Chicago.
Talvez um dos principais legados dessa escola seja a utilização da etnografia como
método de pesquisa empírica para pesquisar a cidade e o urbano, assim como o fator de
aplicar esse método por meio de uma investigação coletiva. Desse modo, os “etnógrafos
de Chicago” contribuíram de maneira significativa para entender a cidade como um
complexo cultural, colocando atenção sobre o tempo, o espaço e as formas de interação
que nela serão encontradas e dando um passo muito importante em direção aos estudos
dos conflitos sociais a partir da análise dos desvios, conflitos étnicos, disputas por espaço,
luta de classes, comportamento político, vida associativa, ações coletivas, liberdade
sexual, expressões culturais e a heterogeneidade da vida social nas grandes cidades.
3 ESCOLA DE MANCHESTER
Caro acadêmico, a Escola de Manchester foi considerada outra importante
influência teórica e metodológica para a formação do campo da Antropologia Urbana, a
Escola de Manchester é uma das principais escolas de antropologia do mundo.
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Na época, o comércio do cobre era intenso e com ele vieram consequentes
transformações sociais decorrentes da expansão econômica diante da maior jazida de
cobre do mundo. A mineração do cobre em larga escala nos anos de 1920 acentuou o
processo de urbanização industrial da região e causou uma revolução.
Além disso, esse período marca uma tensão política com a própria antropologia
e os membros da Escola de Manchester estavam fortemente unidos contra o racismo e o
sistema colonial, a participação deles no Rhodes-Livingstone assim como o fato de
muitos serem de origem sul-africana refletem uma posição política de oposição à
administração colonial.
32
Gluckman foi aluno do antropólogo Radcliffe-Brown de quem herdou o método
estrutural-funcionalista que serviu de base para suas próprias pesquisas, no entanto
ele foi além na busca por uma compreensão da mudança social concebida como criação
contínua de uma estrutura social dinâmica (ERICKSON; MURPHY, 2015).
NOTA
Na antropologia o método estrutural-funcionalista, baseado nos
métodos das ciências naturais, postula que é possível identificar as leis
que regulamentam e organizam o funcionamento de uma sociedade.
A partir desse método Radcliffe-Brown dentre outros antropólogos
procuravam identificar as estruturas e os sistemas de relações sociais
que tornam uma sociedade integrada e estável.
Gluckman dividiu seus colaboradores para cobrir a África central a partir de quatro
eixos de pesquisa: minas e cidades mineiras, áreas rurais isoladas, áreas rurais próximas
aos centros onde concentravam mão de obra e economia monetarizada e áreas agrícolas
europeias. A partir disso foram estudados os efeitos da migração laboral e da urbanização
na organização familiar e de parentesco, assim como na vida econômica, nos valores
políticos, nas crenças e práticas religiosas e mágicas presentes em cidades e aldeias.
Além disso, estudos dos efeitos de monetarização na economia e formação de grupos
33
sociais a partir de novas relações entre o mundo urbano e o mundo rural mostravam a
importância das minas, das lojas e das missões nos novos arranjos relacionais, agora não
eram apenas os moradores locais se deslocando do campo para a cidade, mas uma intensa
migração de europeus, indianos e outros grupos sociais em torno de um território de
intensa transformação.
34
ação, em situações concretas. Oxford estimulou em Gluckman o interesse pela análise dos
conflitos a das relações de grupos em oposição, na qual o equilíbrio social era mantido
pela incorporação da tensão por meio de “rituais da rebelião”, atos convencionais e
socialmente legitimados para manter a estabilidade social, neles o ritual detém uma
dimensão construtiva para ajudar a evitar o conflito real. Assim, em Zululândia o grupo
dominante era o branco, os rituais de rebelião era uma forma de alinhar uma unidade
entre os grupos, mesmo com a presença de conflitos. Os rituais tinham o poder de
chamar a atenção para o conflito, reforçando a necessidade de autoridade legítima
naquele lugar para conter os distúrbios da ordem social.
35
Nessa perspectiva teórica, os antropólogos priorizam a observação dos conflitos
sociais entre indivíduos que fazem parte do mesmo grupo observado. A escala de
observação é microssocial e não desconsidera variáveis macrossociais como gênero,
classe ou raça, mas integra tais escalas na análise de uma situação que pode revelar
aspectos de uma estrutura.
Hoje isso não é recomendado e tem levantado inúmeras críticas, uma vez que
ao utilizar roupas específicas de uma cultura isso não vai tornar o antropólogo um membro
dela, rotinizar trajes, linguagens ou técnicas corporais do grupo pesquisado muitas vezes
é interpretado como um falseamento da relação social e demonstra uma relação mais
instrumental do que de reconhecimento e respeito.
36
Além de todos esses métodos e técnicas de pesquisas empregadas na análise
situacional, a Escola de Manchester por estar interessada em conhecer o contexto
pesquisado em sua totalidade também percebeu que há uma pluralidade de sentidos,
normas e indivíduos ali. Por isso, a etnografia realizada na África Central era tão rica e
estimulante ao pensamento antropológico, pois naquele contexto de intensas mudanças
no espaço físico e social entre o rural e o urbano foi possível compreender aquela
realidade social em construção. Uma transição entre modos de vida, práticas sociais
e redefinição de normas e valores entre uma modernidade e um sistema capitalista
industrial que rapidamente alterou contextos como o da África Central etnografada
pelos legendários antropólogos de Manchester.
37
A ciência antropológica, embora tenha recebido inúmeras críticas quanto ao
seu uso para fins coloniais, com a experiência da Escola de Manchester discutiu-se
extensivamente a posição política e as questões em torno da relação com as sociedades
que estavam enfrentando processos de modernização marcados por exploração,
precarização e descaracterização da vida social. Se, por um lado, o impacto da
industrialização revela problemas sociais imediatos como aqueles que podem ser vistos na
observação direta, por outro, a produção antropológica passou por transformações que
vão moldar os modos de fazer antropologia.
38
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:
39
AUTOATIVIDADE
1 Diferentes fatores relacionados às transformações sociais, econômicas e culturais
que marcaram o final da Segunda Guerra Mundial, sobretudo, após os anos 1960,
contribuíram para um inovador ponto de reflexão acerca das condições de vida
no contexto da modernidade. O interesse por uma investigação antropológica nas
cidades e as mudanças a partir da urbanização deu origem à “antropologia urbana”, este
termo designa uma subárea da antropologia que, no Brasil, tem seus primeiros estudos
na década de 1940 com os chamados “estudos de comunidade” e são fortemente
influenciados por duas escolas de pensamento clássicas. Sobre estas grandes escolas
do conhecimento da Antropologia Urbana, assinale a alternativa CORRETA:
40
Assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.
41
4 Cientes do impacto das transformações pelas quais vivenciavam no cotidiano da
própria cidade que habitavam, os pesquisadores da Escola de Chicago investiram no
projeto de pesquisa empírica que os deslocava para fora dos gabinetes estimulando
que fossem eles próprios em busca das singularidades, mudanças e problemas
sociais que o fenômeno urbano evidenciava. Nesse sentido, era considerável a
experimentação realizada em termos de métodos de pesquisa quando serviram-se
fartamente da observação participante e do método de estudo de caso para cobrir
um grupo heterogêneo de pesquisas em torno da cidade de Chicago. Considerando
a importância das pesquisas de Chicago, escolhas pelo menos dois de seus autores
e disserte sobre suas pesquisas e as contribuições para o estudo da cidade e do
urbano.
42
UNIDADE 1 TÓPICO 3 —
MOVIMENTOS SOCIAIS, SUBCULTURAS
E IDENTIDADES URBANAS
1 INTRODUÇÃO
Aprendemos nos tópicos anteriores o contexto social no qual a Revolução
Industrial e o intenso processo de modernização produziram impactos incontornáveis
em muitas regiões do mundo. Fizemos uma imersão nas contribuições da Escola de
Chicago e da Escola de Manchester, importantes escolas de pensamento, e descobrimos
como ambas vão produzir estudos que visem demonstrar como o espaço social vai ser
modificado mediante os processos de construção e consolidação do mundo urbano.
É notável que nessas novas relações de alteridade também estavam presentes uma
certa familiaridade com o social, com os indivíduos e mesmo com a cidade que é o lócus
de observação, mas também de moradia e pertencimento dos próprios antropólogos.
Essa proximidade vai colocar algumas questões epistemológicas em perspectiva para o
antropólogo que deseja fazer etnografia na cidade.
Para esse autor, uma característica marcante do modo de vida urbano na vida
dos indivíduos da idade moderna é a alta concentração em agregados gigantescos,
quando um maior número de indivíduos passa a viver em centros cada vez mais
inchados de pessoas, atividades econômicas e instituições da modernidade, em torno dos
quais “irradiam as ideias e as práticas que chamamos civilização”.
Em maior ou menor escala a vida social no meio urbano ainda se relaciona com
práticas e sentidos do mundo rural, há uma influência histórica da vida rural que segue com
o indivíduo que foi morar na cidade urbana. Dessa forma, Wirth nos estimula a perceber que
estamos conectados por práticas sociais herdadas de uma vida anterior que não desaparece,
mas se ajusta, se modifica e produz algo entre esses dois mundos em interação.
44
sem esquecer dos equipamentos culturais e de lazer como imprensa, estações de
rádio, teatros, bibliotecas, museus, salas de concerto, óperas, hospitais, instituições
educacionais de nível superior, como faculdades e universidades, centros e institutos
de pesquisa, organizações profissionais, instituições religiosas e filantrópicas, grupos
recreativos, dentre outros presentes nesse aglomerado urbano.
Na cidade os contatos pessoais podem ser face a face, mas também reduzidos,
impessoais, superficiais, transitórios e fragmentários, lembrando aqui aspectos citados por
Simmel, a “reserva”, a “indiferença” e o “ar blasé” são características que os habitantes do
meio urbano tendem a manifestar em suas relações sociais (WIRTH, 1979, p. 101).
É fato que no meio urbano nosso contato físico é mais estreito, os edifícios com
aglomerados de apartamentos reúnem um grande contingente de pessoas no mesmo
perímetro, mas isso não significa contatos sociais mais íntimos, pelo contrário, notamos
uma vida cada vez mais distante de uma relação com a vizinhança.
Podemos nos ver todos os dias, dividir o elevador na mesma hora ou pegar o
mesmo ônibus para ir ao trabalho, no entanto, esse alto reconhecimento facial que
opera no cotidiano da vida urbana não é convertido em uma experiência autêntica de
reconhecimento ou amizade. A partir disso é possível que tenhamos cada vez mais
afinidade com signos que estão presentes em nosso cotidiano do que com as pessoas
que cruzam nosso caminho. É nesse ponto que as subculturas, os movimentos sociais e
as identidades urbanas ganham nosso interesse.
45
A urbanização do mundo é um evento notável da vida moderna, insere
um conjunto de modificações profundas em diferentes esferas da vida social, por
exemplo, família, educação, trabalho, lazer, moradia, educação, consumo, transporte,
comunicação. No entanto, não podemos deixar de lembrar que esse processo aconteceu
de forma muito intensa e desordenada e foi responsável pelo aumento dos problemas
urbanos do contexto presente.
Para Morais Lima (2012, p. 40) a cidade a partir dos seus interlocutores okupas
“não deve ser lida apenas como um lugar estratégico para uma ação contínua da economia
capitalista, uma ação orientada pelos interesses dos especuladores imobiliários e dos
investidores da construção civil”. Nesse sentido, o movimento social urbano conhecido
46
como “okupa” aborda a cidade de uma outra perspectiva, aquela na qual é possível
encontrar modos de viver que sejam diferentes. Para os “okupas” interlocutores da
pesquisa de Morais Lima (2012) a cidade é um palco de disputas pelo direito de morar,
viver e cultivar práticas e formas de vida que sejam diferentes. Assim, “ocupar” seria
uma forma de praticar a cidade, uma reinvenção do social, do urbano e dos sujeitos que
nela vivem. Há entre os diferentes grupos okupas práticas de lazer, solidariedade e cultivo
de formação política orientadas pela filosofia anarquista e libertária, mas a cada casa
“ocupada” há um conjunto de sujeitos que são diferentes, que procuram intervir no meio
urbano para afirmar um protesto contra o capitalismo que gentrifica (isola) e aumenta a
camada de despossuídos na vida urbana.
47
Dadas as especificidades históricas e contextuais, no Brasil, há também esse
perfil de ocupação urbana em que os okupas fazem sua intervenção em lugares que
possuem dívidas com o poder público ou com os trabalhadores que empregavam e
deixaram sem restituição trabalhista. Esse é um vínculo que cruza uma identidade
política com uma identidade estética, valorização de uma vida cultural diferente,
considerando que o perfil dos okupas são de jovens anarquistas e punks, nos quais
a maioria se veste de preto, com signos de uma cultura punk, tatuagens, piercings,
coturnos, moicanos, dentre outras características temos um bom exemplo de uma
identidade urbana.
48
DICA
Acadêmico, quer saber mais desse
tipo de movimento ou conhecer outras
referências sobre o tema? Fique de olho
nessa dica de série argentina da Netflix
chamada Okupas. Foi uma série muito
popular na Argentina que ganhou quatro
prêmios Martín Fierro (Emmy argentino),
incluindo o de melhor minissérie.
Fonte: http://twixar.me/DmMm.
Acesso em: 21 jul. 2022.
49
heterogênea. Assim, cada “subcultura social urbana” possui uma estrutura interna
particular que pode definir hábitos alimentares, condutas políticas, pensamos filosóficos,
vocabulário e linguagem próprias (gírias), gosto musical compartilhado, engajamento
político, religião, maneiras de vestir ou andar, dentre outros fatores.
O fato é que esse subgrupo urbano surgiu junto com a formação dos centros
urbanos, muitos nascem como movimentos de contracultura, como os punks ou
hippies, mas há uma diversidade desses grupos no meio urbano e eles organizam um
modo de vida diferente da maioria do que é compartilhado socialmente, assim como
criticam a política e economia que sustentam o sistema capitalista. As tribos urbanas
são fenômenos sociais comuns a contextos urbanos distintos.
50
A produção desse autor foi responsável por fornecer um grupo diversificado de
categorias de análise da antropologia urbana, só para termos uma ideia, algumas delas
são: pedaço, trajeto, circuito, mancha, pórtico. Todas essas categorias de análise fazem
parte de um vocabulário dos interlocutores de pesquisa do antropólogo, quando ao
observar e interagir com esses sujeitos apreendeu os sentidos e as palavras que eles
utilizam para falar de sua experiência de habitar a metrópole urbana.
3 IDENTIDADES URBANAS
Caro acadêmico, o estudo do urbano pela antropologia se dá em face de um
contexto de época quando muitos antropólogos percebem que as mudanças provocadas
pela industrialização e urbanização eram inevitáveis e que as transformações estavam
acontecendo diante de si mesmos, como sujeitos que vivenciavam o urbano, a cidade
e suas mudanças. Uma primeira movimentação vem desse interesse por parte de
pesquisadores das ciências sociais em observação da cidade, investigar e analisar as
mudanças em curso na sua própria sociedade.
Um dos primeiros livros que ainda permanece uma importante referência no campo
da Antropologia Urbana é “O fenômeno urbano”, organizado pelo antropólogo Otávio
Velho, e publicado originalmente em 1967. O livro é uma coletânea de textos assinados por
pesquisadores da Escola de Chicago e que foram traduzidos para o português. Diversos
pesquisadores incorporam as suas análises a respeito da cidade e do urbano, aquilo que
vem a ser o conteúdo dessa coletânea. As mudanças e os problemas enfrentados pelas
grandes cidades em contínua transformação são reunidos em temas amplos que eram
encontrados nas grandes metrópoles, como a criminalidade, as subculturas juvenis, as
migrações do rural para o urbano, a formação e inchaço das favelas, assim como outros
assuntos como o desemprego, as culturas dissidentes, a falta de moradia, estavam no
centro de problemas sociais da cidade urbana em desenvolvimento.
DICA
Cabra Marcado Para Morrer – Filme de Eduardo
Coutinho
Em 1962, o líder da liga camponesa de Sapé (PB), João
Pedro Teixeira, é assassinado por ordem de latifundiários.
Um filme sobre sua vida começa a ser rodado em 1964,
com a reconstituição ficcional da ação política que levou
ao assassinato e direção de Eduardo Coutinho. As
filmagens são interrompidas pelo Golpe Militar de 1964.
Dezessete anos depois, em 1981, Eduardo Coutinho
retoma o projeto e procura Elizabeth Teixeira e outros
participantes do filme interrompido.
52
condição de pesquisa própria da observação participante (MALINOWSKI, 1978).
Considerando essa perspectiva também podemos defender que a etnografia permite
ao pesquisador visibilizar e valorizar as experiências de grupos sociais vulnerabilizados
pela desigualdade.
53
O sujeito urbano é heterogêneo, passa a constituir sua identidade marcada por
diferentes pertencimentos sociais. Sua identidade pode se associar por afinidades com
relação ao pertencimento local, isto é, morar no mesmo bairro ou condomínio, por um
identificação com relação a um gosto musical, samba ou punk rock, assim como ao
estabelecer vínculos religiosos, ser candomblecista ou católico, ter um grupo de trabalho,
reuniões de happy hour com os colegas do mesmo escritório ou encontros regulares com
profissionais da mesma área de trabalho, assim como pode se definir por pertencer ao
mesmo estrato social de classe e frequentar espaços de lazer e consumo comuns, bem
como por pertencer a mesma identidade racial, gênero ou sexualidade.
54
Gilberto Velho procurou demonstrar como viviam os moradores de Copacabana em
relação ao bairro, o sentido de pertencimento, a afirmação positiva de estar e morar em
um bairro de fama internacional e revelou suas incongruências, considerando também a
abordagem socioespacial que Velho realiza naquele lugar, demonstrando a precariedade
de espaço, o custo de vida, a relação de vizinhança e os desafios de estranhar aquela
familiaridade. Do ponto de vista antropológico, o estudo do antropólogo carioca fornece
não só boas pistas para entender as mudanças no estilo de vida, modos de habitação
e ocupação da cidade, mas é extremamente rico em termos metodológicos, pois será
a partir desta experiência etnográfica que Velho vai postular a observação participante
mediante o equilíbrio entre a dimensão da familiaridade e do estranhamento como
perspectivas epistemológicas da antropologia feita na cidade, no urbano.
55
shopping. A etnografia da sociedade complexa, essa que compõe a cidade urbana e
suas singularidades, é uma maneira do pesquisador enxergar nossas diferenças, nossas
singularidades e compreender o quanto somos diferentes mesmo estando em uma
mesma cidade ou bairro, como é o caso de Copacabana.
Todos esses são fenômenos que estão presentes no meio urbano e que fazem
parte da cultura complexa da cidade. Essa diversidade de estilos de vida, práticas culturais
e visões de mundo não determinam uma cultura única, mas ressaltam a pluralidade que
compõe a vida urbana e os sujeitos sociais que nela habitam. Por outro lado, Gilberto
Velho também vai chamar a atenção para os processos de “massificação” da sociedade
complexa, isto é, com a intensa modernização e industrialização o desenvolvimento da vida
nas metrópoles também produz transformações que geram padrões de comportamento,
sociabilidade, interação, costumes e rotinas.
56
DICA
Quem não lembra dos inúmeros comentários na rua, em casa ou no trabalho sobre
a trama de Avenida Brasil? Não conhece? Não assistiu? Pega essa dica, acadêmico,
e nos intervalos de estudo aproveite para assistir à novela e lembrar dos conceitos
antropológicos.
O meio urbano estudado por Gilberto Velho nos apresenta as influências que
mídias sociais, produtos e instituições exercem na formação e construção do nosso estilo
de vida, dos nossos costumes e nossos valores socialmente compartilhados.
57
LEITURA
COMPLEMENTAR
POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA E O “DIREITO A TER DIREITOS”
58
Concordando com Costa (2007: 19), afirmo que a situação de rua ganhou
nuances na medida em que cresceu e se expandiu, tornando-se algo cada vez mais
presente no cotidiano das cidades. Junto a isto, entrelaçam-se novos discursos, práticas e
instituições que refletem sua presença marcante. No bojo dessas transformações nos
grandes centros, o fenômeno torna-se uma questão a ser amplamente debatida. No
entanto, o que considero fundamental apontar é que a existência do MNPR incide e
transforma diretamente o modo como o debate estava organizado: o estabelecimento
do MNPR marca em definitivo a existência de um espaço de fala e reconhecimento
das pessoas em situação de rua enquanto interlocutores válidos no campo de disputas
políticas e nas questões que se referem à vida em situação de rua.
Mesmo as pessoas que não se utilizam desse tipo de serviço e passam a maior
parte de seu tempo na rua, têm suas agendas determinadas por outras atividades tão
ou mais “imediatistas”: a ocupação e salvaguarda dos espaços de suas “malocas”
ou “mocós” e seus pertences; os horários de atendimento dos serviços prestados por
voluntários que servem alimentação (as chamadas “bocas de rango”); as rotinas de
trabalhos, como a catação de materiais recicláveis; as atividades dos “flanelinhas”, que
cuidam de carros em pontos que precisam ser ocupados e defendidos para não serem
perdidos para a concorrência, dentre outros exemplos.
59
banho. Desta forma, a questão que se coloca é: como chamar à organização pessoas
com tal nível de vulnerabilidade, com toda a sua rotina orientada para a resolução
imediata de suas necessidades, sem garantias futuras e pouquíssima margem para auto-
organização?
60
punidos novamente por não terem uma referência domiciliar. Nos últimos anos, o MNPR
travou uma grande luta para fazer com que certas especificidades da vida na rua fossem
reconhecidas enquanto tal, para então criar alternativas para inclusão em programas
sociais ou mesmo para assegurar o acesso à saúde.
61
O que se percebe é que boa parte dos esforços recentes por uma inclusão
qualitativa da população de rua em programas sociais e por acesso a direitos tem
sido realizado nesse plano, o que torna absolutamente necessário reconhecer as
especificidades de um modo de vida para tentar impactar positivamente o segmento em
termos de redistribuição. Redistribuir, pelo menos no caso da população em situação
de rua, significa necessariamente reconhecer especificidades de um modo de vida
historicamente estigmatizado, criminalizado e não raramente massacrado.
Fonte: MELO, T. H. A. G. População em situação de rua e o "direito a ter direitos". Novos Debates, Brasília,
DF, v. 1, n. 2, p. 198-206, 2015.
62
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:
63
AUTOATIVIDADE
1 O texto “O urbanismo como modo de vida” do sociólogo estadunidense Louis Wirth
(1979) é um importante estudo que marca uma abordagem do urbano na antropologia
brasileira. O autor é considerado um dos mais notáveis estudiosos do fenômeno
urbano nos Estados Unidos. Wirth elaborou sua interpretação do fenômeno urbano
contribuindo para uma “teoria sociológica e sociopsicológica do urbanismo”. Sobre
estas grandes contribuições ao conhecimento da Antropologia Urbana, assinale a
alternativa CORRETA:
Fonte: WIRTH. L. O urbanismo como modo de vida. In: VELHO, O. (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro,
Zahar Editores, 1979. p. 89-112.
64
Assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.
65
5 Existem muitas estratégias de pesquisa e de observação possíveis de serem adotadas
nas atividades etnográficas. A observação participante é uma delas. Nesta proposta, a
relação entre os pesquisadores e os interlocutores se torna mais próxima, pois existe
uma mudança de atitude e atenção maior no aspecto de qualidade e na forma de
criação de vínculos entre sujeitos em interação. Neste contexto, disserte sobre as
principais contribuições dos estudos de Gilberto Velho e Guilherme Magnani para a
Antropologia Urbana.
66
REFERÊNCIAS
ALVES, E.; SOUZA, G. S.; MARRA, R. Êxodo e sua contribuição à urbanização de 1950 a
2010. Revista de Política Agrícola, Brasília, DF, ano XX, n. 2, jun. 2011. Disponível em:
https://bit.ly/3vg0GqA. Acesso em: 4 maio 2022.
67
MAFFESOLI, M. O Tempo das Tribos: o declínio do Individualismo nas Sociedades Pós-
Modernas. Paris: Meridians Klincksieck, 1988.
MORAIS LIMA, A. L. Okupar, resistir, insistir: uma etnografia das práticas de ocupação
urbana Fortaleza / Ceará. 2012. 168 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)
– Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2012.
SIMMEL, G. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, O. (org.). O fenômeno urbano. Rio
de Janeiro, Zahar Editores, 1979. p. 10-24.
68
VELHO, G. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade
contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.
WIRTH. L. O urbanismo como modo de vida. In: VELHO, O. (org.). O fenômeno urbano.
Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979. p. 89-112.
69
70
UNIDADE 2 —
ANTROPOLOGIA RURAL
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.
CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.
71
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 2!
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72
UNIDADE 2 TÓPICO 1 —
CONCEITOS E TRADIÇÕES TEÓRICAS NOS
ESTUDOS DE CAMPESINATO E
DA RURALIDADE
1 INTRODUÇÃO
Caro acadêmico, estamos numa travessia de conhecimento antropológico e
etnográfico que navega pelos estudos da antropologia considerando suas subáreas,
rural e urbana, já vimos na primeira unidade aqueles conceitos mais elementares da
antropologia e fizemos um mergulho nos estudos da vida urbana, passando pelas
principais escolas de pensamento e considerando alguns estudos etnográficos que nos
permitiram conhecer um pouco melhor como se faz uma investigação antropológica no
mundo urbano.
Além disso, também foi possível dialogar com alguns autores que se dedicaram
ao estudo sistemático das transformações sociais a partir da Revolução Industrial e da
implementação do sistema capitalista, considerando as diferentes mudanças ocorridas
com a formação das cidades urbanas, grandes metrópoles e modos de vida que foram
afetados por essas dinâmicas de interação que passaram a surgir nesse no modo de
vida urbano.
73
Pois bem, você já deve ter percebido que há inúmeras transformações políticas,
sociais, econômicas e culturais. Nossa abordagem anterior destacou apenas alguns
aspectos desse novo modo de vida urbano, mas você sabe que é apenas um pedaço de
um vasto conhecimento em termos de pesquisas sociais sobre essas mudanças. Então,
renovamos agora o compromisso de partir desses estudos e procurar conhecer cada
vez mais o mundo social e suas transformações para chegar exatamente no ponto que
estamos vivendo agora: a vida contemporânea.
Autores, escolas e estudos são como mapas conceituais, que servirão a você
para aprofundar o seu conhecimento. Acadêmico, você já percebeu até aqui o quanto
é instigante e sedutor conhecer, aprender e entender tantos aspectos da vida social
através das lentes de análise da antropologia.
Se você lembrar bem, logo no início da primeira unidade, nós fizemos uma
curiosa imersão nos estudos clássicos de antropologia para falar das mudanças e
perspectivas que a própria ciência antropológica vai vivenciar na medida em que a vida
vai se transformando. Exemplo disso foi o entendimento acerca dos primeiros estudos
antropológicos que estavam interessados em “catalogar” e “preservar” os conhecimentos
dos “povos primitivos”, era o principal objeto de estudo da antropologia clássica e só
mais tarde a antropologia passa a se interessar pelo estudo das “sociedades complexas”
ao dar início ao estudo e às novas pesquisas em populações rurais.
Então, acadêmico, fique atento e preste muita atenção que nesta unidade nós
aprofundaremos o nosso conhecimento na antropologia rural e, já de partida, lembre-
se que durante um bom tempo a antropologia chamou essa subárea de estudos de
74
campesinato. Também vamos entender o porquê e quais são os demais eixos de pesquisa,
seus principais autores e etnografias sobre esse campo. Ao longo desta unidade, você
encontrará alguns autores que estudaremos aqui, mas sempre terão outras dicas que
podem levar você a explorar outros campos de pesquisa por meio de recomendações
de livros, revistas, podcasts, vídeos, documentários e muito mais.
Nesse primeiro momento destacado por Melatti (2007), isto é, até os anos 1930, a
antropologia brasileira ainda não era um campo bem delimitado no Brasil, não havia,
por exemplo, uma formação acadêmica em Antropologia e era um momento em que
começava a surgir como um subcampo das ciências humanas na Europa. Parte curiosa do
registro de material que serviria aos estudos antropológicos começa com uma grande
contribuição de viajantes, cronistas, missionários e de outros profissionais como médicos,
militares, juristas e engenheiros que interessados nos relatos compartilhados de viagens
passavam a descrever aspectos dessas experiências. Seus relatos serviram como material
de pesquisa documental para os antropólogos e outros estudiosos.
75
DICA
O romance de Daniel Defoe, Robinson Crusoé, é considerado um marco cronológico e
conceitual na definição da modernidade. A obra, publicada em 1719, concentra diversas
características da Era Moderna (1453-1789) e é sempre lembrada como uma referência
para entender o contexto de transição para a Modernidade. Além disso, para nossos
interesses aqui do livro é um exemplo interessante das contribuições da literatura e dos
relatos de viagem como fontes para interpretação do mundo social. São duas dicas em
uma, o romance foi recentemente reeditado e ganhou uma versão belíssima da Editora
Ubu (https://www.ubueditora.com.br/robinson-crusoe.html).
E, em 1954 também ganhamos uma produção cinematográfica (dirigida por Luis Buñuel,
México, Estados Unidos, 1954. Drama/Aventura), a qual você poderá assistir em: https://bit.
ly/3Kxb4k4.
SINOPSE: a história clássica de Robinson Crusoé, um homem que foi arrastado para
uma ilha deserta depois de um naufrágio. O único filme de Luis Buñuel financiado por
um estúdio americano.
PREMIAÇÕES E FESTIVAIS
Venice Film Festival 1954.
Academy Awards 1955 | Nomeado: Best Ator in a Leading Role.
Locarno International Film Festival 1960.
BAFTA Awards 1955 | Nomeado: Best Film from any Source.
Alguns desses colaboradores que serão lembrados por Melatti (2007) são
Roquette Pinto, Nina Rodrigues, Sílvio Romero e Euclides da Cunha. Estes autores
contribuíram com registros a respeito dos povos indígenas, negros e sertanejos no
período que vai do final do século XIX ao início do século XX, tendo como principal
afinidade teórica compartilhada entre eles o uso das teorias de “determinismo geográfico”
e “determinismo biológico” para pensar a formação da nação brasileira.
76
Esses autores foram duramente criticados por afirmarem em seus argumentos
a hierarquia entre raças, estabelecendo que haveria sociedades superiores e outras
inferiores, no caso brasileiro o argumento elaborado por eles afirmava que a formação da
nossa sociedade com base na mestiçagem seria ruim para o país, pois a partir dessa
mistura aquelas características associadas à raça negra ou indígenas eram vistas como
prejudiciais e inferiores em relação ao branco, muitos pesquisadores brancos reforçavam
esses estereótipos com teorias racialistas que tenderia enfatizar as supremacias
genéticas de uns grupos, grupos brancos, sobre outros, negros e indígenas, e tal
premissa estava inspirada em teorias racialistas europeias que viam na mestiçagem um
bloqueio ao desenvolvimento da nação.
77
Figura 2 – Exposições públicas
IMPORTANTE
Sobre as teorias racialistas você pode ler este interessante artigo:
• COSTA, S. A mestiçagem e seus contrários – etnicidade e
nacionalidade no Brasil contemporâneo. Tempo Social – Rev.
Sociol, S. Paulo, v. 13, n. 1, p. 143-158, maio 2001.
78
genéticas definem as capacidades físicas, psicológicas e biológicas de um ser humano de
acordo com o grupo ao qual pertence (etnia). Ambos se assemelham por afirmarem que as
diferenças culturais podem ser explicadas pela origem genética, isto é, biológica.
No Brasil, Gilberto Freyre será lembrado como um autor que supera essa visão das
teorias deterministas após a publicação da obra clássica Casa Grande & Senzala em 1933.
Freyre havia convivido com Franz Boas em sua passagem pela Universidade de
Columbia, seu argumento vai no sentido inverso ao dos autores filiados ao “determinismo”
quando afirmou, a partir de uma análise do processo histórico de formação do Brasil,
que a miscigenação não representava atraso ao desenvolvimento do país, mas um
componente rico de diversidade cultural em que as três raças contribuem de forma
virtuosa para a integração do país.
79
Muita informação interessante até aqui, não é, acadêmico? Mas não para por
aí, voltemos nosso olhar para essas etapas de formação da antropologia, localizando os
estudos clássicos do campo. Na continuidade do que é proposto por Melatti (2007) o
segundo período definido é aquele que vai de 1930 até 1960 e é considerado um marco
para a profissionalização da área, isto porque foi nesse período que a Antropologia
passou a ser uma área das Ciências Sociais e um campo de estudos com formação
acadêmica.
Conforme destacado por Melatti (2007, p. 11) “sem dúvida foi em São Paulo, pelo
número de professores, pelo número de alunos e pelo espírito de renovação, o principal
foco de irradiação da Etnologia nesse período”. Além dessas escolas, fora do espaço
acadêmico universitário, foram criadas em 1937 a Sociedade de Etnografia e Folclore e em
1941 a Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia.
INTERESSANTE
Na antropologia falamos em etnologia para nos referir aos estudos que se dedicam à
análise de situações sociais e documentos registrados pela etnografia de forma detalhada
para descrever grupos sociais, etnias ou culturas de um povo de forma comparada. A
etnografia estuda um grupo particular em minucia, enquanto a etnologia se serve de
diferentes etnografias para realizar um estudo comparado desses dados etnográficos das
diferentes sociedades. A Etnologia tem um interesse maior sobre o estudo de sociedades
consideradas “nativas”, como os povos indígenas de diferentes partes do mundo, povos
africanos ou povos asiáticos, por exemplo. Você pode aprofundar um pouco mais as
perspectivas em etnologia a partir da conferência realizada em 29 de agosto de 1994 na
Faculdade de Ciências e Letras de Assis, com promoção do Programa de Pós-Graduação
em História com a conferencista: Joanna Overing (Escola de Economia – Universidade de
Londres). A antropóloga Joanna Overing apresenta uma palestra sobre
a sociedade indígena Piaroa, cuja área se estende pela Amazônia,
Venezuela e Colômbia. Joanna fala da cultura desse povo e como
eles veem o homem branco. Também fala da importância da
cosmologia e a cosmovisão promovida dentro daquele
grupo. Este vídeo integra o acervo audiovisual do Centro de
Documentação e Apoio à Pesquisa (CEDAP) da Faculdade
de Ciências e Letras de Assis (UNESP-FCL). O conteúdo pode
ser acessado na íntegra por meio de solicitação.
Acesse: http://www.assis.unesp.br/#!/cedap.
80
É a partir da década de 1930 que há uma forte influência de estudos norte-
americanos no país com a vinda de antropólogos do calibre de Ruth Landes, Charles
Wagley e Donald Pierson. A chegada desses pesquisadores influenciará fortemente o
campo da antropologia no Brasil até o final da década de 1960. Esses autores contribuem
para fortalecer perspectivas teóricas e metodológicas por meio de estudos sobre
mudança social, mudança cultural e processos de aculturação. De acordo com Melatti
(2007, p. 13), estes antropólogos ampliaram a pesquisa em grupos de comunidade.
“[...] tiveram por objeto tanto a população negra, como os grupos indígenas, bem como
imigrantes europeus e asiáticos e seus descendentes e ainda a população de áreas de
povoamento antigo e economicamente estagnadas”.
Todavia, a década mais importante para nossa abordagem aqui neste livro é a
década de 1940, pois, segundo Melatti (2007), os estudos chamados de “aculturação”
envolvendo as relações entre indígenas e brancos são um marco para época por
utilizar a teoria funcionalista para estudar a cultura indígena em sua totalidade, a partir
principalmente da sua organização social, sua religião e sua cosmologia.
Entretanto, veja bem, acadêmico, conforme aponta Melatti (2007) tinham grupos
de pesquisadores que estavam interessados em estudar a população negra, também
nesse período, alguns deles são Roger Bastide, Edson Carneiro, Ruth Landes e Arthur Ramos,
cujo interesse de pesquisa estava focado na análise das práticas culturais africanas que
continuaram a existir no Brasil, após o processo colonial de escravização. Para estes
autores, mesmo enfrentando o deslocamento forçado com a perda de várias referências
de sua própria cultura de origem em detrimento da alta exposição às crenças e valores
culturais do grupo dominante, ainda era possível encontrar traços culturais africanos
presentes nas práticas, valores e hábitos desses remanescentes.
81
equipe dirigida por Fumio Tada. Ao mesmo tempo em que esses pesquisadores japoneses
atuavam, desenvolviam-se os trabalhos de Hiroshi Saito, em colaboração com eles, e,
ainda, os de Egon Schaden e de Ruth Correia Leite Cardoso (MELATTI, 2007, p. 14-15).
INTERESSANTE
Roberto Cardoso de Oliveira (1928-2006) formou-se em Filosofia na Universidade de
São Paulo (USP) no início da década de 1950, mas é na Antropologia que sua carreira
se consolida. Seu primeiro contato com a disciplina ocorreu ainda na USP, por meio
das aulas ministradas pelo sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995), que anos mais
tarde orientaria sua tese de doutorado intitulada Urbanização e Tribalismo: a interação
dos índios Terena em uma sociedade de classes (1966). Após a graduação, constrói
sua trajetória antropológica em quatro instituições: primeiramente no Museu do Índio
em 1954, onde iniciou um trabalho junto aos índios Terena, localizados no estado do
Mato Grosso (atual Mato Grosso do Sul), e participou dos cursos de especialização em
Antropologia Cultural ministrados por Darcy Ribeiro (1922-1997).
Nesse período dedica-se a outros temas de pesquisa, voltando-se para uma reflexão
epistemológica sobre o fazer antropológico. Esse retorno à Filosofia aprofunda-se com a
mudança e contribuição para o curso de doutorado em Ciências Sociais da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), em 1985. Seu objetivo era desenvolver uma reflexão
sobre o fazer antropológico no Brasil e em outros países considerados “periféricos”.
82
É importante destacar que ele tomaria parte nos primeiros trabalhos de avaliação da
pós-graduação na área, participando de comissões da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (CAPES); o antropólogo contribuiu decisivamente para o
aprimoramento da pós-graduação no Brasil.
83
Figura 3 – Consolidação da antropologia no Brasil
84
Assim, não era mais o interesse da perda de traços e da identidade indígena no
contato com o branco, agora a etnologia interessava-se por evidenciar os conflitos entre
valores dissonantes dos indígenas e da sociedade nacional. Em 1960, Roberto Cardoso
de Oliveira publicou seu livro “O processo de assimilação dos Terena”, em seguida, em
1964, publicou “O Índio no Mundo dos Brancos: a situação dos Tukúna do Alto Solimões”
e, logo depois, “Identidade, etnia e estrutura social” (1976). Estas obras representam um
marco para os estudos etnológicos com foco na análise da presença de indígenas na
sociedade nacional. Essa subárea de pesquisa vai influenciar fortemente a atuação dos
antropólogos na defesa dos direitos indígenas, fazendo do seu trabalho de pesquisa uma
fonte de produção de conhecimento das necessidades, direitos e demandas indígenas.
Ainda nos anos de 1960 o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (1963) introduz uma
nova maneira de realizar pesquisa no Brasil a partir do projeto “Estudo de áreas de fricção
interétnica no Brasil”, no qual o pesquisador vai investir nas relações entre as sociedades
indígenas e a sociedade nacional. A noção de poder ganha visibilidade na elaboração
de pesquisas sobre povos indígenas levando em conta as posições de dominação e de
subordinação que tomam os membros das sociedades em contato, o conflito entre as
técnicas, regras, valores das mesmas sociedades colocados em perspectiva.
Será nesse período que os estudos de estrutura social das sociedades indígenas
com uso da teoria estruturalista ganham força com a contribuição de David Melbury-Lewis
Projeto Harvard-Brasil Central que estabelecia parceria entre a Universidade de Harvard e
o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (PPGAS/MN).
85
Para finalizar este subtópico, é importante que você, acadêmico, lembre-
se que até a década de 1970 a realização de pesquisas em pequenas cidades utilizando
uma abordagem qualitativa com observação direta vai continuar alimentando o campo
da antropologia com os estudos de comunidade, tendo inclusive forte influência sobre
pesquisas em sociedades indígenas, conforme apontado por Júlio Cezar Melatti.
INTERESSANTE
Atualmente, estima-se que existam 305 povos indígenas do Brasil, o que significa 0,4% da
população e aproximadamente 900.000 pessoas, segundo o Censo de 2010. Usamos o
termo “povos indígenas” para fazer referência ao grupo de pessoas que são descendentes
dos povos que habitavam o Brasil quando houve a invasão europeia. Naquela época
contabilizavam-se sete milhões de indígenas de várias etnias. Há uma diversidade de povos
indígenas e os guajajaras e os guaranis são os maiores grupos.
Observe, acadêmico, que usei o termo “povos indígenas” de forma proposital, pois o termo
"índio" tem cada vez mais entrado em desuso, isto acontece porque há uma compreensão
de que o termo “índio” reforça estereótipos e os próprios indígenas articulam uma crítica
ao uso desse termo, pois se sentem aprisionados numa compreensão distorcida de si
mesmos e que reforça desigualdades e a negação de sua identidade e sua pluralidade.
Os povos indígenas fazem parte também dos povos e comunidades tradicionais”, que se
refere aos povos que ocupam ou reivindicam seus territórios com base na sua ocupação
permanente ou temporária, por isso “territórios tradicionalmente ocupados”.
Os membros dessas comunidades tradicionais têm uma forma de vida própria e em geral
diferente daquela encontrada na sociedade nacional, isto que caracteriza esses grupos
como aqueles detentores de uma identidade e de direitos que lhes são próprios. Para
você ter uma ideia dessa diversidade observe as contribuições do etnólogo alemão Curt
Nimuendajú (1883-1945) que foi considerado o pai da etnologia brasileira. A seguir, você
encontra um recorte do famoso Mapa Etno-Histórico do Brasil e Regiões Adjacentes,
elaborado por ele e que dá uma dimensão dessa diversidade dos povos indígenas.
86
VERSÃO DIGITAL DO MAPA ETNO-HISTÓRICO DE NIMUENDAJÚ
São mais de 900 referências sobre etnias e línguas indígenas, coletadas entre
os séculos XVI e XX, e catalogadas em 1943 no Mapa Etno-Histórico do Brasil e Regiões
Adjacentes pelo etnólogo alemão Curt Unckel, conhecido mundialmente como Curt
Nimuendajú. “Curt Nimuendajú desenhou, à nanquim, três versões não idênticas para
o mapa-etnográfico. A primeira versão foi elaborada para a Smithsonian Institution
(EUA), em 1942; a segunda, em 1943, para o Museu Paraense Emílio Goeldi (Belém –
BR), a pedido de Carlos Estevão de Oliveira; e a última versão, provavelmente a mais
completa, foi traçada em 1944 para o Museu Nacional (RJ – BR).
87
Utilizando a técnica de restauração digital, a versão original do mapa, que
mede quatro metros quadrados, foi fotografada quadrante por quadrante, em alta
resolução. Com isso, será possível, na versão digital, visualizar as informações em
tamanho ainda maior que em sua versão física. Além da versão digital do mapa, será
lançada também uma edição revisada e ampliada da obra – um mapa e um livro
(impresso e digital).
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Curt Nimuendajú e o Mapa Etno-Histórico – Curt Unckel (1883-1945) nasceu
na cidade alemã de Jena e tornou-se etnólogo a partir da experiência de contato
e de pesquisa com povos indígenas no Brasil. Foi batizado pelos guaranis como
Nimuendajú (“o que fez seu assento”, “o que se estabeleceu”, conforme tradução livre
do linguista Aryon Rodrigues). Foi um dos principais pesquisadores da diversidade
social e cultural da Amazônia e, além de uma vasta obra intelectual, também produziu
três versões do mapa etno-histórico. Após Nimuendajú fixar residência na Amazônia,
passou a colaborar com o Museu Goeldi, como pesquisador e curador pioneiro até
seu falecimento. “Nimuendajú, naturalizado brasileiro em 1922, foi considerado como
a principal figura da etnologia brasileira do seu tempo.
3 OS ESTUDOS DE COMUNIDADE
Os chamados estudos de comunidade foram marcantes nas décadas de 1940
e 1950, quando os pesquisadores passaram a utilizar o método de observação direta
para pesquisar pequenas cidades ou vilas tendo como inspiração os estudos clássicos
da etnologia focados em sociedades “tribais”. Este grupo de pesquisas pensa o grupo
social como uma unidade de análise para apreender uma realidade social.
89
Para além dessa dimensão há outras que reúnem esses pesquisadores, como
o interesse no estudo das mudanças culturais considerando por exemplo a migração
do campo para a cidade, os impactos das novas formas de produção no meio rural,
a persistência da vida tradicional mesmo com o desenvolvimento do meio urbano,
processos de educação, imigração, dentre outros. Estes estudos representam uma
importante relação entre os estudos clássicos e os estudos urbanos, na definição
proposta por Oracy Nogueira, tais estudos assumem:
Aliás, destacamos o estudo de Oracy Nogueira que trouxe como tema Família
e comunidade, estudo sociológico de Itapetininga (1962), realizado em uma cidade do
interior de São Paulo.
90
As observações diretas poderiam fornecer informações do comportamento social
de um grupo, qual a sua linguagem comum, suas atitudes, seus hábitos alimentares, suas
práticas religiosas, suas festividades, sua economia, a maneira como ocupam a terra,
o modo como se relacionam entre si e com os animais e os espíritos da floresta, enfim,
inúmeras formas de aprender aquela realidade social. Segundo Nogueira, os estudos de
comunidade possibilitam uma diferenciação significativa em relação aos estudos de grande
escala (com dados estatísticos), pois permitem acessar o conhecimento das pessoas em
relação às suas subjetividades, seus valores, seus costumes, ampliando a compreensão
dos aspectos interindividuais socialmente compartilhados.
• O de Emílio Willems, Cunha, tradição e transição em uma cultura rural do Brasil, São
Paulo: Diretoria de Publicidade Agrícola da Secretaria da Agricultura, 1947.
• O de Lucila Herrmann, Evolução da estrutura social de Guaratinguetá num período de
trezentos anos. Revista de Administração, a. II, n. 5-6, p. 1-326, março-junho de 1948.
• O de Donald Pierson, Cruz das Almas, a brazilian village. Washington: Smithsonian
Institution, Institute of Social Anthropology, publicação n. 12, 1951.
• O de Charles Wagley, Amazon town, a study of man in the tropics. New York; The
Macmillan Company, 1953.
91
Pense bem, se os estudos clássicos focavam no determinismo para sustentar
suas posições preconceituosas a respeito de grupos e populações étnicas que são
diferentes, com o renovado olhar da investigação antropológica brasileira essas
perspectivas vão se mostrando limitadas e o exercício de relativismo e afirmação da
alteridade se coloca em primeiro plano no fazer antropológico.
92
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:
93
AUTOATIVIDADE
1 Os primeiros trabalhos relacionados ao estudo do ambiente rural ou do campo
acontecem numa época em que a antropologia ainda não era uma área acadêmica bem
estruturada no Brasil. Sobre isso, importantes contribuições foram catalogadas no trabalho
intitulado “A Antropologia no Brasil: um roteiro”, que foi publicado em 1983 (republicado
em 2007) do antropólogo Júlio Cezar Melatti (2007). Assim, este autor procurou traçar
uma genealogia da formação do campo da antropologia brasileira, destacando três
principais períodos dos estudos antropológicos no Brasil. Sobre esses grandes períodos
do conhecimento da Antropologia, assinale a alternativa CORRETA:
95
tecnologias no campo, dentre outras áreas de estudos. Considerando a importância
dessas pesquisas no contexto brasileiro, disserte sobre duas influências teóricas do
primeiro período mencionadas por Melatti (2007) que contribuíram para o estudo da
diversidade do rural e das populações rurais no Brasil (indígenas, negros, sertanejos).
96
UNIDADE 2 TÓPICO 2 —
POVOS TRADICIONAIS E SEUS MODOS DE
USO E OCUPAÇÃO DO ESPAÇO RURAL
1 INTRODUÇÃO
Caro acadêmico, a seguir, faremos algumas considerações dos itinerários
percorridos por algumas temáticas do campo. Embora mantenha como referência
os dados da criação distribuição e desenvolvimento das diferentes linhas de pesquisa,
apresento a você exemplos de modos de ocupação e uso do espaço rural.
97
Para Roberto Cardoso de Oliveira (1988) há uma área chamada Identidade,
Território e Relações Interétnicas que se ocupou substancialmente de uma subárea de
estudos da Etnologia Indígena quando se interessou pelos estudos de contato interétnico,
da etnicidade e do indigenismo.
Conforme apontado pela antropóloga Alcida Rita Ramos (1990), foi assim, por
exemplo, que essas duas subáreas passaram a representar duas perspectivas ao mesmo
tempo complementares e distintas, em algumas situações, até oponentes quando se
trata de estudos sobre populações indígenas. Por um lado, uma se voltou para os estudos
de organização social e política, religião, arte e cosmologia, enquanto a outra dedicou-se
aos estudos das relações sociais e políticas das populações indígenas com a sociedade
nacional.
No atual cenário nacional essa colaboração se tornou ainda mais intensa em face
do foco da etnologia para as temáticas que envolvem o meio ambiente, território, gênero,
sexualidade, educação escolar indígena, saúde da população indígena, experiências
de deslocamentos de indígenas para o ambiente urbano, assim como outros temas
(AMOROSO; SANTOS, 2013; BELTRÃO; LACERDA, 2017).
98
Figura 5 – Filme “A queda do céu”
O livro é uma escrita colaborativa entre o líder xamã yanomami Davi Kopenawa
junto com o antropólogo Bruce Albert, tendo como fonte os relatos colhidos na língua
nativa Yanomami e traz um registro único do testemunho da cultura desse povo na
perspectiva de um alerta global sobre a Amazônia.
INTERESSANTE
Conheça, agora, alguns dos indígenas que decidiram se tornar antropólogos:
99
• Indígena Ava Kaiowá, nasceu na aldeia de Sassoró-Tacuru, no Mato Grosso do Sul. Tonico
Benites é graduado em Pedagogia na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
(UFMS) em 2004, obteve seu mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (Museu Nacional/ UFRJ) em 2009 e doutorado em Antropologia Social
pela mesma universidade em 2014. Atualmente é professor visitante e pesquisador
do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras PPGSOF da Universidade
Federal de Roraima – UFRR.
• Nascida na terra indígena umutina, próxima à cidade de Barra dos Bugres, Mato Grosso,
Eliane Boroponepa Monzilar possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade do
Estado de Mato Grosso (UNEMAT), Especialização em Educação Escolar Indígena pela
Faculdade Intercultural Indígena e é mestra em Desenvolvimento Sustentável Juntos
a Povos de Terras Indígenas pela Universidade de Brasília, onde também obteve seu
doutorado em Antropologia Social em 2019. Atualmente é gestora da Escola Estadual
Indígena Jula Paré, Secretaria de Estado de Educação e Cultura-Seduc/MT.
100
Identidade, Território e Relações Interétnicas é de longe a área de pesquisas
que agrega o maior número de antropólogos, é a temática mais abordada na disciplina,
sem dúvida, acadêmico, você já deve ter percebido a partir das leituras anteriores que
esse interesse de pesquisa está diretamente associado ao nosso passado histórico,
assim como a sua herança e os desdobramentos sociais que se dão a partir de eventos
históricos, situações de contato e confronto e, sobretudo, relacionados à vulnerabilidade
que grupos sociais étnicos enfrentam diante de projetos econômicos exploratórios que
desrespeita esses grupos.
As pesquisas antropológicas nessa área têm ampliado cada vez mais sua
produção, sobretudo, considerando as questões de territorialização e ambiente que
afetam não somente as populações indígenas, mas também quilombolas, camponeses
e “tradicionais” de modo mais amplo. O que essa área tem nos mostrado, e auxiliado
a entender o Brasil contemporâneo, é o renovado olhar sobre o Campesinato, as
questões de desenvolvimento e o meio ambiente. Sobretudo, conforme destacado
pela antropóloga Andrea Zhouri (2012) a articulação dessas temáticas possibilita o
tratamento adequado das questões que vulnerabilizam esses grupos sociais.
Note, acadêmico, que a antropologia rural como uma categoria nem sempre é
articulada pelos antropólogos, a maioria das linhas de pesquisa aqui apresentadas dão
conte de um conjunto muito diverso de pesquisas e os grupos sociais contemplam o que
pode nos auxiliar a definir e entender esse “rural”. Os estudos etnológicos indígenas é um
caminho, mas há outros, conforme vimos. Nos próximos subtópicos vamos analisar outras
contribuições que nos possibilitem entender essas diferentes formas de agrupamento
social, identidade, territorialização e ocupação dos espaços com seus usos.
101
2 ANTROPOLOGIA RURAL NO BRASIL
Caro acadêmico, há uma multiplicidade de termos, conceitos e categorias que
tentam dar conta desse universo imenso de conhecimento que envolve as populações
que vivem no campo. Assim, a Antropologia Rural pode ser definida como uma subárea
da antropologia que se dedica ao estudo dessas populações a partir da investigação
antropológica e do uso da etnografia.
O termo “antropologia rural” nem sempre foi utilizado pelos antropólogos para
definir um campo de pesquisa, mas os fenômenos que eles estudavam eram próprios
do mundo rural. A antropologia rural estuda os modos de vida rural que não fazem
parte da vida citadina, em contraposição ao modo de vida urbano. Exemplar disso são
estudos de comunidade e os estudos de campesinato, que são termos mais usuais
encontrados na antropologia. Enquanto uma agenda disciplinar a antropologia rural
é bem mais recente, mas em termos de pesquisa, como podemos ver no Tópico 1, já
existiam estudos antropológicos focados na análise dessas formas de vida tradicionais.
Muitos pesquisadores que aqui já foram citados não usam o termo antropologia rural,
entretanto o universo de suas pesquisas caracteriza seus estudos de comunidade e/ou
de campesinato. Falaremos em detalhes de cada um desses termos adiante.
CRÉDITOS
Embora você já tenha tido contato com o método etnográfico cabe aqui chamar a
sua atenção para o uso de diferentes ferramentas metodológicas na construção de uma
pesquisa etnográfica em contextos rurais. Assim, o estudo do campo será feito por meio
da observação direta da realidade naquela comunidade ou grupo social, mas também
será utilizado o recurso das entrevistas e pesquisa documental.
O uso de diferentes recursos auxilia o antropólogo a dar maior rigor na sua prática
científica, a “observação participante” (MALINOWSKI, 1978) permite que esse pesquisador
vivencie por um tempo maior de convivência com o grupo pesquisado e aprenda sua
forma de viver no cotidiano e nas interações, por outro lado a análise de documentos
como, por exemplo, os registros de viagens permitem acessar características daquela
sociedade ao longo do tempo anterior ao do pesquisador.
No Brasil temos uma tradição muito forte de estudos antropológicos nessa área
de conhecimento, um desses estudos é considerada uma importante referência desse
período e se trata da tese de doutorado de Florestan Fernandes intitulada “A função
social da guerra na sociedade tupinambá” (1952), neste trabalho o autor desenvolve
uma análise a partir de materiais produzidos por cronistas sobre a sociedade indígena
Tupinambá, dando relevo a aspectos como o função social da guerra e a organização
social nesta sociedade. Trabalhos como este é uma iniciativa de aprofundar uma análise
fazendo uso de materiais documentados por cronistas, ensaístas e viajantes.
104
A pesquisa empírica envolve um esforço e um trabalho minucioso de diferentes
aspectos das diferentes sociedades e sua organização social. A partir desses trabalhos
sabemos que há uma diferença entre grupos indígenas que eles não são homogêneos,
compreendemos que cada etnia tem suas características próprias e necessidades
específicas para a sua manutenção e reprodução social. Exemplo disso é observar o uso
do tempo, a divisão do trabalho, os rituais funerais, as formas de nomear animais, espíritos
e pessoas, bem como as diferentes práticas de alimentação e medicina tradicional
aparecem na “descrição densa” (GEERTZ, 2013) desses grupos sociais pelos antropólogos
que se interessam por fazer atividade científica com essas comunidades.
INTERESSANTE
Fala-se em descrição densa como Descrição densa para se referir ao trabalho do
antropólogo Clifford Geertz (1926-2006), a partir do texto Uma Descrição Densa: Por uma
Teoria Interpretativa da Cultura (Thick Description: The Interpretation of Cultures 1973),
que propõe um conceito inspirado nos escritos do filósofo Gilbert
Ryle (1900–1976), principalmente em "What is le Penseur Doing?" (1971).
Geertz elabora princípios metodológicos para a etnografia como o
registro qualitativo, visual, sonoro e escrito, da cultura. Para conhecer
um pouco mais do conceito de descrição densa articulado
pelo antropólogo Clifford Geertz assista ao vídeo do Professor
Bernardo Lewgoy, disponível em: https://bit.ly/3R26ugh.
105
Também podemos olhar por outro ângulo, nos perguntarmos como uma
população pode sobreviver tanto tempo em um mesmo espaço social em condições de
vulnerabilidade com a exposição de invasores de territórios indígenas. Muitas etnografias
que são realizadas no Brasil visam não só conhecer essas dinâmicas territoriais que
marcam a vida dessas populações, mas recontar sua história, sua cosmologia e qual o
sentido que aquele lugar tem para a comunidade.
3 CAMPESINATO
Caro acadêmico, você deve ter percebido que é um movimento comum na
ciência construir argumentos e, em seguida, eles passarem por revisões conceituais,
aprimoramentos e algumas teorias ou metodologias também podem entrar em desuso.
Foi mais ou menos o que aconteceu com os estudos de comunidade, com as críticas
elaboradas aos estudos de comunidade, as pesquisas guiadas por esse tipo de abordagem
vão perdendo lugar e cedendo espaço para outros temas, substituídos por pesquisas de
caráter mais regional, nas quais se analisam problemas como o do campesinato, o dos
assalariados rurais, dos trabalhadores urbanos e das frentes de expansão da indústria e da
modernidade.
Alguns desses trabalhos que podem exemplificar esse tipo de estudo são:
“Emprego e mudança socioeconômica no Nordeste”, elaborado por Moacir Palmeira et al.
(1977) e “Mudança social no Nordeste” (1979), “A arte do ouro” (1979), “Trabalho assalariado
e trabalho familiar no Nordeste”, de Lygia Sigaud (1981), o projeto “Campesinato e
plantation no Nordeste”, de Afrânio Garcia Júnior, Beatriz Alasia de Heredia e Marie
France Garcia (1980). Os livros de José Sérgio Leite Lopes “O vapor do diabo” (1978),
Beatriz Maria Alasia de Heredia “A morada da vida” (1979), Doris Rinaldi Meyer “A terra do
santo e o mundo dos engenhos” (1980) e Lygia Sigaud com “A nação dos homens” (1980) e
“Os clandestinos e os direitos” (1979).
107
Outro conjunto de pesquisas foram desenvolvidas entre no leste e no norte
de Mato Grosso como “A dinâmica regional do Centro-Oeste”, de Mireya Suárez et al.
(1977), o projeto “Campesinato e peonagem numa área de expansão capitalista” reuniu
pesquisadores como Mireya Suárez, Eurípedes da Cunha Dias, Neide Esterci e Luís
Roberto Cardoso de Oliveira, na época era aluno de pós-graduação do Museu Nacional. O
foco das pesquisas nessa região estava concentrado nos “problemas enfrentados pelo
avanço das frentes de expansão” (Melatti, 2007, p. 29).
Há uma série de trabalhos que não foram mencionados aqui, mas o que
desejamos que você aprenda é a diversidade de pesquisas e como elas vão produzir
conteúdos que falam também de outras áreas da antropologia, como, por exemplo,
desigualdade social, identidade étnica, sistemas de classificação, reprodução social,
saúde, religião, trabalho, dentre outros.
108
Se no início da formação da antropologia o foco das atividades de pesquisa
estava concentrado nos povos “primitivos” com a revolução industrial e a formação
do mundo urbano, as mudanças que implicam as populações rurais passaram a ser um
objeto de atenção dos antropólogos. Até aqui, acadêmico, já foi possível perceber que as
populações rurais estão em contínuo processo de mudança e interação com outros
grupos sociais.
O fato de identificar essa relação de interação com outros grupos sociais serve
também para explicar as influências que uns exercem sobre os outros, não por acaso já
vimos como os estudos de comunidade e os estudos regionais foram importantes para
perceber a diversidade de grupos sociais que fazem parte do mundo rural.
4 COMUNIDADES TRADICIONAIS
A política nacional de desenvolvimento sustentável de povos e comunidades
tradicionais tem como marco referencial o Decreto nº 6.040/2007 que estabeleceu os
critérios para definir um povo ou grupo de indivíduos que possa ser classificado como uma
comunidade tradicional. Assim, podemos resumir em quatro aspectos principais que podem
ser utilizados para caracterizar um grupo como comunidade tradicional, a saber: a) as
práticas culturais; b) a organização social; c) o território específico; e d) a tradição ancestral.
Assim, as práticas culturais próprias que significa que esse grupo tem atividades
e características e formas de uso e manuseio de artefatos que são constitutivas daquele
grupo, isto é, são elementos que os identificam como pertencentes a um grupo específico e
que cria uma relação de identificação entre indivíduos que pertencem ao mesmo grupo
e cria uma identificação deles para grupos externos que não compartilham dessas
características. Logo, uma comunidade indígena pode ser definida como tradicional
com base nessa descrição.
109
etnia possui suas características particulares e formas de se organizar socialmente, isto
é, tem variação de grupo a grupo.
Essa definição se constrói com base na relação que essa comunidade estabelece
com aquele território específico, por exemplo, pescadores que vivem próximo a um rio
ou uma praia, a identidade dele é definida em relação com o ambiente territorial que
eles ocupam, pois, sua forma de existir passa por se relacionar com aquele território,
seus modos de usos e ocupação daquele lugar definem também seu pertencimento e
influenciam em sua subsistência.
O território pode variar, estar situado numa região litorânea, no sertão, próximo
aos rios, dentro das florestas, na foz de um rio, na caatinga, dentre outros espaços. Assim,
é compreensível que essa comunidade estabeleça uma relação específica com o território
ocupado, pois é a respeito dele que seus habitantes aprendem a viver e sobreviver,
respeitando e preservando seu uso e ocupação como uma forma de manutenção de uma
relação com este território que não seja violenta, exploratória e destrutiva, pois eles possuem
conhecimentos tradicionais para um uso e um modo de ocupação de convivialidade com o
meio ambiente, os animais e tudo que há naquele território de maneira sustentável.
110
4.1 INDÍGENAS
A população indígena no Brasil representa cerca de 900 mil pessoas, segundo
dados coletados pelo Instituto de Geografia e Estatística (IBGE) no último censo realizado
em 2010, que neste ano de 2022 será atualizado.
DICA
Sobre o acordo firmado entre FUNAI e IBGE, que trata de destacar o
segmento indígena nas bases de dados sobre a população, confira:
https://indigenas.ibge.gov.br/.
111
Krenák, Yathê, Karajá, Ofayé, Guató, Rokbabtsá e Boróro compõem o Tronco Macro-Jê.
Esses 305 povos indígenas possuem cultura, língua e organização política próprias, o que
os reúne entorno do uso da categoria povo, no entanto, o termo “etnia” é utilizado para
valorizar o aspecto cultural que diferencia esses povos.
Os índices demográficos estão cada vez mais diminuindo e se você pensar bem,
acadêmico, aqueles poucos povos que ainda resistiram ao tempo enfrentam hoje a
vulnerabilidade da pandemia de covid-19 e a invasão de suas terras por práticas ilegais
de exploração de minério, desmatamento de árvores e construção de hidrelétricas que
ameaçam o ecossistema de subsistência dessas populações.
112
É muito importante que nós lembremos da grande diversidade de povos
indígenas, a variação de grupos também está associada com os modos de ocupação e uso
do território, isto é, aqueles povos que habitavam as profundezas da floresta amazônica,
os povos indígenas que estavam localizados nas margens litorâneas, cada grupo em
regiões diferentes de todo o território brasileiro produzia características diferentes entre
eles.
Significa que, ainda que todos sejam indígenas, há diferenças e variações entre
cada grupo. Inclusive muitos mantinham relações rivalidade e outros associavam-se
em alianças.
Assim, uma importante instituição foi fundada para contribuir com preservação
dos territórios indígenas e segurança dos povos indígenas. Estamos falando da
Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Esta instituição tem por objetivo a proteção dos
povos indígenas e dos seus territórios, ao colocar em ação as atividades de proteção,
a FUNAI foi alvo de inúmeros ataques – fosse internamente, sofrendo com cortes e
sucateamento de sua estrutura organizacional, fosse pelas ações de grupos invasores
e de latifundiários, que tentavam cada vez mais invadir e ampliar as áreas de exploração.
Conflitos entre indigenistas e invasores acontecem até hoje o mais recente deles
chocou o mundo quando um indigenista da FUNAI, Bruno Pereira, e um jornalista britânico,
Dom Phillips, desapareceram e foram encontrados mortos na região do Vale do Javari.
DICA
Sobre o caso Bruno Pereira e Dom Phillips, leia a seguinte matéria:
http://glo.bo/3KzcOJq.
INTERESSANTE
Para entender melhor o conceito de etnogênese, leia o artigo do historiador
e antropólogo José Mauricio Arruti. Disponível em: https://bit.ly/3AYOX2Q.
113
4.2 QUILOMBOLAS
As comunidades quilombolas são formadas por grupos de pessoas que são
descendentes de africanos que foram escravizados durante o período colonial. Significa
que a maioria dessas comunidades se formaram a partir da luta de escravizados pelo
direito à liberdade, estas comunidades são registros da resistência e a memória ancestral.
114
Vamos lembrar que essas comunidades quilombolas estão espalhadas por todo o
território brasileiro, que é imenso, para regularizar a situação social de reconhecimento
do território como remanescente de quilombo é preciso um trabalho de elaboração e
pesquisa da comunidade, suas práticas e modos de vida, o desenho de sua genealogia, a
demarcação do território mediante processos de reconhecimento de suas fronteiras, o
registro de suas atividades políticas e de organização social, seu sistema de parentesco,
seus hábitos alimentares, usos e modos de ocupação do lugar, dentre outros aspectos.
Mesmo após o reconhecimento público de que se trata de uma comunidade quilombola
há ainda problemas quanto à infraestrutura básica, por exemplo, acesso à água potável,
rede de esgotos, energia elétrica, acesso à educação, saúde e condições de trabalho. Além
dessa dimensão da estrutura da comunidade, há que se observar as políticas de assistência
governamentais para a criação e manutenção dessas áreas em condições dignas de vida.
DICA
Quer saber um pouco mais dos direitos das comunidades
quilombolas no Brasil? Então, acadêmico, se liga nesse podcast:
https://spoti.fi/3pTHETK.
4.3 CAIÇARAS
A comunidade caiçara é um grupo social tipicamente litorâneo que se formou
a partir das relações miscigenas entre populações indígenas, populações negras e
colonos europeus em torno do bioma Mata Atlântica ocupando a faixa de terra seca que
fica entre o Mar do Atlântico e a Serra. Em geral, são comunidades encontradas no litoral
sudeste do Brasil – São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná até Santa Catarina -, mas também
está no nordeste do país, em regiões da Bahia com os jangadeiros e do Maranhão com os
balseiros. Sua marca predominante é o território limiar entre a terra e a água.
O que os define como uma comunidade tradicional é sua forma de vida baseada
no tipo de agricultura chamada itinerante, na qual a pesca, o extrativismo vegetal e o
artesanato são predominantes. Duas atividades predominantes nessas comunidades
são a pesca marítima artesanal, não predatória, e a agricultura primitiva, isto é, sem
utilizar tecnologias mecanizadas para suas práticas agrícolas, sendo assim cultivam
práticas mais tradicionais e de agricultura e pesca, como a coivara e a pesca de tipo
puçá, para o próprio consumo. Assim como o modo de preparar, armazenar e utilizar
alimentos como farinha e o peixe traduzem uma marca cultural de herança indígena, em
que se destaca um uso diverso da mandioca, o preparo do peixe defumado e cozidos
lentos para feitura de pirão.
115
Entre suas manifestações culturais podemos destacar aqui aquelas que os
caiçaras mantém vivas, por exemplo, o fandango português que se tornou Patrimônio
Imaterial Cultural em 2012, o tamanqueado e a Folia do Divino (que acontece em Paraty-
RJ) e virou Patrimônio Imaterial Cultural do Brasil em 2013 e o Boi mamão que é uma
variação do boi bumbá e combina o som da rabeca, da viola branca de sete cordas e do
machetinho.
DICA
Quer saber mais a respeito dos caiçaras? Conheça o trabalho de
pesquisa de Gabriel Bertolo (2015) em: https://bit.ly/3wJaGtc.
4.4 RIBEIRINHOS
Povos ribeirinhos ou comunidades ribeirinhas são aqueles grupos sociais que
estão situados nas proximidades de rios, igarapés, igapós e lagos da floresta, utilizando a
prática da pesca artesanal como sua principal fonte de subsistência e sobrevivendo as
variações sazonais da água e do clima no seu cotidiano de vida e de trabalho. Em geral,
cultivam pequenos roçados para seu próprio consumo e praticam atividades extrativistas
para sua sobrevivência, nutrindo-se das condições oferecidas pela natureza.
116
Estima-se que existem 350 comunidades ribeirinhas na região amazônica, a
Cuiú-cuiú é uma delas. Cerca de 37 mil habitantes dessas comunidades vivem isolados à
beira de rios, com pouco ou nenhum acesso às políticas de assistência.
Figura 8 – Comunidades
DICA
Vale a pena conferir o trabalho das pesquisadoras Talita de Melo
Lira e Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chave intitulado
“Comunidades ribeirinhas na Amazônia: organização sociocultural e
política”. Confira em: https://bit.ly/3AyUPP1.
117
Por fim, é relevante destacar que as comunidades tradicionais estabelecem
formas de relação com o seu espaço, cada uma delas estabelece à sua maneira um valor
e uma importância sobre o espaço vivido e é observando essa vivência e os processos
sociais que se desenvolvem a partir dali que podemos identificar as relações culturais,
existenciais que um grupo estabelece com o espaço.
118
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:
119
AUTOATIVIDADE
1 Conforme apontado pela antropóloga Alcida Rita Ramos (1990), nos estudos das
populações indígenas no Brasil, duas subáreas passaram a representar perspectivas
ao mesmo tempo complementares e distintas – em algumas situações, até oponentes.
Quando se trata de estudos das populações indígenas essa área organizou e definiu as
bases de formação do campo acadêmico e de produção em pesquisa na Antropologia
desde seus primórdios. Sobre estas grandes contribuições ao conhecimento da
Antropologia Rural, essa autora chama a atenção para duas bifurcações que dela
derivam. Sobre o exposto, assinale a alternativa CORRETA:
Fonte: RAMOS, A. R . Memórias Sanumá: Espaço e Tempo em uma sociedade Yanomami. Brasília: Editora
UnB, 1990.
2 A Antropologia Rural pode ser definida como uma subárea da antropologia que se
dedica ao estudo das populações do campo a partir da investigação antropológica
e do uso da etnografia. Alguns antropólogos se dedicaram ao estudo dos modos de
vida com destaque para as relações de parentesco, etnicidade, alimentação, práticas
festivas, rituais religiosos, territorialidade, economia, saúde, moradia, novas tecnologias
no campo, dentre outras áreas de estudos. Com base nessas definições, analise as
sentenças a seguir:
I- A Antropologia Rural estuda os modos de vida rural que não fazem parte da vida
citadina, em contraposição ao modo de vida urbano.
II- Segundo João Pacheco de Oliveira, os sujeitos indígenas e a construção de suas
identidades são homogêneos, porque os indivíduos indígenas interpretam e
conhecem o mundo somente de forma limitada e não há espaço para mudança.
III- O termo “antropologia rural” nem sempre foi utilizado pelos antropólogos para definir
um campo de pesquisa, mas os fenômenos que eles estudavam eram próprios do
mundo rural.
Fonte: SEYFERTH, G. Campesinato e o Estado no Brasil. Mana [on-line]. 2011, v. 17, n. 2, p. 395-417, 2011.
121
122
UNIDADE 2 TÓPICO 3 —
ORGANIZAÇÕES ECONÔMICAS,
RELAÇÕES SOCIAIS E MORALIDADES
NO MUNDO RURAL
1 INTRODUÇÃO
Caro acadêmico, vimos até aqui que expansão de estudos e pesquisas
antropológicas das populações rurais se desenvolveram de forma intensa e cobriam
temas focados na questão territorial e de reconhecimento da identidade. No Tópico 1, você
pôde aprender o processo histórico de formação da antropologia e seus desdobramentos
em estudos dos grupos sociais situados no mundo rural. Até então os estudos de
comunidades e a etnologia indígena foram os principais marcos de referência para o
desenvolvimento desse campo. Assim, entre as décadas de 1940 e 1970 esses estudos
representaram fortemente o campo de estudos em torno de comunidades e grupos que
eram lidos e definidos com base na sua localização espacial, seus traços culturais e em
contraposição ao modo de vida urbano.
123
Aponta-se para uma diferença significativa entre aquelas comunidades tradi-
cionais apresentadas no Tópico 2, das comunidades e grupos que falaremos aqui. As lutas
sociais por territórios foram constitutivas de comunidades tradicionais como indígenas,
quilombolas, caiçaras e ribeirinhos, e se destacam justamente por terem sido posicionadas
como fenômenos do mundo rural brasileiro. Nesse sentido, a abordagem acerca dos
conceitos de terra, território e territorialidade proposta por Dominique Galllois (2004)
que veremos no próximo subtópico faz referência exatamente a este ponto.
Entretanto, para uma visão mais plural ainda é preciso localizar alguns
componentes desse percurso historiográfico, sobretudo considerando a categoria terra,
que geralmente está associada a identidade do camponês. Assim, teríamos dois campos
de entendimento a respeito dos grupos sociais e sua relação com o rural, as comunidades
tradicionais estariam situadas no polo das lutas por território, enquanto os camponeses
se estabelecem nas lutas pela terra. As lutas por território nas quais situam-se indígenas,
quilombolas e demais comunidades tradicionais reivindicam a demarcação coletiva de
suas terras, isto é, o reconhecimento formal de que determinados espaços compõem a
identidade coletiva de um grupo social e representa uma luta por direitos culturalmente
diferenciados, assim a relação com esse território é uma relação de pertencimento coletivo
e responsabilidade coletiva pelo território, não como uma posse ou uma propriedade
individual. Por outro lado, as dinâmicas que envolvem as lutas por terra se caracterizam
por demandas políticas cujo centro de suas discussões destacam a categoria “classe”
que mobiliza direitos universais e constitui sujeitos políticos como trabalhadores sem-terra
ou mulheres rurais, por exemplo, implicando em uma relação de meio de produção, no
entanto, grupos rurais estabelecem uma relação com a terra por meio de elementos
constitutivos de vínculos materiais, espirituais e simbólicos, conforme destacado pelo
antropólogo André Dumas Guedes (2016).
2 TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE
O território pode ser definido com base nas relações de poder que o atravessam
e é um conceito muito importante para compreender adequadamente todos os conflitos
e a história de formação e desenvolvimento dessas comunidades tradicionais que você
acabou de conhecer.
Assim, acadêmico, quando você leu a respeito dos povos indígenas percebeu que
havia ali uma diversidade de etnias que ocupavam de forma diferente espaços dentro do
que sabemos ser o Brasil. Então, com a chegada dos europeus os limites entre essas etnias,
bem como o espaço do território brasileiro já ocupado pelos povos indígenas é alvo de
interesses econômicos e invasão, desrespeitando sua cultura, seu espaço e suas fronteiras.
124
Essa relação de poder é desigual e hierárquica e busca expansão do poder
econômico, político e cultural. Essa relação de poder vem sempre marcada pela dimensão
política, não por acaso, parte da antropologia que desenvolveu estudos de etnologia
indígena vai chamar nossa atenção para as relações entre povos indígenas e sociedade
nacional, procurando estabelecer uma noção de cidadania ampliada, em que se respeite
as formas de ser e de habitar dessas populações que possuem sentidos, linguagens e
organização social diferentes da sociedade nacional, basta lembrar o conceito de fricção
interétnica do antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira que vimos no subtópico anterior.
Para Dominique Gallois (2004, p. 40) “nenhuma sociedade existe sem imprimir
ao espaço que ocupa uma lógica territorial” e, acadêmico, é exatamente nessa perspectiva
que você pode compreender o sentido social de um território para uma comunidade
indígena. Cada comunidade tem sua própria lógica territorial a respeito do espaço e ela é
constitutiva do modo de vida dessas populações.
125
Nesse sentido, é necessário levar em consideração aspectos importantes dessa
relação entre povos e território, para isso a autora sugere a abordagem da territorialidade
uma vez que esta permite uma avaliação cuidadosa das relações entre terras que foram
ocupadas em caráter permanente, aquelas terras que são utilizadas para atividades
produtivas e as terras imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários
ao bem-estar e a reprodução física e cultural dos povos indígenas (GALLOIS, 2004).
Terra não é o mesmo que território, de acordo com estudos antropológicos aqui
mencionados, considera-se que cada comunidade indígena possui uma lógica própria
espacial e social, em sendo assim há diferentes formas de organização territorial e é
nesses termos que o território de um grupo pode ser pensado como substrato de sua
cultura (GALLOIS, 2004).
Veja, acadêmico, todos esses autores aqui mencionados têm contribuído para
entender uma diferença importante quanto ao sentido de terra e território quando
acionadas dimensões sociais e econômicas, por um lado, evidenciando um sentido
particular de um tipo de expressão espacial em que um modo de vida se desenvolve e
necessita para sua reprodução e existência. Por outro lado, há um esforço em demonstrar
os impactos e efeitos nocivos quando há uma imposição de projetos econômicos que
veem a terra e o território apenas como um recurso econômico.
127
Assim as lutas territoriais de povos e comunidades tradicionais nas últimas
décadas ganharam maior protagonismo na esfera pública brasileira, se comparado com
as lutas por “terra” de movimentos camponeses (ALMEIDA, 2007). Alguns projetos
econômicos e políticos hegemônicos tem contribuído para uma consolidação de lutas
sociais que tem por objetivo o enfrentamento mais direto aos projetos modernizantes
que exploram e dizimam populações sem respeito às legislações ou ao direito das
comunidades e povos tradicionais.
128
Assim aparece, por exemplo, o termo “etnogênese”, empregado
por Gerald Sider (1976), no contexto de uma oposição ao etnocídio.
Não caberia tomá-la como conceito ou mesmo noção, pois este e
outros autores, que também aplicam a mesma ideia na etnografia
de populações indígenas (como Goldstein, 1975), sequer sentem a
necessidade de melhor defini-la, tomando-a como evidente. Em
termos teóricos, a aplicação dessa noção – bem como de outras
igualmente singularizantes a um conjunto de povos e culturas
pode acabar substantivando um processo que é histórico, dando a
falsa impressão de que, nos outros casos em que não se fala em
“etnogênese” ou de “emergência étnica”, o processo de formação de
identidades estaria ausente (OLIVEIRA, 1998, p. 62).
O que Pacheco de Oliveira chama atenção e com razão é para o fato de que é um
erro classificar esses povos indígenas que foram reconhecidos tardiamente entre os anos
1970 e 1980 como sendo pertencentes a “novas etnias” ou “índios emergentes” quando
na verdade as transformações sociais que ocorreram no Brasil nesse período interferem
de forma intensa sobre esses processos, sobretudo quando do encontro com outras
culturas e povos que fazem parte dessa trajetória, como é o caso dos povos indígenas do
Nordeste que no século XVI foram submetidos à escravização, pacificação e aldeamentos
forçados diante de alianças ou guerras em contatos com os colonizadores (OLIVEIRA,
2006; 2010).
O que se destaca mais fortemente nesse período é que há uma inserção étnica
na agenda pública de lutas políticas e isto representa um deslocamento de concepções
políticas na maneira como os movimentos sociais em que vigoram as demandas étnicas
passa a mobilizar como uma categoria central “identidade étnica” e um conjunto de
categorias como as descritas acima que valorizam esse lugar da etnicidade nas lutas
políticas por sujeitos tradicionais.
O que explica porque não houve uma consolidação de um subcampo com o nome
de Antropologia Rural, tendo em vista que, num primeiro momento, as pesquisas a respeito
desses sujeitos sociais estavam inseridas na categoria “camponês”, como esses os processos
de efervescência política ocorridos na década de 1980 na luta pela redemocratização
muitos grupos que estavam invisíveis dentro da categoria camponês passam a afirmar
suas identidades até então estigmatizadas e invisibilizadas, demandando inclusive a sua
afirmação também no território e então redefinindo “o padrão de conflitividades e o campo
relacional de antagonismos”, conforme sugere Cruz (2011, p. 7).
129
O que complexifica a questão agrária é que nesse momento categorias como
identidade, etnia e território passam a vigorar como principais demandas articuladas
nessas novas lutas sociais, revelando uma série de outros conflitos inseridos no campo,
sobretudo quando se fala em limites e fronteiras agrícolas na região da Amazônia.
É assim que Vianna Jr, (2008) vai argumentar sobre as diferenças entre pautas
e demandas do passado com as desse período, quando as afirmações étnicas e sobre o
uso tradicional da terra e dos seus recursos naturais vão impactar as políticas públicas de
acesso à terra, fazendo um deslocamento de políticas redistributivas de terra no âmbito da
reforma agrária para políticas de demarcação indígenas, quilombolas e de comunidades
tradicionais. Noutros termos, não de utilizar instrumentos redistributivos da Reforma
Agrária para atender demandas por terra para povos tradicionais, mas agora passa a
vigorar uma demarcação adequada dos territórios dessas comunidades tradicionais.
ESTUDOS FUTUROS
As questões sobre campesinato, reforma agrária, agronegócio, êxodo
rural, lutas camponeses e sem-terra veremos com maiores detalhes na
próxima unidade quando falaremos das relações urbano e rural.
Agora, acadêmico, você já conheceu diversos aspectos das lutas sociais que
envolve o campo e as questões de identidade e cultura na luta pela demarcação
territorial. Também viu algumas das principais referências em pesquisas nessa área, o
próximo passo é fazer uma boa leitura de revisão do conteúdo dessa unidade e em
seguida praticar o seu conhecimento com o auxílio das autoatividades.
130
LEITURA
COMPLEMENTAR
RITOS CORPORAIS ENTRE OS NACIREMA
Horace Miner
Embora tal tipo de interesse não seja, por certo, raro, seus aspectos cerimoniais
e a filosofia a eles associadas são singulares. A crença fundamental subjacente a todo o
sistema parece ser a de que o corpo humano é repugnante e que sua tendência natural é
para a debilidade e a doença. Encarcerado em tal corpo, a única esperança do homem é
desviar estas características por meio do uso das poderosas influências do ritual e do
cerimonial. Cada moradia tem um ou mais santuários devotados a este propósito. Os
indivíduos mais poderosos desta sociedade têm muitos santuários em suas casas e, de
fato, a alusão à opulência de uma casa, muito frequentemente, é feita em termos do
número de tais centros rituais que possua. Muitas casas são construções de madeira,
toscamente pintadas, mas as câmeras de culto das mais ricas têm paredes de pedra.
131
As famílias mais pobres imitam as ricas, aplicando placas de cerâmica às
paredes de seu santuário. Embora cada família tenha pelo menos um de tais santuários,
os rituais a eles associados não são cerimônias familiares, mas sim cerimônias privadas e
secretas. Os ritos, normalmente, são discutidos apenas com as crianças e, neste caso,
somente durante o período em que estão sendo iniciadas em seus mistérios. Eu pude,
contudo, estabelecer contato suficiente com os nativos para examinar estes santuários e
obter descrições dos rituais. O ponto focal do santuário é uma caixa ou cofre embutido
na parede.
Os pacotes mágicos são tão numerosos que as pessoas esquecem quais são
suas finalidades e temem usá-los de novo. Embora os nativos sejam muito vagos quanto
a este aspecto, só podemos concluir que aquilo que os leva a conservar todas as velhas
substâncias é a ideia de que sua presença na caixa-de-encantamentos, em frente à
qual são efetuados os ritos corporais, irá, de alguma forma, proteger o adorador.
Acreditam que, se não fosse pelos rituais bucais seus dentes cairiam, seus
amigos os abandonariam e seus namorados os rejeitariam. Acreditam também na
existência de uma forte relação entre as características orais e as morais: Existe, por
exemplo, uma ablução ritual da boca para as crianças que se supõe aprimorar sua fibra
moral. O ritual do corpo executado diariamente por cada Nacirema inclui um rito bucal.
Apesar de serem tão escrupulosos no cuidado bucal, este rito envolve uma prática
132
que choca o estrangeiro não iniciado, que só pode considerá-lo revoltante. Foi-me
relatado que o ritual consiste na inserção de um pequeno feixe de cerdas de porco na
boca juntamente com certos pós mágicos, e em movimentá-lo então numa série de
gestos altamente formalizados. Além do ritual bucal privado, as pessoas procuram o
mencionado sacerdote-da-boca uma ou duas vezes ao ano.
Ritos especificamente femininos têm lugar apenas quatro vezes durante cada mês
lunar, mas o que lhes falta em frequência é compensado em barbaridade. Como parte
desta cerimônia, as mulheres ousam colocar suas cabeças em pequenos fornos por
cerca de uma hora. O aspecto teoricamente interessante é que um povo que parece ser
preponderantemente masoquista tenha desenvolvido especialistas sádicos.
As cerimonias latipsoh são tão cruéis que é de surpreender que uma boa
proporção de nativos realmente doentes que entram no templo se recupere. Sabe-se que
as crianças pequenas, cuja doutrinação ainda é incompleta, resistem às tentativas de
levá-las ao templo, porque "é lá que se vai para morrer". Apesar disto, adultos doentes
não apenas querem mas anseiam por sofrer os prolongados rituais de purificação,
133
quando possuem recursos para tanto. Não importa quão doente esteja o suplicante ou
quão grave seja a emergência, os guardiões de muitos templos não admitirão um cliente
se ele não puder dar uma dádiva valiosa para a administração. Mesmo depois de ter se
conseguido a admissão, e sobrevivido às cerimônias, os guardiães não permitirão ao
neófito abandonar o local se ele não fizer outra doação. O suplicante que entra no templo é
primeiramente despido de todas as suas roupas. Na vida cotidiana o Nacirema evita a
exposição de seu corpo e de suas funções naturais. As atividades excretoras e o banho,
enquanto parte dos ritos corporais, são realizados apenas no segredo do santuário
doméstico. Da perda súbita do segredo do corpo quando da entrada no latipsoh, podem
resultar traumas psicológicos. Um homem, cuja própria esposa nunca o viu em um
ato excretor, acha-se subitamente nu e auxiliado por uma vestal, enquanto executa
suas funções naturais num recipiente sagrado. Este tipo de tratamento cerimonial é
necessário porque os excreta são usados por um adivinho para averiguar o curso e a
natureza da enfermidade do cliente.
Clientes do sexo feminino, por sua vez, têm seus corpos nus submetidos ao
escrutínio, manipulação e aguilhadas dos médico-feiticeiros. Poucos suplicantes no templo
estão suficientemente bons para fazer qualquer coisa além de jazer em duros leitos. As
cerimônias diárias, como os ritos do sacerdote-da-boca, envolvem desconforto e tortura.
Com precisão ritual as vestais despertam seus miseráveis fardos a cada madrugada e os
rolam em seus leitos de dor enquanto executam abluções, com os movimentos formais
nos quais estas virgens são altamente treinadas. Em outras horas, elas inserem bastões
mágicos na boca do suplicante ou o forçam a engolir substâncias que se supõe serem
curativas. De tempos em tempos o médico-feiticeiro vem ver seus clientes e espeta
agulhas magicamente tratadas em sua carne. O fato de que estas cerimônias do templo
possam não curar, e possam mesmo matar o neófito, não diminui de modo algum a fé das
pessoas no médico feiticeiro. Resta ainda um outro tipo de profissional, conhecido como um
"ouvinte". Este "doutor-bruxo" tem o poder de exorcizar os demônios que se alojam nas
cabeças das pessoas enfeitiçadas.
134
Existem jejuns rituais para tornar magras pessoas gordas, e banquetes
cerimoniais para tornar gordas pessoas magras. Outros ritos são usados para tornar
maiores os seios das mulheres que os têm pequenos e torná-los menores quando são
grandes. A insatisfação geral com o tamanho do seio é simbolizada no fato de a forma
ideal estar virtualmente além da escala de variação humana. Umas poucas mulheres,
dotadas de um desenvolvimento hipermamário quase inumano, são tão idolatradas que
podem levar uma boa vida simplesmente indo de cidade em cidade e permitindo aos
embasbacados nativos, em troca de uma taxa, contemplarem-nos. Já fizemos referência
ao fato de que as funções excretoras são ritualizadas, rotinizadas e relegadas ao segredo.
As funções naturais de reprodução são, da mesma forma, distorcidas. O intercurso
sexual é tabu enquanto assunto, e é programado enquanto ato. São feitos esforços
para evitar a gravidez, pelo uso de substâncias mágicas ou pela limitação do intercurso
sexual a certas fases da lua. A concepção é na realidade, pouco frequente. Quando
grávidas as mulheres vestem-se de modo a esconder o estado. O parto tem lugar em
segredo, sem amigos ou parentes para ajudar, e a maioria das mulheres não amamenta
seus rebentos. Nossa análise da vida ritual dos Nacirema certamente demonstrou
ser este povo dominado pela crença na magia. É difícil compreender como tal povo
conseguiu sobreviver por tão longo tempo sob a carga que impôs sobre si mesmo, mas
até costumes tão exóticos quanto estes aqui descritos ganham seu real significado
quando são encarados sob o ângulo relevado por Malinowski, quando escreveu:
135
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:
• Conheceu a importância da luta social pela terra na afirmação dos diferentes modos de
vida.
136
AUTOATIVIDADE
1 As lutas sociais por territórios são constitutivas de comunidades tradicionais como
indígenas, quilombolas, caiçaras e ribeirinhos, e se destacam justamente por terem
sido posicionadas como fenômenos do mundo rural brasileiro. Nesse sentido, a partir
da abordagem acerca dos conceitos de terra, território e territorialidade proposta por
Dominique Galllois (2004), assinale a alternativa CORRETA:
137
3 Conforme apontado pela antropóloga Dominique Gallois (2004) os estudos
antropológicos evidenciam que há diferentes lógicas espaciais entre essas
comunidades tradicionais. De acordo com os princípios e as normativas elencadas
nos estudos antropológicos, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as
falsas:
Fonte: GALLOIS, D. T. Terras ocupadas? Territórios? Territorialidades? In: FANY, R. (org.) Terras Indígenas & Uni-
dades de Conservação da natureza: o desafio das sobreposições. São Paulo, Instituto Socioambiental, 2004.
138
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, A. W. B. Calhambolas, quilombolas e mocambeiros: a força mobilizadora da
identidade e a consciência da necessidade. Revista Eletrônica Afros e Amazônicos.
v. 2, n 1, 2010.
139
CARDOSO DE OLIVEIRA, R. Aculturação e “fricção interétnica”. América Latina, v. 6, n.
3, p. 33-46, 1963.
GEERTZ, C. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: GEERTZ,
C. A Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 3-24.
MORAES, A. C. R. Geografia Pequena História Crítica. 20° ED, São Paulo: Hucitec,
1994.
140
NOGUEIRA, O. Família e comunidade: um estudo sociológico de Itapetininga. Rio
de Janeiro: Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, INEP, 1962.
141
142
UNIDADE 3 —
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.
CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.
143
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 3!
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144
UNIDADE 3 TÓPICO 1 —
O CONTINUUM ENTRE O URBANO
E O RURAL NA PRODUÇÃO DE
IDENTIDADES SOCIAIS
1 INTRODUÇÃO
Caro acadêmico, conforme vimos na unidade anterior, comunidades ou povos
tradicionais como indígenas e quilombolas (dentre outros) são grupos sociais que
fazem parte e constituem de modo ativo o espaço rural brasileiro tanto na maneira como
constituem suas referências socioculturais na manutenção de suas territorialidades
quanto o modo como produzem e nutrem o ambiente, de acordo com as práticas
sustentáveis.
No Brasil, devido ao nosso passado histórico marcado pelas práticas coloniais, foi
implantado um sistema de concentração de terras sob o poder de poucos indivíduos. O
conceito de latifúndio foi durante muito tempo utilizado para se referir ao acúmulo de
grandes extensões de terra por um proprietário. Mais tarde, com o Estatuto da Terra, a
dimensão da propriedade privada foi articulada com a função social de sua ocupação.
Benedito Marques (2015, p. 62) conceitua latifúndio, partindo do Estatuto da Terra, como
“imóvel rural que tem área igual ou superior ao módulo rural e é mantido inexplorado ou
145
com exploração inadequada ou insuficiente às suas potencialidades”. Agora a dimensão de
“uso” vai flexionar o conceito de modo a refletir sobre potencialidades da terra que pode
sofrer por se manter improdutiva apenas para especular, isto é, acumular um valor de
monetário, desvinculado de um valor social.
Até aqui, acadêmico, você já deve ter aprendido que a construção das identidades
nos espaços rurais passa por uma compreensão do modo como os povos e comunidades
tradicionais articulam entre suas práticas sociais a relação com a natureza e a cultura.
Desse modo, é possível que você já esteja familiarizado com a ideia central de que os povos
e comunidades tradicionais não devem ser entendidos como “sociedades atrasadas”
(qualquer dúvida sobre este ponto volte à introdução da Unidade 1), mas como parte
do movimento de interação da sociedade no compartilhamento dos seus saberes e das
suas formas de vida para o entendimento acerca de questões econômicas, produtivas
ou de projeto de desenvolvimento rural.
146
Nesse sentido, os conhecimentos tradicionais assim como os saberes populares
compartilhados a partir das experiências múltiplas de uso, ocupação e construção de
territórios por povos e comunidades tradicionais perdem referência para o “novo” e a
promessa “moderna” de Revolução Industrial. Logo, aqueles saberes que prosperaram
durante séculos entre essas comunidades perdem espaço para uma visão etnocêntrica da
ciência moderna que passa a vigorar sobre o domínio do campo científico tornando essas
práticas e saberes tradicionais irrelevantes e “atrasados” para o desenvolvimento da nação.
Além disso, há outro movimento de exploração por parte desse novo espírito econômico
que se expande cada vez mais rápido ao redor do mundo, a chamada biopirataria, que
consiste na extração e exploração ilegais de recursos naturais, como plantas, animais
e materiais genéticos presentes nos biomas brasileiros, e dos saberes tradicionais para
transformar em monopólio econômico de grandes industriais estrangeiras por meio
do registro de patentes. Como consequência dessa ação devastadora há extinção de
espécies, perda da biodiversidade, prejuízos socioeconômicos, desequilíbrio ecológico e
subdesenvolvimento em matéria de inovação, ciência e tecnologia nacional.
Nos próximos tópicos vamos falar um pouco dessas dinâmicas entre o rural e
o urbano no contexto do desenvolvimento global e dos processos de disputas e conflitos
territoriais que se dão no mundo contemporâneo. Alguns conceitos e teorias ganharão
destaque e algumas pesquisas empíricas serão essenciais para nosso processo de
aprendizagem sobre essa diversidade.
147
introduz novas demandas de produção em escala maior: o desenvolvimento de recursos
comunicacionais e de meios de transporte mais rápidos também possibilitaram mudanças
nos modos de produção no espaço rural, interferindo no modo de vida da população do
campo.
148
DICA
Caro acadêmico, quer saber um pouco mais dos impactos do êxodo rural no contexto
de transformações sociais do Brasil com o avanço da urbanização e acirramento das
desigualdades sociais vividas pelas populações do campo? Assista ao documentário
O Êxodo Rural, o qual faz parte do acervo do Laboratório de Imagem e Som em
Antropologia da Universidade de São Paulo.
149
Isto se dá em face das transformações ocorridas com a Revolução Industrial (a
qual abordamos na Unidade 1) e, em especial, as mudanças que decorrem dela no espaço
rural. Assim, diante de uma nova forma de produzir as inovações tecnológicas, passam
a vigorar nesse novo sistema produtivo e o território brasileiro passa por diversas mudanças.
Dentre algumas dessas mudanças, podemos destacar o uso mais comum de máquinas
na produção de lavouras, a substituição de mão de obra humana pelas máquinas, o uso
cada vez mais intenso de adubos e fertilizantes químicos, uso cada vez mais rotineiro de
agrotóxicos, e à integração desse sistema produtivo ao mercado financeiro.
150
Nesse sentido, podemos compreender adequadamente o conceito de
mundialização a partir daquilo que foi proposto pelo sociólogo Octavio Ianni (1994), em
seu famoso artigo “Globalização: Novo paradigma das ciências sociais”, no qual o autor
analisa os processos e estruturas sociais a partir dos dilemas vigentes.
151
a natureza e o ambiente onde vivem, de modo que fazem um uso sustentável das riquezas
sem comprometer os biomas, desaparecimento de povos indígenas, escravização dos
povos africanos, exploração dos recursos nativos, usurpação de minerais e saberes
tradicionais para fins predatórios são algumas dessas consequências.
Para avançarmos mais nessa relação entre o rural e o urbano a partir dessas
questões aqui apresentadas, cabe ainda lembrar umas das categorias elementares da
antropologia que vai guiar você, acadêmico, ao conhecimento antropológico de uma outra
perspectiva, aquela que vai valorizar o contexto e a realidade dos sujeitos sociais e onde
vivem, procurando sempre se colocar em perspectiva com o Outro, esse que é diferente
de você, que está em situação de desvantagem por efeito desse processo exploratório que
destruiu suas terras, dizimou seu povo, explorou mão de obra e extorquiu suas fontes
de significado, isto é, o sentido socialmente compartilhado pelos povos tradicionais que
ocupam um determinado lugar. Para os Guarani e kaiowá, por exemplo, a sua territorialidade
se constitui como um elemento fundamental da sua identidade e do sentido da própria
vida. Eles dão significado a sua existência na experiência de viver, habitar e entender o
mundo a partir da terra. Não por acaso, diante de conflitos intensos e processos de invasão
de suas terras muitos deles passaram a praticar o suicídio, vivenciando uma experiência
de perda de sentido e significado diante da violência e da supressão de seu território.
Abandonar o etnocentrismo é crucial para entender os conflitos e as disputas que estão
presentes na relação rural e urbano.
152
DICA
Antes de passarmos para o próximo tópico, assista a este vídeo
sobre a situação dos Guarani-Kaiowá no Momento Agroecológico que
mostra as práticas de cura do povo Guarani-Kaiowá e a importância
da retomada do território para a preservação dos saberes. Acesse:
https://bit.ly/3U8fWAI.
3 O RURAL E O MODERNO
Caro acadêmico, a partir dos anos de 1970 as ciências sociais brasileiras passaram
a se interessar cada vez mais pelo estudo das mudanças na vida social rural a partir do olhar
sobre a modernização da agricultura, bem como a formação das classes sociais nesse
campo social em torno do mundo agrário. Nesse período os estudos do campesinato
estavam marcados pelo interesse numa análise das transformações das sociedades
modernas.
153
Os estudos do mundo rural nos anos 1970 tentaram entender em que
medida ainda era possível haver uma reprodução do campesinato tendo em vista
que havia uma “persistência” de uma gama de pequenos produtores familiares que
combinavam uma agricultura tradicional com traços de modernização e capitalismo, não
demorou e os pesquisadores passaram a perceber que o campesinato não desapareceu
e a “classe dos bárbaros”, como foram chamados (WANDERLEY, 2001, p. 13), fizeram
inúmeros pesquisadores se voltarem ao estudo da natureza social e econômica desse
campesinato persistente, que passou a se reproduzir em diferentes contextos das
sociedades modernas.
154
Wanderley (2001) desenvolveu uma importante pesquisa sobre os produtores
de algodão do município do Leme, em São Paulo, em que demonstrou que uma parte
significativa dos agricultores familiares que residiam na sede municipal, à época, uma
cidade de aproximadamente 70 mil habitantes, situada num eixo considerado urbano
e industrial, mantinham residência em sítios relativamente próximos, tendo como aporte
para esse trânsito “rural e urbano” um sistema de transporte acessível que ajudou a
manter um fio continuum entre o meio rural e a cidade urbana. Em geral, a maioria
dos agricultores, homens adultos, serviram-se dessa acessibilidade do sistema de
transporte para continuar a manter suas maneiras tradicionais de interação e contato
com o meio rural, além da produção, eram fortemente apegados aos hábitos culturais
expressos em suas formas de lazer, por exemplo, pescarias, festas e rituais religiosos e
encontros informais com amigos dos sítios.
155
A formação desse contingente de trabalhadores está associada diretamente a
condição de concentração fundiária vivida em nosso país. E parte desses trabalhadores
foram precarizados em face de terem uma vida concentrada no mundo rural e nos modos
de produção da agricultura cuja principal fonte de subsistência é o trabalho na terra e
ao se deparar com uma expansão do capital produtivo, secas, falta de políticas públicas
e ampliação da concentração de terras vão se tornar uma massa de trabalhadores com
baixa remuneração e perda de suas terras. Essas frágeis condições vão converter aqueles
que eram pequenos produtores e pequenos proprietários de terras em uma massa de
assalariados precarizados, cuja fonte de renda principal é o trabalho na agricultura.
156
cidade. A vida nas cidades requer um nível de renda que a agricultura
não tem proporcionado à maioria daqueles que nela trabalham ainda
que já tenham residência urbana (LEONE, 1994, p. 124).
157
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:
• Há inúmeras mudanças vividas no mundo rural, que tornam cada vez mais vaga a
imagem de um ambiente agrícola e tradicional, passando a incorporar atividades e
práticas consideradas tipicamente do mundo urbano, distanciando-se, assim, de
uma visão etnocêntrica do rural como atrasado.
158
AUTOATIVIDADE
1 De acordo com Maria Nazaré Wanderley, “a grande propriedade patronal no Brasil está
na origem de uma ruralidade dos espaços vazios” (2001, p. 36). Parte importante
dos processos de modernização do campo teve como projeto as novas configurações
produtivas nos espaços rurais, onde destacam-se algumas características. Sobre
essas características assinale a alternativa CORRETA:
WANDERLEY, M. N. B. A ruralidade no Brasil moderno. Por um pacto social pelo desenvolvimento rural. In:
Giarraca, N. Una nueva ruralidad en América Latina? Buenos Aires: clacso, 2001. p. 31-44.
159
3 No que se refere ao acelerado processo de industrialização e a intensa urbanização
fornecem um olhar sobre o mundo rural e agrário que foram tratados como “atrasados”
e “obstáculos ao desenvolvimento” do capitalismo. De acordo com os conceitos de
desenvolvimento elencados no texto, classifique V para as sentenças verdadeiras e F
para as falsas:
160
UNIDADE 3 TÓPICO 2 —
MODOS DE PRODUÇÃO, CONSUMO E
USO DE RECURSOS
1 INTRODUÇÃO
Já tratamos anteriormente dos espaços urbanos, espaços rurais e suas
territorialidades. As mudanças foram socialmente encontradas e, além disso,
apresentamos alguns sujeitos e processos de formação das identidades sociais a partir
desses dois eixos de análise. Neste momento, acadêmico, abordaremos um pouco
mais a respeito dos espaços rurais em interface com o urbano a partir dos modos de
produção.
DICA
Que tal saber mais do conceito de mais-valia? Assista ao seguinte vídeo:
https://www.youtube.com/watch?v=X-5JQDeW0g8.
162
2 MODOS DE PRODUÇÃO
Dentre as análises mais comuns dessas mudanças nos modos de produção com
a chegada do capitalismo e a Revolução Industrial, é aquela que explica as transformações
somente como base a relação entre o sistema feudal para o sistema capitalista. No entanto,
as pesquisas desenvolvidas por antropólogos vão enxergar outras questões importantes
e situar novas explicações para fenômenos inseridos nesse contexto.
É evidente que esse processo não foi vivido de modo uniformatado e implicou
processos de resistência e lutas sociais pelo direito à terra. Essas lutas também tiveram
impacto na formação das identidades sociais (conforme vimos na unidade anterior,
povos e comunidades tradicionais, pequenos produtores, campesinos, caipiras, dentre
outros) nesses contextos surgindo grupos e movimentos sociais organizados para
contestar essa desigualdade de acesso aos meios de produção e subsistência por meio
da terra. Tais conflitos também vão gerar desdobramentos no campo sobre o modo
de uso e ocupação da terra, apresentando uma diversidade de povos, comunidades e
formas de produção.
163
Durante muito tempo, identidades diversas como indígenas, quilombolas,
ribeirinhos, caiçaras, seringueiros e populações de fundo de pasto foram tratados como
uma identidade única, a saber, o camponês, implicando numa relação de força para
desterritorializar e dizimar esses povos no intuito de avançar sobre suas terras e ampliar o
poder do latifúndio.
164
Na plantation, qualquer que seja a forma de remuneração imposta
pela conjuntura, não há separação visível entre “trabalho necessário”
e o “sobretrabalho”, como ocorre, por exemplo, nas formas feudais.
Todo o trabalho dos produtores diretos vai automaticamente ao
proprietário. Isto é claro no caso do escravizado, mas também
no do trabalhador livre, em que o fornecimento direto de bens de
consumo, o pagamento de uma soma em dinheiro ou de um vale com
o qual o trabalhador pode “comprar” suas subsistências no barracão
da propriedade [...] ou ainda o direito de utilização de um sítio [...]
garantem sempre ao proprietário a possibilidade de recuperar uma
parte do que cede ao trabalhador (PALMEIRA, 1971, p. 142).
A década de 1980 foi crucial para a afirmação da identidade e das lutas sociais
pelo reconhecimento da identidade, do território e dos seus modos de viver, articuladas
com base na identidade coletiva e na afirmação dos direitos sociais (MARTINS, 1985).
A partir desse período esses sujeitos sociais inovaram nas agendas de mobilização, isto é,
quando um grupo social passa definir e orientar politicamente atividade e atos políticos
para apresentar suas demandas para a sociedade, para as instituições públicas, e assim
passam a reivindicar o reconhecimento de sua história, de sua resistência, de sua
identidade e de sua terra.
165
Uma outra explicação para o fenômeno, segundo apontado por Wanderley (2001),
é a reprodução de relações pré-capitalistas, não capitalistas ou não especificamente
capitalistas, articuladas e subordinadas à dominação do capital.
Para que você tenha uma ideia dessas transformações tente pensar em cidades
pequenas e a chegada de tecnologias como internet, canais de televisão, redes de
celular, aparelhos eletrodomésticos, formas de lazer e consumo de alimentos de outras
regiões, entre tantas outras ideias que você pode lembrar. Pois bem, acadêmico, estas
seriam algumas das zonas de contato entre esse fio invisível que liga o rural e o urbano por
meio do consumo e uso de recursos que antes não apareciam ou faziam parte daquele meio.
166
INTERESSANTE
De acordo com Marc Mormont (1997, p. 39), antropólogo belga, “as evoluções
demográficas e econômicas, o crescimento da mobilidade não permitem mais opor o
rural e o urbano como dois universos sociais, duas “sociedades” distintas, até mesmo
opostas. Isto não implica, no entanto, um esgotamento da questão rural”.
167
Nos últimos anos o meio rural passou a ser visto como um produto de consumo
pelos moradores do meio urbano que buscam acesso à qualidade de vida por meio de
um deslocamento sazonal, para passar períodos de férias, passeios e descanso ou para
prática de lazer. Algumas pessoas que haviam deixado o meio rural para buscar outras
condições de vida em termos de empregabilidade, educação e acesso a inovações no
meio urbano, com o passar do tempo também articulam novos olhares sobre o meio
rural que passa a ser visto como um ambiente de maior qualidade de vida em relação à
poluição, consumo de alimentos orgânicos, inserção no meio ambiente e mais seguro
combinado com o fato de que com a expansão dos meios de comunicação oferecem
um ambiente renovado e não isolado de rotinas e práticas de consumo que antes eram
encontradas apenas no meio urbano.
168
Esse tipo de atividade garante não só a reprodução dos laços sociais por
meio das relações de parentesco e vizinhança mas estimula um impulso econômico
ampliando a renda dessas famílias na medida em que pode ampliar a oferta de empregos
tanto no meio rural ainda nos processos de produção até o meio urbano envolvendo
s processos de distribuição e comercialização dos seus produtos. Conforme apontou
Wanderley, são vistos como formas alternativas de ocupação para alguns membros da
família e aparecem tanto no meio rural quanto em locais de economia urbana-industrial
e integradas, sobre essas formas os trabalhos de Schneider (1999), Tedesco (1999) e
Woortmann (1990) são considerados importantes referências.
DICA
Ouça ao podcast da rádio Mixtura sobre o tema da agricultura familiar, disponível em:
https://bit.ly/3DhGycq.
Sinopse: série de três podcasts sobre agricultura familiar, alimentação e consumo
inteligente, produzida pela rádio Mixtura e realizada em parceria com a Roça Abaetetuba,
um empreendimento agrofamiliar de orgânicos que comercializa seus
produtos por delivery em São Paulo, incluindo bairros da periferia da
cidade. Nesse primeiro episódio apresentamos a Roça Abaetetuba.
Jaime Diko bate um papo com Aline Maria, que mantém uma chácara
de produção de orgânicos alicerçada nos conceitos de economia
solidária e consumo sustentável, em São Lourenço da Serra, a
56 km de São Paulo. Agricultura familiar, permacultura, soberania
alimentar e a importância das agroflorestas e de comida sem
veneno são temas abordados nesta conversa que também
apresenta a filosofia da Roça, marcada pela inclusão social por meio
da geração de trabalho e renda e a promoção do acesso de produtos
saudáveis e a preços acessíveis para os moradores das periferias.
Nesse sentido, o estudo de Afrânio Raul Garcia Júnior (1975) sobre os foreiros
da zona da mata pernambucana vem contribuir para uma visão sobre essa estrutura de
produção que é fundada no trabalho familiar. Para esse autor, o modo de produção
camponês não seria um modo de produção como concebemos o capitalismo, seria assim
“um modo de produção subordinado, que pode se articular com vários outros modos de
produção, ou que se insere em formações sociais diferenciadas, cujo movimento é dado
por outro modo de produção dito dominante” (GARCIA JR, 1975, p. 12).
169
Essa realidade inclusive foi muito comum entre os anos 1980 e 1990 quando
percebeu-se que muitos camponeses pobres em condições de escassez passaram a
buscar novas formas de sobrevivência em meio a uma crise econômica que alcançou
os modos de produção locais e sem horizonte de mudança no agreste e sertão decidem
buscar oportunidades em zonas urbanas mais próximas ou muito distantes (como foi o
caso de uma intensa migração em direção ao sudeste com o êxodo rural, cidades como
Rio de Janeiro e São Paulo eram os principais destinos para essas pessoas em busca de
sobrevivência numa sociedade cada vez mais urbanizada e industrializada). Nas cidades
pequenas esses moradores buscavam uma posição junto às atividades comerciais
de pequenas feiras livres ou pequenos comércios, quando decidiam por cidades mais
distantes procuravam se integrar com atividades as mais diversas, uma espécie de “faz
tudo”, pegando trabalhos pagos por diárias, atividades na construção civil, nos portos e
nos comércios.
Esse processo intenso que envolve o êxodo rural trouxe impactos profundos na
realidade local do meio rural, como se sabe o próprio esvaziamento do rural e o inchaço
urbano. No entanto, não podemos esquecer, acadêmico, que essa migração se faz
forçada uma vez que as condições de acesso aos bens e serviços assim como a formas
de subsistência se tornavam cada vez mais escassas e precárias no mundo rural. Além
disso, os recursos naturais foram impactados pela crescente concentração fundiária
e atividades de monocultura e a distância dificultava esses pequenos produtores locais em
transportar e comercializar sua pequena produção: o custo ficava cada vez maior para
o pequeno agricultor e sua família, perdendo sua principal fonte de renda e castigado pelas
condições climáticas adversas, como a seca, viam a migração como um destino social de
sobrevivência para si e para sua família.
INTERESSANTE
Querido acadêmico, que tal aprofundar uma leitura sobre esse
tema? Recomendamos o artigo “A ruralidade ontem e hoje. Uma
análise do rural na contemporaneidade” da autora Fernanda
Cristina Laubstein. Acesse em: https://bit.ly/3DnmV2O.
O que não estava no horizonte desses indivíduos era o fator de alta concentração
de pessoas e poucas oportunidades de absorver esse grande contingente populacional. A
maioria desses migrantes eram jovens das classes populares do meio rural, não por acaso
vamos encontrar também uma mudança de geração, relações sociais e esvaziamento
desse meio rural mais distante do meio urbano, “abriu clareiras de pessoas e símbolos
da vida social entre suas árvores e rios” (BRANDÃO, 1995, p. 77).
170
Se nesse efeito de migração do êxodo rural encontramos um perfil de jovens
homens, do meio rural e nordestino, também veremos outros deslocamentos envolvendo
os agricultores da região sul do país em direção às regiões do centro-oeste e norte:
o perfil também de jovens homens, pequenos agricultores familiares do meio rural da
região sul que se deslocam para esse Brasil profundo a partir de uma dinâmica social de
promoção de programas de colonização com as chamadas agrovilas, isto é, “um vasto
retângulo com os terrenos residenciais dos colonos dispostos um ao lado do outro,
em duas fileiras paralelas; no centro, a capela o salão de reuniões e festas, a escola
primária, o campo de futebol e o jogo de bocha” (SANTOS, 1993, p. 208). Se você reparar
bem, acadêmico, vai perceber que diferente dos jovens nordestinos que veem sua área
rural sofrer impactos políticos e econômicos e sem perspectivas de melhora tentam
a sorte na migração, os jovens sulistas são convidados a ocuparem zonas fronteiriças
e recebem um auxílio de deslocamento e inserção em seu novo local de residência e
que envolve a construção de uma infraestrutura para abrigar esses novos moradores.
Conforme apontado por Wanderley (2001):
Ainda nos anos 1990 programas de reforma agrária passaram a ser implemen-
tados no Brasil com o foco em trabalhadores rurais ou pequenos agricultores que pas-
saram pelo processo de expulsão do campo, pelas razões que já foram expostas aqui
anteriormente. Nesse novo arranjo social os agricultores são estimulados a retomar
suas atividades de produção, suas formas de consumo e introduzem novas práticas de
atividades agrícolas e não agrícolas (MEDEIROS et al., 1999). Nessa nova forma de as-
sentamento além dos modos de produção que serão retomados, os moradores também
vão reaprender suas dinâmicas sociais de interação, sociabilidades festivas, relações
de parentesco e vida religiosa, incrementadas pela experiência de contato com o meio
urbano mais próximo, assim “O assentamento é um povoado rural que se refaz (WAN-
DERLEY, 2001, p. 307).
171
Essas são transformações que vão reintroduzir uma visão positiva do meio
rural brasileiro, momento em que a agricultura familiar ganha precedência por meio da
criação do Programa de apoio à Agricultura Familiar (PRONAF), implantado no Brasil nos
anos 1990 e também pelo incentivo das políticas de reassentamento (reassentamento
é a ação realizada por uma pessoa para mudar de residência, de um país para outro,
por necessidade de asilo; ou porque está privado de seus direitos, espaço de moradia
ou condições de vida) com a reforma agrária. Esses atores sociais incorporam outras
concepções de agricultura, diferente da agricultura latifundiária, ostensiva que preda o
ambiente natural e não repõe a vitalidade do meio ambiente. Assim, tanto a agricultura
familiar quanto os assentos da reforma agrária oferecem uma vitalidade ao meio rural
agora como horizonte de moradia, modo de produção e dinâmicas integrativas entre o
rural e urbano quanto por oferecerem outras concepções morais do uso dos recursos, o
respeito à diversidade e ao meio ambiente.
Sabourin (2003) nos ajuda a entender que os modos de produção, assim como
as relações sociais encontradas entre famílias rurais são articuladas por outras variáveis
diferentes da economia, do trabalho ou da modernidade. A lógica da reciprocidade (dar,
receber e retribuir) operacionaliza uma rede estratégica de laços sociais e de reprodução
social, é constitutiva das afetividades e das alianças que formam entre famílias rurais:
o antropólogo Klaas Woortmann (1990), em seu clássico artigo intitulado “Com parente
não se neguceia” demonstra a vitalidade da ordem moral que envolve as redes de
172
relações sociais encontradas entre famílias rurais, para as quais as relações sociais vão
muito além da ordem econômica ou dos ideais da modernidade, demonstrando como
a terra, a família e o trabalho representam um campo de relações interdependentes.
Dito de outro modo, há uma ética diferente que é articulada a partir dessas relações
em que pese dizer que “nas culturas camponesas não se pensa a terra sem pensar a
família e o trabalho, assim como não se pensa o trabalho sem pensar a terra e a família”
(WOORTMANN, 1990, p. 23).
Agora a busca por uma comida livre de agrotóxicos, sem veneno e mais
orgânica está ganhando cada vez mais adeptos na cidade, assim como o surgimento de
feiras orgânicas, sessões específicas para comidas orgânicas em grandes franquias de
supermercados e a mudança por uma alimentação mais saudável diante de expressivas
pesquisas que apontam prejuízos à saúde pelo consumo de alimentos com agrotóxicos.
173
No entanto, acadêmico, uma última consideração do tema antes de passarmos
ao próximo tópico, envolve a comercialização desses produtos, desde o início do
século XX os comerciantes estabelecem o preço dos produtos encarecendo o acesso
a esse tipo alimento, mantendo uma relação de dependência dos agricultores com os
comerciantes. Em nosso próximo tópico iremos aprofundar a questão dos conflitos e
tensões que envolvem o rural e urbano. Até lá!
INTERESSANTE
Aproveite este intervalo entre os tópicos e dê uma olhada na matéria
de jornal da Asscom/ Grupo Tiradentes a seguir, abordando a questão
das commodities. É curtinha e bem rica de informações!
174
explica. Na visão do professor Simonard, as características de exploração intensiva
dos recursos, bem como seu impacto nos resultados econômicos do país, fazem do
agronegócio empresarial um modelo mais polêmico. “Esse agro, a maneira predatória
com que ele atua, representa morte, pois é nocivo à natureza e à sociedade, o que
faz dele um grande problema. Contudo, é preciso dizer que ele tem uma importância
econômica para o país, que vem se desindustrializando e se tornando um país
vendedor de commodities”, considera.
A soja, por exemplo, vai virar tofu no Japão, ganhar valor agregado e [a soja]
será vendida de volta para a gente muito mais cara do que foi comprada, pois se
transformou em um produto: os maiores produtores de café solúvel do mundo são
a Alemanha e a Itália, e sabe o quanto de café eles produzem? Nada. No entanto,
utilizam a matéria prima para transformar, agregar valor e revender”, critica Simonard.
Agronegócio familiar – Também conhecida como agricultura familiar, este modelo do
agronegócio é mais voltado às pequenas propriedades e, para o professor, consegue
agregar valor aos seus produtos. “Nessa produção de alimentos, de fato acontece a
industrialização deles e daí se agrega valor.
175
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:
• Os fluxos migratórios foram ocorridos entre os anos 1980 e 1990, quando se percebeu
que muitos camponeses pobres em condições de escassez passaram a buscar novas
formas de sobrevivência em meio a uma crise econômica que alcançou os modos de
produção locais e sem horizonte de mudança no agreste e no sertão.
• Aprendeu que a vida social no meio rural é resultado também de formas de relações
sociais que vão além dos modos de produção, cujos valores atravessam os moradores
locais integrando-os e oferecendo significados de pertencimento e identidade.
176
AUTOATIVIDADE
1 As transformações sociais decorrentes da intensa urbanização e modernização
produzem efeitos de deslocamento e integração entre os mundos rural e urbano que
antes, poderiam parecer mais distantes e agora vemos cada vez mais relacionados,
seja em face de lutas sociais que demandam um maior respeito às comunidades
tradicionais e seus modos de vida, seja em razão de um intenso processo de
modernização agrícola que impacta de maneira aguda o espaço rural, não só sobre
os modos de produção mas também de práticas de consumo alimentar, formas de
mobilidade e dinâmicas econômicas globalizadas. Sobre estas grandes mudanças,
assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) O mundo rural deve ser entendido em sua dupla face: um espaço físico diferenciado
e um lugar onde se vive com modo de vida próprio e referência ‘identitária.
b) ( ) O mundo rural está em vias de extinção, sua paisagem vai desaparecer e os seus
modos de vida não resistem ao processo chamado “sustentabilidade”.
c) ( ) As mudanças ocorridas com a Revolução Industrial promoveram um maior
reconhecimento da identidade rural que foi muito valorizada e tornada exemplo de
modo de vida futurista.
d) ( ) O processo de mundialização provocou uma revolução nos modos de produção
momento em que surgiram a agricultura familista e o campesinato de massas.
( ) Um lote de terras era distribuído a um beneficiário pelo rei de Portugal com o objetivo
de cultivar terras e povoar um lugar que se tornava colônia portuguesa.
( ) A sesmaria é responsável pela congregação de todos os povos nativos e busca
articular uma harmonia racial entre brancos, negros e indígenas.
( ) A sesmaria introduziu uma dinâmica de altas concentrações de terras entre poucos e
dificultou ao longo da nossa história uma distribuição mais igualitária da terra.
4 As atividades de produção agrícola no Brasil são responsáveis por nos abastecer com
alimentos e oferecer fonte de matéria-prima para outros produtos, esse segundo
processo é o que chamamos de commodities. Conforme já vimos, acadêmico, desde
a Revolução Industrial e o desenvolvimento do capitalismo fomos conduzidos por
mudanças significativas tanto em relação aos modos de vida e ao espaço ocupado
como também por deslocamentos do campo para a cidade e uso cada vez maior
de maquinários e tecnologias na produção do campo. Disserte sobre o “sistema
plantation” como um modo de produção e sobre as temáticas dos trabalhos científicos
publicados nesta área.
5 A vida social no meio rural é resultado também de formas de relações sociais que vão
além dos modos de produção, atravessam os moradores locais integrando-os e
oferecendo significados de pertencimento e identidade. As relações de parentesco e
de vizinhança nutrem laços sociais de reciprocidades, obrigações e integração. Neste
contexto, disserte sobre os princípios que fundamentam as moralidades encontradas
entre o rural e o urbano.
178
UNIDADE 3 TÓPICO 3 —
A QUESTÃO AMBIENTAL: TENSÕES,
FRONTEIRAS E DISPUTAS
1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, neste Tópico 3, abordaremos a questão ambiental a partir das
disputas e dos conflitos que contemplam essa questão no Brasil. Além disso, veremos
alguns atores sociais, assim como perfis de ocupação da terra e as mudanças sociais
ocorridas nos modos de produção e formas de vida com a Revolução Industrial, o
processo de urbanização e os processos de deslocamento e reinvenção do mundo rural.
Nesse sentido, cabe lembrar que essa diversidade de sujeitos sociais compõem um
quadro rico em práticas culturais, tradições, hábitos, identidade, atividades e moralidades
(conjunto de valores de uma sociedade). Essa pluralidade garante um ambiente complexo,
rico e disputado. Alguns modelos de produção entram em cena e tendem a imprimir um
novo modo de produção e consumo, a chegada dessas mudanças nem sempre são bem
recebidas e muitas vezes essa diversidade cultural e práticas sociais que envolvem os atores
sociais ficam em perigo diante de uma investida econômica e política intensa e violenta.
179
e processamento de mercadorias. A relação de interdependência entre o rural e o
urbano se mostra cada vez mais ativa nesse modelo, porque quanto mais modernizada
a produção mais dependerá de recursos tecnológicos, informacionais, de circulação,
transporte e comunicação encontrados no meio urbano.
DICA
Quer saber mais dos estudos que investigam a presença de agrotóxicos
nos alimentos? Conheça as pesquisas desenvolvidas pelo Instituto
Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC): http://twixar.me/ydMm.
180
para os povos e comunidades tradicionais, os territórios, os recursos
que eles contêm e os conhecimentos que a eles se referem
constituíram-se historicamente como objeto de disputa frente às
forças do mercado de terras, do agronegócio, da mineração ou dos
grandes projetos de desenvolvimento (ACSELRAD, 2013, p. 6).
2 NOVAS RURALIDADES
Compreender a diversidade cultural por meio dos territórios e práticas sociais
do rural brasileiro a partir de uma perspectiva antropológica é sem dúvida uma maneira
interessante de olhar para fenômenos que estão em nosso cotidiano, seja por meio das
matérias de jornais, dos alimentos que utilizamos, do lugar onde moramos e de muitas
outras maneiras, acadêmico. Nesse sentido, as mudanças recentes no mundo rural
podem ser explicadas por efeitos das novas relações econômicas e políticas marcadas
pelos processos de internacionalização da produção agrícola e de valorização do mundo
rural. Conforme aponta Wanderley (2001, p. 212), os processos mais gerais mencionados
pela autora são:
181
Caro acadêmico, quando se fala dessas mudanças e transformações nos referimos
à capacidade cada vez maior do meio rural atrair diferentes atividades econômicas
e interesses sociais e ambientais. Com a descentralização econômica, o meio rural vai
abrigar o desenvolvimento, setores da indústria, do comércio e os processos comumente
encontrados no meio urbano vão também ser encontrados no meio rural como espaços
comerciais, industriais e de novas atividades econômicas.
Esse processo vai ser chamado pelo autor Bernard Kayser (1990, p. 81) de
“renascimento rural”, isto é, aqueles processos anteriores de mudança do campo para a
cidade em função do esvaziamento econômico passarão a dar lugar para um retorno
ao meio rural – isto “é o resultado da difusão no espaço, dos efeitos da modernização e
do enriquecimento do conjunto da sociedade”. Dentre as características desse processo,
veremos que o meio rural vai se mostrar um horizonte habitacional não apenas para
a população idosa e aposentada como um retorno às origens, mas para a população
jovem que está no auge de sua atividade produtiva.
Novos atores sociais vão entrar em cena no meio rural movidos pelo atrativo de
indústrias, serviços, ampliação das redes de comunicação, novas modalidades de
residência e estabelecimentos agropecuários. Todas essas mudanças também vão gerar
conflitos, principalmente entre aqueles moradores mais antigos e com seus próprios
modos de vida e os novos moradores que vem com uma bagagem cultural diferente e
trazem modos de vida que nem sempre são bem recebidos em seu novo ambiente de
vida.
182
As principais tendências encontradas nesses conflitos estão concentradas em
três posições centrais, a saber, aquela que atribui prioridade à destinação produtiva do
meio rural, a segunda associa o meio rural a qualidade de vida e a terceira enxerga o
espaço rural como um bem coletivo, não limitado ao ambiente de moradia e qualidade
de vida mas como parte imprescindível de um patrimônio ambiental que deve ser
preservado em detrimento de avanços de práticas predatórias, sejam elas associadas a
dimensões produtivas ou não.
DICA
Que tal assistir a um documentário sobre o meio ambiente? Pegue esta dica, puxe a
pipoca e abra a sua a mente para entender as questões dramáticas que envolvem a
nossa relação com o tema. E, você já sabe, acadêmico, basta clicar no link: https://youtu.
be/mvcKijglrNk. Lançado pela “Plastic Oceans Foundation”, esse é um dos documentários
sobre meio ambiente mais relevantes da atualidade, por mostrar os impactos causados
pelo plástico em todos os ecossistemas. No entanto, além disso, cria a consciência de
que o descarte incorreto do material não é um problema individual, o local, ou seja,
quando não nos percebemos como uma enorme rede, totalmente conectados, os
prejuízos à natureza (e a nós mesmos) é avassalador. Partindo da teoria de que os
oceanos são arrastados por cinco grandes correntes, fica fácil compreender que o lixo
dos rios e praias acabam formando as chamadas “ilhas de plástico” – locais visitados pelos
membros da organização britânica e retratados em imagens impactantes.
Além disso, a obra nos faz refletir sobre como isso acaba retornando ao
nosso prato, já que os peixes acabam ingerindo as substâncias tóxicas.
Uma baleia azul pigmeu jovem, filmada debaixo d’água no começo do
documentário (um pequeno spoiler), não deixa dúvidas. não há como
se esquivar da urgência de mudar hábitos ao observar essa cadeia
pouco sustentável. Dirigida e roteirizada pelo jornalista e cineasta
Craig Leeson, com entrevistas conduzidas pela também jornalista
e a mergulhadora Tanya Streeter, a filmagem durou quatro anos e
ocorreu em 20 locais do planeta.
Duração: 1h40.
Onde assistir: Netflix.
183
O rural vai cedendo cada vez mais espaço para a categoria social “meio ambiente”,
para demarcar uma posição diante de um modelo econômico dominante que por meio
de suas atividades econômicas, como o agronegócio, comprometem a qualidade dos
elementos essenciais da vida como a água, a terra, o ar e os povos tradicionais que são os
mais afetados pelo avanço de práticas predatórias sobre suas reservas.
Uma parcela cada vez maior dos agricultores atentos e afinados com a
preservação do meio ambiente passam a defender essas pautas. Do mesmo modo que
será possível encontrar trabalhadores industriais, agropecuários e de classe média,
que vivem no campo e que têm como projeto essa concepção “produtiva” para suas
propriedades, sem implicar vínculo algum com uma demanda de preservação ao meio
ambiente (WANDERLEY, 2001).
3 NOVAS URBANIDADES
Caro acadêmico, segundo o pesquisador Michael M. Bell (1992), que estava
interessado em entender as dinâmicas que poderiam surgir para definir as fronteiras
entre o rural e o urbano, desenvolveu um importante estudo da comunidade rural de
Childerley, localizada próximo de Londres, em que observou a partir da proximidade o
que deveria ser considerado para definir uma localidade como rural ou urbana. Partiu,
então, da percepção por parte dos seus moradores do lugar, suas relações e os sentidos
sociais atribuídos às práticas vividas naquele trânsito, propondo então o uso do termo
continuum para se referir a essa identidade construída pelos próprios moradores das
relações que eles mantêm com o mundo urbano, mesmo apostando em diferenças
entre esses universos, os moradores de Childerley são enfáticos em dizer que a vida no
espaço rural permitiria uma melhor qualidade de vida para eles, que não queriam habitar
subúrbios e nem viver a dinâmica urbana inteiramente.
Esses são os traços dos tipos de tensões que vão se construindo nessa interação
entre moradores oriundos do mundo urbano em direção ao mundo rural. Nesse sentido,
podemos afirmar que as questões conflituosas vão envolver não só a disputa pela terra,
mas também um campo de valores, moralidades e sentidos sociais desse ambiente.
Muitas vezes dinâmicas desse tipo são encobertas pela dinâmica da agroindústria
e do agronegócio, outra importante tensão e geradora de conflitos ainda mais graves
entre o rural e o urbano. Na verdade, a lógica mobilizada pelos moradores locais de
Childerley revela um conteúdo similar encontrado entre moradores de comunidades
rurais no Brasil, que articulam entre suas críticas o fato de que o agronegócio e as
pessoas associadas a ele, querem promover um tipo de desenvolvimento descolado da
percepção dos moradores locais, afastados das práticas de preservação da diversidade e
de respeito ao meio ambiente.
185
DICA
Uma boa dica de filme sobre o tema das terras improdutivas é Chão,
dirigido por Camila Freitas. Trata-se de um interessante documentário
brasileiro de 2019.
186
O uso intensivo de tecnologia ampliou a concentração de terras, impedindo as
comunidades tradicionais de usufruírem dos recursos e dos seus modos de produção
para sobreviver, passaram a sofrer com invasões de suas terras, contaminação de
água, desmatamento e populações indígenas cada vez mais ameaças de morte e
desaparecimento. Essas consequências mais imediatas e que ganham repercussão na
mídia ainda não traduzem outros fatores desencadeados por um modo de produção
predatório, por exemplo, a mudança climática, cujos efeitos se dão sobre o regime de
chuvas, desertificação, desaparecimento de espécies, seca em territórios agrícolas, até
consequências políticas e mercantis como a perda de mercado e investidores quando
investidores internacionais preocupados com a preservação das condições ambientais,
assim como alinhados com uma visão de respeito aos povos e comunidades tradicionais
recusam acordos comerciais e cortam investimentos no país.
Por fim, acadêmico, cada vez mais vemos uma relação entre práticas do meio
rural e do meio urbano em interação, se os processos de intensa urbanização criaram
novos modos de viver, habitar e produzir no meio urbano com a presença intensa de
indústrias e da criação de um espaço urbanizado para atender essa nova forma de
produzir, trabalhar e consumir, também vamos perceber que o passar do tempo e o
avanço em novas formas de comunicação e tecnologia o meio rural passará a ser cada
vez mais atingido pelos efeitos desse ritmo de produção capitalista que não se associa
a uma concepção sustentável de respeito às práticas nativas de produção, nem tampouco
se interessa pelo respeito às legislações como a Constituição Federal de 1988, que traz
em seu bojo o direito às terras e à vida. Atualmente, há inúmeros conflitos pelos quais
passam esses povos e comunidades tradicionais como os Kaiowá e os Guarani de Mato
Grosso do Sul, tendo a demarcação de 24 terras desde a CF/1988, até recentemente
detinham a posse de 26% de sua área. Para encerrar nossa abordagem desses conflitos
aproveite a leitura complementar.
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LEITURA
COMPLEMENTAR
PAZ ENTRE AGRONEGÓCIO E DIREITOS INDÍGENAS?
Acabar com as ilegalidades é necessário, mas não suficiente
Uma guerra está em curso contra os povos indígenas. Uma guerra que reúne
vários antagonistas, entre eles alguns setores do agronegócio. Para entrever um cessar-
fogo, uma trégua nessa disputa, achei que devia tentar entender a perspectiva desses
setores. Guiei-me por um livro muito instrutivo que prefaciei. Formação Política do
Agronegócio, de Caio Pompeia (a ser lançado pela editora Elefante). Visto de fora, o
agronegócio se afigura monolítico. “Agro é tudo”, diz o bordão.
188
Luiz Inácio Lula da Silva, por sua vez, deu uma no cravo e outra na ferradura, ora
atendendo aos interesses dos produtores, ora os contrariando, o que levou o seu ministro
da Agricultura, Roberto Rodrigues, vinculado ao agronegócio, a se demitir do governo, em
2006. A inação de Dilma Rousseff, quanto às demarcações de terras indígenas, apesar dos
reparos feitos por ela nas últimas horas de seu governo, e a amizade que cultivava com
Kátia Abreu – que se licenciou da presidência da Confederação da Agricultura e Pecuária
do Brasil (CNA), a qual acabou perdendo, para assumir o Ministério da Agricultura – não
foram, porém, suficientes para que a presidente obtivesse o apoio do setor.
Michel Temer, por sua vez, aderiu com manifesto entusiasmo ao programa do
agronegócio, seja por convicção, seja por ter se tornado devedor e refém dos votos
da bancada ruralista no Congresso para ajudar a obstruir os pedidos de abertura de
processos contra ele. Em seu governo foi extinto o Ministério do Desenvolvimento Agrário,
que cuidava da agricultura familiar, e ressuscitado um parecer da Advocacia-Geral da
União (AGU), de que falarei mais adiante, que estendeu a toda a administração pública um
entendimento e condicionantes espúrias para as demarcações de terras indígenas.
189
Como escreveu recentemente a ex-subprocuradora-geral Deborah Duprat,
o ministro do Meio Ambiente tem um currículo contra o ambiente e o presidente da
Funai, um currículo contra os índios. E, quando se protesta contra esses conflitos
de interesse e as inconstitucionalidades que promovem, recebe-se de membros
do Executivo esta resposta, como se resposta fosse. “Esqueceram de que um novo
presidente foi eleito?” Sim, um novo presidente, com programa abertamente anti-
indígena e anticonservacionista, foi eleito, isso é incontestável. No entanto, acima dele,
está a Constituição Federal, o que é igualmente incontestável. Vem daí a importância
cada vez mais clara e, esperemos, duradoura, do Supremo Tribunal Federal, guardião
da Constituição. Com Bolsonaro, que ideologicamente se alinha à União Democrática
Ruralista (UDR), o agronegócio não só está no governo, como sua ala à extrema direita
está mais atuante: o presidente da UDR, Luiz Antônio Nabhan Garcia, almejava ser
ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Impedido, por razões pragmáticas,
de colocá-lo no comando, Bolsonaro confiou-lhe a Secretaria Especial de Assuntos
Fundiários desse mesmo ministério.
Mas não foi isso o que ocorreu. Ao analisar dados do Sicar de maio de 2020,
o Ministério Público Federal (MPF) encontrou 9 901 áreas – 71% delas na Amazônia
Legal – identificadas como propriedades privadas, mas que tinham sobreposições
com terras indígenas ou áreas de proteção de índios isolados. Levantamento recente
mostra que mais de 12 milhões de hectares declarados ao Cadastro Ambiental Rural
estão sobrepostos a 297 terras indígenas, sendo mais de 60% delas terras demarcadas e
homologadas. A chamada “regularização fundiária” da Amazônia Legal, região na qual
grande quantidade de terras públicas ainda não tem destinação, vem sendo desde
2005 gradativamente facilitada por medidas provisórias transformadas em leis pelo
Congresso. A princípio, essa regularização destinava-se a titular pequenos posseiros
que, antes de 1º de dezembro de 2004, praticassem a agricultura familiar e estivessem
cultivando até 500 hectares, exclusivamente com a família.
190
se apropriaram ilicitamente de vastas extensões de terra pública”. Em 2017, no governo
Temer, outra lei ampliou a área máxima para 2,5 mil hectares, diminuiu a exigência
de antiguidade da ocupação para 22 de julho de 2008 e autorizou que o beneficiário
fosse uma empresa. Já no governo Bolsonaro, a medida provisória 910/2019, apelidada
novamente de MP da Grilagem, reduziu mais uma vez a exigência da antiguidade da
ocupação – para até 5 de maio de 2014. Felizmente, o Congresso deixou caducar o
prazo para a votação dessa MP, embora tenha encaminhado um projeto de lei sobre o
mesmo tema. Na esteira do Executivo federal, o governo do Pará promulgou no mesmo
espírito, em julho de 2019, uma nova lei de regularização fundiária. Essa sucessão de
leis gerou um crescente incentivo à grilagem de terras, sobretudo na Amazônia, e várias
possibilidades de concentração fundiária.
Até a malograda MP 910 de Bolsonaro contribuiu para isso, enquanto não era
barrada no Congresso: o presidente tentou, com a medida provisória publicada em seu
primeiro dia de governo, atribuir à Secretaria Especial de Assuntos Fundiários, já encabeçada
por Garcia, a função de reconhecimento de terras indígenas, tarefa que é da alçada da Funai.
Embora o Congresso tenha barrado a medida, Garcia manteve sua influência sobre a
questão: outro mecanismo que favorece a grilagem reside no processo de regularização
fundiária. Esse processo se inicia com uma autodeclaração georreferenciada, que o
Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) deve verificar com sensoriamento remoto, mas
também com vistoria presencial antes de encaminhar a titulação.
Essa vistoria em 2019 não foi feita nem uma vez sequer: o remédio a esse
estado de coisas que acaba de ser publicado no Diário Oficial de 3 de dezembro de 2020
é assombroso. propõe-se delegar as vistorias a agentes municipais, quando é notório
que eles são muito mais sujeitos a pressões locais: outra forma de verificação oficial das
pretensões à regularização fundiária se baseia na consulta do Sigef, descrito como “uma
ferramenta eletrônica desenvolvida para subsidiar a governança fundiária do território
nacional com a certificação do georreferenciamento dos imóveis rurais”. A ideia é evitar
entre outras sobreposições aquelas com áreas indígenas, áreas militares e unidades
de conservação. Uma medida particularmente danosa foi a instrução normativa nº 9,
de 16 de abril de 2020, da Funai. Coincidência ou não, foi editada no mesmo dia em
que o ministro do Meio Ambiente, na assombrosa reunião ministerial de 22 de abril,
recomendou medidas infralegais “para passar a boiada”. Essa instrução normativa, entre
outras maldades, suprimia do Sigef todas as terras indígenas ainda não homologadas.
Trata-se de uma interpretação errônea e maliciosa do que venham a ser as TIs. Terras
indígenas têm sua existência reconhecida diretamente no artigo 231 da Constituição e,
por isso, não dependem de regularização para serem reconhecidas.
191
invasores. A instrução normativa nº 9 da Funai é, portanto, flagrantemente inconstitucional.
Ações judiciais impetradas por membros do Ministério Público Federal nesse sentido já
obtiveram uma sentença favorável e suspensões liminares em vários tribunais federais
regionais, mas a vigência provisória dessa instrução normativa, enquanto não se
generaliza sua suspensão, já permitiu abusos vários: o artigo 231 da Constituição de
1988 deixa claro que o direito dos povos indígenas às suas terras é originário, ou seja, é
anterior à própria Constituição.
As terras indígenas não são criações nem concessões do Estado: o que compete
constitucionalmente ao Executivo é regularizar essas terras e protegê-las, além de, no
prazo de cinco anos, demarcá-las e homologá-las. Sendo assim, por não ter concluído
essas demarcações e homologações, a União está inadimplente há mais de 27 anos. A
Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), entretanto, produziu uma inversão nesse
raciocínio. A cada quatro anos, programas e propostas das principais organizações do
agronegócio são endereçados a candidatos à Presidência da República ou a presidentes
recém-empossados. Nos documentos, a questão das terras indígenas, de quilombolas
e comunidades tradicionais costuma figurar num item sempre presente, o da segurança
jurídica, entendida geralmente como a segurança fundiária dos agricultores e pecuaristas.
Nos pleitos endereçados pela Abag aos presidenciáveis em 2010 e 2014, o prazo
para a demarcação das terras indígenas é interpretado como tendo início na data da
promulgação da Constituição de 1988 e término legal cinco anos depois: ou seja, no
argumento bizarro da associação de agribusiness, as demarcações só poderiam ser feitas
até 1993! Na prática, o prazo que a União não cumpriu vira-se contra o direito originário
dos povos indígenas: o documento de 2010, intitulado Propostas do Agronegócio para o
Próximo Presidente da República, afirma o seguinte.
192
Um dos temas recorrentes é o da introdução de interesses contrários nas
decisões sobre demarcações. Lembremos que as terras indígenas são de propriedade
da União: ora, um conjunto de propostas legislativas, até o momento em banho-maria
no Congresso, quer transferir as demarcações dessas terras do Poder Executivo – que
sempre cuidou disso, até para que as terras fiquem resguardadas das pressões dos
poderosos locais – para o Poder Legislativo. A mais conhecida é a Proposta de Emenda
à Constituição (PEC) nº 215, formulada em 2000, que quer transferir o poder de aprovar as
demarcações das terras indígenas da Funai para a alçada de senadores e deputados.
Entidades influentes do agronegócio propõem que outros interessados, inclusive outros
ministérios e representantes de governos estaduais ou municipais, façam parte da
instância que regulariza as terras indígenas.
*Desde maio de 2020, uma decisão liminar do ministro Edson Fachin resultou na
suspensão do parecer 001 da AGU, mas o julgamento plenário do STF sobre o marco
temporal, previsto para final de outubro do ano passado, ainda não havia sido remarcado
até o momento em que finalizei este texto.
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RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:
• A questão ambiental a partir das disputas e os conflitos que ensejam essa questão no
Brasil a partir da leitura e análise de conflitos em torno do desenvolvimento de modos
de produção diferentes.
• Alguns dos principais atores sociais envolvidos nas tensões que se localizam na relação
entre concepções de urbano e rural orientados pelas noções de “desenvolvimento” e
“progresso”, assim como perfis de ocupação da terra e as mudanças sociais ocorridas
nos modos de produção e formas de vida com a Revolução Industrial, o processo de
urbanização e os processos de deslocamento e reinvenção do mundo rural.
• Mudanças também vão gerar conflitos, principalmente entre aqueles moradores mais
antigos e com seus próprios modos de vida e os novos moradores que vem com
uma bagagem cultural diferente e trazem modos de vida que nem sempre são bem
recebidos em seu novo ambiente de vida.
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AUTOATIVIDADE
1 O pesquisador Michael M. Bell (1992), que estava interessado em entender as dinâmicas
que poderiam surgir para definir as fronteiras entre o rural e o urbano, desenvolveu
um importante estudo da comunidade rural de Childerley, localizada próximo de
Londres, em que observou a partir da proximidade o que deveria ser considerado para
definir uma localidade como rural ou urbana. Sobre essa relação o autor propôs o uso de
um conceito, assim assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) O autor utiliza o termo continuum para se referir a essa identidade construída pelos
próprios moradores das relações que eles mantêm com o mundo urbano.
b) ( ) O mundo rural está em vias de extinção, sua paisagem vai desaparecer e os seus
modos de vida foram modificados pelo que chamou de “sustentabilidade”.
c) ( ) As mudanças ocorridas com a Revolução Industrial promoveram um maior
reconhecimento da identidade rural que foi muito valorizada e tornada exemplo do
que o autor chamou de “modo de vida futurista”.
d) ( ) O autor chamou esse processo de “mundialização” porque provocou uma
revolução nos modos de produção momento em que surgiram a agricultura
familista e o campesinato de massas.
195
Assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.
4 Compreender a diversidade cultural por meio dos territórios e práticas sociais do meio
rural brasileiro a partir de uma perspectiva antropológica é sem dúvida uma maneira
interessante de olhar para fenômenos que estão em nosso cotidiano, seja por meio
das matérias de jornais, dos alimentos que utilizamos, do lugar onde moramos e de
muitas outras maneiras. Nesse sentido, as mudanças recentes no mundo rural podem
ser explicadas por efeitos das novas relações econômicas e políticas marcadas pelos
processos de internacionalização da produção agrícola e de valorização do mundo rural.
Apresente os quatro processos mais gerais mencionados pela autora Maria Wanderley.
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5 O meio rural passará a ser cada vez mais atingido pelos efeitos desse ritmo de
produção capitalista que não se associa a uma concepção sustentável de respeito às
práticas nativas de produção, nem tampouco se interessa pelo respeito às legislações
como a Constituição Federal de 1988, que traz em seu bojo o direito às terras e à vida.
Atualmente, há inúmeros conflitos pelos quais passam esses povos e comunidades
tradicionais como os Kaiowá e os Guarani de Mato Grosso do Sul, tendo a demarcação de
24 terras desde a CF/1988, até recentemente detinham a posse de 26% de sua área.
Neste contexto, disserte sobre a importância do reconhecimento e demarcação de
terras indígenas.
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REFERÊNCIAS
BELL, M. M. O fruto da diferença: o contínuo rural-urbano como sistema de identidade.
Sociologia rural, v. 57, n. 1, p. 65-82, 1992.
GARCIA JUNIOR, A. R. O sul: caminho do roçado. São Paulo: Marco Zero/UnB/CNPq, 1990.
LEONE, E. T. Pobreza e trabalho no Brasil: anlise das condies de vida e ocupao das
famlias agrcolas nos anos 80. Campinas: UNICAMP, 1994. Tese.
199
MARQUES, B. F. Direito agrário brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015.
MARX, K. Le capital. Livre Troisime, Tomo III. Paris: Editions Sociales, 1974.
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