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Antropologia

Rural e
Urbana

Prof.ª Andressa Lídicy Morais Lima

Indaial – 2022
1a Edição
Elaboração:
Prof.ª Andressa Lídicy Morais Lima

Copyright © UNIASSELVI 2022

Revisão, Diagramação e Produção:


Equipe Desenvolvimento de Conteúdos EdTech
Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada pela equipe Conteúdos EdTech UNIASSELVI

C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI.


Núcleo de Educação a Distância. LIMA, Andressa Lídicy Morais.

Antropologia Rural e Urbana. Andressa Lídicy Morais Lima. Indaial - SC:


UNIASSELVI, 2022.

200p.

ISBN 978-85-515-0614-1
ISBN Digital 978-85-515-0615-8

“Graduação - EaD”.
1. Antropologia 2. Rural 3. Urbana

CDD 306.981
Bibliotecário: João Vivaldo de Souza CRB- 9-1679

Impresso por:
APRESENTAÇÃO
Prezado acadêmico! Bem-vindo à disciplina de Antropologia Rural e Urbana.
Este é o nosso livro didático, material elaborado com o objetivo de auxiliar e contribuir
para a formação profissional e o avanço nos seus estudos. Este material lhe ajudará
a conhecer um universo de muito conhecimento a respeito da vida social entre grupos
humanos, a antropologia se caracteriza pelo estudo da diversidade dos modos de
vida, nos proporciona um conhecimento vasto acerca das diferentes línguas, hábitos
culturais, religiões, formas de direito, sentidos de justiça, artes, modos de existir e
construir relações entre grupos sociais pertencentes a localidades distintas. Por isso,
você pode usar este material como base para iniciar a sua imersão em um conteúdo que
hoje pode parecer muito familiar, como é a cidade, a vida urbana ou a vida rural, suas
formas de organização social, mas aqui você poderá conhecer um pouco do relevante
processo histórico de formação e transformação da vida humana a partir dos fenômenos
rural e urbano e das suas interferências e interfaces.

Na Unidade 1, abordaremos como ponto de partida os estudos do urbano, isto


porque a maneira como a antropologia brasileira se desenvolveu passou por diferentes
expectativas de construção e aplicação de pesquisas marcadas substancialmente pelo
acontecimento da Revolução Industrial e do sistema capitalista. Logo, cidade, urbano
e indivíduo fazem parte de um conjunto de categoriais de análise para compreender o
que é Antropologia Urbana.

Em seguida, na Unidade 2, estudaremos a Antropologia Rural, durante muito


tempo essa subárea ficou conhecida como “sociedades camponesas”. Seu estudo
procura se relacionar por contraponto ao urbano. Abordaremos um retrato da grande
diversidade social e cultural que há no rural brasileiro. A dimensão antropológica dessa
área de estudos permitirá o entendimento dos indivíduos que habitam os campos, seus
conflitos, seus saberes e suas lutas pelo direito à terra.

Por fim, na Unidade 3, estudaremos a relação entre os estudos urbanos e


rurais, sabendo que as transformações que ocorrem tanto no rural quanto no urbano
interferem uma na outra. Será possível entender como vários aspectos de uma cultura
estão interligados a diferentes modos de existir, assim percebidas a interface entre rural e
urbano como produtora de uma riqueza de modos de vida e de conflitos sociais.

Neste livro você encontrará os conteúdos que lhe serão úteis para sua
formação. Entretanto, lembre-se que o conhecimento é uma fonte inesgotável e aqui
é um bom ponto de partida para você navegar pela Antropologia Rural e Urbana tendo
como perspectiva que essas reflexões despertem o desejo pelo conhecimento, pela
investigação antropológica, pela leitura de etnografias de temas que estão movendo os
debates contemporâneos.
Sabemos que neste livro será apresentado um conjunto de abordagens, escolas
de pensamento, categorias de análise e linhas de pesquisa, fornecendo assim um mapa
para facilitar a compreensão deste tema tão desafiador. Aproveite e navegue pelos
estudos antropológicos.

Desejo a você um bom estudo e que as leituras deste livro ampliem seus
horizontes na busca por sempre renovar o interesse pelo conhecimento.

Boa leitura!

Prof.ª Andressa Lídicy Morais Lima


GIO
Olá, eu sou a Gio!

No livro didático, você encontrará blocos com informações


adicionais – muitas vezes essenciais para o seu entendimento
acadêmico como um todo. Eu ajudarei você a entender
melhor o que são essas informações adicionais e por que você
poderá se beneficiar ao fazer a leitura dessas informações
durante o estudo do livro. Ela trará informações adicionais
e outras fontes de conhecimento que complementam o
assunto estudado em questão.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos


os acadêmicos desde 2005, é o material-base da disciplina.
A partir de 2021, além de nossos livros estarem com um
novo visual – com um formato mais prático, que cabe na
bolsa e facilita a leitura –, prepare-se para uma jornada
também digital, em que você pode acompanhar os recursos
adicionais disponibilizados através dos QR Codes ao longo
deste livro. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura
interna foi aperfeiçoada com uma nova diagramação no
texto, aproveitando ao máximo o espaço da página – o que
também contribui para diminuir a extração de árvores para
produção de folhas de papel, por exemplo.

Preocupados com o impacto de ações sobre o meio ambiente,


apresentamos também este livro no formato digital. Portanto,
acadêmico, agora você tem a possibilidade de estudar com
versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.

Preparamos também um novo layout. Diante disso, você


verá frequentemente o novo visual adquirido. Todos esses
ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos
nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos,
para que você, nossa maior prioridade, possa continuar os
seus estudos com um material atualizado e de qualidade.

QR CODE
Olá, acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você –
e dinamizar, ainda mais, os seus estudos –, nós disponibilizamos uma diversidade de QR
Codes completamente gratuitos e que nunca expiram. O QR Code é um código que permite
que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para
utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois,
é só aproveitar essa facilidade para aprimorar os seus estudos.
ENADE
Acadêmico, você sabe o que é o ENADE? O Enade é um
dos meios avaliativos dos cursos superiores no sistema federal de
educação superior. Todos os estudantes estão habilitados a participar
do ENADE (ingressantes e concluintes das áreas e cursos a serem
avaliados). Diante disso, preparamos um conteúdo simples e objetivo
para complementar a sua compreensão acerca do ENADE. Confira,
acessando o QR Code a seguir. Boa leitura!

LEMBRETE
Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma
disciplina e com ela um novo conhecimento.

Com o objetivo de enriquecer seu conheci-


mento, construímos, além do livro que está em
suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem,
por meio dela você terá contato com o vídeo
da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementa-
res, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de
auxiliar seu crescimento.

Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que


preparamos para seu estudo.

Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada!


SUMÁRIO
UNIDADE 1 — ANTROPOLOGIA URBANA.................................................................... 1

TÓPICO 1 — CONTEXTO: O URBANO, AS CIDADES E OS SUJEITOS...................... 3


1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 3
2 O URBANO ............................................................................................................ 6
3 AS CIDADES ....................................................................................................... 10
4 OS SUJEITOS ..................................................................................................... 15
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................... 19
AUTOATIVIDADE....................................................................................................20

TÓPICO 2 — ENTRE ESCALAS E ESCOLAS DE ETNOGRAFIA URBANA..............23


1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................23
2 ESCOLA DE CHICAGO ........................................................................................24
3 ESCOLA DE MANCHESTER ................................................................................ 31
RESUMO DO TÓPICO 2...........................................................................................39
AUTOATIVIDADE................................................................................................... 40

TÓPICO 3 — MOVIMENTOS SOCIAIS, SUBCULTURAS E IDENTIDADES


URBANAS..........................................................................................43
1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................43
2 MOVIMENTOS SOCIAIS E SUBCULTURAS URBANAS ..................................... 44
3 IDENTIDADES URBANAS ................................................................................... 51
LEITURA COMPLEMENTAR...................................................................................58
RESUMO DO TÓPICO 3...........................................................................................63
AUTOATIVIDADE....................................................................................................64

REFERÊNCIAS........................................................................................................ 67

UNIDADE 2 — ANTROPOLOGIA RURAL..................................................................71

TÓPICO 1 — CONCEITOS E TRADIÇÕES TEÓRICAS NOS ESTUDOS DE


CAMPESINATO E DA RURALIDADE................................................... 73
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................... 73
2 OS ESTUDOS DO RURAL NA FORMAÇÃO DA ANTROPOLOGIA BRASILEIRA.......75
3 OS ESTUDOS DE COMUNIDADE.........................................................................89
RESUMO DO TÓPICO 1...........................................................................................93
AUTOATIVIDADE....................................................................................................94
TÓPICO 2 — POVOS TRADICIONAIS E SEUS MODOS DE USO E OCUPAÇÃO
DO ESPAÇO RURAL........................................................................... 97
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................... 97
2 ANTROPOLOGIA RURAL NO BRASIL................................................................102
3 CAMPESINATO..................................................................................................106
4 COMUNIDADES TRADICIONAIS.......................................................................109
4.1 INDÍGENAS...........................................................................................................................111
4.2 QUILOMBOLAS................................................................................................................... 114
4.3 CAIÇARAS........................................................................................................................... 115
4.4 RIBEIRINHOS...................................................................................................................... 116
RESUMO DO TÓPICO 2..........................................................................................119
AUTOATIVIDADE..................................................................................................120

TÓPICO 3 — ORGANIZAÇÕES ECONÔMICAS, RELAÇÕES SOCIAIS E


MORALIDADES NO MUNDO RURAL................................................ 123
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................... 123
2 TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE................................................................124
3 IDENTIDADE, TERRITÓRIO E NOVAS QUESTÕES DO MUNDO RURAL........... 126
LEITURA COMPLEMENTAR..................................................................................131
RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................... 136
AUTOATIVIDADE.................................................................................................. 137

REFERÊNCIAS...................................................................................................... 139

UNIDADE 3 — RELAÇÃO ENTRE O RURAL E O URBANO....................................143

TÓPICO 1 — O CONTINUUM ENTRE O URBANO E O RURAL NA PRODUÇÃO


DE IDENTIDADES SOCIAIS..............................................................145
1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................145
2 ALGUMAS CATEGORIAS ANALÍTICAS............................................................. 147
3 O RURAL E O MODERNO.................................................................................... 153
RESUMO DO TÓPICO 1.........................................................................................158
AUTOATIVIDADE.................................................................................................. 159

TÓPICO 2 — MODOS DE PRODUÇÃO, CONSUMO E USO DE RECURSOS............161


1 INTRODUÇÃO......................................................................................................161
2 MODOS DE PRODUÇÃO..................................................................................... 163
3 MORALIDADES ENTRE O RURAL E URBANO................................................... 166
RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................... 176
AUTOATIVIDADE...................................................................................................177
TÓPICO 3 — A QUESTÃO AMBIENTAL: TENSÕES, FRONTEIRAS E DISPUTAS......... 179
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................... 179
2 NOVAS RURALIDADES..................................................................................... 181
3 NOVAS URBANIDADES ....................................................................................184
LEITURA COMPLEMENTAR.................................................................................188
RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................... 194
AUTOATIVIDADE.................................................................................................. 195

REFERÊNCIAS...................................................................................................... 199
UNIDADE 1 —

ANTROPOLOGIA URBANA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• identificar a formação da antropologia urbana a partir dos estudos de diferentes


contextos, grupos sociais e tempos históricos;

• estudar as escolas clássicas como a Escola de Chicago e a Escola de Manchester


permitirá compreender as contribuições metodológicas que suas pesquisas oferecem
aos estudos do rural e do urbano e suas implicações para nossa a sociedade contem-
porânea;

• dominar as categorias centrais do campo como o conceito de “cidade”, “metrópole”,


“vida urbana” e “tribos urbanas”;

• relacionar os elementos conceituais com a aplicação em estudos etnográficos para


entender os efeitos das aglomerações, moradias, jornadas intensas de trabalho,
precarização da mão de obra nas novas formas de organização social da vida urbana.

PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – CONTEXTO: O URBANO, AS CIDADES E OS SUJEITOS

TÓPICO 2 – ENTRE ESCALAS E ESCOLAS DE ETNOGRAFIA URBANA

TÓPICO 3 – MOVIMENTOS SOCIAIS, SUBCULTURAS E IDENTIDADES URBANAS

CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

1
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 1!

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2
UNIDADE 1 TÓPICO 1 —
CONTEXTO: O URBANO, AS CIDADES
E OS SUJEITOS

1 INTRODUÇÃO
A antropologia se consolidou a partir de importantes estudos etnográficos do
final do século XIX. Neles, os antropólogos dedicavam-se ao estudo aprofundado de
diversas sociedades, tomando como premissa entender a diversidade dos modos de vida
em relação com a da sociedade do pesquisador. Assim, as ricas etnografias clássicas da
antropologia colocavam em evidência um conjunto robusto de descrições dos povos com os
quais conviveram em suas pesquisas, um exemplo desse tipo de trabalho é o centenário
“Os Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos
nativos nos Arquipélagos da Nova Guiné Melanésia” do antropólogo polonês Bronislaw
Malinowski, publicado em 1922. Acadêmico, a seguir você verá uma imagem do antropólogo
Malinowski interagindo entre trobriandeses durante sua pesquisa de campo.

Figura 1 – Argonautas do pacífico ocidental

Fonte: https://bit.ly/3J5hYw6. Acesso em: 20 jul. 2022.

Naquela época as investigações antropológicas concentravam-se nos estudos


de diferentes sociedades ao redor do mundo e seus modos de viver. Aquelas sociedades
que não pertenciam à civilização ocidental foram caracterizadas como “sociedades de
pouco contato”, cuja tecnologia não era considerada desenvolvida ou que havia baixa
divisão do trabalho social. Tais povos que ali habitavam foram chamados em diferentes
momentos históricos de “primitivos”, “sociedades simples”, “arcaicos” ou “sociedades frias”,
sempre em comparação com as chamadas “sociedade complexas” – aquelas consideradas
“civilizadas”, “sociedades modernas” ou “sociedades quentes”.

3
DICA
Quer saber mais a respeito de um dos livros mais importantes
da história da Antropologia? Assista ao vídeo das “Aulas abertas:
teorias e histórias da antropologia – o centenário de argonautas”.
Promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade Federal de Campinas (UNICAMP), com a
presença da Prof.ª Dra. Mariza Peirano (Universidade de Brasília):
https://bit.ly/3osZpsv.

Acadêmico, neste momento, você pode se perguntar: quais seriam então essas
“sociedades quentes”? Pois bem, já adiantamos a você: são aquelas das quais pertenciam
os pesquisadores e antropólogos. Além disso, é importante que você saiba que ambos os
termos, sociedades “frias” e “quentes”, foram introduzidos pelo antropólogo francês Claude
Lévi-Strauss, na tentativa de identificar e classificar as estruturas inconscientes básicas
que definiriam as culturas humanas. Assim, aquelas sociedades que estavam mais perto
do estado de natureza cujo volume de pessoas era menor e embora dinâmicas nutriam
resistência às mudanças culturais foram chamadas de sociedades frias ou simples. Por
outro lado, as sociedades quentes ou complexas são aquelas marcadas pelos processos
industriais e que foram afetadas pela globalização, pelo progresso e apresentam maior
desarmonia e conflitos de desordem social, possuem ainda entre suas características o
grande contingente populacional, históricas, estão mais distantes do estado de natureza.

No entanto, essas terminologias passaram por revisões críticas dentro da própria


disciplina e tem procurado no contexto contemporâneo não se referir aos povos cujas
culturas se diferenciam da nossa de “primitivos”, entendendo que isto é uma forma de
etnocentrismo. Aliás, importante conceito antropológico que será muito utilizado em
nosso entendimento acerca da Antropologia Rural e Urbana.

ESTUDOS FUTUROS
Abordaremos o estudo da Antropologia Rural em nossa próxima unidade.

De acordo com o antropólogo Everardo Rocha (1988), etnocentrismo é uma visão


de mundo, na qual a pessoa toma seu próprio grupo como ponto de partida para avaliar
e medir valores, hábitos e modelos de existências como se fossem superiores, melhores
ou os mais corretos a serem seguidos e assim passa a negar a existência da diversidade.

Cabe ainda destacar que o etnocentrismo é uma característica presente em


qualquer sociedade ou grupo social, pois todas elas tendem a olhar umas para as outras
a partir de si próprias.

4
A partir disso, outro importante conceito antropológico merece atenção: trata-se do
relativismo. Este conceito possibilita o conhecimento da diversidade, entendendo
os seus próprios valores e contextos, nos quais se realizam, portanto, no encontro com
o “Outro” e com a diferença. Assim, o relativismo cultural nos auxilia a não hierarquizar
ou emitir juízos de valor que estejam investidos de preconceitos. É importante lembrar
que esse Outro se trata daqueles que não pertencem à mesma cultura que o “nós” do
pesquisador.

O etnocentrismo é produto do Ocidente, que toma seu estágio de desenvolvimento


científico e tecnológico como o de maior grau em desenvolvimento humano, ao fazer isto
analisa outras sociedades de modo a hierarquizá-las partindo de suas próprias categorias,
valores e conhecimento (LÉVI-STRAUSS, 1993). Assim, uma crítica contundente ao
evolucionismo praticado na antropologia, permitirá entender que "existem nas sociedades
humanas, simultaneamente em elaboração, forças trabalhando em direções opostas:
umas tendem à manutenção, e mesmo à acentuação dos particularismos; as outras agem
no sentido da convergência e da afinidade" (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 331).

Ao adotarmos o pensamento relativista compreendemos que a diversidade


deixaria de ser entendida com base em processos evolutivos e passaria a ser vista
de uma perspectiva de valorização da diferença, respeitando suas configurações e as
possibilidades de relações de culturas entre si.

No Brasil, a antropologia tem uma longa trajetória de pesquisas versadas em


estudos de populações indígenas, grupos rurais, grupos urbanos e aqueles grupos
definidos conforme a divisão de classes sociais (MELLATI, 1983; OLIVEN; 2007). Essa
característica é importante por nos aproximar de nossa própria disciplina aqui estudada:
Antropologia Rural e Urbana. A relação entre o eu e o outro ganha agora novos contornos
analíticos que privilegiam a perspectiva da alteridade.

Do ponto de vista antropológico a alteridade significa que o “eu” só pode


ser entendido a partir da interação que estabelece com o “outro”, tal categoria é
frequentemente usada como definidora da própria antropologia, por colocar em foco
a importância de estudarmos as diferenças entre várias culturas, sociedades e grupos
sociais com o interesse de conhecermos e estabelecermos uma relação de respeito
mútuo e aprendizado moral a partir das diferenças.

Desse modo, os estudos de diferentes contextos, grupos sociais e tempos


históricos permitirá compreender as contribuições dos estudos do rural e do urbano e
suas implicações para nossa a sociedade contemporânea. As especificidades que estão na
descrição de grupos sociais como jovens e tribos urbanas nos permitem conhecer suas
práticas, consumo, formas de lazer na cidade e no mundo urbano, ao mesmo tempo em
que é possível conhecermos os campesinos, seus processos de trabalho no campo, suas
culturas de subsistência bem como seus rituais festivos. E, finalmente, na interação
entre esses universos vastos de pesquisas e experiências vividas podemos ainda descobrir
o fio invisível que permanece ligando essas interações entre o rural e o urbano no mundo
contemporâneo.
5
Nesse sentido, o antropólogo em campo busca reunir um vasto material que
possa registrar as diferenças entre essas populações de acordo com a observação da
organização social, do sistema de parentesco, do idioma daquela população, o modo
como manejam alimentos, a maneira de se relacionar com os animais, as práticas rituais
de magia e religião, seus sentidos de justiça e direito, assim como diferentes outros
aspectos da vida social de um povo, sempre respeitando suas diferenças. A partir
dessas considerações iniciais e da breve apresentação desses conceitos elementares e
definidores do campo da antropologia, nos Tópico 2 e 3, abordaremos mais diretamente o
urbano e o surgimento da Antropologia Urbana.

NOTA
Sistema de parentesco: conforme bom apontamento da
antropóloga Cynthia Sarti (1992, p. 71) quando falamos em
sistemas de parentesco na antropologia estamos nos referindo as
estruturas formais de relação social, que resultam da combinação
de três tipos de relações básicas: a) a relação de descendência,
que é a relação entre pai e filho e mãe e filho; b) a relação de
consanguinidade, que é a relação entre irmãos; e c) a relação
de afinidade, ou seja, a que se dá por meio do casamento, pela
aliança. Essas três relações são básicas e o estudo do parentesco é
o estudo da sua combinação. Essas relações são a estrutura formal
universal. Qualquer sociedade se forma pela combinação dessas
três relações. A variabilidade está em como se faz essa combinação.

2 O URBANO
Caro acadêmico, até aqui podemos considerar que você já está um pouco
familiarizado com o universo da antropologia, uma riqueza sem fim de informações e
conhecimento das formas de vida, agora vamos nos aprofundar um pouco no contexto
da antropologia urbana, uma subárea da antropologia, na qual se dará nossa disciplina.

Uma dimensão interessante é procurar entender as transformações sociais


advindas com o meio urbano, isto porque tais transformações definiram uma importante
agenda de estudos que cobre, principalmente, processos de mudanças sociais ocorridas
após o surgimento do sistema capitalista que foi impulsionado pela Revolução Industrial.
Assim, as cidades industriais são uma consequência desse intenso processo de urbanização
que marca o século XIX em termos de infraestrutura do espaço social, mas também
mudanças de comportamento e interação entre pessoas nesse novo contexto o que nos
leva ao estudo aprofundado das diferenças, dos conflitos, das novas formas de sociabilidade
nesse ambiente e muitas outras dimensões da vida social agora no meio urbano.

6
DICA
FILME TEMPOS MODERNOS – CHARLIE CHAPLIN

Modern Times (Tempos Modernos) é um filme do cineasta Charlie Chaplin, no qual seu
famoso personagem "O Vagabundo" tenta sobreviver em meio ao mundo moderno
e industrializado. Lançado em 5 de fevereiro de 1936 (Nova Iorque), com produção,
roteiro, direção e música (Smile) composta por Charlie Chaplin.

Fonte: https://bit.ly/2ErrXxM. Acesso em: 3 ago. 2022.

Assim, um dos principais objetos de interesse de investigação científica foram


as “cidades” e o “urbano”, isto porque efeitos como aglomerações, moradias, jornadas
intensas de trabalho, precarização da mão de obra eram notáveis nas formas de
organização social da vida urbana.

As mudanças profundas oriundas desses acontecimentos modificaram a vida em


sociedade não só em aspectos relacionados ao espaço, ao ambiente das cidades, mas
também naquilo que se refere ao modo de habitar e os próprios indivíduos.

Cientistas sociais acompanharam os primeiros efeitos dessas mudanças nas


relações sociais e nas estruturas do ambiente. A partir de então a questão urbana
tornou-se uma preocupação por parte de uma rede de pesquisadores interessados nas
mudanças advindas desse processo de inchaço nas grandes cidades e, do mesmo modo,
como isso impactava na vida rural. Muitos cientistas sociais foram contra os processos
intensos de urbanização defendendo que a vida rural com hábitos e população mais
homogêneas era uma forma de vida cujos laços sociais eram mais intensos e detentor de
maior qualidade. Naquele momento, a vida rural passou a ser modificada com eventos
como a migração e o êxodo cada vez mais presentes e intensificados.

7
Em 1903, o sociólogo alemão George Simmel publicou um interessante ensaio
intitulado “A metrópole e a vida mental”, e trouxe para o debate científico no campo
das ciências sociais essas preocupações em torno das mudanças no binômio rural e
urbano. Simmel apresentou um impressionante olhar sobre os estilos de vida urbanos e
a questão da personalidade nesse contexto. Sua contribuição observa a organização
social e as práticas culturais que caracterizavam as áreas urbanas como consequência da
grande aglomeração de pessoas. Em sua rica descrição, somos instigados a perceber as
características físicas da cidade em correlação com as características sociais de seus
habitantes.

Simmel, que era filho de industrial, observava as transformações a partir da


cidade de Berlim, onde nasceu. Percebia a mudança de sua cidade natal a partir de uma
moderna aglomeração urbana, caracterizada pelo enorme fluxo de pessoas, presença
intensa de comércios, práticas de prostituição, assim como uso de bondes e elevada
circulação de dinheiro. Para Simmel, Berlim era um modelo da cidade moderna, mais
até do que Londres, por ter experimentado um processo tardio de industrialização.
A partir da observação sistemática, isto é, uma observação regular da metrópole, o
sociólogo alemão encontrou o cenário de seu diagnóstico a respeito da modernidade.
Naquele momento Simmel estava diante de um “campo empírico” de experiências de
proximidade e a partir disso foi possível elaborar suas reflexões com base nas tensões
modernas entre a experiência do indivíduo e da sociedade ou, dito de outro modo, “a
base psicológica do tipo metropolitano de individualidade consiste na intensificação dos
estímulos nervosos, que resulta na alternação brusca e ininterrupta entre estímulos
exteriores e interiores” (SIMMEL, 1979, p. 14).

A descrição minuciosa de Simmel forneceu bases teóricas e analíticas essenciais


para o desenvolvimento de uma sociologia urbana, posteriormente, também de uma
Antropologia Urbana. Além de observar a sociabilidade ali contida, Simmel aprofundou
sua análise das emoções e os sentimentos que estavam presentes naquela intensa
mudança na vida citadina. Era assim que seu texto se tornava um clássico para os
estudos de Antropologia Urbana, nos fazendo mergulhar em uma análise contundente
das emoções e as subjetividades no interior de uma grande metrópole.

ESTUDOS FUTUROS
Abordaremos o estudo da migração e do êxodo rural no Brasil na
próxima Unidade deste livro, quando aprenderemos Antropologia Rural.

8
Sua narrativa coloca em evidência aspectos como “a intensificação da vida
nervosa”, seu fundamento psicológico e as consequências de uma vida agitada, com
alta concentração de indivíduos e que produz menos consciência das diferenças. O
raciocínio sociológico de Simmel atua em distinções importantes para compreender
a dinâmica do fenômeno urbano, quando ele problematiza diferentes dicotomias
(individuo/sociedade, cidade/campo, intelectual/sentimental, cultura subjetiva/cultura
objetiva). Uma das principais contribuições está na maneira de observar as emoções
oriundas do urbano, da cidade, da intensa relação de indivíduos que passam a naturalizar
um ritmo de vida acelerado, um código temporal medido em relógios para marcar o
tempo do trabalho, a experiência coletiva de deslocamento em transportes coletivos,
quando passa a ser dominante os “egoísmos econômicos” e, portanto, a presença mais
comum do sentimento de indiferença.

O dinheiro, também um objeto de sua análise, é um elemento importante para


entender a vida urbana, isto porque, por meio desse novo sistema econômico, o dinheiro
valida a relação de interdependência que se constitui essencial no mundo da metrópole
urbana, pois o indivíduo que agora passa fazer parte dessa dinâmica urbana está imerso
em um tipo de economia monetária que lhe confere um conjunto de práticas essenciais
ao seu cotidiano: “comparações, cálculos, determinações em numéricas e reduções de
valores qualitativos e valores quantitativos” (SIMMEL, 2013, p. 315). O dinheiro será um
meio de acesso à bens, mas também uma forma de medir valor para objetos, pessoas e
relações, além de abrir um campo vasto para as formas de consumo.

A cidade produz efeitos na vida urbana, na sociabilidade e mesmo na psicologia


humana. A “atitude blasé”, por exemplo, é uma consequência da vida urbana e produto
de um excesso de estímulos nervosos, “é o embotamento em relação a distinção
das coisas”, aponta Simmel (2013, p. 317). Assim, um indivíduo que seria visto como
antissocial pois não se relaciona com os outros, na verdade estabelece uma relação
de indiferença com a multidão, ele caminha no meio dela, mas não interage com ela. O
indivíduo urbano na metrópole faz questão do anonimato, é indiferente, não manifesta
suas reações. Vejamos um exemplo disso. Um dos acontecimentos mais comuns no
cotidiano de uma metrópole urbana é estarmos nos deslocando de casa para o trabalho
ou de casa para a escola e somos surpreendidos por um acidente de carro no meio de
nosso percurso habitual. Um indivíduo de “atitude blasé” não vai parar ou interromper seu
percurso para observar, pelo contrário, ele verá o acidente, mas vai seguir adiante sem
estabelecer uma intencionalidade sobre aquele evento.

Em outras ocasiões, podemos ter como exemplo, aquele indivíduo que


caminha livremente pela cidade para “flanar”, isto é, sem pretensão de estabelecer
uma intencionalidade de encontro com outros indivíduos, mas apenas estar por estar
caminhando pela rua. Estas seriam análises feitas por Simmel (2013) sobre o urbano
e como ele produz novos acontecimentos na vida social, o autor nos apresenta as
experiências e percepções da singularidade nesse novo lugar. O indivíduo citadino é
então apresentado pelo autor como aquele que cultiva o anonimato e o individualismo,
às vezes são considerados como “frios e sem ânimo” ou como indivíduos que nutrem

9
uma “atitude de reserva” no meio social. Nas descrições do contexto de surgimento
do fenômeno urbano, a vida na cidade é definida por uma alta diferenciação social,
e Simmel (2013) destaca um conjunto de práticas de sociabilidade, assim como de
atitudes psicológicas (“leve aversão”, “repulsa mútua”, “indiferenças” e “aversões”) que serão
próprias desse meio urbano.

Menos interessado em emitir um juízo de valor sobre essas mudanças, Simmel


(2013) nos estimula a pensar os efeitos sociais dessas transformações no meio urbano,
considerando que a presença intensa de um quantitativo elevado de indivíduos no
mesmo espaço gera novas formas de interação que terão efeitos em escala individual e
coletiva. Isto deve ser mais bem compreendido como um efeito da forma de relação social
experimentada na cidade moderna. Não é ausência do “social” ou do “coletivo”, mas
uma nova morfologia do social e de uma presença “quantitativa” do coletivo. Para Simmel
(2013), um dos sentidos adquiridos pela vida na metrópole é o conjunto de transtornos e
adversidades para acomodar seus acontecimentos, múltiplos, descontínuos, acelerados
e inesperados, sempre orientando o indivíduo a ter a razão como precedência para
organizar sua vida na metrópole.

A seguir, conheceremos detalhes desses processos a partir do estudo de outras


categorias analíticas importantes para o campo da Antropologia Urbana na forma como
se desenvolveu no Brasil.

3 AS CIDADES
Caro acadêmico, a reflexão que propomos aqui permitirá a você o entendimento
da complexidade das mudanças da cidade moderna, principalmente nas grandes
metrópoles, ao observarmos como esse evento influenciou decisivamente para a
consolidação de pesquisas e escolas de investigação dessa área de conhecimento. A
segunda metade do século XIX marca profundamente o interesse de diversos estudiosos
pertencentes a áreas diferentes na busca pelo entendimento do que estava acontecendo
no contexto de grande efervescência por onde surgiam as grandes metrópoles urbanas
e é aqui que a cidade assume relevante interesse, tratada enquanto uma categoria de
análise científica e um objeto de investigação desse fenômeno urbano.

NOTA
Na antropologia, usamos o termo morfologia social para descrever
de que maneira uma sociedade está estruturada. O estudo dessas
estruturas permitiria ao antropólogo entender como funcionava
e de que maneira estariam interligadas as diferentes partes que
integram uma sociedade.

10
Em seu famoso ensaio “A cidade: sugestões para a investigação do comporta-
mento humano no meio urbano”, publicado originalmente em março de 1916, Robert Ezra
Park definirá cidade como um “estado de espírito, um corpo de costumes e tradições
e dos sentimentos e atitudes organizados, inerentes a esses costumes e transmitidos
por essa tradição”. Em outras palavras a cidade é para este autor um laboratório para
entender os processos sociais, Park (1979, p. 26) ainda diz “a cidade não é meramente
um mecanismo físico e uma construção artificial. Está envolvida nos processos vitais das
pessoas que a compõem; é um produto da natureza, e particularmente da natureza
humana”.

Ao mesmo tempo que alguns estudiosos precipitam uma definição de cidade


como uma unidade geográfica e ecológica de um tipo social produto da ação humana,
ela também é percebida como o lugar das transações políticas e econômicas e de
construção dos novos modos de vida. Desse modo, Park insiste em nos aproximar de
uma definição de cidade que procura considerar nuances presentes nesse meio social. Ele
observa as mudanças de densidade populacional, assim como o espalhamento das vias
de circulação para automóveis, a construção das rodovias, a expansão das profissões, e a
intensidade do fluxo urbano que caracterizam o perfil das cidades.

A partir desse ponto de vista podemos perceber alguns fatores que são
considerados primários na abordagem da cidade, aquilo que motivou um intenso grupo
de pesquisadores em uma investigação científica sobre tais transformações.

Hoje podemos facilmente entender as rotinas de circulação, navegação e


movimento do trânsito na cidade urbana, nas grandes metrópoles, porém naquele
momento isso não era tão simples. Fatores como transporte e comunicação, por
exemplo, eram importantes dimensões da vida social, pois interferiam na circulação,
a mobilidade e o acesso da casa ao trabalho na vida urbana, à época serviços como
as linhas de bonde eram mais popularizadas, serviam para deslocar os trabalhadores
em seus destinos e objetos como o telefone, os jornais impressos e a publicidade
organizavam a comunicação e a propagação de informações. Tudo isso fazia parte de
um conjunto muito recente de objetos, formas de viver na metrópole ou de organizar
o tempo que não faziam parte da rotina ou dos modos de viver encontrados na vida
rural. Só para que você, acadêmico, tenha uma ideia mais clara do que significam essas
transformações, tente exercitar o pensamento comparativo, as diferentes maneiras de
se comunicar que existiam antes e que temos agora.

Se antes da revolução industrial o uso de animais para transporte era mais


comum, com a chegada da indústria automobilística vamos aprimorando o uso de
transportes introduzindo o bonde, o ônibus, o carro particular, o carro de aluguel,
o táxi, o metrô, o trem, dentre outros. Na comunicação ainda é mais interessante se
considerados a presença dos smartphones que tudo podem fazer a um toque das mãos,
mas antes a comunicação era por cartas, correspondências, anúncios públicos em
jornais impressos, panfletos ou recados.

11
A Revolução Industrial foi um acontecimento histórico que revolucionou as
formas de viver em sociedade, transformando aspectos físicos, espaciais e coletivos
como também aspectos da vida mental, da subjetividade, das emoções e moralidades
entre os indivíduos. De acordo com o antropólogo brasileiro Gilberto Velho, no Brasil, até
mais ou menos os anos 1970 os eixos de pesquisa dominantes na antropologia eram a
etnologia, as relações interétnicas e os estudos camponeses ou estudos tradicionais,
todos eles estavam dentro dos chamados “estudos de comunidade”. Conforme veremos
adiante foi mais precisamente neste período que os estudos urbanos ganharam outro
enfoque, assim a cidade passou a ser um objeto de interesse científico e um campo
fértil de estudos para antropólogos brasileiros interessados em estudar as “redes” e os
“sistemas de relações” que se referem às interações sociais (VELHO, 2003, p. 11-12).

Diferente das etnografias clássicas entre os Trobriand ou os Nuer, na antropologia


urbana a descrição das práticas culturais se torna um desafio ao antropólogo porque
nas cidades a cultura é organizada de formas muito diferentes e concentram uma
riqueza de conhecimento sobre pessoas, espaços e modos de habitar centrais para
o entendimento do meio urbano. Não por acaso Gilberto Velho (1987) escreve, em
“Observando o familiar”, a respeito da dificuldade em estabelecer métodos e técnicas
de pesquisa que captem a riqueza dessa diversidade pois estamos tão imersos na vida
citadina, que é muito provável que jamais pensemos sobre “o que sempre vemos e
encontramos pode ser familiar, mas não é necessariamente conhecido”.

No Brasil, após os anos 1970 a cidade passará a ser considerada um objeto


para a investigação antropológica que se orienta pelo estudo das relações e interações
com outros atores sociais. De acordo com o antropólogo brasileiro Guilherme Magnani
embora a cidade fosse lugar de importantes etnografias antes desse período, seu foco
estava no “estudo de culturas indígenas e seus contatos com a civilização; o estudo das
culturas caboclas; e o estudo da aculturação de certos grupos étnicos e raciais, como
negros, japoneses, alemães etc.” (MAGNANI, 1996, p. 8).

As cidades se tornariam um grande desafio científico, pois agora tinha-se um


laboratório de estudos e problemáticas que poderiam ser investigadas a partir de uma
perspectiva antropológica. Este novo espaço social trouxe junto com suas modificações
espaciais as mudanças internas na vida dos próprios indivíduos.

É importante também termos clareza de que a cidade é uma categoria


polissêmica, isto é, varia de um lugar para outro mesmo que possam ter aqueles
elementos comuns a cada uma delas, sempre encontraremos singularidades a respeito
de cada uma delas.

Nesse sentido, a cidade é parte de uma reflexão antropológica sobre o urbano


e compreende um conjunto de informações de sequências da vida urbana que são
coletadas pelo antropólogo e que representam apenas uma ínfima parte desse todo
social do mundo urbano. Não é por acaso que a antropologia urbana brasileira crescerá
com bastante fôlego em pesquisas empíricas, pois há um universo de conhecimento

12
de narrativas, experiências, práticas, arranjos de organização social e de gestão
administrativa que varia de uma cidade para outra. O conjunto dessas informações
possibilita, do ponto de vista antropológico, um conhecimento vasto e diversificado a
respeito dos diferentes modos de vida no meio urbano. Qual seria, então, a contribuição
específica da antropologia nesse entendimento da cidade e o meio urbano? Podemos
definir dois critérios iniciais, a saber, o primeiro responde ao tipo de trabalho de
investigação científica que se ocupa das relações em escala microssociais.

O segundo, está mais associado ao modo de fazer pesquisa etnográfica em que


o antropólogo baseia suas atividades de pesquisa em uma coleta de dados de primeira
mão, isto é, ele está em campo e faz suas próprias perguntas, observa e interage face
a face com a população e o local de sua observação. Essa prática científica oferece
uma percepção mais apurada sobre o contexto pesquisado, pois baseia-se em uma
relação direta com os interlocutores da pesquisa. Desse modo, a cidade aparece como
um elemento chave para a compreensão de uma realidade cada vez mais complexa e
heterogênea, em termos de indivíduos, práticas culturais e questões sociais. Conforme já
vimos com Simmel (1979) e Wirth (1979) isso pode aparecer na descrição de aspectos de
personalidade e hábitos culturais, como também revela nuances da vida social.

NOTA
Quando nos referimos ao termo microssocial, estamos falando dos
processos por meio dos quais as pessoas constroem suas relações de
interação, em perspectiva de escala, nos referimos às interações face
a face entre pessoas de uma mesma família, grupo juvenil, vizinhança
e assim por diante para estudar a integração do indivíduo e sociedade.
São relações mais próximas, rotineiras, entre poucos parceiros. Para
entender melhor, notem que usamos o termo macrossocial quando
queremos designar outras relações, aquelas que dizem respeito ao
Estado, sistema político ou modelo econômico, estas são relações
estruturais, que estuda a estrutura da sociedade buscando entender
o seu modo de funcionamento, quais os mecanismos e as partes que
compõem uma sociedade e como se articulam.

A cidade não somente é, em graus sempre crescentes, a moradia e


o local de trabalho do homem moderno, como é o centro iniciador
e controlador da vida econômica, política e cultural que atraiu as
localidades mais remotas do mundo para dentro de sua órbita e
interligou as diversas áreas, os diversos povos e as diversas atividades
em um universo” (WIRTH, 1979, p. 91).

Para termos uma noção mais concreta dessas múltiplas percepções que a
cidade pode revelar da vida social, consideremos a coexistência de práticas individuais
inseridas em um espaço social e culturalmente diferente daquele encontrado na vida
rural. Se, por um lado, aqueles indivíduos que migram da zona rural para o meio urbano

13
veem a cidade como uma fonte de oportunidades, liberdade e futuro da modernidade,
noutros termos, “a cidade é encarada como um espaço de liberdade e possibilidades, na
medida em que o emprego regular é visualizado como uma segurança e independência,
inexistentes no campo” (OLIVEN, 2007, p. 36).

No Brasil, o fenômeno do êxodo rural marcou significativamente o contexto


e a organização social do país, traduzindo um longo processo entre os anos de 1960
e 1980 em que indivíduos e famílias inteiras abandonaram suas residências fixas na
vida rural com destino às grandes metrópoles em busca de melhores oportunidades
de sobreviver – principalmente aquelas populações mais empobrecidas do interior do
Brasil, que sofrendo com a seca, como foi o caso da região nordeste, ou com a escassez
de oportunidades, como é o caso da região norte, buscavam nas cidades em grande
desenvolvimento um destino para modificar sua vida e de sua família. Nesse período, em
torno de 27 milhões de brasileiros saíram da zona rural para a zona urbana.

O crescimento da indústria e das próprias cidades eram vistas como oportunidades


de trabalho para esses trabalhadores que agora estavam despossuídos de oportunidades
de subsistência. Sem esquecermos que também nesse período o intenso processo de
mecanização das atividades produtivos substituíram a mão de obra humana por máquinas
(ALVES; SOUZA; MARRA, 2011).

Essas são mudanças significativas da realidade brasileira e os antropólogos que


antes se mostravam preocupados se teriam ou não o que pesquisar após os intensos
processos de urbanização da vida social, passaram a perceber que agora deveriam lançar
seu olhar sobre os acontecimentos do cotidiano vivido nas grandes cidades, procurando
entender como esses indivíduos que passam a habitar a cidade interpretam, agem,
escolhem, modificam ou guardam traços pessoais de sua vida rural no espaço urbano.
Nesse sentido, a antropologia urbana dava seus primeiros e principais passos na direção de
uma renovação da própria disciplina que agora permitia um desafio de compreender a
realidade urbana assim como estavam acostumados a fazer em relação às sociedades
“simples”, seu clássico objeto de estudo.

Há também novidades nesse novo fazer antropológico na cidade, em que pese


o ajuste das lentes de observação e pesquisa sobre os acontecimentos no universo de
indivíduos que compartilham seu local de vivência, fala o mesmo idioma e compartilha
um universo de práticas culturais comuns. Assim, os antropólogos urbanos passaram a
aplicar os métodos de pesquisa próprios da antropologia, a etnografia e a observação
participante (MALINOWSKI, 1978), para estudar aspectos da vida social no contexto urbano.
Assim, definiam duas importantes linhas de pesquisa: aquela que procurava colocar
ênfase nos indivíduos e suas práticas sociais e outra que dava ênfase nos estudos do
território onde estavam situados, entendendo a cidade e o urbano como aquele espaço
social constitutivo da ação desses indivíduos.

14
Caro acadêmico, você já pode se familiarizar um pouco com as principais re-
ferências e aspectos das mudanças com a introdução da vida urbana, olhamos para
os fenômenos sociais mais amplos e nos aproximamos de um conjunto de categorias
conceituais importantes para entendermos essas mudanças e nos aproximar de um
exercício reflexivo em que de forma autônoma você possa refletir sobre essas transfor-
mações usando esse mapa conceitual. Agora, no próximo, vamos fazer um mergulho
nesse sujeito social, aquele indivíduo que chega no meio urbano e como ele é afetado
por esse novo lugar.

4 OS SUJEITOS
Robert Ezra Park (1979, p. 28), proeminente representante dos estudos urbanos
desenvolvidos na renomada Escola de Chicago, afirmava em 1916 que “o homem
civilizado é um objeto de investigação igualmente interessante, e ao mesmo tempo sua
vida é mais aberta à observação e ao estudo”. Nesse sentido, o indivíduo urbano passou
a ser visto como um sujeito dotado de diversidade cultural, e justamente por isso,
renovava o interesse e a atualidade da Antropologia e do fazer antropológico que em
muito poderia contribuir para entender os problemas urbanos postos com a chegada
em massa de indivíduos às grandes cidades.

Os clássicos estudos de Simmel e Wirth, aqui já mencionados, nutriam pesquisas


com reflexões a respeito desse processo de individualização nas cidades, considerando a
questão do individualismo urbano uma importante porta de entrada para compreender o
modo de vida urbano.

Se tomarmos o exemplo da cidade de Chicago, na década de 1930, facilmente


entenderemos quais as motivações de estudos nesse segmento. Ora, nesse período,
Chicago era a segunda aglomeração urbana dos Estados Unidos e a quinta do mundo
com uma população estimada em três milhões de habitantes, vindos de todas as partes
do país e do mundo. Problemas sociais como segregação, delinquência, criminalidade,
desemprego, formação de guetos, logo se tornariam temas pungentes de investigação.

O que caracteriza o fazer etnográfico no contexto da cidade é o duplo movimento


de mergulhar no particular para depois emergir e estabelecer comparações com outras
experiências e estilos de vida – semelhantes, diferentes, complementares, conflitantes –
no âmbito das instituições urbanas, marcadas por processos que transcendem os níveis
local e nacional (MAGNANI, 1996, p. 3).

Agora falávamos de cidade como o mundo social do indivíduo urbano,


este não era mais considerado um mero estrangeiro individualista, e as etnografias
passaram a mostrar a diversidade de sujeitos sociais que estavam reunidos em
torno de uma mesma localidade. Os estudos antropológicos demonstrariam que a
cidade passaria a constituir seu próprio modo de vida urbano, no qual há uma vasta
heterogeneidade de sujeitos como o migrante, o estrangeiro, o malandro, o criminoso,
15
o desviante, o sofisticado, o burocrático, todos tipos sociais de um lugar próprio aos
projetos de interação do mundo urbano. O grau de sociabilidade é muito variável e vai
sendo moldado com o passar do tempo e o habitar das cidades urbanas, se no início do
processo de intensa urbanização os indivíduos eram percebidos como um tanto mais
impessoais em relação uns aos outros, com efeito, o passar do tempo mostra novas
formas de estabelecer sociabilidade e integração afetiva nesse mundo urbano.

As redes de parentesco e amizade ganham novos contornos sociais disputando


a intensa impessoalidade comum em lugares como aeroportos, estações de metrô
ou rodovias, exemplos de uma intensa e concentrada multidão. Nesse momento já
encontramos espaços de convivência para a sociabilidade como casas de show, casa
de terreiro, igrejas, centros comunitários, clubes de lazer que se organizam e ancoram
as relações sociais de afinidade e pertencimento com uma familiaridade já configurada
do espaço urbano, da cidade vivida. Muitos jovens passaram a compartilhar espaços
comuns para viverem suas práticas de lazer e afetividade.

As famílias de classe média acostumaram-se com a ida frequente aos clubes


de lazer particulares, os praticantes de religiões de matriz africana consolidavam seus
terreiros e casas de santo como espaços de sociabilidade e práticas de rituais, jovens de
diferentes sexualidade passaram a frequentar e construir espaços para práticas de uma
sexualidade livre em clubes noturnos, velhos senhores frequentemente passaram a se
encontrar na praça do bairro para jogar dominó e cartas, assim como foi possível notar
a formação de bairros de acordo com o pertencimento étnico, a exemplo do bairro da
Liberdade em São Paulo.

NOTA
“A sociabilidade é a forma pela qual os indivíduos constituem uma unidade
no intuito de satisfazer seus interesses, onde forma e conteúdo são na
experiência concreta processos indissociáveis” (SIMMEL, 2006, p. 65).

16
INTERESSANTE
Que tal conhecer um pouco mais das questões de gênero, sexualidade e antropologia?
Espia essa dica de Podcast:

Gênero, Sexualidade, Antropologia, Quadrinhos | HQ Sem Roteiro Podcast:


Monique Malcher estudou Jornalismo na Universidade da Amazônia
(UNAMA) e se formou com um TCC sobre Superman. No entanto, muito
do que ela lia nos quadrinhos de super-heróis não a tocavam em sua
realidade, não por serem obas de ficção, mas por não dialogarem
com quem ela era. Até que Fun Home, HQ da estadunidense Alison
Bechdel, apareceu em suas mãos e sua vida mudou. Monique hoje faz
mestrado em Antropologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA) com
um estudo sobre quadrinhos, gênero e sexualidade, focado principalmente
nas graphic novels Fun Home e Azul é a Cor Mais Quente, da francesa Julie
Maroh. No HQ Sem Roteiro Podcast de hoje, conversamos sobre etnografia,
performance de gênero, heteronormatividade e muito mais. Taca o play!

Fonte: https://apple.co/3cLyc1D. Acesso em: 20 jul. 2022.

O que se percebe com a intensificação da urbanização é a presença de novas


estratégias de organização dos laços familiares e afetivos na cidade. Assim, surge
também a necessidade dos citadinos de estabelecer uma relação com o espaço, a
cidade, o urbano e suas atividades de simbolização, rituais ou festivas. Para os sujeitos
sociais a cidade pode ser familiar, mesmo mantendo uma relação descontinuada entre
o conhecido e não conhecido, entre o familiar e o distante. Dessa maneira, a tensão
entre mundos que pareciam distantes e incompatíveis passará a determinar novas
possibilidades de conexão, relações e pertencimentos que determinam à nossa maneira
de estar na cidade.

Identidade e alteridade passam a fazer parte de um binômio característico da


antropologia urbana, onde se percebe por quais condições e possibilidades é possível
vivenciar a vida citadina com proximidade e criação de vínculos. A construção da
identidade e a criação de espaços e guetos que definem um grupo social também é
uma forma de dar sentido e apropriação ao espaço da cidade onde esses sujeitos vivem.
As chamadas culturas urbanas revelam na verdade um conjunto robusto de diferenças
entre grupos sociais que fazem parte desse meio urbano. Eles podem aparecer como
estratégias de inclusão e participação ou como agrupamentos que se conectam e
praticam exclusão por meio de “bloqueios culturais”. Nesse sentido, cultura seria definida
como todo o modo de vida, seus hábitos, suas instituições, seus idiomas e formas de
linguagem, bem como uso de símbolos e códigos escritos e morais. Na antropologia
urbana, a partir da observação dessas mudanças e formação das metrópoles urbanas, era
possível descrever e conhecer uma riqueza de práticas, grupos e comunidades culturais
ali presentes.

17
A essa altura cabe considerar que aspectos foram sendo transformados entre
o contexto de surgimento das cidades industriais e as cidades urbanas da maneira
como habitamos hoje em dia. No início, as pesquisas colocavam uma ênfase a respeito
da questão macrossociológica procurando entender as instituições, a estrutura e os
componentes que fazer o urbano e a cidade, deixando de lado o interesse pelos sujeitos
em sua dimensão microssociológica.

A maioria das descrições davam ênfase ao caráter estrutural que modificava


e introduzia outros modos de vida no mundo urbano, mas a antropologia urbana no
Brasil passou a dar visibilidade a um conjunto de vozes de moradores da cidade que são
diferentes. Assim, o enfoque será para uma análise em microescala da questão urbana.

Essa mudança de perspectiva fará com que a antropologia urbana revise


questões epistemológicas a partir da diferença entre uma antropologia da cidade,
aquela que se afina com à sociologia urbana e que pensa a cidade a partir de sua
totalidade, e a antropologia na cidade que tentará mostrar as dinâmicas da vida
urbana e seu cotidiano a partir das relações ali contidas, olhando para os atores sociais
mais do que para a estrutura da cidade.

É assim que há uma mudança de escalas e uma consolidação de uma agenda de


pesquisas em antropologia urbana no Brasil que dará revelo às múltiplas manifestações
culturais, a diversidades de grupos e comunidades sociais no meio urbano, práticas de
resistências e aos conflitos urbanos.

18
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:

• O contexto de surgimento dos estudos urbanos com o advento da Revolução Industrial e


do Sistema Capitalista foi modificando o campo de estudos da antropologia clássica
para as novas formas de vida no meio urbano.

• Os principais conceitos da antropologia como sociedades simples e complexas,


etnocentrismo, relativismo cultural, alteridade, assim como a importância do método
etnográfico e o uso da etnografia a partir das contribuições de Bronislaw Malinowski e a
técnica da observação participante.

• A definição de categorias centrais do campo da antropologia urbana como cidade


e urbano. Além disso, estudamos as mudanças ocorridas na formação das cidades
e do modo de vida urbano interferindo sobre estratégias de organização dos laços
familiares e afetivos na cidade e, como apontado por George Simmel, os impactos da
metrópole sobre a vida mental.

• Algumas das principais influências teóricas do campo de formação da Antropologia


Urbana americana como Robert E. Park e Louis Wirth, assim como as contribuições de
George Simmel e no Brasil a importância dos estudos de Gilberto Velho e Guilherme
Magnani.

• As contribuições da Escola de Chicago e da Escola de Manchester na construção e


consolidação de pesquisa sobre o fenômeno urbano no Brasil. Estudamos também
a importância dos estudos de interacionismo simbólico, pragmatismo e as análises
situacionais e de redes sociais, respectivamente.

19
AUTOATIVIDADE
1 Com base em nossos estudos, há uma contribuição específica da antropologia para o
entendimento da cidade e o meio urbano. Sobre ela, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) A antropologia observa e interage face a face com a população e o local de sua


observação. Essa prática científica oferece uma percepção mais apurada do
contexto pesquisado, pois se baseia em uma relação direta com os interlocutores
da pesquisa.
b) ( ) A antropologia propõe uma investigação etnográfica baseada em análise de
dados quantitativos.
c) ( ) A antropologia inaugura o método de pesquisa chamado grupo focal e suas
primeiras pesquisas foram realizadas com sociedades primitivas.
d) ( ) A antropologia trabalha com pesquisa operacional, conta com o apoio e a decisão
de um único entrevistado para definir seu campo de pesquisa.

2 Em 1903, o sociólogo alemão George Simmel publicou um interessante ensaio


intitulado “A metrópole e a vida mental”, e trouxe para o debate científico no campo das
ciências sociais as preocupações em torno das mudanças do modo de vida entre
mundos rural e urbano. Com base nas definições dos enfoques dessa abordagem de
Simmel, analise as sentenças a seguir:

I- Uma das principais contribuições está na maneira de observar as emoções oriundas da


cidade urbana definida pela intensa relação de indivíduos que passam a naturalizar
um ritmo de vida acelerado, adotam um código temporal medido em relógios para
marcar o tempo do trabalho e afrouxa as relações sociais de amizade, família e
vizinhança.
II- A vida citadina é uma grande possibilidade de estreitamento dos laços sociais,
segundo Simmel, os indivíduos tendem a exercer mais livremente os afetos e
passam a maior parte de seu tempo flanando em parques e caminhadas para estar
por estar com quem pessoas que querem se relacionar.
III- A experiência coletiva de deslocamento e o inchaço das cidades modernas, favorecem
o excesso de individualismo e isso passa a ser dominante na formação psíquica e
social do indivíduo, quando os “egoísmos econômicos” emergem e o sentimento de
indiferença se manifesta em atitude blasé.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

20
3 “O urbanismo como modo de vida” do sociólogo estadunidense Louis Wirth (1979) é
considerado um importante estudo para a abordagem do urbano na antropologia
brasileira. O autor é considerado um dos mais notáveis estudiosos do fenômeno
urbano nos Estados Unidos e foi muito influenciado pela sociologia de Simmel. A
partir das contribuições de Wirth, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as
falsas:

Fonte: WIRTH. L. O urbanismo como modo de vida. In: VELHO, O. (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro,
Zahar Editores, 1979. p. 89-112.

( ) A entidade tem como objetivo a inserção da Engenharia de Produção na comunidade


científica e produtiva no sentido de promover o desenvolvimento social.
( ) A ABEPRO Jovem é responsável pela congregação de todos os profissionais inativos
de Engenharia de Produção e busca articular com empresas e instituições de ensino.
( ) A ABEPRO tem como missão assegurar à sociedade a busca permanente de uma
prática correta e responsável dos profissionais de Engenharia de Produção.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 A antropologia é uma ciência social que pode ser definida pelo estudo da diversidade das
formas de vida. Uma das grandes áreas de concentração é a Antropologia Urbana
que surge de um contexto social de extrema mudança. A partir disso, disserte sobre o
fenômeno que deu origem ao subcampo da antropologia urbana.

5 Existem muitas estratégias de pesquisa possíveis de serem adotadas nas atividades


de investigação científica da antropologia. A etnografia é uma delas. Nesta proposta,
Bronislaw Malinowski é considerado um dos principais autores da antropologia e é
também lembrado pelo seu método de pesquisa. Neste contexto, disserte sobre os
princípios que fundamentam as relações de pesquisa em antropologia, citando os
principais conceitos antropológicos.

21
22
UNIDADE 1 TÓPICO 2 —
ENTRE ESCALAS E ESCOLAS DE
ETNOGRAFIA URBANA

1 INTRODUÇÃO
O termo “antropologia urbana” designa uma subárea da antropologia que, no
Brasil, tem seus primeiros estudos na década de 1940 com os chamados “estudos de
comunidade”. Tais estudos foram fortemente influenciados pela tradição de estudos da
renomada “Escola de Chicago”, nos Estados Unidos, cuja principal característica era o
interesse por uma investigação antropológica sobre as cidades e as mudanças a partir
da urbanização. Naquele contexto fatores relacionados às transformações sociais,
econômicas e culturais que marcaram o final da Segunda Guerra Mundial, sobretudo,
após os anos 1960, contribuíram para um inovador ponto de reflexão acerca das
condições de vida no contexto da modernidade.

Conforme vimos até aqui a ideia de uma antropologia urbana veio de uma
preocupação com aspectos do dia a dia nas cidades industriais, principalmente
relacionadas com fenômeno urbano em amplo desenvolvimento que acompanha eventos
históricos importantes como o enorme contingente populacional e a intensa migração
de europeus na passagem do século XIX para o século XX. A partir desse crescimento
uma série de conflitos e mudanças ocorrem na cidade e tais manifestações passam a ser
chamadas de “patologia social”, exemplo delas são a delinquência, os conflitos entre
grupos étnicos, assim como problemas de planejamento urbano como a circulação,
mobilidade e as precárias habitações (VELHO, 1979, p. 7-8). Daí o renovado interesse
por pesquisas empíricas que pudessem nutrir informações e diagnósticos acerca do que se
consolidou como “fenômeno urbano”.

Nesse contexto, a diversidade cultural, formas de vida, religiões, consumo, arte,


migração, festas, assim como a “favela” passam a ser objetos de interesse pelos quais
a antropologia pode se realizar. Nota-se, é claro, que tais mudanças acompanham uma
influência por parte do desenvolvimento da Antropologia Urbana que se faz a partir da
Escola de Chicago nos Estados Unidos e da Escola de Manchester na Inglaterra, ambas
foram recepcionadas no Brasil por duas importantes correntes teóricas capitaneadas
pelos antropólogos Gilberto Velho (1987; 2003) e Guilherme Magnani (1996; 2003). É sobre
essas escolas e as suas contribuições para antropologia urbana brasileira que falaremos
nos próximos subtópicos.

23
DICA
Que tal conhecer um pouco mais dois importantes antropólogos
brasileiros no campo da antropologia urbana? Olha, acadêmico,
aqui você encontra uma entrevista com o antropólogo Gilberto
Velho realizada em 13 de agosto de 2009 para o projeto Memória
das ciências sociais no Brasil. Confira o seguinte endereço: https://
bit.ly/3otqICO.
E não para por aí! Acadêmico, conheça um pouco mais do perfil e
da formação do antropólogo Guilherme Magnani nessa entrevista
concedida em 9 de outubro de 2017, ao projeto Memória das
Ciências Sociais no Brasil. Acesse: https://bit.ly/3cJdMpR.

2 ESCOLA DE CHICAGO
A tradicional Escola de Chicago dominou os estudos de sociologia urbana logo
das primeiras décadas do século XX, mais precisamente nos anos de 1920. Surgiu a partir
da iniciativa de um conjunto de professores e pesquisadores que estavam sediados na
Universidade de Chicago, onde surgiu também o primeiro Departamento de Sociologia
estabelecido, assim como o primeiro jornal sociológico, o American Journal of Sociology,
que passou a ser publicado a partir de 1895. A grande doação do empresário norte-
americano John Rockerfeller, investidor da indústria do petróleo, impulsionou o projeto de
formação e consolidação de um proeminente conjunto de pesquisadores reunidos em
torno das pesquisas sobre Chicago.

Figura 2 – Escola de Chicago

Fonte: https://bit.ly/3zaPBbu. Acesso em: 20 jul. 2022.

24
A fundação dessa escola está intimamente ligada ao processo de desenvol-
vimento das grandes metrópoles relacionadas com o desenvolvimento industrial. Até
1830, Chicago tinha cerca de 350 habitantes reunidos em torno de uma pequena comu-
nidade, meio século depois a cidade de Chicago expandiu-se muito rapidamente che-
gando a ter três milhões de habitantes – e, como consequência desse intenso processo
de urbanização e modernização, vieram também problemas sociais como o aumento da
pobreza e do desemprego, bem como acentuada criminalidade e delinquência juvenil,
presença de imigração, formação de guetos sociais, verticalização e gentrificação urba-
nas, segregação e violências urbanas. Todos esses problemas foram considerados pelos
estudiosos da Escola de Chicago “patologias sociais” e se tornariam objeto de interesse
e investigação por parte de seus pesquisadores.

Importantes autores que estiverem reunidos em torno da Escola de Chicago


construíram um programa e agenda de estudos do fenômeno urbano. A primeira
geração de sociólogos que integravam a Escola de Chicago era formada pelo próprio
Robert Ezra Park (1864-1944), além de nomes como Ernest Watson Burgess (1886-1966),
Roderick McKenzie (1885-1940) e William Thomas (1863-1947) e, posteriormente, Louis
Wirth (1897-1952). Muitos conceitos, teorias, estudos e métodos de pesquisa utilizados
para compreender e explicar as transformações do urbano hoje são influenciados pela
produção dessa escola.

William Isaac Thomas (1863-1947) realizou um trabalho investigação qualitativa


que privilegiava “a visão dos participantes na definição das situações sociais” a partir dos
“polacos”, em 1908 realizou sua pesquisa sobre migrantes da Europa Oriental nos Estados
Unidos. Thomas destacou-se por introduzir uma pesquisa baseada no uso de documentos
pessoais como diários, cartas, autobiografias, dossiês psiquiátricos, bem como aqueles
produzidos por outros profissionais como assistentes sociais e cientistas sociais. Um dos
seus principais conceitos foi elaborado junto com Florian Znaniecki entre 1918 e 1920,
quando afirmaram a partir de sua investigação que os processos de formação do
pensamento dos indivíduos são determinados pela interação entre o seu comportamento e
a sua situação social. A “desorganização social” sugeria, assim, que a vizinhança, isto é,
as relações ali contidas, poderiam atuar na probabilidade de um indivíduo cometer um crime.

Robert Ezra Park (1864-1944), entrou para Escola de Chicago em 1911, trazendo
sua experiência como jornalista de investigação e a forte influência das publicações
do sociólogo alemão Georg Simmel, formulou um programa de investigações que
combinava uma análise dos grupos de minorias sociais e a sua relação com o fenômeno
urbano. Sua principal característica era a realização de estudos por meio de pesquisas
qualitativas combinando ainda conceitos ecológicos para o estudo das cidades e do
urbano, assim a sociedade era entendida como um organismo social.

25
Para Park (1979), a cidade era um grande laboratório social a ser estudado, a partir
dele poderíamos conhecer o homem urbano e o seu “habitat natural”. O estudo qualitativo
da cidade captaria assim as relações sociais entre os cidadãos ali reunidos bem como o meio
social onde vivem e sua constante transformação. Foi um dos primeiros a formar seus
alunos para aplicação de pesquisas com métodos empregados pela antropologia, pois
em seu entendimento esse método possibilitava a investigação dos costumes, crenças,
valores, práticas sociais e culturais da vida social no meio urbano.

Ernest Watson Burgess (1886-1966) foi um dos pesquisadores recrutados por


Park para a formação de uma equipe de pesquisadores empíricos em Chicago. Juntos
publicaram o importante livro Introdução à Ciência da Sociologia, em 1921, abordando
temas como natureza humana, história da sociologia, interação social, conflitos,
assimilação, dentre outros. Sua contribuição vai ser decisiva para contestar o argumento
eugênico que definia os problemas sociais da vida urbana como traços de uma herança
genética. Assim, Burgess vai afirmar que é a “desorganização social” que vai produzir
patologias sociais como causas de doenças, crimes e mazelas sociais do meio urbano.
Sua pesquisa sobre criminalidade criou uma forma de medição de sucesso e fracasso
com base na observação das práticas sociais de presidiários em liberdade condicional.
Desse modo, Burgess vai demonstrar que um presidiário em liberdade provisória sem
habilidades profissionais teria uma menor pontuação para contribuir com o sucesso de
ressocialização, diferente de um indivíduo dotado de habilidades, estudo e condições
de vida que o afastem da possibilidade de reincidir na criminalidade.

Roderick McKenzie (1885-1940), Park e Burgess elaboraram o conceito de


ecologia humana formulado a partir do estudo do comportamento humano e a posição
dos indivíduos no meio urbano. Assim, nessa abordagem o habitat do homem urbano,
considerando tanto o espaço físico onde ele mora quanto as relações que ele constrói e
mantém, é um dos elementos que que determinará ou influenciar o seu modo de viver
e o seu estilo de vida. Tal perspectiva foi muito utilizada para estudos da criminalidade
e bairros considerados “perigosos”, apontando para o entendimento de que os
comportamentos considerados desviantes são produtos do meio social no qual um
indivíduo ou grupo social está inserido.

Considerado um dos mais destacados sociólogos da Escola de Chicago, Louis


Wirth (1897-1952) procurou desenvolver uma teoria sobre o urbanismo como modo de
vida, entendendo que o urbano era uma forma ecológica particular que deveria ser
estudada não só em sua dimensão econômica e geográfica, mas fundamentalmente
como um espaço social por onde irradiam ideias e práticas sociais.

A cidade era pensada como um espaço por onde se exerce influência nos
indivíduos que nela habitam, isto porque ela agrega diferentes elementos da vida social
do sujeito moderno como a moradia, o local de trabalho, a vida econômica, a vida política
e cultural agregando inclusive indivíduos em sua diversidade de atividades, mas também
de acordo com o seu pertencimento de gênero, sexualidade, raça e etnia. Para Wirth,
quanto maior a cidade maior será a “diferenciação social” expressa no afrouxamento

26
dos vínculos sociais, em uma maior competitividade social, acentuado controle dos
indivíduos e mais propensões às distorções da personalidade (anonimato, hiper
individualismo, superficialidade, baixa afetividade, menor participação social, ruptura de
laços comunitários).

A relação de proximidade entre pesquisadores do campo da sociologia e da


antropologia se faz por diferentes razões, uma delas está associada ao grande trabalho
de campo e estudos empíricos que os “etnógrafos de Chicago”, como também ficaram
conhecidos durante muito tempo, desenvolveram a partir desta consolidada escola
de estudos. Sua tradição é fortemente influenciada pelo pragmatismo, articulando a
observação direta da realidade à análise dos processos sociais urbanos. Tais circunstâncias
permitiram aos sociólogos de Chicago inovar em teorias, formulação de conceitos além de
desenvolver e renovar métodos e metodologias de análise a partir do urbano.

O principal tema produzido em Chicago era a questão urbana, assim como o


surgimento das cidades, as mudanças das paisagens das cidades e as transformações
do modo de vida no mundo urbano. Essa escola estava comprometida com o trabalho
empírico, a pesquisa de campo e a coleta de dados em primeira mão. Cientes do impacto
das transformações pelas quais vivenciavam no cotidiano da própria cidade que habitavam,
esses pesquisadores investiram em um projeto de pesquisa empírica que deslocava os pés
para fora dos gabinetes de pesquisa para que seus pesquisadores fossem eles próprios
em busca das singularidades, mudanças e problemas sociais que o fenômeno urbano
evidenciava. Nesse sentido, era considerável a experimentação realizada em termos de
métodos de pesquisa quando serviram-se fartamente da observação participante e do
método de estudo de caso para cobrir um grupo heterogêneo de pesquisas em torno da
cidade de Chicago. Era aqui que sociólogos e antropólogos se encontravam influenciados
mutuamente.

Entretanto, é importante destacar que a Escola de Chicago foi pioneira na


experimentação e combinação de métodos, se por um lado não tinha pudor em aplicar
métodos da antropologia para pensar o urbano, por outro não deixou de surpreender
ao empreender as pesquisas estatísticas combinadas com pesquisas sociais baseadas
em estudo de comunidade, quando passou a realizar mapeamentos quantitativos de
bairros em desenvolvimento, grupos sociais de imigrantes e registros de atividades até
então consideradas desviantes naquele contexto. Assim como podemos hoje identificar
uma forte tradição de estudos etnográficos em Chicago, podemos reconhecer seu
pioneirismo no trabalho de combinação entre pesquisas quantitativas e qualitativas.

Outro importante autor, Everett C. Hughes, destaca-se como um dos principais


membros da Escola de Chicago e pioneiro nos estudos de ocupações e profissões
na década de 1940. Hughes escreveu inúmeros artigos, hoje considerados clássicos,
investigando as consequências subjetivas do trabalho para o indivíduo e demonstrando
as estratégias utilizadas para buscar status, prestígio e ganhos nos locais de trabalho
(HUGHES, 1958). Hughes foi um dos primeiros a tratar a “carreira” como uma categoria
conceitual, informado pela perspectiva interacionista. No Brasil, Gilberto Velho será um
dos antropólogos influenciados pelo trabalho de Hughes.
27
Figura 3 – Gilberto Velho

Fonte: https://bit.ly/3cGc9ZY. Acesso em: 20 jul. 2022.

Para Hughes (1937, p. 404), a carreira deveria ser compreendida como uma
“sequência de papéis, status e cargos realizados pelo indivíduo”. Tal concepção incorpora
duas perspectivas de análise de uma sociologia das profissões: objetiva e subjetiva. A
primeira é aquela que corresponde ao estudo do status e dos cargos já estabelecidos
em uma determinada sociedade e a outra coloca em evidenciar a própria percepção
dos indivíduos sobre a sua própria vida, isto é, “uma perspectiva dinâmica pela qual a
pessoa concebe sua vida como um conjunto e interpreta o significado de suas diversas
características, das ações e das coisas que lhe ocorrem” (HUGHES, 1937, p. 409-410).

Resumindo uma das principais características da Escola de Chicago era o


interesse pela relação indivíduo e sociedade. Embora circulassem diferentes influências
teóricas, o interacionismo e o pragmatismo são sempre lembrados como correntes de
pensamento que atravessa gerações de Chicago e mantem sua transdisciplinaridade.
O sociólogo norte-americano Howard Becker nos alerta para as concepções polissêmicas
do conceito de interacionismo simbólico, destacando que essa perspectiva se colocava
em oposição a noções como as de organização social e estrutura social, categorias
muito comuns no pensamento dos pesquisadores oriundos de Harvard ou Columbia,
principalmente aqueles que haviam sido alunos de Robert Merton e Talcott Parsons. Assim,
o interacionismo simbólico de Chicago pode ser compreendido nos seguintes termos:

A unidade básica de estudo era a interação social, pessoas que se


reúnem para fazer coisas em comum – exemplificando com um tema
antropológico, para constituir uma família, para criar um sistema
de parentesco. Disso decorre que um sistema de parentesco é
formado pelas ações de pessoas que fazem as coisas que se supõe
que parentes devam fazer, e que, enquanto o fizerem, teremos um
sistema de parentesco. Quando não o fizerem mais, o sistema de
parentesco se torna outra coisa. Portanto, o que nos interessava
eram os modos de interação, especialmente as interações repetitivas
das pessoas, modos estes que permanecem os mesmos dia após
dia, semana após semana. Às vezes, esses modos de agir se alteram
substancialmente, devido a uma revolução ou desastre natural, mas,
outras vezes, a mudança se dá muito lentamente, à medida que as
circunstâncias se modificam. (BECKER, 1996, p. 186)

28
O sociólogo norte-americano Herbert Blumer (1900-1987) chamou de
interacionismo simbólico uma perspectiva teórica que considera o caráter processual
da ação dos indivíduos. Blumer estaria interessado na ação interpessoal, partindo da
premissa de que o indivíduo tem a capacidade única de criar e fazer uso de símbolos, por
exemplo, linguagem e comunicação. Nessa perspectiva, uma teoria da ação pressupõe
que o indivíduo pode aprender e assumir papéis moldando o “self” em uma atividade
reflexiva. Assim, ele pode apreender, moldar, formular e transformar ações sobre o seu
próprio comportamento. Exemplar disso é o uso das redes sociais hoje em dia. Pensa bem,
acadêmico, ao entrar na internet e usar as redes sociais encontramos uma infinidades
de informações disponíveis, com o passar do tempo vamos aprendendo a utilizar a
linguagem virtual, adotando formas de nos comunicar melhor e de maneira mais clara,
também vamos aprendendo que nem tudo pode ser dito ou compartilhado que há leis e
normas sociais que vão moldando a nossa forma de nos comunicar nessa nova era.

Para Blumer (1969, p. 2), os indivíduos agem em relação às coisas com base
nos significados que essas coisas têm para eles, entendendo que tais significados
derivam da interação social vivida entre os próprios indivíduos e esses significados são
controlados por meio dos processos de interpretação que um indivíduo usa para lidar
com as situações e as coisas com as quais ele interage.

Em essência, então, embora reconhecendo que as definições sociais


orientam a ação, Blumer enfatizava que o processo interpretativo
envolve mais do que uma aplicação reflexa dessas definições. Ao nos
encontrarmos em uma determinada situação, devemos decidir quais
dentre as muitas coisas presentes nessa situação são relevantes.
Temos que determinar para que objetos ou ações precisamos dar
sentido, e quais podemos negligenciar. Além disso, é necessário
descobrir quais são, dentre os muitos significados que podem ser
atribuídos a uma coisa, aqueles que se mostram mais apropriados
nesse contexto (BLUMER, 1969, p. 27).

Outra influente corrente de pensamento da Escola de Chicago é o pragmatismo


que surge no final do século XIX com Charles Peirce, William James e John Dewey.

Peirce entendia a experiência (experience) como ‘experimento


(experiment)’, ou seja, como prática de laboratório, onde os
procedimentos aos quais se quer dar atenção são preparados,
controlados e postos sob alta condição de verificabilidade. James
considerou a noção de experiência de um ponto de vista, digamos,
mais psicológico. Ele não desprezava a maneira pela qual Peirce, como
‘homem de laboratório’, via a experiência, mas trouxe o termo para
perto da noção de ‘vivência’. John Dewey, por sua vez, observando
seus dois antecessores, procurou dissertar sobre o termo experiência
de modo a torná-lo mais amplo e útil. Dewey reconduziu o termo
a seu campo primordial, o da prática social (GHIRALDELLI JUNIOR,
2007, p. 16).

29
O pragmatismo se consolidou como uma importante filosofia. Talvez porque
sua perspectiva sugere uma diversidade de verdades que podem surgir da experiência
de interação social em que linguagem, regras, atitudes são avaliadas a partir das
consequências e do valor de seu uso. Assim, para William James (1907), por exemplo,
o pragmatismo é a tentativa de interpretar cada noção traçando suas respectivas
consequências práticas.

Resumidamente, este tópico trouxe uma leitura em ampla escala daquela que
pode ser considerada a mais proeminente escola sociológica de estudos urbanos no
mundo. Há uma rica produção empírica que merecidamente poderia ser descrita não
fosse os objetivos que devemos cumprir com a nossa disciplina, isto é, conhecer a
Antropologia Urbana sob a influência dessa escola de pensamento.

Nesse sentido, antes de passarmos para o próximo tópico, lembremos pontos


centrais desse estudo, por exemplo, os principais temas encontrados na produção
empírica da Escola de Chicago foram os estudos de trajetórias sociais e urbano-
espaciais de imigrantes, as mobilidades urbanas no interior das grandes metrópoles,
os movimentos e agrupamentos de multidões, as relações sociais de vizinhança, a vida
associativa e modos de controle social nos bairros, a segregação espacial das minorias,
a criminalidade e delinquência juvenis, as gangues e guetos, as pessoas em situação
de rua e a prostituição. Ao realizar investigações desses temas, pretendia-se conhecer os
efeitos do fenômeno urbano e suas diferentes características mediante um registro
feito em escalas: local/global, rural/urbano, micro/macro, campo/cidade.

Desse modo percebemos que os efeitos do urbanismo também alcançam outras


dimensões da vida social, exemplar disso, é a divisão social do trabalho, a presença de
instituições da modernidade e a nova ordem moral em vigor nesses grandes centros.
Com isso a organização social da cidade também vai definir “regiões morais” ou “mundos
sociais”, em que há intensa presença de pequenos mundos sociais que convivem,
mas podem simplesmente não interagir. Assim, temos duas escalas em evidência, a
cidade também abriga uma ordem espacial ou noutros termos, a ecologia humana e ao
observar essas nuances entre ordem moral e espacial conhecemos as diferentes lutas
políticas e sociais que vão emergir dessa competição acirrada pela sobrevivência em
um novo contexto urbano.

Esse desenho ou mapa conceitual do espaço da cidade vai introduzir a divisão


do espaço com zonas bem caracterizadas e segmentadas, por onde podemos facilmente
identificar o local exato do centro da cidade e o que nele vamos encontrar, bem como
qual a zona de bairros residenciais, dentro dessa escala de bairros os quais seriam
aqueles mais verticalizados e os mais horizontais, onde estariam os moradores da classe
trabalhadora, onde podemos encontrar os artistas de uma cidade, bancos, escolas,
prefeituras, hospitais cada equipamento desse também agrega uma função e está em
uma zona da cidade, assim como os chamados bairros universitários, comunidades
periféricas, favelas, morros, estabelecimentos como bares, restaurantes, hotéis, pousadas,
supermercados e feiras livres.

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Tudo isso é parte dessa “ordem espacial” e que ao pesquisador interessado em
conhecer a cidade pode, por meio do interacionismo simbólico, encontrar suas zonas
fronteiriças, suas demarcações imaginadas e os sentidos próprios que os indivíduos dão
para esses contextos, é na observação das pessoas, das relações sociais, que podemos nos
aproximar do sentido forte de uma antropologia urbana a partir das lentes da Escola de
Chicago.

Talvez um dos principais legados dessa escola seja a utilização da etnografia como
método de pesquisa empírica para pesquisar a cidade e o urbano, assim como o fator de
aplicar esse método por meio de uma investigação coletiva. Desse modo, os “etnógrafos
de Chicago” contribuíram de maneira significativa para entender a cidade como um
complexo cultural, colocando atenção sobre o tempo, o espaço e as formas de interação
que nela serão encontradas e dando um passo muito importante em direção aos estudos
dos conflitos sociais a partir da análise dos desvios, conflitos étnicos, disputas por espaço,
luta de classes, comportamento político, vida associativa, ações coletivas, liberdade
sexual, expressões culturais e a heterogeneidade da vida social nas grandes cidades.

Agora que já conhecemos um pouco da Escola de Chicago, seus principais autores


e pesquisadores, bem como seus conceitos, teorias e categoriais centrais passaremos ao
estudo de outras importante corrente de pensamento e escola que vai contribuir para a
formação do campo da antropologia urbana no Brasil: a Escola de Manchester.

3 ESCOLA DE MANCHESTER
Caro acadêmico, a Escola de Manchester foi considerada outra importante
influência teórica e metodológica para a formação do campo da Antropologia Urbana, a
Escola de Manchester é uma das principais escolas de antropologia do mundo.

Seu surgimento está associado com as pesquisas desenvolvidas no instituto


Rhodes-Livingstone (atualmente Instituto Nacional de Pesquisa de Zambia). Fundado
em 1938 seus pesquisadores realizaram um conjunto robusto de pesquisas etnográficas
que cobrem o período final do colonialismo britânico e início da independência em 24 de
outubro de 1964. O instituto reunia estudos a respeito da África, durante muito tempo
foi gerido pelo governo e representantes de segmentos interessados em manter o regime
colonialista.

O estudo dos fenômenos sociais e culturais na África foram utilizados como


instrumento de estratégias políticas para alimentar o aparelho administrativo colonial
com informações de regiões de interesse econômico e político definidas como cinturão do
cobre, região central da Zâmbia e da República Democrática do Congo, que inclui a
Rodésia do Norte, hoje Zâmbia, Zimbabué e Malawi e as cidades de Ndola, Kitwe, Chigala,
Luanshya e Mufulira.

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Na época, o comércio do cobre era intenso e com ele vieram consequentes
transformações sociais decorrentes da expansão econômica diante da maior jazida de
cobre do mundo. A mineração do cobre em larga escala nos anos de 1920 acentuou o
processo de urbanização industrial da região e causou uma revolução.

Godfrey Wilson foi o primeiro diretor do instituto e realizou pesquisas dos


processos de urbanismo e urbanização que estavam se intensificando naquele momento.
Após a Segunda Guerra Mundial, Wilson se afastou do cargo por vontade própria devido
sua preocupação com as populações colonizadas. Ele tinha uma visão de que a sociedade
colonial africana tinha um espaço social muito singular onde havia, simultaneamente,
a presença de chefes políticos, aldeões, administradores distritais e mineiros do cobre.
Tal singularidade revelava também importantes questões a respeito dos processos de
mudança urbana e interesses políticos contrários aos dos administradores coloniais.

Naquele momento as mudanças sociais foram intensificadas e estavam


relacionadas também com o surgimento de novas nações na era pós-colonial. De acordo
com o antropólogo Peter Fry (2011, p. 2) “a independência das antigas colônias britânicas
era assunto de conversa, mas não de estudo propriamente dito”.

Além disso, esse período marca uma tensão política com a própria antropologia
e os membros da Escola de Manchester estavam fortemente unidos contra o racismo e o
sistema colonial, a participação deles no Rhodes-Livingstone assim como o fato de
muitos serem de origem sul-africana refletem uma posição política de oposição à
administração colonial.

A história da Escola de Manchester é confundida com a história de Max Gluckman


(1911-1975). No que diz respeito ao método de pesquisa e às questões administrativas
e políticas que ardiam na época. Gluckman foi um proeminente antropólogo que entre
os anos 1941 e 1947 esteve à frente do Instituto Rhodes-Livingstone, após esse período
é admitido como professor da Universidade de Oxford. Em 1934, Gluckman vai realizar seu
doutorado na Universidade de Oxford, como bolsista da Rhodes, é nesse momento que
ele se aproxima de Radcliffe-Brown e Evans-Pritchard, ele estava interessado no estudo
da relação entre as dinâmicas de equilíbrio e mudanças sociais na África Meridional.
Entre os anos de 1936 e 1938 Gluckman desenvolve seu trabalho de pesquisa de
campo na Zululândia, a partir do qual publica um texto considerado fundamental para
os estudos antropológicos “Análise de uma situação social na Zululândia moderna”
(FELDMAN-BIANCO, 1987).

Antes de falarmos da importância e as contribuições dessa obra para os estudos


de Antropologia Urbana, é necessário entender que sua ida para Oxford em 1949 vai
ser determinante para o sucesso da Escola de Manchester, pois será nesse momento
o surgimento do Departamento de Antropologia Social da Universidade de Manchester,
onde Gluckman reuniu um seleto grupo de alunos que viriam a contribuir para sua
abordagem política dos processos sociais.

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Gluckman foi aluno do antropólogo Radcliffe-Brown de quem herdou o método
estrutural-funcionalista que serviu de base para suas próprias pesquisas, no entanto
ele foi além na busca por uma compreensão da mudança social concebida como criação
contínua de uma estrutura social dinâmica (ERICKSON; MURPHY, 2015).

Gluckman estudou as principais transformações que ocorreram na região


privilegiando uma abordagem comparativa das sociedades africanas antes e depois da
urbanização e dos processos de modernização, dando especial atenção aos processos
políticos relacionados à gestão do território.

Não se pode facilmente separar o desenvolvimento das ideias de


Gluckman e a obra que ele inspirou no Instituto Rhodes-Livingstone.
Elas fundiram-se nas produções da “Escola de Manchester”, a
qual, na década de 1950, tornou-se uma reconhecível mutação do
estruturalismo britânico (KUPER, 1978, p. 182-183).

A preocupação de Gluckman com a natureza da estabilidade social e, do seu


par de oposição, a mudança social é traço característico de sua obra e da distinta
Escola de Manchester, especialmente por ser partir dessa perspectiva que seus alunos
desenvolveriam um campo de estudos original em torno de pesquisas nas áreas urbanas e
nos meios rurais tradicionais etnografados pelos antropólogos.

NOTA
Na antropologia o método estrutural-funcionalista, baseado nos
métodos das ciências naturais, postula que é possível identificar as leis
que regulamentam e organizam o funcionamento de uma sociedade.
A partir desse método Radcliffe-Brown dentre outros antropólogos
procuravam identificar as estruturas e os sistemas de relações sociais
que tornam uma sociedade integrada e estável.

A região do cinturão do cobre (Copperbelt) foi onde esse conjunto de pesquisadores


se reuniram para entender os processos sociais migratórios entre o campo e a cidade.
Observaram os impactos das migrações no contexto rural, a consequência social da
urbanização na vida dos trabalhadores e mostraram como as “tribos” concentravam mão
de obra na divisão social do trabalho, interferindo também nos costumes locais.

Gluckman dividiu seus colaboradores para cobrir a África central a partir de quatro
eixos de pesquisa: minas e cidades mineiras, áreas rurais isoladas, áreas rurais próximas
aos centros onde concentravam mão de obra e economia monetarizada e áreas agrícolas
europeias. A partir disso foram estudados os efeitos da migração laboral e da urbanização
na organização familiar e de parentesco, assim como na vida econômica, nos valores
políticos, nas crenças e práticas religiosas e mágicas presentes em cidades e aldeias.
Além disso, estudos dos efeitos de monetarização na economia e formação de grupos

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sociais a partir de novas relações entre o mundo urbano e o mundo rural mostravam a
importância das minas, das lojas e das missões nos novos arranjos relacionais, agora não
eram apenas os moradores locais se deslocando do campo para a cidade, mas uma intensa
migração de europeus, indianos e outros grupos sociais em torno de um território de
intensa transformação.

Figura 4 – Max Gluckman e John Barnes

Fonte: https://bit.ly/3Oyz7iP. Acesso em: 20 jul. 2022.

Um dos principais artigos de Gluckman, “Análise de uma situação social na


Zululândia” moderna, publicado originalmente em 1940, oferece uma rica descrição
da análise de situações sociais e mudanças rápidas. O artigo realiza uma análise das
redes sociais entre brancos (equipe administrativa, policiais) e negros (zulus), dentro
de um contexto político de guerra, intensa transformações políticas e econômicas e forte
divisão entre os dois grupos. Ao observar a inauguração de uma ponte ele percebe
que participavam daquele evento tanto o grupo de brancos com funcionários da
administração e policiais, quanto o grupo de negros com a presença de chefes locais
zulus, trabalhadores que construíram a ponte e pessoas residentes, revelando uma
situação social específica para a análise dos conflitos.

O ponto de vista defendido por Gluckman era que, embora os


membros dos diferentes grupos de cor estivessem simbólica e
concretamente divididos e opostos em todos os aspectos, eles eram
forçados, entretanto, a interatuar em esferas de interesse comum
(KUPER, 1978, p. 173).

A recomendação principal, do ponto de vista metodológico, para o antropólogo é


que em campo reúna observações de situações sociais ou uma série de situações e a
partir delas possa extrair perguntas para realizar sua análise de profundidade. O chamado
método de casos estendidos (extended case method), deslocava a antropologia da
análise de normas e valores para o foco na vida social “real”, no qual esse conjunto de
regras era frequentemente utilizados de acordo com a racionalidade dos indivíduos na

34
ação, em situações concretas. Oxford estimulou em Gluckman o interesse pela análise dos
conflitos a das relações de grupos em oposição, na qual o equilíbrio social era mantido
pela incorporação da tensão por meio de “rituais da rebelião”, atos convencionais e
socialmente legitimados para manter a estabilidade social, neles o ritual detém uma
dimensão construtiva para ajudar a evitar o conflito real. Assim, em Zululândia o grupo
dominante era o branco, os rituais de rebelião era uma forma de alinhar uma unidade
entre os grupos, mesmo com a presença de conflitos. Os rituais tinham o poder de
chamar a atenção para o conflito, reforçando a necessidade de autoridade legítima
naquele lugar para conter os distúrbios da ordem social.

A análise situacional propõe a utilização de casos como ilustrativos e


demonstrativos da observação do antropólogo, servindo de elemento didático para
falar da ordem social no contexto pesquisado. Nesse sentido, vários episódios de um
mesmo evento podem construir uma narrativa ao esmiuçar e analisar as relações sociais
presentes no contexto e assim fazer um movimento de observação entre escalas, isto é,
do particular chegar ao geral. Assim, a noção de situação implica a compreensão de que
a própria noção de identidade é situacional, um africano maquinista de trem em uma
situação pode muito bem ser um importante líder político ou chefe de uma tribo em
outra situação.

A partir da interessante pesquisa do antropólogo Jonh Barnes e da publicação


do artigo clássico “Redes sociais e processo político”, em 1987, o conceito de “redes
sociais” para os estudos de comunidade ficou bastante popular na antropologia. Barnes
demonstrou as relações sociais a partir da interação entre as sociedades africanas e
a administração colonial por meio de pesquisa etnográfica no contexto da recente e
intensa modernização no continente africano. O antropólogo percebe, e por meio do
conceito de redes sociais explica, como os indivíduos podem e de fato participam de
vários grupos sociais ao mesmo tempo como família, trabalho, educação, lazer, dentre
outros segmentos. Com isso Barnes evidencia as características presentes em diferentes
ligações que um mesmo indivíduo possui em relação a outros indivíduos na observação
dos diferentes grupos que ele pertence. Assim, é possível extrair o potencial elucidativo
da ação social, entender quais motivos e o contexto específico nos quais o indivíduo age
de uma forma e não de outra (FELDMAN-BIANCO, 1987). Assim, a forma de apreensão
da realidade social a rede aparece como uma categoria de análise e resumidamente
significa um conjunto de relações interpessoais. Jaap van Velsen, em seu artigo de 1987,
“A análise situacional e o método de estudo de caso detalhado”, aborda diretamente a
“análise situacional” ou o “método de estudo de caso detalhado”.

Uma das suposições na qual a análise situacional está baseada


é a de que as normas da sociedade não constituem um todo
coerente e consistente. São, ao contrário, frequentemente vagas e
discrepantes. É exatamente este fato que permite sua manipulação
por parte dos membros da sociedade no sentido de favorecer seus
próprios objetivos sem necessariamente prejudicar sua estrutura
aparentemente duradoura de relações sociais. Por isso a análise
situacional privilegia o estudo das normas em conflito (FELDMAN-
BIANCO, 1987, p. 369)

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Nessa perspectiva teórica, os antropólogos priorizam a observação dos conflitos
sociais entre indivíduos que fazem parte do mesmo grupo observado. A escala de
observação é microssocial e não desconsidera variáveis macrossociais como gênero,
classe ou raça, mas integra tais escalas na análise de uma situação que pode revelar
aspectos de uma estrutura.

Isto se refere à coleta efetuada pelo etnógrafo de um tipo especial


de informações detalhadas. No entanto, isto também implica o modo
específico em que esta informação é usada na análise, sobretudo a
tentativa de incorporar o conflito como sendo ‘normal’ em lugar de
parte ‘anormal’ do processo social (VELSEN in FELDMAN-BIANCO,
1987, p. 345).

Entende-se que os indivíduos produzem diversas relações sociais em um


determinado contexto, inclusive em um conflito, e que seu estudo aprofundado das normas
e valores pode favorecer a análise do que se passa no interior de uma sociedade, entendendo
quais estão contidas e definem as interações entre os indivíduos presentes ali.

O conflito enquanto uma situação social com forte componente de análise


permite perceber a diversidade de valores contraditórios que podem estar em um
indivíduo, mas ao deslocar o eixo de observação do comportamento social para uma
situação específica é possível conhecer inúmeras regras e a maneira como cada
indivíduo faz uso delas. A análise é feita a partir da observação do comportamento de
um mesmo indivíduo em diferentes situações, nas quais encontramos modos de agir e
formas de pensar. A orientação para o uso da análise situacional é de que o antropólogo
faça sua observação a partir de casos que fazem parte de um processo social, trata-se
de uma análise baseada na observação dos processos sociais.

O antropólogo polonês Bronislaw Malinowski será lembrado pela Escola de


Manchester pelo método de observação participante, este privilegia a observação
do contexto pesquisado a partir de uma vivência integrada do pesquisador com os
indivíduos da sociedade ou grupo social no qual irá realizar a pesquisa, considerando a
aceitação, o convite e a integração nessas relações como definidoras de uma potencial
forma de relação social entre pesquisador e grupo em longa duração. Para compor suas
pesquisas, os antropólogos de Manchester também utilizaram documentos históricos,
registros escritos e dados estatísticos na produção de suas pesquisas antropológicas.

Gluckman vai incorporar essa metodologia para sua pesquisa em Zululândia,


tentando estabelecer uma relação de proximidade e familiaridade com o cotidiano e as
práticas sociais comuns entre os zulus. Tal atitude levou Gluckman a vestir-se com
trajes tradicionais zulus, buscando uma pretensa igualdade naquele lugar.

Hoje isso não é recomendado e tem levantado inúmeras críticas, uma vez que
ao utilizar roupas específicas de uma cultura isso não vai tornar o antropólogo um membro
dela, rotinizar trajes, linguagens ou técnicas corporais do grupo pesquisado muitas vezes
é interpretado como um falseamento da relação social e demonstra uma relação mais
instrumental do que de reconhecimento e respeito.
36
Além de todos esses métodos e técnicas de pesquisas empregadas na análise
situacional, a Escola de Manchester por estar interessada em conhecer o contexto
pesquisado em sua totalidade também percebeu que há uma pluralidade de sentidos,
normas e indivíduos ali. Por isso, a etnografia realizada na África Central era tão rica e
estimulante ao pensamento antropológico, pois naquele contexto de intensas mudanças
no espaço físico e social entre o rural e o urbano foi possível compreender aquela
realidade social em construção. Uma transição entre modos de vida, práticas sociais
e redefinição de normas e valores entre uma modernidade e um sistema capitalista
industrial que rapidamente alterou contextos como o da África Central etnografada
pelos legendários antropólogos de Manchester.

A Escola de Manchester por essas razões se tornou uma referência para os


estudos de Antropologia Urbana, em relação à Escola de Chicago, a dimensão política
se mostrou muito mais presente fosse na análise ou na posição dos seus pesquisadores
em face da contraposição aos interesses da administração colonial. Nesse sentido,
destaca-se pelo interesse no estudo das cidades pós-coloniais africanas, que naquele
momento estavam transitando para mudanças de bases políticas e econômicas, antes
da intensa modernização os indivíduos da África Central eram membros de grupos
tribais, organizados em suas próprias dinâmicas de parentesco e práticas sociais. Após
a chegada da Revolução Industrial e mudança política para novas formas de governos
e organização do espaço com os traços das grandes metrópoles urbanas esses indivíduos
passaram a enfrentar mudanças no seu modo de vida, tornando-se mão de obra,
operários das grandes construções urbanas e distanciando-se de vários elementos
constitutivos de sua identidade tribal.

Além de Gluckman, outros importantes pesquisadores que consolidaram a


“Escola de Manchester” foram Freddie Bailey, John Barnes, Elizabeth Colson, Arnold
Epstein, Philip Mayer, Clyde Mitchell, Victor Turner, Jaap Van Velsen, Peter Worsley, Ian
Cunnison, Max Marwick, Thomas Watson e Bruce Kapferer e Abner Cohen. Alguns foram
alunos e outros colaboradores de Gluckman e podem facilmente serem identificados a
partir das características de suas pesquisa, observando-se sempre a presença do método e
o tema comum a todos eles conforme destaca Adam Kuper “a fissão na aldeia foi o tema
escolhido por Turner; a integração política vertical foi o de Mitchell, trabalhando em uma
aldeia Yao; a migração de mão de obra foi o problema abordado por Watson; as acusações
de bruxaria serviram à pesquisa de Marwick, e assim por diante” (KUPER, 1978, p. 179).

A antropologia Urbana terá sempre na Escola de Manchester uma fonte


inesgotável de pesquisas, métodos e teorias para renovar a investigação antropológica
dos indivíduos, da cidade e do contexto urbano. Esse conjunto de pesquisadores tornou
indispensável uma abordagem focada em uma escala microssocial da observação das
situações e eventos que podem ajudar a entender a complexidade dos indivíduos.

37
A ciência antropológica, embora tenha recebido inúmeras críticas quanto ao
seu uso para fins coloniais, com a experiência da Escola de Manchester discutiu-se
extensivamente a posição política e as questões em torno da relação com as sociedades
que estavam enfrentando processos de modernização marcados por exploração,
precarização e descaracterização da vida social. Se, por um lado, o impacto da
industrialização revela problemas sociais imediatos como aqueles que podem ser vistos na
observação direta, por outro, a produção antropológica passou por transformações que
vão moldar os modos de fazer antropologia.

A Escola de Manchester faz parte de uma tradição da antropologia que calibrou


bem essas questões, além disso deu ênfase ao seu método de estudo consolidando
a investigação antropológica a partir da análise de situações sociais focada em problemas
particulares estabelecendo relação com o contexto cultural, político, econômico e
social mais amplo. Nesse sentido, as contribuições de antropólogos de Manchester nos
estudos do desenvolvimento no contexto de expansão do capitalismo trouxeram uma
perspectiva do estudo das condições sociais de vida no curso de sua transição, entre o
rural e o urbano.

Ao conhecermos um pouco das influências e as contribuições etnográficas


propostas pela Escola de Manchester vamos mudar a nossa escala de conhecimento para
enxergar os desdobramentos desses potenciais conflitos do mundo urbano por meio
de outras formas de organização da vida social por meio dos ajuntamentos coletivos, das
mobilizações sociais e da formação coletiva. Nosso percurso nos conduzirá para a análise
de conflitos sociais mais próximos ao tempo contemporâneo, falo das demandas de
cidadania, das lutas sociais por direitos à moradia e das diferentes formas de associação.

38
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:

• O conceito de “antropologia urbana”, isto é, uma subárea da antropologia que, no Brasil,


os seus primeiros estudos foram na década de 1940, com os chamados “estudos de
comunidade”. Tais estudos foram fortemente influenciados pela tradição de estudos
da renomada “Escola de Chicago”, nos Estados Unidos, cuja principal característica
era o interesse por uma investigação antropológica sobre as cidades e as mudanças
a partir da urbanização.

• Os conceitos da Escola de Chicago e seus principais autores, além de suas teorias


e métodos de pesquisa. Estudamos aquela que pode ser considerada a mais
proeminente escola sociológica de estudos urbanos no mundo. Estudamos uma
rica produção empírica, que influenciou sobremaneira a Antropologia Urbana não
só em aspectos teóricos, como também o interacionismo e pragmatismo. Sobre os
métodos e técnicas de pesquisa, estudamos o uso das metodologias qualitativas e
quantitativas no que se relaciona ao fenômeno urbano.

• Conceitos da Escola de Manchester e seus principais autores, teorias e métodos


de pesquisa. As contribuições de antropólogos de Manchester nos estudos do
desenvolvimento no contexto de expansão do capitalismo trouxeram uma perspectiva
do estudo das condições sociais de vida no curso de sua transição, entre o rural e
o urbano. Ao conhecermos um pouco das influências e as contribuições etnográficas
propostas pela Escola de Manchester vamos mudar a nossa escala de conhecimento
para enxergar os desdobramentos desses potenciais conflitos do mundo urbano por
meio de outras formas de organização da vida social por meio dos ajuntamentos
coletivos, das mobilizações sociais e da formação coletiva.

• Os diferentes contextos políticos nos quais se desenvolveram essas escolas de


pensamento. Considerando os impactos dos processos de intensa urbanização e
desenvolvimento capitalista para mudanças culturais, políticas, econômicas e sociais
em sociedades que vivenciaram a experiência abusiva do sistema colonial. Naquele
contexto fatores relacionados às transformações sociais, econômicas e culturais
que marcaram o final da Segunda Guerra Mundial, sobretudo, após os anos 1960,
contribuíram para um inovador ponto de reflexão acerca das condições de vida no
contexto da modernidade.

39
AUTOATIVIDADE
1 Diferentes fatores relacionados às transformações sociais, econômicas e culturais
que marcaram o final da Segunda Guerra Mundial, sobretudo, após os anos 1960,
contribuíram para um inovador ponto de reflexão acerca das condições de vida
no contexto da modernidade. O interesse por uma investigação antropológica nas
cidades e as mudanças a partir da urbanização deu origem à “antropologia urbana”, este
termo designa uma subárea da antropologia que, no Brasil, tem seus primeiros estudos
na década de 1940 com os chamados “estudos de comunidade” e são fortemente
influenciados por duas escolas de pensamento clássicas. Sobre estas grandes escolas
do conhecimento da Antropologia Urbana, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Autores da Escola de Chicago construíram um programa de estudos do fenômeno


urbano a partir de pesquisas realizadas em Chicago e a Escola de Manchester
surge vinculada ao Instituto Nacional de Pesquisa de Zambia que desenvolveu
pesquisas na África Meridional.
b) ( ) A Escola de Chicago se desenvolveu porque estava localizada em um importante
território de petróleo que influenciou o desenvolvimento de pesquisas a respeito
dessa indústria, enquanto a Escola de Manchester nasceu na Inglaterra e suas
pesquisas deram origem aos estudos da escravidão.
c) ( ) A Escola de Chicago e a Escola de Manchester fazem parte da Escola de Antropologia
Urbana Universal que produziu pesquisas quantitativas ao redor do mundo.
d) ( ) Robert Park e George Simmel são, respectivamente, considerados os pais
fundadores e os principais autores da Escola de Chicago e da Escola de
Manchester.

2 Considera-se fundamental a relação de proximidade entre pesquisadores do campo da


sociologia e da antropologia nos estudos urbanos e isto se dá por diferentes razões,
uma delas está associada ao grande trabalho de campo e estudos empíricos que os
“etnógrafos de Chicago”, como também ficaram conhecidos durante muito tempo,
desenvolveram a partir desta consolidada escola de estudos. Com base nas definições e
teorias mobilizadas pela Escola de Chicago, analise as sentenças a seguir:

I- Sua tradição é fortemente influenciada pelo pragmatismo, articulando a observação


direta da realidade à análise dos processos sociais urbanos.
II- Na antropologia urbana o método estrutural-funcionalista de Chicago, baseado
nos métodos das ciências naturais, postula que é possível identificar as leis que
regulamentam e organizam o funcionamento de uma sociedade.
III- No interacionismo simbólico a unidade básica de estudo é a interação social,
pessoas que se reúnem para fazer coisas em comum. Nessa perspectiva, a teoria
da ação pressupõe que o indivíduo pode apreender, moldar, formular e transformar
ações sobre o seu próprio comportamento.

40
Assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 Considerada importante influência teórica e metodológica para a formação do campo


da Antropologia Urbana, a Escola de Manchester é uma das principais escolas de
antropologia do mundo e se destacou por estar interessada em conhecer o contexto
pesquisado em sua totalidade, desenvolvendo métodos e técnicas de pesquisa
percebeu que há uma pluralidade de sentidos, normas e indivíduos em um mesmo
contexto social. De acordo com as contribuições metodológicas de seus estudos
etnográficos, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) A análise situacional de Max Gluckman propõe a utilização de casos como ilustrativos


e demonstrativos da observação do antropólogo, servindo de elemento didático
para falar da ordem social no contexto pesquisado. Nesse sentido, vários episódios
de um mesmo evento podem construir uma narrativa, depurando as relações sociais
presentes no contexto pesquisado é possível fazer um movimento de observação
entre escalas, isto é, do particular ao geral.
( ) O antropólogo Radcliffe-Brown foi a principal influência teórica da Escola de
Manchester, seus estudos ensinam como os antropólogos devem consolidar sua
visão de mundo a respeito das sociedades estudadas, seu método sugere que o
pesquisador em campo tome seu próprio grupo como ponto de partida para avaliar
e medir valores, hábitos e modelos de existências como se fossem superiores,
melhores ou os mais corretos a serem seguidos.
( ) O antropólogo John Barnes, por meio do conceito de redes sociais, explica como os
indivíduos podem e de fato participam de vários grupos sociais ao mesmo tempo
(família, trabalho, educação, lazer). Com isso evidencia as características presentes
em diferentes ligações que um mesmo indivíduo possui em relação a outros
indivíduos na observação dos diferentes grupos que ele pertence. Assim, é possível
entender quais motivos e o contexto específico nos quais o indivíduo age de uma
forma e não de outra.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

41
4 Cientes do impacto das transformações pelas quais vivenciavam no cotidiano da
própria cidade que habitavam, os pesquisadores da Escola de Chicago investiram no
projeto de pesquisa empírica que os deslocava para fora dos gabinetes estimulando
que fossem eles próprios em busca das singularidades, mudanças e problemas
sociais que o fenômeno urbano evidenciava. Nesse sentido, era considerável a
experimentação realizada em termos de métodos de pesquisa quando serviram-se
fartamente da observação participante e do método de estudo de caso para cobrir
um grupo heterogêneo de pesquisas em torno da cidade de Chicago. Considerando
a importância das pesquisas de Chicago, escolhas pelo menos dois de seus autores
e disserte sobre suas pesquisas e as contribuições para o estudo da cidade e do
urbano.

5 A história da Escola de Manchester é confundida com a história de Max Gluckman


(1911-1975). No que diz respeito ao método de pesquisa e às questões administrativas
e políticas que ardiam na época de sua fundação. Gluckman foi um proeminente
antropólogo que entre os anos 1941 e 1947 esteve à frente do Instituto Rhodes-
Livingstone, após esse período é admitido como professor da Universidade de Oxford e
foi o responsável por criar o Departamento de Antropologia Social na Universidade de
Manchester. Disserte sobre as contribuições científicas de Gluckman a partir do que
ele chamou de “análise situacional”.

42
UNIDADE 1 TÓPICO 3 —
MOVIMENTOS SOCIAIS, SUBCULTURAS
E IDENTIDADES URBANAS

1 INTRODUÇÃO
Aprendemos nos tópicos anteriores o contexto social no qual a Revolução
Industrial e o intenso processo de modernização produziram impactos incontornáveis
em muitas regiões do mundo. Fizemos uma imersão nas contribuições da Escola de
Chicago e da Escola de Manchester, importantes escolas de pensamento, e descobrimos
como ambas vão produzir estudos que visem demonstrar como o espaço social vai ser
modificado mediante os processos de construção e consolidação do mundo urbano.

Dado o caráter “desenvolvimentista” do capitalismo moderno e os impactos


sociais a partir do final da década de 1960 no Brasil, experimentamos uma mudança
no campo de estudos e análise da cidade e do urbano. Há uma nítida mudança de
foco na análise do social, mesmo encontrando um conjunto de etnografias do mundo
rural inspiradas pela Escola de Chicago, ainda nos anos 1940, a antropologia passou
a observar a diversidade e as transformações que vinham acontecendo de maneira
intensa nas grandes metrópoles com o desenvolvimento da urbanização.

É notável que nessas novas relações de alteridade também estavam presentes uma
certa familiaridade com o social, com os indivíduos e mesmo com a cidade que é o lócus
de observação, mas também de moradia e pertencimento dos próprios antropólogos.
Essa proximidade vai colocar algumas questões epistemológicas em perspectiva para o
antropólogo que deseja fazer etnografia na cidade.

Se a experiência de observação anterior reunia uma produção focada nas


transformações das comunidades, na mudança do campo para a cidade, agora é possível
observar o que na cidade há de mudança, quais os grupos que agora fazem parte da
construção e da disputa de uma cidade urbana.

Há uma intensa mobilização de grupos sociais que passam a constituir o lugar


da cidade, negros, indígenas, população rural que migra para as grandes metrópoles,
comunidades religiosas, grupos de diferentes sexualidades e gêneros, assim como
as chamadas minorias sociais fazem parte desse todo urbano que está presente no
cotidiano das grandes cidades.

A antropologia que se investe da tarefa de etnografar e conhecer essas diferenças


tem um campo fértil de estudos que passa a construir uma agenda de pesquisa em torno
do que conhecemos hoje como Antropologia Urbana. É nessa perspectiva que vamos
abordar o surgimento desse campo neste tópico, quando aprenderemos os indivíduos, as
coletividades e os conflitos que fazem parte dos estudos de antropologia na urbanidade.
43
2 MOVIMENTOS SOCIAIS E SUBCULTURAS URBANAS
Até aqui já deu para você, acadêmico, se aproximar e apreender conceitos,
teorias e práticas antropológicas no mundo urbano. Neste tópico, caro acadêmico,
vamos conhecer um pouco mais dos problemas urbanos, dos conflitos, das mobilizações e
das lutas sociais a partir da análise dos movimentos sociais.

Parte importante do estudo antropológico do modo de vida urbano vem do


interesse de pesquisadores e pesquisadoras que veem os inúmeros grupos sociais que
se desenvolvem e se organizam coletivamente a partir da cidade. Uma parte desses
pesquisadores lidam com a categoria cidade como um lócus de observação etnográfica,
por onde antropólogos podem ver a diversidade dos modos de agrupamento, manifestações
sociais e ações coletivas, bem como registrar a alteridade entre os sujeitos que se agrupam
e lutam pelo direito à cidade, à moradia e aos diferentes modos de vida.

Considerado um importante estudo que marca uma abordagem do urbano


na antropologia brasileira é o texto “O urbanismo como modo de vida” do sociólogo
estadunidense Louis Wirth (1979). O autor é considerado um dos mais notáveis estudiosos
do fenômeno urbano nos Estados Unidos e muito influenciado Simmel. Wirth elaborou
sua interpretação do fenômeno urbano contribuindo para uma “teoria sociológica e
sociopsicológica do urbanismo” (VELHO, 1979, p. 8).

Para esse autor, uma característica marcante do modo de vida urbano na vida
dos indivíduos da idade moderna é a alta concentração em agregados gigantescos,
quando um maior número de indivíduos passa a viver em centros cada vez mais
inchados de pessoas, atividades econômicas e instituições da modernidade, em torno dos
quais “irradiam as ideias e as práticas que chamamos civilização”.

Assim, Wirth (1979, p. 90-92) define a importância de entender o urbano e


conhecer a cidade, para ele “uma definição sociologicamente significativa do que seja
cidade procura selecionar aqueles elementos do urbanismo que marcam como um
modo distinto de vida dos agrupamentos humanos”.

Em maior ou menor escala a vida social no meio urbano ainda se relaciona com
práticas e sentidos do mundo rural, há uma influência histórica da vida rural que segue com
o indivíduo que foi morar na cidade urbana. Dessa forma, Wirth nos estimula a perceber que
estamos conectados por práticas sociais herdadas de uma vida anterior que não desaparece,
mas se ajusta, se modifica e produz algo entre esses dois mundos em interação.

Sobre esse modo de vida urbano, Wirth (1979) destaca os desenvolvimentos


tecnológicos no transporte e no sistema de comunicação como marcas concretas
dessa nova época na história humana que estende sua atuação para além do contorno
geográfico da cidade, levando suas práticas e valores para o ambiente rural. Destaca
ainda a presença de uma enorme concentração de instalações e atividades relativas
à indústria, assim como atividades comerciais, econômicas, administrativas, políticas,

44
sem esquecer dos equipamentos culturais e de lazer como imprensa, estações de
rádio, teatros, bibliotecas, museus, salas de concerto, óperas, hospitais, instituições
educacionais de nível superior, como faculdades e universidades, centros e institutos
de pesquisa, organizações profissionais, instituições religiosas e filantrópicas, grupos
recreativos, dentre outros presentes nesse aglomerado urbano.

É notável que as descrições realizadas por esses autores mobilizam uma


perspectiva mais negativa acerca da vida urbana, reconhecendo sempre os aspectos da
falta ou da dificuldade que estão presentes na rotina de uma grande metrópole urbana.

Ao reconhecer o significado social desses aspectos Simmel (1979) e Wirth (1979)


nos possibilitam um exercício comparativo com as práticas e o modo de vida rural, ambos
consideram importante o registro dessas novas práticas de sociabilidade que serão
encontradas no meio urbano, mas apontam para a baixa dos vínculos sociais primários,
que na vida urbana tendem a ser substituídos por vínculos sociais secundários.

Ora, com muitos habitantes e a densidade demográfica elevada as relações sociais


de vizinhança, amizade e parentesco na cidade tendem a perder elo. Isto acontece em face
da própria modificação das relações sociais marcadas pelas mudanças quanto ao tempo
disponível para convivência com familiares ou estar por estar com amigos e namorados,
assim como o tempo disponível para passeios e atividades de lazer sempre muito reduzidos
em face das extensas jornadas de trabalho, pelo menos nas classes populares.

Na cidade os contatos pessoais podem ser face a face, mas também reduzidos,
impessoais, superficiais, transitórios e fragmentários, lembrando aqui aspectos citados por
Simmel, a “reserva”, a “indiferença” e o “ar blasé” são características que os habitantes do
meio urbano tendem a manifestar em suas relações sociais (WIRTH, 1979, p. 101).

Além disso, o caráter transitório das relações urbano-sociais pode explicar


outros signos importantes da vida urbana como a “sofisticação” e a “racionalidade”,
elementos que, em geral, são utilizados para caracterizar positivamente uma pessoa ou
grupo social pertencente ao meio urbano.

É fato que no meio urbano nosso contato físico é mais estreito, os edifícios com
aglomerados de apartamentos reúnem um grande contingente de pessoas no mesmo
perímetro, mas isso não significa contatos sociais mais íntimos, pelo contrário, notamos
uma vida cada vez mais distante de uma relação com a vizinhança.

Podemos nos ver todos os dias, dividir o elevador na mesma hora ou pegar o
mesmo ônibus para ir ao trabalho, no entanto, esse alto reconhecimento facial que
opera no cotidiano da vida urbana não é convertido em uma experiência autêntica de
reconhecimento ou amizade. A partir disso é possível que tenhamos cada vez mais
afinidade com signos que estão presentes em nosso cotidiano do que com as pessoas
que cruzam nosso caminho. É nesse ponto que as subculturas, os movimentos sociais e
as identidades urbanas ganham nosso interesse.

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A urbanização do mundo é um evento notável da vida moderna, insere
um conjunto de modificações profundas em diferentes esferas da vida social, por
exemplo, família, educação, trabalho, lazer, moradia, educação, consumo, transporte,
comunicação. No entanto, não podemos deixar de lembrar que esse processo aconteceu
de forma muito intensa e desordenada e foi responsável pelo aumento dos problemas
urbanos do contexto presente.

O urbanismo como modo de vida revela uma tendência a adquirirmos uma


sensibilidade ao universo dos artefatos e com isso progressivamente vamos nos
distanciando das pessoas, acumulando mais objetos e produtos fabricados pela indústria
capitalista que tem sempre algo novo para nos satisfazer. Assim, relacionando aspectos
desse período de formação do mundo urbano e do contexto social atual não podemos
perder de vista que as modificações no urbano transformaram para o bem ou para o mal
não só o espaço físico, as cidades urbanas, como também a maneira de nos relacionar
entre si e estabelecer vínculos sociais e construir a nossa identidade.

A heterogeneidade de grupos e pessoas na vida urbana permite que possamos


nos relacionar com maior mobilidade, mas também com maior instabilidade e insegurança
em nossas relações sociais, embora, de fato possamos participar de vários grupos, tribos
urbanas ou associações que podem nutrir experiências de pertencimento diferentes isso
tende a deslocar os indivíduos para relações cada vez mais impessoais e distantes. Esta
seria uma forma de perceber o urbanismo como modo de vida com Louis Wirth. Mas há
outras. Vejamos.

A presença massificada de pessoas na cidade também poderá favorecer a


formação de agrupamentos do espaço urbano e a investigação antropológica permite
compreender as diferentes formas de expressão, pertencimento e identidades que
compõem essa cidade. Michel de Certeau (1994) chamou a esse tipo social de “cidade
praticada”, uma maneira de olhar para os sujeitos que vivenciam e percebem a cidade
ao seu modo.

Considerando essa vastidão de possibilidades e formação de novas identidades no


meio urbano, a antropóloga Andressa Morais (2012) realizou uma etnografia com um
grupo social urbano chamado “okupas”, escrito com “k” por se tratar de uma identidade
associada com a filosofia anarquista que protesta contra o sistema capitalista, pois este
produz intensa verticalização e urbanização em que sujeitos sociais de classe populares
são empurrados para as franjas da cidade e lhes são negados sua identidade política e
cultural. Dialogando com Certeau (1994, p. 174) a cidade-conceito é pensada como “um
lugar de transformações, objetos de intervenções, mas sujeito sem cessar enriquecido
com novos atributos: ela é ao mesmo tempo maquinaria e o herói da modernidade”.

Para Morais Lima (2012, p. 40) a cidade a partir dos seus interlocutores okupas
“não deve ser lida apenas como um lugar estratégico para uma ação contínua da economia
capitalista, uma ação orientada pelos interesses dos especuladores imobiliários e dos
investidores da construção civil”. Nesse sentido, o movimento social urbano conhecido

46
como “okupa” aborda a cidade de uma outra perspectiva, aquela na qual é possível
encontrar modos de viver que sejam diferentes. Para os “okupas” interlocutores da
pesquisa de Morais Lima (2012) a cidade é um palco de disputas pelo direito de morar,
viver e cultivar práticas e formas de vida que sejam diferentes. Assim, “ocupar” seria
uma forma de praticar a cidade, uma reinvenção do social, do urbano e dos sujeitos que
nela vivem. Há entre os diferentes grupos okupas práticas de lazer, solidariedade e cultivo
de formação política orientadas pela filosofia anarquista e libertária, mas a cada casa
“ocupada” há um conjunto de sujeitos que são diferentes, que procuram intervir no meio
urbano para afirmar um protesto contra o capitalismo que gentrifica (isola) e aumenta a
camada de despossuídos na vida urbana.

O movimento okupa surgiu na Londres da década de 1960 para contestar um


modo de vida urbano que priorizava o desenvolvimento via intensa industrialização
(processo aqui já apresentado a partir das contribuições de Simmel e Wirth). Os
movimentos sociais de juventude diante de um cenário de vida urbana intensa e sem
possibilidade de respeito à diversidade dos modos de ser, bem como pela falta de espaço
para moradia e boas condições de trabalho passam a ocupar espaços vazios que servem
para especulação imobiliária a fim de transformá-los em espaços culturais, comunidades
de pessoas que lutam pelo direito de um modo de vida libertário.

Naquela época de surgimento do movimento okupa o foco das ocupações eram


as antigas fábricas que fechavam decretando falência ou que tiveram algum acidente e
produziu um vazio urbano, isto é, o prédio ficava exposto ao abandono e permanecia
na paisagem da cidade apenas nutrindo o valor acumulativo do terreno, o proprietário
sequer fazia manutenção para garantir a limpeza e prevenir acidentes.

Figura 5 – Símbolo e bandeira Okupa

Fonte: https://bit.ly/3J6w2FG. Acesso em: 21 jul. 2022.

47
Dadas as especificidades históricas e contextuais, no Brasil, há também esse
perfil de ocupação urbana em que os okupas fazem sua intervenção em lugares que
possuem dívidas com o poder público ou com os trabalhadores que empregavam e
deixaram sem restituição trabalhista. Esse é um vínculo que cruza uma identidade
política com uma identidade estética, valorização de uma vida cultural diferente,
considerando que o perfil dos okupas são de jovens anarquistas e punks, nos quais
a maioria se veste de preto, com signos de uma cultura punk, tatuagens, piercings,
coturnos, moicanos, dentre outras características temos um bom exemplo de uma
identidade urbana.

No Brasil esse movimento chegou primeiro no sul, devido ao contato com


outros jovens libertários que se comunicavam e pertenciam a grupos de música
anarcopunks e compartilhavam experiencias coletivas de ocupar esses espaços para
realizar manifestações culturais como shows de garagem, exposições de arte, saraus
poéticos e transformar espaços ociosos em “zonas livres autônomas”, plantando hortas,
fazendo compostagem, adotando uma dieta alimentar vegana e praticando diferentes
maneiras de habitar a vida no meio urbano.

Se por um lado, podemos identificar as diferentes transformações na paisagem


urbana com a presença cada vez mais intensa de prédios e edifícios verticalizados,
por outro também é possível identificarmos o vazio urbano, a degradação, esqueletos
arquitetônicos que ficam espalhados em zonas centrais e em bairros considerados de
elite. Esses vazios são agentes de um tipo de prática capitalista chamada especulação
imobiliária, quando os proprietários não reparam ou fazem a manutenção daquele
espaço e deixam acumular lixo, insetos e dívidas com o poder público, esperando o
bairro e o entorno se desenvolver e aumentar o valor do metro quadrado para vender o
terreno e investir em um poder de mercado imobiliário.

Os okupas contestam a prática da especulação imobiliária por duas vias, a saber,


primeiro por questionar o abandono e a função social da propriedade privada que gera
para a população maior insegurança e prejuízos quanto ao valor de habitação nas zonas
centrais da cidade, onde a maior parte da população trabalha, empurrando essas pessoas
para uma habitação precária e longe dos centros urbanos, gerando maior dependência de
transportes coletivos e ampliando a vulnerabilidade desses sujeitos ao mercado privado.
Por outro lado, sua herança cultura está vinculada com um tipo de subcultura jovem,
urbana, marginalizada que promove uma intervenção também na esfera cultural, tem um
estilo de vida minimalista, produzem um tipo de música de protesto, adotam a perspectiva
de uma vida livre de violência, por isso são associados ao veganismo, isto é, não se
alimentar de nada que provoque violência, dentre outras características que podem ser
bem visualizadas na etnografia intitulada “Okupar, resistir e insistir: etnografia das práticas
de ocupação urbana em Fortaleza-CE” (MORAIS LIMA, 2012).

48
DICA
Acadêmico, quer saber mais desse
tipo de movimento ou conhecer outras
referências sobre o tema? Fique de olho
nessa dica de série argentina da Netflix
chamada Okupas. Foi uma série muito
popular na Argentina que ganhou quatro
prêmios Martín Fierro (Emmy argentino),
incluindo o de melhor minissérie.

Fonte: http://twixar.me/DmMm.
Acesso em: 21 jul. 2022.

Esse tipo social de movimento se caracteriza sobretudo pela prática autônoma,


libertária, que reivindica um modo de ser diferente, que valoriza a autonomia, construir
espaços com pessoas que nutrem afinidades políticas, afetivas e sociais. De certa
forma, ao insistir na construção de um espaço libertário do meio de um espaço investido
de interesses econômicos do capitalismo financeiros, entendemos que há uma alógica
distinta que nega um único modo de viver no urbano e tenta imprimir uma existência
diferente, politizando essa ocupação urbana e navegando socialmente construindo uma
boa relação com a vizinhança. Morais Lima demonstra em sua etnografia que os vizinhos
dessa okupa se relacionavam bem com os moradores da casa, ajudavam com doações
de água, roupas e comida. Também quando entrevistados revelavam que a chegada
no grupo no local mudou a paisagem urbana, pois a presença de usuários de drogas e
praticantes de furtos e roubos da vizinhança que utilizam esse prédio abandonado assim
como o acúmulo de lixo e insetos gerava desconforto e insegurança para os moradores que
diante de um grupo diferente, com uma identidade bem-marcada, mesmo produzindo
estranhamentos com o passar do tempo, gerava uma nova sociabilidade.

As chamadas subculturas urbanas ou tribos urbanas são grupos de pessoas que


compartilham gostos, valores, códigos, práticas e uma estilo de vida semelhantes e que
estão reunidas na metrópole. O conceito “tribo urbana” foi criado pelo sociólogo francês
Michel Maffesoli em 1985, o livro “Le temps des tribus: le déclin de l'individualisme dans les
sociétés postmodernes” publicado em 1988, apontou para a criação de uma nova forma
de agrupamento social na sociedade moderna, na qual a necessidade de um grupo era
definida por estar em um estrato de geração particular e criaram formas de convivência
e interesse comum constituindo um conjunto de valores, práticas e ajuntamento coletivo
para a formação de uma identidade própria. Trata-se de um fenômeno urbano que com o
desenvolvimento das grandes metrópoles acompanhou a dinâmica dos grandes centros e
se multiplicam continuamente em microgrupos, que diante de um intenso processo de
massificação ancoradas no hiperindividualismo e homogeneidade para o sujeito urbano,
optam por contestar e inserir novos elementos para a formação de uma identidade

49
heterogênea. Assim, cada “subcultura social urbana” possui uma estrutura interna
particular que pode definir hábitos alimentares, condutas políticas, pensamos filosóficos,
vocabulário e linguagem próprias (gírias), gosto musical compartilhado, engajamento
político, religião, maneiras de vestir ou andar, dentre outros fatores.

O fato é que esse subgrupo urbano surgiu junto com a formação dos centros
urbanos, muitos nascem como movimentos de contracultura, como os punks ou
hippies, mas há uma diversidade desses grupos no meio urbano e eles organizam um
modo de vida diferente da maioria do que é compartilhado socialmente, assim como
criticam a política e economia que sustentam o sistema capitalista. As tribos urbanas
são fenômenos sociais comuns a contextos urbanos distintos.

No Brasil, o antropólogo paranaense Guilherme Magnani (1992) foi um dos


autores que partiu dessa linha analítica construída pelo francês Michel Maffesoli e em
uma perspectiva antropológica criticou o uso do conceito de “tribo urbana”, gerando
grande produção etnográfica e interesse por parte de pesquisadores brasileiros
interessados em questionar o uso dessa categoria para compreender as dinâmicas do
meio urbano, para Magnani (1992, p. 50), o uso do termo estaria associado "primitivo,
selvagem, natural, comunitário" e empobreceria a visão da diversidade de grupos e
identidades da metrópole.

Um dos clássicos textos de José Guilherme Cantor Magnani é o “Antropologia


urbana e os desafios na metrópole” em que o autor trata da aplicação da antropologia
para o entendimento do fenômeno urbano, adotando como ponto de partida as dinâmicas
culturais e as diferentes formas de sociabilidades encontradas na grande metrópole.
Parte da crítica que Magnani apresenta ao conceito de “tribos urbanas” vem a ser
melhor desenvolvido nesse texto, quando o autor vai abordar a noção de “escala” que
tende a reproduzir um padrão de investigação antropológica na metrópole como aqueles
desenvolvidos nas clássicas etnografias realizadas em comunidades e sociedades pré-
industriais, assim a dimensão da “aldeia”, da “comunidade” e do “pequeno grupo” são
termos que se apresentam como um desafio para o entendimento do contexto urbano, pois
teriam de ser contextualizados e problematizados em relação ao modo de vida urbano.

Além disso, outra importante característica apresentada pelo autor sugere


ferramentas metodológicas que permitam ao antropólogo estabelecer o que pretende
analisar a partir de um “ponto de vista” que pode ser de longe e fora (macro), o pesquisador
externo indo observar uma comunidade diferente da sua e de um ponto de vista de
perto e de dentro (micro), quando o pesquisador parte para a observação da sua própria
comunidade de pertencimento, seu grupo social. Magnani (1992) chama a atenção para
a grande produção e interesse da antropologia pelo estudo de sociedades “primitivas”,
com isso considera que uma investigação do meio urbano e as transformações sociais
que nele acontecem devem receber igual atenção e interesse dos antropólogos, pois
a vida está aberta à observação e ao estudo, os problemas e a riqueza cultural está
também presente no meio urbano.

50
A produção desse autor foi responsável por fornecer um grupo diversificado de
categorias de análise da antropologia urbana, só para termos uma ideia, algumas delas
são: pedaço, trajeto, circuito, mancha, pórtico. Todas essas categorias de análise fazem
parte de um vocabulário dos interlocutores de pesquisa do antropólogo, quando ao
observar e interagir com esses sujeitos apreendeu os sentidos e as palavras que eles
utilizam para falar de sua experiência de habitar a metrópole urbana.

Vamos agora conhecer um pouco melhor a formação e construção das identidades


urbanas, como a antropologia pode auxiliar a ver as diferenças e compreender que
estamos todos habitando um mundo em que a alteridade é uma condição da existência
humana. Neste tópico, já nos aproximamos um pouco dessa discussão a partir do caso
dos Okupas, teremos pela frente novos atores.

3 IDENTIDADES URBANAS
Caro acadêmico, o estudo do urbano pela antropologia se dá em face de um
contexto de época quando muitos antropólogos percebem que as mudanças provocadas
pela industrialização e urbanização eram inevitáveis e que as transformações estavam
acontecendo diante de si mesmos, como sujeitos que vivenciavam o urbano, a cidade
e suas mudanças. Uma primeira movimentação vem desse interesse por parte de
pesquisadores das ciências sociais em observação da cidade, investigar e analisar as
mudanças em curso na sua própria sociedade.

Um dos primeiros livros que ainda permanece uma importante referência no campo
da Antropologia Urbana é “O fenômeno urbano”, organizado pelo antropólogo Otávio
Velho, e publicado originalmente em 1967. O livro é uma coletânea de textos assinados por
pesquisadores da Escola de Chicago e que foram traduzidos para o português. Diversos
pesquisadores incorporam as suas análises a respeito da cidade e do urbano, aquilo que
vem a ser o conteúdo dessa coletânea. As mudanças e os problemas enfrentados pelas
grandes cidades em contínua transformação são reunidos em temas amplos que eram
encontrados nas grandes metrópoles, como a criminalidade, as subculturas juvenis, as
migrações do rural para o urbano, a formação e inchaço das favelas, assim como outros
assuntos como o desemprego, as culturas dissidentes, a falta de moradia, estavam no
centro de problemas sociais da cidade urbana em desenvolvimento.

A década de 1970 é um marco na consolidação da subárea Antropologia Urbana


no campo disciplinar da antropologia brasileira. O estudo cada vez mais crescente das
populações urbanas despertaram interesse de muitos pesquisadores e o campo de
estudos só fez crescer diante de um contexto político, econômico, cultural e acadêmico
que marcou o país naquele momento. Contexto de intensa efervescência política
e cultural em vista da repressão e perseguição trazidas pelos chamados “anos de
chumbo” da ditadura militar. Os conflitos sociais estavam em evidência, a repressão
política acompanhava o crescimento urbano, a pobreza e a marginalização de grupos
sociais vulnerabilizados. As ciências sociais tinham muito a investir em suas análises
51
de um período de tamanho registro de mudanças. Não por acaso, muitos cientistas
sociais passaram a se engajar mais politicamente em face da intensa repressão contra
pesquisas que falavam dos problemas sociais que o Brasil enfrentava, assim como dos
grupos sociais que viviam a experiência de exclusão tanto econômica quanto social.

DICA
Cabra Marcado Para Morrer – Filme de Eduardo
Coutinho
Em 1962, o líder da liga camponesa de Sapé (PB), João
Pedro Teixeira, é assassinado por ordem de latifundiários.
Um filme sobre sua vida começa a ser rodado em 1964,
com a reconstituição ficcional da ação política que levou
ao assassinato e direção de Eduardo Coutinho. As
filmagens são interrompidas pelo Golpe Militar de 1964.
Dezessete anos depois, em 1981, Eduardo Coutinho
retoma o projeto e procura Elizabeth Teixeira e outros
participantes do filme interrompido.

Data de lançamento: 3 de dezembro de 1984 (Brasil).


Diretor: Eduardo Coutinho.
Roteiro: Eduardo Coutinho.
Produtora: Mapa Filmes do Brasil.
Produção: Eduardo Coutinho, Zelito Viana.

Disponível em: https://youtu.be/VxzgLPyLIf4.

Fonte: https://bit.ly/3cKrXe4. Acesso em: 26 jul. 2022.

Assim, o estudo aprofundado da cidade permitiria ao antropólogo a investigação


desse sujeito social habitante da cidade urbana e que estava inserido nesse contexto
social. Enquanto para a sociologia e a ciência política a dimensão privilegiada de análise
estava concentrada na divisão social do trabalho, na estrutura de classes, para os
antropólogos o interesse agora se projetava nos sujeitos que habitam e dão sentido
a essa experiência de viver e disputar a cidade, o urbano, nas condições adversas que
marcavam a época.

Nesse sentido, o estudo aprofundado e em longa duração, próprio da investigação


antropológica procurava conhecer os grupos urbanos, assim como compreender a
maneira como estavam organizados, como davam sentido às manifestações que
realizavam, como classificam e constroem sua organização e mobilização no meio
urbano. A etnografia se mostrava uma ferramenta metodológica de grande relevância
para apreender essas diferentes nuances, pois, ao mesmo tempo, a partir do método
etnográfico, é possível conhecer o contexto social e a realidade do sujeito em interação,

52
condição de pesquisa própria da observação participante (MALINOWSKI, 1978).
Considerando essa perspectiva também podemos defender que a etnografia permite
ao pesquisador visibilizar e valorizar as experiências de grupos sociais vulnerabilizados
pela desigualdade.

Parte significativa do crescimento desses estudos está associada à ampliação


do espaço acadêmico universitário com a pós-graduação em antropologia. Assim,
programas de pós-graduação vinculados às universidades como Universidade Federal
do Rio de Janeiro (Museu Nacional) e a Universidade de São Paulo estavam fortemente
empenhados no estudo dessas dinâmicas do urbano. No caso, alguns temas tornaram-
se presentes entre os pesquisadores vinculados a esses programas, por exemplo,
o desvio e o comportamento social, moradias e unidades habitacionais, região moral
e estudo de favelas e comunidades, práticas festivas e de lazer, estudos de escolas
de samba e manifestações culturais, assim como o estudo de movimentos sociais,
associações e ações coletivas, gênero, sexualidade, questões raciais, relações sociais e
famílias no meio urbano, migrações e religiões.

A Antropologia Urbana aos poucos foi consolidando um subcampo de estudos


que passou a receber cada vez mais reconhecimento e prestígio da esfera pública
pelo trabalho de pesquisa realizado com os sujeitos sociais do contexto pesquisado,
assim não só as instituições se interessavam pelo conteúdo dessas pesquisas como
os próprios entrevistados (interlocutores da pesquisa) passaram a se interessar pelos
estudos e o trabalho desenvolvido com eles, seus grupos e suas comunidades. Um
tipo de vínculo e reconhecimento do trabalho científico passou a dar outro olhar para o
urbano para o modo de fazer pesquisa e antropologia no modo de vida urbano.

A Antropologia Urbana aparece muitas vezes como um contraponto dos estudos


clássicos da disciplina, em que o objeto de investigação e análise antropológica eram
as sociedades isoladas, tradicionais ou de pouco contato com as características de
uma modernidade em intenso desenvolvimento (MARCUS, 1991). No entanto, no Brasil,
especialmente, após esse processo de intensa investigação e estudos das populações
urbanas a própria Antropologia Urbana se consolidou como a área que cobre os estudos
dos grupos urbanos, sua complexidade e as sociedade modernas.

Os sujeitos, identidades e agrupamentos são cada vez mais diferentes e


ocupam o mesmo espaço social na cidade urbana, soma-se a este fato o processo
de globalização que envolve uma intensa e vasta rede de relações sociais, políticas,
econômicas que ensejam as relações no mundo urbano.

A globalização da qual fala Ulf Hannerz (1999) dá outros contornos às relações


sociais, agora marcadas por uma intensa interconectividade entre indivíduos, mas
também uma efervescente mistura de relações sociais entre grupos e identidades
diversas. As formas de comunicação e linguagem tornam-se globalizadas, a diversidade
social ganha precedência nas grandes metrópoles que se tornam cada vez mais
cosmopolitas produzindo novas dinâmicas culturais.

53
O sujeito urbano é heterogêneo, passa a constituir sua identidade marcada por
diferentes pertencimentos sociais. Sua identidade pode se associar por afinidades com
relação ao pertencimento local, isto é, morar no mesmo bairro ou condomínio, por um
identificação com relação a um gosto musical, samba ou punk rock, assim como ao
estabelecer vínculos religiosos, ser candomblecista ou católico, ter um grupo de trabalho,
reuniões de happy hour com os colegas do mesmo escritório ou encontros regulares com
profissionais da mesma área de trabalho, assim como pode se definir por pertencer ao
mesmo estrato social de classe e frequentar espaços de lazer e consumo comuns, bem
como por pertencer a mesma identidade racial, gênero ou sexualidade.

A crescente complexificação das relações sociais se tornam assim um


interessante modo de observar e entender as mudanças da vida social a partir do meio
urbano e como essas mudanças impactam em diferentes modos de vida, suas forças
produtivas, a maneira de deslocar ou se comunicar, a inserção de novos processos
administrativos ou políticos, tudo isso é parte de uma maneira de estar na cidade e
no urbano. “Deterioração dos espaços e equipamentos públicos com a consequente
privatização da vida coletiva, segregação, evitação de contatos, confinamento em
ambientes e redes sociais restritos, situações de violência etc.” (MAGNANI, 2002, p. 12).

Essas são características que influenciam na escolha da cidade como objeto


de análise e investigação por parte de antropólogos brasileiros. Os povos indígenas e as
populações rurais agora estão em contato com o aquilo que foi nomeado “progresso”
e o mundo urbano se apresenta como esse contexto social de grande interação entre
grupos que antes não habitavam ou compartilhavam os mesmos gostos ou modos de
vida. Dois antropólogos brasileiros contribuíram significativamente para expansão e
desenvolvimento dessa subárea de estudos, são eles: Gilberto Velho e Guilherme Magnani.

O antropólogo brasileiro Gilberto Velho, consolidou o campo de pesquisas do


urbano abordando diferentes temas, mas seu diferencial eram os estudos de classes
médias urbanas, especialmente aquelas que estavam no Rio de Janeiro, onde ele morava
e era professor no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional/ UFRJ. Em 1972, Velho publica “A Utopia Urbana: um estudo de antropologia
social”, considerado um clássico nos estudos de Antropologia Urbana. A investigação de
Velho concentra-se no estudo antropológico do bairro de Copacabana no Rio de Janeiro,
habitante de um prédio de apartamentos conjugados, ele tornou a experiência familiar
de habitar aquele lugar um objeto de análise a respeito da vida social no meio urbano.

A antropologia tem a grande vantagem de ter uma saudável tradição de


ceticismo e critica que pode nos ajudar a ver e superar as ideias velhas
e preconceituosas. Não creio que o estudo da própria sociedade
seja uma heresia dentro da trajetória de reflexão antropológica, mas
significa sem dúvida, uma ampliação e complexificação de nosso
campo de estudo. Logo é uma tarefa a ser assumida com todos os
riscos e desgaste que envolve (VELHO, 1987, p. 20).

54
Gilberto Velho procurou demonstrar como viviam os moradores de Copacabana em
relação ao bairro, o sentido de pertencimento, a afirmação positiva de estar e morar em
um bairro de fama internacional e revelou suas incongruências, considerando também a
abordagem socioespacial que Velho realiza naquele lugar, demonstrando a precariedade
de espaço, o custo de vida, a relação de vizinhança e os desafios de estranhar aquela
familiaridade. Do ponto de vista antropológico, o estudo do antropólogo carioca fornece
não só boas pistas para entender as mudanças no estilo de vida, modos de habitação
e ocupação da cidade, mas é extremamente rico em termos metodológicos, pois será
a partir desta experiência etnográfica que Velho vai postular a observação participante
mediante o equilíbrio entre a dimensão da familiaridade e do estranhamento como
perspectivas epistemológicas da antropologia feita na cidade, no urbano.

Influenciado pela Escola de Chicago, Gilberto Velho parte da perspectiva


interacionista para desenvolver sua análise do contexto pesquisado, observando as
crenças, valores, normas, visões de mundo, classe social, região, religião, escolaridade
como elementos constitutivos da experiência do indivíduo no meio urbano. Nessa
perspectiva, o antropólogo pretende compreender como os moradores do bairro de
Copacabana, residentes no prédio em que o estudo foi realizado, dão significado e
sentido às suas práticas sociais, seus comportamentos, bem como eles se apropriam
do espaço social e dos arranjos urbanos nos quais se inserem na cidade, sejam eles
físicos ou culturais. Por isso a importância do método etnográfico, pois ele permite que o
antropólogo descreva esses sujeitos, seus comportamentos, sua visão de mundo, seu
idioma e formas de linguagem, bem como aspectos gênero, raça, classe, sexualidade,
religião, trabalho e tantas manifestações materiais e imateriais de seu modo de vida.
Sempre a partir de uma interação que se faz com os sujeitos urbanos, os interlocutores
de pesquisa do antropólogo.

Gilberto Velho, em seu estudo de Copacabana, destaca os indivíduos que


moram no prédio a partir de suas interações com o bairro, os vizinhos e suas relações
para fora dali, situando a construção de seu modo de vida em interface com a cultura
do bairro, a cultura da cidade e a cultura urbana de forma geral. O antropólogo oferece
diferentes maneiras de olhar para a cidade, evidencia as sociabilidades constitutivas
desse todo social urbano, aborda os conflitos e a experiência de desvio, dá importância aos
movimentos sociais e articula diferentes dimensões da vida urbana e suas singularidades.

As etnografias desenvolvidas por Gilberto Velho são ricas para o campo da


antropologia, mas também para o leitor interessado em conhecer a diversidade dos
modos de ser que estão na cidade. O antropólogo sempre perspicaz em suas descrições
nos fornece um modo de deslocarmos nosso olhar sobre os sujeitos, a cidade e a
vida social que ele observou. Atento aos padrões de comportamentos, assim como
às normas sociais em momentos de interação dos sujeitos pesquisados, Velho nos
permite um exercício constante de relativismo, isto é, de entender aos nossos vizinhos
em seus próprios termos, assim nos aproximamos de um olhar atento àqueles que
cruzam com a gente na rua, que dividem o metrô ou ônibus e que passam por nós no

55
shopping. A etnografia da sociedade complexa, essa que compõe a cidade urbana e
suas singularidades, é uma maneira do pesquisador enxergar nossas diferenças, nossas
singularidades e compreender o quanto somos diferentes mesmo estando em uma
mesma cidade ou bairro, como é o caso de Copacabana.

Se olharmos para expressões culturais regionais o volume de informações,


práticas e sujeitos se amplia ainda mais. Teremos um conjunto ainda mais diverso de
nossas singularidades, no qual aparecem a diversidade étnica, a diversidade religiosa, a
vida cultural ou até mesmo os nossos hábitos alimentares, tudo isso pode ser visto a
partir de diferentes registros etnográficos. No campo religioso, por exemplo, no Brasil
há diferentes manifestações como o Candomblé, a Umbanda, o Protestantismo, o
Catolicismo, o Espiritismo, dentre outras manifestações religiosas.

O estudo etnográfico dessas religiões e suas práticas auxiliam a entender suas


normas, seus valores, suas práticas e compreender a diversidade dos rituais de fé
que fazem parte da identidade brasileira. Ao colocar em evidência essa diversidade,
a antropologia auxilia no conhecimento daquilo que não se conhece e que pode ser
objeto de preconceito e ofensa. Assim, os trabalhos que versam sobre essas temáticas
permitem entender como sujeitos sociais expressam sua espiritualidade e que podem
ter suas práticas reconhecidas sem se tornarem objeto de agressão ou violência na
forma da intolerância religiosa.

Todos esses são fenômenos que estão presentes no meio urbano e que fazem
parte da cultura complexa da cidade. Essa diversidade de estilos de vida, práticas culturais
e visões de mundo não determinam uma cultura única, mas ressaltam a pluralidade que
compõe a vida urbana e os sujeitos sociais que nela habitam. Por outro lado, Gilberto
Velho também vai chamar a atenção para os processos de “massificação” da sociedade
complexa, isto é, com a intensa modernização e industrialização o desenvolvimento da vida
nas metrópoles também produz transformações que geram padrões de comportamento,
sociabilidade, interação, costumes e rotinas.

Um interessante costume, exemplar desse processo de massificação das


sociedades complexas, é o consumo de telenovelas, assim como de redes sociais. Cada
segmento de classe social compartilha elementos comuns de interesse, assim como
interpretações particulares daquilo que está consumido, mas todos estão usando. A
partir das telenovelas podemos acessar conteúdos diversificados do modo de vida em
diferentes metrópoles urbanas brasileiras, as novelas que destacam os sujeitos e sua
vida no bairro do Leblon, aquelas que fazem referência ao período de escravização
e a luta da população negra para exercer sua liberdade no contexto de uma cidade
moderna, algumas destacam práticas religiosas, outras evidenciam conflitos familiares e a
diversidade dos sujeitos e das identidades urbanas. Lembra de alguma novela marcante
a respeito desses temas? Reflita.

56
DICA
Quem não lembra dos inúmeros comentários na rua, em casa ou no trabalho sobre
a trama de Avenida Brasil? Não conhece? Não assistiu? Pega essa dica, acadêmico,
e nos intervalos de estudo aproveite para assistir à novela e lembrar dos conceitos
antropológicos.

Disponível em: https://bit.ly/3S4c2rc

O meio urbano estudado por Gilberto Velho nos apresenta as influências que
mídias sociais, produtos e instituições exercem na formação e construção do nosso estilo
de vida, dos nossos costumes e nossos valores socialmente compartilhados.

A escola, a universidade, o trabalho, a vizinhança, a igreja, o clube, a comunidade,


o bar, o shopping ou o teatro são expressões desse conjunto de instituições da vida
complexa que agencia e produz identidades sociais na vida urbana. É a partir dessa
percepção que o antropólogo vai postular a importância da “metamorfose”, isto é,
a recepção dessas informações. Além disso, Gilberto Velho vai demonstrar que essa
recepção não é a mesma para todos que a veem, elas são interpretadas socialmente de
maneira diferente e muitos de nós podem se afetar por elas enquanto outros não. Nesse
sentido, destacamos os sujeitos urbanos e a construção de suas identidades, como eles
são heterogêneos em suas possibilidades de ação, interpretação e conhecimento de
mundo, podendo assumir papéis distintos em contextos situacionais diferentes. Para
entender melhor essa dimensão, convidamos você à leitura do texto complementar
sobre a população em situação de rua e seus direitos.

57
LEITURA
COMPLEMENTAR
POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA E O “DIREITO A TER DIREITOS”

Tomás Henrique de Azevedo Gomes Melo

Ao longo dos últimos anos, venho me dedicando a uma pesquisa da trajetória


social do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR). Em 2009, iniciei trabalho de
campo com pessoas que moravam nas ruas da cidade de Curitiba -Paraná, momento em
que a cidade se destacava por ser dotada de uma rede de atendimento socioassistencial
relativamente complexa, com diversos agentes e secretarias envolvidas no trabalho com
essa população. Havia, sobretudo, um momento de ebulição política em torno da questão
“população de rua”, com o envolvimento de diversos agentes, entre ONGs, grupos religiosos
de distintas congregações, agentes estatais de diversas secretarias municipais, além do
Ministério Público do Estado e pessoas em situação de rua que se encontravam para
debater publicamente os desafios de uma política adequada para este segmento.

Desde este período, acompanhei diversas atividades do MNPR e pude presenciar


o fortalecimento institucional de uma pauta que começou a ganhar notoriedade e
visibilidade pública em algumas cidades do país. Um importante marcador social desse
contexto se estabeleceu quando o ex-presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva assinou o
Decreto nº 7.053/2009, que institui a Política Nacional para a População em Situação
de Rua, documento que define as características do segmento populacional a ser
atendido. Deste processo recente, um dos resultados que mais me chamou atenção
foi o fortalecimento político de pessoas que se reconhecem enquanto população de rua,
que passam a fazer parte ativa dessa rede e que começam a atuar no MNPR, principal
núcleo aglutinador de proposições no plano da ação pública por parte do segmento.

Ainda que os antecedentes que forjam os termos e definições do que se tornou


a “população em situação de rua” mostrem seus primeiros contornos na década de
1950 na cidade de São Paulo, é na década de 1990 que estas iniciativas ganham força
e se configura uma atividade mais intensa, com mobilizações voltadas a questionar
a ausência de políticas públicas para o segmento. Do final da década de noventa em
diante, a politização em torno da questão “população de rua” se acentua, com um intenso
processo que resulta na constituição de manifestações, fóruns, seminários, encontros
e demais espaços específicos para a organização. Um dos resultados fundamentais deste
período foi a criação do referido Movimento Nacional da População de Rua (MNPR),
lançado publicamente em 2005, a partir do entendimento da necessidade de se criar
um movimento de bases sólidas, com atuação em nível nacional e organizado pelas
próprias pessoas em situação de rua na defesa de seus direitos.

58
Concordando com Costa (2007: 19), afirmo que a situação de rua ganhou
nuances na medida em que cresceu e se expandiu, tornando-se algo cada vez mais
presente no cotidiano das cidades. Junto a isto, entrelaçam-se novos discursos, práticas e
instituições que refletem sua presença marcante. No bojo dessas transformações nos
grandes centros, o fenômeno torna-se uma questão a ser amplamente debatida. No
entanto, o que considero fundamental apontar é que a existência do MNPR incide e
transforma diretamente o modo como o debate estava organizado: o estabelecimento
do MNPR marca em definitivo a existência de um espaço de fala e reconhecimento
das pessoas em situação de rua enquanto interlocutores válidos no campo de disputas
políticas e nas questões que se referem à vida em situação de rua.

Os esforços em torno do movimento produzem a mobilização de diversos


segmentos da sociedade, o que culmina em percepções renovadas da questão – não
apenas como foco de políticas setoriais ou objeto de debates, mas como interlocutores
possíveis na arena pública. É importante ressaltar, antes de tudo, que a população
de rua não tem uma tradição de organização por reivindicação, a exemplo de outros
segmentos sociais.

Dentre as principais razões indicadas pelos militantes do MNPR da dificuldade


de “organizar esse povo”, a primeira delas diz respeito aos desafios concernentes à
“redistribuição”, visto que existem dificuldades materiais inegáveis para “organizar” um
segmento social que vive em situação de extrema vulnerabilidade social.

Segundo militantes que entrevistei e acompanhei em diversas atividades, esses


desafios fariam parte do que se referem por “imediatismo da rua”. Ou seja, é absolutamente
difícil aproximar pessoas de atividades de organização e militância quando elas estão
o tempo todo vivendo em função de atender suas necessidades primordiais, o que
só é possível a partir de dinâmicas, temporalidades e circuitos que muitas vezes não
concedem grande autonomia aos sujeitos (tais como rotinas institucionais de albergues,
centros de convivência diurnos e demais serviços de acolhimento).

Mesmo as pessoas que não se utilizam desse tipo de serviço e passam a maior
parte de seu tempo na rua, têm suas agendas determinadas por outras atividades tão
ou mais “imediatistas”: a ocupação e salvaguarda dos espaços de suas “malocas”
ou “mocós” e seus pertences; os horários de atendimento dos serviços prestados por
voluntários que servem alimentação (as chamadas “bocas de rango”); as rotinas de
trabalhos, como a catação de materiais recicláveis; as atividades dos “flanelinhas”, que
cuidam de carros em pontos que precisam ser ocupados e defendidos para não serem
perdidos para a concorrência, dentre outros exemplos.

Todas essas atividades e rotinas institucionais, seja na rua ou nos chamados


equipamentos da assistência social, têm em comum o fato de que não se organizam
mediante uma programação de longo prazo, já que não existem garantias de vaga em
albergues ou de alimentação. Para garantir qualquer coisa é necessário se auto-organizar
diariamente para o acesso à alimentação, ao local de pernoite, até ao banheiro ou ao

59
banho. Desta forma, a questão que se coloca é: como chamar à organização pessoas
com tal nível de vulnerabilidade, com toda a sua rotina orientada para a resolução
imediata de suas necessidades, sem garantias futuras e pouquíssima margem para auto-
organização?

Posto de outro modo, trata-se do desafio de aproximar pessoas para atividades


que visam à construção de melhorias para o futuro – das quais ninguém tem garantias
– enquanto todas as atividades cotidianas para a sobrevivência são organizadas para
atender as necessidades mais imediatas. Outra parte do problema, também indicado
frequentemente pelos militantes do MNPR, diz respeito às demais especificidades desse
modo de vida, tais como o fato de grande parte dessa população ter chegado à situação
de rua em virtude do desenvolvimento de quadros de depressão, consumo de drogas e de
trajetórias apresentadas como situações de desamparo, processos de ruptura de vínculos
familiares e demais elos comunitários com as localidades de origem, além da privação
econômica. Estes processos, muitas vezes indicados como motivos para o início da vida
nas ruas, são compreendidos como fatores de forte cunho emocional que fragilizam
as energias e motivações dos sujeitos. Uma vez na rua, há um novo mundo a ser visto,
repleto de novas regras, etiquetas e uma moralidade própria que inspira as condutas. Este
amplo e complexo cenário indicado rapidamente aqui, é o pano de fundo a partir do qual
os militantes do MNPR analisam a situação de seus “companheiros de rua”.

Tal formulação poderia ser resumida a partir da concepção de que “a rua”,


enquanto um espaço abstrato (ruas, praças, vielas, equipamentos de atendimento em
que moradores de rua convivem), com regras e lógica própria, é marcada por experiências
de sofrimento e traumas profundos que determinam irremediavelmente a vida individual,
processo frequentemente sintetizado por frases como: “Você sai da rua, mas a rua não sai
de você”. O que gostaria de apontar aqui, portanto, é que se a situação de rua é marcada
por faltas e fragilidades, ela também se estabelece como um mapa de possibilidades
renovadas, condutas marcadas pela necessidade e criatividade para dar resolução ao
leque de dificuldades que se a figura. Compõe um contexto de privação material que
também estabelece marcadores e fronteiras identitárias, pertencimentos e diferenças.
No entanto, se estes aspectos estão intimamente ligados, especialmente no que diz
respeito às ditas dificuldades de organização política, eles estão igualmente presentes
no que tange à inclusão desse segmento em grande parte das políticas sociais. Pois,
pelo menos em sua produção inicial, a maioria das políticas não foi idealizada de modo a
garantir a essas pessoas o acesso aos bens sociais.

A falta de uma referência habitacional e de um documento que comprove a


residência foi um dos maiores impedimentos para acessar praticamente tudo: do
Programa Bolsa Família ao atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS), passando pela
inclusão em programas de habitação popular (Minha Casa, Minha Vida) até mesmo para
a matrícula dos/as filhos/as no ensino público ou, ainda, em casos em que indivíduos
em conflito com a lei recebem liberdade provisória ou prisão domiciliar e acabam sendo

60
punidos novamente por não terem uma referência domiciliar. Nos últimos anos, o MNPR
travou uma grande luta para fazer com que certas especificidades da vida na rua fossem
reconhecidas enquanto tal, para então criar alternativas para inclusão em programas
sociais ou mesmo para assegurar o acesso à saúde.

A partir da Instrução Operacional Conjunta Senarc/SNAS/MDS nº 7 de 22 de


novembro de 2010, estabelece-se uma modalidade de inclusão facilitada no Cadastro
Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico). Esta instrução tornou
possível o cadastramento sem a necessidade da documentação anteriormente exigida
para a inclusão nos Programas Sociais como o Bolsa Família, dentre outros benefícios
para os quais o CadÚnico se faz necessário, tais como a isenção de inscrição em
concursos públicos, a inclusão no BPC (Benefício por Prestação Continuada) e para
candidatar-se a programas habitacionais. A resolução para a questão se deu de uma
forma que poderíamos considerar “simples” e foi composta basicamente por duas ações:
a primeira delas era criar uma categoria específica para pessoas em situação de rua na
primeira parte do cadastramento, no qual normalmente a pessoa deveria caracterizar
seu domicílio (a natureza do material da construção, quantidade de cômodos etc.). A
outra ação foi considerar que estas pessoas sem endereço fixo poderiam ter como local
de referência algum equipamento ou serviço da assistência social no município em que
se encontram. Exemplo semelhante é o da Portaria n° 940, de 28 de abril de 2011, que
regulamenta o Sistema do Cartão Nacional de Saúde e em um de seus artigos dispensa
à população de rua e os ciganos da apresentação do comprovante de residência para
cadastramento no SUS: Ciranda no II Congresso do Movimento Nacional da População
de Rua (MNPR).

Tais ações, em um primeiro momento, foram destacadas como se fossem


meramente problemas técnicos a serem resolvidos, alcançando-se o público que
até então estava de fora dos programas sociais a partir de alguns pequenos ajustes.
É importante notar que esse tipo de formulação vai de encontro àquilo que Ferguson
(2009, p. 256) se refere como um processo de despolitização presente na redução da
pobreza a um problema técnico, com a consequente promessa de resolução técnica
para questões políticas. A fabricação deste tipo de separação entre técnica e política
ou entre mercado e Estado, por sua vez, tem como um de seus resultados a reificação do
“Estado”, apagando sua dimensão política e obliterando os efeitos de poder produzido
pela própria distinção entre esses domínios (VIANNA, 2013, p. 16-17).

Em última instância, trata-se de um tipo de “efeito de reconhecimento” da


existência de um segmento populacional pela precariedade material de seu modo de
vida e que, portanto, passa a ser aceito em tais programas. De todo modo, esta inclusão
mediada pela atenção a determinadas especificidades, sem as quais o atendimento não
seria possível, produz legibilidade, tal como compreendido por Das e Poole (2004, p.
16). No entanto, mais do que a forma como o estado torna uma população legível, o
que interessa saber é o alcance que isso pode ter nas práticas engendradas por este
“reconhecimento”.

61
O que se percebe é que boa parte dos esforços recentes por uma inclusão
qualitativa da população de rua em programas sociais e por acesso a direitos tem
sido realizado nesse plano, o que torna absolutamente necessário reconhecer as
especificidades de um modo de vida para tentar impactar positivamente o segmento em
termos de redistribuição. Redistribuir, pelo menos no caso da população em situação
de rua, significa necessariamente reconhecer especificidades de um modo de vida
historicamente estigmatizado, criminalizado e não raramente massacrado.

Fonte: MELO, T. H. A. G. População em situação de rua e o "direito a ter direitos". Novos Debates, Brasília,
DF, v. 1, n. 2, p. 198-206, 2015.

62
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:

• Conhecer as diferentes manifestações sociais presentes no meio urbano e as


novas relações de alteridade que estavam presentes. Identificou que há uma certa
familiaridade com o social, com os indivíduos e mesmo com a cidade que é o lócus de
observação, mas também de moradia e pertencimento dos próprios antropólogos.

• Identificou questões metodológicas no campo das pesquisas em antropologia urbana


a partir da experiência de observação etnográfica que reúne uma produção focada
nas transformações das comunidades, na mudança do campo para a cidade e percebeu
que o antropólogo busca observar o que na cidade há de mudança, quais os grupos
que agora fazem parte da construção e da disputa de uma cidade urbana.

• Aprendeu a reconhecer a diversidade de grupos sociais no meio urbano e suas


demandas, assim como passou a conhecer os diferentes modos de mobilização
de grupos sociais que passam a constituir o lugar da cidade (negros, indígenas,
população rural que migra para as grandes metrópoles, comunidades religiosas,
grupos de diferentes sexualidades e gêneros), e foram chamados de minorias sociais ou
grupos e tribos urbanas.

• Percebeu como as mudanças do espaço social interferem na subjetividade dos


indivíduos no meio urbano. Aprendeu as diferentes identidades e construção de
grupos sociais na cidade que reivindicam não só o reconhecimento dos seus modos
de vida mas também reivindicam melhores condições de vida na cidade diante
de problemas sociais que surgem no meio urbano com o inchaço das cidades e a
infraestrutura precária para lidar com grandes aglomerados de pessoas.

63
AUTOATIVIDADE
1 O texto “O urbanismo como modo de vida” do sociólogo estadunidense Louis Wirth
(1979) é um importante estudo que marca uma abordagem do urbano na antropologia
brasileira. O autor é considerado um dos mais notáveis estudiosos do fenômeno
urbano nos Estados Unidos. Wirth elaborou sua interpretação do fenômeno urbano
contribuindo para uma “teoria sociológica e sociopsicológica do urbanismo”. Sobre
estas grandes contribuições ao conhecimento da Antropologia Urbana, assinale a
alternativa CORRETA:

Fonte: WIRTH. L. O urbanismo como modo de vida. In: VELHO, O. (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro,
Zahar Editores, 1979. p. 89-112.

a) ( ) Uma definição sociologicamente significativa do que seja cidade procura


selecionar aqueles elementos do urbanismo que marcam como um modo
distinto de vida dos agrupamentos humanos.
b) ( ) Uma característica marcante do modo de vida urbano na vida dos indivíduos da
idade moderna é a alta criação de vínculos sociais primários, famílias e parentes.
c) ( ) Para Wirth não estamos conectados por práticas sociais herdadas de uma vida
anterior, pois quando vamos para a cidade a nossa cultura desaparece e produz
algo totalmente urbano.
d) ( ) A heterogeneidade de grupos e pessoas na vida urbana permite que possamos nos
relacionar com maior mobilidade, estabilidade e segurança em nossas relações
sociais.

2 Com a Revolução Industrial e o acerelado processo de urbanização, tornou-


se crescente a população da cidade e isto complexificou as relações sociais. Tais
mudanças se tornam assim um interessante modo de observar e entender o novo
modo de vida urbano. Com base nessas mudanças, analise as sentenças a seguir:

I- Essas mudanças impactam diferentes modos de vida, suas forças produtivas, a


maneira de deslocar ou se comunicar, a inserção de novos processos administrativos
ou políticos, tudo isso é parte de uma maneira de estar na cidade e no urbano.
II- Segundo Gilberto Velho, os sujeitos urbanos e a construção de suas identidades
são homogêneos, porque os indivíduos urbanos interpretam e conhecem o mundo
somente como as telenovelas mostram e assim aprender a se tornar todos iguais,
não há espaço para mudança.
III- Para Guilherme Magnani é parte da maneira de estar na cidade e no urbano
perceber a deterioração dos espaços e equipamentos públicos com a consequente
privatização da vida coletiva, segregação, evitação de contatos, confinamento em
ambientes e redes sociais restritos, situações de violência etc.

64
Assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 Parte importante do estudo antropológico do modo de vida urbano vem do interesse


de pesquisadores e pesquisadoras que veem os inúmeros grupos sociais que se
desenvolvem e se organizam coletivamente a partir da cidade. Uma parte desses
pesquisadores lidam com a categoria cidade como um lócus de observação etnográfica,
por onde antropólogos podem ver a diversidade dos modos de agrupamento,
manifestações sociais e ações coletivas, bem como registrar a alteridade entre os
sujeitos que se agrupam e lutam pelo direito à cidade, à moradia e aos diferentes
modos de vida. A partir desse olhar antropológico, classifique V para as sentenças
verdadeiras e F para as falsas:

( ) O urbanismo como modo de vida revela uma tendência a adquirirmos uma


sensibilidade ao universo dos artefatos e com isso progressivamente vamos nos
distanciando das pessoas, acumulando mais objetos e produtos fabricados pela
indústria capitalista que tem sempre algo novo para nos satisfazer.
( ) O conceito de tribos urbanas se refere aos grupos sociais formados por etnias
indígenas que migram das aldeias mãe para morar na cidade urbana e assim formam
novos grupos indígenas.
( ) As chamadas subculturas urbanas ou tribos urbanas são grupos de pessoas que
compartilham gostos, valores, códigos, práticas e uma estilo de vida semelhantes e que
estão reunidas na metrópole.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 A presença massificada de pessoas na cidade também poderá favorecer a formação de


agrupamentos do espaço urbano e a investigação antropológica permite compreender
as diferentes formas de expressão, pertencimento e identidades que compõem essa
cidade. Michel de Certeau (1994) chamou a esse tipo social de “cidade praticada”, uma
maneira de olhar para os sujeitos que vivenciam e percebem a cidade ao seu modo.
Disserte sobre um tipo social de grupo urbano citado no texto.

Fonte: CERTEAU, M. A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, Vozes, 1994.

65
5 Existem muitas estratégias de pesquisa e de observação possíveis de serem adotadas
nas atividades etnográficas. A observação participante é uma delas. Nesta proposta, a
relação entre os pesquisadores e os interlocutores se torna mais próxima, pois existe
uma mudança de atitude e atenção maior no aspecto de qualidade e na forma de
criação de vínculos entre sujeitos em interação. Neste contexto, disserte sobre as
principais contribuições dos estudos de Gilberto Velho e Guilherme Magnani para a
Antropologia Urbana.

66
REFERÊNCIAS
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MALINOWSKI, B. Argonautas do pacífico ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

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VELSEN, J. V. A análise situacional e o método de estudo de caso detalhado. In:


FELDMAN-BIANCO, B. (org.). Antropologia das sociedades contemporâneas –
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WIRTH. L. O urbanismo como modo de vida. In: VELHO, O. (org.). O fenômeno urbano.
Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979. p. 89-112.

69
70
UNIDADE 2 —

ANTROPOLOGIA RURAL

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender especificidades das pesquisas sobre o mundo rural para a formação do


subcampo da antropologia rural;

• familiarizar-se com os conceitos de “rural” e “novas ruralidades” a partir dos estudos


das escolas de pensamento;

• perceber as interligações entre os diferentes sistemas de produção social, econômica e


política no mundo rural;

• conhecer a diversidade de grupos sociais e suas diferentes formas de organização


social ao abordarmos os modos de produção, formação de identidades sociais e os
conflitos que ensejam o campo.

PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – CONCEITOS E TRADIÇÕES TEÓRICAS NOS ESTUDOS DE CAMPESINATO E DA


RURALIDADE

TÓPICO 2 – POVOS TRADICIONAIS E SEUS MODOS DE USO E OCUPAÇÃO DO ESPAÇO


RURAL

TÓPICO 3 – ORGANIZAÇÕES ECONÔMICAS, RELAÇÕES SOCIAIS E MORALIDADES NO


MUNDO RURAL

CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

71
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 2!

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72
UNIDADE 2 TÓPICO 1 —
CONCEITOS E TRADIÇÕES TEÓRICAS NOS
ESTUDOS DE CAMPESINATO E
DA RURALIDADE

1 INTRODUÇÃO
Caro acadêmico, estamos numa travessia de conhecimento antropológico e
etnográfico que navega pelos estudos da antropologia considerando suas subáreas,
rural e urbana, já vimos na primeira unidade aqueles conceitos mais elementares da
antropologia e fizemos um mergulho nos estudos da vida urbana, passando pelas
principais escolas de pensamento e considerando alguns estudos etnográficos que nos
permitiram conhecer um pouco melhor como se faz uma investigação antropológica no
mundo urbano.

Figura 1 – Batizado na Roça, Anita Malfatti

Fonte: https://bit.ly/3Q1FyeY. Acesso em: 19 ago. 2022

Além disso, também foi possível dialogar com alguns autores que se dedicaram
ao estudo sistemático das transformações sociais a partir da Revolução Industrial e da
implementação do sistema capitalista, considerando as diferentes mudanças ocorridas
com a formação das cidades urbanas, grandes metrópoles e modos de vida que foram
afetados por essas dinâmicas de interação que passaram a surgir nesse no modo de
vida urbano.

73
Pois bem, você já deve ter percebido que há inúmeras transformações políticas,
sociais, econômicas e culturais. Nossa abordagem anterior destacou apenas alguns
aspectos desse novo modo de vida urbano, mas você sabe que é apenas um pedaço de
um vasto conhecimento em termos de pesquisas sociais sobre essas mudanças. Então,
renovamos agora o compromisso de partir desses estudos e procurar conhecer cada
vez mais o mundo social e suas transformações para chegar exatamente no ponto que
estamos vivendo agora: a vida contemporânea.

Autores, escolas e estudos são como mapas conceituais, que servirão a você
para aprofundar o seu conhecimento. Acadêmico, você já percebeu até aqui o quanto
é instigante e sedutor conhecer, aprender e entender tantos aspectos da vida social
através das lentes de análise da antropologia.

Agora nossa travessia de conhecimento vai nos levar à subárea Antropologia


Rural, vamos mergulhar em pesquisas, autores e teorias que se dedicaram a estudar
e investigar as diferentes formas de vida que compõem o mundo rural, esse habitat
social que também foi palco de transformações importantes em decorrência das novas
atividades produtivas que surgem com a Revolução Industrial e o Sistema capitalista.

Mas antes de nos aprofundarmos no estudo sistemático da antropologia rural é


importante que você entenda que as populações rurais estão sempre em interação com
outros grupos sociais, inclusive do meio urbano, que é fundamental compreendermos
que o mundo rural não é um lugar “isolado”, distante de mudanças sociais ou “atrasado”,
ao ter essa compreensão você está exercitando o pensamento antropológico de
relativizar essas distâncias sociais entendendo de forma rigorosa e contextualizada que
apenas existem diferenças nos modos de ser e de viver seja no ambiente urbano ou no
ambiente rural.

Um passo importante nessa dimensão de aprendizado que a antropologia


sugere é perceber que existem influências sociais do mundo rural no mundo urbano e
do mundo urbano no mundo rural.

Se você lembrar bem, logo no início da primeira unidade, nós fizemos uma
curiosa imersão nos estudos clássicos de antropologia para falar das mudanças e
perspectivas que a própria ciência antropológica vai vivenciar na medida em que a vida
vai se transformando. Exemplo disso foi o entendimento acerca dos primeiros estudos
antropológicos que estavam interessados em “catalogar” e “preservar” os conhecimentos
dos “povos primitivos”, era o principal objeto de estudo da antropologia clássica e só
mais tarde a antropologia passa a se interessar pelo estudo das “sociedades complexas”
ao dar início ao estudo e às novas pesquisas em populações rurais.

Então, acadêmico, fique atento e preste muita atenção que nesta unidade nós
aprofundaremos o nosso conhecimento na antropologia rural e, já de partida, lembre-
se que durante um bom tempo a antropologia chamou essa subárea de estudos de

74
campesinato. Também vamos entender o porquê e quais são os demais eixos de pesquisa,
seus principais autores e etnografias sobre esse campo. Ao longo desta unidade, você
encontrará alguns autores que estudaremos aqui, mas sempre terão outras dicas que
podem levar você a explorar outros campos de pesquisa por meio de recomendações
de livros, revistas, podcasts, vídeos, documentários e muito mais.

2 OS ESTUDOS DO RURAL NA FORMAÇÃO DA


ANTROPOLOGIA BRASILEIRA
Os primeiros trabalhos relacionados ao estudo do ambiente rural ou do campo
acontecem numa época em que a antropologia ainda não era uma área acadêmica
bem estruturada no Brasil. Sobre isso, cabe aqui fazermos uma breve contextualização
desse período de formação da antropologia brasileira e vamos partir das contribuições
do trabalho intitulado “A Antropologia no Brasil: um roteiro” que foi publicado em 1983
(republicado em 2007) pelo antropólogo Júlio Cezar Melatti (2007). Preste bem atenção,
acadêmico, este autor procurou traçar uma genealogia da formação do campo da
antropologia brasileira destacando três principais períodos dos estudos antropológicos
no Brasil: o primeiro reconstrói os trabalhos produzidos até 1930, o segundo momento
se dá a partir de 1930 e vai até 1960 e o terceiro momento é aquilo que vem após 1960 e
chega aos anos 1980 período de escrita e publicação do referido artigo.

Nesse primeiro momento destacado por Melatti (2007), isto é, até os anos 1930, a
antropologia brasileira ainda não era um campo bem delimitado no Brasil, não havia,
por exemplo, uma formação acadêmica em Antropologia e era um momento em que
começava a surgir como um subcampo das ciências humanas na Europa. Parte curiosa do
registro de material que serviria aos estudos antropológicos começa com uma grande
contribuição de viajantes, cronistas, missionários e de outros profissionais como médicos,
militares, juristas e engenheiros que interessados nos relatos compartilhados de viagens
passavam a descrever aspectos dessas experiências. Seus relatos serviram como material
de pesquisa documental para os antropólogos e outros estudiosos.

Esses pesquisadores, quase todos autodidatas em Antropologia, a


par de seus levantamentos a respeito de índios, negros, sertanejos,
mostravam na maior parte dos casos um certo interesse no destino
das populações que estudavam e seu lugar na formação do povo
brasileiro, cujo futuro era objeto de suas preocupações (MELATTI,
2007, p. 5).

75
DICA
O romance de Daniel Defoe, Robinson Crusoé, é considerado um marco cronológico e
conceitual na definição da modernidade. A obra, publicada em 1719, concentra diversas
características da Era Moderna (1453-1789) e é sempre lembrada como uma referência
para entender o contexto de transição para a Modernidade. Além disso, para nossos
interesses aqui do livro é um exemplo interessante das contribuições da literatura e dos
relatos de viagem como fontes para interpretação do mundo social. São duas dicas em
uma, o romance foi recentemente reeditado e ganhou uma versão belíssima da Editora
Ubu (https://www.ubueditora.com.br/robinson-crusoe.html).

Figura – Contribuições da literatura

Fonte: https://bit.ly/3CIZAIu. Acesso em: 30 ago. 2022.

E, em 1954 também ganhamos uma produção cinematográfica (dirigida por Luis Buñuel,
México, Estados Unidos, 1954. Drama/Aventura), a qual você poderá assistir em: https://bit.
ly/3Kxb4k4.

SINOPSE: a história clássica de Robinson Crusoé, um homem que foi arrastado para
uma ilha deserta depois de um naufrágio. O único filme de Luis Buñuel financiado por
um estúdio americano.

PREMIAÇÕES E FESTIVAIS
Venice Film Festival 1954.
Academy Awards 1955 | Nomeado: Best Ator in a Leading Role.
Locarno International Film Festival 1960.
BAFTA Awards 1955 | Nomeado: Best Film from any Source.

Alguns desses colaboradores que serão lembrados por Melatti (2007) são
Roquette Pinto, Nina Rodrigues, Sílvio Romero e Euclides da Cunha. Estes autores
contribuíram com registros a respeito dos povos indígenas, negros e sertanejos no
período que vai do final do século XIX ao início do século XX, tendo como principal
afinidade teórica compartilhada entre eles o uso das teorias de “determinismo geográfico”
e “determinismo biológico” para pensar a formação da nação brasileira.

76
Esses autores foram duramente criticados por afirmarem em seus argumentos
a hierarquia entre raças, estabelecendo que haveria sociedades superiores e outras
inferiores, no caso brasileiro o argumento elaborado por eles afirmava que a formação da
nossa sociedade com base na mestiçagem seria ruim para o país, pois a partir dessa
mistura aquelas características associadas à raça negra ou indígenas eram vistas como
prejudiciais e inferiores em relação ao branco, muitos pesquisadores brancos reforçavam
esses estereótipos com teorias racialistas que tenderia enfatizar as supremacias
genéticas de uns grupos, grupos brancos, sobre outros, negros e indígenas, e tal
premissa estava inspirada em teorias racialistas europeias que viam na mestiçagem um
bloqueio ao desenvolvimento da nação.

A rigor o conceito de mestiçagem ou miscigenação refere-se aos processos de


mistura ou composição racial entre diferentes raças, etnias e culturas. Sobre o termo
você poderá aprofundar sua leitura a partir das contribuições de Sergio Costa (2001):

No presente contexto, só pode ser apresentado com o status de


hipótese é que a mestiçagem, como ideologia de Estado, deixa de
existir no Brasil contemporâneo, verificando-se que elementos
essenciais desse construto político são crescentemente colocados
em questão. Trata-se aqui da busca de novos canais de expressão de
identidades culturais e da redescoberta de raízes étnicas, ofuscadas
ou neutralizadas no período de vigência da ideologia da mestiçagem.
A observação das transformações no espaço público brasileiro
nas últimas três décadas evidencia um processo de pluralização
cultural e política expresso em desenvolvimentos muito variados,
destacando-se entre esses: etnicização de muitas identidades
políticas, vertiginoso crescimento do associativismo étnico, um novo
direito indígena que pressupõe não mais uma paulatina assimilação
dos grupos indígenas mas a permanente preservação de suas formas
de vida. Detalhasse três fenômenos particularmente representativos
de tais transformações (COSTA, 2001, p. 149).

Além disso, conforme explica o pesquisador Flávio Raimundo Giarola, essas


teorias foram amplamente compartilhadas e difundidas por meio da ciência que
“recebeu largo espaço no Brasil, questionando e disputando espaços inclusive com a
religião e a Igreja, até então grandes fontes dos discursos fechados” e “competentes da
época”, afirma o pesquisador da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), no
artigo “Racismo científico: o legado das teorias bioantropológicas na estigmatização do
negro como delinquente”.

O que se observa entre as críticas elaboradas sobre essa abordagem precon-


ceituosa e limitada é que essas ideias vão produzir um conjunto de interpretações distor-
cidas de pessoas negras e indígenas, compartilhadas por meio de “exposições antropo-
lógicas”, nas quais indígenas e negros eram transportados de suas terras originárias
e levados para espaços de exposição publicas onde eram exibidos publicamente, como
mostra a imagem a seguir.

77
Figura 2 – Exposições públicas

Fonte: https://bit.ly/3pSk3Tw. Acesso em: 21 ago. 2022.

IMPORTANTE
Sobre as teorias racialistas você pode ler este interessante artigo:
• COSTA, S. A mestiçagem e seus contrários – etnicidade e
nacionalidade no Brasil contemporâneo. Tempo Social – Rev.
Sociol, S. Paulo, v. 13, n. 1, p. 143-158, maio 2001.

A rigor, o único dentre os citados que não compartilhava dessa visão


estereotipada da mestiçagem era Roquette Pinto, pois em sua argumentação a mistura
entre raças poderia fornecer o melhor de cada uma delas para a formação do país, da
nação brasileira. Nesse sentido, cabe ainda destacar que Pinto atribuía força explicativa
ao argumento de que a educação estabeleceria maior contribuição social do que a
eliminação de raça.

Nina Rodrigues, por outro lado, reforçava a hierarquia afirmando a supremacia


racial branca como superior e atribuindo aos negros um perfil inferior, seus trabalhos
serviram para reforçar estereótipos racializados negativos sobre pessoas negras e
será duramente criticado por suas posições. Os problemas sociais do Brasil eram
explicados com bases nessas teorias racialistas que atribuíam aos próprios negros,
indígenas e sertanejos a responsabilidade pelas desigualdades e as condições sociais
que vivenciavam sem considerar os impactos do processo escravocrata, da colonização
e da ausência de um projeto político que de fato abrigasse a diversidade de povos,
culturas e formas de vida da nação brasileira.

Agora, acadêmico, veja que o determinismo geográfico é uma teoria elaborada


pelo geógrafo alemão Friedrich Ratzel [1882] (MORAES, 1994), que afirma que as condições
espaciais, isto é, geográficas, exercem influência das características pessoais de um grupo
social. O determinismo biológico parte de outro pressuposto que afirma que as características

78
genéticas definem as capacidades físicas, psicológicas e biológicas de um ser humano de
acordo com o grupo ao qual pertence (etnia). Ambos se assemelham por afirmarem que as
diferenças culturais podem ser explicadas pela origem genética, isto é, biológica.

Contestando essa abordagem, o antropólogo brasileiro Roque de Barros Laraia


(2001) afirmou que qualquer criança poderá ser educada em qualquer cultura, tendo
uma situação em que possa ser socializada e ter acesso ao aprendizado. Com isto, o
autor reforça o argumento de que as diferenças de comportamento entre as pessoas
não são determinadas biologicamente, mas devem ser entendidas antes de tudo pela
história cultural de cada um. O comportamento do ser humano depende de um processo de
enculturação, isto é, um processo de aprendizado social. Não é a raça que determina o
comportamento, mas o processo de aprendizagem cultural.

Sabemos que as teorias deterministas têm um componente racista em sua


elaboração, assim, muitos antropólogos contestaram tais pressupostos, o antropólogo Franz
Boas (2004; 2010), por exemplo, critica veementemente essas afirmações deterministas
apresentando dados empíricos de suas pesquisas em que mostrará que há uma diversidade
cultural muito mais ampla e que pode ser vista empiricamente quando enxergamos práticas
diferentes entre grupos sociais que vivem em localidades geográficas parecidas, exemplar
disso são os grupos distintos como os esquimós e os lapões.

No Brasil, Gilberto Freyre será lembrado como um autor que supera essa visão das
teorias deterministas após a publicação da obra clássica Casa Grande & Senzala em 1933.

Freyre havia convivido com Franz Boas em sua passagem pela Universidade de
Columbia, seu argumento vai no sentido inverso ao dos autores filiados ao “determinismo”
quando afirmou, a partir de uma análise do processo histórico de formação do Brasil,
que a miscigenação não representava atraso ao desenvolvimento do país, mas um
componente rico de diversidade cultural em que as três raças contribuem de forma
virtuosa para a integração do país.

Em 1936, Freyre publicou outro importante livro Sobrados e Mucambos, no qual


analisa as contribuições culturais particulares dessa matriz de formação do Brasil que
é definida pelos seus processos históricos e pela interação dessas diferentes raças.
Mais tarde este autor também será criticado pelo excesso de romantização dessa teoria
da harmonia entre as “três raças” (indígenas, negros e brancos), a principal crítica ao
pensamento deste autor está no fato dele não reconhecer as implicações do racismo
na sociedade brasileira ao camuflar essas desigualdades com uma visão “romanceada”
baseada numa hierarquia entre brancos e não brancos (negros e indígenas). No
presente, não deixa de ser interessante olhar para as contribuições de Gilberto Freyre a
partir da perspectiva de Silvio Almeida (2018) que nos convida a imaginar o futuro do
Brasil livre de racismo, respeitando os povos indígenas e convivendo harmoniosamente
na construção de uma nação que respeita a diversidade e enaltece a construção dessa
integração interracial.

79
Muita informação interessante até aqui, não é, acadêmico? Mas não para por
aí, voltemos nosso olhar para essas etapas de formação da antropologia, localizando os
estudos clássicos do campo. Na continuidade do que é proposto por Melatti (2007) o
segundo período definido é aquele que vai de 1930 até 1960 e é considerado um marco
para a profissionalização da área, isto porque foi nesse período que a Antropologia
passou a ser uma área das Ciências Sociais e um campo de estudos com formação
acadêmica.

No ano de 1934 a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Brasil foi criada


na Universidade de São Paulo (USP). Entre seus quadros profissionais destacam-se
os nomes de Claude Lévi-Strauss, Roger Bastide e Emílio Willems. As Ciências Sociais
estavam em pleno desenvolvimento na época, no mesmo ano a Escola de Sociologia
e Política também foi fundada, destacando-se entre seus professores os nomes de
Donald Pierson e Herbert Baldus.

Conforme destacado por Melatti (2007, p. 11) “sem dúvida foi em São Paulo, pelo
número de professores, pelo número de alunos e pelo espírito de renovação, o principal
foco de irradiação da Etnologia nesse período”. Além dessas escolas, fora do espaço
acadêmico universitário, foram criadas em 1937 a Sociedade de Etnografia e Folclore e em
1941 a Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia.

INTERESSANTE
Na antropologia falamos em etnologia para nos referir aos estudos que se dedicam à
análise de situações sociais e documentos registrados pela etnografia de forma detalhada
para descrever grupos sociais, etnias ou culturas de um povo de forma comparada. A
etnografia estuda um grupo particular em minucia, enquanto a etnologia se serve de
diferentes etnografias para realizar um estudo comparado desses dados etnográficos das
diferentes sociedades. A Etnologia tem um interesse maior sobre o estudo de sociedades
consideradas “nativas”, como os povos indígenas de diferentes partes do mundo, povos
africanos ou povos asiáticos, por exemplo. Você pode aprofundar um pouco mais as
perspectivas em etnologia a partir da conferência realizada em 29 de agosto de 1994 na
Faculdade de Ciências e Letras de Assis, com promoção do Programa de Pós-Graduação
em História com a conferencista: Joanna Overing (Escola de Economia – Universidade de
Londres). A antropóloga Joanna Overing apresenta uma palestra sobre
a sociedade indígena Piaroa, cuja área se estende pela Amazônia,
Venezuela e Colômbia. Joanna fala da cultura desse povo e como
eles veem o homem branco. Também fala da importância da
cosmologia e a cosmovisão promovida dentro daquele
grupo. Este vídeo integra o acervo audiovisual do Centro de
Documentação e Apoio à Pesquisa (CEDAP) da Faculdade
de Ciências e Letras de Assis (UNESP-FCL). O conteúdo pode
ser acessado na íntegra por meio de solicitação.
Acesse: http://www.assis.unesp.br/#!/cedap.

Você pode fazer uma visita virtual ao Museu de Arqueologia


e Etnologia da Universidade de São Paulo clicando nesse link:
https://mae.usp.br/.

80
É a partir da década de 1930 que há uma forte influência de estudos norte-
americanos no país com a vinda de antropólogos do calibre de Ruth Landes, Charles
Wagley e Donald Pierson. A chegada desses pesquisadores influenciará fortemente o
campo da antropologia no Brasil até o final da década de 1960. Esses autores contribuem
para fortalecer perspectivas teóricas e metodológicas por meio de estudos sobre
mudança social, mudança cultural e processos de aculturação. De acordo com Melatti
(2007, p. 13), estes antropólogos ampliaram a pesquisa em grupos de comunidade.
“[...] tiveram por objeto tanto a população negra, como os grupos indígenas, bem como
imigrantes europeus e asiáticos e seus descendentes e ainda a população de áreas de
povoamento antigo e economicamente estagnadas”.

Todavia, a década mais importante para nossa abordagem aqui neste livro é a
década de 1940, pois, segundo Melatti (2007), os estudos chamados de “aculturação”
envolvendo as relações entre indígenas e brancos são um marco para época por
utilizar a teoria funcionalista para estudar a cultura indígena em sua totalidade, a partir
principalmente da sua organização social, sua religião e sua cosmologia.

Dentre os principais autores desse período destacam-se Charles Wagley, Eduardo


Galvão e Egon Schaden. Nessa época, os trabalhos de pesquisa desses antropólogos
caracterizavam-se pelo circuito de expedições que tinham por finalidade abranger o maior
número possível de territórios e diferentes grupos indígenas (MELATTI, 2007).

Entretanto, veja bem, acadêmico, conforme aponta Melatti (2007) tinham grupos
de pesquisadores que estavam interessados em estudar a população negra, também
nesse período, alguns deles são Roger Bastide, Edson Carneiro, Ruth Landes e Arthur Ramos,
cujo interesse de pesquisa estava focado na análise das práticas culturais africanas que
continuaram a existir no Brasil, após o processo colonial de escravização. Para estes
autores, mesmo enfrentando o deslocamento forçado com a perda de várias referências
de sua própria cultura de origem em detrimento da alta exposição às crenças e valores
culturais do grupo dominante, ainda era possível encontrar traços culturais africanos
presentes nas práticas, valores e hábitos desses remanescentes.

É nesse contexto de pesquisa e nesse período que os estudos de antropologia


urbana se cruzam com os estudos de comunidade por efeitos do deslocamento de
análises para o campo das cidades brasileiras onde estarão grupos religiosos, grupos
étnicos e formas de vida em interação ou os chamados estudos de contato interétnicos
que envolve também os estudos de grupos de imigrantes, exemplar disso são os estudos
de Emílio Whillems sobre os alemães, os trabalhos de Ruth Cardoso sobre os japoneses,
assim como os estudos de Eunice Durham sobre os italianos. Esses trabalhos discutiam
aculturação a partir dos estudos de comunidade.

Porém, a partir de 1952, chegam sucessivamente três missões científicas da


Universidade de Tóquio para estudar os japoneses e seus descendentes no Brasil em
colaboração com pesquisadores brasileiros. O primeiro a chegar, em 1952, foi Seiichi
Izumi, que volta outra vez ao Brasil em 1955 à frente de uma equipe; em 1957 chega uma

81
equipe dirigida por Fumio Tada. Ao mesmo tempo em que esses pesquisadores japoneses
atuavam, desenvolviam-se os trabalhos de Hiroshi Saito, em colaboração com eles, e,
ainda, os de Egon Schaden e de Ruth Correia Leite Cardoso (MELATTI, 2007, p. 14-15).

Os chamados estudos de comunidade vão se consolidar entre as décadas de


1940 e 1950, encontrando ainda bastante produção até a década de 1970. Autores como
Emílio Willems, Oracy Nogueira, Donald Pierson e Antônio Cândido são lembrados como
expoentes desse período, de acordo com Melatti (2007). Estes estudos empregavam
como atividade de pesquisa o convívio e a inserção do antropólogo na comunidade
pesquisada, ao estabelecer essa relação de pesquisa o antropólogo teria uma visão
ampliada e de maior duração com a comunidade. Esses estudos foram utilizados como
referência fundamental no desenvolvimento das etnografias realizadas em contextos
urbanos, pesquisadores tomaram esses trabalhos como modelo metodológico para
realizar estudos urbanos.

INTERESSANTE
Roberto Cardoso de Oliveira (1928-2006) formou-se em Filosofia na Universidade de
São Paulo (USP) no início da década de 1950, mas é na Antropologia que sua carreira
se consolida. Seu primeiro contato com a disciplina ocorreu ainda na USP, por meio
das aulas ministradas pelo sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995), que anos mais
tarde orientaria sua tese de doutorado intitulada Urbanização e Tribalismo: a interação
dos índios Terena em uma sociedade de classes (1966). Após a graduação, constrói
sua trajetória antropológica em quatro instituições: primeiramente no Museu do Índio
em 1954, onde iniciou um trabalho junto aos índios Terena, localizados no estado do
Mato Grosso (atual Mato Grosso do Sul), e participou dos cursos de especialização em
Antropologia Cultural ministrados por Darcy Ribeiro (1922-1997).

Em 1958 torna-se professor no Museu Nacional, onde continua seus trabalhos em


Etnologia, junto aos Terena e aos Ticuna, do Alto Solimões, desenvolvendo o conceito
de fricção interétnica. Ali cria o curso de especialização em teoria e pesquisa em
Antropologia Social, baseado em um modelo que alia dedicação integral a ensino teórico
e prático. Posteriormente, organiza com David Maybury-Lewis (1929-2007) o Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social na mesma instituição. Em 1972 transfere-se
para a Universidade de Brasília (UnB), com a missão de criar o programa de mestrado e
doutorado em Antropologia.

Nesse período dedica-se a outros temas de pesquisa, voltando-se para uma reflexão
epistemológica sobre o fazer antropológico. Esse retorno à Filosofia aprofunda-se com a
mudança e contribuição para o curso de doutorado em Ciências Sociais da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), em 1985. Seu objetivo era desenvolver uma reflexão
sobre o fazer antropológico no Brasil e em outros países considerados “periféricos”.

Ao final da década de 1990 retorna à UnB, onde permanece trabalhando no Centro de


Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas (atualmente Departamento de Estudos
Latino-Americanos) até a sua morte em 2006. O breve apanhado de sua trajetória
mostra que Cardoso de Oliveira participou ativamente do processo de institucionalização
da disciplina antropológica no país, liderando a criação de programas de mestrado e
doutorado.

82
É importante destacar que ele tomaria parte nos primeiros trabalhos de avaliação da
pós-graduação na área, participando de comissões da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (CAPES); o antropólogo contribuiu decisivamente para o
aprimoramento da pós-graduação no Brasil.

Este engajamento institucional veio acompanhado de intenso trabalho intelectual e


docente, que resultou em uma significativa produção acadêmica. Seus principais livros
publicados são: O Índio e o Mundo dos Brancos (1964), A Sociologia do Brasil Indígena
(1972), Sobre o Pensamento Antropológico (1988) e O Trabalho do Antropólogo (1998). O
projeto intelectual de Roberto Cardoso de Oliveira pode ser dividido em dois momentos:
as pesquisas sobre fricção interétnica e aquelas sobre o fazer antropológico no Brasil,
em países que denominou “centrais” e “periféricos”.

Os primeiros estudos projetam uma reflexão sobre as relações entre


indígenas e sociedade nacional. O antropólogo propõe olhar para esse
contato como uma disputa dos elementos da cultura a serem incorporados
e da interdependência de recursos materiais e naturais; uma
situação de contato entre sociedades e culturas, por meio
de interesses opostos e interdependentes. Tal abordagem
surge como alternativa ao conceito de aculturação, ou seja,
da progressiva incorporação dos índios à cultura do mundo
dos brancos, conceito então predominante no Brasil.

A abordagem política em relação às sociedades indígenas, iniciada


pelos estudos de aculturação encontra na crítica de Cardoso de
Oliveira um espaço para ir além da associação corrente entre política
e dominação: ele insere aí a noção de identidade étnica pensada como
irredutível às mudanças sociais e culturais decorrentes do contato.

Gostou da leitura, acadêmico? Se desejar continuar lendo sobre esse


autor, confira a referência da Enciclopédia de Antropologia, onde
consta o texto completo.

Fonte: https://bit.ly/3ASXbsf. Acesso em: 26 ago. 2022.

A década de 1950 será importante para os estudos indígenas e nomes como


Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira serão destacados como aqueles principais
pesquisadores desse período, suas contribuições imprimem um novo olhar para a
antropologia. Isto acontece em face dos trabalhos destes pesquisadores se voltarem
para o uso de pesquisa de campo etnográfica com trabalho fortemente dirigido para
a análise da relação e integração entre povos indígenas e sociedade nacional. Melatti
(2007) lembra que esse período foi determinante para consolidação da antropologia no
Brasil, mas mais importante ainda foi para a agenda de estudos indígenas tornando a
Etnologia um ramo de pesquisa de grande fôlego na antropologia brasileira.

83
Figura 3 – Consolidação da antropologia no Brasil

Fonte: https://bit.ly/3pWCyGd. Acesso em: 26 ago. 2022.

Seguindo a abordagem de Melatti (2007), o terceiro período é definido como


a partir da década de 1960 e todas as iniciativas institucionais mencionadas anteriormente
vão consolidar e impulsionar a produção científica em diferentes ramos e subáreas da
antropologia, exemplo disso são a antropologia rural e a antropologia urbana.

Em 1968 é criado, então, o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social


do Museu Nacional na Universidade Federal do Rio de Janeiro que será um destacado
centro de estudos e pesquisas com área de concentração em Etnologia, logo em
seguida no ano de 1971 é criado o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
da Universidade de Campinas e em 1972 é criado o Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social da Universidade de Brasília.

Com a expansão do campo acadêmico os estudos de comunidade foram


perdendo força e passaram a dar lugar para outras áreas de pesquisa como os estudos
regionais, com destaque para os estudos de campesinato, trabalhadores rurais e os
impactos diante da expansão do mundo urbano e a formação de outro grupo social: os
trabalhadores urbanos (MELATTI, 2007, p. 22).

Há, por exemplo, uma mudança de perspectiva teórica entre os antropólogos


dos estudos etnológicos, quando passam a substituir o estudo da aculturação na relação
entre indígenas e brancos pelo estudo da fricção interétnica, proposta elaborada por
Roberto Cardoso de Oliveira (1962, p. 86).

Chamamos ‘fricção Inter étnica’ o contato entre grupos tribais e


segmentos da sociedade brasileira, caracterizados por seus aspectos
competitivos e, no mais das vezes, conflitais, assumindo esse contato
muitas vezes proporções ‘totais’, i.e., envolvendo toda a conduta tribal
e não tribal que passa a ser moldada pela situação de fricção Inter
étnica.

84
Assim, não era mais o interesse da perda de traços e da identidade indígena no
contato com o branco, agora a etnologia interessava-se por evidenciar os conflitos entre
valores dissonantes dos indígenas e da sociedade nacional. Em 1960, Roberto Cardoso
de Oliveira publicou seu livro “O processo de assimilação dos Terena”, em seguida, em
1964, publicou “O Índio no Mundo dos Brancos: a situação dos Tukúna do Alto Solimões”
e, logo depois, “Identidade, etnia e estrutura social” (1976). Estas obras representam um
marco para os estudos etnológicos com foco na análise da presença de indígenas na
sociedade nacional. Essa subárea de pesquisa vai influenciar fortemente a atuação dos
antropólogos na defesa dos direitos indígenas, fazendo do seu trabalho de pesquisa uma
fonte de produção de conhecimento das necessidades, direitos e demandas indígenas.
Ainda nos anos de 1960 o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (1963) introduz uma
nova maneira de realizar pesquisa no Brasil a partir do projeto “Estudo de áreas de fricção
interétnica no Brasil”, no qual o pesquisador vai investir nas relações entre as sociedades
indígenas e a sociedade nacional. A noção de poder ganha visibilidade na elaboração
de pesquisas sobre povos indígenas levando em conta as posições de dominação e de
subordinação que tomam os membros das sociedades em contato, o conflito entre as
técnicas, regras, valores das mesmas sociedades colocados em perspectiva.

Na década de 1970 a atuação da ABA passa a se intensificar no trabalho com a


atuação no mundo acadêmico e na mobilização de direitos e interesses de populações
indígenas, isto porque os estudos antropológicos realizados com populações indígenas foi
um importante instrumento que combinou o conhecimento científico com a luta social
para defender direitos dessas populações, “como demarcação de terras, assistência
médica, instrução, administração direta pelos índios de sua produção para mercado e
outros” (MELATTI, 2007, p. 24).

Será nesse período que os estudos de estrutura social das sociedades indígenas
com uso da teoria estruturalista ganham força com a contribuição de David Melbury-Lewis
Projeto Harvard-Brasil Central que estabelecia parceria entre a Universidade de Harvard e
o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (PPGAS/MN).

A influência desse projeto se dá na realização das pesquisas em que “há um


esforço no sentido de captar os modelos nativos, a fim de também submetê-los à
interpretação geral do pesquisador” (MELATTI, 2007, p. 26). De acordo ainda com este
autor, alguns pesquisadores como Roque Laraia, Júlio Cezar Melatti e Roberto DaMatta
fizeram parte desse projeto. Inclusive, a teoria estruturalista vai fornecer uma nova base
conceitual com o foco nos estudos de mitos e ritos que será utilizada pelo antropólogo
Roberto DaMatta para refletir sobre a sociedade brasileira em seu livro “Carnavais,
malandros e heróis” publicada pela primeira vez em 1979.

Pretendia-se chegar a uma visão geral da sociedade brasileira


através da soma de muitos exemplos distribuídos pelas diversas
regiões do Brasil. Além desse objetivo geral, tais estudos estavam
quase sempre voltados para objetivos específicos, como mudança
cultural, persistência da vida tradicional, problemas de imigrantes,
educação e vários outros (MELATTI, 2007, p. 18).

85
Para finalizar este subtópico, é importante que você, acadêmico, lembre-
se que até a década de 1970 a realização de pesquisas em pequenas cidades utilizando
uma abordagem qualitativa com observação direta vai continuar alimentando o campo
da antropologia com os estudos de comunidade, tendo inclusive forte influência sobre
pesquisas em sociedades indígenas, conforme apontado por Júlio Cezar Melatti.

INTERESSANTE
Atualmente, estima-se que existam 305 povos indígenas do Brasil, o que significa 0,4% da
população e aproximadamente 900.000 pessoas, segundo o Censo de 2010. Usamos o
termo “povos indígenas” para fazer referência ao grupo de pessoas que são descendentes
dos povos que habitavam o Brasil quando houve a invasão europeia. Naquela época
contabilizavam-se sete milhões de indígenas de várias etnias. Há uma diversidade de povos
indígenas e os guajajaras e os guaranis são os maiores grupos.

Observe, acadêmico, que usei o termo “povos indígenas” de forma proposital, pois o termo
"índio" tem cada vez mais entrado em desuso, isto acontece porque há uma compreensão
de que o termo “índio” reforça estereótipos e os próprios indígenas articulam uma crítica
ao uso desse termo, pois se sentem aprisionados numa compreensão distorcida de si
mesmos e que reforça desigualdades e a negação de sua identidade e sua pluralidade.
Os povos indígenas fazem parte também dos povos e comunidades tradicionais”, que se
refere aos povos que ocupam ou reivindicam seus territórios com base na sua ocupação
permanente ou temporária, por isso “territórios tradicionalmente ocupados”.

Os membros dessas comunidades tradicionais têm uma forma de vida própria e em geral
diferente daquela encontrada na sociedade nacional, isto que caracteriza esses grupos
como aqueles detentores de uma identidade e de direitos que lhes são próprios. Para
você ter uma ideia dessa diversidade observe as contribuições do etnólogo alemão Curt
Nimuendajú (1883-1945) que foi considerado o pai da etnologia brasileira. A seguir, você
encontra um recorte do famoso Mapa Etno-Histórico do Brasil e Regiões Adjacentes,
elaborado por ele e que dá uma dimensão dessa diversidade dos povos indígenas.

Fonte: https://bit.ly/3wJanOV. Acesso em: 26 ago. 2022.

86
VERSÃO DIGITAL DO MAPA ETNO-HISTÓRICO DE NIMUENDAJÚ

Iphan com colaboração do Museu Goeldi

Em 2017, houve o lançamento de uma reedição do Mapa Etno-Histórico do


Brasil e Regiões Adjacentes, de Curt Nimuendajú e versão digital do mapa original. O
lançamento do mapa fez parte da programação do aniversário de 80 anos do Iphan.
Veja o texto da Agência Museu Goeldi, que fala do etnólogo, sua produção e o mapa.

Agência Museu Goeldi – Uma das mais célebres obras cartográficas


produzidas no Brasil, e considerada um marco dos estudos das línguas e culturas
indígenas, estará disponível na internet a partir do dia 27 de setembro, no portal do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

São mais de 900 referências sobre etnias e línguas indígenas, coletadas entre
os séculos XVI e XX, e catalogadas em 1943 no Mapa Etno-Histórico do Brasil e Regiões
Adjacentes pelo etnólogo alemão Curt Unckel, conhecido mundialmente como Curt
Nimuendajú. “Curt Nimuendajú desenhou, à nanquim, três versões não idênticas para
o mapa-etnográfico. A primeira versão foi elaborada para a Smithsonian Institution
(EUA), em 1942; a segunda, em 1943, para o Museu Paraense Emílio Goeldi (Belém –
BR), a pedido de Carlos Estevão de Oliveira; e a última versão, provavelmente a mais
completa, foi traçada em 1944 para o Museu Nacional (RJ – BR).

“Acho uma iniciativa louvável disponibilizar na internet este trabalho


grandioso, meticuloso e que exigiu de seu construtor profundos conhecimentos
de Etnologia, de História, de localização de povos indígenas e seus deslocamentos
pelo Brasil da época. Com certeza, contribuirá e muito com a pesquisa nas áreas
de antropologia, etnologia, história e tantas outras áreas afins”, destaca a pesquisadora
da Coordenação de Ciências Humanas do Museu Goeldi, Alegria Benchimol, que há
anos se dedica ao estudo e documentação do acervo etnológico do Goeldi.

Figura – Monumento à Curt Nimuendajú no Parque Zoobotânico do Museu Goeldi

87
Utilizando a técnica de restauração digital, a versão original do mapa, que
mede quatro metros quadrados, foi fotografada quadrante por quadrante, em alta
resolução. Com isso, será possível, na versão digital, visualizar as informações em
tamanho ainda maior que em sua versão física. Além da versão digital do mapa, será
lançada também uma edição revisada e ampliada da obra – um mapa e um livro
(impresso e digital).

A digitalização do mapa é parte do projeto Plataforma Interativa de Dados


Geo-Históricos, Bibliográficos e Linguístico-Culturais da Diversidade Linguística no
Brasil, realizado pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e pelo Iphan, por meio da
equipe técnica do Inventário Nacional da Diversidade Linguística do Departamento do
Patrimônio Imaterial (INDL/DPI/Iphan).

Um dos objetivos do projeto é utilizar novas tecnologias da informação e


da comunicação para promover o acesso a conteúdo como a restauração digital do
mapa original, a versão digital na íntegra dos documentos históricos e etnográficos
mencionados por Curt Nimuendajú, além de mapas e informações contemporâneas
da diversidade linguística no Brasil.

Os coordenadores editoriais, Marcus Vinicius Carvalho Garcia (Iphan) e Jorge


Domingues Lopes (UFPA), contam que lançar a publicação de uma nova edição
do Mapa Etno-Histórico do Brasil e Regiões Adjacentes e disponibilizar a versão
digitalizada do original na internet é tornar acessível à sociedade um dos mais
importantes documentos etnográficos produzidos no Brasil. A reedição apresenta
uma revisão completa do documento, contendo, inclusive, pequenos ajustes que
foram identificados no processo de pesquisa.

A publicação, de 120 páginas, está organizada em forma de coletânea, com


textos que servem como guias para a leitura do mapa. O projeto conta com o apoio
técnico e institucional do Museu Paraense Emílio Goeldi, Museu Nacional da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Figura – Curt Nimuendajú e o Mapa Etno-Histórico

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Curt Nimuendajú e o Mapa Etno-Histórico – Curt Unckel (1883-1945) nasceu
na cidade alemã de Jena e tornou-se etnólogo a partir da experiência de contato
e de pesquisa com povos indígenas no Brasil. Foi batizado pelos guaranis como
Nimuendajú (“o que fez seu assento”, “o que se estabeleceu”, conforme tradução livre
do linguista Aryon Rodrigues). Foi um dos principais pesquisadores da diversidade
social e cultural da Amazônia e, além de uma vasta obra intelectual, também produziu
três versões do mapa etno-histórico. Após Nimuendajú fixar residência na Amazônia,
passou a colaborar com o Museu Goeldi, como pesquisador e curador pioneiro até
seu falecimento. “Nimuendajú, naturalizado brasileiro em 1922, foi considerado como
a principal figura da etnologia brasileira do seu tempo.

Foi um autodidata fecundo intelectualmente que se destinou a coletar,


pesquisar, ensinar e disseminar os conhecimentos que adquiriu em 40 anos
de atividades dedicadas aos povos indígenas do Brasil”, acrescenta Benchimol.
Elaborado artesanalmente, o mapa, considerado como uma obra fundamental para
o conhecimento das terras baixas da América do Sul, classifica 40 famílias linguísticas
e identifica cada uma delas com tonalidades ou cores específicas. Para o antropólogo
George Zarur, o mapa de Nimuendajú é uma obra clássica da antropologia brasileira,
síntese de todo um conhecimento antes fragmentado e disperso.

Fonte: https://bit.ly/3crl81D. Acesso em: 26 ago. 2022.

3 OS ESTUDOS DE COMUNIDADE
Os chamados estudos de comunidade foram marcantes nas décadas de 1940
e 1950, quando os pesquisadores passaram a utilizar o método de observação direta
para pesquisar pequenas cidades ou vilas tendo como inspiração os estudos clássicos
da etnologia focados em sociedades “tribais”. Este grupo de pesquisas pensa o grupo
social como uma unidade de análise para apreender uma realidade social.

Os estudos de comunidade foram bastante populares nesse período por fornecer


uma metodologia que permitiria aos pesquisadores elaborar uma compreensão ampliada
da sociedade brasileira. A ideia central era que muitos pesquisadores associados a essa
perspectiva metodológica poderiam realizar inúmeras pesquisas ao redor do Brasil e
juntas elas forneceriam um olhar sobre o que define a sociedade brasileira, apontando
suas diferenças, traços culturais, manifestações religiosas e estruturas sociais dos
grupos estudados. Naquele período buscava-se explicações e conceitos que definissem
o Brasil, na perspectiva de alguns autores desse período isso seria possível se eles
reunissem o maior número de informações por meio dos estudos de comunidade em
todas as regiões do país.

89
Para além dessa dimensão há outras que reúnem esses pesquisadores, como
o interesse no estudo das mudanças culturais considerando por exemplo a migração
do campo para a cidade, os impactos das novas formas de produção no meio rural,
a persistência da vida tradicional mesmo com o desenvolvimento do meio urbano,
processos de educação, imigração, dentre outros. Estes estudos representam uma
importante relação entre os estudos clássicos e os estudos urbanos, na definição
proposta por Oracy Nogueira, tais estudos assumem:

O sentido restrito de estudo de um grupo local, de base territorial,


integrado numa mais ampla e complexa estrutura social, de que
é tomado como amostra, pelo autor, para o conhecimento de
determinadas situações ou problemas. Tais estudos implicam, pois,
a transferência, para o campo de investigação das sociedades mais
complexas, de uma perspectiva metodológica que de há muito
pouco os antropólogos e etnólogos vinham aferindo e enriquecendo,
no estudo das sociedades mais simples, pré-letradas ou primitivas
(NOGUEIRA, 2018, p. 126).

Aliás, destacamos o estudo de Oracy Nogueira que trouxe como tema Família
e comunidade, estudo sociológico de Itapetininga (1962), realizado em uma cidade do
interior de São Paulo.

Por estudos de comunidades temos em vista aqueles levantamentos


de dados sobre a vida social em seu conjunto, relativos a uma
área cujo âmbito é determinado pela distância a que se situam
nas várias direções, os moradores mais afastados do centro local
de maior densidade demográfica, havendo entre os moradores do
núcleo central e os da zona circunjacente, assim delimitada, uma
interdependência direta para a satisfação de, pelo menos, parte de
suas necessidades fundamentais (NOGUEIRA, 2018, p. 127).

Por um lado, os estudos de comunidade permitiram um olhar em escala


microssocial sobre uma comunidade específica, mas por outro era criticado por não
fornecer uma boa análise em perspectiva macrossocial, conectando as observações de
um grupo particular aos problemas e desafios encontrados na estrutura social nacional. As
comunidades ou grupos sociais estudados poderiam ter alguns poucos habitantes até
aglomerados urbanos com mais de 15 mil habitantes urbanos, assim como habitantes de
pequenos aglomerados rurais. Inclusive destaca-se no campo da antropologia trabalhos
que investigam a economia como uma subárea onde encontramos uma “antropologia
rural”, isto porque parte desses estudos estavam interessados em compreender a
agricultura, a pecuária, as atividades da indústria em ascensão de extrativismo vegetal
e animal. Nesse sentido, os estudos de comunidade se tornaram um importante
movimento teórico no Brasil por estarem engajados no levantamento de informações e
dados de pesquisa da realidade brasileira de maneira mais ampla.

90
As observações diretas poderiam fornecer informações do comportamento social
de um grupo, qual a sua linguagem comum, suas atitudes, seus hábitos alimentares, suas
práticas religiosas, suas festividades, sua economia, a maneira como ocupam a terra,
o modo como se relacionam entre si e com os animais e os espíritos da floresta, enfim,
inúmeras formas de aprender aquela realidade social. Segundo Nogueira, os estudos de
comunidade possibilitam uma diferenciação significativa em relação aos estudos de grande
escala (com dados estatísticos), pois permitem acessar o conhecimento das pessoas em
relação às suas subjetividades, seus valores, seus costumes, ampliando a compreensão
dos aspectos interindividuais socialmente compartilhados.

O próprio Oracy Nogueira chama a nossa atenção para estudos de comunidade


clássicos, são eles:

• O de Emílio Willems, Cunha, tradição e transição em uma cultura rural do Brasil, São
Paulo: Diretoria de Publicidade Agrícola da Secretaria da Agricultura, 1947.
• O de Lucila Herrmann, Evolução da estrutura social de Guaratinguetá num período de
trezentos anos. Revista de Administração, a. II, n. 5-6, p. 1-326, março-junho de 1948.
• O de Donald Pierson, Cruz das Almas, a brazilian village. Washington: Smithsonian
Institution, Institute of Social Anthropology, publicação n. 12, 1951.
• O de Charles Wagley, Amazon town, a study of man in the tropics. New York; The
Macmillan Company, 1953.

Para Nogueira, os estudos de comunidade contribuíram por ser agente de uma


mudança social e cultural, mas também por fornecer uma “visão realista sobre a vida
dos pequenos e rústicos aglomerados do interior e da população rural, mostrando o seu
lado dramático e humano, seus problemas e suas dificuldades, suas condições reais e
suas aspirações, seus recursos e sua experiência” (NOGUEIRA, 2018, p. 130).

Entretanto, conforme destacado por Julio Cezar Melatti (2007) os estudos


de comunidade receberam algumas críticas como o fato de não darem a devida
importância à análise dos documentos e registros históricos, recebendo uma crítica
por não considerarem a análise da vida social desses grupos como um processo, que
pode haver mudanças. Tais críticas ainda apontam para a dificuldade desses autores
em articular a dimensão das relações sociais que existem entre essas comunidades e a
sociedade nacional, contribuindo para uma visão reducionista, limitada e artificial que
congela e isola esses grupos dentro do seu próprio contexto.

O que torna esse subtópico especial é maneira que a antropologia vai se


transformando a partir do estudo e da pesquisa com essas populações e vai modificando
sua perspectiva teórica, metodológica e política.

91
Pense bem, se os estudos clássicos focavam no determinismo para sustentar
suas posições preconceituosas a respeito de grupos e populações étnicas que são
diferentes, com o renovado olhar da investigação antropológica brasileira essas
perspectivas vão se mostrando limitadas e o exercício de relativismo e afirmação da
alteridade se coloca em primeiro plano no fazer antropológico.

Também é notável o fato de que estudos clássicos que davam ênfases em


aspectos econômicos, políticos e culturais de grupos indígenas passam a introduzir novas
formas de olhar para as relações sociais em determinados territórios e a perceber outros
grupos sociais não indígenas presentes nesses contextos. É a partir desse deslocamento
que os estudos de populações camponesas se encontram com os estudos de etnológicos,
mostrando sua relação, seus conflitos, a diversidade que há quando se considera o
aspecto regional, pois este também vai revelar outras nuances da vida social em torno do
conflito de posse e usos da terra.

A seguir você terá a oportunidade de aprender e conhecer um pouco de alguns


desses grupos sociais aqui mencionados, na leitura complementar você o desafio de
exercitar a “alteridade”, preste bem atenção ao texto de Horace Miner, nele encontramos
uma rica maneira de perceber como nossos olhares sobre outro mundo, ou grupo social
pode ser condicionado e preconceituoso.

Nos próximos tópicos vamos avançar um pouco mais em alguns desses


estudos, conheceremos formas de uso e subsistência dessas populações, em seguida,
no último tópico, abordaremos aqueles confrontos e formas de vida que estão no nosso
tempo, faremos uma atualização acerca dos estudos das populações rurais no Brasil
contemporâneo.

Então, acadêmico, aproveite bem as leituras e faz uma revisão respondendo as


autoatividades, nos vemos no Tópico 2.

92
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:

• O contexto que envolve a formação da Antropologia brasileira.

• As principais pesquisas que contribuíram para a formação do campo Antropologia Rural.

• Estudou o contexto histórico e marcos teóricos do campo da Antropologia Rural.

• Aprendeu os autores clássicos e sua abordagem acerca das identidades e


territorialidades no mundo rural.

• Aprendeu o marco dos estudos de comunidade e sua influência teórica e metodológica


para as pesquisas sobre as populações do mundo rural no Brasil.

93
AUTOATIVIDADE
1 Os primeiros trabalhos relacionados ao estudo do ambiente rural ou do campo
acontecem numa época em que a antropologia ainda não era uma área acadêmica bem
estruturada no Brasil. Sobre isso, importantes contribuições foram catalogadas no trabalho
intitulado “A Antropologia no Brasil: um roteiro”, que foi publicado em 1983 (republicado
em 2007) do antropólogo Júlio Cezar Melatti (2007). Assim, este autor procurou traçar
uma genealogia da formação do campo da antropologia brasileira, destacando três
principais períodos dos estudos antropológicos no Brasil. Sobre esses grandes períodos
do conhecimento da Antropologia, assinale a alternativa CORRETA:

Fonte: MELATTI, J. C. A Antropologia no Brasil: Apresentação. Anuário Antropológico, v. 7, n. 1, p. 227, 2007.


Disponível em: http://twixar.me/gmMm. Acesso em: 6 set. 2022.

a) ( ) O primeiro período reconstrói os trabalhos produzidos até 1930, o segundo


momento se dá a partir de 1930 e vai até 1960 e o terceiro momento é aquele
que vem após 1960 e chega aos anos 1980.
b) ( ) O primeiro período é definido por aquelas etnografias publicadas até 1830, o
segundo período marca a produção dos relatos de viagem entre 1830 e 1960, o
último período é definido por antropologia contemporânea e marca o conjunto de
trabalhos realizados após 1980.
c) ( ) Roberto Cardoso de Oliveira, Julio Cezar Melatti e Franz Boas são as principais
referências de cada um desses períodos.
d) ( ) Nina Rodrigues, Roque Barros Laraia e Roger Bastide são representantes do
primeiro período definido por Melatti.

2 Considera-se fundamental a mudança de perspectiva teórica e metodológica de


acordo com os três períodos assinalados por Melatti (2007). Com base nas definições e
teorias mobilizadas pelo autor, analise as sentenças a seguir:

Fonte: MELATTI, J. C. A Antropologia no Brasil: Apresentação. Anuário Antropológico, v. 7, n. 1, p. 227, 2007.


Disponível em: http://twixar.me/gmMm. Acesso em: 6 set. 2022.

I- A formação da antropologia brasileira foi marcada por influências de autores


estrangeiros, alguns principais dos autores do período dos estudos de “aculturação”
foram Charles Wagley, Eduardo Galvão e Egon Schaden.
II- Os trabalhos de pesquisa desses antropólogos citados acima caracterizavam-se
pelo circuito de expedições que tinham por finalidade abranger o menor número
possível de territórios e similares grupos indígenas.
III- Na década de 1940 os chamados estudos de “aculturação” envolvendo as relações
entre indígenas e brancos são um marco para época por utilizar a teoria funcionalista
para estudar a cultura indígena em sua totalidade, a partir principalmente da sua
organização social, sua religião e sua cosmologia,
94
Assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 Considerada importante influência teórica e metodológica para a formação do campo


da Antropologia Rural, os estudos de comunidade é uma das principais áreas de
antropologia e se destacou por estar interessada em conhecer o contexto pesquisado
em sua totalidade. De acordo com as contribuições de seus estudos etnográficos,
classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) Os chamados estudos de comunidade vão se consolidar entre as décadas de 1940 e


1950, encontrando ainda bastante produção até a década de 1970. Autores como
Emílio Willems, Oracy Nogueira, Donald Pierson e Antônio Cândido são lembrados
como expoentes desse período.
( ) O antropólogo Radcliffe-Brown foi a principal influência teórica da Escola de
Comunidade, seus estudos ensinam como os antropólogos devem consolidar
sua visão de mundo sobre as sociedades estudadas, seu método sugere que o
pesquisador em campo tome seu próprio grupo como ponto de partida para avaliar
e medir valores, hábitos e modelos de existências como se fossem superiores,
melhores ou os mais corretos a serem seguidos.
( ) É nesse período que os estudos de antropologia urbana se cruzam com os estudos
de comunidade por efeitos do deslocamento de análises para o campo das cidades
brasileiras onde vão estar grupos religiosos, grupos étnicos e formas de vida em
interação ou os chamados estudo de contato interétnicos que envolve também os
estudos de grupos de imigrantes, exemplar disso são os estudos de Emílio Whillems
sobre os alemães, os trabalhos de Ruth Cardoso sobre os japoneses, assim como os
estudos de Eunice Durham sobre os italianos.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 Cientes do impacto das transformações pelas quais o cotidiano do mundo rural


apresentava, diferentes abordagens e pesquisadores tentaram entender a
multiplicidade de termos, conceitos e categorias que procuram dar conta desse
universo imenso de conhecimento que envolve as populações que vivem no campo.
Assim, a Antropologia Rural pode ser definida como uma subárea da antropologia
que se dedica ao estudo dessas populações a partir da investigação antropológica
e do uso da etnografia. Alguns antropólogos se dedicaram ao estudo dos modos
de vida com destaque para as relações de parentesco, etnicidade, alimentação,
práticas festivas, rituais religiosos, territorialidade, economia, saúde, moradia, novas

95
tecnologias no campo, dentre outras áreas de estudos. Considerando a importância
dessas pesquisas no contexto brasileiro, disserte sobre duas influências teóricas do
primeiro período mencionadas por Melatti (2007) que contribuíram para o estudo da
diversidade do rural e das populações rurais no Brasil (indígenas, negros, sertanejos).

Fonte: MELATTI, J. C. A Antropologia no Brasil: Apresentação. Anuário Antropológico, v. 7, n. 1, p. 227, 2007.


Disponível em: http://twixar.me/gmMm. Acesso em: 6 set. 2022.

5 Os antropólogos rurais observam a maneira como se formam as famílias, os grupos


sociais, suas formas de interagir entre si e com outros grupos, assim como é importante
registrar as condições de vida dessas populações, considerando inclusive o grupo
étnico ao qual pertencem os moradores que vivem na área estudada. Disserte sobre a
importância da reforma agrária no contexto de enfrentamento às desigualdades sociais,
lembre-se da diversidade de grupos sociais que são atingidos por essa política social e
cite alguns deles.

96
UNIDADE 2 TÓPICO 2 —
POVOS TRADICIONAIS E SEUS MODOS DE
USO E OCUPAÇÃO DO ESPAÇO RURAL

1 INTRODUÇÃO
Caro acadêmico, a seguir, faremos algumas considerações dos itinerários
percorridos por algumas temáticas do campo. Embora mantenha como referência
os dados da criação distribuição e desenvolvimento das diferentes linhas de pesquisa,
apresento a você exemplos de modos de ocupação e uso do espaço rural.

Figura 4 – Espaço rural

Fonte: https://bit.ly/3AxlnzV. Acesso em: 26 ago. 2022.

No entanto, primeiro, nessa seção introdutória gostaria de retomar dois temas


tradicionais na antropologia brasileira, pois se trata de áreas de extrema relevância histórica
e social, já mencionei, por exemplo, quando apresentei a formação da antropologia no
Brasil, a etnologia indígena e os estudos de comunidade aplicados a diferentes contextos
(rural e urbano) desempenharam forte influência na formação da antropologia.

A etnologia indígena é considerada uma grande tradição de estudos e foi


articulada com outra área de conhecimento chamada Antropologia da Sociedade
Nacional, de acordo com o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (1988) essa área
organizou e definiu as bases de formação do campo acadêmico e de produção em
pesquisa na antropologia desde seus primórdios.

97
Para Roberto Cardoso de Oliveira (1988) há uma área chamada Identidade,
Território e Relações Interétnicas que se ocupou substancialmente de uma subárea de
estudos da Etnologia Indígena quando se interessou pelos estudos de contato interétnico,
da etnicidade e do indigenismo.

Conforme apontado pela antropóloga Alcida Rita Ramos (1990), foi assim, por
exemplo, que essas duas subáreas passaram a representar duas perspectivas ao mesmo
tempo complementares e distintas, em algumas situações, até oponentes quando se
trata de estudos sobre populações indígenas. Por um lado, uma se voltou para os estudos
de organização social e política, religião, arte e cosmologia, enquanto a outra dedicou-se
aos estudos das relações sociais e políticas das populações indígenas com a sociedade
nacional.

No contexto atual, se olharmos para as pesquisas nessa área veremos que


essa bifurcação categorizada em Etnologia Indígena e Identidade, Território e Relações
Interétnicas espelham essa dualidade e ruptura.

A Etnologia Indígena, por exemplo, tem pesquisas mais concentradas no Sudeste


do país, mas com alguma ocorrência no Nordeste. Isso acontece pelo renovado estado de
colaboração que as pesquisas possibilitam quando diferentes instituições e pesquisadores
constroem e alimentam redes de trabalho e pesquisa voltados a temas comuns.

No atual cenário nacional essa colaboração se tornou ainda mais intensa em face
do foco da etnologia para as temáticas que envolvem o meio ambiente, território, gênero,
sexualidade, educação escolar indígena, saúde da população indígena, experiências
de deslocamentos de indígenas para o ambiente urbano, assim como outros temas
(AMOROSO; SANTOS, 2013; BELTRÃO; LACERDA, 2017).

Cabe ainda destacar que no contexto contemporâneo essa temática tem


adquirido novo fôlego em pesquisas a partir das contribuições de antropólogos indígenas,
como Gersem Baniwa (2016) e Tonico Benites (2014), assim como da instigante e renovada
contribuição que surge da experiência de colaboração entre indígenas e antropólogos,
exemplo recente desse tipo de colaboração é o trabalho de colaboração que resultou num
excelente livro intitulado “A queda do céu” de Bruce Albert e Davi Kopenawa (2015).

98
Figura 5 – Filme “A queda do céu”

Fonte: https://bit.ly/3CIxnkM. Acesso em: 26 ago. 2022.

O livro é uma escrita colaborativa entre o líder xamã yanomami Davi Kopenawa
junto com o antropólogo Bruce Albert, tendo como fonte os relatos colhidos na língua
nativa Yanomami e traz um registro único do testemunho da cultura desse povo na
perspectiva de um alerta global sobre a Amazônia.

INTERESSANTE
Conheça, agora, alguns dos indígenas que decidiram se tornar antropólogos:

• Gersem Baniwa nasceu em São Gabriel da Cachoeira (AM), graduado em Filosofia


pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) em 1995, tornou-se mestre em
Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB) em 2006, onde também
obteve seu doutorado em Antropologia em 2010. Atualmente, tornou-se o primeiro
professor indígena do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília.

Figura – O primeiro professor indígena

Fonte: https://bit.ly/3TsN7yn. Acesso em: 26 ago. 2022.

99
• Indígena Ava Kaiowá, nasceu na aldeia de Sassoró-Tacuru, no Mato Grosso do Sul. Tonico
Benites é graduado em Pedagogia na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
(UFMS) em 2004, obteve seu mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (Museu Nacional/ UFRJ) em 2009 e doutorado em Antropologia Social
pela mesma universidade em 2014. Atualmente é professor visitante e pesquisador
do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras PPGSOF da Universidade
Federal de Roraima – UFRR.

Figura – Professor visitante e pesquisador

Fonte: https://bit.ly/3Tuxwys. Acesso em: 26 ago. 2022.

• Nascida na terra indígena umutina, próxima à cidade de Barra dos Bugres, Mato Grosso,
Eliane Boroponepa Monzilar possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade do
Estado de Mato Grosso (UNEMAT), Especialização em Educação Escolar Indígena pela
Faculdade Intercultural Indígena e é mestra em Desenvolvimento Sustentável Juntos
a Povos de Terras Indígenas pela Universidade de Brasília, onde também obteve seu
doutorado em Antropologia Social em 2019. Atualmente é gestora da Escola Estadual
Indígena Jula Paré, Secretaria de Estado de Educação e Cultura-Seduc/MT.

Figura – Gestora da Escola Estadual Indígena Jula Paré

Fonte: https://bit.ly/3Tuxwys. Acesso em: 26 ago. 2022.

100
Identidade, Território e Relações Interétnicas é de longe a área de pesquisas
que agrega o maior número de antropólogos, é a temática mais abordada na disciplina,
sem dúvida, acadêmico, você já deve ter percebido a partir das leituras anteriores que
esse interesse de pesquisa está diretamente associado ao nosso passado histórico,
assim como a sua herança e os desdobramentos sociais que se dão a partir de eventos
históricos, situações de contato e confronto e, sobretudo, relacionados à vulnerabilidade
que grupos sociais étnicos enfrentam diante de projetos econômicos exploratórios que
desrespeita esses grupos.

Cabe ainda destacar na Etnologia Indígena a temática da identidade, território


e relações interétnicas aparecem no Brasil hoje concentradas em duas perspectivas
antropológicas, a saber, os estudos ameríndios cujo foco se dá sociocosmologia
indígenas, concentradas no Sudeste e Sul, tendo como referência as produções do
antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (1999) e os estudos que dão ênfase às questões
de etnicidade e contexto multiétnico, predominante no Nordeste, a partir de contribuições
do antropólogo João Pacheco de Oliveira (2004).

As pesquisas antropológicas nessa área têm ampliado cada vez mais sua
produção, sobretudo, considerando as questões de territorialização e ambiente que
afetam não somente as populações indígenas, mas também quilombolas, camponeses
e “tradicionais” de modo mais amplo. O que essa área tem nos mostrado, e auxiliado
a entender o Brasil contemporâneo, é o renovado olhar sobre o Campesinato, as
questões de desenvolvimento e o meio ambiente. Sobretudo, conforme destacado
pela antropóloga Andrea Zhouri (2012) a articulação dessas temáticas possibilita o
tratamento adequado das questões que vulnerabilizam esses grupos sociais.

Note, acadêmico, que a antropologia rural como uma categoria nem sempre é
articulada pelos antropólogos, a maioria das linhas de pesquisa aqui apresentadas dão
conte de um conjunto muito diverso de pesquisas e os grupos sociais contemplam o que
pode nos auxiliar a definir e entender esse “rural”. Os estudos etnológicos indígenas é um
caminho, mas há outros, conforme vimos. Nos próximos subtópicos vamos analisar outras
contribuições que nos possibilitem entender essas diferentes formas de agrupamento
social, identidade, territorialização e ocupação dos espaços com seus usos.

Entretanto, acadêmico, não esqueça que o diferencial da antropologia é a ênfase


na diferença, na diversidade dos modos de ser e de viver, assim o método etnográfico é
uma importante ferramenta de pesquisa porque nos fornece uma maneira particular de
apreender a diferença ao estabelecer relações por meio de pesquisa intensa, densa e
localizada, desenvolvendo no antropólogo uma capacidade de conhecer, aprender e renovar
seu entendimento do outro e de si mesmo, multiplicando sempre suas perspectivas e seus
horizontes de pesquisa. Foi assim que ao estudar as populações indígenas percebeu-
se outras formas não indígenas de habitar o espaço social do campo, do mundo rural e
assim reconhecer a diversidade de grupos que estão nesse meio e em contato. Vamos
conhecer um pouco sobre eles. A seguir, após esta introdução, você aprenderá o campo
da Antropologia Rural, Campesinato e formas de uso e ocupação de território.

101
2 ANTROPOLOGIA RURAL NO BRASIL
Caro acadêmico, há uma multiplicidade de termos, conceitos e categorias que
tentam dar conta desse universo imenso de conhecimento que envolve as populações
que vivem no campo. Assim, a Antropologia Rural pode ser definida como uma subárea
da antropologia que se dedica ao estudo dessas populações a partir da investigação
antropológica e do uso da etnografia.

Alguns antropólogos se dedicaram ao estudo dos modos de vida com destaque


para as relações de parentesco, etnicidade, alimentação, práticas festivas, rituais religiosos,
territorialidade, economia, saúde, moradia, novas tecnologias no campo, dentre outras
áreas de estudos que apenas com livro não seria possível dar conta. Logo, a nossa
tarefa é conhecer os principais conceitos e teorias que definem esse campo, assim como
será importante aprender alguns desses estudos etnográficos e a partir deles despertar o
interesse para que você possa buscar cada vez mais informações, conteúdo diversificado e
conhecimento aprofundado a respeito de uma dessas áreas que desperte sua curiosidade.

O termo “antropologia rural” nem sempre foi utilizado pelos antropólogos para
definir um campo de pesquisa, mas os fenômenos que eles estudavam eram próprios
do mundo rural. A antropologia rural estuda os modos de vida rural que não fazem
parte da vida citadina, em contraposição ao modo de vida urbano. Exemplar disso são
estudos de comunidade e os estudos de campesinato, que são termos mais usuais
encontrados na antropologia. Enquanto uma agenda disciplinar a antropologia rural
é bem mais recente, mas em termos de pesquisa, como podemos ver no Tópico 1, já
existiam estudos antropológicos focados na análise dessas formas de vida tradicionais.
Muitos pesquisadores que aqui já foram citados não usam o termo antropologia rural,
entretanto o universo de suas pesquisas caracteriza seus estudos de comunidade e/ou
de campesinato. Falaremos em detalhes de cada um desses termos adiante.

Uma das principais características da antropologia rural é o foco no estudo


qualitativo que essa área oferece, isto é, utiliza um método de pesquisa empírica, na
qual o uso da etnografia é feito para observar as condições sociais das populações que
vivem no campo. Os antropólogos rurais observam a maneira como se formam as famílias,
os grupos sociais, suas formas de interagir entre si e com outros grupos, assim como
é importante registrar as condições de vida dessas populações, considerando inclusive o
grupo étnico ao qual pertencem os moradores que vivem na área estudada.

Acadêmico, para tornar mais claro o entendimento desse tipo de pesquisa,


pense na desigualdade econômica e de acesso às terras produtivas em áreas rurais
onde trabalhadores rurais buscam a reforma agrária. Cabe destacar aqui o que
significa a reforma agrária no Brasil, por exemplo, para Cardart, Pereira e Frigotto
(2012) o reconhecimento do valor social da terra está no centro da reforma agrária,
entendendo que o acesso à terra precisa vir acompanhado de um conjunto de políticas
de infraestrutura que alcance os pequenos agricultores, como é o caso da educação, saúde
e transporte, assim como é importante uma política que favoreça o campesinato, com oferta
de crédito, assistência técnica e acesso aos mercados.
102
DICA
Para saber mais dos conflitos e as perspectivas da reforma agrária no contexto atual, te
convido para assistir esse vídeo documentário produzido em 2021 e que pode auxiliar
a compreender a complexidade presente no tema. E você já sabe, basta clicar e se abrir
para o conhecimento: https://bit.ly/3R2qj74.

• Documentário: Parou por quê? A reforma agrária no governo Bolsonaro.


• SINOPSE do documentário, que recebeu menção honrosa no Prêmio Vladimir Herzog
2021:

A reforma agrária saiu da lista de prioridades do governo federal há mais de uma


década, entretanto, na gestão de Jair Bolsonaro, a criação de novos assentamentos para
alojar famílias sem-terra foi totalmente paralisada. Para este ano, o orçamento do Incra
– o órgão responsável pela política de reforma agrária – sofreu uma redução de 90%.
Paralelamente a esse desmonte, cresce a violência no campo. No sul do Pará, região
notória pelos conflitos por terra, uma avalanche de despejos deve sair do papel em
2021. E milhares de famílias podem ser retiradas de ocupações de terra consolidadas
há anos.

CRÉDITOS

• Direção e roteiro: Carlos Juliano Barros.


• Direção de fotografia, montagem e finalização: Caue Angeli.
• Produção executiva: Ana Magalhães.
• Produção: Juliana Fuhrmann / Marília Ramos / Marta Vieira
Santana.
• Técnico de som: Eduardo Rodrigues de Souza.
• Design e animação: Toca Hub.
• Mixagem de som: Pedro Penna.
• Pesquisa: Guilherme Zocchio.
• Imagens adicionais: Arquivo Repórter Brasil.
• Fotos: Leonardo Sakamoto / Folha de S. Paulo / O Globo /
Revista Exame / TV Globo / UOL.
• Uma realização do reporterbrasil.org.br.
• Este documentário foi realizado com o apoio da DGB
Bildungswerk. O conteúdo é de responsabilidade exclusiva
da Repórter Brasil.

A reforma agrária no Brasil é executada pela União por meio da compra e


desapropriação de latifúndios particulares que são considerados improdutivos, quando o
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) executa esse processo ao
distribuir e lotear essas terras desapropriadas para as famílias que desejam cuidar e tornar
essa terra produtiva.

O INCRA também atua nas políticas públicas de assistência a esses pequenos


produtores rurais, prestando assistência financeira, consultorias e viabilizando insumos
para que essas famílias possam produzir nessas terras. O INCRA é vinculado ao Governo
Federal e foi criado em 1970, sua principal função é gerir a reforma agrária de maneira
justa e sistematizada, assim como atualizar e manter o cadastro nacional de imóveis
rurais, bem como identificar, demarcar e titular terras destinadas aos assentamentos e
comunidades tradicionais quilombolas.
103
Aqui, acadêmico, você já deve ter percebido que há uma diversidade de grupos
sociais que foram mencionados durante nossa abordagem sobre a antropologia rural. Note
que a categoria “povos e comunidades tradicionais” implica o reconhecimento da presença
de indígenas, comunidades remanescentes de quilombos, pescadores artesanais,
ribeirinhos, povos ciganos, trabalhadores rurais, povos de terreiros, os pantaneiros, os
faxinalenses do Paraná e região, as comunidades de fundo de pasto da Bahia, os caiçaras,
dentre outros, juntos eles representam uma parcela significativa da população brasileira
que ocupam o território nacional, segundo dados do Ministério cada um desses grupos
tem suas próprias formas de vida, de cuidar e preservar a terra, seus costumes e bem-
viver. Entre esses povos e comunidades tradicionais há também aspectos singulares
que determinam e caracterizam como próprios seus modos de ser e de viver, como por
exemplo: territórios tradicionalmente ocupados, produção e organização social.

O uso do método etnográfico nessas áreas de estudo serve também para


prevenir impactos socioambientais, assim como orientar o desenho de políticas públicas
que visem reduzir desigualdades sociais e ampliar a cidadania para as populações que
enfrentam problemas para manter sua subsistência e a continuidade de suas famílias.

Um antropólogo fazendo pesquisa nesses contextos tende a observar todas


as áreas que compõem a vida desse grupo social, adotando uma perspectiva holística
como a obra Argonautas do Pacífico Ocidental, etnografia clássica escrita por Bronislaw
Malinowski (1884-1942) e publicada em 1922, é bom exemplo de uma etnografia com uma
visão de holística, uma vez que observa os diferentes aspectos da vida social de um grupo.

Embora você já tenha tido contato com o método etnográfico cabe aqui chamar a
sua atenção para o uso de diferentes ferramentas metodológicas na construção de uma
pesquisa etnográfica em contextos rurais. Assim, o estudo do campo será feito por meio
da observação direta da realidade naquela comunidade ou grupo social, mas também
será utilizado o recurso das entrevistas e pesquisa documental.

O uso de diferentes recursos auxilia o antropólogo a dar maior rigor na sua prática
científica, a “observação participante” (MALINOWSKI, 1978) permite que esse pesquisador
vivencie por um tempo maior de convivência com o grupo pesquisado e aprenda sua
forma de viver no cotidiano e nas interações, por outro lado a análise de documentos
como, por exemplo, os registros de viagens permitem acessar características daquela
sociedade ao longo do tempo anterior ao do pesquisador.

No Brasil temos uma tradição muito forte de estudos antropológicos nessa área
de conhecimento, um desses estudos é considerada uma importante referência desse
período e se trata da tese de doutorado de Florestan Fernandes intitulada “A função
social da guerra na sociedade tupinambá” (1952), neste trabalho o autor desenvolve
uma análise a partir de materiais produzidos por cronistas sobre a sociedade indígena
Tupinambá, dando relevo a aspectos como o função social da guerra e a organização
social nesta sociedade. Trabalhos como este é uma iniciativa de aprofundar uma análise
fazendo uso de materiais documentados por cronistas, ensaístas e viajantes.

104
A pesquisa empírica envolve um esforço e um trabalho minucioso de diferentes
aspectos das diferentes sociedades e sua organização social. A partir desses trabalhos
sabemos que há uma diferença entre grupos indígenas que eles não são homogêneos,
compreendemos que cada etnia tem suas características próprias e necessidades
específicas para a sua manutenção e reprodução social. Exemplo disso é observar o uso
do tempo, a divisão do trabalho, os rituais funerais, as formas de nomear animais, espíritos
e pessoas, bem como as diferentes práticas de alimentação e medicina tradicional
aparecem na “descrição densa” (GEERTZ, 2013) desses grupos sociais pelos antropólogos
que se interessam por fazer atividade científica com essas comunidades.

INTERESSANTE
Fala-se em descrição densa como Descrição densa para se referir ao trabalho do
antropólogo Clifford Geertz (1926-2006), a partir do texto Uma Descrição Densa: Por uma
Teoria Interpretativa da Cultura (Thick Description: The Interpretation of Cultures 1973),
que propõe um conceito inspirado nos escritos do filósofo Gilbert
Ryle (1900–1976), principalmente em "What is le Penseur Doing?" (1971).
Geertz elabora princípios metodológicos para a etnografia como o
registro qualitativo, visual, sonoro e escrito, da cultura. Para conhecer
um pouco mais do conceito de descrição densa articulado
pelo antropólogo Clifford Geertz assista ao vídeo do Professor
Bernardo Lewgoy, disponível em: https://bit.ly/3R26ugh.

Fonte: GEERTZ, C. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa


da cultura. In: GEERTZ, C. A Interpretação das culturas. Rio de Janeiro:
Zahar, 2008. p. 3-24.

Uma das principais atividades de pesquisa é a realização da árvore genealógica de


uma comunidade quilombola, ao fazer estudo segmentado por gênero, idade e etnia,
o antropólogo pode selecionar um grupo específico para desenvolver sua investigação e
assim apresentar padrões de cultura, formação familiar, divisão de trabalho ou mesmo
aspectos de vulnerabilidade quanto à saúde ou acesso à educação.

As comunidades remanescentes de quilombo geralmente estão vulneráveis


quanto ao acesso às políticas públicas e ao documento de titulação de suas terras. Assim,
a pesquisa etnográfica auxilia na reconstrução social de eventos importantes sobre
uma comunidade desse tipo, por exemplo, dados como em que período aquele grupo
social chegou àquela localidade, quais as famílias que pertencem à comunidade, qual a
extensão de suas atividades produtivas, onde plantam, o que plantam, qual o tempo de
colheita, quais os recursos disponíveis naquela localidade, não havendo acesso facilitado à
água, por exemplo, o estudo irá indicar o grau de vulnerabilidade que a comunidade está
exposta quanto a sua subsistência e também a exposição às doenças e à fome.

105
Também podemos olhar por outro ângulo, nos perguntarmos como uma
população pode sobreviver tanto tempo em um mesmo espaço social em condições de
vulnerabilidade com a exposição de invasores de territórios indígenas. Muitas etnografias
que são realizadas no Brasil visam não só conhecer essas dinâmicas territoriais que
marcam a vida dessas populações, mas recontar sua história, sua cosmologia e qual o
sentido que aquele lugar tem para a comunidade.

O conteúdo das etnografias realizadas com as populações do campo busca


também colocar em relevo aspectos relacionados à economia e aos conflitos e disputas
territoriais como uma forma de dar visibilidade a essas populações.

Conforme vimos, a década de 1960 foi um marco nos estudos antropológicos


de populações rurais. Momento importante porque há uma reorientação de base
metodológica de e teórica. O antropólogo brasileiro Roberto Cardoso de Oliveira foi
fundamental na inserção da perspectiva de estudos interétnicos, pois não só deslocou
o campo teórico de estudos como também inseriu um olhar que substitui os estudos
de aculturação – em que se acreditava que a cultura dominante englobava a cultura
dominada, no caso sociedade nacional e povos indígenas –, pelos estudos de fricção
interétnica nos quais os conflitos sociais ganham visibilidade demonstrando a resistência
de grupos indígenas, por exemplo, a projetos exploração e expansão territorial.

Passaremos agora ao estudo do campesinato, assim como abordaremos os


diferentes grupos que estão presentes nesses estudos e que fazem parte das chamadas
comunidades tradicionais, momento em que também você terá a oportunidade de
conhecer o conceito e as suas características.

3 CAMPESINATO
Caro acadêmico, você deve ter percebido que é um movimento comum na
ciência construir argumentos e, em seguida, eles passarem por revisões conceituais,
aprimoramentos e algumas teorias ou metodologias também podem entrar em desuso.
Foi mais ou menos o que aconteceu com os estudos de comunidade, com as críticas
elaboradas aos estudos de comunidade, as pesquisas guiadas por esse tipo de abordagem
vão perdendo lugar e cedendo espaço para outros temas, substituídos por pesquisas de
caráter mais regional, nas quais se analisam problemas como o do campesinato, o dos
assalariados rurais, dos trabalhadores urbanos e das frentes de expansão da indústria e da
modernidade.

Os estudos de fricção interétnica e etnologia, aqui já mencionados em tópico de


introdução, assim como os estudos de comunidade, conduziram a interpretações de que
certos grupos étnicos foram tomados como camponeses como é o caso do trabalho de
Paulo Marcos Amorim que estudou os Potiguara da Paraíba em “Índios camponeses”
(AMORIM apud MELATTI, 2007). Além disso, essas pesquisas acabam conduzindo
diferentes pesquisadores para o interesse nos estudos de campesinato não indígena.
106
Agora, os “estudos de comunidade” passariam a dar lugar para os “estudos
regionais” e parte dessa visibilidade e mudança de perspectiva veio a partir das críticas
acionadas no período anterior. “O projeto liderado por Roberto Cardoso de Oliveira e
Maybury-Lewis, em 1968, teve por objetivo comparar duas regiões brasileiras expostas a
mudanças motivadas pelos modernos programas de desenvolvimento: o Nordeste,
de população densa, estabelecida há muito e foco de emigração; e o Centro-Oeste,
de população mais recente, alvo de frentes de expansão” (MELATTI, 2007, p. 28). Esse
projeto foi realizado por professores e alunos do então recém-criado Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional.

No entanto o trabalho realizado na zona da mata nordestina vai produzir uma


intensa e rica linha de estudos que investigou os trabalhadores nas zonas açucareiras,
nesse contexto a dimensão do trabalho ganha precedência na análise dos antropólogos
que por meio desses estudos apontam as mudanças que os trabalhadores enfrentam
diante de um contexto de urbanização e inovação. Nesse sentido, os pesquisadores
vão mostrar que esses trabalhadores foram expulsos dos engenhos, a dificuldade que
eles encontram para se estabelecer nas cidades, a mudança no modo de trabalho que
flexibiliza os acordos entre trabalho assalariado e trabalho temporário nas empresas
açucareiras, o trabalho familiar em terras de criação de gado no interior do nordeste,
o aparecimento e desenvolvimento das feiras nas cidades da zona da mata, o sentido que
os próprios trabalhadores dão para o seu trabalho, a organização familiar nesse novo
contexto, dentre outros aspectos.

Alguns desses trabalhos que podem exemplificar esse tipo de estudo são:
“Emprego e mudança socioeconômica no Nordeste”, elaborado por Moacir Palmeira et al.
(1977) e “Mudança social no Nordeste” (1979), “A arte do ouro” (1979), “Trabalho assalariado
e trabalho familiar no Nordeste”, de Lygia Sigaud (1981), o projeto “Campesinato e
plantation no Nordeste”, de Afrânio Garcia Júnior, Beatriz Alasia de Heredia e Marie
France Garcia (1980). Os livros de José Sérgio Leite Lopes “O vapor do diabo” (1978),
Beatriz Maria Alasia de Heredia “A morada da vida” (1979), Doris Rinaldi Meyer “A terra do
santo e o mundo dos engenhos” (1980) e Lygia Sigaud com “A nação dos homens” (1980) e
“Os clandestinos e os direitos” (1979).

Além disso, Melatti (2007) menciona outra frente de trabalho na área do


campesinato que vai se desenvolver na margem oriental da Amazônia, onde se destacam
os trabalhos de Otávio Guilherme Velho sobre as frentes que afetaram a área de Marabá
“Frentes de expansão e estrutura agrária” (1972), de Francisca Isabel Vieira Keller sobre
a região de Imperatriz “O homem da frente de expansão” (1975), de Teresinha Helena
de Alencar Cunha sobre essa mesma região, além das pesquisas de Laís Mourão Sá e
Alfredo Wagner Berno de Almeida sobre o campesinato maranhense.

107
Outro conjunto de pesquisas foram desenvolvidas entre no leste e no norte
de Mato Grosso como “A dinâmica regional do Centro-Oeste”, de Mireya Suárez et al.
(1977), o projeto “Campesinato e peonagem numa área de expansão capitalista” reuniu
pesquisadores como Mireya Suárez, Eurípedes da Cunha Dias, Neide Esterci e Luís
Roberto Cardoso de Oliveira, na época era aluno de pós-graduação do Museu Nacional. O
foco das pesquisas nessa região estava concentrado nos “problemas enfrentados pelo
avanço das frentes de expansão” (Melatti, 2007, p. 29).

Serão consideradas dentro dos estudos regionais outro conjunto de pesquisas


que tratam de “Hábitos e ideologias alimentares em grupos sociais de baixa renda”,
conduzido por Klaas Woortmann e Otávio Guilherme Velho e que se distribuiu em onze
pesquisas de campo, por áreas rurais e urbanas, nos estados do Pará, Maranhão, Paraíba,
Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás e Distrito Federal. Klaas Woortmann publicou, como
produto dessa pesquisa, “Hábitos e ideologias alimentares em grupos sociais de baixa
renda” em 1978.

Além desses trabalhos surge outro campo de deslocamento que se concentra


em temas específicos e procura se diferenciar dos anteriores estudos de comunidade,
que não busca a análise da totalidade de uma comunidade, mas o foco em um aspecto.

Assim, teríamos agora os “estudos em comunidade” caracterizados pelo exercício


comparativo, um exemplo desse tipo de pesquisa é aquele que se realizam em comunidades
de pescadores como o de Raimundo Heraldo Maués “A ilha encantada” (1983), que vai
tratar das formas tradicionais de medicina numa comunidade de pescadores do Pará e
Maria Angélica Maués que discutiu os status das mulheres nessa mesma comunidade.

A antropóloga Mariza Peirano investigou as proibições alimentares e publicou a


respeito em “A reima do peixe” (1979).

Há uma série de trabalhos que não foram mencionados aqui, mas o que
desejamos que você aprenda é a diversidade de pesquisas e como elas vão produzir
conteúdos que falam também de outras áreas da antropologia, como, por exemplo,
desigualdade social, identidade étnica, sistemas de classificação, reprodução social,
saúde, religião, trabalho, dentre outros.

A antropóloga Giralda Seyferth (2011, p. 399) destaca algumas características


do campesinato no Brasil:

Assim, a questão do "trabalho familiar" é central na discussão sobre a


pequena produção camponesa que não é necessariamente geradora
de uma formação (econômica) particular, pois adapta e interioriza a seu
modo princípios econômicos mais gerais. Daí a controvérsia sobre
as vantagens e as desvantagens em relação à exploração capitalista
na agricultura, com a configuração de uma "questão agrária", iniciada
em fins do século XIX na Europa, quando também começaram os
vaticínios sobre o fim do campesinato.

108
Se no início da formação da antropologia o foco das atividades de pesquisa
estava concentrado nos povos “primitivos” com a revolução industrial e a formação
do mundo urbano, as mudanças que implicam as populações rurais passaram a ser um
objeto de atenção dos antropólogos. Até aqui, acadêmico, já foi possível perceber que as
populações rurais estão em contínuo processo de mudança e interação com outros
grupos sociais.

O fato de identificar essa relação de interação com outros grupos sociais serve
também para explicar as influências que uns exercem sobre os outros, não por acaso já
vimos como os estudos de comunidade e os estudos regionais foram importantes para
perceber a diversidade de grupos sociais que fazem parte do mundo rural.

No próximo subtópico vamos conhecer o conceito de povos e comunidades


tradicionais, assim como vamos poder nos aproximar de algumas dessas comunidades
a fim de conhecer suas características e situar suas perspectivas para o estudo da
antropologia brasileira.

4 COMUNIDADES TRADICIONAIS
A política nacional de desenvolvimento sustentável de povos e comunidades
tradicionais tem como marco referencial o Decreto nº 6.040/2007 que estabeleceu os
critérios para definir um povo ou grupo de indivíduos que possa ser classificado como uma
comunidade tradicional. Assim, podemos resumir em quatro aspectos principais que podem
ser utilizados para caracterizar um grupo como comunidade tradicional, a saber: a) as
práticas culturais; b) a organização social; c) o território específico; e d) a tradição ancestral.

Assim, as práticas culturais próprias que significa que esse grupo tem atividades
e características e formas de uso e manuseio de artefatos que são constitutivas daquele
grupo, isto é, são elementos que os identificam como pertencentes a um grupo específico e
que cria uma relação de identificação entre indivíduos que pertencem ao mesmo grupo
e cria uma identificação deles para grupos externos que não compartilham dessas
características. Logo, uma comunidade indígena pode ser definida como tradicional
com base nessa descrição.

A sociedade nacional reconhece os Tupinambás como um grupo indígena


baseado nessa definição, por estabelecer com esse grupo uma relação que reconhece
suas diferenças.

Já quando se fala em organização social de comunidades tradicionais é para


lembrar o modo como esse grupo se organiza politicamente, entendendo que muitos
deles possuem um tipo de liderança que se constrói com base nas relações de parentesco
ou de práticas econômicas ou se tem grupos específicos que compõem um grupo mais
amplo, mas que mantem algum grau de diferenciação entre suas atividades. Exemplo
disso são os povos indígenas do Brasil, que compõem um grupo social, mas que cada

109
etnia possui suas características particulares e formas de se organizar socialmente, isto
é, tem variação de grupo a grupo.

O terceiro elemento importante nessa definição é ter um território específico


para essa população, em geral, a maioria das comunidades e povos tradicionais tem uma
forte marcação identitária com o seu território.

Essa definição se constrói com base na relação que essa comunidade estabelece
com aquele território específico, por exemplo, pescadores que vivem próximo a um rio
ou uma praia, a identidade dele é definida em relação com o ambiente territorial que
eles ocupam, pois, sua forma de existir passa por se relacionar com aquele território,
seus modos de usos e ocupação daquele lugar definem também seu pertencimento e
influenciam em sua subsistência.

O território pode variar, estar situado numa região litorânea, no sertão, próximo
aos rios, dentro das florestas, na foz de um rio, na caatinga, dentre outros espaços. Assim,
é compreensível que essa comunidade estabeleça uma relação específica com o território
ocupado, pois é a respeito dele que seus habitantes aprendem a viver e sobreviver,
respeitando e preservando seu uso e ocupação como uma forma de manutenção de uma
relação com este território que não seja violenta, exploratória e destrutiva, pois eles possuem
conhecimentos tradicionais para um uso e um modo de ocupação de convivialidade com o
meio ambiente, os animais e tudo que há naquele território de maneira sustentável.

Por último destacamos a tradição ancestral aquela cultura e suas características de


ocupação e reprodução social foram transmitidas de geração em geração, entendendo que
a coesão daquele grupo, suas características, seus artefatos, sua política, sua economia
não foram criadas no contexto presente, mas dentro de um processo histórico com
base no aprendizado socialmente compartilhado de gerações anteriores para as novas
gerações. Logo, a geração atual tem o papel social de preservar as práticas culturais
passadas com o intuito de permanecer estabelecendo uma boa relação com o território
socialmente ocupado por ela. Estas são características determinam a formação do que se
entende conceitualmente como comunidades ou povos tradicionais no Brasil.

Já vimos que existem inúmeras comunidades tradicionais, em nossa análise neste


livro vamos dividir entre comunidades indígenas e não indígenas (quilombolas, ribeirinhos,
caiçaras, ciganos, dentre outros), porque sabemos que há um volume expressivo de
comunidades indígenas no Brasil e com características muito diferentes entre si. No
que se refere às comunidades não indígenas podemos ainda encontrar características
comuns em relação às indígenas, por estarem próximas entre si, compartilharem algumas
práticas comuns, mas não são pertencentes a mesma comunidade.

Nesse sentido, acredito que o quadro geral apresentado é suficientemente complexo


e exige de nós um exame mais detalhado acerca de exemplos que possam auxiliar você,
acadêmico, a realçar essas características, desafiar limites e entender as dinâmicas sociais
que compõem essas diferenças. Assim, que tal avançar em alguns exemplos?

110
4.1 INDÍGENAS
A população indígena no Brasil representa cerca de 900 mil pessoas, segundo
dados coletados pelo Instituto de Geografia e Estatística (IBGE) no último censo realizado
em 2010, que neste ano de 2022 será atualizado.

Naquele período de levantamento de dados, 572.083 desses indígenas viviam


na zona rural enquanto 324.834 estavam morando nas zonas urbanas, totalizando
896.917 indígenas vivendo em todas as regiões do país, inclusive no Distrito Federal. Um
acordo entre a FUNAI e o IBGE, celebrado em 2018 criou um site para registrar censo
indígena e tem o propósito de auxiliar na realização do censo que é importante como
elemento para auxiliar na construção e implementação de políticas públicas voltadas
para essas populações.

DICA
Sobre o acordo firmado entre FUNAI e IBGE, que trata de destacar o
segmento indígena nas bases de dados sobre a população, confira:
https://indigenas.ibge.gov.br/.

O Amazonas é o estado com a maior população indígena do Brasil, 284,5 mil,


seguido por Mato Grosso com 145,3 mil, Pará com 105,3 mil e Roraima com 83,8 mil.
Além disso, estados como Pernambuco e Mato Grosso do Sul registraram um maior
número de pessoas em áreas indígenas, respectivamente, 80,3 mil e 78,1 mil.

Dentre as regiões com o maior número de indígenas destaca-se a Região Norte


com 560,4 mil, seguido pela Região Nordeste com 234,7 mil, Centro-Oeste com 224,2
mil, Sul com 59,9 mil e Sudeste com 29,8 mil. Segundo o Censo IBGE (2010), estima-se
que haja 305 povos indígenas no Brasil e isso representa 0,47 % da população brasileira.

Os povos indígenas ou povos originários são aqueles que já habitavam aqui


antes da chegada dos colonizadores europeus, mesmo após o reconhecimento em
matéria de lei, com a Promulgação da Constituição Federal de 1988 que reconheceu a
organização social, os costumes, as línguas, as crenças, as tradições e o direito originário
desses povos em relação ao seu local de moradia e ocupação, ainda hoje essa parcela da
população brasileira sofre com invasões, violências e a demora na demarcação de suas
terras. A luta pela terra segue sendo uma constante para os povos indígenas.

No Brasil há 274 línguas indígenas faladas, em termos linguísticos fazem parte


do Tronco Tupí as famílias linguísticas Tupí Guaraní, Arikém, Awetí, Jurúna, Mawé, Mondé,
Mundurukú, Puroborá, Ramaráma e Tupar. Já as famílias linguísticas Jê, Maxacalí,

111
Krenák, Yathê, Karajá, Ofayé, Guató, Rokbabtsá e Boróro compõem o Tronco Macro-Jê.
Esses 305 povos indígenas possuem cultura, língua e organização política próprias, o que
os reúne entorno do uso da categoria povo, no entanto, o termo “etnia” é utilizado para
valorizar o aspecto cultural que diferencia esses povos.

Os povos originários sofreram com a violência física, com a espoliação de suas


terras, mas também com o genocídio em decorrência de doenças e da morte social e
cultural, isto é, o etnocídio de seus saberes, sua cultura, seu conhecimento, de sua visão de
mundo e de sua filosofia.

Enquanto os povos indígenas estabelecem uma relação de afinidade e


proximidade intensas com a terra, que está associada à concepção de vida e nada tem
a ver com mercadoria, a sociedade nacional, baseada em valores ocidentais, parte da
ideia de terra como posse e mercadoria, uma propriedade estabelecendo uma relação
de distanciamento com a natureza e com isso oferecendo um modo de vida diferente,
baseado na extração e exploração de recursos naturais para acumulação e não para
subsistência ou respeito ao meio ambiente.

O termo comunidades indígenas é um marco importantíssimo na configuração


social do nosso país que vem a ser utilizado para demarcar políticas sociais de
reconhecimento e de implementação de políticas públicas voltadas a essa parcela da
população, isto porque os povos indígenas são pré-coloniais, significa que eles habitam
e ocupavam o território brasileiro antes da chegada dos europeus colonizadores aqui
em nosso país e ao considerar essas dimensões pretende-se criar mecanismos que
promovam o reconhecimento de sua identidade, de suas terras, de seus direitos e de
suas epistemologias.

Ao falarmos em reconhecer suas epistemologias, significa que os diferentes povos


indígenas estavam organizados à sua maneira, já moravam, ocupavam e dominavam as
práticas de uso e ocupação para seu próprio consumo e subsistência e tinham domínio
de seu espaço social, lembrando que eles estavam divididos em inúmeras tribos e etnias.

A chegadas das expedições europeias representam um processo doloroso da


nossa história, pois significa a invasão e o uso de formas de exploração e violência para
tomar o território dos povos indígenas. Para você ter uma ideia, acadêmico, veja o que
está acontecendo com os números povos e comunidades indígenas em uma escala
histórica e demográfica. A população diminuiu expressivamente.

Os índices demográficos estão cada vez mais diminuindo e se você pensar bem,
acadêmico, aqueles poucos povos que ainda resistiram ao tempo enfrentam hoje a
vulnerabilidade da pandemia de covid-19 e a invasão de suas terras por práticas ilegais
de exploração de minério, desmatamento de árvores e construção de hidrelétricas que
ameaçam o ecossistema de subsistência dessas populações.

112
É muito importante que nós lembremos da grande diversidade de povos
indígenas, a variação de grupos também está associada com os modos de ocupação e uso
do território, isto é, aqueles povos que habitavam as profundezas da floresta amazônica,
os povos indígenas que estavam localizados nas margens litorâneas, cada grupo em
regiões diferentes de todo o território brasileiro produzia características diferentes entre
eles.

Significa que, ainda que todos sejam indígenas, há diferenças e variações entre
cada grupo. Inclusive muitos mantinham relações rivalidade e outros associavam-se
em alianças.

As pesquisas antropológicas como as de Roberto Cardoso de Oliveira e Darcy


Ribeiro contribuíram muito na consolidação de uma antropologia engajada nas lutas dos
povos indígenas diante do Estado brasileiro que não via suas necessidades, demandas e
riscos de desaparecimento.

Assim, uma importante instituição foi fundada para contribuir com preservação
dos territórios indígenas e segurança dos povos indígenas. Estamos falando da
Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Esta instituição tem por objetivo a proteção dos
povos indígenas e dos seus territórios, ao colocar em ação as atividades de proteção,
a FUNAI foi alvo de inúmeros ataques – fosse internamente, sofrendo com cortes e
sucateamento de sua estrutura organizacional, fosse pelas ações de grupos invasores
e de latifundiários, que tentavam cada vez mais invadir e ampliar as áreas de exploração.

Conflitos entre indigenistas e invasores acontecem até hoje o mais recente deles
chocou o mundo quando um indigenista da FUNAI, Bruno Pereira, e um jornalista britânico,
Dom Phillips, desapareceram e foram encontrados mortos na região do Vale do Javari.

DICA
Sobre o caso Bruno Pereira e Dom Phillips, leia a seguinte matéria:
http://glo.bo/3KzcOJq.

INTERESSANTE
Para entender melhor o conceito de etnogênese, leia o artigo do historiador
e antropólogo José Mauricio Arruti. Disponível em: https://bit.ly/3AYOX2Q.

113
4.2 QUILOMBOLAS
As comunidades quilombolas são formadas por grupos de pessoas que são
descendentes de africanos que foram escravizados durante o período colonial. Significa
que a maioria dessas comunidades se formaram a partir da luta de escravizados pelo
direito à liberdade, estas comunidades são registros da resistência e a memória ancestral.

Figura 7 – Luta de escravizados

Fonte: https://bit.ly/3AYBurP. Acesso em: 26 ago. 2022.

As comunidades de remanescentes de quilombo representam também


uma forma de mobilização e luta de negros que foram escravizados para escapar do
sistema colonial de escravização. Assim, os negros que na época foram escravizados
fugiam e formavam pequenas comunidades em territórios que pudessem abrigar com
maior segurança e dificultasse a ação de seus perseguidores coloniais. Esse lugar foi
chamado de quilombo, lugar de resistência política, cultural e religiosa, onde formavam
uma comunidade quilombola. O encontro entre essas pessoas nesse novo lugar foi
marcado por um modo de vida em que as práticas de resistência política, assim como
hábitos alimentares, formas de professar sua fé, núcleos familiares e afetivos foram se
constituindo para a construção de uma vida livre de violência e com alguma perspectiva
de subsistência interna.

A vida nesses quilombos nutria outras formas de convivência, numa tentativa


de manter tradições de seus lugares de origem, atualizar sua língua, reforçar suas práticas
religiosas, compartilhar suas experiências de dor e sofrimento e articular uma formação
coletiva para a resistência ao sistema colonial.

A necessidade de se esconder para sobreviver era tão marcante e vital que


muitas comunidades demoraram muito tempo para serem descobertas mesmo após
a abolição da escravatura em 1888, no entanto, atualmente essas pessoas enfrentam
novos problemas para se manterem em comunidade. E, então, acadêmico, agora você
deve se perguntar: quais seriam esses problemas hoje em dia?

114
Vamos lembrar que essas comunidades quilombolas estão espalhadas por todo o
território brasileiro, que é imenso, para regularizar a situação social de reconhecimento
do território como remanescente de quilombo é preciso um trabalho de elaboração e
pesquisa da comunidade, suas práticas e modos de vida, o desenho de sua genealogia, a
demarcação do território mediante processos de reconhecimento de suas fronteiras, o
registro de suas atividades políticas e de organização social, seu sistema de parentesco,
seus hábitos alimentares, usos e modos de ocupação do lugar, dentre outros aspectos.
Mesmo após o reconhecimento público de que se trata de uma comunidade quilombola
há ainda problemas quanto à infraestrutura básica, por exemplo, acesso à água potável,
rede de esgotos, energia elétrica, acesso à educação, saúde e condições de trabalho. Além
dessa dimensão da estrutura da comunidade, há que se observar as políticas de assistência
governamentais para a criação e manutenção dessas áreas em condições dignas de vida.

DICA
Quer saber um pouco mais dos direitos das comunidades
quilombolas no Brasil? Então, acadêmico, se liga nesse podcast:
https://spoti.fi/3pTHETK.

4.3 CAIÇARAS
A comunidade caiçara é um grupo social tipicamente litorâneo que se formou
a partir das relações miscigenas entre populações indígenas, populações negras e
colonos europeus em torno do bioma Mata Atlântica ocupando a faixa de terra seca que
fica entre o Mar do Atlântico e a Serra. Em geral, são comunidades encontradas no litoral
sudeste do Brasil – São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná até Santa Catarina -, mas também
está no nordeste do país, em regiões da Bahia com os jangadeiros e do Maranhão com os
balseiros. Sua marca predominante é o território limiar entre a terra e a água.

O que os define como uma comunidade tradicional é sua forma de vida baseada
no tipo de agricultura chamada itinerante, na qual a pesca, o extrativismo vegetal e o
artesanato são predominantes. Duas atividades predominantes nessas comunidades
são a pesca marítima artesanal, não predatória, e a agricultura primitiva, isto é, sem
utilizar tecnologias mecanizadas para suas práticas agrícolas, sendo assim cultivam
práticas mais tradicionais e de agricultura e pesca, como a coivara e a pesca de tipo
puçá, para o próprio consumo. Assim como o modo de preparar, armazenar e utilizar
alimentos como farinha e o peixe traduzem uma marca cultural de herança indígena, em
que se destaca um uso diverso da mandioca, o preparo do peixe defumado e cozidos
lentos para feitura de pirão.

115
Entre suas manifestações culturais podemos destacar aqui aquelas que os
caiçaras mantém vivas, por exemplo, o fandango português que se tornou Patrimônio
Imaterial Cultural em 2012, o tamanqueado e a Folia do Divino (que acontece em Paraty-
RJ) e virou Patrimônio Imaterial Cultural do Brasil em 2013 e o Boi mamão que é uma
variação do boi bumbá e combina o som da rabeca, da viola branca de sete cordas e do
machetinho.

Dentre as dificuldades encontradas pelas comunidades caiçaras para sua


sobrevivência estão as mudanças que começaram a surgir ainda na década de 1950
quando as regiões onde essas populações residiam passaram a ser objeto de interesse
comercial com o crescimento da especulação imobiliária em face de sua proximidade
com o mar e, por outro lado, por estar entre um faixa de terra entre o mar e serra, seus
limites encontram zonas de proteção ambiental bem preservadas da Mata Atlântica.
Entre os anos de 1970 e 1980 essas populações passaram a se mobilizar coletivamente
e se organizaram para lutar pelo reconhecimento cultural e territorial da cultura caiçara.

DICA
Quer saber mais a respeito dos caiçaras? Conheça o trabalho de
pesquisa de Gabriel Bertolo (2015) em: https://bit.ly/3wJaGtc.

4.4 RIBEIRINHOS
Povos ribeirinhos ou comunidades ribeirinhas são aqueles grupos sociais que
estão situados nas proximidades de rios, igarapés, igapós e lagos da floresta, utilizando a
prática da pesca artesanal como sua principal fonte de subsistência e sobrevivendo as
variações sazonais da água e do clima no seu cotidiano de vida e de trabalho. Em geral,
cultivam pequenos roçados para seu próprio consumo e praticam atividades extrativistas
para sua sobrevivência, nutrindo-se das condições oferecidas pela natureza.

A proximidade com o rio vai se mostrar essencial na maneira como a cultura


ribeirinha vai se desenvolver, isto porque essa localização exerce influência sobre sua
identidade e subsistência. Entre suas atividades essenciais estão a pesca, a caça e o
extrativismo vegetal e é uma população predominante na região amazônica. O rio é
elemento constitutivo da identidade dessa comunidade.

Um dos acontecimentos históricos que marcou profundamente as comunidades


ribeirinhas foi o período do Ciclo da Borracha, quando esses povos se deslocavam para
fazer a extração do látex e retirar a seringa dos seringais para a produção da borracha.

116
Estima-se que existem 350 comunidades ribeirinhas na região amazônica, a
Cuiú-cuiú é uma delas. Cerca de 37 mil habitantes dessas comunidades vivem isolados à
beira de rios, com pouco ou nenhum acesso às políticas de assistência.

Um dado característico dessas comunidades envolve sua relação com a natureza,


no sentido de que mesmo estando ali essas pessoas estabelecem uma relação de respeito
com a natureza, procurando preservar esse território em uma relação de sustentabilidade
com o meio ambiente. Aliás, a rigor, esta relação de sustentabilidade com a natureza
é uma marca de todas essas comunidades tradicionais aqui mencionadas (indígenas,
quilombolas, caiçaras, ribeirinhas), todavia, cabe ainda falarmos das palafitas, um tipo
de construção feita pelos ribeirinhos que são casas que resistem a variação do nível dos
rios, quanto ao seu período de seca e de cheia, uma espécie de construção flutuante,
embora seja construída num nível acima daquele considerado a cheia do rio, assim
quando o rio sobe a casa fica preservada e não corre o risco de alagamento.

Figura 8 – Comunidades

Fonte: https://bit.ly/3wGytty. Acesso em: 21 ago. 2022.

DICA
Vale a pena conferir o trabalho das pesquisadoras Talita de Melo
Lira e Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chave intitulado
“Comunidades ribeirinhas na Amazônia: organização sociocultural e
política”. Confira em: https://bit.ly/3AyUPP1.

117
Por fim, é relevante destacar que as comunidades tradicionais estabelecem
formas de relação com o seu espaço, cada uma delas estabelece à sua maneira um valor
e uma importância sobre o espaço vivido e é observando essa vivência e os processos
sociais que se desenvolvem a partir dali que podemos identificar as relações culturais,
existenciais que um grupo estabelece com o espaço.

Finalizamos este tópico rico em informações a respeito de diferentes comunidades


tradicionais, conceitos, autores e um pouco da antropologia das populações rurais do
Brasil. Claro, o conhecimento é inesgotável e aqui você, acadêmico, tem sempre um
mapa para buscar aprofundamento e novos conhecimentos com as Gio Dicas.

Em nosso próximo tópico vamos abordar as organizações econômicas, as dife-


rentes relações sociais e as moralidades presentes no mundo rural trazendo contribuições
de outro conjunto de pesquisas das relações agrárias e ruralidades.

Lembre-se, antes de partir para um novo percurso de leituras, passe este


conteúdo em revisão e faça a sua autoatividade.

118
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:

• A história de formação da antropologia rural no Brasil.

• Os diferentes estudos e pesquisas que consolidaram os estudos de antropologia rural


como o Campesinato.

• Aprendeu o conceito de povos e comunidades tradicionais.

• Conheceu diferentes povos tradicionais como indígenas e não indígenas

119
AUTOATIVIDADE
1 Conforme apontado pela antropóloga Alcida Rita Ramos (1990), nos estudos das
populações indígenas no Brasil, duas subáreas passaram a representar perspectivas
ao mesmo tempo complementares e distintas – em algumas situações, até oponentes.
Quando se trata de estudos das populações indígenas essa área organizou e definiu as
bases de formação do campo acadêmico e de produção em pesquisa na Antropologia
desde seus primórdios. Sobre estas grandes contribuições ao conhecimento da
Antropologia Rural, essa autora chama a atenção para duas bifurcações que dela
derivam. Sobre o exposto, assinale a alternativa CORRETA:

Fonte: RAMOS, A. R . Memórias Sanumá: Espaço e Tempo em uma sociedade Yanomami. Brasília: Editora
UnB, 1990.

a) ( ) Etnologia Indígena e Identidade, Território e Relações Interétnicas espelham essa


dualidade e ruptura.
b) ( ) Antropologia dos Índios rurais e Estudos de conflitos e pacificação.
c) ( ) Antropologia Rural da Cosmologia Indígena e Estudos de Territorialidade e
Desterritorialização.
d) ( ) Etnologia Ameríndia e Antropologia da Terra e Mundo Rural.

2 A Antropologia Rural pode ser definida como uma subárea da antropologia que se
dedica ao estudo das populações do campo a partir da investigação antropológica
e do uso da etnografia. Alguns antropólogos se dedicaram ao estudo dos modos de
vida com destaque para as relações de parentesco, etnicidade, alimentação, práticas
festivas, rituais religiosos, territorialidade, economia, saúde, moradia, novas tecnologias
no campo, dentre outras áreas de estudos. Com base nessas definições, analise as
sentenças a seguir:

I- A Antropologia Rural estuda os modos de vida rural que não fazem parte da vida
citadina, em contraposição ao modo de vida urbano.
II- Segundo João Pacheco de Oliveira, os sujeitos indígenas e a construção de suas
identidades são homogêneos, porque os indivíduos indígenas interpretam e
conhecem o mundo somente de forma limitada e não há espaço para mudança.
III- O termo “antropologia rural” nem sempre foi utilizado pelos antropólogos para definir
um campo de pesquisa, mas os fenômenos que eles estudavam eram próprios do
mundo rural.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.
120
3 Parte importante do estudo antropológico do modo de vida rural vem do interesse
de pesquisadores e pesquisadoras que veem os inúmeros grupos sociais que se
desenvolvem e se organizam coletivamente a partir do campo e das comunidades. Uma
parte desses pesquisadores lidam com a categoria campesinato como um lócus de
observação etnográfica, por onde antropólogos podem ver a diversidade dos modos de
agrupamento, manifestações sociais e ações coletivas, bem como registrar a alteridade
entre os sujeitos que se agrupam e lutam pelo direito à terra e aos diferentes modos de
vida. A partir das contribuições da antropóloga Giralda Seyferth (2011), classifique V para
as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

Fonte: SEYFERTH, G. Campesinato e o Estado no Brasil. Mana [on-line]. 2011, v. 17, n. 2, p. 395-417, 2011.

( ) A autora destaca como uma característica do campesinato no Brasil a questão do


"trabalho familiar" que pensada como central na discussão sobre a pequena produção
camponesa que não é necessariamente geradora de uma formação (econômica)
particular, pois adapta e interioriza a seu modo princípios econômicos mais gerais.
( ) O conceito de campesinato se refere aos grupos sociais formados por etnias
indígenas que migram das aldeias-mãe para morar na cidade urbana e assim
formam novos grupos indígenas.
( ) Daí a controvérsia sobre as vantagens e as desvantagens em relação à exploração
capitalista na agricultura, com a configuração de uma "questão agrária", iniciada em
fins do século XIX na Europa, quando também começaram os vaticínios sobre o fim do
campesinato.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 A política nacional de desenvolvimento sustentável de povos e comunidades


tradicionais tem como marco referencial o decreto 6040/2007 que estabeleceu os
critérios para definir um povo ou grupo de indivíduos que possa ser classificado como
uma comunidade tradicional. Apresente os critérios definidos nesta normativa e que
estão citados no texto.

5 Existem inúmeras comunidades tradicionais, em nossa análise vimos que estas se


dividem entre comunidades indígenas e não indígenas. Neste contexto, disserte sobre o
conceito de comunidades tradicionais citando pelo menos dois exemplos.

121
122
UNIDADE 2 TÓPICO 3 —
ORGANIZAÇÕES ECONÔMICAS,
RELAÇÕES SOCIAIS E MORALIDADES
NO MUNDO RURAL

1 INTRODUÇÃO
Caro acadêmico, vimos até aqui que expansão de estudos e pesquisas
antropológicas das populações rurais se desenvolveram de forma intensa e cobriam
temas focados na questão territorial e de reconhecimento da identidade. No Tópico 1, você
pôde aprender o processo histórico de formação da antropologia e seus desdobramentos
em estudos dos grupos sociais situados no mundo rural. Até então os estudos de
comunidades e a etnologia indígena foram os principais marcos de referência para o
desenvolvimento desse campo. Assim, entre as décadas de 1940 e 1970 esses estudos
representaram fortemente o campo de estudos em torno de comunidades e grupos que
eram lidos e definidos com base na sua localização espacial, seus traços culturais e em
contraposição ao modo de vida urbano.

Figura 9 – Modo de vida urbano

Fonte: https://bit.ly/3AYAunt. Acesso em: 26 ago. 2022.

Na década de 1980 os estudos das comunidades rurais estavam associados


com a identidade negra e camponesa e exerceram muita influência sobre os processos
de reconhecimento de territórios e regularização de terras. Nesse período, o campo de
estudos em etnologia indígena já estava consolidado como um campo expressivo e o
volume de pesquisas nessa área permitiu uma especialização de estudos em que essas
comunidades tradicionais foram estudadas de forma mais independente umas das outras
ressaltando aspectos epistemológicos e ontológicos em torno das reinvindicações de
direitos territoriais, jurídicos, educacionais, de saúde e nesse sentido vão constituindo
diferenças em que pese um processo de afastamento da identidade camponesa ou
noutros termos do campesinato brasileiro.

123
Aponta-se para uma diferença significativa entre aquelas comunidades tradi-
cionais apresentadas no Tópico 2, das comunidades e grupos que falaremos aqui. As lutas
sociais por territórios foram constitutivas de comunidades tradicionais como indígenas,
quilombolas, caiçaras e ribeirinhos, e se destacam justamente por terem sido posicionadas
como fenômenos do mundo rural brasileiro. Nesse sentido, a abordagem acerca dos
conceitos de terra, território e territorialidade proposta por Dominique Galllois (2004)
que veremos no próximo subtópico faz referência exatamente a este ponto.

Entretanto, para uma visão mais plural ainda é preciso localizar alguns
componentes desse percurso historiográfico, sobretudo considerando a categoria terra,
que geralmente está associada a identidade do camponês. Assim, teríamos dois campos
de entendimento a respeito dos grupos sociais e sua relação com o rural, as comunidades
tradicionais estariam situadas no polo das lutas por território, enquanto os camponeses
se estabelecem nas lutas pela terra. As lutas por território nas quais situam-se indígenas,
quilombolas e demais comunidades tradicionais reivindicam a demarcação coletiva de
suas terras, isto é, o reconhecimento formal de que determinados espaços compõem a
identidade coletiva de um grupo social e representa uma luta por direitos culturalmente
diferenciados, assim a relação com esse território é uma relação de pertencimento coletivo
e responsabilidade coletiva pelo território, não como uma posse ou uma propriedade
individual. Por outro lado, as dinâmicas que envolvem as lutas por terra se caracterizam
por demandas políticas cujo centro de suas discussões destacam a categoria “classe”
que mobiliza direitos universais e constitui sujeitos políticos como trabalhadores sem-terra
ou mulheres rurais, por exemplo, implicando em uma relação de meio de produção, no
entanto, grupos rurais estabelecem uma relação com a terra por meio de elementos
constitutivos de vínculos materiais, espirituais e simbólicos, conforme destacado pelo
antropólogo André Dumas Guedes (2016).

Vejamos, no próximo tópico, a abordagem conceitual de categorias como terra,


território e territorialidade.

2 TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE
O território pode ser definido com base nas relações de poder que o atravessam
e é um conceito muito importante para compreender adequadamente todos os conflitos
e a história de formação e desenvolvimento dessas comunidades tradicionais que você
acabou de conhecer.

Assim, acadêmico, quando você leu a respeito dos povos indígenas percebeu que
havia ali uma diversidade de etnias que ocupavam de forma diferente espaços dentro do
que sabemos ser o Brasil. Então, com a chegada dos europeus os limites entre essas etnias,
bem como o espaço do território brasileiro já ocupado pelos povos indígenas é alvo de
interesses econômicos e invasão, desrespeitando sua cultura, seu espaço e suas fronteiras.

124
Essa relação de poder é desigual e hierárquica e busca expansão do poder
econômico, político e cultural. Essa relação de poder vem sempre marcada pela dimensão
política, não por acaso, parte da antropologia que desenvolveu estudos de etnologia
indígena vai chamar nossa atenção para as relações entre povos indígenas e sociedade
nacional, procurando estabelecer uma noção de cidadania ampliada, em que se respeite
as formas de ser e de habitar dessas populações que possuem sentidos, linguagens e
organização social diferentes da sociedade nacional, basta lembrar o conceito de fricção
interétnica do antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira que vimos no subtópico anterior.

Estudos antropológicos evidenciam que há diferentes lógicas espaciais entre


essas comunidades tradicionais. Por exemplo, entre povos indígenas há noções de
organização territorial que se estruturam de acordo com as formas de viver e usar o
espaço (GALLOIS, 2004). Logo, a dinâmica fluida de mobilidade espacial encontrada em
diferentes comunidades indígenas explicaria também a ausência de uma estrutura fixa
como a noção de fronteira. Na verdade, o que a literatura antropológica mostra é que
essa dimensão de limites e fronteiras vem a ser constituída no momento de contato,
quando o Estado passa a impor processos de regularização fundiária no intuito de
delimitar territórios.

Para Dominique Gallois (2004, p. 40) “nenhuma sociedade existe sem imprimir
ao espaço que ocupa uma lógica territorial” e, acadêmico, é exatamente nessa perspectiva
que você pode compreender o sentido social de um território para uma comunidade
indígena. Cada comunidade tem sua própria lógica territorial a respeito do espaço e ela é
constitutiva do modo de vida dessas populações.

A antropóloga coloca em discussão as diferentes perspectivas dos conceitos


de terra, território e territorialidade. Nesse sentido, a autora nos convida a pensar nas
descontinuidades territoriais que podem surgem diante do tempo e da função que cada
grupo social desenvolve com a região. Refletindo sobre a realidade de povos indígenas,
Gallois (2004) nos mostra que essas regiões podem ser mutáveis pela ação do tempo,
pela relação de proximidade e distanciamento entre grupos, seja pelos processos de
extinção de grupos ou de surgimento de outros grupos, e por isso mais correto é partir
da abordagem da territorialidade.

As noções de terra e território já foi objeto de diferentes estudos antropológicos


como os de Seeger e Viveiros de Castro (1979) e de Oliveira Filho (1989; 1996), todos eles
vão nos mostrar que essas categorias são acionadas de maneira distinta pelos atores
envolvidos no processo de reconhecimento e demarcação de uma Terra Indígena. Logo, o
conceito de “terra indígena diz respeito ao processo político-jurídico conduzido sob a
égide do Estado, enquanto território remete à construção e à vivência, culturalmente
variável, da relação entre uma sociedade específica e sua base territorial” (2004, p. 4).

125
Nesse sentido, é necessário levar em consideração aspectos importantes dessa
relação entre povos e território, para isso a autora sugere a abordagem da territorialidade
uma vez que esta permite uma avaliação cuidadosa das relações entre terras que foram
ocupadas em caráter permanente, aquelas terras que são utilizadas para atividades
produtivas e as terras imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários
ao bem-estar e a reprodução física e cultural dos povos indígenas (GALLOIS, 2004).

Tais formas de olhar para dimensão territorial revela em muitos casos as


sobreposições de umas sobre as outras, quando na verdade essas dimensões devem
ser lidas a partir das formas de organização territorial de cada comunidade indígena.
Assim, se por acaso desconsiderar as singularidades de cada grupo na maneira como
organização sua territorialidade, elas relações de sobreposições mencionadas acima
podem interferir na delimitação de uma terra indígena de maneira errônea e como
consequência desse erro reduzir a abrangência das relações territoriais à produção e às
atividades de subsistência (GALLOIS, 2004).

Terra não é o mesmo que território, de acordo com estudos antropológicos aqui
mencionados, considera-se que cada comunidade indígena possui uma lógica própria
espacial e social, em sendo assim há diferentes formas de organização territorial e é
nesses termos que o território de um grupo pode ser pensado como substrato de sua
cultura (GALLOIS, 2004).

No próximo subtópico, faremos uma exposição da formação das identidades a


partir do território e seus sentidos sociais.

3 IDENTIDADE, TERRITÓRIO E NOVAS QUESTÕES DO


MUNDO RURAL
Existe uma literatura baseada na análise de movimentos sociais contemporâneos
que demonstram os diferentes sentidos sociais que a terra e o território adquirem em
relação aos grupos sociais que que lutam por ela. Ao longo deste subtópico você,
acadêmico, pode se familiarizar um pouco com as demandas e os sentidos múltiplos
que essas categorias assumem para grupos indígenas e não indígenas. Também pode
entender que esses diferentes grupos são muito maiores do que aqueles que estão
mencionados nesse livro, portanto, fica o convite para que você busque o conhecimento
vasto que há nesses diferentes grupos.

Além disso, você também aprendeu a diferenciar categorias analíticas


importantes ao estudo do campo da Antropologia Rural, entendendo como e quando ela
começa e quais as etnografias que foram importantes no processo de formação desse
subcampo de estudos. Ainda é relevante destacar a maneira como categorias analíticas
como terra, território e territorialidade auxiliam em nosso processo de entendimento da
diversidade de grupos, suas demandas de reconhecimento e de acesso e respeito ao
seu modo de vida quando se parte da luta por acesso à terra.
126
Para encerrar nossa unidade, vamos aprofundar um pouco a questão dos
sentidos sociais das lutas por terra e território, para então quando avançarmos ao último
capítulo deste livro você possa entender a complexidade das dinâmicas entre o rural
e o urbano nas suas intersecções. Aqui foi privilegiado o olhar sobre as comunidades
tradicionais, consideramos mesmo que brevemente a exposição de diferentes grupos a
fim de permitir um olhar mais plural sobre essas identidades e lutas sociais.

Em conformidade com o que aponta o antropólogo André Guedes (2016) o


“território” é percebido como elemento central às lutas de diferentes movimentos
sociais e deve ser pensado sempre em referência à sua capacidade de abarcar e
evidenciar particularidades e identidades específicas. Essa categoria assume também um
papel importante na esfera pública quando em situações de conflito ela é acionada
para denunciar limites e abusos quanto aos impactos e efeitos sociais de projetos de
acumulação e espoliação capitalista, tendo como referência as ameaças à vida de povos
indígenas e demais povos tradicionais ameaçados de terem o bioma onde vivem e de
onde dependem para viver atravessados por exploração, violências e esgotamento das
fontes naturais de subsistências.

Dentro dessa perspectiva uma outra categoria analítica é acionada, isto é, a


“desterritorialização”, que visa dar conta de um modo de enunciar um conjunto de efeitos
negativos promovidos por empreendimentos distintos dos modos de vida tradicionais.
Guedes (2016) defende que essa categoria é extremamente relevante para a dimensão
política dessas lutas sociais para pensar nos efeitos sociais de grandes projetos que
impacto negativamente na vida de diversas populações tradicionais. Esse termo
implica análises empobrecidas que não dão conta de efeitos possíveis e pensáveis não
imediatamente, mas em longa escala (GUEDES, 2016).

Veja, acadêmico, todos esses autores aqui mencionados têm contribuído para
entender uma diferença importante quanto ao sentido de terra e território quando
acionadas dimensões sociais e econômicas, por um lado, evidenciando um sentido
particular de um tipo de expressão espacial em que um modo de vida se desenvolve e
necessita para sua reprodução e existência. Por outro lado, há um esforço em demonstrar
os impactos e efeitos nocivos quando há uma imposição de projetos econômicos que
veem a terra e o território apenas como um recurso econômico.

Assim, é possível levarmos a sério as demandas mobilizadas pelas comunidades


tradicionais acerca de sua territorialidade, frequentemente lembrada como algo para
além da posse individual e do sentido estritamente econômico que compõe a ideia
de propriedade. Logo, é importante evocar toda a dinâmica que está inserida no
reconhecimento das demandas de povos e comunidades tradicionais que resulta de
uma inter-relação entre aspectos como organização social, concepções naturais e
ecológicas, biológicas e culturais.

127
Assim as lutas territoriais de povos e comunidades tradicionais nas últimas
décadas ganharam maior protagonismo na esfera pública brasileira, se comparado com
as lutas por “terra” de movimentos camponeses (ALMEIDA, 2007). Alguns projetos
econômicos e políticos hegemônicos tem contribuído para uma consolidação de lutas
sociais que tem por objetivo o enfrentamento mais direto aos projetos modernizantes
que exploram e dizimam populações sem respeito às legislações ou ao direito das
comunidades e povos tradicionais.

Os contextos são complexos, os grupos são inúmeros e os sentidos sociais que


cada um deles atribuem às suas demandas também são singulares. É preciso entender
a coexistência de diferentes sentidos nessas disputas, no sentido de ampliar a nossa
capacidade de reconhecer a diferença, preocupados com os impactos e os efeitos que
um empreendimento econômico pode suscitar toda uma comunidade de pessoas.

Certamente no próximo capítulo quando falaremos dessas imbricações entre a


dimensão rural e urbana em fricção poderemos entender melhor quais esses efeitos,
quais os limites e as potencialidades que essas lutas sociais despertam no tempo presente.

A década de 1980 trouxe uma infinidade questões em disputa na arena pública


brasileira, conforme já foi dito aqui um dos seus acontecimentos mais marcantes é a
promulgação da Constituição Federal de 1988 que trouxe em seus marcos jurídicos
o reconhecimento de sujeitos políticos como os indígenas e não indígenas, no entanto,
é também nesse período que outras lutas e conflitos sociais espaço contexto do campo,
organizações pautadas na defesa ambiental e étnica.

De acordo com o antropólogo Mauro Almeida (2007) nesse período vamos


encontrar uma mudança nas “narrativas agrárias”, Almeida é enfático ao afirmar que não
significa que a luta camponesa perdeu lugar, mas que está não será a única luta presente
nesse contexto. Também nesse período falou-se no fim da “antropologia das sociedades
agrárias”, razão pela qual você, acadêmico, já deve ter percebido nos subtópicos anteriores
quando vimos o surgimento e o desenvolvimento da antropologia brasileira. O que este
autor tenta enfatizar é que este fim é meramente artificial, pois na prática um enorme
contingente de populações, comunidades e organizações vão emergir mobilizando
categorias analíticas e políticas do campesinato, por exemplo, “barrancos e florestas,
ilhas e praias, chapadas e brejos, babaçuais e açaizais, canaviais e cafezais, ribeirinhos e
seringueiros, quilombolas e caiçaras, sertanejos e montanheses, coletores e plantadores,
saberes, tradições e memórias, fazeres” (ALMEIRDA, 2007, p. 177).

No caso dos povos indígenas destaca-se reivindicações e organizações de


novos sujeitos que não estavam registrados na literatura antropológica ou mesmo eram
reconhecidos em matéria de serviços especializados como é o caso da FUNAI, povos
como os Tinguí-Botó, os Karapótó, os Kantaruré, Jenipancó, os Tapeca e os Wassu, que
nesse momento passam a serem chamados de “índios emergentes” ou “novas etnias”,
segundo aponta o antropólogo João Pacheco de Oliveira (1998).

128
Assim aparece, por exemplo, o termo “etnogênese”, empregado
por Gerald Sider (1976), no contexto de uma oposição ao etnocídio.
Não caberia tomá-la como conceito ou mesmo noção, pois este e
outros autores, que também aplicam a mesma ideia na etnografia
de populações indígenas (como Goldstein, 1975), sequer sentem a
necessidade de melhor defini-la, tomando-a como evidente. Em
termos teóricos, a aplicação dessa noção – bem como de outras
igualmente singularizantes a um conjunto de povos e culturas
pode acabar substantivando um processo que é histórico, dando a
falsa impressão de que, nos outros casos em que não se fala em
“etnogênese” ou de “emergência étnica”, o processo de formação de
identidades estaria ausente (OLIVEIRA, 1998, p. 62).

O que Pacheco de Oliveira chama atenção e com razão é para o fato de que é um
erro classificar esses povos indígenas que foram reconhecidos tardiamente entre os anos
1970 e 1980 como sendo pertencentes a “novas etnias” ou “índios emergentes” quando
na verdade as transformações sociais que ocorreram no Brasil nesse período interferem
de forma intensa sobre esses processos, sobretudo quando do encontro com outras
culturas e povos que fazem parte dessa trajetória, como é o caso dos povos indígenas do
Nordeste que no século XVI foram submetidos à escravização, pacificação e aldeamentos
forçados diante de alianças ou guerras em contatos com os colonizadores (OLIVEIRA,
2006; 2010).

O que se destaca mais fortemente nesse período é que há uma inserção étnica
na agenda pública de lutas políticas e isto representa um deslocamento de concepções
políticas na maneira como os movimentos sociais em que vigoram as demandas étnicas
passa a mobilizar como uma categoria central “identidade étnica” e um conjunto de
categorias como as descritas acima que valorizam esse lugar da etnicidade nas lutas
políticas por sujeitos tradicionais.

Essa pluralidade de atores e novos sujeitos políticos em que passam a afirmar de


forma positiva sua identidade, por exemplo, indígenas, quilombolas, quebradeiras de
coco babaçu, seringueiros, caiçaras, ribeirinhos, ressignificam o conteúdo de suas lutas
afirmando positivamente sua identidade étnica frente ao modo como tais identidades
foram estigmatizadas socialmente. Nesse caso, conforme destacado por Pacheco de
Oliveira (1998, p. 64) é que nesses contextos sociais “a atualização histórica não anula o
sentimento de referência à origem, mas até mesmo o reforça. É da resolução simbólica
e coletiva dessa contradição que decorre a força política e emocional da etnicidade”.

O que explica porque não houve uma consolidação de um subcampo com o nome
de Antropologia Rural, tendo em vista que, num primeiro momento, as pesquisas a respeito
desses sujeitos sociais estavam inseridas na categoria “camponês”, como esses os processos
de efervescência política ocorridos na década de 1980 na luta pela redemocratização
muitos grupos que estavam invisíveis dentro da categoria camponês passam a afirmar
suas identidades até então estigmatizadas e invisibilizadas, demandando inclusive a sua
afirmação também no território e então redefinindo “o padrão de conflitividades e o campo
relacional de antagonismos”, conforme sugere Cruz (2011, p. 7).

129
O que complexifica a questão agrária é que nesse momento categorias como
identidade, etnia e território passam a vigorar como principais demandas articuladas
nessas novas lutas sociais, revelando uma série de outros conflitos inseridos no campo,
sobretudo quando se fala em limites e fronteiras agrícolas na região da Amazônia.

É assim que Vianna Jr, (2008) vai argumentar sobre as diferenças entre pautas
e demandas do passado com as desse período, quando as afirmações étnicas e sobre o
uso tradicional da terra e dos seus recursos naturais vão impactar as políticas públicas de
acesso à terra, fazendo um deslocamento de políticas redistributivas de terra no âmbito da
reforma agrária para políticas de demarcação indígenas, quilombolas e de comunidades
tradicionais. Noutros termos, não de utilizar instrumentos redistributivos da Reforma
Agrária para atender demandas por terra para povos tradicionais, mas agora passa a
vigorar uma demarcação adequada dos territórios dessas comunidades tradicionais.

Ocorre uma diversificação os novos ciclos de lutas sociais no campo, quando


a questão étnica passa a ganhar mais fôlego diante da questão agrária novas demandas
surgem, outros valores sociais aparecem e mobilizam novos reportórios de luta política,
entre eles o direito ao meio ambiente – com forte ênfase na preservação da floresta
amazônica –, à identidade e ao território destacam-se junto a reivindicações pela Reforma
Agrária, direitos trabalhistas e as lutas de pequenos produtores rurais e sem-terra.

ESTUDOS FUTUROS
As questões sobre campesinato, reforma agrária, agronegócio, êxodo
rural, lutas camponeses e sem-terra veremos com maiores detalhes na
próxima unidade quando falaremos das relações urbano e rural.

Agora, acadêmico, você já conheceu diversos aspectos das lutas sociais que
envolve o campo e as questões de identidade e cultura na luta pela demarcação
territorial. Também viu algumas das principais referências em pesquisas nessa área, o
próximo passo é fazer uma boa leitura de revisão do conteúdo dessa unidade e em
seguida praticar o seu conhecimento com o auxílio das autoatividades.

Ah, não se esqueça de aproveitar a leitura complementar, pois é uma forma


diferente de exercitar alteridade, estranhamento, relativismo e raciocínio comparativo. O
texto escolhido possibilita outras formas de conhecer esses temas. Bons estudos! Até a
Unidade 3!

130
LEITURA
COMPLEMENTAR
RITOS CORPORAIS ENTRE OS NACIREMA

Horace Miner

O antropólogo está tão familiarizado com a diversidade das formas de comporta-


mento que diferentes povos apresentam em situações semelhantes, que é incapaz de
surpreender-se mesmo em face dos costumes mais exóticos. De fato, se nem todas
as combinações logicamente possíveis de comportamento foram ainda descobertas,
o antropólogo bem pode conjeturar que elas devam existir em alguma tribo ainda não
descrita. Deste ponto de vista, as crenças e práticas mágicas dos Nacirema apresentam
aspectos tão inusitados que parece apropriado descrevê-los como exemplo dos extremos
a que pode chegar o comportamento humano.

Foi o Professor Linton, em 1936, o primeiro a chamar a atenção dos antropólogos


para os rituais dos Nacirema, mas a cultura desse povo permanece insuficientemente
compreendida ainda hoje. Trata-se de um grupo norte-americano que vive no território
entre os Cree do Canadá, os Yaqui e os Tarahumare do México, e os Carib e Arawak
das Antilhas. Pouco se sabe de sua origem, embora a tradição relate que vieram do
Leste. Conforme a mitologia dos Nacirema, um herói cultural, Notgnihsaw, deu origem
à sua nação; ele é, por outro lado, conhecido por duas façanhas de força: ter atirado
um colar de conchas, usado pelos Nacirema como dinheiro, através do rio Po-To-Mac e
ter derrubado uma cerejeira na qual residiria o Espírito da Verdade. A cultura Nacirema
caracteriza-se por uma economia de mercado altamente desenvolvida, que evolui em
um rico habitat. Apesar do povo dedicar muito do seu tempo às atividades econômicas,
uma grande parte dos frutos deste trabalho e uma considerável porção do dia são
dispensados em atividades rituais. O foco destas atividades é o corpo humano, cuja
aparência e saúde surgem como o interesse dominante no ethos deste povo.

Embora tal tipo de interesse não seja, por certo, raro, seus aspectos cerimoniais
e a filosofia a eles associadas são singulares. A crença fundamental subjacente a todo o
sistema parece ser a de que o corpo humano é repugnante e que sua tendência natural é
para a debilidade e a doença. Encarcerado em tal corpo, a única esperança do homem é
desviar estas características por meio do uso das poderosas influências do ritual e do
cerimonial. Cada moradia tem um ou mais santuários devotados a este propósito. Os
indivíduos mais poderosos desta sociedade têm muitos santuários em suas casas e, de
fato, a alusão à opulência de uma casa, muito frequentemente, é feita em termos do
número de tais centros rituais que possua. Muitas casas são construções de madeira,
toscamente pintadas, mas as câmeras de culto das mais ricas têm paredes de pedra.

131
As famílias mais pobres imitam as ricas, aplicando placas de cerâmica às
paredes de seu santuário. Embora cada família tenha pelo menos um de tais santuários,
os rituais a eles associados não são cerimônias familiares, mas sim cerimônias privadas e
secretas. Os ritos, normalmente, são discutidos apenas com as crianças e, neste caso,
somente durante o período em que estão sendo iniciadas em seus mistérios. Eu pude,
contudo, estabelecer contato suficiente com os nativos para examinar estes santuários e
obter descrições dos rituais. O ponto focal do santuário é uma caixa ou cofre embutido
na parede.

Neste cofre são guardados os inúmeros encantamentos e poções mágicas sem


os quais nenhum nativo acredita que poderia viver. Tais preparados são conseguidos
por meio de uma série de profissionais especializados, os mais poderosos dos quais são
os médico-feiticeiros, cujo auxílio deve ser recompensado com dádivas substanciais,
contudo, os médico-feiticeiros não fornecem a seus clientes as poções de cura;
somente decidem quais devem ser seus ingredientes e então os escrevem em sua
linguagem antiga e secreta. Esta escrita é entendida apenas pelos médico-feiticeiros
e pelos ervatários, os quais, em troca de outra dadiva, providenciam o encantamento
necessário. Os Nacirema não se desfazem do encantamento após seu uso, mas os
colocam na caixa-de-encantamento do santuário doméstico. Como tais substâncias
mágicas são especificas para certas doenças e as doenças do povo, reais ou imaginárias,
são muitas, a caixa-de-encantamentos está geralmente a ponto de transbordar.

Os pacotes mágicos são tão numerosos que as pessoas esquecem quais são
suas finalidades e temem usá-los de novo. Embora os nativos sejam muito vagos quanto
a este aspecto, só podemos concluir que aquilo que os leva a conservar todas as velhas
substâncias é a ideia de que sua presença na caixa-de-encantamentos, em frente à
qual são efetuados os ritos corporais, irá, de alguma forma, proteger o adorador.

Abaixo da caixa-de-encantamentos existe uma pequena pia batismal. Todos os


dias cada membro da família, um após o outro, entra no santuário, inclina sua fronte ante
a caixa-de-encantamentos, mistura diferentes tipos de águas sagradas na pia batismal
e procede a um breve rito de ablução. As águas sagradas vêm do Templo da Água da
comunidade, onde os sacerdotes executam elaboradas cerimônias para tornar o líquido
ritualmente puro. Na hierarquia dos mágicos profissionais, logo abaixo dos médico-
feiticeiros no que diz respeito ao prestígio, estão os especialistas cuja designação pode
ser traduzida por "sagrados homens-da-boca". Os Nacirema têm um horror quase que
patológico, e ao mesmo tempo fascinação, pela cavidade bucal, cujo estado acreditam
ter uma influência sobre todas as relações sociais.

Acreditam que, se não fosse pelos rituais bucais seus dentes cairiam, seus
amigos os abandonariam e seus namorados os rejeitariam. Acreditam também na
existência de uma forte relação entre as características orais e as morais: Existe, por
exemplo, uma ablução ritual da boca para as crianças que se supõe aprimorar sua fibra
moral. O ritual do corpo executado diariamente por cada Nacirema inclui um rito bucal.
Apesar de serem tão escrupulosos no cuidado bucal, este rito envolve uma prática

132
que choca o estrangeiro não iniciado, que só pode considerá-lo revoltante. Foi-me
relatado que o ritual consiste na inserção de um pequeno feixe de cerdas de porco na
boca juntamente com certos pós mágicos, e em movimentá-lo então numa série de
gestos altamente formalizados. Além do ritual bucal privado, as pessoas procuram o
mencionado sacerdote-da-boca uma ou duas vezes ao ano.

Estes profissionais têm uma impressionante coleção de instrumentos,


consistindo em brocas, furadores, sondas e aguilhões. O uso destes objetos no exorcismo
dos demônios bucais envolve, para o cliente, uma tortura ritual quase inacreditável. O
sacerdote-da-boca abre a boca do cliente e, usando os instrumentos acima citados,
alarga todas as cavidades que a degeneração possa ter produzido nos dentes. Nestas
cavidades são colocadas substâncias mágicas. Caso não existam cavidades naturais nos
dentes, grandes seções de um ou mais dentes são extirpadas para que a substância
natural possa ser aplicada. Do ponto de vista do cliente, o propósito destas aplicações é
tolher a degeneração e atrair amigos.

O caráter extremamente sagrado e tradicional do rito evidencia-se pelo fato


de os nativos voltarem ao sacerdote-da-boca ano após ano, não obstante o fato de
seus dentes continuarem a degenerar. Esperemos que quando for realizado um estudo
completo dos Nacirema haja um inquérito cuidadoso sobre a estrutura da personalidade
destas pessoas. Basta observar o fulgor nos olhos de um sacerdote-da-boca, quando
ele enfia um furador num nervo exposto, para se suspeitar que este rito envolve certa
dose de sadismo. Se isto puder ser provado, teremos um modelo muito interessante, pois
a maioria da população demonstra tendências masoquistas bem definidas. Foi a estas
tendências que o Prof. Linton (1936) se referiu na discussão de uma parte específica
dos ritos corporal que é desempenhada apenas por homens. Esta parte do rito envolve
raspar e lacerar a superfície da face com um instrumento afiado.

Ritos especificamente femininos têm lugar apenas quatro vezes durante cada mês
lunar, mas o que lhes falta em frequência é compensado em barbaridade. Como parte
desta cerimônia, as mulheres ousam colocar suas cabeças em pequenos fornos por
cerca de uma hora. O aspecto teoricamente interessante é que um povo que parece ser
preponderantemente masoquista tenha desenvolvido especialistas sádicos.

Os médico-feiticeiros têm um templo imponente, ou latipsoh, em cada


comunidade de certo porte. As cerimônias mais elaboradas, necessárias para tratar de
pacientes muito doentes, só podem ser executadas neste templo. Estas cerimônias
envolvem não apenas o taumaturgo, mas um grupo permanente de vestais que, com
roupas e toucados específicos, movimentam-se serenamente pelas câmaras do templo.

As cerimonias latipsoh são tão cruéis que é de surpreender que uma boa
proporção de nativos realmente doentes que entram no templo se recupere. Sabe-se que
as crianças pequenas, cuja doutrinação ainda é incompleta, resistem às tentativas de
levá-las ao templo, porque "é lá que se vai para morrer". Apesar disto, adultos doentes
não apenas querem mas anseiam por sofrer os prolongados rituais de purificação,

133
quando possuem recursos para tanto. Não importa quão doente esteja o suplicante ou
quão grave seja a emergência, os guardiões de muitos templos não admitirão um cliente
se ele não puder dar uma dádiva valiosa para a administração. Mesmo depois de ter se
conseguido a admissão, e sobrevivido às cerimônias, os guardiães não permitirão ao
neófito abandonar o local se ele não fizer outra doação. O suplicante que entra no templo é
primeiramente despido de todas as suas roupas. Na vida cotidiana o Nacirema evita a
exposição de seu corpo e de suas funções naturais. As atividades excretoras e o banho,
enquanto parte dos ritos corporais, são realizados apenas no segredo do santuário
doméstico. Da perda súbita do segredo do corpo quando da entrada no latipsoh, podem
resultar traumas psicológicos. Um homem, cuja própria esposa nunca o viu em um
ato excretor, acha-se subitamente nu e auxiliado por uma vestal, enquanto executa
suas funções naturais num recipiente sagrado. Este tipo de tratamento cerimonial é
necessário porque os excreta são usados por um adivinho para averiguar o curso e a
natureza da enfermidade do cliente.

Clientes do sexo feminino, por sua vez, têm seus corpos nus submetidos ao
escrutínio, manipulação e aguilhadas dos médico-feiticeiros. Poucos suplicantes no templo
estão suficientemente bons para fazer qualquer coisa além de jazer em duros leitos. As
cerimônias diárias, como os ritos do sacerdote-da-boca, envolvem desconforto e tortura.
Com precisão ritual as vestais despertam seus miseráveis fardos a cada madrugada e os
rolam em seus leitos de dor enquanto executam abluções, com os movimentos formais
nos quais estas virgens são altamente treinadas. Em outras horas, elas inserem bastões
mágicos na boca do suplicante ou o forçam a engolir substâncias que se supõe serem
curativas. De tempos em tempos o médico-feiticeiro vem ver seus clientes e espeta
agulhas magicamente tratadas em sua carne. O fato de que estas cerimônias do templo
possam não curar, e possam mesmo matar o neófito, não diminui de modo algum a fé das
pessoas no médico feiticeiro. Resta ainda um outro tipo de profissional, conhecido como um
"ouvinte". Este "doutor-bruxo" tem o poder de exorcizar os demônios que se alojam nas
cabeças das pessoas enfeitiçadas.

Os Nacirema acreditam que os pais enfeitiçam seus próprios filhos; particular-


mente, teme-se que as mães lancem uma maldição sobre as crianças enquanto lhes
ensinam os ritos corporais secretos. A contra magia do doutor-bruxo é inusitada por sua
carência de ritual. O paciente simplesmente conta ao "ouvinte" todos os seus problemas
e temores, principalmente pelas dificuldades iniciais que consegue rememorar. A memória
demonstrada pelos Nacirema nestas sessões de exorcismo é verdadeiramente notável.
Não é incomum um paciente deplorar a rejeição que sentiu, quando bebê, ao ser des-
mamado, e uns poucos indivíduos reportam a origem de seus problemas aos feitos
traumáticos de seu próprio nascimento. Como conclusão, deve-se fazer referência a
certas práticas que têm suas bases na estética nativa, mas que decorrem da aversão
profunda ao corpo natural e suas funções.

134
Existem jejuns rituais para tornar magras pessoas gordas, e banquetes
cerimoniais para tornar gordas pessoas magras. Outros ritos são usados para tornar
maiores os seios das mulheres que os têm pequenos e torná-los menores quando são
grandes. A insatisfação geral com o tamanho do seio é simbolizada no fato de a forma
ideal estar virtualmente além da escala de variação humana. Umas poucas mulheres,
dotadas de um desenvolvimento hipermamário quase inumano, são tão idolatradas que
podem levar uma boa vida simplesmente indo de cidade em cidade e permitindo aos
embasbacados nativos, em troca de uma taxa, contemplarem-nos. Já fizemos referência
ao fato de que as funções excretoras são ritualizadas, rotinizadas e relegadas ao segredo.
As funções naturais de reprodução são, da mesma forma, distorcidas. O intercurso
sexual é tabu enquanto assunto, e é programado enquanto ato. São feitos esforços
para evitar a gravidez, pelo uso de substâncias mágicas ou pela limitação do intercurso
sexual a certas fases da lua. A concepção é na realidade, pouco frequente. Quando
grávidas as mulheres vestem-se de modo a esconder o estado. O parto tem lugar em
segredo, sem amigos ou parentes para ajudar, e a maioria das mulheres não amamenta
seus rebentos. Nossa análise da vida ritual dos Nacirema certamente demonstrou
ser este povo dominado pela crença na magia. É difícil compreender como tal povo
conseguiu sobreviver por tão longo tempo sob a carga que impôs sobre si mesmo, mas
até costumes tão exóticos quanto estes aqui descritos ganham seu real significado
quando são encarados sob o ângulo relevado por Malinowski, quando escreveu:

Olhando de longe e de cima de nossos saltos postos de segurança na


civilização desenvolvida, é fácil perceber toda a crueza e irrelevância
da magia. Mas sem seu poder de orientação, o homem primitivo não
poderia ter dominado, como o fez, suas dificuldades práticas, nem
poderia ter avançado aos estágios mais altos da civilização.

Fonte: https://bit.ly/2H24xPq. Acesso em: 26 ago. 2022.

135
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:

• Conheceu os principais conceitos do campo da antropologia rural no Brasil.

• Aprendeu as diferentes comunidades e povos tradicionais.

• Aprendeu que as lutas territoriais de povos e comunidades tradicionais nas últimas


décadas ganharam maior protagonismo na esfera pública brasileira.

• Conheceu a importância da luta social pela terra na afirmação dos diferentes modos de
vida.

136
AUTOATIVIDADE
1 As lutas sociais por territórios são constitutivas de comunidades tradicionais como
indígenas, quilombolas, caiçaras e ribeirinhos, e se destacam justamente por terem
sido posicionadas como fenômenos do mundo rural brasileiro. Nesse sentido, a partir
da abordagem acerca dos conceitos de terra, território e territorialidade proposta por
Dominique Galllois (2004), assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Terra indígena diz respeito ao processo político-jurídico conduzido sob a égide


do Estado, enquanto território remete à construção e à vivência, culturalmente
variável, da relação entre uma sociedade específica e sua base territorial.
b) ( ) A terra é uma categoria conceitual exclusiva das comunidades e povos
tradicionais e diz respeito às políticas de reconhecimento da reforma agrária.
c) ( ) A territorialidade é uma categoria semelhante ao conceito de campo, ela significa
uma emaranhado de terras em que há diferentes grupos sociais habitando
conjuntamente.
d) ( ) O território é o conceito central para definir do direitos dos latifundiários, é
importante porque a partir dele é possível invadir espaços e se apossar deles
para o desenvolvimento econômico.

2 Considera-se os estudos de comunidades e a etnologia indígena como os principais


marcos de referência para o desenvolvimento do subcampo Antropologia Rural no
Brasil. Com base nas definições dos enfoques das pesquisas nessa área, analise as
sentenças a seguir:

I- Dentre as décadas de 1940 e 1970 os estudos em etnologia indígena representaram


fortemente o campo em torno de comunidades e grupos que eram lidos e definidos
com base na sua localização espacial, seus traços culturais e em contraposição ao
modo de vida urbano.
II- Exemplos de modalidades tradicionais de Etnologia Indígena são o Campesinato e a
Estudos de Comunidade.
III- Na década de 1980, os estudos a respeito das comunidades rurais estavam
associados com a identidade negra e camponesa e exerceram muita influência dos
processos de reconhecimento de territórios e regularização de terras.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

137
3 Conforme apontado pela antropóloga Dominique Gallois (2004) os estudos
antropológicos evidenciam que há diferentes lógicas espaciais entre essas
comunidades tradicionais. De acordo com os princípios e as normativas elencadas
nos estudos antropológicos, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as
falsas:

Fonte: GALLOIS, D. T. Terras ocupadas? Territórios? Territorialidades? In: FANY, R. (org.) Terras Indígenas & Uni-
dades de Conservação da natureza: o desafio das sobreposições. São Paulo, Instituto Socioambiental, 2004.

( ) As noções de terra e território já foi objeto de diferentes estudos antropológicos


como os de Seeger e Viveiros de Castro (1979) e de Oliveira Filho (1989; 1996), todos
eles vão nos mostrar que essas categorias são acionadas de maneira distinta pelos
atores envolvidos no processo de reconhecimento e demarcação de uma Terra
Indígena.
( ) O conceito mais importante para as comunidade indígenas é o desterritorialidade que
se refere aos processos de deslocamentos dos povos indígenas do campo para a
cidade.
( ) Para Gallois (2004) o conceito de “terra indígena diz respeito ao processo político-
jurídico conduzido sob a égide do Estado, enquanto território remete à construção e
à vivência, culturalmente variável, da relação entre uma sociedade específica e sua
base territorial.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 Os conflitos que se relacionam às comunidades tradicionais têm relação com a noção


de poder que nesse contexto é uma marca desigual e hierárquica predominante na
busca pela expansão do poder econômico, político e cultural por projetos econômicos
da sociedade moderna. Uma das grandes áreas de estudos desse tema é a Etnologia
Indígena. Disserte sobre esta área de concentração e sobre as temáticas envolvendo
os conflitos de territorialidade a partir de dois autores com publicações na área.

5 Existe uma literatura baseada na análise de movimentos sociais contemporâneos que


demonstram os diferentes sentidos sociais que a terra e o território adquirem em relação
aos grupos sociais que lutam por ela. Neste contexto, disserte sobre os princípios que
fundamentam as lutas dos camponeses e as lutas dos povos e comunidades tradicionais
pela terra a partir da década de 1980.

138
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141
142
UNIDADE 3 —

RELAÇÃO ENTRE O RURAL E


O URBANO

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender a formação das identidades sociais que se constituem entre o campo e a


cidade;

• conhecer as formas de viver, os sentidos sociais do ambiente e do habitar entre o


rural e o urbano;

• desnaturalizar o “rural” e o “urbano”;

• identificar as disputas entre sistemas de produção e modos de viver.

PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – O CONTINUUM ENTRE O URBANO E O RURAL NA PRODUÇÃO DE


IDENTIDADES SOCIAIS

TÓPICO 2 – MODOS DE PRODUÇÃO, CONSUMO E USO DE RECURSOS

TÓPICO 3 – A QUESTÃO AMBIENTAL: TENSÕES, FRONTEIRAS E DISPUTAS

CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

143
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 3!

Acesse o
QR Code abaixo:

144
UNIDADE 3 TÓPICO 1 —
O CONTINUUM ENTRE O URBANO
E O RURAL NA PRODUÇÃO DE
IDENTIDADES SOCIAIS

1 INTRODUÇÃO
Caro acadêmico, conforme vimos na unidade anterior, comunidades ou povos
tradicionais como indígenas e quilombolas (dentre outros) são grupos sociais que
fazem parte e constituem de modo ativo o espaço rural brasileiro tanto na maneira como
constituem suas referências socioculturais na manutenção de suas territorialidades
quanto o modo como produzem e nutrem o ambiente, de acordo com as práticas
sustentáveis.

Nessa relação entre o rural e o urbano, tivemos a oportunidade de enxergar a


formação de novas identidades no ambiente urbano a partir do intenso processo
de urbanização e construção das cidades. Agora, poderemos compreender outras
dinâmicas imersas nesse processo que aqui chamaremos de “continuum”, para fazer
referência a uma maneira de olhar para os diferentes processos e acontecimentos que
se dão a partir da relação sequencial entre o rural e o urbano de forma contínua, isto é, há
elementos do rural que podem se manter presentes no urbano, assim como acontece
com o inverso. Adiante veremos exemplos disso.

Mesmo considerando as legislações em matéria de reconhecimento dos


territórios tradicionalmente ocupados, também podemos identificar a distância que há
para salvaguardar esses territórios, suas práticas e seus modos de viver no contexto
contemporâneo em que há uma diversidade de ataques aos povos e ao seu território: os
conflitos envolvendo a disputa de terras insiste em não reconhecer essas identidades
e marcam essa relação entre o rural e o urbano naquilo que se faz mais notável aos
nossos olhos: os conflitos, as invasões e as violências que incidem sobre essa parcela da
sociedade brasileira em todas as regiões do país onde quer que elas se encontrem.

No Brasil, devido ao nosso passado histórico marcado pelas práticas coloniais, foi
implantado um sistema de concentração de terras sob o poder de poucos indivíduos. O
conceito de latifúndio foi durante muito tempo utilizado para se referir ao acúmulo de
grandes extensões de terra por um proprietário. Mais tarde, com o Estatuto da Terra, a
dimensão da propriedade privada foi articulada com a função social de sua ocupação.
Benedito Marques (2015, p. 62) conceitua latifúndio, partindo do Estatuto da Terra, como
“imóvel rural que tem área igual ou superior ao módulo rural e é mantido inexplorado ou

145
com exploração inadequada ou insuficiente às suas potencialidades”. Agora a dimensão de
“uso” vai flexionar o conceito de modo a refletir sobre potencialidades da terra que pode
sofrer por se manter improdutiva apenas para especular, isto é, acumular um valor de
monetário, desvinculado de um valor social.

Você pode se interrogar sobre o papel do Estado na preservação, na autonomia


ou no reconhecimento desses territórios, logo poderá lembrar que viu na Unidade
anterior que em matéria de legislação e instituições tivemos alguns avanços sobre essas
questões, mas também puderam ver os limites em conter a expansão de conflitos e
ataques aos povos e seus territórios e é nesse o ponto que o Estado precisa estar atento
para conter essas violências contra os povos tradicionais e contra seus territórios,
atualizando legislações, fiscalizando o cumprimento das fronteiras e fortalecendo
aquelas instituições que são responsáveis pela valorização, reconhecimento e apoio a
esses povos, por exemplo, a FUNAI e o INCRA.

Os estudos em antropologia do espaço rural muito têm contribuído para


demonstrar de que maneira o sentido de terra, território e territorialidade incidem para
o reconhecimento pleno dos direitos dessas comunidades e como uma fonte empírica
de produção em pesquisa sobre os impactos que o descumprimento dessas fronteiras
causam na vida dessas populações.

Conforme estudamos, a antropologia tem um número expressivo de trabalhos


voltados para os estudos dessas comunidades tradicionais ao longo do tempo e fornece
uma importante contribuição científica para entender as lutas e os direitos sociais
mobilizados por esses grupos para o cumprimento de leis, para o respeito ao seu modo de
vida e para o reconhecimento de sua existência.

Olhando para uma perspectiva histórica tivemos a oportunidade de nos


aproximar de estudos clássicos, categorias e teorias do campo da antropologia que
foram determinantes para a compreensão dessa subárea de estudos. Agora, acadêmico,
nós vamos nos deter um tempo presente, o mundo contemporâneo e as dinâmicas e
conflitos sociais que alcançam o mundo rural e como o urbano se conecta com elas.

Até aqui, acadêmico, você já deve ter aprendido que a construção das identidades
nos espaços rurais passa por uma compreensão do modo como os povos e comunidades
tradicionais articulam entre suas práticas sociais a relação com a natureza e a cultura.
Desse modo, é possível que você já esteja familiarizado com a ideia central de que os povos
e comunidades tradicionais não devem ser entendidos como “sociedades atrasadas”
(qualquer dúvida sobre este ponto volte à introdução da Unidade 1), mas como parte
do movimento de interação da sociedade no compartilhamento dos seus saberes e das
suas formas de vida para o entendimento acerca de questões econômicas, produtivas
ou de projeto de desenvolvimento rural.

146
Nesse sentido, os conhecimentos tradicionais assim como os saberes populares
compartilhados a partir das experiências múltiplas de uso, ocupação e construção de
territórios por povos e comunidades tradicionais perdem referência para o “novo” e a
promessa “moderna” de Revolução Industrial. Logo, aqueles saberes que prosperaram
durante séculos entre essas comunidades perdem espaço para uma visão etnocêntrica da
ciência moderna que passa a vigorar sobre o domínio do campo científico tornando essas
práticas e saberes tradicionais irrelevantes e “atrasados” para o desenvolvimento da nação.
Além disso, há outro movimento de exploração por parte desse novo espírito econômico
que se expande cada vez mais rápido ao redor do mundo, a chamada biopirataria, que
consiste na extração e exploração ilegais de recursos naturais, como plantas, animais
e materiais genéticos presentes nos biomas brasileiros, e dos saberes tradicionais para
transformar em monopólio econômico de grandes industriais estrangeiras por meio
do registro de patentes. Como consequência dessa ação devastadora há extinção de
espécies, perda da biodiversidade, prejuízos socioeconômicos, desequilíbrio ecológico e
subdesenvolvimento em matéria de inovação, ciência e tecnologia nacional.

Nos próximos tópicos vamos falar um pouco dessas dinâmicas entre o rural e
o urbano no contexto do desenvolvimento global e dos processos de disputas e conflitos
territoriais que se dão no mundo contemporâneo. Alguns conceitos e teorias ganharão
destaque e algumas pesquisas empíricas serão essenciais para nosso processo de
aprendizagem sobre essa diversidade.

2 ALGUMAS CATEGORIAS ANALÍTICAS

Caro acadêmico, há diversos estudos antropológicos das populações do campo,


muitos deles foram apresentados na Unidade anterior. Nesta Unidade, você conhecerá
os recentes estudos na perspectiva do desenvolvimento econômico, a partir de outro
olhar sobre o mundo rural, agora abordando questões agrárias, as noções de rural e
ruralidades, bem como outros grupos sociais que estão inseridos nessa possibilidade
de abordagem do universo que transita entre rural e urbano, seus impactos, suas
continuidades, seus deslocamentos e seus conflitos. Antes de passar para a análise
e abordagem dos modos de produção, consumo e uso de recursos nesse segmento
(continuum) entre rural e urbano, bem como avançar sobre as questões ambientais a
partir da análise dos conflitos e das tensões em torno das disputas por outros sujeitos,
será necessário aprender algumas categorias comuns a esse campo de análise.

De acordo com Maria Nazaré Wanderley, “a grande propriedade patronal no


Brasil está na origem de uma ruralidade dos espaços vazios” (WANDERLEY, 2001, p.
36). A modernização do campo teve como projeto as novas configurações produtivas,
onde destacam-se as seguintes características: o intenso uso de máquinas, inovações
tecnológicas, uso de adubos e fertilizantes químicos e aplicação de capital financeiro.
Esses são traços de um processo contemporâneo no mundo econômico capitalista que

147
introduz novas demandas de produção em escala maior: o desenvolvimento de recursos
comunicacionais e de meios de transporte mais rápidos também possibilitaram mudanças
nos modos de produção no espaço rural, interferindo no modo de vida da população do
campo.

Sobre o conceito de rural, a própria Maria Nazaré Wanderley sugere que.

Do ponto de vista sociológico, quando se fala em “rural”, aponta-se


para duas características que são consideradas fundamentais: por um
lado, uma relação específica dos habitantes do campo com a natureza,
com a qual o homem lida diretamente, sobretudo por meio de seu
trabalho e do seu habitat. Trata-se, sem dúvida, das representações
do espaço natural e do espaço construído, visto que a “natureza rural”,
precisamente porque é rural, isto é, “objeto de múltiplas atividades e
usos humanos, é a menos natural possível”. Por outro lado, relações
sociais, também diferenciadas, que Mendras definiu como “relações
de interconhecimento”, resultantes da dimensão e da complexidade
restritas das “coletividades” rurais (MENDRAS, 1976). Destas relações
resultam práticas e representações particulares a respeito do espaço, do
tempo, do trabalho, da família etc. (MATHIEU; JOLLIVET, 1989, p. 15
apud WANDERLEY, 2000, p. 88).

Para Oliveira (2001, p. 75), em outras palavras:

A lógica do desenvolvimento do modo capitalista de produção é


contraditória e combinada, pois ao mesmo tempo em que [...] constrói/
destrói formações territoriais em diferentes partes do mundo, faz com
que frações de uma mesma formação territorial conheçam processos
desiguais de valorização, produção e reprodução do capital.

O que esses autores argumentam é que há inúmeras mudanças nesse mundo


rural, que tornam cada vez mais vaga a imagem de um ambiente agrícola e tradicional,
passando a incorporar atividades e práticas consideradas tipicamente do mundo urbano.
As implicações serão acompanhadas pela expansão e concentração de terras, lavouras
com investimentos de capital financeiro e uma mudança na perspectiva onde as atividades
de produção tradicionais comumente conhecidas como “camponesas” passam a sofrer
com a produção de commodities. A população do campo passa viver a experiência de
escassez, desemprego, falta de oportunidades, pauperização e como consequência
dessa intensa industrialização do campo ocorre o fenômeno do êxodo rural: o impacto
inicial é dessa transição de pessoas da zona rural para as zonas urbanas, chegando em
um novo contexto de intensa industrialização encontra dificuldades para se habitar aos
novos ritmos da intensa vida urbana, cujos laços sociais, como vimos na outra Unidade,
tendem a afrouxar e uma perspectiva cada vez mais individual se sobressai nessas
relações. Além disso, as atividades de trabalho também serão diferentes, o manejo da
terra, a plantação não será a atividade principal mas sim atividades próprias da indústria.

148
DICA
Caro acadêmico, quer saber um pouco mais dos impactos do êxodo rural no contexto
de transformações sociais do Brasil com o avanço da urbanização e acirramento das
desigualdades sociais vividas pelas populações do campo? Assista ao documentário
O Êxodo Rural, o qual faz parte do acervo do Laboratório de Imagem e Som em
Antropologia da Universidade de São Paulo.

Título Original: O Êxodo Rural.


Direção: Mario Kuperman.
Sinopse: atraídos pelas cidades os habitantes do campo perdem a sua vinculação com
o meio rural, provocando migrações internas. A legislação trabalhista rural vigente e a
conquista, cada vez maior, de áreas de pastagens são responsáveis pelo êxodo rural.
Duração: 24'.
Ano de produção: 1989.
Produção: Futura Filmes.
País: Brasil.
Idioma: português.

Fonte: https://lisa.fflch.usp.br/node/342. Acesso em: 13 set. 2022.

Nesse sentido, as condições de vida são modificadas e a própria compreensão de


rural se atualiza em relação aos impactos da urbanização que alcança esse espaço
social. As diferenças espaciais e sociais entre o rural e o urbano passam a se tornar
cada vez mais diluídas, novas dinâmicas surgem e é o momento em que passamos a
interpretar essas transformações a partir do conceito de ruralidades.

Um processo dinâmico em constante reestruturação dos elementos


da cultura local mediante a incorporação de novos valores, hábitos e
técnicas. Tal processo implica um movimento em duas direções, nas
quais se identificam, de um lado, a reapropriação de elementos da
cultura local a partir de uma releitura possibilitada pela emergência
de novos códigos e, de outro lado, a apropriação pela cultura urbana
de bens culturais e naturais do mundo rural, produzindo, assim, uma
situação que pode contribuir para alimentar a sociabilidade e reforçar
os laços com a localidade (CARNEIRO, 2012, p. 50).

Nesse processo de conhecer as dinâmicas entre o rural e o urbano


uma categoria que ganha sentido para o entendimento deste campo de estudos
é desenvolvimento: o conceito quando localizado em período histórico como o do
surgimento do capitalismo e da Revolução Industrial se associa a uma compreensão de
processo de evolução, crescimento, progresso, em uma perspectiva de mudança.

O desenvolvimento enquanto conceito e/ou abordagem teórica, ainda


que possa ser datado no século XX, concentra-se, mais precisamente,
ao conjunto de transformações pelas quais as sociedades europeias
passaram tanto no padrão e estilo de capitalismo como pela
necessidade de reconstrução no pós-guerra (Primeira e Segunda).
Nesse sentido, o desenvolvimento como ideia central para se refletir
sobre o mundo (capitalista) passa necessariamente pela questão da
industrialização (LEME, 2015, p. 496).

149
Isto se dá em face das transformações ocorridas com a Revolução Industrial (a
qual abordamos na Unidade 1) e, em especial, as mudanças que decorrem dela no espaço
rural. Assim, diante de uma nova forma de produzir as inovações tecnológicas, passam
a vigorar nesse novo sistema produtivo e o território brasileiro passa por diversas mudanças.
Dentre algumas dessas mudanças, podemos destacar o uso mais comum de máquinas
na produção de lavouras, a substituição de mão de obra humana pelas máquinas, o uso
cada vez mais intenso de adubos e fertilizantes químicos, uso cada vez mais rotineiro de
agrotóxicos, e à integração desse sistema produtivo ao mercado financeiro.

Figura 1 – Sistema produtivo

Fonte: https://bit.ly/3RTJpwo. Acesso em 31 ago. 2022.

Tais transformações são resultados de um avanço cada vez maior do sistema


capitalista em direção ao campo, resultado de um processo chamado mundialização.
Essas transformações, que ocorrem de maneira acentuada a partir da segunda
metade do século XX, fazem parte da modernidade e como projeto transformador suas
implicações vão desde uma nova concepção de ciência e método científico com a
ruptura do pensamento medieval e introdução do iluminismo, que prega a razão como
a única maneira de acessar o conhecimento, até mudanças nas estruturas da vida
social quando as relações de trabalho e economia capitalista passam a vigorar sobre a
organização das sociedades, no que se refere ao acelerado processo de industrialização
e a intensa urbanização, que fornecem um olhar sobre o mundo rural e agrário como
atrasados e obstáculos ao desenvolvimento nos moldes capitalistas. A mundialização
acelera o crescimento da relação de dependência entre povos e nações, sobretudo,
com o advento da comunicação e desenvolvimento tecnológico que tende a encurtar
distâncias e diminuir fronteiras culturais. Exemplar disso é a chegada de internet e
sistemas de telefonia nas zonas rurais, incorporando novas formas de comunicação
e informação, assim como a busca cada vez maior de produtos orgânicos por parte
daquelas pessoas que moram na cidade urbanizada e deseja um alimento cultivado longe
de agrotóxicos e preservando uma relação de sustentabilidade com a terra.

150
Nesse sentido, podemos compreender adequadamente o conceito de
mundialização a partir daquilo que foi proposto pelo sociólogo Octavio Ianni (1994), em
seu famoso artigo “Globalização: Novo paradigma das ciências sociais”, no qual o autor
analisa os processos e estruturas sociais a partir dos dilemas vigentes.

As noções de espaço e tempo, fundamentais para todas as ciências


sociais, estão sendo revolucionadas pelos desenvolvimentos científi-
cos e tecnológicos incorporados e dinamizados pelos movimentos
da sociedade global. As realidades e os imaginários lançam-se em
outros horizontes, mais amplos que a província e a nação, a ilha e
o arquipélago, a região e o continente, o mar e o oceano. As redes
de articulações e as alianças estratégicas de empresas, corporações,
conglomerados, fundações, centros e institutos de pesquisas, uni-
versidades, igrejas, partidos, sindicatos, governos, meios de comuni-
cação impressa e eletrônica, tudo isso constitui e desenvolve tecidos
que agilizam relações, processos e estruturas, espaços e tempos,
geografias e histórias: o local e o global estão distantes e próximos,
diversos e mesmos. As identidades embaralham-se e multiplicam-se.
As articulações e as velocidades desterritorializam-se e re-territorializam-
-se em outros espaços, com outros significados: o mundo se tor-
na mais complexo e mais simples, micro e macro, épico e dramático
(IANNI, 1994, p. 155).

O processo de urbanização, como vimos na Unidade 1, é intensificado e muito


rápido, pois produz transformações no ambiente e as relações: o Estado se torna um
aliado ao avanço dessa ideologia do mundo moderno como progresso, alimentado pela
crença no desenvolvimento econômico como horizontes possíveis de vencer a pobreza
e oferecer uma “vida melhor” ao reduzir as desigualdades sociais.

No entanto, o desenvolvimento tecnológico almejado como mudança radical


de vida e transformação para as diferentes sociedades vai se mostrando limitada: o
mundo mundializado, globalizado e moderno alimenta uma lógica “predatória” em que
prevalece uma perspectiva economicista baseada no lucro, na produção em massa e no
trabalho assalariado sem perspectivas de direito e dignidade trabalhista. Não por acaso
as transformações com o sistema de transporte e comunicações serão determinantes
para esse fio “continuum” entre o urbano e o rural que passa a ser cada vez mais objeto
de intervenções que servem ao processo de mundialização, isto é, um fenômeno social
em que a Europa, berço da Revolução Industrial, passa a aglutinar mercados com a
expansão do capitalismo e integrando espaços tradicionais de produção, subsistência
e formas de vida sustentáveis pela lógica da expansão econômica orientada pelo
uso exploratório, radical e violento dos territórios e das populações neles inseridas: o
projeto de desenvolvimento capitalista foi tornado possível com a exploração e invasão
de terras e populações inúmeras ao redor do mundo pelos europeus, por meio do
projeto expansionista baseado no sistema colonial. A concepção de desenvolvimento
que nos foi apresentada está ancorada nesta perspectiva, a qual hoje discutimos os
impactos e consequências que nos foi deixada como legado. Na Unidade 2, nós tivemos
a oportunidade de conhecer um pouco da realidade de diferentes comunidades
tradicionais, considerando aspectos como a relação que esses povos estabelecem com

151
a natureza e o ambiente onde vivem, de modo que fazem um uso sustentável das riquezas
sem comprometer os biomas, desaparecimento de povos indígenas, escravização dos
povos africanos, exploração dos recursos nativos, usurpação de minerais e saberes
tradicionais para fins predatórios são algumas dessas consequências.

Quando se trata de desenvolvimento para os nossos estudos aqui, acadêmico,


devemos ter em mente as mudanças ocorridas com a urbanização e a industrialização,
conforme pontuado na Unidade 1 deste livro, assim como é importante considerar o
conceito de desenvolvimento rural, por sua vez implica um conjunto de práticas e
tecnologias aplicadas ao ambiente rural, utilizadas para exploração e utilização dos
recursos naturais ali disponíveis e se associa a construção de novos mercados, novos
produtos e novas formas de trabalho.

Em outro momento, o conceito vem a ser atualizado associando-se a dimensões


mais amplas como a ambiental, a social, a cultural e a econômica para associar o uso
adequado do rural para ampliar a capacidade de subsistência dos pequenos produtores,
afastando-se de uma compreensão de modernização agrícola, industrialização ou
urbanização do campo. Momento em que passa a circular o conceito de desenvolvimento
rural sustentável, empregado para estimular nas áreas de agricultura familiar, reforma
agrária, terras indígenas ou comunidades tradicionais um uso adequado da terra e dos
recursos dela provenientes, atentando-se para o ecossistema respeitando a necessidade
de reprodução das próximas gerações, isto é, respeitando o meio ambiente é possível
melhorar a qualidade de vida da população, do solo, da alimentação e da economia sem
esgotar a capacidade daquele ambiente com um uso desordenado e exploratório que
extraí o máximo de recursos até esgotar a capacidade de recuperação do ambiente e
assim impedindo sua produção para futuras gerações, bem como causando impactos
desastrosos no meio ambiente.

Para avançarmos mais nessa relação entre o rural e o urbano a partir dessas
questões aqui apresentadas, cabe ainda lembrar umas das categorias elementares da
antropologia que vai guiar você, acadêmico, ao conhecimento antropológico de uma outra
perspectiva, aquela que vai valorizar o contexto e a realidade dos sujeitos sociais e onde
vivem, procurando sempre se colocar em perspectiva com o Outro, esse que é diferente
de você, que está em situação de desvantagem por efeito desse processo exploratório que
destruiu suas terras, dizimou seu povo, explorou mão de obra e extorquiu suas fontes
de significado, isto é, o sentido socialmente compartilhado pelos povos tradicionais que
ocupam um determinado lugar. Para os Guarani e kaiowá, por exemplo, a sua territorialidade
se constitui como um elemento fundamental da sua identidade e do sentido da própria
vida. Eles dão significado a sua existência na experiência de viver, habitar e entender o
mundo a partir da terra. Não por acaso, diante de conflitos intensos e processos de invasão
de suas terras muitos deles passaram a praticar o suicídio, vivenciando uma experiência
de perda de sentido e significado diante da violência e da supressão de seu território.
Abandonar o etnocentrismo é crucial para entender os conflitos e as disputas que estão
presentes na relação rural e urbano.

152
DICA
Antes de passarmos para o próximo tópico, assista a este vídeo
sobre a situação dos Guarani-Kaiowá no Momento Agroecológico que
mostra as práticas de cura do povo Guarani-Kaiowá e a importância
da retomada do território para a preservação dos saberes. Acesse:
https://bit.ly/3U8fWAI.

Acadêmico, no próximo tópico, abordaremos situações do presente nas quais


impactam os modos de produção, as formas de consumo e uso de recursos entre o rural
e o urbano.

3 O RURAL E O MODERNO
Caro acadêmico, a partir dos anos de 1970 as ciências sociais brasileiras passaram
a se interessar cada vez mais pelo estudo das mudanças na vida social rural a partir do olhar
sobre a modernização da agricultura, bem como a formação das classes sociais nesse
campo social em torno do mundo agrário. Nesse período os estudos do campesinato
estavam marcados pelo interesse numa análise das transformações das sociedades
modernas.

O campesinato nesse período foi lido como um modo de produção pré-capitalista,


cujas formas de funcionamento não poderiam ser entendidas a partir das teorias e
explicações do sistema capitalista, mas de uma forma de produção pré-capitalista
que nas afirmações mais enfáticas compartilhadas da época viam no campesinato seu
desaparecimento. Mesmo que uma boa parte dos estudos da época, conforme vimos
nas Unidades anteriores, demonstrassem a vitalidade desses modos de produção, a tese
mais difundida entre autores clássicos das ciências sociais afirmava que se tratava de
um pequeno contingente de grupos, que em consequência da expansão cada vez maior
e mais rápida do capitalismo desapareceria, era apenas um resíduo do campesinato e
“penetração do capitalismo no campo” (WANDERLEY, 2001, p. 12).

Os camponeses desse período eram vistos como inimigos do progresso e do


desenvolvimento, anticapitalistas que num contexto de transição entre sociedades
rurais e urbanas, detinham alto potencial de mobilização e luta social se colocando
enfaticamente contra às classes dominantes agrárias, bem como os proprietários de terra
e os empresários da agricultura. No entanto, conforme argumenta Wanderley (2001),
na verdade esse conjunto de atores sociais estavam mais empenhados em defender sua
identidade, seu modo de vida e enfrentar as guerras anticolonialistas que nutriam a ideia
do progresso baseada no apagamento dessas populações do campo em nome de uma
suposta emancipação nacional.

153
Os estudos do mundo rural nos anos 1970 tentaram entender em que
medida ainda era possível haver uma reprodução do campesinato tendo em vista
que havia uma “persistência” de uma gama de pequenos produtores familiares que
combinavam uma agricultura tradicional com traços de modernização e capitalismo, não
demorou e os pesquisadores passaram a perceber que o campesinato não desapareceu
e a “classe dos bárbaros”, como foram chamados (WANDERLEY, 2001, p. 13), fizeram
inúmeros pesquisadores se voltarem ao estudo da natureza social e econômica desse
campesinato persistente, que passou a se reproduzir em diferentes contextos das
sociedades modernas.

Wanderley (2001) afirmará que o processo de desenvolvimento econômico


e social do Brasil longe de uniformizar a nossa sociedade, produziu uma diversidade
de atores, modos de produção e relações sociais diversificados demonstrando uma
complexidade cada vez maior dessas fronteiras relacionais. Logo perceberíamos que com
o desenvolvimento do urbano e a aceleração do capitalismo seria necessário entender o
campesinato no interior das sociedades modernas capitalistas e não fora delas.

De acordo com as pesquisas de Wanderley (2001), o campesinato contribuiu e


continua contribuindo fortemente para a sociedade, não só na condição de um pequeno
proprietário de terra (quando isso pode acontecer) ou pequeno “empresário”, mas como
um trabalhador.

Porém, ao contrário da relação direta entre o capital e o trabalho, que


define a condição do assalariado, a reprodução do campesinato nas
sociedades capitalistas tem como fundamento uma relação indireta,
cujos termos são dados pela polarização autonomia-subordinação,
isto é, a busca incessante de um espaço de autonomia pelos
camponeses, face aos mecanismos de subordinação do capital.
Indireta, precisamente, porque reproduz, nas circunstâncias dadas,
um produtor de mercadorias (WANDERLEY, 2001, p. 15).

O que a autora enfatiza é a diversidade de situações de reprodução do


campesinato no contexto da América Latina. Dito isso, afirma-se que esse perfil de
produção teve grande capacidade de adaptação frente a expansão capitalista, resistindo
aos contextos de mudanças econômicas, sociais, políticas e ambientais. No entanto,
Wanderley é assertiva em dizer que essa capacidade de adaptação é resultado de
inúmeras estratégias familiares, isto é, “mais do que as diferenças quanto aos níveis de
renda auferida, que apenas reconstrói o perfil momentâneo dos agricultores familiares,
é a diferenciação das estratégias familiares que está na origem da heterogeneidade das
formas sociais concretas da agricultura familiar” (WANDERLEY, 2001, p. 15).

A agricultura familiar se manteve persistente ao longo da história porque


nela há um conjunto de atores sociais que protagonistas de suas próprias vivências,
situados em sua dimensão espacial, política, econômica, social e ambiental renovam
suas estratégias e modos de produção e se mantém resistentes em meio às imposições
externas com inovações.

154
Wanderley (2001) desenvolveu uma importante pesquisa sobre os produtores
de algodão do município do Leme, em São Paulo, em que demonstrou que uma parte
significativa dos agricultores familiares que residiam na sede municipal, à época, uma
cidade de aproximadamente 70 mil habitantes, situada num eixo considerado urbano
e industrial, mantinham residência em sítios relativamente próximos, tendo como aporte
para esse trânsito “rural e urbano” um sistema de transporte acessível que ajudou a
manter um fio continuum entre o meio rural e a cidade urbana. Em geral, a maioria
dos agricultores, homens adultos, serviram-se dessa acessibilidade do sistema de
transporte para continuar a manter suas maneiras tradicionais de interação e contato
com o meio rural, além da produção, eram fortemente apegados aos hábitos culturais
expressos em suas formas de lazer, por exemplo, pescarias, festas e rituais religiosos e
encontros informais com amigos dos sítios.

Nesse sentido, a pesquisadora continuava a fortalecer a tese de que o mundo


rural não deveria ser compreendido de forma isolada da sociedade moderna, mas em
interação com ela, uma vez que as relações entre campo-cidade estavam cada vez
mais complementares entre si. Assim, para Wanderley (2001, p. 18), “o mundo rural pode
ser entendido como um lugar de vida, que se define enquanto um espaço singular e
um ator coletivo”. Ao colocar sua afirmação nesses termos, Wanderley mostra que as
tramas espaciais e sociais, assim como as trajetórias de desenvolvimento vividas pelos
habitantes desse universo dão o sentido social a uma relação campo-cidade, vivida
como complementariedade e integração.

Esse tipo de relação se expressa por meio de dinâmicas internas e externas da


vida social do mundo rural em sua diversidade. Assim, o acesso da população rural a bens
de consumo, eletrodomésticos, bens e serviços são indicadores do grau de interação e
complementariedade sobre o qual Wanderley (2001) afirma. Por outro lado, a autora vai
afirmar que a vida social local vai ser marcada pelo acesso a bens que são considerados
essenciais para sua permanência no campo, destaca-se nesse sentido as oportunidades
de trabalho que parecem sempre mais escassos nas áreas rurais. O que ocasionaria uma
precariedade das condições no meio rural seria a necessidade de deslocamento, acesso a
serviços e bens que não se realizam ou quando acontece é de forma precarizada.

Assim, mais do que acentuar as diferenças entre o campo e a cidade, Wanderley


(2001, p. 57) nos mostrará que há um conjunto de contradições encontradas na
agricultura brasileira em torno da propriedade da terra. Assim, Afrânio Garcia Jr. (1990)
também vai argumentar nessa mesma direção, mostrando que:

tomar a presença crescente de trabalhadores pagos em dinheiro


na diária ou por tarefa realizada em todos os tipos de explorações
agrícolas por desenvolvimento do trabalho assalariado, por processo
de proletarização, por desenvolvimento capitalista, não especifica
nada, não proporciona o conhecimento das determinações desse
processo (GARCIA JR., 1990, p. 276).

155
A formação desse contingente de trabalhadores está associada diretamente a
condição de concentração fundiária vivida em nosso país. E parte desses trabalhadores
foram precarizados em face de terem uma vida concentrada no mundo rural e nos modos
de produção da agricultura cuja principal fonte de subsistência é o trabalho na terra e
ao se deparar com uma expansão do capital produtivo, secas, falta de políticas públicas
e ampliação da concentração de terras vão se tornar uma massa de trabalhadores com
baixa remuneração e perda de suas terras. Essas frágeis condições vão converter aqueles
que eram pequenos produtores e pequenos proprietários de terras em uma massa de
assalariados precarizados, cuja fonte de renda principal é o trabalho na agricultura.

A passagem de colono/morador para trabalhador assalariado não


significou, necessariamente, nem uma mudança de patrão (não
me refiro aqui à pessoa individual de cada patrão, mas à categoria
social, cujo elemento permanente é precisamente a propriedade da
terra), nem mesmo uma mudança da natureza do trabalho efetuado.
Expulso da terra enquanto morador, o assalariado a ela retorna para
realizar, na maioria das vezes, trabalho semelhante ao que já fazia
anteriormente. atividades fragmentadas, não qualificadas, ligadas
às tarefas manuais que a modernização das grandes culturas não
conseguiu superar (WANDERLEY, 2001, p. 58).

Essa mudança deve ser percebida como uma incapacidade da agricultura


brasileira, em especial, os setores mais modernos, de incorporar o progresso técnico e
as inovações tecnológicas e de se libertar da concepção parcial de propriedade da terra.
Um dos resultados mais expressivos dessas transformações sociais é o emprego do
trabalho compulsório ou de semiescravidão em grandes empresas agropecuárias, uma
superexploração do trabalho que alimenta a reprodução da propriedade fundiária e se
distancia de uma visão associada a um processo de moderno de divisão social do trabalho
ou de unificação dos mercados de trabalho rural e urbano. Sobre as consequências
dessas relações sociais presentes no rural brasileiro, Wanderley (2001, p. 59) afirma “a
base da extrema exploração de uma força de trabalho sem qualificação profissional,
sem garantia de proteção efetiva das leis trabalhistas e com acesso precário aos bens e
serviços fundamentais ao cidadão”.

Assim a “pobreza rural” virou tema de inúmeras pesquisas a exemplo daquela


realizada por Eugênia Trancoso Leone, em 1994, quando demonstrou o aumento
expressivo da proporção de pobres no mundo rural.

As famílias que residem em áreas urbanas, mas dependem de uma


baixa renda do trabalho do chefe na agricultura, têm uma série de
dificuldades para materializar as possibilidades oferecidas pela
vida na cidade. Essas dificuldades têm a ver com as deficiências de
infraestrutura de serviços urbanos e com a insuficiência do nível de
renda de boa parte dessas famílias. Em consequência, elas não têm
acesso a um mínimo de condições básicas que são imprescindíveis a
qualquer morador das cidades. Por esse motivo, apesar de se notar
uma diferença substancial de estilo de vida entre os residentes de
áreas rural e urbana, não é em absoluto claro que tais diferenças
impliquem uma condição de vida melhor para os que moram na

156
cidade. A vida nas cidades requer um nível de renda que a agricultura
não tem proporcionado à maioria daqueles que nela trabalham ainda
que já tenham residência urbana (LEONE, 1994, p. 124).

Após conhecer, aprender e compreender contextos, teorias e categorias


analíticas pertinentes em nossos estudos da relação rural e urbano você já está
familiarizado com as interfaces e diversidades de relações e práticas que fazem parte
desse universo da vida social. Assim, para finalizar esse tópico que tal fazer um exercício
de revisão? O objetivo é que você, acadêmico, também faça um movimento reflexivo de
deslocamento para contextos mais próximos que evoquem relações entre esse continuum
rural e urbano no tempo contemporâneo. Aproveite. Nos vemos no próximo tópico!

157
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:

• As dinâmicas entre o rural e o urbano no contexto do desenvolvimento global e dos


processos de disputas e conflitos territoriais que se dão no mundo contemporâneo.

• Alguns conceitos e teorias essenciais para o entendimento do contexto analisado,


que ganharão destaque a partir de algumas pesquisas empíricas sobre os temas
essenciais para nosso processo de aprendizagem no entendimento da diversidade
cultural que envolve o rural e o urbano.

• Há inúmeras mudanças vividas no mundo rural, que tornam cada vez mais vaga a
imagem de um ambiente agrícola e tradicional, passando a incorporar atividades e
práticas consideradas tipicamente do mundo urbano, distanciando-se, assim, de
uma visão etnocêntrica do rural como atrasado.

• Há implicações acompanhadas pela expansão e concentração de terras, lavouras


com investimentos de capital financeiro e uma mudança na perspectiva onde as
atividades de produção tradicionais comumente conhecidas como “camponesas”
passam a sofrer com a produção de commodities.

• A expansão econômica desenfreada interferiu na qualidade de vida e as formas de


subsistência encontradas na população do campo, reconhecendo como essas pessoas
passam a viver a experiência de escassez, desemprego, falta de oportunidades,
pauperização e como consequência dessa intensa industrialização do campo ocorre o
fenômeno do êxodo rural.

158
AUTOATIVIDADE
1 De acordo com Maria Nazaré Wanderley, “a grande propriedade patronal no Brasil está
na origem de uma ruralidade dos espaços vazios” (2001, p. 36). Parte importante
dos processos de modernização do campo teve como projeto as novas configurações
produtivas nos espaços rurais, onde destacam-se algumas características. Sobre
essas características assinale a alternativa CORRETA:

WANDERLEY, M. N. B. A ruralidade no Brasil moderno. Por um pacto social pelo desenvolvimento rural. In:
Giarraca, N. Una nueva ruralidad en América Latina? Buenos Aires: clacso, 2001. p. 31-44.

a) ( ) O intenso uso de máquinas, inovações tecnológicas, uso de adubos e fertilizantes


químicos e aplicação de capital financeiro.
b) ( ) A intensa migração dos moradores da cidade para o campo em busca de trabalho;
o uso de agrotóxicos para melhorar a produção e a inclusão de novas legislações
trabalhistas.
c) ( ) As perspectivas da sustentabilidade foram centrais para esse contexto, onde
prevaleceram as operações e processos da produção da agricultura familiar.
d) ( ) Inovações tecnológicas no campo ampliaram a preservação dos biomas, o
reconhecimento da diversidade e o respeito às comunidades tradicionais.

2 Considerando os processos de mudanças sociais e as dinâmicas entre o rural e o


urbano, uma categoria que ganha sentido para o entendimento deste campo de
estudos é desenvolvimento. Com base nas definições dos enfoques do referido
conceito, analise as sentenças a seguir:

I- Tal conceito quando localizado em período histórico como o do surgimento do


capitalismo e da Revolução Industrial se associa a uma compreensão de processo de
evolução, crescimento e progresso.
II- A agricultura familiar e o roçado são considerados exemplos de inovações tecnológicas
da produção agrícola que marcam o progresso no campo, representando uma
importante contribuição para o conceito de desenvolvimento.
III- O desenvolvimento enquanto conceito e/ou abordagem teórica, ainda que possa
ser datado no século XX, concentra-se, mais precisamente, ao conjunto de
transformações pelas quais as sociedades europeias passaram tanto no padrão e
estilo de capitalismo como pela necessidade de reconstrução no pós-guerra.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
c) ( ) Somente a sentença II está correta.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

159
3 No que se refere ao acelerado processo de industrialização e a intensa urbanização
fornecem um olhar sobre o mundo rural e agrário que foram tratados como “atrasados”
e “obstáculos ao desenvolvimento” do capitalismo. De acordo com os conceitos de
desenvolvimento elencados no texto, classifique V para as sentenças verdadeiras e F
para as falsas:

( ) O desenvolvimento rural implica um conjunto de práticas e tecnologias aplicadas


ao ambiente rural, utilizadas para exploração e utilização dos recursos naturais ali
disponíveis e se associa a construção de novos mercados, novos produtos e novas
formas de trabalho.
( ) O conceito de desenvolvimento vem a ser atualizado associando-se ao uso adequado
da mão de obra do trabalhador urbano para ampliar a capacidade de consumo dos
pequenos produtores com a urbanização do campo.
( ) O desenvolvimento rural sustentável é empregado para estimular um uso adequado
da terra e dos recursos dela provenientes, atentando-se para o ecossistema e
respeitando a necessidade de reprodução das próximas gerações.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – F.
b) ( ) F – V – F.
c) ( ) V – F – V.
d) ( ) F – F – V.

4 Na década de 1970 as ciências sociais brasileiras passaram a se interessar cada


vez mais pelo estudo das mudanças na vida social rural a partir do olhar sobre a
modernização da agricultura, bem como a formação das classes sociais nesse
campo social em torno do mundo agrário. Nesse período os estudos do campesinato
estavam marcados pelo interesse numa análise das transformações das sociedades
modernas. Disserte sobre esta área de pesquisas e sobre as temáticas dos trabalhos
científicos publicados nesse período.

5 Mais do que acentuar as diferenças entre o campo e a cidade muitos pesquisadores


das ciências sociais mostraram que há um conjunto de contradições encontradas
na agricultura brasileira em torno da propriedade da terra. Neste contexto, disserte
sobre os desafios as relações de trabalho.

160
UNIDADE 3 TÓPICO 2 —
MODOS DE PRODUÇÃO, CONSUMO E
USO DE RECURSOS

1 INTRODUÇÃO
Já tratamos anteriormente dos espaços urbanos, espaços rurais e suas
territorialidades. As mudanças foram socialmente encontradas e, além disso,
apresentamos alguns sujeitos e processos de formação das identidades sociais a partir
desses dois eixos de análise. Neste momento, acadêmico, abordaremos um pouco
mais a respeito dos espaços rurais em interface com o urbano a partir dos modos de
produção.

Quando convidamos você, acadêmico, a abandonar visões etnocêntricas dessas


realidades distintas, é para você poder ir além de uma concepção limitada do espaço
rural como isolado ou atrasado. No entanto, também compreendemos que se trata de
espaços socialmente integrados às dinâmicas que conectam esse continuum entre
rural e urbano.

As transformações sociais decorrentes da intensa urbanização e modernização


produzem efeitos de deslocamento e integração entre esses mundos que antes,
poderiam parecer mais distantes e agora vemos cada vez mais relacionados, seja em
face de lutas sociais que demandam um maior respeito às comunidades tradicionais
e seus modos de vida, seja em razão de um intenso processo de modernização agrícola
que impacta de maneira aguda o espaço rural, não só sobre os modos de produção
mas também de práticas de consumo alimentar, formas de mobilidade e dinâmicas
econômicas globalizadas: há nesse sentido uma pluralidade de mundos rurais, conforme
apontado por Maria Nazaré Wanderley (2001):

Este mundo rural se move em um espaço específico, o espaço rural,


entendido em sua dupla face. Em primeiro lugar, enquanto um espaço
físico diferenciado. Faz-se, aqui, referência à construção social do
espaço rural, resultante especialmente da ocupação do território, das
formas de dominação social que tem como base material a estrutura
de posse e uso da terra e outros recursos naturais, como a água,
da conservação e uso social das paisagens naturais e construídas e
das relações campo-cidade. Em segundo lugar, enquanto um lugar
de vida, isto é, lugar onde se vive (particularidades do modo de vida
e referência ‘identitária’) e lugar de onde se vê e se vive o mundo
(a cidadania do homem rural e sua inserção na sociedade nacional).
Dada a grande diversidade de situações encontradas no meio rural,
considero de grande necessidade e urgência a elaboração de tipologias
que evitem generalizações precipitadas e que, ao mesmo tempo,
consiga articular os diversos ‘tipos’ observados em um quadro geral
de análise (WANDERLEY, 2001, p. 32).

161
Na realidade, Wanderley nos incita a reconhecer que assim como existem diversos
mundos rurais, também podemos encontrar diversos modos de produção, uso e ocupação
presentes nesses espaços. A agricultura como um modo de produção também faz parte
de universos muito distintos de comunidades como as indígenas e as quilombolas, há
inúmeros modelos produtivos e com características próprias como a agricultura familiar e
o agronegócio. A agricultura é um modo de produção secular, uma das atividades mais
antigas do mundo e envolve o cultivo de plantas e criação de animais em torno de um
espaço, permitindo aos seres humanos a fixação em uma localidade.

Um dos aspectos de mudança ocorridas com a Revolução Industrial, introdução


do sistema capitalista e intenso processo de urbanização envolve a transição e a
implementação de novos modos de produção. Uma dessas mudanças está relacionada
com a transformação da propriedade fundiária em capital, o proprietário da terra incorpora a
lógica capitalista na produção agrícola e surgem dois atores sociais importantes nesse
cenário, o proprietário do capital e dos meios de produção e o vendedor de sua força
de trabalho, que perde parte do que produz por meio do processo de mais-valia, que é
a parte que se acumula para o capital porque o proprietário tem o título da terra, essa
renda fundiária é o que alimenta o capitalismo ou em outras palavras “é um resultado
das relações sociais, nas quais se leva a cabo a exploração da terra” (MARX, 1974, p. 155).

São relações sociais que se estabelecem entre três agentes e em dois


níveis diferentes. uma relação de produção, que opõe operários e
capitalistas e que tem lugar no próprio processo produtivo que cria
a mais-valia; uma relação de distribuição desta mais-valia produzida,
que se realiza entre não produtores, o capitalista, dirigente do processo
de produção, e o proprietário da terra (WANDERLEY, 2001, p. 29).

Conforme veremos a seguir, há uma combinação de modos de produção


inseridos nessa nova ordem global proposta pelo capitalismo e nós vamos conhecer
esses diferentes modos de uso, produção e cultivo da terra.

DICA
Que tal saber mais do conceito de mais-valia? Assista ao seguinte vídeo:
https://www.youtube.com/watch?v=X-5JQDeW0g8.

162
2 MODOS DE PRODUÇÃO
Dentre as análises mais comuns dessas mudanças nos modos de produção com
a chegada do capitalismo e a Revolução Industrial, é aquela que explica as transformações
somente como base a relação entre o sistema feudal para o sistema capitalista. No entanto,
as pesquisas desenvolvidas por antropólogos vão enxergar outras questões importantes
e situar novas explicações para fenômenos inseridos nesse contexto.

As atividades de produção agrícola no Brasil são responsáveis por nos abastecer


com alimentos e oferecer fonte de matéria-prima para outros produtos, esse segundo
processo é o que chamamos de commodities. Conforme já vimos, acadêmico, desde
a Revolução Industrial e o desenvolvimento do capitalismo fomos conduzidos por
mudanças significativas tanto em relação aos modos de vida e ao espaço ocupado
como também por deslocamentos do campo para a cidade e uso cada vez maior de
maquinários e tecnologias na produção do campo.

Dentre as diferentes técnicas e modos de produção, vimos na Unidade 2 as


contribuições das formas de produção utilizadas por povos e comunidades tradicionais
para sua subsistência e um uso sustentável dos recursos naturais disponibilizados no
contexto do território vivido por esses sujeitos sociais. Nesse tópico vamos conhecer
modos de produção como o agronegócio e a partir dele abordar as relações entre o rural
e urbano considerando a persistência da concentração de terras que reproduz nos dias
de hoje um padrão de desigualdade social.

Na realidade, se considerarmos uma leitura mais ampla da formação histórica da


questão agrária no Brasil, podemos identificar que as raízes estruturais estão assentadas
nos processos das sesmarias (um lote de terras que era distribuído a um beneficiário
pelo rei de Portugal, com o objetivo de cultivar terras e povoar um lugar que se tornava
colônia portuguesa) que introduz essa dinâmica de altas concentrações de terras entre
poucos e dificulta ao longo da nossa história uma distribuição mais igualitária. A classe
latifundiária se orienta pela lógica mercantil com base no latifúndio monocultor (trata-
se de um tipo de plantio onde prevalece uma única cultura de produção, por exemplo, as
grandes produções de soja), e legitima o poder da concentração fundiária expropriando e
desterritorializado (expulsando das suas próprias terras) homens e mulheres do campo.

É evidente que esse processo não foi vivido de modo uniformatado e implicou
processos de resistência e lutas sociais pelo direito à terra. Essas lutas também tiveram
impacto na formação das identidades sociais (conforme vimos na unidade anterior,
povos e comunidades tradicionais, pequenos produtores, campesinos, caipiras, dentre
outros) nesses contextos surgindo grupos e movimentos sociais organizados para
contestar essa desigualdade de acesso aos meios de produção e subsistência por meio
da terra. Tais conflitos também vão gerar desdobramentos no campo sobre o modo
de uso e ocupação da terra, apresentando uma diversidade de povos, comunidades e
formas de produção.

163
Durante muito tempo, identidades diversas como indígenas, quilombolas,
ribeirinhos, caiçaras, seringueiros e populações de fundo de pasto foram tratados como
uma identidade única, a saber, o camponês, implicando numa relação de força para
desterritorializar e dizimar esses povos no intuito de avançar sobre suas terras e ampliar o
poder do latifúndio.

De acordo com o antropólogo Moacir Palmeira (1971), o verdadeiro impasse estaria


em entender quais dinâmicas que conduziram a estruturação do latifúndio no Brasil
enquanto uma forma de organização social e econômica, assim o autor vai postular que a
combinação de diferentes modos de produção poderia ter permitido a emergência do
latifúndio (PALMEIRA, 1971, p. 133). Sua questão se manifesta de forma original no debate
uma vez que se distancia da explicação clássica da tese feudalista-capitalista e espelha
uma visão mais contundente a respeito da complexidade que norteia o campo.

A combinação identificada como responsável pela emergência deste


tipo de unidade econômica não coincide nem com a que é própria ao
modo capitalista de produção, nem ao modo de produção feudal [...]
parece-nos mais adequado ver no sistema plantation um modo de
produção específico, cuja lógica não pode ser reduzida à dos modos
mencionados [...] não se trata de um modo de produção do mesmo
status que outros. Ele é dependente, na origem (lógica), de um outro
modo de produção: o modo capitalista. Isto é, ele não existe senão
na medida em que existe o modo de produção capitalista (PALMEIRA,
1971, p. 154-155).

Para o antropólogo, o conceito a ser considerado é o da combinação de modos de


produção, entendendo o “sistema plantation” como um modo de produção. Assim, para
este antropólogo no que concerne o entendimento sobre os trabalhadores rurais sua
diferenciação aparece a partir da distinção entre relações sociais e relações técnicas
de produção. As relações sociais podem ser entendidas pela propriedade privada da
terra quando há a separação do produtor direto dos meios de produção. Em se tratando
das relações técnicas, Palmeira reconhecerá que também há a separação do objeto de
trabalho, isto é, a terra, no entanto ela se diferencia da seguinte maneira.

Há, certamente, também separação a propósito do objeto de trabalho


(a terra); mas, graças à cooperação simples em função da flexibilidade
exigida pelo mercado internacional, esta relação é de indiferença no
que se refere aos meios de trabalho [...] assim, a plantation pode operar
tanto à base de relações de trabalho escravistas quanto de relações
de trabalho servis, ou à base do assalariado formal. A condição-limite
intransponível é que a mão de obra seja imobilizada e disposta a aceitar
qualquer arranjo imposto pela conjuntura. Portanto, é bastante lógico
que o esforço maior dos plantadores seja de vincular os trabalhadores
à terra (ou ao estabelecimento) (PALMEIRA, 1971, p. 140).

O que o autor deseja reforçar é a explicação do vínculo do trabalhador à terra,


mostrando que ela não desaparece, mas pode ser percebida de outra maneira diferente das
formas de renda feudais ou semifeudais. Assim, não haveria na “plantation” uma separação
escancarada entre o que é considerado trabalho necessário e trabalho excedente.

164
Na plantation, qualquer que seja a forma de remuneração imposta
pela conjuntura, não há separação visível entre “trabalho necessário”
e o “sobretrabalho”, como ocorre, por exemplo, nas formas feudais.
Todo o trabalho dos produtores diretos vai automaticamente ao
proprietário. Isto é claro no caso do escravizado, mas também
no do trabalhador livre, em que o fornecimento direto de bens de
consumo, o pagamento de uma soma em dinheiro ou de um vale com
o qual o trabalhador pode “comprar” suas subsistências no barracão
da propriedade [...] ou ainda o direito de utilização de um sítio [...]
garantem sempre ao proprietário a possibilidade de recuperar uma
parte do que cede ao trabalhador (PALMEIRA, 1971, p. 142).

A partir dessas considerações o antropólogo sugere outras explicações das


relações sociais e os modos de produção em articulação. Nesse sentido, as relações de
classe são percebidas a partir da “oposição proprietário-não proprietário, consideradas
como uma distribuição de posições anterior, tornando possível o processo de produção,
permite afirmar inicialmente que são relações de classe que sustentam o modo de
produção em operação”. Todavia, para Palmeira (1971), tal afirmação não explicaria a
maneira singular que caracteriza essas relações, momento em que o autor passa a fazer
referência ao conceito de “mediação”, que se refere ao modo exercido pelo proprietário
da terra para mediar relações, como as já descritas.

A consideração da posição de mediação dos proprietários, ao


contrário, nos mostra que a posição da classe proprietária não esgota
nas suas relações com a classe dos trabalhadores rurais, mas que é
simultaneamente posição em relação à estrutura de classes do modo
de produção capitalista [...] essa posição de classes dos proprietários,
que se define por uma dupla relação, pertence à definição mesma
da classe proprietária na estrutura de classes correspondente ao
sistema plantation (PALMEIRA, 1971, p. 148).

A década de 1980 foi crucial para a afirmação da identidade e das lutas sociais
pelo reconhecimento da identidade, do território e dos seus modos de viver, articuladas
com base na identidade coletiva e na afirmação dos direitos sociais (MARTINS, 1985).
A partir desse período esses sujeitos sociais inovaram nas agendas de mobilização, isto é,
quando um grupo social passa definir e orientar politicamente atividade e atos políticos
para apresentar suas demandas para a sociedade, para as instituições públicas, e assim
passam a reivindicar o reconhecimento de sua história, de sua resistência, de sua
identidade e de sua terra.

Os conflitos no campo foram complexificados e o que comumente se


convencionou localizar em dois polos opostos como “camponeses versus latifundiários”
passa a mostrar um cenário rural mais diversificado e complexo. Claro, esses dois polos
representavam na leitura sociológica duas perspectivas do uso da terra, a saber, para o
trabalho e como um meio de produção na vida do camponês e para o negócio, articulado
à lógica da especulação do mercado financeiro e expansão e concentração de terra para o
agronegócio.

165
Uma outra explicação para o fenômeno, segundo apontado por Wanderley (2001),
é a reprodução de relações pré-capitalistas, não capitalistas ou não especificamente
capitalistas, articuladas e subordinadas à dominação do capital.

Acadêmico, nesse tópico nos aproximamos de várias formas de produção,


aprendendo suas dinâmicas e os modos de produção distintos. No próximo tópico
vamos conhecer um pouco das moralidades, isto é, formas de entender, dar significado
e construir valores a partir do modo de vida urbano e rural e suas relações.

3 MORALIDADES ENTRE O RURAL E URBANO


Caro acadêmico, considerando mais especificamente o processo de urbanização
associado ao desenvolvimento econômico, cultural, político e social veremos que a
urbanização da sociedade alcança o meio rural e produz efeitos sobre o seu modo de vida,
primeiro transformando as formas tradicionais de trabalho agrário, momento em que
as chamadas experiências de “não trabalho” se tornam mais comuns e a experiência
do consumo sobre o trabalho também é favorecida nesse novo contexto social. Além
disso, a urbanização e a ampliação das redes de comunicação e informação também
produzem como efeito um estímulo ao deslocamento e mobilidade profissional de
agricultores e trabalhadores tornando o ambiente rural cada vez mais parecido com os
moldes de trabalho encontrados na zona urbana. Essas mudanças acontecem por efeitos
da urbanização e sua presença cada vez mais intensa em meios rurais, momento em
que os moradores do meio rural passam a consumir produtos, serviços e formas de vida
que estão disponíveis na sociedade urbana.

Para que você tenha uma ideia dessas transformações tente pensar em cidades
pequenas e a chegada de tecnologias como internet, canais de televisão, redes de
celular, aparelhos eletrodomésticos, formas de lazer e consumo de alimentos de outras
regiões, entre tantas outras ideias que você pode lembrar. Pois bem, acadêmico, estas
seriam algumas das zonas de contato entre esse fio invisível que liga o rural e o urbano por
meio do consumo e uso de recursos que antes não apareciam ou faziam parte daquele meio.

166
INTERESSANTE

Fonte: https://estantedasala.com/interestelar/ . Acesso em 15 set. 2022.

Dica de filme: Interestelar


Sinopse: as reservas naturais da Terra estão terminando e um grupo de astronautas
recebe a missão de verificar possíveis planetas para receberem a população mundial,
possibilitando a continuação da espécie. Cooper é chamado para liderar o grupo e aceita
a missão sabendo que pode nunca mais ver os filhos. Ao lado de Brand, Jenkins e Doyle,
ele seguirá em busca de um novo lar.
Data de lançamento: 6 de novembro de 2014 (Brasil).
Diretor: Christopher Nolan.
Música: Hans Zimmer.
Orçamento: US$ 165 milhões.
Prêmios: Oscar de Melhores Efeitos Visuais.
Música composta por: Hans Zimmer, Ann Marie Calhoun.

De acordo com Marc Mormont (1997, p. 39), antropólogo belga, “as evoluções
demográficas e econômicas, o crescimento da mobilidade não permitem mais opor o
rural e o urbano como dois universos sociais, duas “sociedades” distintas, até mesmo
opostas. Isto não implica, no entanto, um esgotamento da questão rural”.

Para Mormont, há relações de interdependências entre os meios rural e urbano


como as ecológicas que retribui uma significação, nesse sentido o espaço rural é para
ele uma questão de apropriação e de gestão e sua importância tende a englobar as
estratégias de desenvolvimento, tanto para a agricultura, quanto para outros setores.
Este autor critica as concepções que colocam em oposição o rural e o urbano porque
para ele o meio ambiente assim como a natureza não esgota as questões sobre o meio
rural e as questões clássicas envolvendo o ambiente agrícola, pelo contrário reformula e
recompõe oferecendo novos desdobramentos.

167
Nos últimos anos o meio rural passou a ser visto como um produto de consumo
pelos moradores do meio urbano que buscam acesso à qualidade de vida por meio de
um deslocamento sazonal, para passar períodos de férias, passeios e descanso ou para
prática de lazer. Algumas pessoas que haviam deixado o meio rural para buscar outras
condições de vida em termos de empregabilidade, educação e acesso a inovações no
meio urbano, com o passar do tempo também articulam novos olhares sobre o meio
rural que passa a ser visto como um ambiente de maior qualidade de vida em relação à
poluição, consumo de alimentos orgânicos, inserção no meio ambiente e mais seguro
combinado com o fato de que com a expansão dos meios de comunicação oferecem
um ambiente renovado e não isolado de rotinas e práticas de consumo que antes eram
encontradas apenas no meio urbano.

O fato é que essas mudanças também não excluem as características mais


comuns compartilhadas nesse meio rural, pois os usos mais regulares de sistema produtivo,
vida local de moradores da agricultura e demais trabalhadores rurais não sai de cena.
Para Wanderley (2001, p. 304) “padrão de conforto – considerado ”urbano” precisamente
porque ainda é predominante nas cidades – e a existência dos meios de comunicação e
integração com a cidade, tais como boas estradas, telefone, luz elétrica etc.” seriam fatores
que foram anteriormente determinantes como qualidades encontradas no meio urbano e
que agora passam a ser cada vez mais presentes no meio rural.

A vida social no meio rural é resultado também de formas de relações sociais


que vão além dos modos de produção, atravessam os moradores locais integrando-os e
oferecendo significados de pertencimento e identidade. As relações de parentesco e
de vizinhança nutrem laços sociais de reciprocidades, obrigações e integração. Além
de auxiliarem na manutenção e no desenvolvimento dos modos de produção, essas
relações se mantêm e animam as a sociabilidade lazer, práticas culturais e festivas
assim como a vida religiosa.

Nesse sentido, a agricultura familiar se apresenta como um exemplo concreto


desse tipo de relação social: no qual a essa prática se desenvolve encontramos uma
intensa efervescência de relações sociais, movidos pela produção agrícola local, bem
como as atividades complementares como a comercialização que vai estimular esse
continuum entre rural e urbano, na medida em que passa a transformar aquilo que é
produto da atividade agrícola familiar em um produto comercial que pode chegar a
feiras, mercados e comércios do meio urbano.

Embora tenham se beneficiado das políticas de estímulo à


modernização da agricultura nos anos 1970, possuem, em sua grande
maioria, uma área que oscila entre 10 e 100 hectares, têm um nível
de mecanização relativamente fraco e dispõem de poucos recursos
para investir na agricultura. Além disso, apesar de sua inserção na
agricultura moderna, eles não abandonam a concepção camponesa
de atividade agrícola, de forma a assegurar o equilíbrio entre culturas
diversificadas e pecuária e entre atividades voltadas para o mercado e
para o autoconsumo. (WANDERLEY, 2001, p. 62).

168
Esse tipo de atividade garante não só a reprodução dos laços sociais por
meio das relações de parentesco e vizinhança mas estimula um impulso econômico
ampliando a renda dessas famílias na medida em que pode ampliar a oferta de empregos
tanto no meio rural ainda nos processos de produção até o meio urbano envolvendo
s processos de distribuição e comercialização dos seus produtos. Conforme apontou
Wanderley, são vistos como formas alternativas de ocupação para alguns membros da
família e aparecem tanto no meio rural quanto em locais de economia urbana-industrial
e integradas, sobre essas formas os trabalhos de Schneider (1999), Tedesco (1999) e
Woortmann (1990) são considerados importantes referências.

DICA
Ouça ao podcast da rádio Mixtura sobre o tema da agricultura familiar, disponível em:
https://bit.ly/3DhGycq.
Sinopse: série de três podcasts sobre agricultura familiar, alimentação e consumo
inteligente, produzida pela rádio Mixtura e realizada em parceria com a Roça Abaetetuba,
um empreendimento agrofamiliar de orgânicos que comercializa seus
produtos por delivery em São Paulo, incluindo bairros da periferia da
cidade. Nesse primeiro episódio apresentamos a Roça Abaetetuba.
Jaime Diko bate um papo com Aline Maria, que mantém uma chácara
de produção de orgânicos alicerçada nos conceitos de economia
solidária e consumo sustentável, em São Lourenço da Serra, a
56 km de São Paulo. Agricultura familiar, permacultura, soberania
alimentar e a importância das agroflorestas e de comida sem
veneno são temas abordados nesta conversa que também
apresenta a filosofia da Roça, marcada pela inclusão social por meio
da geração de trabalho e renda e a promoção do acesso de produtos
saudáveis e a preços acessíveis para os moradores das periferias.

Nesse sentido, o estudo de Afrânio Raul Garcia Júnior (1975) sobre os foreiros
da zona da mata pernambucana vem contribuir para uma visão sobre essa estrutura de
produção que é fundada no trabalho familiar. Para esse autor, o modo de produção
camponês não seria um modo de produção como concebemos o capitalismo, seria assim
“um modo de produção subordinado, que pode se articular com vários outros modos de
produção, ou que se insere em formações sociais diferenciadas, cujo movimento é dado
por outro modo de produção dito dominante” (GARCIA JR, 1975, p. 12).

Supõe particularidades da economia camponesa, devido ao fato que


tanto a unidade de produção quanto a de consumo são constituídas
por regras de parentesco e que o caráter familiar da divisão do trabalho
é responsável por muitas de suas especificidades. Entretanto, isto
não implica em nenhuma forma particular de circulação do produto,
muito menos que a circulação seja diretamente da unidade de
produção para a unidade de consumo (GARCIA JR, 1975, p. 12).

169
Essa realidade inclusive foi muito comum entre os anos 1980 e 1990 quando
percebeu-se que muitos camponeses pobres em condições de escassez passaram a
buscar novas formas de sobrevivência em meio a uma crise econômica que alcançou
os modos de produção locais e sem horizonte de mudança no agreste e sertão decidem
buscar oportunidades em zonas urbanas mais próximas ou muito distantes (como foi o
caso de uma intensa migração em direção ao sudeste com o êxodo rural, cidades como
Rio de Janeiro e São Paulo eram os principais destinos para essas pessoas em busca de
sobrevivência numa sociedade cada vez mais urbanizada e industrializada). Nas cidades
pequenas esses moradores buscavam uma posição junto às atividades comerciais
de pequenas feiras livres ou pequenos comércios, quando decidiam por cidades mais
distantes procuravam se integrar com atividades as mais diversas, uma espécie de “faz
tudo”, pegando trabalhos pagos por diárias, atividades na construção civil, nos portos e
nos comércios.

Esse processo intenso que envolve o êxodo rural trouxe impactos profundos na
realidade local do meio rural, como se sabe o próprio esvaziamento do rural e o inchaço
urbano. No entanto, não podemos esquecer, acadêmico, que essa migração se faz
forçada uma vez que as condições de acesso aos bens e serviços assim como a formas
de subsistência se tornavam cada vez mais escassas e precárias no mundo rural. Além
disso, os recursos naturais foram impactados pela crescente concentração fundiária
e atividades de monocultura e a distância dificultava esses pequenos produtores locais em
transportar e comercializar sua pequena produção: o custo ficava cada vez maior para
o pequeno agricultor e sua família, perdendo sua principal fonte de renda e castigado pelas
condições climáticas adversas, como a seca, viam a migração como um destino social de
sobrevivência para si e para sua família.

INTERESSANTE
Querido acadêmico, que tal aprofundar uma leitura sobre esse
tema? Recomendamos o artigo “A ruralidade ontem e hoje. Uma
análise do rural na contemporaneidade” da autora Fernanda
Cristina Laubstein. Acesse em: https://bit.ly/3DnmV2O.

O que não estava no horizonte desses indivíduos era o fator de alta concentração
de pessoas e poucas oportunidades de absorver esse grande contingente populacional. A
maioria desses migrantes eram jovens das classes populares do meio rural, não por acaso
vamos encontrar também uma mudança de geração, relações sociais e esvaziamento
desse meio rural mais distante do meio urbano, “abriu clareiras de pessoas e símbolos
da vida social entre suas árvores e rios” (BRANDÃO, 1995, p. 77).

170
Se nesse efeito de migração do êxodo rural encontramos um perfil de jovens
homens, do meio rural e nordestino, também veremos outros deslocamentos envolvendo
os agricultores da região sul do país em direção às regiões do centro-oeste e norte:
o perfil também de jovens homens, pequenos agricultores familiares do meio rural da
região sul que se deslocam para esse Brasil profundo a partir de uma dinâmica social de
promoção de programas de colonização com as chamadas agrovilas, isto é, “um vasto
retângulo com os terrenos residenciais dos colonos dispostos um ao lado do outro,
em duas fileiras paralelas; no centro, a capela o salão de reuniões e festas, a escola
primária, o campo de futebol e o jogo de bocha” (SANTOS, 1993, p. 208). Se você reparar
bem, acadêmico, vai perceber que diferente dos jovens nordestinos que veem sua área
rural sofrer impactos políticos e econômicos e sem perspectivas de melhora tentam
a sorte na migração, os jovens sulistas são convidados a ocuparem zonas fronteiriças
e recebem um auxílio de deslocamento e inserção em seu novo local de residência e
que envolve a construção de uma infraestrutura para abrigar esses novos moradores.
Conforme apontado por Wanderley (2001):

As agrovilas, construídas nos núcleos de colonização, se constituíram


como um espaço residencial mais concentrado do que os tradicionais
agrupamentos, estabelecendo-se uma distinção entre o lugar de
trabalho – os sítios dos colonos – e o lugar da morada – a própria
agrovila – que também reunia localmente os serviços eventualmente
postos à disposição dos “colonos”. É esta distinção espacial e está
relativamente maior densidade das agrovilas que explicam o fato de
que muitas delas, cedo passaram a ser consideradas como cidades
e centros dinamizadores, de natureza urbana, de um entorno rural, o
qual, por sua vez, reproduz a dispersão e a precariedade do meio rural
tradicionalmente concebido (WANDERLEY, 2001, p. 307).

Ainda nos anos 1990 programas de reforma agrária passaram a ser implemen-
tados no Brasil com o foco em trabalhadores rurais ou pequenos agricultores que pas-
saram pelo processo de expulsão do campo, pelas razões que já foram expostas aqui
anteriormente. Nesse novo arranjo social os agricultores são estimulados a retomar
suas atividades de produção, suas formas de consumo e introduzem novas práticas de
atividades agrícolas e não agrícolas (MEDEIROS et al., 1999). Nessa nova forma de as-
sentamento além dos modos de produção que serão retomados, os moradores também
vão reaprender suas dinâmicas sociais de interação, sociabilidades festivas, relações
de parentesco e vida religiosa, incrementadas pela experiência de contato com o meio
urbano mais próximo, assim “O assentamento é um povoado rural que se refaz (WAN-
DERLEY, 2001, p. 307).

os assentamentos (...) são formas de incorporar ao mercado fundiário,


ao mercado de casas de moradia e de serviços básicos (água, esgoto,
saúde, educação etc..), ao mercado de insumos agrícolas (adubos,
sementes, máquinas etc..) largas parcelas da população até então
condenadas à incerteza e à precariedade dos recursos naturais (no
caso de antigos posseiros), ou mais além, condenadas a habitarem
locais precários e a estarem desprovidos de meios de usarem
sua capacidade de trabalho para fazer frente às necessidades de
consumo, suas e de sua família (GARCIA JR. et al, 2003, p. 923 ).

171
Essas são transformações que vão reintroduzir uma visão positiva do meio
rural brasileiro, momento em que a agricultura familiar ganha precedência por meio da
criação do Programa de apoio à Agricultura Familiar (PRONAF), implantado no Brasil nos
anos 1990 e também pelo incentivo das políticas de reassentamento (reassentamento
é a ação realizada por uma pessoa para mudar de residência, de um país para outro,
por necessidade de asilo; ou porque está privado de seus direitos, espaço de moradia
ou condições de vida) com a reforma agrária. Esses atores sociais incorporam outras
concepções de agricultura, diferente da agricultura latifundiária, ostensiva que preda o
ambiente natural e não repõe a vitalidade do meio ambiente. Assim, tanto a agricultura
familiar quanto os assentos da reforma agrária oferecem uma vitalidade ao meio rural
agora como horizonte de moradia, modo de produção e dinâmicas integrativas entre o
rural e urbano quanto por oferecerem outras concepções morais do uso dos recursos, o
respeito à diversidade e ao meio ambiente.

A demanda pelo acesso à terra se mantém atualmente uma das principais


bandeiras de luta levadas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), que
fundamentam suas demandas em torno do direito ao trabalho, ao meio pelo qual possam
produzir e a distribuição mais igualitária da terra, para que as técnicas de produção
tradicionais possam ser utilizadas para subsistência, de forma sustentável e também
pela oferta de alimentos orgânicos, livres de veneno e agrotóxicos e produzidos por
pequenos moradores de uma comunidade de pessoas que reinventa e renova a vida
social do campo e do meio rural.

Há uma introdução de práticas da agricultura moderna nos modos de produção


agrícola especialmente quando se trata de práticas de comercialização de alimentos,
muito embora seja uma característica clássica da agricultura presente entre famílias
rurais, os alimentos quando trocados envolvem práticas de reciprocidade, afeto e uma
forma de diversificar os alimentos para o autoconsumo, quando trocam o excedente
entre si. Com o passar do tempo e a modernização de práticas do urbano para o mundo
rural, essas dinâmicas foram se transformando.

A reciprocidade gera, assim, via a redistribuição, uma produção


socialmente motivada, a qual constitui um fator de desenvolvimento
econômico, que vai além da satisfação das necessidades elementares
da população ou da aquisição de bens materiais via a troca. A
tendência natural das sociedades camponesas é procurar a realização
de excedentes fáceis de conservar para consumir ou redistribuir
(SABOURIN, 2003, p. 9).

Sabourin (2003) nos ajuda a entender que os modos de produção, assim como
as relações sociais encontradas entre famílias rurais são articuladas por outras variáveis
diferentes da economia, do trabalho ou da modernidade. A lógica da reciprocidade (dar,
receber e retribuir) operacionaliza uma rede estratégica de laços sociais e de reprodução
social, é constitutiva das afetividades e das alianças que formam entre famílias rurais:
o antropólogo Klaas Woortmann (1990), em seu clássico artigo intitulado “Com parente
não se neguceia” demonstra a vitalidade da ordem moral que envolve as redes de

172
relações sociais encontradas entre famílias rurais, para as quais as relações sociais vão
muito além da ordem econômica ou dos ideais da modernidade, demonstrando como
a terra, a família e o trabalho representam um campo de relações interdependentes.
Dito de outro modo, há uma ética diferente que é articulada a partir dessas relações
em que pese dizer que “nas culturas camponesas não se pensa a terra sem pensar a
família e o trabalho, assim como não se pensa o trabalho sem pensar a terra e a família”
(WOORTMANN, 1990, p. 23).

Noções morais como honra, dignidade, liberdade, autonomia,


solidariedade, reciprocidade, hierarquia fazem parte de um conjunto robusto de códigos
que são cultivados e atualizados a partir das relações de reciprocidades que mantem as
famílias rurais. Mais tarde, vamos nos aproximando cada vez mais de mudanças que
demonstram o valor agregado ao que se produz a partir desse rural, quando passamos
a observar os processos de qualificação da produção e agregação de valor aos produtos
que vem do campo, qualificados como de melhor qualidade atribuídos a máxima “direto do
produtor para sua mesa”, conferindo um reconhecimento a essa ética camponesa.

Figura 2 – Ética camponesa

Fonte: http://twixar.me/ldMm . Acesso em 15 set. 2022

Esse conjunto de moralidades serão renovados aos olhos do capitalismo urbano


que passa a incorporar um valor agregado ao produto que vem direto do campo, que
é orgânico ou que possui uma reputação baseada na história de produção familiar e
técnicas e modos de produção tradicionais. Esse é um momento que podemos identificar
no contexto contemporâneo quando também se verifica mudanças de consumo e
hábitos alimentares no meio urbano.

Agora a busca por uma comida livre de agrotóxicos, sem veneno e mais
orgânica está ganhando cada vez mais adeptos na cidade, assim como o surgimento de
feiras orgânicas, sessões específicas para comidas orgânicas em grandes franquias de
supermercados e a mudança por uma alimentação mais saudável diante de expressivas
pesquisas que apontam prejuízos à saúde pelo consumo de alimentos com agrotóxicos.

173
No entanto, acadêmico, uma última consideração do tema antes de passarmos
ao próximo tópico, envolve a comercialização desses produtos, desde o início do
século XX os comerciantes estabelecem o preço dos produtos encarecendo o acesso
a esse tipo alimento, mantendo uma relação de dependência dos agricultores com os
comerciantes. Em nosso próximo tópico iremos aprofundar a questão dos conflitos e
tensões que envolvem o rural e urbano. Até lá!

INTERESSANTE
Aproveite este intervalo entre os tópicos e dê uma olhada na matéria
de jornal da Asscom/ Grupo Tiradentes a seguir, abordando a questão
das commodities. É curtinha e bem rica de informações!

COMO O AGRONEGÓCIO E A AGRICULTURA FAMILIAR


MOVIMENTAM A ECONOMIA

Commodities e valor agregado são características dos modelos que compõem o


agronegócio, um dos setores que mais cresceram nos últimos anos.

O agronegócio é uma área que tem gerado uma grande movimentação


econômica e lucrativa no Brasil. Durante a pandemia de COVID-19, foi o setor de
oferta que mais cresceu, somando US$ 100,81 bilhões, segundo dados do boletim
da Secretaria de Comércio e Relações Internacionais do Ministério da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento (Mapa).

Já o levantamento do Produto Interno Bruto (PIB) do agronegócio brasileiro,


realizado pelo Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea),
aponta que ele cresceu 4,33% no segundo trimestre de 2021, o que demonstra
um acúmulo de alta na ordem de 9,81%: o antropólogo Pedro Simonard, professor
do Programa de Pós-Graduação em Sociedade, Tecnologia e Políticas Públicas
(Sotepp), do Centro Universitário Tiradentes (Unit Alagoas), define que o agronegócio
pode ser desenvolvido em duas bases – a empresarial e a familiar – e que elas têm
características diferentes e claras. “O primeiro é um formato predatório associado
sobretudo ao latifúndio e ao grande capital.

Esse modelo, que vemos na propaganda da TV, é realizado de modo


exploratório, com uso excessivo das terras e da água, o que é um problema: o segundo,
por sua vez, produz alimentos que vão, quase sempre, direto para o prato do brasileiro.
São verduras, legumes, frutas e, sobretudo, alimentos com quase nenhuma ou nenhuma
defensiva agrícola. Então é importante a gente ter essa diferenciação sobre o agro”,

174
explica. Na visão do professor Simonard, as características de exploração intensiva
dos recursos, bem como seu impacto nos resultados econômicos do país, fazem do
agronegócio empresarial um modelo mais polêmico. “Esse agro, a maneira predatória
com que ele atua, representa morte, pois é nocivo à natureza e à sociedade, o que
faz dele um grande problema. Contudo, é preciso dizer que ele tem uma importância
econômica para o país, que vem se desindustrializando e se tornando um país
vendedor de commodities”, considera.

Dentro do mercado financeiro, commodities são produtos de origem mineral


ou agropecuária utilizados como matéria-prima, produzidas em larga escala e
vendidas para o comércio exterior. As commodities são negociadas nas bolsas de
valores e influenciadas por fatores políticos e econômicos e eventos climáticos.
Aqui no Brasil, produtos como soja, arroz, petróleo, café e trigo, são exemplos de
commodities. Segundo dados da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e
Desenvolvimento (UNCTAD), elas representam 6,5% do Produto Interno Bruto (PIB)
brasileiro. “É comum ouvir na TV que ‘agro é pop, é tech’, mas esse agro não gera
alimentos, gera commodities: ou seja, gera produtos primários que serão importados
de forma primária.

A soja, por exemplo, vai virar tofu no Japão, ganhar valor agregado e [a soja]
será vendida de volta para a gente muito mais cara do que foi comprada, pois se
transformou em um produto: os maiores produtores de café solúvel do mundo são
a Alemanha e a Itália, e sabe o quanto de café eles produzem? Nada. No entanto,
utilizam a matéria prima para transformar, agregar valor e revender”, critica Simonard.
Agronegócio familiar – Também conhecida como agricultura familiar, este modelo do
agronegócio é mais voltado às pequenas propriedades e, para o professor, consegue
agregar valor aos seus produtos. “Nessa produção de alimentos, de fato acontece a
industrialização deles e daí se agrega valor.

Em Canindé de São Francisco, em Sergipe, por exemplo, em um assentamento


do Movimento Sem Terra (MST), eles produzem mandioca, a embalam à vácuo e
vendem para as escolas. Esse agro é produtivo, embora a geração de alimentos não
seja importante para a balança comercial brasileira, é ela que produz os alimentos
que consumimos diariamente”, destaca. De acordo com Simonard, mesmo com as
problemáticas que envolvem, o agronegócio e a agricultura familiar são importantes
para a economia, mas não para o desenvolvimento do país. “O agro concentra renda,
não distribui. Fatura uma grande renda que vai para os poucos donos das grandes
propriedades, o que beneficia a poucas famílias; exporta muito, gera dividendos,
mas não diminui a pobreza. Já a agricultura familiar, justamente por gerar alimentos,
utilizar mão de obra familiar e local, produz e distribui riquezas: o dinheiro circula na
mão de muitos e não de poucos”, finaliza.

Fonte: https://bit.ly/3Uaspnt. Acesso em: 13 set. 2022.

175
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:

• Existem diferentes modos de produção: o agronegócio, a agricultura familiar e


o campesinato. A partir deles é possível conhecer as relações entre o rural e urbano,
considerando a persistência da concentração de terras que reproduz, nos dias de
hoje, um padrão de desigualdade social.

• Os fluxos migratórios foram ocorridos entre os anos 1980 e 1990, quando se percebeu
que muitos camponeses pobres em condições de escassez passaram a buscar novas
formas de sobrevivência em meio a uma crise econômica que alcançou os modos de
produção locais e sem horizonte de mudança no agreste e no sertão.

• As relações sociais que compõem o quadro social de interações e vínculos entre os


moradores do meio rural, isto é, as relações de parentesco e de vizinhança nutrem
laços sociais de reciprocidades, obrigações e integração. Além de auxiliarem na
manutenção e no desenvolvimento dos modos de produção, essas relações se mantem
e animam as a sociabilidade lazer, práticas culturais e festivas assim como a vida
religiosa.

• Aprendeu que a vida social no meio rural é resultado também de formas de relações
sociais que vão além dos modos de produção, cujos valores atravessam os moradores
locais integrando-os e oferecendo significados de pertencimento e identidade.

176
AUTOATIVIDADE
1 As transformações sociais decorrentes da intensa urbanização e modernização
produzem efeitos de deslocamento e integração entre os mundos rural e urbano que
antes, poderiam parecer mais distantes e agora vemos cada vez mais relacionados,
seja em face de lutas sociais que demandam um maior respeito às comunidades
tradicionais e seus modos de vida, seja em razão de um intenso processo de
modernização agrícola que impacta de maneira aguda o espaço rural, não só sobre
os modos de produção mas também de práticas de consumo alimentar, formas de
mobilidade e dinâmicas econômicas globalizadas. Sobre estas grandes mudanças,
assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) O mundo rural deve ser entendido em sua dupla face: um espaço físico diferenciado
e um lugar onde se vive com modo de vida próprio e referência ‘identitária.
b) ( ) O mundo rural está em vias de extinção, sua paisagem vai desaparecer e os seus
modos de vida não resistem ao processo chamado “sustentabilidade”.
c) ( ) As mudanças ocorridas com a Revolução Industrial promoveram um maior
reconhecimento da identidade rural que foi muito valorizada e tornada exemplo de
modo de vida futurista.
d) ( ) O processo de mundialização provocou uma revolução nos modos de produção
momento em que surgiram a agricultura familista e o campesinato de massas.

2 Considerando os aspectos de mudança ocorridas com a Revolução Industrial e a


introdução do sistema capitalista observamos a transição e a implementação de novos
modos de produção. Uma dessas mudanças está relacionada com a transformação
da propriedade fundiária em capital. Com base nesta transformação, analise as
sentenças a seguir:

I- O proprietário da terra incorpora a lógica capitalista na produção agrícola e surgem


dois atores sociais importantes nesse cenário, o proprietário do capital e dos meios de
produção e o vendedor de sua força de trabalho.
II- O proprietário do capital é aquele considerado o principal ator social dessa relação,
porque dele que se extrai a mais-valia, explorando seu tempo de trabalho e recursos
para acúmulo do campesino.
III- O vendedor de sua força de trabalho perde parte do que produz por meio do processo
de mais-valia, que é a parte que se acumula para o capital porque o proprietário tem
o título da terra, essa renda fundiária é o que alimenta o capitalismo.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.
177
3 Historicamente a questão agrária no Brasil é marcada por um importante evento
político chamado “sesmaria”, que está relacionado com a chegada dos portugueses
e a implementação de práticas coloniais de exploração das populações indígenas e
negras. De acordo com as raízes estruturais dos processos das sesmarias, classifique V
para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) Um lote de terras era distribuído a um beneficiário pelo rei de Portugal com o objetivo
de cultivar terras e povoar um lugar que se tornava colônia portuguesa.
( ) A sesmaria é responsável pela congregação de todos os povos nativos e busca
articular uma harmonia racial entre brancos, negros e indígenas.
( ) A sesmaria introduziu uma dinâmica de altas concentrações de terras entre poucos e
dificultou ao longo da nossa história uma distribuição mais igualitária da terra.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 As atividades de produção agrícola no Brasil são responsáveis por nos abastecer com
alimentos e oferecer fonte de matéria-prima para outros produtos, esse segundo
processo é o que chamamos de commodities. Conforme já vimos, acadêmico, desde
a Revolução Industrial e o desenvolvimento do capitalismo fomos conduzidos por
mudanças significativas tanto em relação aos modos de vida e ao espaço ocupado
como também por deslocamentos do campo para a cidade e uso cada vez maior
de maquinários e tecnologias na produção do campo. Disserte sobre o “sistema
plantation” como um modo de produção e sobre as temáticas dos trabalhos científicos
publicados nesta área.

5 A vida social no meio rural é resultado também de formas de relações sociais que vão
além dos modos de produção, atravessam os moradores locais integrando-os e
oferecendo significados de pertencimento e identidade. As relações de parentesco e
de vizinhança nutrem laços sociais de reciprocidades, obrigações e integração. Neste
contexto, disserte sobre os princípios que fundamentam as moralidades encontradas
entre o rural e o urbano.

178
UNIDADE 3 TÓPICO 3 —
A QUESTÃO AMBIENTAL: TENSÕES,
FRONTEIRAS E DISPUTAS

1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, neste Tópico 3, abordaremos a questão ambiental a partir das
disputas e dos conflitos que contemplam essa questão no Brasil. Além disso, veremos
alguns atores sociais, assim como perfis de ocupação da terra e as mudanças sociais
ocorridas nos modos de produção e formas de vida com a Revolução Industrial, o
processo de urbanização e os processos de deslocamento e reinvenção do mundo rural.

Figura 3 – Mundo rural

Fonte: https://bit.ly/3eNWkkU. Acesso em. 9 set. 2022.

Nesse sentido, cabe lembrar que essa diversidade de sujeitos sociais compõem um
quadro rico em práticas culturais, tradições, hábitos, identidade, atividades e moralidades
(conjunto de valores de uma sociedade). Essa pluralidade garante um ambiente complexo,
rico e disputado. Alguns modelos de produção entram em cena e tendem a imprimir um
novo modo de produção e consumo, a chegada dessas mudanças nem sempre são bem
recebidas e muitas vezes essa diversidade cultural e práticas sociais que envolvem os atores
sociais ficam em perigo diante de uma investida econômica e política intensa e violenta.

Um dos principais atores sociais dessa tensão ambiental é o agronegócio,


também conhecido como agrobusiness, se trata de um modelo produtivo que faz
referência ao contexto socioespacial de sua produção agropecuária, composto por uma
rede de setores econômicos e diversas atividades relacionadas à produção agrícola.
Diferente do que o senso comum costuma pensar o agronegócio não se localiza ou
se caracteriza pelas atividades relacionados ao meio rural unicamente, mas mantém
uma relação cada vez mais dependente de atividades e atuações produtivas próprias
do meio urbano: o agronegócio inclui a produção agrícola e pecuária, articulada pelo
setor financeiro e pelo comércio, assim como o uso de serviços, transporte, distribuição

179
e processamento de mercadorias. A relação de interdependência entre o rural e o
urbano se mostra cada vez mais ativa nesse modelo, porque quanto mais modernizada
a produção mais dependerá de recursos tecnológicos, informacionais, de circulação,
transporte e comunicação encontrados no meio urbano.

Dentre as principais características do agronegócio, é uso da produção de


monocultura, isto é, grandes extensões de terra utilizadas para o plantio e produção de
grãos de um só tipo de produto. Esse tipo de prática de cultivo é considerado predatória
por parte de outros atores sociais do campo, como povos e comunidades tradicionais,
uma vez que ela reduz a biodiversidade natural do meio ambiente e produz impactos
negativos nas populações tradicionais substituindo o bioma nativo pelo agrossistema.
Além disso, essa prática está associada com a produção de commodities (já falamos
delas na unidade anterior), que transformar esse grão em uma mercadoria para ser
vendida para o mercado como matéria-prima utilizada para produção de outros produtos
que retornarão ao país com valores agregados encarecendo o consumo local. Também
está associado com o uso de modificações genéticas como agrotóxicos, que também
influenciam na produção e colheita desses produtos.

O uso desenfreado de pesticidas é feito para um melhor aproveitamento da


produção, no entanto, o uso regular tem demonstrado que pode causar impactos não
só no meio ambiente, poluindo e modificando artificialmente e acirrando conflitos,
como também tem prejudicado a saúde da população ao entrar em contato com
esses produtos. Alguns danos apontados pela International Journal of Environmental
Research and Public Health são alterações no DNA, doenças como câncer, problemas
renais e doenças no sangue.

DICA
Quer saber mais dos estudos que investigam a presença de agrotóxicos
nos alimentos? Conheça as pesquisas desenvolvidas pelo Instituto
Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC): http://twixar.me/ydMm.

O fato é que na perspectiva de análise aqui proposta nós passamos pelo


exercício de aprendizado dos conceitos elementares da antropologia e aprendemos a ver a
diversidade de povos e comunidades tradicionais do Brasil, suas práticas, seus modos
de vida, suas moralidades e, a partir disso, vamos agora olhar para os inúmeros conflitos
e disputas em torno das comunidades rurais tradicionais que lutam para o direito ao
seu modo de viver e suas territorialidades e os territórios do agronegócio que buscam
expandir cada vez mais a concentração de terras e as monoculturas. Essa tensão é o
foco de nossa última Unidade.

180
para os povos e comunidades tradicionais, os territórios, os recursos
que eles contêm e os conhecimentos que a eles se referem
constituíram-se historicamente como objeto de disputa frente às
forças do mercado de terras, do agronegócio, da mineração ou dos
grandes projetos de desenvolvimento (ACSELRAD, 2013, p. 6).

Do ponto de vista antropológico, você, acadêmico, é incentivado a aprofundar


o conhecimento desses assuntos e aprender a reconhecer todos esses sujeitos sociais,
seus hábitos, valores, suas semelhanças, suas diferenças, que modos de produção e
consumo aparecem, quais os sentidos sociais atribuídos ao território, à terra e como as
organizações políticas contribuem para renovar ou encerrar conflitos, entendendo que
as comunidades rurais tradicionais e o agronegócio é o ponto central do conflito e da
questão agrária no Brasil contemporâneo.

Bom, acadêmico, no próximos tópico conheceremos um pouco mais das novas


ruralidades, isto é, aquelas experiências mais contemporâneas que renovam nosso olhar
sobre o mundo rural.

2 NOVAS RURALIDADES
Compreender a diversidade cultural por meio dos territórios e práticas sociais
do rural brasileiro a partir de uma perspectiva antropológica é sem dúvida uma maneira
interessante de olhar para fenômenos que estão em nosso cotidiano, seja por meio das
matérias de jornais, dos alimentos que utilizamos, do lugar onde moramos e de muitas
outras maneiras, acadêmico. Nesse sentido, as mudanças recentes no mundo rural
podem ser explicadas por efeitos das novas relações econômicas e políticas marcadas
pelos processos de internacionalização da produção agrícola e de valorização do mundo
rural. Conforme aponta Wanderley (2001, p. 212), os processos mais gerais mencionados
pela autora são:

a) a globalização da economia em seu conjunto;


b) a presença cada vez maior das instâncias internacionais – ou
macrorregionais – na regulação da produção e do comércio agrícolas;
c) a profunda crise do emprego, que atingiu as sociedades modernas
em seus diversos setores;
d) as transformações pós-fordistas das relações de trabalho e as
novas formas de sua regulação.

Em âmbito interno, o antagonismo que inicialmente era acentuado como uma


marca da relação entre o rural e o urbano, mostra-se cada vez mais superado. O meio rural
passa por um intenso processo de diversificação social e as interações sociais entre o rural e
o urbano vão produzindo novos desdobramentos e relações de complementariedades
entre eles.

181
Caro acadêmico, quando se fala dessas mudanças e transformações nos referimos
à capacidade cada vez maior do meio rural atrair diferentes atividades econômicas
e interesses sociais e ambientais. Com a descentralização econômica, o meio rural vai
abrigar o desenvolvimento, setores da indústria, do comércio e os processos comumente
encontrados no meio urbano vão também ser encontrados no meio rural como espaços
comerciais, industriais e de novas atividades econômicas.

A tendência com o desenvolvimento econômico foi encurtar as distancias


sociais entre o rural e o urbano, a população rural também foi incorporando práticas e
modos de vida do meio urbano quando passaram a melhorar as condições financeiras.
No entanto, naquelas regiões com precárias condições de vida, os indicadores sociais,
conforme foi dito no tópico anterior, foram acentuados e a pobreza aumentada.

Neste momento, abordaremos o processo de “modernização rural” proposto pelo


autor Marcel Jollivet (1997, p. 91), que usa esse conceito para explicar as transformações
ocorridas nas condições de vida dos habitantes do campo. Fatores como os apontados
anteriormente ampliaram as condições de interação entre populações rurais e
populações urbanas. A população agrícola passa crescer mesmo diante da reduzida
participação dessa população nas atividades da agricultura, isto acontece por efeito da
diversidade econômica que modifica a paisagem e o perfil da população no meio rural,
que também passa a abrigar novos moradores não agricultores (WANDERLEY, 2001).

Esse processo vai ser chamado pelo autor Bernard Kayser (1990, p. 81) de
“renascimento rural”, isto é, aqueles processos anteriores de mudança do campo para a
cidade em função do esvaziamento econômico passarão a dar lugar para um retorno
ao meio rural – isto “é o resultado da difusão no espaço, dos efeitos da modernização e
do enriquecimento do conjunto da sociedade”. Dentre as características desse processo,
veremos que o meio rural vai se mostrar um horizonte habitacional não apenas para
a população idosa e aposentada como um retorno às origens, mas para a população
jovem que está no auge de sua atividade produtiva.

Novos atores sociais vão entrar em cena no meio rural movidos pelo atrativo de
indústrias, serviços, ampliação das redes de comunicação, novas modalidades de
residência e estabelecimentos agropecuários. Todas essas mudanças também vão gerar
conflitos, principalmente entre aqueles moradores mais antigos e com seus próprios
modos de vida e os novos moradores que vem com uma bagagem cultural diferente e
trazem modos de vida que nem sempre são bem recebidos em seu novo ambiente de
vida.

É a partir dessa diversidade de atores que passam a conviver e compartilhar


o espaço rural, mas disputam narrativas sobre usos do espaço, forma de vida, controle
político e administrativo assim como determinantes da vida social marcadas por
dissonâncias entre disputas que podem se dar sobre “agricultura x outras atividades;
eficiência econômica x preservação ambiental; espaço produtivo x espaço de lazer;
produção x consumo etc.” (WANDERLEY, 2001, p. 215).

182
As principais tendências encontradas nesses conflitos estão concentradas em
três posições centrais, a saber, aquela que atribui prioridade à destinação produtiva do
meio rural, a segunda associa o meio rural a qualidade de vida e a terceira enxerga o
espaço rural como um bem coletivo, não limitado ao ambiente de moradia e qualidade
de vida mas como parte imprescindível de um patrimônio ambiental que deve ser
preservado em detrimento de avanços de práticas predatórias, sejam elas associadas a
dimensões produtivas ou não.

Nesse momento, a categoria natureza passa a ser novamente muito presente


nesse contexto, pois ela vem associada a uma “consciência ambiental” e uma forte
inclinação desses novos moradores nas noções de ecossistema e respeito à preservação
do meio ambiente. Segundo Wanderley (2001), essa “consciência” não é restrita ao
ambiente do meio rural, mas uma constante encontrada e compartilhada por atores
sociais que também fazem parte do mundo urbano. Todos eles alimentados pelas ondas
de mobilização coletivas, como o Maio de 1968, que passam a valorizar a vida no campo, a
natureza, o meio rural e o modo de vida camponês.

DICA
Que tal assistir a um documentário sobre o meio ambiente? Pegue esta dica, puxe a
pipoca e abra a sua a mente para entender as questões dramáticas que envolvem a
nossa relação com o tema. E, você já sabe, acadêmico, basta clicar no link: https://youtu.
be/mvcKijglrNk. Lançado pela “Plastic Oceans Foundation”, esse é um dos documentários
sobre meio ambiente mais relevantes da atualidade, por mostrar os impactos causados
pelo plástico em todos os ecossistemas. No entanto, além disso, cria a consciência de
que o descarte incorreto do material não é um problema individual, o local, ou seja,
quando não nos percebemos como uma enorme rede, totalmente conectados, os
prejuízos à natureza (e a nós mesmos) é avassalador. Partindo da teoria de que os
oceanos são arrastados por cinco grandes correntes, fica fácil compreender que o lixo
dos rios e praias acabam formando as chamadas “ilhas de plástico” – locais visitados pelos
membros da organização britânica e retratados em imagens impactantes.
Além disso, a obra nos faz refletir sobre como isso acaba retornando ao
nosso prato, já que os peixes acabam ingerindo as substâncias tóxicas.
Uma baleia azul pigmeu jovem, filmada debaixo d’água no começo do
documentário (um pequeno spoiler), não deixa dúvidas. não há como
se esquivar da urgência de mudar hábitos ao observar essa cadeia
pouco sustentável. Dirigida e roteirizada pelo jornalista e cineasta
Craig Leeson, com entrevistas conduzidas pela também jornalista
e a mergulhadora Tanya Streeter, a filmagem durou quatro anos e
ocorreu em 20 locais do planeta.

Duração: 1h40.
Onde assistir: Netflix.

183
O rural vai cedendo cada vez mais espaço para a categoria social “meio ambiente”,
para demarcar uma posição diante de um modelo econômico dominante que por meio
de suas atividades econômicas, como o agronegócio, comprometem a qualidade dos
elementos essenciais da vida como a água, a terra, o ar e os povos tradicionais que são os
mais afetados pelo avanço de práticas predatórias sobre suas reservas.

Uma parcela cada vez maior dos agricultores atentos e afinados com a
preservação do meio ambiente passam a defender essas pautas. Do mesmo modo que
será possível encontrar trabalhadores industriais, agropecuários e de classe média,
que vivem no campo e que têm como projeto essa concepção “produtiva” para suas
propriedades, sem implicar vínculo algum com uma demanda de preservação ao meio
ambiente (WANDERLEY, 2001).

Assim, acadêmico, considere que a novas ruralidades trazem problemáticas


diversas sobre formas de habitar, se relacionar, produzir e consumir, mas considerando
sempre que esse rural está situado num lugar de disputas políticas e econômicas no qual os
agricultores têm se tornado cada vez minoritários e que as lutas sociais que vem sendo
feitas colocam como principal demanda o direito à vida, à terra e ao seu modo de vida.

Acadêmico, se pudermos entender melhor as novas ruralidades, no próximo


tópico iremos nos aproximar de uma abordagem das novas urbanidades.

3 NOVAS URBANIDADES
Caro acadêmico, segundo o pesquisador Michael M. Bell (1992), que estava
interessado em entender as dinâmicas que poderiam surgir para definir as fronteiras
entre o rural e o urbano, desenvolveu um importante estudo da comunidade rural de
Childerley, localizada próximo de Londres, em que observou a partir da proximidade o
que deveria ser considerado para definir uma localidade como rural ou urbana. Partiu,
então, da percepção por parte dos seus moradores do lugar, suas relações e os sentidos
sociais atribuídos às práticas vividas naquele trânsito, propondo então o uso do termo
continuum para se referir a essa identidade construída pelos próprios moradores das
relações que eles mantêm com o mundo urbano, mesmo apostando em diferenças
entre esses universos, os moradores de Childerley são enfáticos em dizer que a vida no
espaço rural permitiria uma melhor qualidade de vida para eles, que não queriam habitar
subúrbios e nem viver a dinâmica urbana inteiramente.

Esses moradores privilegiaram a qualidade de vida, a relação com a natureza


e o estilo de vida associado ao campo como qualificadores dessa decisão de morar no
campo e adotar um modo de vida que possa se aproximar de hábitos do passado, “o
continuum rural-urbano permanece uma importante fonte de legitimação, motivação,
compreensão e identidade” (BELL, 1992, p. 79). Essa análise permite entender que ambas
as localidades mantêm suas particularidades, mas que algumas pessoas tem preferido
adotar o campo como um horizonte de autorrealização e estilo de vida, mantendo
184
uma visão inclusive do sentido social desse deslocamento, pois alguns moradores
já estabelecidos no contexto rural reclamam a chegada dos novos moradores que
são acusados de estabelecer com o mundo rural uma relação artificial e privilegiada
associadas ao status de classe e não como uma relação de pertencimento, de identidade
e de construção de vínculos comunitários e de reciprocidade como os encontrados nas
comunidades descritas nas Unidades anteriores.

Esses são os traços dos tipos de tensões que vão se construindo nessa interação
entre moradores oriundos do mundo urbano em direção ao mundo rural. Nesse sentido,
podemos afirmar que as questões conflituosas vão envolver não só a disputa pela terra,
mas também um campo de valores, moralidades e sentidos sociais desse ambiente.

Muitas vezes dinâmicas desse tipo são encobertas pela dinâmica da agroindústria
e do agronegócio, outra importante tensão e geradora de conflitos ainda mais graves
entre o rural e o urbano. Na verdade, a lógica mobilizada pelos moradores locais de
Childerley revela um conteúdo similar encontrado entre moradores de comunidades
rurais no Brasil, que articulam entre suas críticas o fato de que o agronegócio e as
pessoas associadas a ele, querem promover um tipo de desenvolvimento descolado da
percepção dos moradores locais, afastados das práticas de preservação da diversidade e
de respeito ao meio ambiente.

Os povos e comunidades tradicionais veem no agronegócio uma concentração


exagerada de terras, um fator de destruição das fontes e recursos naturais e ainda uma
influência negativa nas formas de se relacionar entre si, sem incentivar a economia
local, o desenvolvimento sustentável, sem respeitar à diversidade e a identidade dos
moradores locais: o que se observa é uma crítica ao modo de produção do agronegócio
que impacta na produção e reprodução da miséria social, da escassez de recursos e da
depredação do ambiente natural com uso exploratório e intensificado daquele lugar.
Isso também impacta no desperdício de recursos, fragilidade nas leis ambientais, nas
leis trabalhistas, na obstrução de uma agricultura familiar e na produção de toneladas
de alimentos que não chegam para a população local, mas pelo contrário amplia
a pobreza, isto é, usa os recursos da localidade, mas para extrair suas riquezas e suas
potencialidades para acúmulo de riqueza e exploração do meio ambiente tornando as
terras improdutivas e degradando a diversidade da fauna e da flora.

185
DICA
Uma boa dica de filme sobre o tema das terras improdutivas é Chão,
dirigido por Camila Freitas. Trata-se de um interessante documentário
brasileiro de 2019.

Sinopse: em terras pertencentes a uma fábrica de cana-de-açúcar, o


Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra pressiona o governo
a fazer uma reforma agrária e assentar as famílias acampadas.
Enquanto os conservadores ganham mais espaço do que nunca no
país, essas famílias sonham com a autodeterminação.

Fonte: https://mubi.com/pt/films/landless. Acesso em 31 ago. 2022.

Onde parece haver uma uniformização crescente e irreversível, po-


demos estar diante, também, de uma crescente diferenciação de
formas culturais de vida e modos sociais de trabalho no campo.
Comunidades indígenas ampliam suas áreas de espaços-reservas
homologadas e, pouco a pouco e perigosamente, algumas delas se
integram a uma economia regional de excedentes. Comunidades ne-
gras rurais quilombolas (bem mais do que contamos ou imaginamos
até agora) conquistam o direito de existirem em suas terras ancestrais
de pleno direito. Comunidades camponesas reinventam estratégias
para se preservarem, transformando todo o necessário para que o
essencial de suas formas de vida não se perca. Acampamentos dos
movimentos sociais da reforma agrária cobrem de lonas pretas tanto
os espaços estritos das beiras de estradas, quanto as terras de fa-
zendas improdutivas e ocupadas. Um campesinato modernizado, em
parte cativo, mas em parte ainda livre diante do poder do agronegócio,
não apenas sobrevive, mas se reproduz com sabedoria (BRANDÃO,
2007, p. 42).

A modernização da agricultura foi intensificada e o agronegócio tem sido o


principal ator nas transformações que trouxeram prejuízos às populações rurais. À medida
que o campo se modernizava com a utilização de máquinas e técnicas de produção para
trabalhar em escala industrial, uma grande parte da classe trabalhadora foi perdendo
espaço porque suas tarefas foram sendo substituídas pelo uso de máquinas, pois a
modernização também requer uma mão de obra com novas habilidades e qualificação
profissional, o custo de vida também foi atingido se tornando mais caro e aqueles pequenos
produtores rurais que permaneceram no campo precisaram vender sua mão de obra para
sobreviver e melhorar a renda. Uma parte daqueles trabalhadores que foram expropriados
de suas terras pela modernização e pela concentração fundiária se tornaram “boias-frias”,
um tipo de trabalhador volante e com salários muito baixos, aliás também afetados pelos
processos migratórios muitos se deslocaram em direção às grandes cidades e centros
industriais.

186
O uso intensivo de tecnologia ampliou a concentração de terras, impedindo as
comunidades tradicionais de usufruírem dos recursos e dos seus modos de produção
para sobreviver, passaram a sofrer com invasões de suas terras, contaminação de
água, desmatamento e populações indígenas cada vez mais ameaças de morte e
desaparecimento. Essas consequências mais imediatas e que ganham repercussão na
mídia ainda não traduzem outros fatores desencadeados por um modo de produção
predatório, por exemplo, a mudança climática, cujos efeitos se dão sobre o regime de
chuvas, desertificação, desaparecimento de espécies, seca em territórios agrícolas, até
consequências políticas e mercantis como a perda de mercado e investidores quando
investidores internacionais preocupados com a preservação das condições ambientais,
assim como alinhados com uma visão de respeito aos povos e comunidades tradicionais
recusam acordos comerciais e cortam investimentos no país.

Por fim, acadêmico, cada vez mais vemos uma relação entre práticas do meio
rural e do meio urbano em interação, se os processos de intensa urbanização criaram
novos modos de viver, habitar e produzir no meio urbano com a presença intensa de
indústrias e da criação de um espaço urbanizado para atender essa nova forma de
produzir, trabalhar e consumir, também vamos perceber que o passar do tempo e o
avanço em novas formas de comunicação e tecnologia o meio rural passará a ser cada
vez mais atingido pelos efeitos desse ritmo de produção capitalista que não se associa
a uma concepção sustentável de respeito às práticas nativas de produção, nem tampouco
se interessa pelo respeito às legislações como a Constituição Federal de 1988, que traz
em seu bojo o direito às terras e à vida. Atualmente, há inúmeros conflitos pelos quais
passam esses povos e comunidades tradicionais como os Kaiowá e os Guarani de Mato
Grosso do Sul, tendo a demarcação de 24 terras desde a CF/1988, até recentemente
detinham a posse de 26% de sua área. Para encerrar nossa abordagem desses conflitos
aproveite a leitura complementar.

187
LEITURA
COMPLEMENTAR
PAZ ENTRE AGRONEGÓCIO E DIREITOS INDÍGENAS?
Acabar com as ilegalidades é necessário, mas não suficiente

Manuela Carneiro da Cunha

Uma guerra está em curso contra os povos indígenas. Uma guerra que reúne
vários antagonistas, entre eles alguns setores do agronegócio. Para entrever um cessar-
fogo, uma trégua nessa disputa, achei que devia tentar entender a perspectiva desses
setores. Guiei-me por um livro muito instrutivo que prefaciei. Formação Política do
Agronegócio, de Caio Pompeia (a ser lançado pela editora Elefante). Visto de fora, o
agronegócio se afigura monolítico. “Agro é tudo”, diz o bordão.

A construção de uma noção unificadora da atividade tem sido exitosa do ponto


de vista da visibilidade e influência política, mas parece não ter superado as grandes
diferenças que há entre seus segmentos: os interesses e a cultura política dos grandes
e médios produtores do campo, por exemplo, nem sempre coincidem com os das
indústrias, como revelam as disputas entre sojicultores e tradings, para ficar em um
caso exemplar.

A criação sucessiva de organizações, cujas hegemonias acabam se revelando


passageiras, é outro indicador dessas diferenças. Até a chamada bancada ruralista
no Congresso, por mais que siga as diretrizes recebidas por meio do Instituto Pensar
Agropecuária (IPA), parece em alguma medida distinta do resto das representações do
agronegócio. Quem está de fora percebe certa diferença, um gradiente. De um lado,
um conjunto de atores mais imediatistas e bastante imunes a pressões externas, que
parece incluir parte relevante da agricultura patronal e, em certa medida, das indústrias
das quais ela é cliente.

De outro lado, agentes empresariais mais sensíveis a valores ambientais e de


direitos humanos. Mesmo assim, para evitar rupturas, os diferentes grupos preferem
se apresentar publicamente como um bloco indiviso. Pode-se dizer que nenhum
presidente brasileiro de 1990 até 2018 deixou de acolher demandas de associações
do agronegócio, mas nenhum parece tê-lo feito por iniciativa própria e inteira adesão.
Dizem que Fernando Henrique Cardoso se sentiu incomodado ao promulgar, em 1996,
um novo decreto que abria espaço para o contraditório no processo de demarcação e
homologação de terras indígenas.

188
Luiz Inácio Lula da Silva, por sua vez, deu uma no cravo e outra na ferradura, ora
atendendo aos interesses dos produtores, ora os contrariando, o que levou o seu ministro
da Agricultura, Roberto Rodrigues, vinculado ao agronegócio, a se demitir do governo, em
2006. A inação de Dilma Rousseff, quanto às demarcações de terras indígenas, apesar dos
reparos feitos por ela nas últimas horas de seu governo, e a amizade que cultivava com
Kátia Abreu – que se licenciou da presidência da Confederação da Agricultura e Pecuária
do Brasil (CNA), a qual acabou perdendo, para assumir o Ministério da Agricultura – não
foram, porém, suficientes para que a presidente obtivesse o apoio do setor.

Michel Temer, por sua vez, aderiu com manifesto entusiasmo ao programa do
agronegócio, seja por convicção, seja por ter se tornado devedor e refém dos votos
da bancada ruralista no Congresso para ajudar a obstruir os pedidos de abertura de
processos contra ele. Em seu governo foi extinto o Ministério do Desenvolvimento Agrário,
que cuidava da agricultura familiar, e ressuscitado um parecer da Advocacia-Geral da
União (AGU), de que falarei mais adiante, que estendeu a toda a administração pública um
entendimento e condicionantes espúrias para as demarcações de terras indígenas.

Mesmo assim, por mais que a influência política do agronegócio tenha se


ampliado, a ligação dos governos com as organizações do setor nunca foi irrestrita… Até
recentemente. Nenhum governo, até 2018, em que pesem suas práticas e concessões,
apregoou ser contrário aos direitos indígenas e ambientais. Com Jair Bolsonaro isso
mudou: o discurso, as medidas provisórias e as omissões do atual presidente são
abertamente anti-indígenas e antiambientalistas, o que repercutiu favoravelmente no
conjunto imediatista do agronegócio: o chamado Dia do Fogo – em 10 de agosto de 2019,
quando incêndios foram provocados na região amazônica para “mostrar ao presidente”
– o que evidenciou como o discurso de Bolsonaro vinha sendo percebido.

Com o novo governo, espalhou-se também o entendimento de que as terras da


União invadidas, notadamente as indígenas, seriam regularizadas a favor de invasores. Isso
fomentou a grilagem direta ou por pessoas interpostas, como no caso de fazendeiros que
doavam ou vendiam barato a agricultores pobres lotes de terras invadidas, visando criar
assim um “problema social” e um fato consumado, na eventualidade de uma expulsão.
Formou-se verdadeira corrida a Terras Indígenas (TIs) e a Unidades de Conservação (UCs).

Além disso, o poder de polícia e de intervenção de órgãos do Estado foi


publicamente enfraquecido e reduzido por vários meios. Madeireiros desmataram
seletivamente em terras indígenas sem medo da fiscalização, enquanto funcionários
do Ibama, órgão federal responsável por zelar pelo meio ambiente, eram exonerados
porque, cumprindo a lei, destruíram maquinário de verdadeiras empresas de garimpagem
atuando em terras indígenas. Nessas invasões, o desmatamento foi de tal monta
que ultrapassou em muito a taxa geral na Amazônia: o agronegócio, com a chegada
de Bolsonaro à Presidência, finalmente se achou no centro do governo, ocupando
ministérios essenciais. Até o Ministério do Meio Ambiente e a Fundação Nacional do Índio
(Funai), que o Congresso impediu que fossem engolidos pelo Ministério da Agricultura,
passaram para o comando de aliados do setor.

189
Como escreveu recentemente a ex-subprocuradora-geral Deborah Duprat,
o ministro do Meio Ambiente tem um currículo contra o ambiente e o presidente da
Funai, um currículo contra os índios. E, quando se protesta contra esses conflitos
de interesse e as inconstitucionalidades que promovem, recebe-se de membros
do Executivo esta resposta, como se resposta fosse. “Esqueceram de que um novo
presidente foi eleito?” Sim, um novo presidente, com programa abertamente anti-
indígena e anticonservacionista, foi eleito, isso é incontestável. No entanto, acima dele,
está a Constituição Federal, o que é igualmente incontestável. Vem daí a importância
cada vez mais clara e, esperemos, duradoura, do Supremo Tribunal Federal, guardião
da Constituição. Com Bolsonaro, que ideologicamente se alinha à União Democrática
Ruralista (UDR), o agronegócio não só está no governo, como sua ala à extrema direita
está mais atuante: o presidente da UDR, Luiz Antônio Nabhan Garcia, almejava ser
ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Impedido, por razões pragmáticas,
de colocá-lo no comando, Bolsonaro confiou-lhe a Secretaria Especial de Assuntos
Fundiários desse mesmo ministério.

Garcia tem acesso direto ao presidente. Sua atuação é consistente. ele se


esforça para facilitar a regularização fundiária, sobretudo na Amazônia, em particular
por meio da autodeclaração que não é devidamente verificada nem pela União,
nem pelos estados. Com isso, abre-se espaço para um maior número de fraudes. A
autodeclaração, cada vez que é autorizada, tem levado a irregularidades. É o caso do
Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar), criado em 2012. Na época, foi
informado expressamente que a inscrição no Sicar com dados fornecidos pelo dono
presumido da área não valia como reconhecimento de propriedade ou posse, e que as
declarações dos supostos proprietários seriam validadas pelo órgão competente.

Mas não foi isso o que ocorreu. Ao analisar dados do Sicar de maio de 2020,
o Ministério Público Federal (MPF) encontrou 9 901 áreas – 71% delas na Amazônia
Legal – identificadas como propriedades privadas, mas que tinham sobreposições
com terras indígenas ou áreas de proteção de índios isolados. Levantamento recente
mostra que mais de 12 milhões de hectares declarados ao Cadastro Ambiental Rural
estão sobrepostos a 297 terras indígenas, sendo mais de 60% delas terras demarcadas e
homologadas. A chamada “regularização fundiária” da Amazônia Legal, região na qual
grande quantidade de terras públicas ainda não tem destinação, vem sendo desde
2005 gradativamente facilitada por medidas provisórias transformadas em leis pelo
Congresso. A princípio, essa regularização destinava-se a titular pequenos posseiros
que, antes de 1º de dezembro de 2004, praticassem a agricultura familiar e estivessem
cultivando até 500 hectares, exclusivamente com a família.

Em 2009, com a medida provisória nº 458 (transformada na Lei nº 11952, do


mesmo ano), e a primeira de sucessivas medidas provisórias apelidadas de MP da
Grilagem, a área máxima passou a ser de 1,5 mil hectares, a exigência relacionada à
agricultura familiar desapareceu e a exploração da área passou a permitir a inclusão
de assalariados. A Procuradoria-Geral da República impetrou uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade por “privilégios injustificáveis em favor de grileiros que, no passado,

190
se apropriaram ilicitamente de vastas extensões de terra pública”. Em 2017, no governo
Temer, outra lei ampliou a área máxima para 2,5 mil hectares, diminuiu a exigência
de antiguidade da ocupação para 22 de julho de 2008 e autorizou que o beneficiário
fosse uma empresa. Já no governo Bolsonaro, a medida provisória 910/2019, apelidada
novamente de MP da Grilagem, reduziu mais uma vez a exigência da antiguidade da
ocupação – para até 5 de maio de 2014. Felizmente, o Congresso deixou caducar o
prazo para a votação dessa MP, embora tenha encaminhado um projeto de lei sobre o
mesmo tema. Na esteira do Executivo federal, o governo do Pará promulgou no mesmo
espírito, em julho de 2019, uma nova lei de regularização fundiária. Essa sucessão de
leis gerou um crescente incentivo à grilagem de terras, sobretudo na Amazônia, e várias
possibilidades de concentração fundiária.

Até a malograda MP 910 de Bolsonaro contribuiu para isso, enquanto não era
barrada no Congresso: o presidente tentou, com a medida provisória publicada em seu
primeiro dia de governo, atribuir à Secretaria Especial de Assuntos Fundiários, já encabeçada
por Garcia, a função de reconhecimento de terras indígenas, tarefa que é da alçada da Funai.
Embora o Congresso tenha barrado a medida, Garcia manteve sua influência sobre a
questão: outro mecanismo que favorece a grilagem reside no processo de regularização
fundiária. Esse processo se inicia com uma autodeclaração georreferenciada, que o
Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) deve verificar com sensoriamento remoto, mas
também com vistoria presencial antes de encaminhar a titulação.

Essa vistoria em 2019 não foi feita nem uma vez sequer: o remédio a esse
estado de coisas que acaba de ser publicado no Diário Oficial de 3 de dezembro de 2020
é assombroso. propõe-se delegar as vistorias a agentes municipais, quando é notório
que eles são muito mais sujeitos a pressões locais: outra forma de verificação oficial das
pretensões à regularização fundiária se baseia na consulta do Sigef, descrito como “uma
ferramenta eletrônica desenvolvida para subsidiar a governança fundiária do território
nacional com a certificação do georreferenciamento dos imóveis rurais”. A ideia é evitar
entre outras sobreposições aquelas com áreas indígenas, áreas militares e unidades
de conservação. Uma medida particularmente danosa foi a instrução normativa nº 9,
de 16 de abril de 2020, da Funai. Coincidência ou não, foi editada no mesmo dia em
que o ministro do Meio Ambiente, na assombrosa reunião ministerial de 22 de abril,
recomendou medidas infralegais “para passar a boiada”. Essa instrução normativa, entre
outras maldades, suprimia do Sigef todas as terras indígenas ainda não homologadas.
Trata-se de uma interpretação errônea e maliciosa do que venham a ser as TIs. Terras
indígenas têm sua existência reconhecida diretamente no artigo 231 da Constituição e,
por isso, não dependem de regularização para serem reconhecidas.

A sua regularização fundiária com demarcação e homologação, uma obrigação


constitucional da União, é proteção importante, mas costuma se arrastar por muito tempo
e passa por vários estágios, com limites já georreferenciados, antes da demarcação final.
Eliminar essas TIs com perímetro já georreferenciado do cadastro do Sigef é escandaloso.
significa que o Sigef não poderá sequer levar em consideração os limites dessas terras
indígenas para evitar sobreposições e se opor a pretensões de regularização fundiária de

191
invasores. A instrução normativa nº 9 da Funai é, portanto, flagrantemente inconstitucional.
Ações judiciais impetradas por membros do Ministério Público Federal nesse sentido já
obtiveram uma sentença favorável e suspensões liminares em vários tribunais federais
regionais, mas a vigência provisória dessa instrução normativa, enquanto não se
generaliza sua suspensão, já permitiu abusos vários: o artigo 231 da Constituição de
1988 deixa claro que o direito dos povos indígenas às suas terras é originário, ou seja, é
anterior à própria Constituição.

As terras indígenas não são criações nem concessões do Estado: o que compete
constitucionalmente ao Executivo é regularizar essas terras e protegê-las, além de, no
prazo de cinco anos, demarcá-las e homologá-las. Sendo assim, por não ter concluído
essas demarcações e homologações, a União está inadimplente há mais de 27 anos. A
Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), entretanto, produziu uma inversão nesse
raciocínio. A cada quatro anos, programas e propostas das principais organizações do
agronegócio são endereçados a candidatos à Presidência da República ou a presidentes
recém-empossados. Nos documentos, a questão das terras indígenas, de quilombolas
e comunidades tradicionais costuma figurar num item sempre presente, o da segurança
jurídica, entendida geralmente como a segurança fundiária dos agricultores e pecuaristas.

Nos pleitos endereçados pela Abag aos presidenciáveis em 2010 e 2014, o prazo
para a demarcação das terras indígenas é interpretado como tendo início na data da
promulgação da Constituição de 1988 e término legal cinco anos depois: ou seja, no
argumento bizarro da associação de agribusiness, as demarcações só poderiam ser feitas
até 1993! Na prática, o prazo que a União não cumpriu vira-se contra o direito originário
dos povos indígenas: o documento de 2010, intitulado Propostas do Agronegócio para o
Próximo Presidente da República, afirma o seguinte.

Outra questão de insegurança jurídica diz respeito à ameaça contínua de


expropriação de áreas consideráveis de produção agrícola sob o argumento de
remanescentes comunidades quilombolas e de demarcação de reservas indígenas. A
Constituição de 1988 delimitou o prazo de cinco anos para que se concluísse o processo
demarcatório e passados vinte e dois anos ainda persiste a ameaça de que propriedades
venham a ser desapropriadas por estes motivos.

Até agora, arrolei sobretudo ilegalidades e fraudes flagrantes, e não há dúvida


de que, se a legalidade imperasse, estaríamos em muito melhor posição. No entanto,
não basta. Em sua guerra contra os direitos indígenas, de quilombolas e comunidades
tradicionais, atores ligados ao agronegócio têm também recorrido cada vez mais
à sua influência e organização para tentar alterar dispositivos legais, incluindo aí
normas, projetos de lei e até a Constituição. Além das medidas provisórias feitas pelo
Executivo, contam com projetos legislativos propostos pela Frente Parlamentar Mista
da Agropecuária, criada oficialmente em 1995, como desdobramento da formação, durante
a Constituinte, da chamada bancada ruralista.

192
Um dos temas recorrentes é o da introdução de interesses contrários nas
decisões sobre demarcações. Lembremos que as terras indígenas são de propriedade
da União: ora, um conjunto de propostas legislativas, até o momento em banho-maria
no Congresso, quer transferir as demarcações dessas terras do Poder Executivo – que
sempre cuidou disso, até para que as terras fiquem resguardadas das pressões dos
poderosos locais – para o Poder Legislativo. A mais conhecida é a Proposta de Emenda
à Constituição (PEC) nº 215, formulada em 2000, que quer transferir o poder de aprovar as
demarcações das terras indígenas da Funai para a alçada de senadores e deputados.
Entidades influentes do agronegócio propõem que outros interessados, inclusive outros
ministérios e representantes de governos estaduais ou municipais, façam parte da
instância que regulariza as terras indígenas.

Assim, no documento de propostas para os presidenciáveis de 2018 chamado O


Futuro é Agro. 2018-2030, o Conselho das Entidades do Setor Agropecuário (ou
Conselho do Agro), liderado pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil,
propôs “reestruturar a Funai, alterando suas competências e criando órgãos colegiados,
com a participação de outros entes públicos na deliberação sobre a realização de
estudos e a demarcação de terras indígenas, com assessoramento de equipes técnicas
multidisciplinares e isentas de ideologia”. [...]

Também estão preocupados com tudo o que corremos o risco de perder. a


diversidade de povos, a biodiversidade que eles asseguram, a floresta, a própria honra do
país. Não é só isso: os mundos, os modos de vida, os saberes dos povos tradicionais são
preciosos. Eles podem nos inspirar na tarefa de repensarmos nossa relação com o planeta.
Muitos desses povos consideram que os humanos não detêm direitos exclusivos nem
soberanos sobre seus territórios e que cada ser com o qual compartilham a terra, seja
ele planta ou animal, também tem direitos que precisam ser respeitados: há 32 anos,
uma Constituição nova traduziu a esperança de um país mais justo. Agro não é tudo.
Está na hora de chegar a uma conciliação e pacificar as relações entre os vários povos
que compartilham o Brasil.

*Desde maio de 2020, uma decisão liminar do ministro Edson Fachin resultou na
suspensão do parecer 001 da AGU, mas o julgamento plenário do STF sobre o marco
temporal, previsto para final de outubro do ano passado, ainda não havia sido remarcado
até o momento em que finalizei este texto.

Fonte: https://bit.ly/3eNWkkU. Acesso em. 15 ago. 2022.

193
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:

• A questão ambiental a partir das disputas e os conflitos que ensejam essa questão no
Brasil a partir da leitura e análise de conflitos em torno do desenvolvimento de modos
de produção diferentes.

• Alguns dos principais atores sociais envolvidos nas tensões que se localizam na relação
entre concepções de urbano e rural orientados pelas noções de “desenvolvimento” e
“progresso”, assim como perfis de ocupação da terra e as mudanças sociais ocorridas
nos modos de produção e formas de vida com a Revolução Industrial, o processo de
urbanização e os processos de deslocamento e reinvenção do mundo rural.

• As moralidades e os valores relacionados ao meio rural que são mobilizados pelos


moradores do meio urbano em busca de qualidade de vida, uma relação com a
natureza e o estilo de vida associado ao campo como qualificadores para migrar em
direção ao campo e adotar um modo de vida que possa se aproximar de hábitos do
passado, “o continuum rural-urbano permanece uma importante fonte de legitimação,
motivação, compreensão e identidade”.

• Mudanças também vão gerar conflitos, principalmente entre aqueles moradores mais
antigos e com seus próprios modos de vida e os novos moradores que vem com
uma bagagem cultural diferente e trazem modos de vida que nem sempre são bem
recebidos em seu novo ambiente de vida.

194
AUTOATIVIDADE
1 O pesquisador Michael M. Bell (1992), que estava interessado em entender as dinâmicas
que poderiam surgir para definir as fronteiras entre o rural e o urbano, desenvolveu
um importante estudo da comunidade rural de Childerley, localizada próximo de
Londres, em que observou a partir da proximidade o que deveria ser considerado para
definir uma localidade como rural ou urbana. Sobre essa relação o autor propôs o uso de
um conceito, assim assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) O autor utiliza o termo continuum para se referir a essa identidade construída pelos
próprios moradores das relações que eles mantêm com o mundo urbano.
b) ( ) O mundo rural está em vias de extinção, sua paisagem vai desaparecer e os seus
modos de vida foram modificados pelo que chamou de “sustentabilidade”.
c) ( ) As mudanças ocorridas com a Revolução Industrial promoveram um maior
reconhecimento da identidade rural que foi muito valorizada e tornada exemplo do
que o autor chamou de “modo de vida futurista”.
d) ( ) O autor chamou esse processo de “mundialização” porque provocou uma
revolução nos modos de produção momento em que surgiram a agricultura
familista e o campesinato de massas.

2 Os povos e comunidades tradicionais veem no agronegócio uma concentração


exagerada de terras, um fator de destruição das fontes e recursos naturais e
ainda uma influência negativa nas formas de se relacionar entre si, sem incentivar
a economia local, o desenvolvimento sustentável, sem respeitar à diversidade e a
identidade dos moradores locais: o que se observa é uma crítica ao modo de produção
do agronegócio. Com base nessas relações, analise as sentenças a seguir:

I- O que se observa é uma crítica ao modo de produção do agronegócio que impacta na


produção e reprodução da miséria social, da escassez de recursos e da depredação do
ambiente natural com uso exploratório e intensificado daquele lugar.
II- O proprietário do agronegócio é aquele considerado o principal ator social dessa
relação, porque dele que se extrai a mais-valia, explorando seu tempo de trabalho e
recursos para acúmulo do campesino.
III- Há desperdício de recursos, fragilidade nas leis ambientais e leis trabalhistas, na
obstrução de uma agricultura familiar e na produção de toneladas de alimentos que não
chegam para a população local, usa os recursos da localidade, mas para extrair suas
riquezas e suas potencialidades explorando o meio ambiente, tornando as terras
improdutivas e degradando a diversidade da fauna e da flora.

195
Assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 O uso intensivo de tecnologia pelo agronegócio obedecendo a lógica de acumulação e


extração de riqueza ampliou a concentração de terras, impedindo as comunidades
tradicionais de usufruírem dos recursos e dos seus modos de produção para sobreviver,
passaram a sofrer com invasões de suas terras, contaminação de água, desmatamento
e populações indígenas cada vez mais ameaças de morte e desaparecimento. Com
base nessas consequências mais imediatas e sua repercussão, classifique V para as
sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) Há outros fatores desencadeados por um modo de produção predatório, por exemplo,


a mudança climática, cujos efeitos se dão sobre o regime de chuvas, provocando
desertificação, desaparecimento de espécies e seca em territórios agrícolas.
( ) A sesmaria é responsável pela congregação de todos os povos nativos e busca
articular uma harmonia com uma parte daqueles trabalhadores que foram
expropriados de suas terras pela modernização e pela concentração de terras.
( ) Há consequências políticas e mercantis como a perda de mercado quando investidores
internacionais preocupados com a preservação das condições ambientais, assim como
alinhados com uma visão de respeito aos povos e comunidades tradicionais recusam
acordos comerciais e cortam investimentos no país.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 Compreender a diversidade cultural por meio dos territórios e práticas sociais do meio
rural brasileiro a partir de uma perspectiva antropológica é sem dúvida uma maneira
interessante de olhar para fenômenos que estão em nosso cotidiano, seja por meio
das matérias de jornais, dos alimentos que utilizamos, do lugar onde moramos e de
muitas outras maneiras. Nesse sentido, as mudanças recentes no mundo rural podem
ser explicadas por efeitos das novas relações econômicas e políticas marcadas pelos
processos de internacionalização da produção agrícola e de valorização do mundo rural.
Apresente os quatro processos mais gerais mencionados pela autora Maria Wanderley.

196
5 O meio rural passará a ser cada vez mais atingido pelos efeitos desse ritmo de
produção capitalista que não se associa a uma concepção sustentável de respeito às
práticas nativas de produção, nem tampouco se interessa pelo respeito às legislações
como a Constituição Federal de 1988, que traz em seu bojo o direito às terras e à vida.
Atualmente, há inúmeros conflitos pelos quais passam esses povos e comunidades
tradicionais como os Kaiowá e os Guarani de Mato Grosso do Sul, tendo a demarcação de
24 terras desde a CF/1988, até recentemente detinham a posse de 26% de sua área.
Neste contexto, disserte sobre a importância do reconhecimento e demarcação de
terras indígenas.

197
198
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