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Representações do

Corpo na
Arte e
Processos
Criativos
Prof.ª Andréa Cristiane Machado Moraes
Prof. Daniel Fraga de Castro
Prof. Edmar Galiza dos Santos

Indaial – 2022
1a Edição
Elaboração:
Prof.ª Andréa Cristiane Machado Moraes
Prof. Daniel Fraga de Castro
Prof. Edmar Galiza dos Santos

Copyright © UNIASSELVI 2022

Revisão, Diagramação e Produção:


Equipe Desenvolvimento de Conteúdos EdTech
Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada pela equipe Conteúdos EdTech UNIASSELVI

C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI.


Núcleo de Educação a Distância. MORAES, Andréa Cristiane Machado.

Representações do Corpo na Arte e Processos Criativos. Andréa Cristiane


Machado Moraes; Daniel Fraga de Castro; Edmar Galiza dos Santos. Indaial - SC:
UNIASSELVI, 2022.

261p.

ISBN 978-65-5466-198-0
ISBN Digital 978-65-5466-199-7

“Graduação - EaD”.
1. Corpo 2. Arte 3. Criatividade.

CDD 792.92
Bibliotecário: João Vivaldo de Souza CRB- 9-1679

Impresso por:
APRESENTAÇÃO
Olá, acadêmico!

Seja bem-vindo à disciplina de Representações do Corpo na Arte e Processos


Criativos. Neste estudo, aprenderemos a importância do corpo em várias perspectivas
diferentes e suas relações com os processos artísticos.

O corpo humano não pode ser visto de maneira unívoca. Nesta disciplina, será
possível estudar os processos criativos e estéticos que se relacionam com o corpo
durante a história das ideias. Todo arte-educador precisa reconhecer o corpo do ponto
de vista da ciência, da cultura e das artes. Essa disciplina ensinará a reconhecer como
cada ciência ajuda a pensar o corpo, sua relação com as artes e o modo como a dança
e o teatro ajudam na sua pedagogia.

Na Unidade 1, abordaremos o trabalho artístico por meio de seus fundamentos


estruturais. A obra de arte se caracteriza pelo uso da imaginação aplicado a algum meio
que detenha alguma materialidade. O que acontece quando esse meio é o próprio corpo?
Nesta unidade, você vai estudar o que é o corpo humano e suas múltiplas facetas. Pensar
o significado da entidade e seus inúmeros usos pela vivência humana. Nesta primeira
parte, pretende-se propor uma visão geral da ideia de criatividade e de representação,
entendendo o corpo como estrutura básica. Para isso, será feita uma reflexão sobre os
termos fundamentais para um artista do corpo, seja ele oriundo do teatro, ou da dança. Um
corpo pode ser representação de algo, mas é sempre execução de si.

Em seguida, na Unidade 2, pensaremos a “história” e a “geografia” do corpo


humano, mesmo que alguns pontos já tenham sido levantados anteriormente. Um
corpo não é algo que surge do nada e é desprovido de lugar e de tempo. Ao se pensar
sobre essa figura, deve-se considerar que os corpos de hoje tiveram um passado (ou
muitos) e ocupam uma dimensão (ou várias). Essas linhas que constituem os corpos
estão presentes nas várias práticas das artes. Para isso, será importante vislumbrar o
que as artes visuais, a música e o cinema podem oferecer para ajudar a pensar e a
refletir sobre essa sua multiplicidade que se processa em diferentes níveis.

Por fim, na Unidade 3, aprenderemos a pensar diretamente o corpo na área


artística em que reina com majestade: as artes cênicas. Analisando a função pedagógica,
será feita uma investida na área da dança verificando um pouco de sua história e de sua
prática, principalmente pensada sobre o foco da escola Vianna. Também será pensada
sua faceta teatral a partir de jogos e sua função educacional para o nível básico. O
processo pedagógico do corpo, sobretudo pela dança e pelo teatro, vê o corpo como
entidade autônoma e relevante precisa da arte para revelar-se como fenômeno original
e ser estudado por meios que transcendem o discurso da ciência pura.

Bons estudos!

Prof.ª Andréa Cristiane Machado Moraes


Prof. Daniel Fraga de Castro
Prof. Edmar Galiza dos Santos

GIO
Olá, eu sou a Gio!

No livro didático, você encontrará blocos com informações


adicionais – muitas vezes essenciais para o seu entendimento
acadêmico como um todo. Eu ajudarei você a entender
melhor o que são essas informações adicionais e por que você
poderá se beneficiar ao fazer a leitura dessas informações
durante o estudo do livro. Ela trará informações adicionais
e outras fontes de conhecimento que complementam o
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texto, aproveitando ao máximo o espaço da página – o que
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apresentamos também este livro no formato digital. Portanto,
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verá frequentemente o novo visual adquirido. Todos esses
ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos
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Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada!


SUMÁRIO
UNIDADE 1 - CORPO: REPRESENTAÇÃO E EXPRESSÃO...................................................... 1

TÓPICO 1 - O QUE É O CORPO?...............................................................................................3


1 INTRODUÇÃO........................................................................................................................3
2 DIMENSÃO BIOLÓGICA........................................................................................................4
3 DIMENSÃO CULTURAL....................................................................................................... 12
4 RELAÇÃO TRANSVERSAL ENTRE CIÊNCIA E CULTURA................................................ 20
RESUMO DO TÓPICO 1..........................................................................................................27
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................. 28

TÓPICO 2 - O CONHECIMENTO DO CORPO.......................................................................... 31


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 31
2 O POTENCIAL VIVO DO CORPO......................................................................................... 31
3 AS TÉCNICAS DO CORPO................................................................................................. 40
4 CRIATIVIDADE CORPORAL: AS ARTES CÊNICAS........................................................... 46
RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................... 55
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................. 56

TÓPICO 3 - CORPO CRIATIVO: REPRESENTAÇÃO E PERFORMANCE...............................59


1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................59
2 O QUE É UMA REPRESENTAÇÃO?.....................................................................................59
2.1 O QUE É PERFORMANCE?..................................................................................................................65
2.2 ENTRE O ESPETÁCULO E A EXPERIÊNCIA.................................................................................... 72
LEITURA COMPLEMENTAR.................................................................................................. 77
RESUMO DO TÓPICO 3.......................................................................................................... 81
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................. 82

REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 84

UNIDADE 2 — REPRESENTAÇÕES DO CORPO E A ARTE....................................................87

TÓPICO 1 — O CORPO NO TEMPO........................................................................................ 89


1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 89
2 HISTÓRIA DO CORPO........................................................................................................ 89
3 O CORPO NA HISTÓRIA..................................................................................................... 98
4 O CORPO NA ERA DIGITAL...............................................................................................107
RESUMO DO TÓPICO 1.........................................................................................................111
AUTOATIVIDADE................................................................................................................. 112

TÓPICO 2 - O CORPO NO ESPAÇO...................................................................................... 115


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 115
2 AS MULTIPLICIDADES CORPORAIS................................................................................ 115
3 A CENA E A ETNOLOGIA ..................................................................................................126
4 O CORPO MUTANTE.........................................................................................................133
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................139
AUTOATIVIDADE................................................................................................................ 140
TÓPICO 3 - O CORPO E AS ARTES......................................................................................143
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................143
2 PROCESSO CRIATIVO DO CORPO E A PINTURA.............................................................143
3 PROCESSO CRIATIVO DO CORPO E A ESCULTURA.......................................................149
4 PROCESSO CRIATIVO DO CORPO E A MÚSICA.............................................................. 157
4.1 O CORPO E A MUSICALIZAÇÃO NA CRIAÇÃO.............................................................................. 162
5 PROCESSO CRIATIVO DO CORPO E O CINEMA..............................................................163
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................ 172
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................178
AUTOATIVIDADE................................................................................................................. 179

REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 181

UNIDADE 3 — O CORPO E A CRIAÇÃO COMO PROPOSTA EDUCATIVA............................185

TÓPICO 1 — LINGUAGEM DO MOVIMENTO.........................................................................187


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................187
2 BREVE HISTÓRIA DA DANÇA..........................................................................................188
2.1 A DANÇA NA PRÉ-HISTÓRIA............................................................................................................189
2.2 A DANÇA NA ANTIGUIDADE.............................................................................................................191
2.3 A DANÇA NA IDADE MÉDIA............................................................................................................. 192
2.4 A DANÇA NA IDADE MODERNA...................................................................................................... 195
2.5 A DANÇA NA IDADE CONTEMPORÂNEA...................................................................................... 197
3 A ESCOLA VIANNA.......................................................................................................... 202
3.1 BREVE BIOGRAFIA DE KLAUSS VIANNA...................................................................................... 202
3.2 BREVE BIOGRAFIA DE ANGEL VIANNA....................................................................................... 203
3.3 BREVE BIOGRAFIA DE RAINER VIANNA..................................................................................... 204
3.4 A TÉCNICA DA ESCOLA VIANNA................................................................................................... 205
4 EXPRESSÃO CORPORAL COMO DISCIPLINA................................................................ 208
4.1 RUDOLF LABAN – O PRECURSOR DA EXPRESSÃO CORPORAL........................................... 209
4.2 O SISTEMA DE MOVIMENTO LABAN..............................................................................................211
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................215
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................216

TÓPICO 2 - O CORPO E O JOGO NA CRIAÇÃO...................................................................219


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................219
2 O QUE É O JOGO...............................................................................................................219
2.1 ENSINO DE ARTE PELO JOGO DO CORPO.................................................................................. 223
3 A EDUCAÇÃO BÁSICA E OS JOGOS CORPORAIS NO PROCESSO CRIATIVO............... 226
RESUMO DO TÓPICO 2....................................................................................................... 234
AUTOATIVIDADE................................................................................................................ 235

TÓPICO 3 - EDUCAÇÃO ESTÉTICA PARA CORPO............................................................ 237


1 INTRODUÇÃO................................................................................................................... 237
2 EDUCAÇÃO ESTÉTICA PELO CORPO............................................................................. 237
2.1 EDUCAÇÃO SOMÁTICA .................................................................................................................... 238
3 CORPO ORGÂNICO, ENERGIA E APRENDIZADO........................................................... 242
3.1 PROCESSOS CRIATIVOS E PEDAGÓGICOS PELO CORPO........................................................ 243
LEITURA COMPLEMENTAR............................................................................................... 252
RESUMO DO TÓPICO 3....................................................................................................... 256
AUTOATIVIDADE................................................................................................................ 257

REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 259
UNIDADE 1 -

CORPO: REPRESENTAÇÃO
E EXPRESSÃO

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• observar o próprio corpo e os corpos alheios como entidades de produção de sentido;

• conhecer e definir as capacidades corporais e suas potencialidades epistêmicas;

• entender as diferenças entre representação e execução do ponto de vista do corpo;

• compreender o conceito de corpo para além de dualismos e dicotomias.

PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – O QUE É O CORPO?


TÓPICO 2 – O CONHECIMENTO DO CORPO
TÓPICO 3 – CORPO CRIATIVO: REPRESENTAÇÃO E PERFORMANCE

CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
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1
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UNIDADE 1!

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2
UNIDADE 1 TÓPICO 1 -
O QUE É O CORPO?

1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, no Tópico 1 abordaremos os conhecimentos necessários para
a compreensão do que é o corpo. Na primeira parte desta unidade, iniciaremos o
trabalho discutindo os conceitos e os limites que podemos atribuir à palavra “corpo”:
sua configuração do ponto de vista científico, como entidade viva e estudada pelas
ciências biológicas. Esse estudo será contrastado com uma outra perspectiva: a dos
significados que o ser humano atribui ao seu fazer físico, em suas ideias de cultura. Para
que isso não seja tratado de uma forma cartesianamente simplória, pretende-se, por
fim, perceber como essas duas visões conseguem articular-se em dinamismo, de um
modo transversal, em que um aspecto é atravessado pelo outro.

Nesse sentido, será preciso compreender o corpo como o elemento humano


que permite uma prática epistemológica que lhe é própria. Deve-se entender seu
movimento e suas funcionalidades como maneiras autônomas de reconhecer o mundo
circundante, sem precisar construir conceitos intelectuais e abstratos. Um corpo cria
padrões na sua existência cotidiana e é a partir disso que ele pode conferir sentido
a sua vida total. Exploraremos essas formas de conhecimento que, muitas vezes, são
colocadas de lado pela maioria dos estudos acadêmicos.

Por fim, entraremos nas razões principais que motivam esse trabalho. Como
o corpo se apropria da realidade em termos de representação? De que maneira ele
consegue substituir um sentido pela sua ação e sua materialidade? Mais importante do
que isso será verificar que o corpo vale pela sua existência em execução direta; aquilo
que veio a se nomear performance nas últimas décadas do século XX. Um termo que
não se restringe ao que é utilizado pelas artes visuais, mas que trata de si como uma
experiência única.

Se você tiver um tempo e puder verificar o dicionário, vai descobrir que a primeira
definição da palavra corpo não é a mais óbvia. No Aurélio, consta como “[...] a parte
central ou principal (de um edifício [...])” (CORPO, 2008, p. 269-270). Um edifício, por
sua vez, é uma construção que serve para abrigar os seres humanos e suas atividades.

Assim, quando se fala em corpo se fala em algo muito maior do que a noção
comum de ser uma substância física ou estrutura de homem ou animal. O termo corpo
é um aspecto central da existência humana, que se mistura a todas as suas ações, sem
a qual não pode constar como vivo.

3
O próprio termo vem do latim, corpus, e designa, além da parte física, um
conjunto de elementos com algum tipo de unidade. O corpo humano deve ser entendido
como elemento essencial para tudo aquilo que é feito, pensado e sentido. Para pensar
os seus usos, em primeiro lugar precisamos entender esse seu caráter como uma
estrutura que potencializa tudo o que se pode imaginar. Precisamos entender como o
corpo é visto pela ciência.

2 DIMENSÃO BIOLÓGICA
Existimos em um mundo material. O que isso significa? Do ponto de vista
científico, matéria é toda substância que compõe um corpo, não importa seu estado:
sólido, líquido ou gasoso. Aqui, já aparece a palavra que vai acompanhar esta disciplina:
corpo. Nesse caso, ele se refere a tudo o que tem massa e volume, ou seja, que ocupa um
espaço no mundo. Tudo ao nosso redor é composto de átomos e moléculas (incluindo
nós mesmos!). Talvez estejamos acostumados a entender alguns conhecimentos
como automáticos, mas será impossível compreender o fato de ter um corpo se não
vislumbramos nossa constituição mais básica.

Se somos constituídos de matéria, devemos obedecer a algumas leis científicas


bastante básicas. Todos os corpos seguem os princípios descobertos por Isaac Newton
no que tange ao movimento (MOREIRA, 2005). De modo muito genérico: um corpo
tem a tendência a permanecer em repouso ou em movimento até que as forças atuem
sobre ele; a força sobre um corpo vem da quantidade de movimento relacionado a um
intervalo de tempo e ainda que para toda ação exista uma força igual e contrária em
reação. Todas essas leis estão presentes nos movimentos dos bailarinos e dos atores
quando se movimentam. Empurramos o chão com nossa força quando caminhamos e
desafiamos a gravidade quando saltamos. Isso está presente em todos os objetos da
matéria e lidamos com esses fatos todos os dias, queiramos ou não.

No entanto, esses conhecimentos englobam todos os corpos e não explicam


o mais fundamental: por que uma pessoa pode escolher se movimentar e dançar, e
uma pedra não consegue? Pergunta óbvia, mas, nessa brincadeira, reside o ponto
mais importante para pensar: o que diferencia um corpo vivo de um corpo qualquer?
As ciências biológicas trouxeram um conteúdo importante nesse sentido, ao tentar
responder o que compõe a vida e o que implica estar vivo.

A ciência é o discurso que nos ajuda a determinar o que é o fenômeno da vida.


Existem certas situações e comportamentos que um corpo vivo detém que não serão
encontrados na matéria bruta. Para ficar mais claro, é preciso entender, pela biologia,
o que pode ser determinado como processos essenciais vitais que tornam os seres,
desde as células até os humanos, passando pelos vegetais e pela complexa fauna,
diferentes dos objetos inanimados. São eles: metabolismo, responsividade, movimento,
crescimento, diferenciação e reprodução (DERRYCKSON; TOROTORA, 2016).

4
O metabolismo diz respeito a todos os processos físicos e químicos do corpo
que constituem elementos complexos ou os quebram em elementos mais simples. Da
mesma maneira que uma célula precisa manter uma harmonia química interna para se
manter coesa, assim é o corpo humano. Todo o processo de alimentação só é possível por
essas reações internas que lidam com os carboidratos e as proteínas. Esse é o processo
responsável por se obter a energia necessária para executar qualquer trabalho. Sem
energia, seria impossível para um artista realizar suas apresentações.

A responsividade é a capacidade de perceber mudanças e responder a elas;


também conhecida como excitabilidade, ou seja, receber e entender os estímulos que
possam surgir na superfície do próprio corpo. Essa habilidade de perceber o contorno é
muito importante para a orientação e para a decisão dos seres vivos.

No corpo humano, a simples sensação de um toque na pele ou voltar o rosto


para o lugar em que se escutou alguma coisa ilustra essa capacidade. Desprovidos
de sentidos, nenhum dançarino ou ator poderia absorver a realidade e interagir com
ela criativamente.

Seres vivos são criaturas capazes de movimentar-se. Trata-se da habilidade de


realizar o deslocamento do organismo inteiro, seja de suas células ou partes internas.
Qualquer troca de posição ou estado corporal que possa ser observada já demonstra
esse princípio vivo. Enquanto uma planta pode apenas se curvar ao sol, um animal
pode correr ou pular e um ser humano pode realizar tarefas complexas. Os corpos dos
artistas constroem suas artes pelas maneiras criativas que encontram em usar suas
possibilidades físicas de movimento.

Uma das consequências do metabolismo é o crescimento. Do ponto de vista


biológico, trata-se do aumento do tamanho do corpo em resultado pelo aumento do
tamanho das células ou pelo aumento de sua quantidade.

A passagem do tempo em nossa espécie humana mostra o resultado do


crescimento ao se observar o nascimento até a velhice. Considerando a forma que
um corpo alcança nos diferentes estágios de sua existência, ele aprenderá como se
comportar. Artistas e dançarinos precisam estar conscientes do modo como ocupam
seu espaço e de que maneira o tempo age sobre eles.

Um dos princípios vitais mais interessantes é o da diferenciação. Nas formas


de vida mais básicas, como as células, ele aparece quando elas saem de uma situação
não especializada e passam por um processo de desenvolvimento em que ganham uma
função. No ser humano, isso fica bastante evidente no caso das nossas células-tronco,
que servem de ancestrais para as diferentes formas que ganham com a formação
corporal ao se especializarem para criarem os distintos tipos de tecido e, assim, definir
sua morfologia e fisiologia. Toda transformação do corpo de uma situação neutra para o
desenvolvimento de uma função específica acarreta uma diferenciação. Para um artista
do corpo, esse conhecimento serve para reconhecimento de sua própria estrutura.

5
Por fim, a última característica que define o ser vivo é o da reprodução. Trata-se
da capacidade tanto de repor novas células por reparo ou troca quanto da possibilidade
de produzir um novo ser. Um corpo humano em bom funcionamento implica reconhecer
seu estado vital e procurar mantê-lo de modo estável, recompondo danos e recuperando-
se de doenças. Para um artista, a reprodução física não é uma questão direta, mas saber
como cuidar do seu corpo é fundamental para que possa atingir a perfeição artística.

Um corpo humano em estado de arte precisa estar em conformidade com


sua saúde. Um artista é como um atleta; precisa saber do seu funcionamento na sua
singularidade. Um corpo que não se mantém em pé não pode dançar. Um corpo que
não cuida da própria voz não pode falar. Isso sem considerar que todo corpo atual é
um herdeiro de todas as práticas do passado, como explicitou a teoria da evolução de
Charles Darwin.

A vida não existiu desde sempre; a Terra precisou encontrar condições materiais
muito específicas para sua existência relativamente estável. Inúmeras formas de vida
surgiram, sucederam-se e desapareceram até chegarmos ao momento atual. Para se
ter uma ideia e para ficar apenas com a figura humana; portanto, com uma estrutura
cerebral mais desenvolvida e bípede, o gênero homo data de, pelo menos, seis milhões
de anos atrás (BENTON, 2012). Qual é a relevância disso para o trabalho artístico de
atores e dançarinos? Isso significa que temos toda essa história natural presente nos
corpos humanos de hoje.

Postas todas essas características, pode-se observar, em detalhe, os atributos


potenciais do nosso corpo como um espécime do homo sapiens. Quando falamos de
corpo no sentido biológico, estamos falando da nossa capacidade para respirar, andar,
falar, dormir, lutar, fazer sexo, enxergar, escutar, comer, beber e pensar. Talvez todas essas
ações sejam óbvias para o leitor desavisado, já que as pratica desde muito tempo, mas
existe toda uma série de sistemas em funcionamento dentro dele que, mesmo que não
as veja, estão em atividade ininterrupta para que elas possam se efetivar. Todas as ações
realizadas pelos humanos não são absolutamente originais, mas heranças de todos os
primeiros hominídeos. Carrega-se, no DNA, todas as transformações que a espécie teve
de fazer para chegar até aqui e isso aparece na estrutura biológica. A partir de agora,
veremos, em termos mais diretos, as características dos sistemas vivos do ser humano.

Os processos internos do corpo influenciam nos comportamentos exteriores


e, por isso, um artista precisa estar minimamente consciente deles para que possa
realizar suas criações cênicas. Nesse sentido, passamos, agora, para o estudo básico
das funções biológicas do corpo humano que afetam as atitudes e as ações. O primeiro
exemplo é o da nossa homeostase; um processo de equilibração do interior do corpo
com o meio circundante. A existência do corpo não é automática; ele precisa de
uma regulação constante com o mundo exterior, cuidando das funções de entrada,
organização e saída de substâncias. Deixando mais claro:

6
A homeostasia do corpo humano é “desafiada” continuamente.
Algumas perturbações vêm do ambiente interno na forma de
agressões físicas como o calor intenso de um dia quente de verão ou
a falta de oxigênio suficiente para aquela corrida de 3.200 m. Outros
agravos se originam no ambiente interno, como o nível de glicose
sanguínea que cai muito quando a pessoa não ingere seu desjejum.
Os desequilíbrios homeostáticos também podem ocorrer por causa
de estresse psicológico no nosso ambiente social – as demandas
do trabalho e da escola, por exemplo. Na maioria dos casos, a
perturbação da homeostasia é moderada e temporária e as respostas
das células do corpo reestabelecem rapidamente o equilíbrio no meio
interno. Entretanto, em alguns casos a perturbação da homeostasia
pode ser intensa e prolongada, como no envenenamento, na
superexposição a temperaturas extremas, na infecção grave ou
em uma grande cirurgia. Felizmente, o corpo tem muitos sistemas
regulatórios que podem normalmente levar o ambiente interno ao
equilíbrio (DERRYCKSON; TOROTORA, 2016, p. 40).

Os sistemas regulatórios do corpo estão em constante ação e a atividade física


do dançarino e do ator se torna um elemento colaborativo para esse equilíbrio. O corpo
se estrutura nessas trocas e, para isso, configurou uma grande quantidade de elementos
que o compõem. Todas as partes do corpo com seus sistemas se entrecruzam e se
desenvolvem junto com as práticas corporais. Veremos como os outros elementos da
nossa biologia se relacionam e como são importantes para a natureza do movimento.

Por exemplo, o sistema ósseo é o responsável pelo suporte, pela estruturação


e pela proteção de todo o corpo. Ele serve como arcabouço dos movimentos pela
sua capacidade de dar sustentação. Composto por 206 ossos, a grande maioria é de
pares, com um membro para o lado direito e outro para o esquerdo. É a tração dos
músculos sobre os ossos que permite que o corpo humano consiga uma boa parte de
sua movimentação (DERRYCKSON; TOROTORA, 2016).

A maioria dos músculos esqueléticos fixa-se nos ossos e a sua contração é


o que torna o sistema determinante para os deslocamentos possíveis. Para entender
melhor, pense que estas são as alavancas do movimento, mas as articulações são os
pontos de apoio.

O sistema muscular, portanto, mostra-se como fundamental para todos os


tipos de movimento: desde a motricidade fina de segurar um lápis até exercícios físicos,
como acrobacias. As contrações dos músculos esqueléticos estabilizam as articulações
e ajudam a manter as posições corporais, e, com elas é possível colocar-se de pé ou
permanecer sentado. Quando estamos acordados, é essa mesma contração que está
em atividade; por exemplo, na sustentação dos músculos do pescoço mantendo a
cabeça ereta para que um aluno possa escutar atentamente uma aula (DERRYCKSON;
TOROTORA, 2016).

7
O tecido nervoso é o responsável por manter condições controladas nos limites
compatíveis com a vida. É o sistema nervoso que regula todas as atividades por meio
de respostas rápidas pela compreensão e pela recepção dos impulsos nervosos. Ele
regula nossas ações conscientes e todos os outros sistemas de modo ininterrupto. A
sensibilidade do corpo depende completamente desse processo constituído pelas células
nervosas, porque ela faz a detecção consciente e subconsciente do ambiente. Todas as
escolhas criativas de um artista cênico passam por esse processamento interno.

Nesse quesito, é necessário comentar a importância de outro sistema que


viabiliza essa sensibilidade: o tecido epidérmico. Quando se fala da pele, estamos
tratando do maior órgão do corpo humano em peso. Ajuda a regular a temperatura,
protege o corpo do ambiente externo, recebe as sensações cutâneas, excreta e
absorve substâncias.

NOTA
A epiderme tem uma quantidade variada de funções, pois ao mesmo
tempo em que protege a estrutura corporal de toxinas e bactérias também
impede a perda de líquidos. Suas glândulas exócrinas são responsáveis pela
produção do suor que ajuda na regulação térmica.

Os outros sistemas corporais são, em sua maioria, responsáveis pelo


funcionamento interno, mas estão ligados à manutenção da saúde do corpo e são
tão importantes quanto os que trabalham diretamente com o movimento corporal.
A estrutura interna mantém a ação externa. Nesse sentido, não se pode esquecer o
sistema digestório, que é responsável por selecionar os nutrientes que formarão os
novos tecidos que substituem os velhos. É o processo digestivo que despedaça as
estruturas alimentares para obter as moléculas necessárias para a saúde do corpo e
expelir o desnecessário. O sistema urinário funciona nesse mesmo sentido que filtra
o sangue, devolvendo a maior parte de água ao sangue e expelindo o desnecessário.
O sistema endócrino é o responsável pela liberação de hormônios mediadores que
regulam atividades de certas células.

Por sua vez, é o sistema circulatório que transporta as substâncias pelo sangue
bombeado pelo coração. O sistema respiratório é responsável pela captação do oxigênio
fundamental para que as células humanas metabolizem suas substâncias. Todo aquele
que trabalha com a expressividade corporal deve estar atento para o bom uso da
respiração, pois o movimento só pode ganhar graça e qualidade quando é executado
em consonância com o ar que se respira; em que se aproveita a inspiração e a expiração
nas contrações e nas extensões corporais.

8
Visto esse mapeamento pelo corpo em termos de funções biológicas internas,
pode-se passar para um caráter mais global no que tange ao corpo em atividade
consciente. Mesmo as funções psíquicas do ser humano se reportam, em grande medida,
a sua composição orgânica. O comportamento da espécie humana está relacionado a
sua psicologia, pois mantemos muitos aspectos semelhantes com o modo de agir dos
animais. Charles Darwin já apontava essa relação em seu livro A Expressão da Emoção
no Homem e no Animal. Na estrutura física, já se carregam elementos instintivos que
serão responsáveis por uma série de atitudes e mesmo hábitos no indivíduo humano
(EDELMAN, 1992).

Algumas ações e atitudes são mais convenientes do que outras na determinação


da sobrevivência de uma espécie. Essas ações se repetem entre as criaturas que
prosperam e se tornam material genético que é passado para que as gerações futuras
nasçam mais bem adaptadas às situações vividas pelos animais originários.

As reações humanas diante de estresse são originárias das respostas que os


animais tinham quando se deparavam com predadores e precisavam lutar ou fugir.
Nesse momento, entramos no reino da Etologia; a ciência que estuda o comportamento
animal e estabelece sua relação com o comportamento humano.

O comportamento, a maneira de agir, está baseado em decisões que,


basicamente, são os momentos em que se toma uma ação em detrimento de todas
as outras. Um ponto importante, no entanto, é que essas decisões não precisam ser
conscientes. Elas podem ser respostas instintivas que simplesmente liberam a energia
de todo o corpo para obter algo de que necessita em dada situação. Estamos falando
aqui em cenas da vida animal comum: se a criatura segue se alimentando ou sai voando,
qual parceiro escolhe para a reprodução, desenvolver um ornamento que chame
a atenção ou uma camuflagem, ter filhotes machos ou fêmeas (CARRANZA, 2010).
Existem processos fisiológicos em uma decisão. O comportamento é o modo como os
seres vivos resolvem seus problemas.

A Etologia se caracterizou por tratar de responder quatro questões fundamentais


sobre o comportamento: qual é sua causa imediata ou mecanismo originário, como se
dá seu desenvolvimento ontogênico (como passa de uma etapa de vida para outra),
como aconteceu sua história filogenética (como foi o processo de sua evolução
dentro da espécie) e qual é o seu significado adaptativo (que função exerceu para que
sobrevivesse ao meio). Compreender o comportamento animal ajudou a entender as
atividades humanas e serviu como inspiração para a compreensão do comportamento
cênico dos artistas também.

Considere as atitudes de certos pássaros machos para obterem a atenção


de suas fêmeas e, somente assim, terem a oportunidade de acasalar. Muitos fazem
movimentos extravagantes que fogem de suas ações comuns. De que maneira isso
realmente se diferencia da dança humana como expressão artística? Primatas usam

9
batidas corporais ritmadas para se comunicar socialmente e ganhar a atenção do grupo.
Desse modo, seria possível pensar que as representações cênicas das coletividades de
hoje e do passado são um desenvolvimento que os animais ancestrais já realizavam
para sobreviver.

Uma das ideias presentes nessa hipótese científica é que o compartilhamento


instintivo entre humanos e animais permite pensar se os artistas cênicos podem invocar
essa energia primitiva em seus comportamentos cênicos. Afinal, a semelhança genética
do humano com outros mamíferos fica entre 93% a 99%; um número bastante alto. Da
mesma maneira que um lobo ou tigre precisa atacar de maneira concentrada sua presa,
um ator ou dançarino precisa estar completamente concentrado na execução de suas
cenas. Um ator como Charles Dullin desenvolveu uma metodologia na França em que
usava as ações animais como base de preparação de seu elenco. Dessa forma, aprendia
a respeito da natureza biológica para além do próprio organismo, também captando
suas semelhanças até mesmo no reino animal.

Para finalizar o estudo do corpo do ponto de vista científico, é importante que o


artista tenha algum entendimento de como ele ocupa o espaço com relação a si mesmo.
Em termos práticos, o profissional de dança ou de teatro deve conhecer os planos e as
partes do corpo. Nunca se deve esquecer de que o corpo humano é composto por vários
segmentos. Cabeça, pescoço e tronco formam a porção axial de nosso esqueleto. Já
os membros superiores e os membros inferiores são denominados porção apendicular.
No membro superior, a região do ombro ao cotovelo é o braço, enquanto do cotovelo ao
punho chamamos de antebraço. A mão é a região que se segue do punho englobando
os carpos, metacarpos e falanges. A articulação do quadril ao joelho é a coxa. Do joelho
ao calcanhar, temos a perna. O final do membro inferior é o pé com o tarso, metatarso e
falanges (MOREIRA, 2005).

Figura 1 – Membros inferiores.

Fonte: Lippert (2015, p. 4)

10
Para mencionar algum segmento específico para descrição de movimentos, é
importante reconhecer a posição anatômica como ela é usada universalmente, pois
é a referência-padrão do corpo usada para descrever a localização de estruturas. Os
termos medial e lateral se referem a posições relativas mais próximas ou mais distantes,
respectivamente, da linha média que divide o corpo em duas metades iguais. As
porções proximal e distal são terminologias usadas para descrever uma posição relativa
a um ponto predeterminado, sendo que o primeiro se refere ao que é mais próximo e o
segundo ao que é mais distante. O ponto de referência comum é normalmente o centro
do corpo (MOREIRA, 2005).

Figura 2 – Cabeça e centro do corpo

Fonte: Lippert (2015, p. 4)

Quando um segmento for próximo da cabeça ou acima do ponto de referência,


sua localização é superior; enquanto ao ficar abaixo do ponto de referência ou distante
da cabeça, ela será inferior. Quando algo se localiza frontalmente ao corpo, é chamada
anterior, enquanto se ela estiver na parte traseira do corpo, ela será posterior. Para falar
do mesmo lado, usa-se ipsolateral e, para o lado oposto do corpo, usa-se contralateral.

11
Figura 3 – A estrutura do corpo

Fonte: Lippert (2015, p. 14)

Vista a dimensão biológica em seus múltiplos aspectos, precisamos entender


que o corpo nunca é visto apenas desse ponto de vista científico. Existe um campo de
conhecimento que depende da compreensão e da transformação que as ideias do ser
humano projetam sobre a realidade. Inicialmente, é necessária uma pequena introdução
sobre o que implica a palavra cultura.

3 DIMENSÃO CULTURAL
No subtópico anterior, foram vistos, panoramicamente, os elementos
constitutivos do corpo, em particular pelas áreas científica e médica. O que se precisa
refletir, agora, é como esses dados apresentados anteriormente serviram para
compreender a materialidade do corpo, pois o assunto sobre o corpo não se encerra
com essas informações. Somos nós, na qualidade de indivíduos e de coletividades que
determinamos as práticas corporais nas maneiras que escolhemos como nos comportar
com aquilo que herdamos. Todas as nossas ações são determinadas também pela nossa
visão cultural. É nesse sentido que cabe a pergunta: o que é cultura?

12
NOTA
Segundo o crítico literário Terry Eagleton (2003), um dos significados originários da noção
de cultura advém de “lavoura”, relacionando-se com a atividade humana ocupada com o
crescimento natural de uma plantação. A palavra inglesa “coulter”, que tem sua raiz como
cognata de cultura, por exemplo, significa a lâmina do arado. A palavra cultura,
dessa maneira, compartilha sua raiz com a palavra “cultivo”. Está ligada à
ideia de que a conquista da terra pela agricultura foi o momento em que
o ser humano se afastou da natureza e passou a se relacionar com ela de
forma mais direta a ponto de ter algum controle sobre alguns de seus efeitos.
Basicamente, quando se fala cultura por esse viés estamos privilegiando a
atividade humana e o trabalho.

O termo tem muitas acepções, mas alguns pontos parecem convergir para uma
ideia em que a construção humana se sobrepõe sobre aquilo que ele determina como
natural, que acabaria se definindo, por sua vez, como aquilo que não foi tocado pela
manipulação humana e é, de alguma forma, independente dele. Dessa noção prática,
passou-se à concepção da cultura como uma atividade abstrata, realizada pelo espírito
humano. Aqui, entra-se no conjunto de saberes intelectuais que constituem os valores
imateriais de uma sociedade. Uma pessoa que é tomada como culta é alguém que se
sofisticou por uma educação primorosa e tem acesso a uma quantidade de informações
que outras não desenvolveram. Baseado nessas duas vertentes, pode-se dizer que tudo
o que o ser humano cria ou desenvolve com seu contato, seja ele físico ou não, carrega
o germe da cultura. E essa palavra ainda pode ser mais:

A raiz latina da palavra «cultura» é colere, que pode significar tudo,


desde cultivar e habitar até prestar culto e proteger. O seu significado
como «habitar» evoluiu desde o latim colunus até ao «colonialismo»
contemporâneo, pelo que títulos como Cultura e Colonialismo são,
uma vez mais, levemente tautológicos. Mas colere também originaria,
através da expressão latina cultus, o termo religioso «culto»,
precisamente no momento em que, na era moderna, a própria ideia
de cultura é substituída por um evanescente conceito de divindade e
transcendência” (EAGLETON, 2003, p. 12, grifos do original).

Aqui, vemos que o termo ainda designa a ideia de pertencimento, como uma
morada, um local em que se vive e no qual, de alguma maneira, plantam-se as próprias
raízes. Habitar é tornar-se um com a região que o cerca; uma forma de transformar a
si mesmo em conjunto com o próprio espaço ao redor. De maneira quase contraditória,
tem-se também a ideia religiosa de um plano transcendente sobre o mundo natural.
Cultura traz algo de si que não se pode encontrar pela mera observação, mas como uma
revelação íntima de um universo que fica escondido dos sentidos corporais.

13
A palavra cultura traz em si o problema da tensão da consciência humana
nesses quatro sentidos tão peculiares: atividade, abstração, habitação e culto. A noção
de corpo terá de dialogar com esse aspecto, pois, agora, precisa ser vista também
como uma criação original da consciência humana. O trabalho artístico do corpo em
cena se configura nesses quatro campos ao se ocupar ativamente de uma prática que
transforma o mundo.

Encontramos, aqui, situações mais sutis e ambíguas do que poderíamos


imaginar. Se a ciência se propunha a afirmar uma verdade mais concreta e, em certa
medida, universal, aqui deparamo-nos com uma problemática nova. A sabedoria da
cultura acaba por ter um peso mais subjetivo em que se relativizam posições e, dessa
maneira, enxerga-se a criatividade humana aplicada à realidade (KUPER, 2002). Nesse
quesito, é importante entender a função que a antropologia, como ciência que estuda o
homem, pode contribuir para o entendimento de um corpo cultural.

Os antropólogos, classicamente, determinaram cultura como o conjunto


complexo de saberes, crenças, costumes e toda forma de coisas que adquiriram
existência pelo homem em sociedade. Todas as formas de relação entre as pessoas e
delas com o seu meio servem para configurar a palavra cultura. Talvez fique mais claro
com a explanação de um antropólogo que ainda está em atividade e traz um conceito
mais perto da atualidade:

É difícil dar uma definição que seja absolutamente satisfatória


de cultura. Kroeber, um dos mestres da antropologia americana,
levantou mais de cinquenta. Propomos esta: a cultura é o conjunto
de comportamentos, saberes, saber-fazer característicos de um
grupo humano ou de uma sociedade dada, sendo essas atividades
adquiridas através de um processo de aprendizagem e transmitidas
ao conjunto de seus membros (LAPLANTINE, 2007, p. 120).

Depois dessa definição, deve ficar claro que cultura não se trata apenas
daquilo que o ser humano elabora a partir de uma matéria-prima da natureza, mas
de algo que pode estar presente em suas atitudes. O modo como cumprimentamos
alguém, como dizemos sim ou não com a cabeça, como expressamos raiva ou nojo
com uma expressão facial e até mesmo a maneira de beber e comer são todas formas
culturais. O modo de enxergar e tratar o corpo estará relacionado à cultura como um
todo. Se em uma sociedade como as do ocidente atual tendem a ver o corpo de uma
maneira fechada, certas sociedades tradicionais conseguem enxergar uma abertura
no seu comportamento. Para um homem europeu, é fácil tratar o corpo como uma
propriedade, ao passo que para um aborígene australiano essa ideia pode não fazer
muito sentido. Assim, o corpo pode ser visto como um instrumento para um objetivo
para alguns, enquanto para outros é tratado como uma entidade que não se dissocia
de sua realidade ambiental.

14
É nesse sentido que se comenta que o corpo humano pode ser pensado como
uma estrutura aberta, o que não significa que seja sempre padronizado em todos os
seus comportamentos. Estar vivo implica estar em constante mudança, porque isso é a
resposta da sua característica adaptativa. Em certos grupos, o corpo pode ser um objeto
de desejo; em outros, o resultado de dominações; e, muitas vezes, pode ser ambos ao
mesmo tempo.

Os sentidos dos corpos são constituídos pelos encontros entre as pessoas,


sejam esses encontros fortuitos ou não. Diversas formas, contornos, cores e significados
corporais são atribuídos pelo contexto sociocultural e histórico. Em uma sociedade, o
atributo da obesidade pode ser desejado, enquanto em outro pode ser rejeitado. Desse
modo, fica bastante evidente que, por trás da materialidade física, estão sempre forças
intangíveis, mas, diferentemente do processo genético, elas são resultado das decisões
coletivas que coordenam o aparecimento do corpo.

Pense inicialmente no tom de pele que tem sido motivação injustificada para
segregação, preconceito e racismo até os dias de hoje. O que determina a cor, do ponto
de vista da matéria, deve-se a apenas um milímetro da pele; algo quase translúcido
quando separado do corpo. E como ela se constituiu? Hoje, ela está nos humanos como
um resultado genético, mas vem de uma herança complexa em que os genótipos se
adaptaram aos diferentes ambientes. O modo como o sol incidiu sobre a melanina no
corpo em diferentes regiões gerou a grande diversidade de tons que temos hoje. A
decisão de um grupo em permanecer em uma região e se adaptar a ela foi fundamental
para que essas diferenças surgissem. Perceba que a adaptação que as coletividades
formaram em cada lugar e época determinou comportamentos diferentes e, assim,
corpos diversos.

No campo das artes cênicas, isso pode ficar claro na maneira como artistas de
países diferentes se comportam no processo de criação. As sociedades criam significados
próprios para as suas representações cênicas e, para isso, criam imagens que irão
exigir comportamentos diferentes de seus atores e dançarinos. Uma maquiagem para
o ator ocidental pode ser simplesmente um adorno que ele coloca com uma finalidade
específica. Para um artista do Kathakali, gênero artístico e religioso do sul da Índia, a
maquiagem pode durar quatro horas e tem uma função ritual de se conectar com o
cosmos (AZEVEDO, 2002).

Prosseguindo nesse sentido, para entender melhor essa diferença é preciso


observar como ideias abstratas e ideologias acabam moldando os comportamentos. Os
ocidentais, de modo geral, tiveram uma influência do cristianismo e do cartesianismo de
modo a afetar o entendimento de como se usam os corpos.

15
O pensamento cristão trouxe noções de pureza e santidade que fazem com que
seus praticantes estejam sempre tentando evitar certas atitudes negativas, entendidas
como pecados. O filósofo Descartes trouxe a diferenciação entre o que acontece no
reino do pensamento e o que acontece no reino do corpo. O resultado disso é que o
ocidental tem, geralmente, uma visão mais pragmática do corpo, valorizando ações
ascéticas e reprimindo os desejos como perversidades.

Outras culturas viram o corpo mais conectado com uma espiritualidade física
e não diferenciaram o processo intelectual das necessidades corporais. As religiões
de origem africana ou os indígenas do continente americano, por exemplo, têm uma
tendência de ver o corpo como um receptáculo de comunicação com as entidades da
natureza ou de divindades cósmicas. Povos asiáticos trouxeram práticas meditativas
que buscam um contato maior com o ritmo que a vida corporal pede. Essas culturas
tendem a ver a vida de maneira mais integrada do que o ocidental. Por outro lado, o ator
oriental não tem a noção de expressividade que o ocidental tem, pois sua educação é
bastante restrita, de modo a ter um aprendizado detalhado e exato do gestual que se
passa por tradição entre mestre e aluno (AZEVEDO, 2002).

O que todos esses exemplos trazem é a relevância na noção de aprendizagem.


Todo educador deve ter em mente que um processo de formação implica a construção de
uma personalidade. Existe, em algum grau, um projeto de aquisição de conhecimentos
conscientes e inconscientes que espalham a cultura em um povo. Quando se aprende
um idioma, não se capta apenas o conteúdo semântico das palavras, mas sua sonoridade
física vai se tornando reconhecida pelos ouvidos do educando. Ao acostumar uma
criança com uma língua, ela vai aprendendo a distinguir os sons por meio dela.

Aqui, encontram-se duas formas muito claras para a passagem de conhecimento


cultural. Ele acontece de modo consciente, mas também de modo inconsciente. Está
presente tanto no processo de escolarização formal que uma sociedade oferece quanto
nas situações informais que a vida em troca social pode proporcionar.

Na situação do processo formativo do corpo, pode-se exemplificar com a


criança que recebe aulas de educação física na escola. Ela está tendo uma orientação
consciente para sua formação corporal, obtendo vigor e flexibilidade com a prática de
esportes e jogos. Por outro lado, essa mesma criança terá a convivência com outros
adultos e a observação de pessoas, seja com presença real diante dela, seja pelos meios
de comunicação. Nesses casos, esses contatos trazem uma quantidade gigantesca de
informações, somatizada pela criança, de modo que muitas vezes passa imperceptível.

Estabelece-se, assim, uma perspectiva conceitual coerente com o pressuposto


da noção de cultura abordada neste subtópico. Considera-se que o processo educativo,
a formação de um indivíduo em sociedade, desenvolve-se no âmbito de vivências
culturais bastante distintas entre si: no campo familiar, no mundo do trabalho, no
momento de lazer, nas exigências da política, na convivência cotidiana e nos diferentes

16
grupos de pessoas com os quais o indivíduo possa interagir. Em toda interação humana,
são tecidas relações sociais das quais emergem significados variados e, em alguns
casos, até inesperados. Nas múltiplas relações, é possível pensar na constituição de
identidades que são resultados dessa quantidade quase incalculável de procedimentos
e de processos de socialização e de aprendizagem.

Também é importante trazer aqui um conceito que pode ser desenvolvido dos
exemplos anteriores: o relativismo cultural, na medida em que se torna incontestável a
diversidade de culturas nas milhares de respostas diferentes às necessidades humanas.
Basicamente, não seria possível determinar paradigmas que possam ser usados para
todos os povos. Cada expressão, crença ou ação só encontra sua validade no contexto
em que nasce (BONTE; IZARD,1991). Essa posição foi muito relevante para criar uma
resposta à noção de que as culturas evoluem em uma direção e que a sociedade
europeia seria o modelo para todos os outros povos do mundo.

Tomar o conceito de uma cultura por outra pode gerar uma série de mal-
entendidos e de incompreensões. Relações de poder surgem e acabam por minar trocas
saudáveis entre os povos. Aqui, tem-se o fenômeno do etnocentrismo; a ideia de que
a visão de mundo de um grupo é suficiente para hierarquizar os povos. Julgamentos
morais enviesados são tidos como universais (BONTE; IZARD, 1991).

Em sua essência, todos os projetos de colonização são eivados desse vício, pois
tomam as práticas de grupos culturais diversos como dependentes e limitadas. Muitas
das ideias raciais não passam de erros etnocêntricos de povos que tinham poder material
para impor sua estrutura de valores. Exemplos sobre o corpo já foram mencionados nas
páginas anteriores, mas outros podem se somar a essa percepção.

Um ponto interessante, nesse sentido, são as diferenças de gênero, tão


discutidas hoje. Elas só são possíveis por fatores culturais. É apenas por uma noção
de tradição que algumas pessoas pensam que o sexo biológico é o único determinante
para a definição de gênero. Povos indígenas, como os navajos dos Estados Unidos da
América, já possuíam a ideia de homem feminino e mulher masculina como opções para
além da identificação biológica. A situação como o corpo feminino é tratado em outras
culturas também passa por questões semelhantes.

17
Figura 4 – Bailarina muçulmana

Fonte: https://bit.ly/3EBFsZA. Acesso em: 11 out. 2022.

Aqui, mostra-se como o corpo humano se desenvolve em uma espécie de teia


simbólica. O antropólogo Clifford Geertz compreendeu que o processo de constituição
de indivíduos e de sociedade acontece simultaneamente pela criação de símbolos
compartilhados (KUPER, 2002). Com o uso do termo símbolo, esse antropólogo
estadunidense não queria se limitar às representações imagéticas do grupo social. Todas
as formas de expressão atribuídas por um grupo sociocultural estariam em interação
constante, pela associação entre os objetos com outro. Comportamentos e a percepção
do mundo são associados entre si em determinado grupo cultural, gerando significados
sempre com resultados práticos.

A expressão criativa de corpo nunca está isolada em um povo. Ela está


ligada a todas as formas simbólicas da vida desse povo. Dentro de nosso contexto
contemporâneo, nossa alimentação, nosso lazer, nossa educação, nossa política, nosso
modo de habitar estão ligados à expressividade física.

DICA
Para entender melhor a rede simbólica dos processos culturais, leia o livro
Interpretação das Culturas de Clifford Geertz.

Os corpos se refletem no modo como a saúde, a educação e a alimentação são


vistas. Enquanto sociedades industriais e pós-industriais das grandes cidades passam
por uma sobrecarga de poluição e de medicamentos, povos que se mantêm distantes da
tecnologia de ponta sofrem com menos doenças crônicas. Da mesma maneira, o modo

18
como se entende o comportamento implicará a forma como ele é passado adiante entre
as gerações, como as diferentes vestimentas que restringem os movimentos de seus
usuários. E o tipo de comida e de bebida que se ingere transforma progressivamente o
corpo humano, em especial nos dias de hoje, em que os produtos superprocessados e
gordurosos geram uma quantidade maior de obesos.

Mesmo aspectos estéticos têm significados diferentes dependendo da com-


preensão cultural em que se estabelecem. Modificações corporais são utilizadas em
vários lugares e trazem estranhamento cultural entre diferentes grupos. Pensemos em
como tatuagens, piercings e cicatrizes podem parecer comuns nos dias de hoje, dentro
das grandes aglomerações urbanas, enquanto povos que alargam suas bocas, como
os etíopes, ou outros que afiam seus dentes, como os jovens de Bali, podem parecer
alienígenas a essas mesmas pessoas.

Figura 5 – Mulher etíope com adereço labial e escarificações

Fonte: https://bit.ly/3SLlmjT. Acesso em: 11 out. 2022.

Isso demonstra que um corpo humano nunca é algo completamente isolado,


seja pela noção de natureza, seja pela de cultura. Apesar da importância do aspecto
genético, muito do que constitui o ser humano provém dele mesmo como coletividade.
Estamos todos cultivando nossos corpos ao fazermos escolhas ou aceitarmos nossa
convivência em determinados círculos. É na tensão de relações que se precisa perguntar
de que maneira um corpo se apresenta como expressão artística. Pensar o corpo como
uma forma de arte exige que se saia das categorias estritas de natureza e cultura para
se pensar nos momentos de seus atravessamentos.

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4 RELAÇÃO TRANSVERSAL ENTRE CIÊNCIA E CULTURA
Pela ciência, somos determinados pela carga hereditária de nossos antepassados,
mas, pelo estudo dos processos culturais, podemos dizer que não existe composição
fixa; o corpo se transforma nas diferentes situações a que é lançado. Como foi apontado
anteriormente, algumas de nossas características genéticas surgiram pelo contato dos
grupos humanos em sobrevivência com o ambiente. Pode-se perguntar, então, de que
corpo humano se está falando quando se consideram essas duas polaridades. O que
é mais relevante: o discurso da ciência biológica, que diz o que é a natureza, ou as
ciências humanas, que estudam as práticas humanas?

Quando o dançarino ou o ator se apresenta, ele utiliza seu corpo como meio de
expressão. São seus movimentos, gestos e vozes que preenchem o tempo e o espaço
para o deleite dos espectadores. E, aqui, surge o grande problema com o corpo nesse
tipo de trabalho artístico: o artista se apresenta como sujeito ou como objeto? O corpo é
o resultado de um trabalho ou é ele o criador da arte? Como considerar o fenômeno das
artes cênicas nesse contexto?

Figura 6 – Dançarino

Fonte: https://bit.ly/3CncVEA. Acesso em: 11 out. 2022.

O discurso da ciência é bastante direto em determinar como o corpo humano


pode ser visto como um objeto passivo, construído pelas interações contingentes com
o mundo. Dessa maneira, a resposta mais óbvia para as perguntas formuladas seria
entender que o corpo já nasce com as condições para a realização de suas tarefas e não
há escapatória de sua passividade como objeto.

Por outro lado, se observarmos a antropologia, veremos que os corpos se


constituem entre os grupos de modo que aprendem e se transformam pelas orientações
do grupo. Assim, a corporeidade seria muito mais um sujeito que decide.

20
A arte, de modo geral, sempre provocou incômodos aos seus executantes por
ser, antes de qualquer coisa, uma forma indisciplinada. As obras artísticas estão sempre
em fricção e ruptura com o tecido social. As artes cênicas acrescentam o problema de
não terem seus limites facilmente perceptíveis. Por essa razão, precisamos pensar uma
noção de corpo que não fique presa a categorias específicas. Não podemos dizer que
tudo o que uma representação artística traz possa ser adequado completamente a sua
estrutura biológica ou às construções culturais que desenvolveu.

É preciso fazer uma leitura transversal dos conhecimentos expostos pela ciência
mais rígida da natureza e os conhecimentos do comportamento humano. Escolher um
sobre o outro é ficar preso em estruturas rígidas de pensamento que não ajudam a
desvendar a criatividade humana. Os conjuntos de conhecimento precisam ser vistos
em relação dinâmica para que se possa ver como o artista da cena constrói seu percurso
de modo original. Todo aquele que quer estudar as artes corporais precisa de uma visão
transversal entre elas.

Nesse sentido é que se convoca uma noção mais contemporânea para o trabalho
do corpo em arte. Ler os conteúdos conhecidos de modo transversal permitirá que se
perceba como um artista desenvolve seu corpo. Transversalidade implica algo que segue
seu sentido de modo oblíquo, inclinado ou desviante de um ponto de referência. Na
educação, consiste em contextualizar os conteúdos acadêmicos e resgatar a vivência
dos acontecimentos criando uma nova composição. Não basta que o aluno domine um
conceito; ele precisa também ser capaz de usá-lo criativamente em sua vida.

Basicamente, estamos falando de trazer as vivências dos professores e dos


alunos em temas que englobem os conhecimentos aprendidos. As origens, as causas,
as consequências e as significações das práticas são ampliadas quando se rompem
as categorias fechadas e podemos acenar para algo novo, como se “atravessassem”
os campos de pensamento. Para isso, traremos conhecimentos que podem ajudar a
entender esses atravessamentos e estudar os processos criativos do corpo.

O estudo do corpo sempre foi um tema tratado de maneira acessória e, por


isso, precisa ter um campo de conhecimento que o trate como relevante. Assim,
primeiramente veremos uma proposta que surge no seio da ciência mais dura como
uma tentativa de entender as sutilezas da ação humana e, depois, veremos como as
ciências sociais lidam com o fenômeno da complexidade, mostrando que a natureza
e a cultura não se relacionam de modo excludente, mas incluem-se para derrubar
fronteiras. Por fim, veremos as tentativas do processo criativo com relação ao corpo e
os modos como se pensa a inovação.

A área do pensamento que estuda as formas do conhecer é a epistemologia,


que designa, em geral, um sujeito que conhece e um objeto que é conhecido. No final
do século XX, surgiu uma teoria epistemológica que se propôs a tentar entender as
relações de conhecimento de modo mais aberto, que não precisasse ficar presa às

21
convenções estabelecidas pela ciência experimental anterior. Uma visão que ainda
poderia apontar para os limites que podiam ser apreendidos, um modo de conhecer que
buscava compreender cada ser vivo na sua individualidade, sem perder a conexão com
a totalidade.

Para tratar assuntos do corpo, ele precisa ser visto na sua singularidade, ou
seja, como uma forma própria de viver e de existir no mundo. A arte é o campo que
pode atravessar os conteúdos e servir para uma comunicação original. As artes cênicas,
tanto pela dança quanto pelo teatro, podem servir para que alunos aprendam mais
sobre suas existências como corpos humanos. Porém, se a ciência clássica não as vir
como um domínio próprio se torna quase impossível compreender essa relevância. E
é por essa razão que uma nova visão epistemológica precisa ser mais de acordo com
as experiências realizadas pelas artes. É preciso que se pense mais próximo da noção
como foram ensinadas pelos cientistas e biólogos Humberto Maturana e Francisco
Varela (2010).

No livro Árvore do Conhecimento, somos apresentados a uma ideia de que,


se pensarmos as formas vivas como estruturas em organização, teremos de repensar
todas as categorias intelectuais com que lidamos. Isso significa que viver e conhecer se
tornam duas faces de um mesmo evento, não podendo ser separadas uma da outra. Os
autores partem da hipótese de que, se a vida for entendida como um processo contínuo
de conhecimento, isso exige que os mecanismos dos quais o ser humano se utiliza para
conhecer o mundo não podem se afastar dos próprios experimentos de vida. Assim,
a passagem do mundo biológico para o mundo cultural não é um salto em ambientes
diferentes, mas um desenvolvimento normal do ser humano.

[...] o conhecimento não poderá entrar com passo firme no recinto


das ciências sociais se pretender fazê-lo sob a concepção de que
o conhecer é um conhecer “objetivamente” o mundo e, portanto,
independente daquele(s) que faz a descrição de tal atividade. Não
é possível conhecer “objetivamente” fenômenos (sociais) nos
quais o próprio observador-pesquisador que descreve o fenômeno
está envolvido. Foi justamente essa noção do “conhecer” que
bloqueou firmemente a passagem do conhecimento humano para
a compreensão dos seus próprios fenômenos sociais, mentais e
culturais (MATURANA; VARELA, 2010, p. 17).

Os autores demonstram que, no último século, houve uma proliferação de todo


tipo de teorias sobre o comportamento humano que acabaram se mostrando limitadas
em suas explicações. Elas se baseavam, em última instância, apenas em pressuposições
acerca do que chamaram de “processos operacionais que geram o comportamento
humano”, nos nossos processos de aprendizagem, que não são outra coisa senão
estudos sobre a cultura. Tudo isso porque também havia uma impossibilidade, a partir do
enfoque comum das ciências naturais, em dar respostas exatas a questões essenciais.
A biologia sempre teve dificuldade em explicar, de modo cabal, qual é a organização de
todo ser vivo e qual sua relação com a organização básica de todo sistema social; em
realizar a ponte entre a consciência que surge da vida e cria a cultura.

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Tudo aquilo que organiza uma entidade viva, ou no nosso caso um corpo,
estabelece limites com o seu entorno. Essas limitações são apenas consequências das
organizações internas. O exemplo mais claro usado pelos autores é o de uma célula,
que, pelas reações químicas, constitui a sua membrana que a separa do resto. Isso
implica que o processo de construção interna do ser vivo é responsável por designar
onde ele termina com relação ao ambiente. Da mesma maneira, é o desenvolvimento
do organismo humano que produz sua pele e, com isso, limita e protege a integridade
de sua vida com o mundo exterior.

No entanto, essas organizações individuais estão sempre em comunicação com


o exterior. A membrana da célula se movimenta e se alimenta; a pele humana tem os
orifícios para respirar e se alimentar. E, aqui, entra o ponto importante dessa teoria.
Se há uma comunicação com o exterior, como se sabe que algo é uma forma de vida
autônoma? Do ponto de vista de uma entidade viva, tudo ao seu redor faz parte do meio
ambiente, mas cada um desses elementos que compõe o meio pode ser visto também
como entidades separadas. Somente o olhar de um observador externo é que determina
a diferença entre eles. O que temos, na verdade, são sistemas sempre se organizando,
decompondo-se e se reorganizando. Todas as formas de vida interagem entre si e com
o meio e se transformam no processo.

A grande conquista de Humberto Maturana e Francisco Varela (2010) foi perceber


que essa dinâmica pode ser aplicada também aos fenômenos sociais. Cada indivíduo
humano produz fenômenos mentais, ou seja, pensamentos, e, na troca, outros da sua
espécie criam coletivamente os fenômenos sociais, ou seja, cultura. Do ponto de vista
de um observador, pode-se acreditar em um comportamento de um grupo de pessoas.
Como os autores mesmos expõem: “Entendemos por conduta cultural a estabilidade
transgeracional de configurações comportamentais adquiridas ontogeneticamente na
dinâmica comunicativa de um meio social” (MATURANA; VARELA, 2010, p. 226). Como
sabemos que uma cultura é diferente da outra? Por um observador que a designa como
estável suficiente. Pense nas pessoas que moram em regiões diferentes do Brasil. Cada
uma tem seus costumes, certamente, mas o que faz alguém ser gaúcho, cearense ou
mineiro? O modo como ela recebeu e manteve as práticas do seu grupo.

Se for desse jeito, formas que mantêm alguma coesão, mas que estão sempre
se organizando e se reestruturando, necessitam de uma lógica que possa mostrar
como a vida não pode ser dividida entre as noções de sujeito e de objeto, pois cada
organização é um pouco dos dois. Para que isso seja possível, deve-se pensar que há
uma relação circular entre os componentes de um corpo e ele mesmo. E, aqui, entra
a ideia de autopoiese palavra derivada do grego (autopoiesis) e surgida da união de
autós (por si próprio) e poiesis (produção); ou seja, significa autoprodução (MATURANA;
VARELA, 2010).

23
Uma entidade pode produzir-se, porque se mantém em estado de interdepen-
dência com seu meio. Ela mantém alguma unidade e individualidade, tanto que pode
ser reconhecida como tal, mas apenas porque se coloca em um foco específico em suas
próprias relações.

Reconhecer que aquilo que caracteriza os seres vivos é sua orga-


nização autopoiética permite relacionar uma grande quantidade de
dados empíricos sobre o funcionamento celular e sua bioquímica. O
conceito de autopoiese, portanto, não contradiz esse corpo de dados
– ao contrário, apoia-se neles e propõe, explicitamente, interpretá-
-los de um ponto de vista específico, que enfatiza o fato de os seres
vivos serem unidades autônomas (MATURANA; VARELA, 2010 p. 88).

Assim, podemos trazer esse modo de pensar para a situação do artista que cria
com o próprio corpo. O que torna sua visão fundamental para um pensamento transversal
é que a vida só se sustenta por uma relação de autopoiese. Diferenciam-se entre si por
terem estruturas diferentes, mas são iguais em sua organização por estarem em troca a
partir dos mesmos componentes. Pode-se entender que toda tensão entre um indivíduo
autopoiético e seu meio é uma forma de simbiose, isto é, uma relação proveitosa entre
ambos. O que está em jogo, nessa noção autopoiética, é a capacidade de se reconstruir e
de se formar a si mesmo com as condições exteriores que lhe são ofertadas.

Estas simbioses são uma forma de ver como as culturas se assentam com
relação ao ser humano. As coletividades criaram uma diversidade de comportamentos
sociais que acabaram ganhando uma autonomia, mas, na verdade, estão em relação
constante com o aspecto vivo de sua natureza. Das várias formas culturais criadas,
está a arte que precisa, por isso, ser entendida como projeto externo e também como
experiência interna. Ela se torna uma forma de coexistência social, principalmente por
meio da dança e do teatro.

Aqui, entramos no que Maturana e Varela (2010) compreendem como um sistema


de terceira ordem em interações. Isso significa que os seres humanos ultrapassam suas
individualidades orgânicas criando formas de relações sociais que carregam alguma
autonomia. Toda forma corporal inclui, em sua dinâmica, o elemento instintivo-biológico em
combinação com o seu aspecto cultural criado pelas relações entre as pessoas.

O corpo humano, na qualidade de produtor de formas cênicas, pode se orientar


para múltiplas transformações pelas interações que se colocam a sua disposição. Um
dançarino cria novas imagens corporais com seu movimento pela simbiose de sua
natureza corporal com seu aprendizado cultural.

A grande vantagem que a ideia de autopoiese traz para o professor de dança


ou de teatro é que ele pode escapar dos dogmas que a educação artística pode trazer.
Um artista cênico precisa reconhecer seus limites corporais e testá-los constantemente
por meio de novas formas artísticas. O corpo tem uma autonomia criativa com seus
movimentos, mas ao mesmo tempo está sempre em interação com outras pessoas que
fazem com que esteja constantemente reconstruindo suas formas cênicas.

24
Não se trata, portanto, de pensar a arte do corpo como uma produção separada
do seu produto. Aqui, podemos trazer mais um conceito que dialoga com essa noção
de transversalidade entre natureza e cultura, sujeito e objeto, criador e criatura, pois
a ideia de que uma forma artística corporal possui certa autonomia, apesar de um
entrecruzamento de influências, só pode fazer sentido com uma noção que vem da
teoria social contemporânea: a teoria do pensamento complexo, de Edgar Morin (2011).

Segundo esse sociólogo francês, a humanidade está presa em um paradigma


simplificador que funciona por redução, disjunção e abstração. Reduzimos a realidade
a componentes mais simples e perceptíveis, mas isso gera muitos pequenos
conhecimentos especializados. Separamos esses conhecimentos em áreas fechadas
que não conversam entre si e acabam se perdendo. Por fim, esse paradigma ainda traz o
hábito de abstrair, criando pensamentos que não conversam com a realidade concreta,
como se a inteligência produzisse apenas ideias vazias de corpo.

O resultado dessas operações é que elas criam experiências apartadas da vida.


Hoje em dia, existem culturas que hierarquizam o saber e o dividem entre certo e errado,
de modo que o aprendizado fica ligado aos valores de acumulação e de sucesso. Isso se
reflete na situação do educador cênico.

Como o aprendizado de dança pode passar por uma avaliação tradicional, os


alunos aprendem a se movimentar como uma forma de expandir a consciência pessoal;
logo, determinar algo como certo ou errado implicaria a existência de um padrão corporal
a seguir, e não uma maneira de descobrir o próprio potencial. O tipo de conhecimento
que o professor de dança ou de teatro desenvolvem com seus alunos é visto como
inferior, inútil e sem sentido dentro do paradigma simplificador.

Por essa razão, Morin (2011) pensou em reconstruir os conhecimentos dentro


de uma nova visão de mundo: a complexidade. A palavra complexo significa, em sua
etimologia, que algo é tecido junto; portanto, nunca pode ser visto como completamente
isolado. São elementos absolutamente diferentes que, ainda assim, estão associados
inseparavelmente. Como ele mesmo expõe:

[...] a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos,


ações, interações, retroações, determinações, acasos, que consti-
tuem nosso mundo fenomênico. Mas então a complexidade se apre-
senta com os traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da
desordem, da ambiguidade, da incerteza... Por isso o conhecimento
necessita ordenar os fenômenos rechaçando a desordem, afastar o
incerto, isto é, selecionar os elementos da ordem e da certeza, preci-
sar, clarificar, distinguir, hierarquizar... mas tais operações, necessá-
rias à inteligibilidade, correm o risco de provocar a cegueira, se elas
eliminam os outros aspectos do complexus; e efetivamente, como eu
indiquei, elas nos deixam cegos (MORIN, 2011, p. 14, grifo do original).

25
Portanto, ter um pensamento complexo implica reunir os elementos divergentes
de modo a trazer mais riqueza. Não se separa natureza de cultura ou sujeito de objeto. O
trabalho com as artes cênicas tem sua riqueza pelos próprios paradoxos que pode produzir.
Da mesma forma, o professor de teatro ou de dança não precisa se preocupar que os
alunos executem suas atividades dentro de um valor de certeza, mas que experienciem
e aproveitam cada instante. O erro de um ensaio pode se transformar em uma cena de
extrema beleza se for cuidada e alimentada nas suas contradições e ambiguidades. Arte
não trata de certo ou errado, mas de viver o estado indefinido da vida.

A representação de um corpo não é, então, algo que pode ser simplesmente


captado por uma ideia abstrata ou por uma observação. Um atuante de dança ou de
teatro carrega toda uma carga genética em seu corpo, além de sua aparência. Traz
também todo o aprendizado cultural que teve para aprender a dançar ou a atuar. Essas
camadas se sobrepõem e se interconectam de modo que é difícil determinar seus
limites. É na transversalidade que esses campos diferentes se encontram, renovam-se
e se recriam. O artista vai se reconstruindo a cada ensaio, a cada apresentação e a cada
momento de sua vida comum. A criatividade corporal reside no reconhecimento de seus
limites e nas tentativas conscientes de sua mudança.

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RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:

• O corpo humano não pode ser visto de maneira única quando se trata da compreensão
de seus processos criativos. Quando se fala de corpo, é preciso reconhecer tanto
a sua universalidade, pois é um elemento comum a todos, quanto também a sua
singularidade, já que cada corpo é diferente e único. Para isso, são necessários muitos
conhecimentos para compreender todas as potencialidades criativas disponíveis.

• A expressão corporal depende de uma estrutura material que se apresenta na


dimensão biológica do corpo. Compreendendo aquilo que nos faz seres vivos,
pode-se entender o funcionamento corporal e melhor aproveitá-lo. Por isso, alguns
conhecimentos anatômicos e cinesiológicos são importantes para o estudo do
processo criativo do movimento do corpo.

• Sobre a dimensão física, constitui-se em uma outra camada que pode ser
entendida como cultural. A cultura precisa ser compreendida como cultivo, ou
seja, a transformação dessa materialidade pelas relações coletivas entre os seres
humanos. Aspectos do corpo que poderiam ser vistos como naturais são, na verdade,
construções humanas.

• Considerando a existência de duas dimensões diferentes, biologia e cultura, é preciso


que sejam pensadas de modo transversal. Uma influencia a outra de modo que não
podem ser concebidas de maneira separada. Para auxiliar esse procedimento, usou-
se a teoria de Humberto Maturana e Francisco Varela sobre autopoiese: a capacidade
de se autoconfigurar nas relações com o ambiente. Também é um conhecimento
importante a teoria do pensamento complexo de Edgar Morin, que não trata o
conhecimento como algo separado e hierarquizado, mas dinâmico e relacional.

27
AUTOATIVIDADE
1 O corpo humano é um vasto conjunto de processos biológicos que o mantém
em atividade. Um artista do corpo precisa aprender suas funções biológicas para
compreender a base de seu comportamento e, assim, poder ter liberdade para
construir sua expressão cênica a partir de movimentos livres e internamente
desimpedidos. Nesse sentido, analise as sentenças a seguir e assinale a CORRETA no
que tange ao assunto do metabolismo.

a) ( ) O metabolismo se refere à capacidade de o corpo responder quimicamente aos


estímulos a que é exposto diariamente por meios externos.
b) ( ) O metabolismo diz respeito aos processos químicos do corpo, em que se usam
carboidratos e proteínas para obtenção de energia.
c) ( ) O metabolismo é a produção autônoma de energia das células, sendo que não
faz sentido estender o termo para processos corporais.
d) ( ) O metabolismo é a produção de energia psíquica que o ser humano precisa para
se concentrar e realizar os exercícios cênicos.

2 O corpo humano não tem apenas um aspecto definido pela ciência natural da biologia
como se fosse apenas um conjunto material de células reunidas. Ele possui uma
dimensão cultural que o torna muito mais complexo para ser definido. Um assunto
relevante para todos aqueles que desejam se expressar cenicamente, sejam
profissionais do teatro ou da dança. Nesse sentido, analise as sentenças a seguir, que
tratam do assunto da cultura e de sua relação na formação do corpo.

I- O corpo é uma realidade universal; por isso, pode-se dizer que todas as culturas o
enxergam da mesma forma.
II- O aspecto cultural permite ver o corpo como uma criação original da consciência
humana.
III- A antropologia, como ciência, ajuda a compreender a ideia da existência de um
corpo cultural.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) Somente a sentença I está correta.
b) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
c) ( ) As sentenças II e III estão corretas.
d) ( ) As sentenças I e III estão corretas.

3 “Dispomos atualmente de um conjunto robusto de produções teóricas que, embora


recentes e oriundas de diversos campos, exibem uma surpreendente congruência e
consistência interna no modo de operarem modelos que dominaram as investigações
da área até muito recentemente. [...] linguagem e cognição, são entendidas aí como

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inextricavelmente entrelaçadas, indelevelmente presentes em todas as nossas
atividades, e os fenómenos nelas produzidos inelutavelmente diversos” (MATURANA,
2014, p. 9). Baseado na noção de relação transversal entre biologia e cultura,
classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas.

Fonte: MATURANA, H. Cognição, ciência e vida


cotidiana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014.

( ) A teoria autopoiética parte do princípio de que a vida, ao ser entendida como processo
ininterrupto, cria mecanismos que unem o conhecer e o viver ao mesmo tempo.
( ) Não é possível conhecer, objetivamente, fenômenos sociais nos quais o próprio
observador-pesquisador que descreve o fenômeno está envolvido.
( ) Cada entidade viva pode ser vista ao mesmo tempo como parte de um meio
ambiente e ter uma singularidade que age por si mesma.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – V – V.
b) ( ) V – V – F.
c) ( ) F – V – V.
d) ( ) F – F – V.

4 Toda atividade de expressão corporal exige que o corpo humano esteja em um


funcionamento razoável para melhor aproveitamento de seu processo criativo. O que
torna a dança e o teatro artes relevantes é a sua capacidade de empreender ações
vivas que conduzem o olhar do espectador. Considerando a importância da dimensão
biológica do corpo, cite e explique quais são as características que determinam a vida
em um ser:

5 As ciências se desenvolvem em especializações de modo que possam definir e têm


a tendência a construir limitações e a desembaraçar qualquer assunto contanto que
limitado a sua área de pesquisa. Infelizmente, esse limite impede o desenvolvimento
de assuntos complexos. Explique o que é a teoria da complexidade de Edgar Morin e
sua pertinência para os processos criativos do corpo.

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UNIDADE 1 TÓPICO 2 -
O CONHECIMENTO DO CORPO

1 INTRODUÇÃO
Vistas as condições estruturais da criatividade, neste segundo tópico da
Unidade 1 vamos entender como se realiza o processo criativo dos artistas cênicos,
considerando que os aspectos culturais e fisiológicos deverão ser contemplados nos
termos de transversalidade comentados no Tópico 1.

O acadêmico de artes cênicas precisa compreender que, daqui em diante, deve


enxergar o seu corpo e os corpos de seus alunos como capazes de pensar, ainda que
em termos diferentes do que se imagina por isso. A corporalidade humana não é apenas
uma estrutura e um produto, mas uma forma de produção viva.

O corpo possui sua própria sabedoria. Todo artista que trabalha a partir de si
mesmo e de sua corporeidade precisa estar disponível para essa relação íntima consigo
mesmo. Isso significa estar consciente da sua sensibilidade física, aguçando seus
sentidos corporais, para obter vivências mais transparentes com a realidade. O corpo é
em si mesmo um modo de conhecer, deve ser visto como um paradigma com o qual se
estruturam os saberes e é o seu ato de existir, a cada momento, que será relevante para
a constituição de sua arte.

2 O POTENCIAL VIVO DO CORPO


O corpo humano é capaz de coisas incríveis quando observamos os múltiplos
exemplos que o mundo pode produzir. Halterofilistas são capazes de erguer 300 quilos
de peso. Um corredor profissional pode chegar até nove quilômetros por hora.

A voz de um tenor pode atingir tons agudos de até cinco oitavas. Alguns povos
africanos são conhecidos por realizarem rituais de dança que podem durar dias inteiros.
Algumas pessoas nascem com o dom do ouvido absoluto, sabendo discernir sons
com perfeição. Indivíduos se colocam em provações físicas dos mais diversos tipos
todos os dias. Um corpo é capaz de realizar proezas únicas, mas que nem sempre são
reconhecidas como saberes próprios.

Vivemos em uma época que parece mais disponível a acolher e a entender o


corpo como uma série de discursos diferentes. A coexistência de vários formatos de
corpo se torna mais possível e, com isso, pode-se perceber como cada um deles narra
sua própria existência e, assim, contribui para a construção do conhecimento.

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É nesse sentido que podemos ver condições no mundo de hoje para um corpo
como produtor e produto de sua própria sabedoria. Precisamos apenas perceber a
potencialidade do corpo humano como estrutura capaz de criar e isso implica o trabalho
do educador cênico, seja pela dança, seja pelo teatro. Perceber que cada movimento,
toque e sensação podem produzir uma ruptura no que se tem por estabelecido
historicamente é que o torna arredio ao discurso herdado e cria um novo conhecimento
que permite a transformação.

Alcançado esse entendimento que permite ver o corpo individual como uma
importância social e política, precisamos pensar em algumas estruturas que possam
servir de diálogo para compreender sua força viva. Voltamos, então, para suas condições
de promover o movimento, pois é a partir dele que os artistas conhecem a realidade.

Precisamos recorrer aos ensinamentos da cinesiologia para considerar isso


(MOREIRA, 2005). Essa é a área do conhecimento que estuda como o corpo humano
executa os seus movimentos do ponto de vista anatômico. Sempre em mente que essas
designações da medicina devem ser usadas para melhor comunicar e compreender
as possibilidades do corpo, sempre observando se elas não impedem o verdadeiro
conhecimento, pois não servem para fechar significados em definitivo.

Entramos, agora, em um campo que implica a avaliação anatômica e mecânica


do corpo humano, reconhecendo seus movimentos naturais mais básicos. Inicialmente,
precisa-se definir os planos e eixos que servem para reconhecer o alcance e a posição
das partes corporais em ação. Esse sistema se baseia nas três dimensões do plano
físico: altura, comprimento e largura.

Os três planos imaginários serão observados como ângulos retos e o seu


ponto de intersecção, onde esses três planos se intercruzam, será no centro da sua
massa corporal.

O movimento sobre um plano acontece paralelamente a ele, mas sempre


ocorre em um eixo que se posiciona perpendicularmente a ele. Pense em uma porta
que precisa ter suas dobradiças colocadas no modo vertical, para que possa rodar de
dentro para fora. Se o pino que faz a dobra fosse colocado de modo horizontal, ela não
conseguiria abrir.

32
Figura 7 – Planos e eixos

Eixo longi-
tudinal

Plano Plano
sagital frontal

Eixo ântero-
-posterior
Eixo lárero-
-lateral

Plano
horizontal

Fonte: https://bit.ly/3Ml1Jge. Acesso em: 11 out. 2022.

Um eixo de movimento precisa ser entendido como uma dobradiça, pois é a sua
extensão que determina um movimento dentro de um determinado plano, percebendo
como o corpo se abre ou se fecha, ou como se estende ou se contrai. São três planos
e três eixos que se cruzam permitindo o movimento. Os nomes dos planos são: sagital,
frontal e transverso. Os nomes dos eixos são: sagital, frontal e longitudinal.

O plano sagital irá dividir o corpo igualmente entre um lado esquerdo e um lado
direito, como se fosse uma lâmina que passasse da superfície posterior para a anterior.
O eixo frontal é o que permite a criação desse plano. Os movimentos de extensão e de
flexão são os movimentos comuns ao plano.

Já o plano frontal, também chamado de coronário, divide o corpo entre as


partes dorsal e ventral. De modo correspondente ao que aconteceu no plano anterior,
o eixo também é o inverso: sagital. Ele serve como uma lâmina que divide as costas e a
frente do corpo. Os movimentos típicos desse plano são a abdução e a adução. O plano
transverso, também chamado horizontal, é responsável por dividir o corpo entre parte
superior e inferior, como uma lâmina que se passa um pouco acima da cintura. Seu eixo
é o longitudinal e é o que permite os movimentos desse plano. Na sequência, algumas
imagens para que possa ser mais bem entendido. As explicações dos movimentos
seguirão posteriormente com imagens também.

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Figura 8 – Os três tipos de planos: sagital, transverso e frontal

Fonte: Moreira (2005, p. 8)

Como já foi comentado no Tópico 1, o corpo pode ser segmentado em várias


regiões. A cabeça é ligada pelo pescoço ao tronco, que, por sua vez, subdivide-se entre
tórax e abdome. O membro superior pode ser dividido entre braço, antebraço e mão.
Abaixo do abdome, encontramos a união com os membros inferiores pelo quadril,
enquanto o membro inferior pode ser partido em coxa, perna e pé. Essas estruturas
serão responsáveis pelos diferentes tipos de movimento do ponto de vista cinesiológico.

O movimento linear, por exemplo, é um movimento de translação, ou seja, é


quando uma parte do corpo se mexe em uma linha aproximadamente reta. Todas as
partes do objeto se movem na mesma direção, na mesma distância e ao mesmo tempo.
Quando consegue ser exatamente reto, é o movimento retilíneo. Diz respeito ao corpo
de um corredor em linha reta, por exemplo.

Se o movimento ocorre em uma trajetória curva, mas não propriamente circular,


estamos falando do tipo curvilíneo.

O mergulhador que salta da prancha ou o esquiador descendo uma montanha


executam essa forma. Quando o corpo se move em torno de um ponto fixo, ele executa
o movimento angular ou rotatório. Todas as partes do objeto se movem por meio do
mesmo ângulo em direção e ao mesmo tempo, mas não na mesma distância. Pense
quando você flexiona seu joelho: o pé se moverá mais do que o tornozelo.

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É preciso ter em mente que tipos diferentes de movimento podem acontecer
em um mesmo corpo. Um skatista pode seguir seu corpo total em uma direção linear
enquanto seus quadris, joelho e tornozelo fazem movimentos angulares para impulsionar
a prancha. A maioria dos movimentos corporais é angular, mas a tendência de ações
para fora do corpo é linear.

Dentre os movimentos das articulações, encontramos a flexão, a extensão e


a hiperextensão. A primeira se caracteriza pela curvatura de um osso com relação a
outro aproximando os dois, por exemplo: ereto, baixar a cabeça em direção ao tórax ou
aproximar braço e antebraço. Estender, por sua vez, é o movimento contrário: afastar
um osso com relação ao outro. Exemplo deste último seria o retorno para a posição
anatômica após a flexão.

A flexão palmar acontece quando se flexiona o punho e a flexão plantar é quando


se flexiona o tornozelo. Por fim, a hiperextensão é a continuação da extensão para além
da posição anatômica básica. Nesse caso, seria quando a cabeça é jogada para trás em
direção às costas.

Figura 9 – Tipos de movimento: flexão, extensão e hiperextensão

Fonte: Lippert (2015, p. 14)

A abdução é o movimento de afastamento do plano sagital mediano do corpo,


como quando se levanta o braço para o lado. E a adução acontece quando se retorna
para esse plano sagital mediano. Adução e abdução horizontais são movimentos que
não podem acontecer a partir da posição anatômica, a não ser que o corpo esteja com
o ombro e o braço no mesmo nível.

35
Figura 10 – Tipos de movimento: ombros e mãos

Fonte: Lippert (2015, p. 15)

Existem, ainda, os desvios radial e ulnar. O primeiro é a abdução do punho, quando


a mão se move lateralmente em direção ao polegar; enquanto o segundo é a adução do
punho, quando se move lateralmente em direção ao quinto dedo da mão. Quando o corpo
se inclina para a direita ou para a esquerda, teremos a flexão lateral do tronco.

Existem, ainda, movimentos complexos como a circundução, pois combina em


si quatro outros movimentos, como flexão, abdução, extensão e adução. O exemplo mais
claro é quando o ombro se move em um círculo, com o membro superior se movendo
como um cone. A rotação é um movimento do osso sobre seu próprio eixo longitudinal.
Quando a parte do corpo roda para dentro, no plano sagital, é uma rotação medial ou
interna. Quando roda para fora, é uma rotação lateral ou externa. O pescoço e o tronco
rodam para direita ou esquerda.

Figura 11 – Tipos de movimento: circundução, supinação e pronação

Fonte: Lippert (2015, p. 16)

O antebraço tem movimento de rotação, que atende pelos nomes de supinação


e de pronação. A primeira acontece quando a palma da mão está se voltando para
a frente ou anteriormente. Na pronação, a palma da mão está voltando para trás ou
posteriormente. Algumas articulações têm movimentos específicos, como os tornozelos

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que fazem inversão, movimento medial da planta do pé para dentro e eversão:
movimento lateral da planta do pé para fora. Existe, ainda, a protrusão: um movimento
linear do braço paralelo ao solo para frente e afastando-se do plano frontal do corpo;
e o seu contrário, a retração: também um movimento linear com o braço em paralelo
ao solo, mas na direção oposta, ou seja, para trás. Com esse vocabulário, você já pode
entender um pouco a natureza do movimento físico e suas possibilidades, uma vez que
se apresentou uma visão mais anatômica e geral.

Figura 12 – Tipos de movimento: protrusão, retração, rotação medial e rotação lateral

Fonte: Lippert (2015, p. 16)

Em princípio, poder-se-ia perguntar da utilidade de um professor de teatro


ou de dança precisar dominar essa nomenclatura, pois ele não será requisitado
a dar diagnósticos precisos a respeito do movimento, pois não é um médico ou um
fisioterapeuta. Ele precisa, contudo, saber que tipo de movimentos o corpo humano
é capaz de fazer para que possa transformá-los em matéria cênica. Compreendendo
formas gerais de comportamento, ele poderá saber que exercícios expressivos pedir
para o desenvolvimento de seus alunos. Como já se comentou anteriormente, a saúde
faz parte do cotidiano do educador. Da mesma maneira, saber os movimentos não basta
para um conhecimento vivo; eles servem apenas como uma orientação possível que
auxilia o profissional cênico.

De posse dessas informações, podemos dar mais um salto para outro campo
de conhecimento que ajuda a perceber o potencial criativo do corpo. Se o corpo é
uma figura física e natural, mas também cultural e o processo de interação dessas
dimensões permite o seu uso criativo, deve ficar claro que os aspectos emocionais e
intelectuais também atravessam essas dimensões corporais. Um corpo que se exercita
e se expressa em grupo implica não apenas trocas de sensação, mas o despertar de
sentimentos e ideias. Por essa razão, precisa-se comentar a importância da terapia
física no trabalho do educador (AZEVEDO, 2002). Várias formas de terapia expressiva
enxergam a totalidade do corpo pelo movimento. Se estamos buscando um novo
paradigma do corpo, enxergá-lo a partir de um novo episteme, precisamos adentrar
visões que colocam essas dimensões em interação.

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Para iniciar, vamos começar com a posição do autor israelense Moshe
Feldenkreiss e seu método de consciência pelo movimento. Seus exercícios são
planejados para que o atuante se torne mais consciente de sua própria individualidade
por meio de um treinamento autoeducacional, ou seja, cada praticante vai descobrindo
o sentido e a potencialidade de seu próprio corpo em ação. Ele rejeitava exatamente as
forças que tentam uniformizar os seres humanos em sociedade como se todos fossem
corporalmente iguais. O resultado são indivíduos que não compreendem os desejos que
brotam de seus corpos.

Estas condições levam a maior parte dos adultos hoje em dia a viver
atrás das máscaras, a máscara da personalidade, que o indivíduo
tenta apresentar aos outros e a si mesmo. Cada aspiração e desejo
espontâneo são sujeitos a rígida crítica interna, por medo de que
revelem a natureza fundamental do indivíduo. Tais aspirações e
desejos trazem ansiedade e remorso, o indivíduo procura suprimir o
impulso de realizá-los. [...] A necessidade de apoio constante é tão
grande, que a maior parte das pessoas passa a maior parte das suas
vidas reforçando as máscaras (FELDENKRAIS, 1977, p. 23).

Segundo o autor, os impulsos orgânicos podem ser liberados pelo movimento


e reorganizam a vida inclusive no campo social. Cada pessoa constrói para si uma
autoimagem, com uma mudança significativa no modo de agir, modificando essa imagem
de maneira criativa. Os exercícios corporais estimulam as células no córtex motor do
cérebro (FELDENKRAIS. 1977). O ser humano é um resultado daquilo que ele usa ou,
melhor dizendo, daquilo que ele movimenta. Sua técnica é conhecida por fazer o aluno
pensar enquanto age e agir ao mesmo tempo em que pensa. Os movimentos supérfluos
e o gasto excessivo de energia são abandonados e nos tornamos mais conscientes de
nossos processos. É uma união de imaginação e de movimento ligado às necessidades
mais básicas da vida. Um exemplo perfeito de um conhecimento que advém do corpo.

Outro exemplo interessante é a prática da eutonia, criada por Gerda Alexander.


Ela também propõe uma tomada de consciência da unidade psicofísica do ser humano.
A palavra eutonia significa “bom tônus”, ou seja, existe uma tonicidade harmonicamente
equilibrada que está constantemente se adaptando às situações vividas pela pessoa.
Para que isso aconteça, o(a) praticante precisa realizar uma auto-observação para
alcançar um estado do que a autora chamava de “presença”.

Essa presença requer, ao mesmo tempo, uma neutralidade de


observação e uma amplitude de objetivos que não devem ser
influenciadas pela perspectiva de um determinado resultado. Essa
neutralidade e essa abertura são as condições fundamentais para o
desenvolvimento eutônico (ALEXANDER, 1983, p. 10-11).

A autora parte da ideia de que existem muitas fixações nas relações musculares
que precisam ser reintegradas ao comando geral do corpo. Isso exige toda uma série
de exercícios que trazem relaxamento para que cada pessoa aprenda a aumentar ou a

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diminuir o tônus conforme a necessidade de suas ações. O contato é mais importante do
que o tato, pois implica a vivência consciente da ação e a percepção das alterações de
tônus, de circulação e de metabolismo. Saber avaliar as próprias sensações e descobrir
seu próprio estilo de movimentação é o objetivo de todo eutonista.

DICA
Para o estudo mais aprofundado dessa prática terapêutica e corporal veja a obra
Eutonia da autora, Gerda Alexander.

Por fim, temos uma outra forma de terapia corporal que nasceu do trabalho
de observação de um ator. Trata-se da técnica de Alexander, criada pelo australiano
Mathias Alexander. Em seus trabalhos como artista, Alexander muitas vezes se viu em
uma situação em que, durante uma apresentação, perdia a voz. Ao verificar com um
médico e ver que não tinha nenhum problema nas cordas vocais, decidiu pesquisar
sobre si mesmo e criar um conhecimento do próprio corpo.

Lembro-me ainda de, nesse período, discutir com meu pai os erros do
uso que eu havia observado tanto em mim quanto em outras pessoas
e de argumentar que, nesse aspecto, não havia diferença entre nós
e um cão ou um gato. Quando ele me perguntou por que, respondo:
‘porque nosso conhecimento sobre o uso de nós mesmos não é maior
que o de um cão ou um gato’. Com isso eu queria dizer que a direção
que o homem imprimia a seu uso, por ser baseada na sensação, era tão
irracional e instintiva quanto a do animal (ALEXANDER, 2010, p. 28-29).

Com seus estudos, Alexander (2010) chegou à conclusão de que todo ser
humano tem o poder de se modificar. Para isso, precisa romper com os hábitos que
constituiu no processo de seu crescimento.

Alexander (2010) descobriu que o uso da cabeça e do pescoço determinam a


maior ou a menor tensão do resto do corpo. Por isso, esses dois elementos, junto com o
torso, são essenciais na organização corporal.

Havia sete princípios que explicitavam seu entendimento do corpo. O primeiro é o


uso e o desempenho de si, ou seja, o modo de ter controle de suas ações. Uma pessoa
deve ter consciência de suas várias formas de agir e escolher as melhores.

O segundo princípio é a pessoa inteira, isto é, qualquer pensamento ou emoção


afetam o corpo todo; então, a intenção de uma ação já é uma preparação física. O
controle primordial é o terceiro princípio, sendo necessário o relaxamento da cabeça e

39
do pescoço para obter a organização do corpo inteiro. A apreciação sensorial enganosa
é o quarto princípio. Ele implica desconfiar das sensações do corpo, pois, por conta dos
maus hábitos, o usual parece correto, mas pode estar equivocado. Pela conscientização
e exercícios, pode-se criar uma apreciação corporal verdadeira (AZEVEDO, 2002).

O quinto princípio é a inibição, que é a capacidade de impedir que um hábito ruim


se manifeste, adiando a ação para que haja tempo da preparação adequada. Instruções
é como se chama o sexto princípio e se refere à quando se desconfia dos hábitos e se
abre o caminho para que a espontaneidade orgânica surja. Fica clara a relação direta
entre consciência e tônus muscular. E, por fim, fins e meios é o sétimo princípio. Trata-
se do processo de atingir o objetivo, e não se preocupar com o objetivo em si, ou seja,
os meios são importantes para a finalidade a que se deseja chegar, quando se trata
de corpo. Buscar meios fisiológicos e racionalmente melhores é mais relevante do que
encontrar resultados diretos. (AZEVEDO, 2002).

Compreendendo as possibilidades físicas do movimento e tendo em mente


a totalidade do corpo, é possível constituir um novo paradigma em que a expressão
corporal é uma forma própria de conhecer a realidade. Um artista cênico precisa ter
compreensão íntima dos seus modos de agir e fazê-lo sempre por vontade e escolha
própria, sem criar qualquer risco a sua saúde e sempre alcançando efeitos de beleza.

Agora, passemos a entender como essa série diferente de movimentos pode


constituir aquilo que a sociologia e a antropologia entenderam por técnicas corporais
influenciadas pela cultura e pela prática criativa.

3 AS TÉCNICAS DO CORPO
Como se viu anteriormente, não se trata de fazer o corpo criar algo externo a
si, mas que está ligado a sua própria existência. Isso significa que precisamos entender
que o corpo é capaz de construir um tipo de discurso que lhe é próprio.

Neste tópico, iremos ver como se constrói essa discursividade considerando


a linguagem, a história e as ciências sociais. Posteriormente, vamos ver o arcabouço
de movimentos disponíveis ao corpo e, por fim, adentrar visões integradas da natureza
corporal, unindo natureza e cultura a partir, principalmente, de processos que precedem
a prática cênica.

Muitos acontecimentos acabam por ser reunidos dentro de um mesmo


conceito, muitas vezes de modo mais aleatório do que se imagina. A sociedade constrói
categorias para explicar os fenômenos que está vivenciando em certo período e toma
fatos muito diferentes como se fossem um grupo coeso, coerente e homogêneo.
Apenas olhando com mais criticidade e detalhismo, pode-se perceber as divergências
internas nessa concepção.

40
O filósofo Michel Foucault (2008) criou um termo para designar como cada época
legitima seu discurso sobre o conhecimento: o episteme. O pensador a caracteriza como o
conjunto de relações de uma época específica, quando se analisa as regularidades dos
discursos das ciências do período. Não é um conhecimento em si mesmo, mas todos
os recursos que permitem que algo seja visto como um conhecimento digno de ser
estudado. O problema acontece quando coisas diferentes e dispersas são vistas como
universais e atemporais. A episteme é:

[...] uma interrogação que só acolhe o dado da ciência a fim de se


perguntar o que é, para essa ciência, o fato de ser conhecida. No
enigma do discurso científico, o que ela põe em jogo é o seu direito de
ser uma ciência, é o fato de que ele existe. E o ponto onde se separa
de todas as filosofias do conhecimento é o que ela não relaciona
tal fato à instância de uma doação originária que fundaria, em um
sujeito transcendental, o fato e o direito; mas sim aos processos de
uma prática histórica” (FOUCAULT, 2008, p. 217).

O resultado desse tipo de discurso é a criação de uma justificativa para relações


de poder vigentes na sociedade. Dessa forma, o corpo foi visto como um elemento
subalterno e até mesmo inferior, pois ele não se adequava às relações coerentes que
se espera.

O filósofo percebeu que existiam hierarquias sobre seres, objetos e conhecimentos


pelo modo como os discursos são construídos. Nesse caso, o pensamento abstrato
e etéreo foi visto como superior a tudo o que o corpo humano pudesse produzir e,
portanto, não tomava a devida relevância como criador ativo de conhecimento.

Esse amalgamado de textos que reproduzem relações de poder criavam o que o


autor francês chamava de a priori histórico, ou seja, não se apresentava o fundamento
do discurso em uma verdade comprovada, mas tudo o que é dito é composto de uma
história determinada, ainda que tenha um caráter ficcional. É o que ele percebeu
quando falou na sexualidade que, mesmo em um período científico do século XIX, ainda
carregava os preconceitos constituídos pela educação religiosa do passado. O que
antes era visto como pecado, torna-se não natural ou ilícito, como no caso de práticas
não heteronormativas. Estamos sempre tratando de estratégias de saber como relações
de poder. A saída proposta é ver a ação dos elementos singulares e heterogêneos que
podem romper com essa coerência. Nessa situação, é que se configura a importância
do corpo como agente criativo e, diante disso, é que vamos comentar o corpo como
agente técnico.

Você já parou para pensar o que é uma técnica? O que se esconde por trás
dessa palavra tão comumente usada em diversos setores da sua vida? Nós a usamos,
normalmente, para designar um conhecimento especializado; algo que apenas algumas
pessoas dominam e são capazes de realizar. A origem mais provável da palavra é que ela
tenha vindo do grego téchne, que significava a arte ou a habilidade de realizar alguma
coisa, muito ligada à noção de artesania. O modo como alguém aprende a fazer um

41
jarro de barro ou produz um tecido com as próprias mãos são exemplos bem pontuais.
O termo técnico se refere a um conhecimento, mas que passa pelas relações pessoais
e pela observação. Perceba que, no passado anterior à criação da indústria, todo
aprendizado de conhecimento precisa passar por esse tipo de relação em que pelas
experiências com alguém mais entendido se desenvolvia um ofício.

O sociólogo francês Marcel Mauss foi o primeiro a utilizar esse termo empregado
ao corpo humano. Ele falava em técnicas do corpo, no plural, pois se referia a todas
as maneiras como os seres humanos, de sociedade em sociedade, de uma forma
tradicional, sabem servir-se dos seus próprios corpos. Assim, imaginava proceder a
uma investigação das situações concretas para o terreno mais abstrato (MAUSS, 2003).
Estudando etnografia, ele percebeu que nem todos os povos possuem todas as práticas
físicas da mesma maneira. Os polinésios, segundo ele, não sabiam nadar como os
franceses. Estava-se diante de um fenômeno social importante, pois isso significava
que cada povo desenvolvia criativamente a sua forma de realizar uma ação.

Outro fato que deixava claro o que se entendia por técnica corporal residia na
maneira como gerações diferentes aprenderam a nadar. O autor comentava que, em
sua juventude, primeiro se aprendia a nadar para só então aprender a mergulhar na
água e que isso deveria ser feito fechando os olhos e depois, dentro da água, abrindo.
Na época em que escrevia seu artigo, os ensinamentos estavam completamente
invertidos: a criança começava a aprender a se acostumar com a água mergulhando de
olhos abertos (MAUSS, 2003).

Havia, ainda, o costume de nadar engolindo água e depois cuspindo; um hábito


que praticamente não se fazia mais. O mais interessante, porém, é que o próprio autor
reconhecia que não conseguia se desvencilhar das técnicas que lhe foram ensinadas.

Ele percebeu, também, como certos povos marcham, caminham ou cavam de


maneiras muito diferentes e que aí residia o caráter de todas as técnicas. Cada sociedade
tem hábitos que lhe são próprios. Estes variam não apenas com os indivíduos em suas
imitações de modelos comuns, mas sobretudo com as sociedades, as educações e as
conveniências; as modas e os prestígios (MAUSS, 2003). Como o próprio autor colocou
sobre o processo de sua observação:

Enfim, uma outra série de fatos se impunha. Em todos esses


elementos da arte de utilizar o corpo humano os fatos de
educação predominavam. A noção de educação podia
sobrepor-se à de imitação. Pois há crianças, em particular,
que têm faculdades de imitação muito grandes, outras muito
pequenas, mas todas se submetem à mesma educação,
de modo que podemos compreender a sequência dos
encadeamentos. O que se passa é uma imitação prestigiosa.
A criança, como o adulto, imita atos bem-sucedidos que ela
viu serem efetuados por outras pessoas nas quais confia e
que têm autoridade sobre ela. O ato se impõe de fora, do alto,
mesmo um ato exclusivamente biológico, relativo ao corpo
(MAUSS, 2003, p. 405).
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O corpo, que seria o que de mais natural existe no ser humano, nunca se
apresenta despido de elementos educacionais que dirigem o modo de aproveitar e de
interagir com a realidade. Ele é o objeto e, ao mesmo tempo, o meio técnico da raça
humana. Toda adaptação a um objetivo físico e mecânico acontece somente por uma
série de atos montados pelo indivíduo em relação com sua sociedade nativa (MAUSS,
2003). O modo de vida de cada um carrega uma série de valores que muitos tomam
como simplesmente universais e automáticos.

Mauss (2003) também entendia que as técnicas acabavam tendo condições


de classificação. Poderia se comentar que existiriam duas sociedades divididas pelo
sexo biológico, uma vez que as técnicas que serviam aos homens eram diferentes
das técnicas das mulheres e ele exemplifica na forma como ambos fecham o punho.
Essa ideia do sociólogo fazia muito sentido em sua época ao perceber o fato de que
havia, sim, diferenças, mas hoje sabe-se que a estrutura patriarcal era responsável por
determinar que certas práticas fossem bem-vistas apenas para gêneros determinados.
Como foi comentado antes, as relações sociais acabam trazendo imposições de poderes
estabelecidos que direcionam nossas leituras e, nesse caso, serve para indicar quais
são os hábitos que devem ser encorajados em uma mulher. Hoje, as mulheres praticam
todos os esportes que antes eram designados apenas para os homens, como as lutas
de MMA. De qualquer maneira, é interessante comentar que Mauss (2003) percebeu,
desde aquela época, a transversalidade de seu assunto ao tentar reunir a psicologia, a
sociologia e a fisiologia.

No mesmo sentido, ele considerou a diferença das técnicas pelas idades dos
indivíduos. Uma criança tem mais facilidade em se agachar do que um adulto. Isso o
fez considerar que algumas práticas poderiam ser socialmente mais utilizadas se não
fossem reprimidas ainda na infância. Percebeu como os soldados australianos se
portavam melhor por não saberem se agachar como as crianças e ele, como francês,
tinha dificuldade de fazer o mesmo gesto (MAUSS, 2003). Essa ideia ressoa bastante
com as pesquisas dos terapeutas físicos apresentados no subtópico anterior. Saber
ouvir as necessidades do corpo e estimulá-las conscientemente faz toda a diferença
para um conhecimento saudável de si.

As técnicas corporais ainda podem ter uma relação com o rendimento de


resultados esperados. Algumas práticas humanas transformam os corpos para lidar
com tarefas, ou seja, as técnicas servem como uma forma de adestramento para atingir
objetivos. Trata-se da habilidade em algum tipo de instrumento.

O modo como se monta um cavalo, o uso de armas ou a montagem de uma


máquina só são possíveis pelo processo de aprendizado. Para que se possa fazer isso
de modo seguido, é preciso a aquisição de certa destreza ou habilidade. Os movimentos
são coordenados para certas finalidades e tem-se uma previsão do que se vai obter ao
final desse controle corporal.

43
Esse processo de adestramento retorna aqui com o tema da educação, pois a
técnica corporal existe apenas por uma relação humana que permitiu sua aquisição.
Mauss (2003) tem a argúcia de perceber que os detalhes são essenciais para que
haja a aprendizagem dessas técnicas corporais. Ele comentava que se reconhecia
um muçulmano facilmente pela educação que teve em se alimentar apenas com a
mão direita e limitando o uso da mão esquerda nos locais que tocava. As repetições
de elementos aparentemente supérfluos constroem um hábito, um modo de vida, ou,
melhor, uma técnica corporal.

Considerando esse aspecto, muitos podem afirmar que a influência biológica


ficaria em segundo plano. Contudo, como já demonstramos, a técnica corporal se baseia
na materialidade biológica para que possa ser apreendida. O que deve ficar claro é que as
técnicas corporais são alimentadas pelos valores culturais da sociedade que determina
como os impulsos humanos devem ganhar forma. Por isso, retoma-se a importância de
perceber o quanto nossos comportamentos são reprimidos e manipulados pelos meios
sociais a ponto de decidir o que é normal ou estranho. As práticas de um povo são normais
para eles, mas podem ser estranhas aos olhos de outros. Como o próprio Mauss (2003,
p. 417) comentou sobre a dança de salão: “[...] é preciso saber que a dança enlaçada da
civilização moderna da Europa. O que demonstra que coisas completamente naturais
para nós são históricas. Aliás, elas são motivo de horror para o mundo inteiro, exceto
para nós”.

Existem, portanto, duas formas com que as técnicas corporais se apresentam e,


o mais importante: existe uma relação direta entre a gestualidade e as formas do corpo
que são dadas pelos valores socioculturais. A primeira se refere à modelagem corporal
por intermediações posturais e motrizes.

A segunda é sua dependência na observação do indivíduo em contato com os


outros. As técnicas do corpo também não são estáticas; elas se transformam ao longo
do tempo. Nenhuma interação humana acontece em um controle absoluto; muitas
transformações acontecem, pois detalhes que eram essenciais na criação de uma
técnica ficaram ausentes, mas a prática prosseguiu e, com isso, transformou-se.

Fica definido, assim, que toda forma de cuidado de um corpo traz consequências
para a sua existência. Algumas pessoas podem achar que nossa relação com a
saúde física no comportamento sempre existiu, mas, na verdade, ela foi construída
culturalmente e se dá em grande medida nos termos apresentados aqui, de modo
técnico. A ginástica, por exemplo, surgiu com os espartanos na Grécia Antiga, perto do
século VI a.C. Vários outros povos tinham práticas semelhantes de exercício do corpo,
mas apenas os gregos a valorizaram pela nudez estética. Isso gerou um modelo artístico
que pode ser observado nas pinturas, esculturas e nos desenhos legados por eles.

44
A ginástica era estimulada como forma educacional para que os jovens tivessem
condições de defender a cidade. Mantém-se até hoje a prática do pentatlo: os cinco
exercícios competitivos que se faziam na ginástica, que, na época antiga, eram: corrida,
salto, lançamento de disco, lançamento de dardo e luta. Desde então, sofreu várias
modificações, sendo hoje composto de esgrima, tiro, hipismo, natação e corrida. E,
evidentemente, em decorrência da mudança dos costumes, a própria nudez que foi um
fator importante para o exercício foi abandonada por completo. Um detalhe desaparece
com o tempo, mas algo da técnica se mantém.

Pode-se ir mais longe observando como a prática esportiva surge e como


se transforma historicamente. O termo “esporte” pertence ao período da Idade
Média francesa e se referia a passar um tempo em boa companhia; posteriormente,
passou para a Grã-Bretanha se referindo ao remo, à esgrima e à equitação. A técnica,
inicialmente, envolvia a relação de amizade, mas se transformou em práticas físicas que
esses amigos faziam juntos e, hoje, ganhou um campo próprio de desenvolvimento. Os
corpos humanos são mais mutáveis do que se imagina, pois a prática de exercícios irá
modificar e moldar sua expressividade.

O que parece ficar claro aqui é que as técnicas do corpo não se limitam ao uso de
instrumentos ou ferramentas, embora isso também tenha influência na transformação
corporal. Pessoas que passam a vida usando um tipo de roupa têm sua estrutura
corporal contida pela vestimenta, orientando formas de tensão e de expressão típicas.
Mesmo a relação com outros seres pode ajudar nas transformações corporais. Uma
pessoa que cavalga com frequência terá um tipo de abertura nas pernas diferente de
quem não o faz.

Há movimentos que convêm a certos grupos culturais e menos a outros, da


mesma maneira que o que era comum para nossos antepassados dificilmente será
marcante para nós. O que parece ser uma técnica sem lugar e tempo específicos, pelo
menos no imaginário comum, conhece variações repentinas e marcadas.

E, aqui, surge a principal questão de como estudar as técnicas corporais hoje


em dia, pois não há como fazer um estudo tão detalhista que apresente uma estrutura
tão básica que possamos entender o corpo fora das suas vivências. Só conseguimos
entender a técnica corporal em comparação a outras. Podemos perceber as diferenças
de caminhada olhando para as várias formas, mas não encontraremos nunca uma
caminhada básica que sirva de raiz para as outras.

Nenhum ser humano nasce sem a sua disposição em obter uma máscara social.
São conhecidas as histórias de crianças selvagens que foram criadas por animais e, com
isso, repetiam seus comportamentos, como correr em quatro patas. Mera presença de
modelos, ainda que não humanos, pode conferir os estímulos para as técnicas corporais
de qualquer um. A construção cultural está sempre em conexão com a vida biológica,
como vimos no Tópico 1. De qualquer maneira, a técnica corporal tem sua independência
pelo aspecto da aprendizagem social.

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Não escaparemos do construído social. Por ser sem dúvida uma
banalidade, esta observação toma uma importância considerável
num domínio em que uma de suas originalidades é engendrar
medos, fascinações ou rejeições particulares. O simbólico, no sentido
de Marcel Mauss, é indissociável do empírico e do tratamento social
(CORBIN; COURTINE; VIGARELLO, 2012, p. 347).

A ideia de que técnicas corporais são a aplicação de normas sociais nos faz
pensar que somos apenas um fruto da sociedade. Por outro lado, isso não implica
que somos vítimas dos primeiros aprendizados, mas que sempre se pode tomar outro
caminho durante a formação. Isso significa que já nascemos com a disposição para
nossas próprias criações corporais. Se não existe uma essência corporal natural que
todos teriam se fosse negado o ensino, isso significa que todo corpo é concretamente
válido para construir-se tecnicamente.

Dessa forma, fica claro que as técnicas do corpo carregam algo de intangível
pela forma como são transmitidas e absorvidas. Também deve-se comentar que não
existe uma técnica corporal fechada, pois, se ela depende de relações sociais que
se transformam em espaço e tempo, elas serão sempre múltiplas e só podem ser
conhecidas e reconhecidas por comparação. O espontâneo de nosso comportamento
passa sempre por relações invisíveis que lhes trazem significado. É nesse contexto que
se deve pensar o processo artístico pelo corpo.

4 CRIATIVIDADE CORPORAL: AS ARTES CÊNICAS


De que maneira as técnicas corporais são relevantes para pensarmos o conhe-
cimento do corpo? Basta pensar que os modos como usamos os corpos estão em cons-
tante transformação. A criatividade aparece quando um grupo de artistas decide optar
por condutas corporais diferentes daquelas que são dadas como corretas ou normais pelo
grupo social. Os artistas cênicos da dança e do teatro estão sempre transformando seus
corpos para que possam executar formas mais estéticas de movimentos.

Toda pessoa que já fez balé sabe o sofrimento que muitos dançarinos passam
para adquirir a musculatura e a elasticidade necessárias nos lugares certos para que
possam executar seus passos. Um corpo se transforma pelas práticas que percebe e
executa; daí muitos artistas passam tanto tempo em ensaios e em treinamentos. Seus
corpos podem começar frágeis, mas eles ganham as características próprias na medida
em que repetem suas séries de movimentos e de gestos.

Um artista precisa reaprender a falar, andar, agir, girar e equilibrar-se em


cima de um palco. Precisa construir um novo corpo que se sobreponha à herança
biológica, um corpo dado pela técnica artística. Muitas escolas de teatro exigem que

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seus alunos aprendam a lidar com suas dificuldades e descubram formas de agir mais
espontaneamente, sem ficarem presos aos vícios corporais que a sociedade lhes
impingiu. Precisam desenvolver tonicidade, flexibilidade, orientação no espaço, ritmo
coordenado, lateralidade e resistência.

A prática regular e sistemática de exercícios físicos não traz apenas um resultado


de mudança material, mas permite um acesso a uma linguagem criativa. Constitui-
se em uma espécie de corpo cênico que experimenta o espaço e o tempo de modo
potencializado. Um corpo aprende a se mover em um sentido que transcende padrões
e expectativas, pois sua função como executante estético é explorar e investigar a
temporalidade, a espacialidade, a fluência e o peso do próprio corpo em relação ao
seu ambiente. Isso mostra o verdadeiro conhecimento corporal, pela forma como ele é
executado, e de que maneira se ganha uma nova consciência de si.

Consciência corporal, da maneira como é ensinada pelas artes, significa levar


ao corpo o conhecimento do seu funcionamento. O reconhecimento das diversas leis
gerais que nele operam, seja pela ação da natureza, seja por imposição da cultura, e
nesse caminho achar o ponto oblíquo, a transversalidade das relações, e se colocar
criativamente pelo modo como respira, age e sente. O processo criativo está presente
no modo em que se entende todas as relações formativas do corpo, que de alguma
maneira já atuam inconscientemente, e estabelece a passagem para um grau mais
consciente dessas forças. O dançarino e o ator aprendem a perceber as ações sobre
seus corpos e a transformá-las pela própria vontade, desdobrando novas possibilidades
de movimento. A consciência deve ser entendida como autoconhecimento de tudo o
que opera sobre o corpo.

Figura 13 – Corpo, consciência e autoconhecimento na dança

Fonte: https://bit.ly/3ywSIL7. Acesso em: 11 out. 2022.

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A dança e o teatro servem como um caminho possível para a conscientização,
porque seu processo técnico ajuda a nomear e a perceber as partes do corpo que não
estão conscientes. Enquanto o artista se movimenta, confere significado e sentido
às partes do corpo que não percebia que eram fundamentais para sua existência e
movimento. As preocupações intelectuais das pessoas as separaram da vida comum e
se perdeu a consciência de muitas partes do corpo, mas, quando se executa uma ação
com consciência, isto é, seguindo-a detalhadamente, logo descobre-se que mesmo a
mais simples e a mais comum das ações, tal como levantar-se da cadeira, tinha algo de
misterioso e que não se tinha absolutamente ideia de como isso era feito até o momento
(FELDENKRAIS, 1977).

Todo discurso sobre o corpo, falado ou escrito, perde o ponto essencial da


experiência corporal. A tentativa de descrever o que se sente e o que se faz são sempre
relevantes, sobretudo para profissionais das artes cênicas, mas nunca conseguem
explicar exatamente o que é dançar ou atuar. Não se precisa das palavras escritas para
afirmar o corpo como um ser capaz de conhecer. Cria-se conhecimento enquanto se
experimentam os estados de passagem entre movimento e repouso.

Quando se está descobrindo formas de se movimentar, está-se trazendo


novas posições e gestos que fazem sentido no momento da execução. Um corpo que
se expressa está sempre inventando novas maneiras de se fazer sentir pelas pessoas
em volta. Novas dimensões de percepção surgem quando se observa um ator ou
um dançarino em trabalho. Pelo comportamento cênico, entra-se na noção de fluxo,
cunhada pelo psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi (1992, p. 67):

Trata-se de situações nas quais a atenção deve ser livremente


investida para alcançar as metas pessoais, porque não existe
desordem a ser corrigida, nem ameaça contra a qual o self precise
defender-se. Chamamos a esse estado, experiência de fluir, porque
é um termo usado por muitas pessoas que entrevistamos para
descrever como se sentem quando em sua melhor forma: “era
como flutuar”; “eu fluía junto à coisa”. [...] e aqueles que a alcançam
desenvolvem um self mais confiante e mais forte, porque a energia
maior de sua energia psíquica foi investida com sucesso em metas
que eles próprios decidiram atingir.

De acordo com o autor, essa experiência de fluir, ou estado de fluidez, é uma


situação de alteração de consciência, ou seja, um comportamento fora do comum da
conduta cotidiana. Ele surge provocado pela realização de uma ação que toma o seu
agente de forma total e completa. Há um controle da situação, mas ela não torna o
agente rígido; pelo contrário, ele se lança com precisão ao seu objetivo. Não se trata,
aqui, de ações automatizadas, desconectadas do mundo. O corpo se move de maneira
íntegra e engajada, pois sua vida parece depender do resultado que visa alcançar,
embora não sinta excesso de estresse. Estar em fluxo é estar aberto a uma dimensão
temporal diferenciada. O agente vive o presente do presente; uma vivência de extrema
concentração em que corpo, mente e alma são apenas um. A tão comentada presença
do ator e do dançarino são exemplos claros disso.

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Figura 14 – A presença de Paulo Autran no palco

Fonte: https://bit.ly/3T8CHDL. Acesso em: 11 out. 2022.

A repetição dos exercícios e de técnicas corporais levam a uma percepção


alargada da própria prática de tal maneira de que quando executam suas atuações,
estão imersos nelas. Um ator e um dançarino, quando realizam suas cenas, não estão
pensando em outras coisas além daquilo que estão fazendo.

O corpo cênico precisa estar cuidadosamente atento a si, aos seus colegas
de cena e a todo o contexto em que está envolvido. A sua força sensorial precisa ser
aberta e conectada. É a atenção que faz a diferença. A atenção é uma precondição para
a ação cênica, ou seja, um estado de alerta sem tensão excessiva, quase relaxada, que
se experimenta pela firmeza dos movimentos que foram educados e desenvolvidos pelas
técnicas. Uma técnica corporal criativa é exatamente isso: a atenção dirigida ao trabalho
e todas as influências do meio, para que possa se transformar conforme as necessidades.

Cada escola de teatro ou dança desenvolve suas próprias técnicas corporais.


Em alguma medida, elas pesquisam as condições dos corpos, criam exercícios, usam
imagens estéticas, defendem princípios éticos e estabelecem metas artísticas.

Cada grande mestre sistematiza a atenção e organiza os movimentos para obter


determinados efeitos que acha mais importantes para se comunicar com o espectador.
Para tanto, criam suas escolas com vocabulários próprios de como designar a ação
corporal. A criação do comportamento cênico é bastante complexa e, por isso, é preciso
ver separadamente algumas dessas escolas para verificar como trabalham a expressão
corporal como atividade criativa.

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DICA
Para aprofundar mais a relação das artes cênicas com o corpo, procure o livro
História Mundial do Teatro de Margot Berthold.

Dentro do teatro, uma das primeiras grandes escolas vem da Rússia e foi
constituída por Konstantin Stanislavski. Em uma época em que se buscava uma atuação
mais perto da realidade, o mestre russo procurou criar um sistema que evitasse o clichê
e alimentasse a verdade na atuação.

O ator deveria ser capaz de criar uma vida no palco com sua personagem
e expressá-la de forma bela. Se o ator usasse sua imaginação pesquisando as
circunstâncias dadas pelo texto dramatúrgico e pela personagem, ele poderia pesquisar
ações que seriam os meios de expressão da emoção. Para isso, o corpo precisava
estar preparado com exercícios que trariam relaxamento, mobilidade, flexibilidade e
expressividade (AZEVEDO, 2002).

Figura 15 – Konstantin Stanislavski

Fonte: https://bit.ly/3SRpTkJ. Acesso em: 11 out. 2022.

Outro encenador importante, também do cenário russo, foi Vselevod Meyerhold,


aluno de Stanislavski. Ele acreditava que o movimento cênico é o que havia de mais
importante e que o ator precisava se apropriar de um código técnico para representar
no palco. Acreditava mais em um teatro de convenção do que no realismo, isto é, a
imaginação corporal era mais relevante do que tentar mimetizar a vida cotidiana, muito

50
influenciado pelo circo, a commedia dell’arte e o music hall. Utilizava-se de um sistema
de treinamento que racionalizava os movimentos: a chamada biomecânica, que consistia
em pequenas coreografias que contavam histórias com movimentos exagerados
(AZEVEDO, 2002). A memorização e a repetição dos movimentos preparavam o ator
para ter condições de atuar.

Figura 16 – Vselevod Meyerhold

Fonte: https://bit.ly/3CXRMlX. Acesso em: 11 out. 2022.

Alguns pensadores de teatro não deixaram técnicas corporais tão explícitas


como os anteriores, mas sempre tiveram entendimentos da importância do corpo,
a exemplo de Antonin Artaud e de Bertolt Brecht. O primeiro foi um ator francês,
reconhecido pela sua visão metafísica e ritual do teatro. Pensava que a alma estava
concretizada pelo corpo e poderia ser fisiologicamente reduzida a uma meada de
vibrações, tratando as paixões materialmente (AZEVEDO, 2002). O segundo foi um
dramaturgo e encenador alemão, que busca um teatro social e politicamente crítico.
Procurava uma linguagem gestual em que o ator se posicionaria no palco sublinhando,
discordando e/ou assumindo uma posição sobre o que sua personagem faz. Para isso,
seu princípio de trabalho era extremamente formal, em que o corpo do ator deve ter
características de atuante e narrador (AZEVEDO, 2002).

Cabe mencionar também o encenador Jerzy Grotowski, que realizava exercícios


para a liberação dos impulsos vitais para a criação de formas físicas originais em que
corpo e mente trabalham em consonância. Ele utilizava exercícios que permitiam
o autoconhecimento da ação e da reação corporais, a coluna vertebral como centro
dos movimentos e exercícios plásticos que conscientizavam os vetores das direções
corporais. Existe, ainda, a escola de Étienne Decroux, que desenvolveu o mimo corpóreo

51
e se dedicou para que o ator fosse como um músico instrumentista de seu próprio
corpo. O ator deveria aprender impecavelmente a técnica de tocar seu corpo, como um
instrumento musical que toca uma partitura. Decroux criou sua visão do corpo cênico
como uma série de movimentos e conjunto de gestos que serviam para constituir um
vocabulário próprio com o qual se criaram as cenas.

Figura 17 – Étienne Decroux

Fonte: https://bit.ly/3RUqm4t. Acesso em: 11 out. 2022.

Da mesma maneira que existem muitas escolas e linhas teatrais, a dança


também carrega uma multiplicidade de fontes e de entendimentos, o que resulta,
portanto, em muitas técnicas criativas diferentes para a dança.

Pode-se iniciar com o trabalho de François Delsarte, bailarino e cantor do


século XIX e um dos primeiros grandes sistematizadores. Ele observou a si mesmo e aos
outros e estabeleceu uma lista de gestos que corresponderiam a estados emocionais
precisos. Acreditava que o gesto era o agente persuasivo, aquele que conduz o coração
(AZEVEDO, 2002). Para ele, o corpo estava intimamente ligado ao sentimento.

Deve-se comentar, também, o pedagogo suíço Émile-Jacques Dalcroze, que


foi um dos mais ilustres representantes do início da dança moderna. Ele acreditava
na troca entre o campo psíquico e as repercussões sensoriais. Acreditava, ainda, na
existência de um sexto sentido de origem muscular, a que aprecia a experiência própria
do corpo (CORBIN; COURTINE; VIGARELLO, 2012). A sua ideia de treinamento do corpo
passava pela experiência musical em que cada gesto corresponde a um signo da música
configurando sempre um jogo rítmico.

52
No início do século XX, os balés russos revolucionaram a dança tradicional com
um novo entendimento do comportamento do corpo. Unindo pantomima, ginástica,
esporte e atletismo à dança, acabaram por criar um treinamento em que os movimentos
não precisavam mais da antiga coordenação acadêmica. Os braços poderiam dançar
em um tempo diferente das pernas, por exemplo (AZEVEDO, 2002). Uma herança que
aparece na dança moderna.

Ela ficará conhecida por ter seus bailarinos trabalhando a partir de contrações,
torções e desencaixes para alcançar uma liberdade diferente do ballet clássico. Cada
linha pedirá um tipo de comportamento cênico específico. Um último exemplo fundador
e modelo desse estilo foi Isadora Duncan. A bailarina acreditava em seu trabalho como
expressão de seu temperamento e de sua história pessoal. Inspirou-se nas ações mais
comuns do ser humano: andar, correr e saltar. Usava também a ginástica como base
de seu treinamento para criar músculos ágeis e vigorosos. Somente depois desse
preparo, viria a dança em que o corpo responderia às pulsações da natureza em seus
movimentos, dançando descalça e em ondulações.

Figura 18 – Isadora Duncan

Fonte: https://bit.ly/3fYYb7e. Acesso em: 11 out. 2022.

O pesquisador teatral Eugenio Barba passou sua vida pensando na técnica


corporal dos atores/bailarinos. A formação de corpos preparados para a ação cênica
exige pedagogias específicas. Existe uma busca formal para que o artista possa
executar formas únicas com seus corpos. No entanto, a técnica corporal é um princípio
de trabalho, uma condição para que a criatividade possa surgir. O corpo se torna
mais permeável aos desejos dos dançarinos e atores, e, assim, eles podem criar com
imaginações corporificadas. Como o próprio Barba (2010) coloca sobre o trabalho que
teve com seus atores no seu grupo, o Odin Teatret:

53
A técnica é um resultado, mas também um limite. É preciso
superá-la; mas é preciso tocar este limite. No início nosso interesse
concentrou-se na técnica. Tínhamos a necessidade de nos afirmar
profissionalmente, de acordo com as teorias teatrais vigentes, para
superar nosso senso de inferioridade e nosso complexo de rejeição. A
técnica foi um objetivo na nossa biografia de grupo. Depois chegou o
dia em que nos perguntamos como ir além dos resultados alcançados.
Vimos que estávamos nos tornando um modelo, corríamos o risco de
ficar igual a midas: tudo o que tocávamos transformava-se em ouro,
algo que brilha, mas não tem valor nutritivo (BARBA, 2010, p. 95).

Esse ponto é muito importante para aqueles que trabalham com processos
criativos a partir do corpo. A técnica não é uma mera mecanização em que se repetem
comportamentos culturalmente estáticos de modo idêntico. As técnicas corporais nas
artes cênicas servem a propósitos muito claros; elas devem desenvolver o corpo para
que ganhe os atributos necessários a sua apresentação. Por outro lado, não se espera
que esses atributos valham por eles mesmos; o artista precisará achar uma forma de
transcender o que aprendeu. A criatividade surge pelo aprendizado, e não sem ele.

Desse modo, cada técnica tem valor para aquilo que se pretende alcançar.
Colocar um bailarino clássico para fazer dança moderna pode não ter bons resultados.
Ele estará preparado tecnicamente, mas a sua preparação veio junto com o aprendizado
de uma linguagem estética específica. Ele precisará se adaptar às exigências de outra
estética. Talvez, isso crie a ideia de que se deve aprender as várias técnicas, mas isso
também não resolverá o problema.

Cada corpo desenvolve-se em uma imersão na linguagem estética a que se


submete. Colocá-lo em relação a várias linguagens diferentes apenas fará com que se
relacione superficialmente a elas, mas não conseguirá aprofundar o seu desenvolvimento.
A transformação corporal depende de um treinamento. O corpo precisa ser colocado
diante de vários exercícios típicos da sua linha para que possa ter as qualidades cênicas
que precisa para o palco. Treinar nas artes cênicas é um trabalho sobre si mesmo.

Isso não significa que o treinamento é algo puramente individual, na medida em


que é um conhecimento compartilhado pelas relações entre mestres e alunos; afinal, é
preciso uma série de referências para se criar algo com o aprendizado. O que se está
comentando é que o ator ou o dançarino precisam fazer um mergulho em si mesmos
com a técnica que estão aprendendo e, dessa forma, desenvolver a própria criatividade
a partir do corpo.

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RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:

• Visto que o corpo é uma entidade complexa que se transforma pelas mais variadas
razões e sentidos, passa-se a entendê-lo como uma parte do ser humano no processo
de conhecimento. O fato de o corpo existir já traz para ele a possibilidade de conhecer
a partir dessa existência; um fato fundamental para artistas que trabalham com o
processo criativo do corpo.

• A forma mais básica de conhecimento do corpo vem das suas sensações e


movimentos. Para isso, a cinesiologia ajuda a reconhecer um potencial instintivo do
corpo esquadrinhando as suas possibilidades com um vocabulário próprio. Fica-se
sabendo dos planos e do eixo do movimento, bem como das ações que as partes do
corpo podem realizar, como flexão, extensão, abdução etc., até mesmo os processos
terapêuticos de suas formas de compreensão do funcionamento do corpo.

• O aprendizado de um corpo passa pela aquisição consciente ou inconsciente de


técnicas do corpo. O modo como cada pessoa realiza ações simples, como caminhar,
nadar ou saltar, passam por um aprendizado coletivo. Cada grupo constitui suas
formas de expressão mais básicas a partir dos valores que a coletividade determina.

• Compreendendo as possibilidades de movimentos do corpo e seu aspecto técnico,


pode-se perceber como configuram as artes cênicas, tanto o teatro quanto a dança.
Cada escola cria suas próprias formas para a atuação criativa em um palco. Assim,
foi mostrada, de modo resumido, a compreensão de corpo para autores como
Stanislavski, Isadora Duncan, Grotowski e outros.

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AUTOATIVIDADE
1 Para determinar o movimento de algum objeto, é preciso ter um termo de referência
que possa servir para indicar o deslocamento. Considerando a estrutura do corpo
humano, do ponto de vista anatômico e cinesiológico, ele só pode ser estudado em
sua potencialidade de movimentos quando são determinados padrões que indicam
os tipos de ação possíveis de serem realizados. Nesse sentido, leia as sentenças a
seguir sobre eixos e planos.

I- O eixo sagital corresponde ao plano sagital.


II- O eixo frontal corresponde ao plano frontal.
III- O eixo longitudinal corresponde ao plano transverso.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) Somente a sentença I está correta.
b) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
c) ( ) Somente a sentença III está correta.
d) ( ) As sentenças I, II e III estão corretas.

2 “É este o mundo imediato, mundo dos sentidos e dos meios, dos estados físicos, que
restitui primeiramente uma história do corpo; um mundo que varia com as condições
materiais, os modos de habitar os modos de garantir as trocas, de fabricar objetos,
impondo modos diferentes de experimentar o sensível e de utilizá-lo.” (MAUSS, 2003,
p. 407). Sobre a técnica do corpo de Marcel Mauss, classifique V para as sentenças
verdadeiras e F para as falsas.

Fonte: MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São


Paulo: Cosac & Naify, 2003.

( ) Foi estudando anatomia e cinesiologia que Mauss percebeu as diferenças culturais


nos corpos humanos.
( ) Mauss utilizou como exemplo pessoal da técnica do corpo a natação. Ele aprendeu
a nadar para depois mergulhar, mas, anos depois, os jovens aprendiam a mergulhar
para depois nadar.
( ) A aprendizagem das técnicas do corpo também pode vir da observação que as
crianças fazem dos adultos.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – V – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – F – V.
d) ( ) F – V – V.

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3 O corpo humano é um local de desenvolvimento criativo. Todo ser humano tem um
potencial a ser despertado no uso do movimento corporal por meio de técnicas de
dança e de teatro. Um dos resultados do trabalho cênico é alcançar o que o psicólogo
Mihaly Csikszentmihalyi (1992) chamou de estado de fluência. Nesse sentido, assinale
a alternativa que melhor define esse tipo de comportamento.

Fonte: CSIKSZENTMIHALYI, M. A psicologia da


felicidade. São Paulo: Saraiva, 1992.

a) ( ) É a capacidade de se submeter aos mais duros exercícios que transformam o


corpo e continuar agindo sem se preocupar com a dor.
b) ( ) É um estado de alienação que os dançarinos e os atores experimentam para a
incorporação completa da arte e a fascinação do público.
c) ( ) É um estado de consciência alterada em que o agente de uma ação está
completamente envolvido no que faz.
d) ( ) É a capacidade de deixar passar todas as influências externas como se não
estivesse lá, em completa fluência com o meio.

4 “Em pé diante do espelho, observei-me atentamente durante o ato de falar


normalmente. Repeti esse ato muitas vezes, mas nada vi na minha maneira de fazê-
lo que parecesse errado ou antinatural. Passei então a observar-me com atenção
enquanto declamava e imediatamente notei várias coisas que não havia notado
quando simplesmente falava” (ALEXANDER, 2010, p. 17). Esse é o testemunho de
Mathias Alexander ao considerar seu trabalho sobre o próprio corpo. Explique os sete
princípios e sua importância para o processo criativo do corpo.

Fonte: ALEXANDER, F. M. O uso de si mesmo. São


Paulo: Martins Fontes, 2010.

5 O sociólogo Marcel Mauss (2003) passou a ideia de que uma técnica do corpo deve
muito ao aprendizado que recebe pela coletividade. O artista cênico é alguém que
aprende formas de comportamento específicas para a cena, seja ele um pesquisador
pela via do teatro ou da dança. Nesse sentido, explique como se adapta a ideia de
técnica corporal ao processo criativo no comportamento cênico.

Fonte: MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São


Paulo: Cosac & Naify, 2003

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58
UNIDADE 1 TÓPICO 3 -
CORPO CRIATIVO: REPRESENTAÇÃO
E PERFORMANCE

1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, no Tópico 3 abordaremos o processo criativo do corpo com relação
à cênica total. Compreendidos os elementos formadores do corpo e a maneira como ele
se transforma criativamente, pode-se entrar, agora, no processo artístico propriamente
completo. Como já se disse, o corpo é um meio e um objetivo quando transformado
pelos processos criativos dos artistas. Nesse sentido, vamos entrar, neste tópico, em
conceitos que tocam a dança e o teatro quanto às suas criações.

Cabe pesquisar o que é uma representação, uma performance, a diferença


conceitual entre ambas e como se estrutura um espetáculo cênico, além de pensar
as maneiras que um corpo pode atingir um estatuto de arte e causar uma marca na
consciência de seus espectadores.

O corpo humano é dado à metamorfose independentemente de seu aspecto


cênico. A criação de produtos artísticos na presença corporal apenas deixa isso mais
evidente. Quando um ator se apresenta diante de um público, ele está trazendo toda
a sua intimidade para ser admirada por pessoas diferentes dele. Esse novo olhar surge
com o treinamento e a técnica que foram capazes de convocar a atenção alheia.
Neste tópico, vai-se entender como os processos criativos do corpo dialogam com a
percepção exterior e de que maneira as teorias da cena, a filosofia e a história cultural
da cena ajudam a ler esse fenômeno da recepção.

2 O QUE É UMA REPRESENTAÇÃO?


O que pensamos quando ouvimos a palavra representação? A maioria das
pessoas acessa a ideia de que vai assistir a algo como um espetáculo ou um show. E,
provavelmente, essa pessoa estará correta em pensar assim, pois essa é a acepção mais
comum dada para a palavra. No entanto, esse termo esconde uma série de significados
que precisam ser estudados por quem trabalha com os processos criativos do corpo. O
que se entende quando alguém diz que representa alguma coisa?

Estudando nosso idioma, veremos que o português entende que uma


representação é uma espécie de retorno de algo que não está mais lá. O ato de
representar traz o significado de trazer para o presente algo que se passou; seria tomar
algo que está ausente e trazê-lo de volta com outros novos meios. Isso é o que fazemos

59
constantemente no uso de nossa linguagem. Quando falamos o nome de algo ou
de alguém, estamos trocando sua presença física pelo som de seu nome. Para que
fique mais claro, quando leio a palavra “elefante” imagino o animal de carne e osso,
mas ele não vai surgir caminhando com suas pesadas toneladas, fazendo bramidos
com sua poderosa tromba. O que acontece é que conseguimos comunicar um objeto
real trocando-o pela palavra que comumente o designa. Algo que aprendemos com a
semiótica, da qual se pode dizer:

Quando uma coisa se apresenta em estado nascente, ela costuma


ser frágil e delicada, campo aberto a muitas possibilidades ainda
não inteiramente consumadas e consumidas. Esse é justamente o
caso da Semiótica: algo nascendo e em processo de crescimento.
[...] A Semiótica é a ciência que tem por objeto de investigação todas
as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos
modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno
de produção de significação e sentido (SANTAELLA, 1999, p. 8-13).

Essa explicação filosófica quer dizer que, quando falamos de representação,


estamos falando de um modo de comunicação e de conhecimento. As palavras são signos,
ou seja, sinais que nos levam para elementos que existem ainda que não sejam tangíveis;
que apareçam para nós, seja em sentidos, seja em nossas mentes, mas que precisam ser
colocadas em outros termos exatamente por serem difíceis de captar. É o caso do que
está se fazendo neste texto sobre o corpo. Ele é um fenômeno que se apresenta a todos
a todo o momento, mas, quando se estuda seu processo de representação, vê-se que
existem muitas camadas e leituras possíveis que se podem usar.

O que importa comentar é que uma representação não é um mero procedimento


burocrático em que trocamos a coisa pela sua palavra. Representar também sempre traz
espaço para a criatividade, porque sempre há um caráter de experiência pessoal ligado
à generalização. Pensemos, novamente, nessa mesma noção de linguagem quando se
fala uma palavra. Todos são, em princípio, capazes de entender o significado de uma
expressão, mas cada um retira a sua própria experiência.

Quando se fala a palavra “corpo”, o que você imagina? Poderia ser uma
pessoa magra ou gorda; alta ou baixa; forte ou fraca; masculino, feminino ou outro;
de qualquer tom de pele. As palavras representam o que existe e o que não existe
ao mesmo tempo. Esse é o ponto importante que se precisa saber para lidar com a
expressão dentro da cena.

No caso das artes cênicas, tanto o teatro quanto a dança podem parecer que
não representam nesse sentido que faz a linguagem, como uma espécie de nova
apresentação de algo. Afinal, quando se leva um espetáculo para um palco, não parece
que se está trazendo algo que existe em outro lugar, pois os artistas realizam suas ações
naquele exato momento. Por outro lado, no caso do teatro, pode-se afirmar que ele traz,
sim, alguma coisa que já existe para o instante da apresentação. O texto dramático que
estava na forma textual existia apenas como palavras impressas e agora é realizado
pelo elenco.
60
Basicamente, um autor escreveu uma obra dramática a qual o diretor e seu elenco
precisam transformar em cena viva. Designam-se os atores para suas personagens e se
criam as representações do que foi concebido em forma escrita. Deseja-se trazer uma
estória que antes só podia ser acessada pela leitura para um terreno novo como o palco.

DICA
Para conhecer melhor o processo de representação, procure o livro Grandes
Teorias do Teatro de Jean Jacques Roubine. No livro o autor expõe as novidades
alcançadas historicamente na Europa.

E no caso da dança? Uma coreografia não estava em um estado latente de texto


escrito. De que maneira pode ser vista como uma representação de algo preexistente?
Apesar de não ter uma origem material determinada como o teatro costuma ter, a dança
também se baseia em uma experiência original no seu processo de criação. Ela pode vir
de uma ideia abstrata que surgiu na mente do coreógrafo, da interação com a música ou
pelos movimentos aleatórios que os dançarinos fazem em treinamentos e em ensaios.

A dança pode prescindir de palavras, mas sua experiência apresentada em um


palco também é uma possibilidade de retorno ao que se vivenciou em outro lugar. Nem
sempre o próprio teatro surge de um texto dramático, mas ele sempre representa alguma
coisa. De qualquer maneira, ele passa de um estado para outro e é nesse quesito que
surge a cena como objeto de representação. A experiência originária vai se transformar
em corpos em ação em um local de apresentação. Como colocou Jussara Miller (2012)
a respeito dos processos de criação em dança no que chamou de ação transformadora:

[...] a perspectiva da ação transformadora de um processo criador,


que evidencia a originalidade da obra a partir da unicidade do artista
em sua atitude de transformar e selecionar as infinitas possibilidades
de criação. O ato criador está em permanente transformação poética
para elaboração e criação artísticas. Esta não é isolada, sendo tecida
por fios interligados, e a ação transformadora mostra como um fio ou
acontecimento é atado ao outro (MILLER, 2012, p. 132).

O artista toma os fatos vivenciados por ele e os coloca de maneira cênica no


palco. Se um dançarino precisa criar uma dança sobre a tristeza, ele irá representar
o que sentiu em movimentos físicos precisos, de modo que possa comunicar algo
daquele fenômeno com seu público, criando novos sentimentos. Uma sensação pode
ser a origem de todo um conjunto de cenas. O desafio dos dançarinos é como realizar
esse passo criativo que sai de uma origem singular e torna-se outra coisa, mas que
se comunica com o que seu criador vivenciou. Nesse sentido, pode-se afirmar, com
certeza, a qualidade de representação mesmo na dança.

61
A representação em dança acaba tendo de recorrer a sua singularidade técnica.
Cada escola apresenta um modo de improvisação e de construção de um vocabulário
de movimentos. Seus exercícios existem para que os dançarinos possam descobrir
como criar suas coreografias. O que mostra a criatividade corporal é que, apesar de
todos compartilharem da mesma linha técnica, cada um a reconstrói conforme sua
própria imaginação. O ensino técnico se torna permeável para que os corpos possam se
expressar esteticamente e encantar cinestesicamente.

Isso implica que a palavra representar deve ser lida nesse aspecto de tornar
algo presente; no caso, no instante da apresentação cênica. Como coloca o teórico
Patrice Pavis, existem, pelo menos, dois critérios fundamentais para compreender a
ideia de representação no palco: “[...] repetição de um dado prévio e criação temporal do
acontecimento cênico – estão, com efeito, na base de toda encenação” (PAVIS, 1996, p.
338). O fato é que se apresenta algo que não tinha vida autônoma antes da representação.

Representar se tornou essencial ao processo de encenação, isto é, não se pode


falar da cena de uma peça se ela não for representada. Para o teatro, isso significa que
o processo criativo exige a ultrapassagem do texto escrito, da mesma forma que, para
a dança, é preciso analisar como os movimentos dos bailarinos se configuram durante a
execução. Na verdade, todos os elementos em separado, como a sonoplastia, a música,
a iluminação e o cenário, são amalgamados juntamente com os corpos dos artistas.
A representação se torna, então, uma forma de apresentação, pois transforma seus
elementos diferentes que a constituem em uma totalidade quando é vista pelo público.

Assim que os corpos se colocam em cena, há uma transformação plástica,


musical e gestual da realidade. O que havia antes era uma espécie de abstração, algo
etéreo e sem forma definida. Tudo que preexiste ao palco é apenas potencial, uma
virtualidade. Isso quer dizer que só se pode falar do trabalho dos artistas enquanto
representam, mas não antes.

Todos os modelos que possam ter servido para orientar seus trabalhos nunca
serviram para determinar cabalmente o trabalho. A origem do trabalho, de onde veio a
representação, existe apenas em estado latente, mas ela pode tomar qualquer forma,
dependendo do que os artistas selecionarem e criarem.

Pense, por exemplo, na representação de uma coreografia como a Sagração da


Primavera ou em um texto dramático como Otelo. Essas obras existem apenas como
indicações, mas não são explicações do que o coreógrafo ou o encenador teatral devem
fazer. Apenas os dançarinos e os atores com o resto da equipe é que vão oferecer a obra
de modo a ser vista por um público.

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Figura 19 – Sagração da primavera

Fonte: https://bit.ly/3TetYiG. Acesso em: 11 out. 2022.

Como Otelo vai sentir ciúmes? Como serão os passos dos dançarinos com a
música? Os artistas vão explorando nos ensaios e depois decidem o que lhes convém
mostrar em sua representação. Essa interpretação do processo de representação
parece, portanto, abandonar a noção de fidelidade da cena com aquilo que a originou. O
teatro passou por essa questão, constantemente, no passado, tendo defensores de que
não passaria de um galho em que a árvore é a literatura; uma ideia que, hoje, já encontra
o esgotamento.

Continuamos a escrever peças, obras literárias, dramas.


Inversamente, o espetáculo não precisa, para existir, de uma origem,
de um suporte ou de um rastro textual. O importante é identificar
antes o estatuto do texto na representação considerada: é recebido
como fonte de sentido a ser considerado pelo espectador – ouvinte,
ou é, pelo contrário, tratada como material musical, mais audível
que compreensível? Contudo, o próprio encenador não tem de se
pronunciar de maneira definitiva e unívoca. De fato, muitas vezes
ele permite que a dúvida continue: seus atores transmitem o
texto, o pronunciam, porém muitas vezes fazem-no como se não o
compreendessem, e de maneira que isso não seja mais problema seu
(PAVIS, 2013, p. 383).

Essa descrição do teórico Patrice Pavis se relaciona com a situação como a


representação é vista hoje. O texto existe, mas deixou de ser um elemento central
da representação teatral. Nesse sentido, o teatro, cada vez mais, assemelha-se à
dança como um local em que os corpos se movimentam em todos os seus níveis,
incluindo as vozes dos artistas. A própria palavra parece encontrar limites para se
referir à expressão cênica em geral. O que se experimenta, na atualidade, é uma ideia
de autonomia da representação cênica e, por isso, alguns conceitos passaram a ser
usados diferentemente.

63
Diante de todas essas questões levantadas, outra maneira de entender as artes
cênicas em representação seria entendê-la como símbolo. A fala, como já apresentamos
anteriormente ao tratar da semiótica, pode ser considerada uma simbolização de ideias,
ao usarmos sons específicos das palavras para nos fazermos compreender. Entretanto,
a filósofa Susanne Langer (1989) percebeu que existiriam algumas ideias que não podem
ser expressas diretamente pela linguagem discursiva. Ela trouxe a ideia de que existiriam
símbolos apresentativos, ou seja, tudo aquilo que não cabe dentro de uma conceituação
intelectual e só pode ser apresentada por imagem, sons, movimentos, ritmos e figuras.
Os artistas fazem simbolizações com seus corpos tanto na dança quanto no teatro.
Como a autora conceitua:

[...] ela difere do simbolismo sem palavras, que é não-discursivo e


intraduzível, não admite definições dentro de seu próprio sistema e
não pode transmitir diretamente generalidades. [...] Os significados
de todos os outros elementos simbólicos que compõe um símbolo
maior e articulado são entendidos apenas através do significado do
todo, através de suas relações no interior de uma só estrutura. Eles
se fundem como símbolo porque pertencem a uma apresentação
simultânea e integral. Essa forma semântica, nós chamaremos de
“simbolismo apresentativo” [...] (LANGER, 1989, p. 102-103).

O que a autora quer dizer é que existem formas de representação que não
podem ser tomadas exatamente como a linguagem comum faz. Um dançarino pode
representar o amor com movimentos de modo que a palavra escrita não consegue.
Contudo, esse tipo de ideia de uma representação simbólica que não depende de uma
ideia preexistente fez muitos teóricos refletirem se a natureza da palavra representação
é adequada ao teatro e à dança.

Se a filósofa estiver correta de sua apreensão simbólica da arte, não importa


tanto o que se representa por meio do corpo, mas o que ele simboliza pela própria
expressão. Todas as interpretações de teatro e a dança correm sempre o risco de cair
em um misticismo inócuo. Como já foi comentado, todo discurso sobre dança e teatro
sempre alcança um limite pela linguagem que se utiliza. O mais importante é entender
que essas artes têm uma significação filosófica própria. Assim como o teatro não é
dependente do texto, a dança não depende da música.

O que promove sua originalidade representacional então? A força do teatro e da


dança não reside na retomada possível de algum valor ou texto que existiria antes dele.
É a apresentação corporal que promove valores próprios. O gesto corporal comunica,
mesmo que não comunique a ideia original que o promoveu. Estamos falando que o
movimento real que os corpos cênicos fazem é material e sensível, mas ele sempre
implica uma leitura do observador que o leva para um caráter de ficção. As artes
cênicas sempre têm algo de planejado, mas também um campo de espontaneidade. O
pensamento filosófico de Susanne Langer (1989) aponta para esse caráter espontâneo
como o verdadeiro diferencial.

64
Representar é apenas uma pequena parte, embora relevante. É a apresentação
que a torna marcante ou não. Perceba que o que se comenta aqui está presente em
outras artes também. Todos os livros escritos em língua portuguesa recorrem às mesmas
regras gramaticais e às palavras do idioma; no entanto, apenas alguns podem promover
essa relação emocional no momento exato da leitura. No caso das artes cênicas, o fator
que desejamos nomear aqui é a presença.

Constrói-se um corpo presente quando ele atende ao estado de prontidão


de que se comentou no Tópico 2 sobre o estado de fluência. O dançarino e o ator se
apresentam diante do público, mas o modo como um se movimenta ou apresenta a
personagem vai depender dessa conexão que leva suas ações e movimentos.

Não se pode descrever exatamente esse estado e a maneira como ele move
emocionalmente o espectador, mas apenas se sente. Por isso, o processo simbólico das
artes cênicas é o que melhor aponta para a compreensão da criatividade pelo corpo.
Entretanto, se o termo representação apresenta esses limites, talvez fosse necessário
pensar em uma palavra que ajudasse os artistas a se expressarem melhor. Daí, criou-se
uma noção mais adequada da palavra performance.

2.1 O QUE É PERFORMANCE?


A palavra performance vem da língua inglesa e, do ponto de vista etimológico,
significa “realização total”, fazer completamente alguma coisa. Refere à atuação ou ao
desempenho de algo ou alguém. O termo é usado para uma gama gigantesca de campos
diferentes. Falamos de performance nos negócios, nas engenharias, na educação, nos
esportes, nas relações sexuais e em vários outros campos, porque ela, basicamente,
significa executar uma ação. É nesse contexto que ela também foi usada para definir o
campo das artes, em especial das artes da cena.

Essa expressão foi usada muito tempo para apreender o trabalho de todo artista
que fazia exibições ao vivo. O ator, o dançarino, o cantor e o músico ficaram conhecidos
como tipos diferentes de “performers”, pois precisavam realizar um tipo de ação direta
que marcava o seu desempenho diante de uma plateia. Com o tempo, a palavra começou
a ganhar outras conotações dentro das artes visuais e plásticas: um tipo de arte que se
relaciona com a dança e o teatro, mas que desenvolveu sua própria autonomia.

Na década de setenta do século XX, a performance art passou a ser aceita


como uma expressão independente (GOLDBERG, 2006). É difícil precisar sua origem,
mas pode-se dizer que as tentativas revolucionárias das vanguardas artísticas (todas
elas) tentavam expressar um tipo de arte que ultrapassava as convenções dadas pela
sociedade. Foi uma tentativa de criar uma arte total que se caracterizava por ser feita
naquele instante em que estava acontecendo; a arte se transformava em um evento
sem limites estabelecidos.

65
Na Itália de 1909, surgiu uma nova proposta artística que visava revolucionar o
entendimento cultural vigente com uma violência incendiária. Era publicado o primeiro
manifesto do Futurismo, movimento artístico de múltiplas frentes, criado por Filippo
Marinetti. Ele foi influenciado pela obra do dramaturgo Alfred Jarry e sua peça Ubu Rei,
uma peça provocadora com um cenário simples e em que o personagem principal abria
o espetáculo falando “Merdra” (GOLDBERG, 2006).

Figura 20 – Ubu Rei

Fonte: Goldberg (2006, p. 2)

INTERESSANTE
Ubu Rei foi um grande deboche com a cultura francesa, inspirado em Macbeth de
Shakespeare. Para conhecer e entender melhor o fenômeno do Ubu Rei, leia o
próprio texto escrito por Alfred Jarry em várias edições no país.

O futurismo se caracterizava pela valorização da velocidade da máquina, a


guerra, o tumulto e o prazer. Um de seus eventos marcantes foi a Serata, um sarau
que misturava declamação poética, música, pintura e representação. Seu objetivo era
criar um tipo de arte dinâmica que não ficasse presa a um momento fixo e pudesse
desconcertar a sociedade. Muitos consideram esse evento como o grande precursor
da arte da performance (GOLDBERG, 2006). O declamador futurista não era uma alma
etérea ou uma cabeça pensante, mas alguém que declamava com suas pernas tanto
quanto seus braços. O corpo se torna o elemento expressivo para acabar com uma
literatura e com uma arte pacifista e nostálgica.

66
Essas ideias são transportadas para a Rússia em poucos anos e fazem sucesso
em Moscou e em São Petersburgo, em 1913. Os artistas desse período eram conhecidos
por seus comportamentos extravagantes, como rostos pintados, brincos e até rabanetes
ou colheres nas casas dos botões do casaco (GOLDBERG, 2006). Essa é a efervescência
cultural do Construtivismo russo, um movimento que preconizava uma arte voltada para
a sociedade industrial, com o uso de estéticas inovadoras e com um viés sociopolítico.

Autores como Vladmir Tatlin e Vladmir Maiakovski estão entre os nomes mais
importantes desse movimento. Pode-se citar como exemplo dessa estética a ópera
Vitória sobre o Sol, com um cenário cubista, com formas cônicas de Kasemir Malevitch,
ou o balé Danças mecânicas, de Nicolai Foregger, em que os dançarinos se moviam de
modo mecanizado. O corpo é reconfigurado para além dos princípios de beleza que se
consolidaram no século anterior, buscando um ser humano em conexão com a máquina,
criando um tipo de obra artística até então não vista.

Figura 21 – Danças mecânicas

Fonte: Goldberg (2006, p. 49)

Talvez um dos movimentos mais agressivos à cultura estabelecida na Europa


tenha vindo com o dadaísmo. Em Zurique, na Suíça, no ano de 1916, surgiu um teatro-
cabaré bastante popular na vida noturna da cidade, em que se fizeram experimentos
estéticos que prosseguiam com essa ruptura cultural de como compreender a arte:
o Cabaret Voltaire. O local era pequeno, mas servia bem aos seus trabalhos cênicos
com o objetivo de entreter um público bastante diversificado, onde faziam suas soirées,
pequenas festas artísticas.

Lá, surgiram nomes como os escritores Hugo Ball, Frank Wedekind, Richard
Huelsenbeck e Tristan Tzara, pintor romeno. Acreditavam que foi o abandono da frase
logicamente construída de seus textos devido a dois fatores: um grupo cheio de energia

67
em um período em que não havia tempo para descanso e em que precisavam produzir
constantemente, e a influência de Marinetti. Eles produziram esquetes despreocupadas
de uma fábula ou de um sentido para serem absorvidas pelo público. O som e o corpo
acabavam sendo fontes mais interessantes do que qualquer história encenada. Existem
muitas histórias a respeito da origem do movimento, mas basicamente a palavra “dadá”
não tem significado algum e era assim que a arte deveria ser: despreocupada de
qualquer valor transcendente.

Em abril de 1916 fizeram-se planos para uma “Sociedade Voltaire”


e uma exposição internacional. A renda das soirées iria para a
publicação de uma antologia. [...] Foi nessa época em que Ball e
Huelsenbeck apelidaram a cantora madame Le Roy com o nome
que haviam encontrado em um dicionário alemão-francês: “Dada
é sim, sim, em romeno, cavalinho de balanço e cavalinho de pau
em francês”. “Para os alemães”, afirmou Ball, “é um símbolo da
ingenuidade leviana, alegria na procriação e preocupação com o
carrinho de bebê” (GOLDBERG, 2006, p. 52).

Um exemplo bem claro de seu trabalho era o que chamavam de poema


simultâneo em que vários declamadores recitavam o mesmo poema. É conhecida a
leitura da obra de Tzara, A febre do macho, que se seguiu com um assalto de gritos,
assobios, provocações cantadas com o uso de um boneco sem cabeça que recebia
flores artificiais (GOLDBERG, 2006). Os dadaístas acabaram se dispersando e seus
integrantes levaram suas experiências para outros locais. Um desses lugares foi Paris,
onde floresceu um dos movimentos vanguardistas mais pungentes: o surrealismo.

A Paris daquele período já fazia experimentações artísticas bastante progressivas


antes de o movimento se constituir. Um exemplo foi a exibição do balé Parade, que
contava com nomes como o músico Erik Satie, o pintor Pablo Picasso e o escritor Jean
Cocteau, e que combinava o music hall com as atrações de circo em uma sequência
de cenas cômicas. Era o tipo de obra cênica que já quebrava os parâmetros culturais
com cenas que desafiavam a narrativa convencional e colocavam-se mais próximas
do corpo como experiência estética pura e principalmente com um tom cômico. Isso
sedimentou a aparição das performances surrealistas.

O Surrealismo surge no início da década de 1920, organizado principalmente


por André Breton, que ficou bastante inspirado pelas soirées dadaístas. Dentre os
nomes importantes que ajudaram a construir o movimento, estão: Louis Aragon, Phillipe
Soupault e Paul Éluard. Publicariam o Manifesto Surrealista, em 1925, quando abriria o
chamado departamento de Pesquisas Surrealistas, um espaço próprio onde colocariam
suas ideias sobre o rumo que a arte deveria tomar (GOLDBERG, 2006). Defendiam o
automatismo psíquico como meio de expressão, bastante influenciados pelas ideias
psicanalíticas de Freud.

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Obras cênicas foram bastante pontuais entre as produções dos surrealistas.
Sua preocupação em aproximar a realidade vivida do mundo onírico trazia dificuldades
para a composição de cenas. Não se pode deixar de mencionar algumas peças, como
a de Roger Vitrac, Mistérios do Amor, e Jato de Sangue, de Antonin Artaud, como
exemplos de teatro surrealista. Também deve-se mencionar o balé Rêlache, escrito por
Francis Picabia, que apresentava um bombeiro que fumava enquanto despejava água
de um balde a outro e homens de fraque seguiam uma bailarina (GOLDBERG, 2006). De
qualquer maneira, foi pensada a necessidade de um novo corpo que pudesse responder
às exigências do sonho humano.

Figura 22 – Rêlache

Fonte: Goldberg (2006, p. 117)

Esses movimentos vanguardistas iniciaram novas formas de se pensar o teatro


e a dança. As obras que tentaram realizar clamavam por um novo tipo de apresentação
corporal e, para isso, pensaram em formas de ruptura artística. Como se viu nas suas
incursões, apenas o termo performance parecia ser capaz de dar conta dessa nova
estética, embora ele só possa se consolidar muito posteriormente. Começa-se a esboçar
um tipo de arte que está mais preocupada com o seu processo de criação do que com
um resultado a ser apresentado.

Estamos falando de uma arte que não se separa da experiência de estar vivo.
Poderíamos citar muitas outras formas artísticas que surgiram nessa linha. A escola de
arte alemã Bauhaus fez importantes experimentos cênicos com Oskar Schlemer e seu
ballet triádico em que, observando o movimento de bonecos, criou movimentos mais
estilizados. Nos Estados Unidos, o Black Mountain College também buscou inovar as
artes cênicas e de lá surgiram o músico John Cage, cuja melodia surge do silêncio e do
ruído, e Merce Cunninghan, que colocava dançarinos fora do compasso.

69
Como se percebe, muitos tipos de artes diferentes se juntam para que sejam
executadas de maneira mais caótica e interativa. Os artistas não se diferenciavam muito
dos espectadores, que, em muitos casos, poderiam interferir. Isso colocava essa arte
próxima do ritual e com um caráter estético que escapava de qualquer racionalização.
Muitas vezes, o corpo do performer era o ponto principal do acontecimento. Apenas um
exemplo para que se possa entender é sobre a performance de Marina Abramovic, o
Ritmo 0. Marina colocou 72 objetos (que podiam gerar prazer ou dor) sobre uma mesa.
Desde um batom, penas, uvas, até uma tesoura, faca, chicote e uma arma carregada
com uma bala. Ela ficou seis horas à disposição para que usassem esses elementos em
seu corpo.

Figura 23 – Marina Abramovic em Ritmo 0

Fonte: https://bit.ly/3CLjpyn. Acesso em: 11 out. 2022.

Neste momento, já deve ter ficado claro que o termo performance é muito mais
amplo do que a noção de representação. Os artistas da cena não buscam retomar um
sentido já pré-constituído de alguma maneira, mas criar algo mais original e em grande
medida relacionado ao corpo humano. A ideia de performance revolucionou as artes
da cena ao colocar o corpo como uma forma que se autoproduz artisticamente sem
precisar de referências externas para que seja visto como arte.

A performance é uma verdadeira arte do corpo, pois ela exige um tipo


de presença em que o controle intelectual acaba bastante reduzido. Uma obra de
representação, seja em dança, seja em teatro, precisa de uma ordem vertical para ser
levantada; produtores organizam as estruturas para a logística e a apresentação da
obra; diretores coordenam os elencos; coreógrafos indicam os passos aos dançarinos.
Na arte performática, temos uma experiência mais horizontal, em que o artista

70
trabalha com colaboradores que são tão importantes quanto ele, podendo interferir
no resultado. O corpo é apresentado sem necessidade de personagem; ele basta pelo
que se apresenta em termos poéticos e plásticos. É uma arte viva que dispensa o
narrativo para dar ênfase à associação e ao ritual.

Aqui, é importante ter uma visão bastante ampla do que se pode compreender
por ritual. Não basta pensar apenas na cerimônia religiosa, embora ela, com certeza, seja
um bom exemplo. Um ritual é uma estrutura, ou seja, ele diz respeito a uma materialidade
muito concreta, pois pode ser visto, ouvido e sentido na medida em que tudo o que o
compõe ocupa um lugar no espaço. Ele serve para uma função, por mais estranha ou
ingênua que possa parecer aos olhos de alguém, ele sempre é realizado para alguma
finalidade. Eles são realizados para que seus participantes tenham ou marquem alguma
mudança; logo, eles também são um processo que se dá no tempo. E o mais interessante
é que ele é algo do qual se participa, conecta-se na medida em que se interage.

Portanto, um ritual é uma ação e é isso que o relaciona com a ideia de performance.
São ações que servem para controlar e redirecionar as emoções, organizam a vida diária
determinando hierarquia e suas mudanças, marcam os territórios com significações e
ajudam a compreender as relações entre os indivíduos e os grupos. Estamos falando
de ações que são feitas com o corpo e que alteram o estado em que ele se encontra.
A formatura em uma universidade é um ritual que marca a passagem do aluno para o
graduado; cantar o hino nacional é uma marca de identidade de uma coletividade; e
todas as formas protocolares de agir em situações sociais marcam formas seguras de
se manifestar perante as pessoas.

Nesse sentido, é que se pode inferir das relações com as performáticas no


nível artístico como ritualização. Se todas as performances, em última instância, são
ações, isso significa que é o corpo quem promove todas as mudanças por meio de
suas atitudes. Todo movimento pode constituir uma performance que altera a situação
das pessoas envolvidas. Quando um artista fala, canta, corre ou dança está agindo e,
com isso, constituindo a possibilidade de um ritual que engaje a transformação. Nesse
sentido, as performances servem para expressar melhor as formas artísticas na dança e
no teatro, pois indicam a função básica do corpo como ser vivo que age.

Foi o pensador Richard Schechner, diretor de teatro e teórico, que compreendeu


que a melhor forma de se aproximar das encenações seria pelo termo da performance,
pela sua qualidade ampla. Performance deve ser vista como uma palavra guarda-chuva
que permite compreender melhor a natureza do comportamento em sua corporeidade
total. É o elemento vivo que coordena a sua prática em múltiplas possibilidades.

Performance é um termo inclusivo. O Teatro é somente um ponto


no continuum que vai desde as ritualizações dos animais (incluindo
humanos) às performances da vida cotidiana – celebrações,
demonstrações de emoções, cenas familiares, papéis profissionais e
outros, por meio do jogo dos esportes, teatro, dança, cerimônias, ritos
– e as apresentações espetaculares (LIGIÉRO, 2012, p. 18).

71
Entretanto, deve já ficar esclarecido que tomar a cena como execução de um
ato não significa reduzi-la aos seus elementos observáveis materialmente. Em toda
performance, existem forças implícitas que carregam a motivação e a finalidade dessa
ação. Trata-se aqui de considerar que sempre há um elemento ficcional na cena e,
portanto, no uso dos corpos.

Performances são fazer-crer no jogo, por prazer. Ou como Victor


Turner disse, no modo subjuntivo, o famoso ‘como se’. Ou como
poderia ser na estética sânscrita, performances são lila (esportes,
jogo) e maya (ilusão). Mas a tradição sânscrita enfatiza: então, tudo
é vida, lila e maya. Performance é uma ilusão da ilusão e, como tal,
deve ser considerada mais ‘cheia de verdade’, mais ‘real’ que uma
experiência comum (LIGIÉRO, 2012, p. 19).

Para que possamos entender o corpo como uma entidade educadora e


artística, precisamos compreender sua função ficcional relacionada a sua capacidade
de se movimentar. O termo “performance” é uma maneira de captar a atividade viva da
corporeidade humana, entre tantas outras possíveis, mas que assim a coloca em um
estado de tensão e de crítica como não se teria de outra forma. A palavra é uma moldura
aberta para que aqueles que trabalham com o corpo possam refletir de modo livre sobre
suas práticas, não importa o quão diverso elas sejam.

2.2 ENTRE O ESPETÁCULO E A EXPERIÊNCIA


Quando falamos das representações do corpo, estamos procurando descobrir
como falar da prática de viver e existir na variabilidade dos corpos. As palavras
representação e performance são maneiras de tentar entender um fenômeno
compartilhado por todos e, em especial, com os artistas de dança e de teatro. E o que
transforma essas expressões corporais em um processo criativo é que elas não existem
apenas para seus criadores. Sua força existe porque, depois de criadas, elas podem ser
assimiladas por outros.

Tanto a dança quanto o teatro são formas espetaculares. A palavra espetáculo


significa aquilo que se oferece ao olhar (PAVIS, 1996). Um objeto artístico só pode ser
tratado como tal exatamente se ele é recebido de alguma maneira por alguém. Um romance
precisa ser lido, uma escultura precisa ser vista e uma música precisa ser escutada. Toda
arte precisa de um outro polo que não seja o seu produtor para que seja sentida. As artes
do corpo não são exceção, pois precisam ser percebidas para que se constituam como
arte. Dessa maneira, para que exista um processo criativo em arte precisa-se de um
sujeito criador, de uma forma artística específica e de um sujeito receptor; alguém que
possa senti-la. Em palavras mais simples: obra, autor e espectador.

Esse tripé é essencial para que haja uma troca: um agente, uma mensagem e
um receptor. Não existe representação sem espectadores. É preciso que todo educador
saiba que o ensino das representações e as performances do corpo exigem que alguém

72
possa vê-las para que se possa sentir a sua arte. São os espectadores que determinam
o sucesso ou o fracasso de uma tendência estética, se um comportamento corporal
se tornará um padrão artisticamente relevante ou se será abandonado. Um espetáculo
artístico só pode sobreviver se for devidamente recebido pela sociedade.

Ao pensarmos o resultado cênico como um espetáculo, estamos equiparando-o


a um produto fechado. Uma peça de dança ou de teatro pode circular, pode ser
apresentada e pode também ser comercializada como uma mercadoria (MAGALDI, 1985).
Pessoas estão dispostas a pagar algum valor monetário para verem as transformações
que corpos são capazes de realizar. Entramos, aqui, na polêmica questão do público.
Coreógrafos, encenadores e performers de todo tipo, por mais iconoclastas que sejam,
precisam de um agrado do público para sua sobrevivência. Diferentemente de outras
obras de arte que podem ser redescobertas pela história, o teatro e a dança precisam
ser capazes de provocar a atenção e serem valorizados quando estão em cartaz.

Um romance pode passar despercebido na data de sua publicação e se tornar


um clássico em anos vindouros, como foi o caso do escritor Lawrence Sterne e sua
obra A vida e as opiniões do cavalheiro Tristam Shandy. Da mesma maneira, pode-se
perceber o mesmo acontecimento com as pinturas de Vincent Van Gogh. Por terem
uma estrutura material que resiste ao tempo, essas obras podem ser redescobertas
pelo público. Os problemas do teatro e da dança como formas de performance, é que
eles existem apenas dentro da época em que são apresentados. Ninguém pode ter
certeza de como foi a apresentação de um balé de Isadora Duncan ou de uma peça de
Stanislavski. Mesmo que tivéssemos gravado em um filme, ele não poderia reproduzir a
sensação social e cinestésica da apresentação.

Essa situação abre ainda mais questionamentos do que respostas objetivas.


Quando um artista cênico cria sua obra e a apresenta, ele nunca tem certeza do
resultado, do que o espectador vai sentir. Existe algo de imponderável no olhar do outro
que possa determinar o seu sucesso. Artistas, às vezes, pensam que suas obras tinham
tudo para agradar os espectadores, mas o resultado se mostra infrutífero nessa seara.
E existem aqueles trabalhos que pareciam criados para o anonimato, mas que, no
entanto, conseguem romper com a barreira social. Não existe uma explicação racional
e científica para captar o gosto do público. Isso acontece também pela capacidade de
provocar a imaginação que algumas peças têm e outras não.

Talvez uma reflexão mais interessante seria perguntar por que o público se move
de suas casas para assistir a uma apresentação cênica hoje em dia. Considerando a
história da dança e do teatro, sabemos que os espectadores não tinham muitas opções
para assistir no passado; então, a possibilidade de ficar três horas de pé assistindo
alguém declamar um texto poderia ser bem interessante. Hoje, vive-se uma situação
muito diferente diante da quantidade de opções que a tecnologia oferece. De qualquer
maneira, é inegável que existia no passado uma busca por entretenimento, o que ainda
seria a resposta de hoje em dia. As pessoas que vão aos espetáculos de dança e teatro
na atualidade ainda buscam por entretenimento, mas de um caráter diferente do que
podem obter em casa.

73
O que acontece é que a recepção de um espetáculo recorre a uma singularidade
que não pode ser encontrada em outras formas de tecnologia, como os smartphones.
A pessoa se coloca diante de um artista em um grau de proximidade que não pode ser
simplesmente esquecido. A cena tem uma qualidade viva que interfere no imaginário
dos espectadores. As pessoas que se dispõem a sair de casa para ir a um espaço ver
uma cena artística estão em busca de um encontro em que poderão presenciar corpos
em movimento. Uma dança ou uma peça de teatro podem arremeter as consciências
dos espectadores para caminhos inesperados.

O fascínio do teatro ainda se exerce pelo contato direto do espectador


com o intérprete. Admitido a testemunhar a ficção, o público se evade
das amarras prosaicas, passando a comparsa de uma aventura
superior. Ou será que ele procura mesmo resposta para seus anseios,
que a parca experiência de cada dia não lhe traz? Os manipuladores
dos gostos coletivos apelam para as motivações mais subalternas,
que nem por isso deixam de ser determinantes. [...] Os espectadores
transformam os intérpretes preferidos em mitos, cujo culto obedece a
regras semelhantes às dos dogmas religiosos (MAGALDI, 1985, p. 73).

Embora a citação anterior se refira ao teatro, ela não deixa de se conectar com
a dança como uma arte de presença corporal que também convoca a imaginação do
observador. O ponto é que observar um espetáculo que acontece na situação de “aqui e
agora” cria, de igual modo, a sua mitologia.

Os artistas que, na vida cotidiana, parecem meros mortais, com os mesmos


problemas do que todos, tornam-se entidades divinas que ao menor gesto nos tomam
como seus admiradores. A exibição humana provoca fantasias que não se controlam
facilmente. Como Sábato Magaldi (1985) expôs na citação, as artes cênicas acabam por
se constituir como uma espécie de religião.

Corpos se movem em um altar, criam seus rituais próprios e convocam olhares em


adoração porque excitam as imaginações e dão sentido a essas vidas. Tanto a dança quanto
o teatro surgiram de experiências religiosas e parecem continuar mantendo elementos
desse passado. Essas artes de veneração do corpo são também artes de comunhão.

O corpo se expressa simbolicamente para todos aqueles que o assistem e lhe


dão significado. Um personagem de teatro só pode viver no palco se os espectadores
acreditarem que suas ações têm algum grau de verdade. Da mesma maneira, dançarinos
só alcançam relevância se quem observa ficar fascinado com seus movimentos.

A imaginação é a chave de acesso para a participação coletiva e, portanto,


o elemento que dá ignição ao acontecimento corporal. A força dessas artes reside
na habilidade de construir ficção. Tanto o dançarino quanto o ator são pessoas que
criam com o visível de seus corpos sobre o invisível das sensações do outro. A ideia de
representação deixa ainda mais claro que se necessita de outra pessoa para desvendar
as formas dos movimentos sempre considerando o aspecto ficcional mencionado.
Como bem expôs o dançarino e coreógrafo Rudolf Laban (1978, p. 19):

74
O homem se movimenta a fim de satisfazer uma necessidade. Com
sua movimentação, tem por objetivo atingir algo que lhe é valioso.
É fácil perceber o objetivo do movimento de uma pessoa, se é
dirigido para algum objeto tangível. Entretanto, há também valores
intangíveis que inspiram movimentos.

Isso significa que o público se comunica com as artes cênicas como uma
espécie de convivência corporal que promove valor. Mais do que espectadores que
passivamente percebem movimentos diante de si, eles ajudam a construir o significado
artístico do evento.

Estamos falando que essas artes cênicas hoje ultrapassam a noção de


espetáculo e se colocam como aspectos sociais únicos. Para que se reconheça
o princípio cênico, precisa-se de uma relação de convívio que possa dar sentido ao
acontecimento (DUBATTI, 2007). Não basta o olhar afastado da espetacularidade
para entender o fenômeno; é preciso que a expressão corporal seja vista como uma
experiência.

Para que haja um convívio, é preciso a reunião de duas ou mais pessoas


presencialmente e no mesmo local. É uma situação em que é preciso viver junto e
trocar sensações. O artista se expressa corporalmente e envia sensações para outro,
que acolhe e retorna com uma valorização do que recebeu. Mesmo que tenha sido
apenas uma pessoa a fazer os movimentos, eles só farão sentido em comunidade. Isso
acontece porque tanto o artista quanto o espectador estabelecem uma dialética do eu
e o outro (DUBATTI, 2007). Ambos, tanto o executante quanto o observador, alternam
suas vivências pela proximidade. Suas identidades se reforçam em alguns momentos,
mas em outros são trocadas. O artista pode parecer ser a parte ativa, mas, como se
comentou, em alguns momentos o espectador confere significado ao que vê e o torna,
provisoriamente, a parte passiva da relação.

Vale a pena perceber que uma experiência de convívio não é algo materialmente
tangível. Ela é uma relação que precisa ser confirmada constantemente para ser
percebida. Isso acontece pelo seu caráter efêmero. Ela vale por aquele acontecimento,
por aquela ação no instante determinado. E isso também lhe traz outra característica:
ele é irrepetível. O dia de apresentação de uma peça é composto por um grupo
de performers e um público. Os sentimentos que eles carregam para o evento, as
contingências que vivem naquele momento e o modo como trocam as relações tornam
cada dia de apresentação único. Trata-se de uma conjunção de interfaces complexas.
Cada pessoa é um universo em composição com outros universos.

Por serem artes feitas pelo corpo, existe um elemento que precisa ser
considerado, pois ele confirma o aspecto do receptor que os torna singular nos tempos
de hoje. Entra, aqui, em questão também a cinestesia, a percepção de movimento, a
posição e o peso por estímulos do próprio corpo. Ela vai além do olhar; a proximidade
com um corpo que se movimenta pode ser sentida pelo próprio corpo que está presente
(CORBIN; COURTINE; VIGARELLO, 2012).

75
Pode-se dizer, então, que o movimento de um corpo não apenas vai além
da noção de representação que se dá ao olhar, mas também se coloca como uma
experiência própria e única. Um educador corporal de dança ou teatro precisa estar
consciente em proporcionar experiências cinestésicas aos seus alunos. Além de criarem
suas formas de movimentos, precisam aprender a experimentar a percepção delas em
outras pessoas. Um corpo precisa se fazer sentir.

A arte da performance trouxe uma grande inovação. As obras que são


apresentadas não precisam mais ter um caráter integral. Aquele valor de produto que a
expressão cênica obtém, conforme se comentou anteriormente, tem sido reconfigurado.

As cenas corporais podem estar abertas para serem transformadas por aqueles
que convivem com elas, pois elas carregam elementos de improvisação, inacabamento,
pesquisa e colaboração que não deixam seu aspecto simbólico funcionar como uma
mensagem única (DESGRANGES, 2012). Nesse sentido, é que a arte do corpo deve ser
ensinada como algo que vale pela sua própria execução e deve ser sentida dessa forma.

Evidentemente que todo dançarino e ator em cena se propõe a criar efeitos


para serem sentidos pelos seus espectadores. O que se comenta aqui é que eles não
precisam ser definidos pelos criadores. Eles podem carregar um tipo de abertura para as
representações que os observadores conviviais possam inferir da experiência. O valor
pedagógico do educador, na verdade, é bastante semelhante ao do espectador livre
que assiste a um espetáculo em que um corpo se expressa. Como expressou Flávio
Desgranges (2012) ao estudar o trabalho do mestre de Jacques Ranciére, que defende
que um educador não ensina algo, mas propicia uma experiência de autonomia para
que o aluno aprenda por si:

[...] estabelece-se, assim, uma lógica em que a atuação proposta ao


espectador se aproxima de relações pedagógicas em que o papel do
mestre é o de suprimir a distância entre seu saber e a ignorância
do ignorante. Essas lições, contudo, não fazem outra coisa que
estabelecer a distância cada vez que buscam desfazê-la, pois, nesse
caso, “o mestre não é somente aquele que detém o saber ignorado
pelo ignorante, mas também aquele que sabe como constituir um
objeto de conhecimento, em que momento e sob qual protocolo”. O
saber, assim, se afirma não como um conjunto de conhecimentos,
mas como uma posição, a ser mantida indefinidamente, e o que se
ensina ao outro é a sua própria incapacidade de constituir objetos de
saber, de produzir conhecimento (DESGRANGES, 2012, p. 187-188).

Todos os educadores de artes cênicas precisam estar conscientes de que,


da mesma forma que eles não controlam a recepção da arte, eles não estão lá para
entupir seus alunos de conhecimentos abstratos. O público tem uma qualidade
de autonomia criativa na leitura das obras as quais assiste. Da mesma maneira, o
professor não passa para seus alunos um significado fechado, mas uma experiência
do que é vivenciar o corpo.

76
LEITURA
COMPLEMENTAR
CORPO E ENCENAÇÃO: OS INSTRUMENTOS DO ATOR E DO BAILARINO

Maria Albertina Grebler

Tal é a quantidade de elementos comuns às artes da dança e do teatro que a


primeira chegou no final do século XIX sendo considerada apenas como um gênero
teatral e não como uma forma de arte autônoma. Foi só a partir do século XVIII que
os limites mais definidos de uma separação formal entre estas artes começaram a ser
traçados pela cultura ocidental. Mas apenas no século seguinte, em torno de 1830,
justamente a partir de uma maior reflexão sobre os fundamentos de cada uma delas
em si mesma foi que “[...] a divisão dos gêneros, em Drama, Ballet e Ópera tornou-se
definitiva, e cada um deles começou a levar uma vida independente no universo do
espetáculo do século XIX” (GUINSBURG, 2001, p. 280).

Entretanto, esta separação formal de campos não impediu a continuação


do intercâmbio que até então se efetuara entre os universos da dança e do teatro.
Principalmente porque no início do século XX, a Dança Moderna inventou-se como um
campo independente da Dança Clássica, ao mesmo tempo em que o teatro empreendeu
um profundo questionamento com relação a sua própria tradição.

A Dança Moderna surgiu no cenário artístico europeu como uma forma de arte
inteiramente nova: insubmissa e ligada ao presente, ela buscava novos paradigmas, e
por isso identificou-se imediatamente com as vanguardas artísticas. Deste modo, aderiu
aos questionamentos do Teatro Moderno em sua crítica à estética e procedimentos
acadêmicos, sua reflexão sobre a preparação do ator e sua preocupação com a relação
entre o espetáculo e o espectador.

Jean-Jacques Roubine afirma que muitos diretores e atores já refletiam desde


o final do século XVIII sobre a tradição “esclerosada da arte teatral”, e que essa reflexão
culminou na tomada de consciência de que “a cena deve ser um lugar onde o corpo
fala” (ROUBINE In: LECOQ, 1987, p. 78). Ele comenta a emergência de uma crítica ao
academicismo declamatório, na virada do século XIX, momento em que surgem
“novos gêneros reclamando uma exata fidelidade do real, que vão no teatro moderno
promover a gestualidade” (ROUBINE, 2002, p. 32). Com o desenvolvimento dos meios
de transporte, a circulação de teorias, pesquisas e práticas teatrais difundiram-se pela
Europa formando uma nova visão de um corpo teatral. Até então o corpo do ator era
visto apenas como portador de um figurino, ao qual dava voz.

77
A partir de então, o corpo começou a ganhar cada vez mais importância no
processo dramático, de modo a impulsionar a experimentação, teorização e publicação
de trabalhos como os de Delsarte, Stanislavski, Appia, Craig, Schlemmer, Meyerhold. Eles
produziram um conjunto de obras que enriqueceu a fortuna teórico-prática do drama, e
que sob muitos aspectos ajudou a redefinir as técnicas de atuação como reveladoras dos
poderes expressivos do corpo. Esta percepção do corpo como centro da cena teatral por
parte dos diretores e atores facilitou mais uma vez a aproximação entre a arte da dança
e a arte do teatro. Para Roubine, as questões cruciais do teatro no começo do século
surgiram a partir do advento do cinema, que de um certo modo fez com que o teatro se
confrontasse consigo mesmo, refletindo-se, tanto em seus aspectos estéticos, como
sobre sua própria identidade e finalidade. Foi então que ambas as correntes teatrais em
vigor (o Naturalismo e o Simbolismo) começaram, cada uma a seu modo, a explorar o
espaço cênico e a questionar-se em sua relação com o espectador e a sociedade.

“Preocupação comum aos franceses e aos russos: engajar o espectador no


ato da representação, quer permitindo o desencadeamento do seu devaneio, quer
agindo sobre seu instinto lúcido (as duas orientações não sendo, aliás, incompatíveis)”
(ROUBINE, 1982, p. 37).

No momento em que o Teatro Moderno compreendeu-se como arte da


encenação, para afirmar-se como texto desempenhado e atuado em cena, o corpo do
ator foi colocado no centro da atenção de sua arte. É, portanto, a partir dessa nova
compreensão da arte teatral como densidade corporal que a dança pode intensificar sua
relação com o teatro, para nele redescobrir um território comum de pesquisas a serem
compartilhadas. Deste ponto em diante, os dois campos iriam dividir seus achados de
modo a capitalizá-los de acordo com suas necessidades específicas.

A Dança Moderna assumiu uma postura semelhante à do Teatro Moderno


com relação à tradição: criticou as poses fixas do Ballet refletindo a mesma inclinação
do teatro em favor de um movimento corporal mais natural. Em ambas as artes a
tendência apontava em direção à mesma noção de verdade, em oposição à noção
de verossimilhança. Este novo modo de pensar levou os coreógrafos modernos a
mergulharam em experimentações que valorizavam os movimentos mais espontâneos
do corpo e, portanto, mais semelhantes ao seu desempenho natural na vida diária.
Assim, constatamos a influência exercida pela pesquisa de François Delsarte sobre
a Dança Moderna. Refletindo o movimento expressivo sem visar intencionalmente a
arte da dança, o trabalho deste mestre promoveu “uma profunda estimulação para
formular as próprias premissas da Dança Moderna como arte expressiva”. Sua pesquisa
se concentrou na anatomia do corpo e na sua capacidade de relacionar movimento e
significado. Suas teorias gestuais voltavam-se para a arte retórica, a pantomima e a arte
dramática fazendo uso de posturas que se baseavam nas qualidades representativas
inerentes ao movimento humano no cotidiano.

78
Segundo Ruyter, os Cursos de Estética Aplicada de Delsarte originaram a
Ginástica Harmônica de seu discípulo americano Steele Mackay, que em seguida
inspirou o trabalho de Geneviève Stebbins, que utilizou seus conhecimentos da Yoga,
para criar sua Respiração Dinâmica. Portanto os fundamentos de Delsarte foram sendo
adaptados e aplicados ao movimento dançado de modo a permitir que Ruth Saint
Denis e Isadora Duncan elaborassem danças com movimentos livres das imposições
da técnica clássica. Susan Leigh Foster afirma que ambas facilitaram a substituição
do modelo da auto-apresentação pelo modelo da autoexpressão. Uma revolução que
consequentemente estendeu-se à recepção do espetáculo. “Pela primeira vez, pedia-
se aos espectadores, para identificarem-se com o dançarino e com a dança, para sentir
sua experiência de vida no palco, ao invés de apenas vê-la”.

Enquanto no teatro, a figura do diretor se afirmava, e exigia autonomia com


relação ao texto, os dançarinos e coreógrafos modernos questionavam igualmente
o modo operacional e a capacidade da tradição clássica do Ballet em continuar a ser
a única representante da arte da dança perante o mundo contemporâneo. A Dança
Moderna redefiniu a posição do coreógrafo como um artista criador, em oposição
à figura do maître-de-ballet, cuja função era percebida como a de um arranjador de
movimentos. No processo de criação de uma peça de Ballet, o mâitre seleciona os
movimentos a partir do estoque da técnica, e os bailarinos atuam como repetidores, sem
voz no processo de criação. A peça criada conta uma história conhecida pelo público, e
que deve ser (re)contada no momento da apresentação. O coreógrafo moderno por sua
vez, concebe a criação como a invenção de movimentos ligados à história pessoal do
indivíduo, visando uma comunicação subjetiva e direta com o espectador. Onde havia
antes, na recepção do Ballet, um texto conhecido a ser comunicado, na Dança Moderna,
se existir um texto, ele deverá surgir no momento da apresentação.

Houve, portanto, uma redefinição dos processos de trabalho para os artistas


da dança e do teatro que em busca de seu material começaram a abordar o processo
de criação quase sempre a partir de uma introspecção psicológica. Bailarinos e atores
buscaram a partir de então a coerência das ações cênicas para criar a articulação de
um movimento mais orgânico. Este pensamento foi a base de uma mudança radical
para o conceito da encenação e da interpretação, visto doravante como resultado de
um processo de criação.

Os princípios de autonomia, liberdade e verdade, avançados pela vanguarda


artística e pelo movimento de renovação teatral podem ser captados no pensamento
de Laban quando ele afirma: “a dança verdadeira emana do instinto e do instante vivido
muito mais do que da herança que uma determinada sociedade impõe ao corpo”.

Seguindo estes princípios os pioneiros da Dança Moderna elaboraram por


meio de sua produção o que chamamos hoje de corporeidade múltipla, diferente do
corpo canônico, um modelo único, idealizado e institucionalizado pela técnica da
Dança Clássica. Portanto, desde o início do século XX, o diretor, o ator, o coreógrafo e

79
o bailarino passaram a buscar a adaptação de seus personagens a sua experiência. No
teatro e na dança, não se pensou mais o papel do intérprete como um mero repetidor
de uma partitura imutável e que deveria ser transcrita fielmente. Dançarinos e atores se
inclinaram para a busca de um movimento mais despojado e, portanto, mais natural.
Artistas e público tornaram-se receptivos aos movimentos simples, básicos, de andar,
correr, saltar, girar, respirar, dentre outros. É neste retorno ao próprio corpo do dançarino
que ele poderá descobrir seu próprio vocabulário de movimento. É o corpo natural de
Duncan, o corpo livre de Laban, o corpo autêntico de Wigman, os quais ignoraram as
exigências do formalismo plástico e do culto à beleza harmoniosa propagados pela
tradição estética. Na modernidade da dança, a elegância do mundo clássico seria quase
sempre preterida em prol de uma corporeidade mais humanizada e de movimentos de
intensidade expressiva.

Fonte: GREBLER, M. A. Corpo e encenação: os instrumentos do ator e do bailarino. Anais


ABRACE, João Pessoa, v. 8, n. 1, p. 1-4, 2007 https://bit.ly/3MlD232. Acesso em: 10 ago. 2022.

80
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:

• A expressão corporal alcança seu significado pelo modo como é criada, apresentada
e recebida. Tanto a dança quanto o teatro são formas de arte e, por essa razão,
precisam que alguém as testemunhe. A expressão corporal que as constitui só pode
ser elevada ao patamar de arte quando ela ultrapassa seu criador e chega ao receptor.

• A criação da expressão cênica pode ser entendida, inicialmente, pela noção de


representação. Abordaram-se os limites que esse termo traz como a ideia de que
ele apresentaria algo que existiria antes. Um corpo representa uma personagem no
teatro ou algum sentido definido em uma dança.

• O trabalho cênico pode ser mais bem pensado na atualidade pela ideia de performance.
Seria um ato total, uma forma artística em que o corpo se apresenta sem se preocupar
em fazer um sentido ou trazer algo pré-programado. O termo foi estudado em sua
história mostrando exemplos variados e sua relação com as vanguardas estéticas.

• A primeira maneira de entender o processo de recepção da expressão cênica passa


pela noção de espetáculo. Trata-se de dar ênfase ao que se apresenta ao olhar, às
maneiras como se percebe a expressão corporal e que lhe dão significado, ainda
que não tenha como receber uma definição racional. Depois se pensa na noção de
experiência, como algo sem limites, como propõe a performance.

81
AUTOATIVIDADE
1 A expressão corporal se faz todos os dias por todas as pessoas, mas é no seu processo
criativo que ela se mostra mais pungente. O artista não expressa um corpo qualquer
e não o faz de qualquer maneira, pois ele normalmente se coloca dentro de certas
molduras para que seja apreciado e se faça sentir de maneira diferente de como as
pessoas se comportam no cotidiano. Nesse sentido, classifique V para as sentenças
verdadeiras e F para as falsas.

( ) O termo representação é um termo explicado pela semiótica como o uso de um


signo em troca da presença original.
( ) O ato de representar é uma exclusividade do ator, não podendo ser usado para o
caso do dançarino.
( ) Representação no teatro diz respeito à retomada de um texto, por exemplo, que
estava apenas escrito, mas que se torna atuado por atores no palco.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) F – F – V.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) V – V – F.
d) ( ) V – V– V.

2 Desde o início do século XX, uma série de eventos culturais e artísticos aconteceram
na Europa e nos Estados Unidos procurando ampliar os limites da arte como era
concebida até então. Trata-se do que veio a se popularizar posteriormente pelo termo
performance. Leia as sentenças a seguir sobre esse tipo de arte.

I- Muitos consideram que os saraus (serata) dos futuristas italianos foram os principais
responsáveis pela criação da performance.
II- John Cage foi o coreógrafo responsável pela criação de performances na Inglaterra,
inspirado pelo construtivismo russo.
III- O Surrealismo foi a vanguarda estética que mais contribuiu para a performance,
porque criaram-se muitas peças de teatro e de dança nesse sentido.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) Somente a sentença I está correta.
b) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
c) ( ) As sentenças II e III estão corretas.
d) ( ) As sentenças I e III estão corretas.

82
3 Um dançarino é reconhecido pelo modo como constrói uma coreografia diante de seu
público. Da mesma forma, é o ator que precisa representar uma personagem sobre o
palco. Ambos precisam apresentar suas expressões cênicas de modo a conseguirem
mover os sentimentos de quem os observa. Nesse sentido, assinale a alternativa
CORRETA sobre o público das artes cênicas.

a) ( ) A grande vantagem da expressão cênica é que suas sensações podem ser


sempre repetidas a cada apresentação.
b) ( ) O corpo cênico precisa sempre ser racionalizado para ser sentido de maneira
artística pelo espectador.
c) ( ) Como o corpo tem uma qualidade material, as artes cênicas dispensam a
necessidade de o espectador usar sua imaginação.
d) ( ) A experiência de recepção cênica ultrapassa a questão da visão, podendo ser,
também, cinestésica.

4 O teatro e a dança são formas artísticas autônomas, mas que existem na singularidade
de seu meio: a cena. São formas de arte que se preocupam em dar visibilidade e
sensação ao aspecto corporal. As artes cênicas, embora autônomas, são semelhantes
a outras artes, como a literatura usa das palavras para mexer com o íntimo do leitor.
Desse modo, cite e explique os elementos que formam o tripé que compõem a cena.

5 Os povos do passado reuniam-se em pequenas coletividades e compartilhavam


valores de modo não tão diferente do que se faz hoje em dia. Muitos elementos podem
ser apontados como capazes de reunir aqueles grupos, mas o que se destacava entre
todos era o fato de que perfaziam rituais. Nesse sentido se pergunta: o que o ritual
tem com relação ao trabalho cênico?

83
REFERÊNCIAS
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DERRYCKSON, B.; TOROTORA, D. Princípios de anatomia e fisiologia. 14. ed. Rio de


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FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. São Paulo: Forense Universitária, 2008.

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KUPER, A. Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru: EDUSC, 2002.

84
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LIGIÉRO, Z. (org.). Performance e antropologia de Richard Schechner. Rio de


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SANTAELLA, L. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1999.

85
86
UNIDADE 2 —

REPRESENTAÇÕES DO
CORPO E A ARTE

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender as transformações sofridas pelo corpo na história e na vida;

• perceber as diferenças culturais dos corpos humanos e sua recepção por diferen-
tes povos;

• relacionar a compreensão do corpo em sua multilinearidade artística;

• conhecer conceitos históricos em práticas corporais contemporâneas.

PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – O CORPO NO TEMPO


TÓPICO 2 – O CORPO NO ESPAÇO
TÓPICO 3 – O CORPO E AS ARTES

CHAMADA
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A TRILHA DA
UNIDADE 2!

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88
UNIDADE 2 TÓPICO 1 —
O CORPO NO TEMPO

1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, nosso estudo falará do corpo do ponto de vista histórico, ampliando
o que se comentou na unidade anterior. Faremos um passeio histórico sobre o corpo e
depois um passeio sobre o corpo na história, tudo com muita arte, principalmente com
esculturas e desenhos, que ilustrarão as ideias centrais abordadas de corpo.

Em um primeiro momento, já vimos como o corpo humano é um objeto de


estudo muito antigo em várias áreas do conhecimento, que passou desde a visão da
natureza até ao que as sociedades constituíram, mas agora, no Subtópico 2, veremos
isso em detalhes, no tempo. O importante é nunca perder de vista que o corpo não é só
um objeto de conhecimento; ele é o conhecimento. O conceito de corpo não é estático
e está sempre se movendo, acompanhando nossas experiências sociais e históricas.

No Subtópico 3 o corpo na história, traçamos uma linha do tempo histórico e


mostramos a importância do corpo naquele recorte histórico, de como corpo é visto, de
como ele participa da revolução e do que a revolução faz com ele. Já no último tópico, o
corpo na era digital, veremos como somos afetados com o uso de aparelhos eletrônicos,
em especial os celulares e de como seria nossas vidas sem as Tecnologias Digitais de
Informação e Comunicação (TDIC), que pautam nossos hábitos, comportamento e
forma de viver.

O conhecimento do corpo implica um processo interdisciplinar que combina


várias fontes de conhecimento. Unindo as artes com a filosofia e outras formas de
epistemologia, pode-se enxergar a complexidade que é a realidade corporal. Vamos lá,
dar um passeio na história de nossos corpos, estudar para saber como eles eram vistos
e também como são vistos agora?

2 HISTÓRIA DO CORPO
O corpo sempre esteve representado nas artes, ao longo de nossa história.
Desde os primeiros vestígios de humanidade, nosso corpo estava lá, desenhado ou
esculpido. O corpo exerce um fascínio em nossa memória e ganha materialidade e se
eterniza nas representações artísticas.

Como já foi explanado, o corpo é uma entidade transformada e transformadora;


demarcado e marcado pelo modo como o ser humano age sobre si. A cultura faz parte
da construção de como vemos e tratamos nosso corpo, mas, assim como a cultura

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marca o corpo, o corpo também marca a cultura, influenciando e marcando a história.
O corpo é a nossa existência; falar do corpo é falar de nós mesmos. O nosso corpo se
transforma com a passagem do tempo, pois as coisas se transformaram e existem por
causa da nossa existência e pela existência de nossos corpos. A nossa realidade existe
porque nosso corpo existe.

Figura 1 – História da representação do corpo na arte

Fonte: https://bit.ly/3rSqXcg Acesso em: 15 set. 2022.

O corpo humano tornou-se um grande objeto de estudo, no qual a história,


tanto das ciências biológicas quanto das ciências humanas, debruçou-se para estudar
e fazer conexões direta e indiretamente. O conceito de corpo é extremamente fluído,
o que nos leva a perceber que está em movimento não apenas físico, mas, sobretudo,
conceitual. Ele vem sendo modificado ao longo da nossa existência, acompanhando
todas as nossas experiências como humanidade.

O corpo, como objeto, do ponto de vista do discurso científico e anatômico, pode


ser entendido assim na ação da medicina, por exemplo. No entanto, as subjetividades
do corpo se transformam e nos transformam constantemente, ou seja, o olhar, os
significados e os sentidos se modificaram durante a história e continuam se modificando.

O corpo inserido em uma subjetividade específica de um povo específico é


demarcado por sua cultura e, ao mesmo tempo, também é produtor de cultura: assim
como influencia, também é influenciado.

90
Passamos, agora, a fazer um recorte no tempo, iniciando nosso passeio na
história do corpo. Na Grécia Antiga, a ideia de corpo estava bastante vinculada com o
conceito do belo: corpos fortes e atléticos, bonitos e saudáveis. O termo que os gregos
utilizavam era o de kálon, que significava exatamente a palavra “belo”. Referia-se àquilo
que agradava aos olhos, ao que poderia e deveria ser admirado. E os corpos também
seguiam essa lógica e prática de agradar aos olhos. O culto ao corpo era uma prática
que fazia parte do cotidiano dos gregos, podendo ser encontradas referências, nas
obras de artes, tais como nos textos literários, nos mitos e nas artes. Nas esculturas,
representadas no bronze e no mármore, vemos a representação de corpos, tanto de
homens quanto de mulheres, jovens e atléticos, cujas figuras têm suas musculaturas
bem aparentes e delineadas. Inclusive, os corpos de deuses e deusas também tinham
essas representações atléticas e belas. A educação, que também faz parte histórica
e social de determinado local e tempo, e segue aos interesses do Estado, na Grécia
Antiga; a educação era trabalhada com a lógica da adoração e da glorificação do corpo.
Daí, as práticas corporais, em busca de um corpo saudável e também para a reprodução.
Outros dois pontos que merecem destaque são que o corpo deveria ser forte e atlético
porque serviria tanto para os jogos olímpicos quanto para a guerra, eram constantes
naquele período.

DICA
Uma dica cultural do filme 300 de Esparta, dirigido por Rudolph Maté, (USA,
1962, 117min). Filme ficcional que narra um momento das guerras Médicas
(Cidades-Estado gregas contra os persas) pelo ponto de vista dos espartanos.
Conta da que ele teria ido a guarra apenas com sua escolta pessoal de
trezentos homens.

Na filosofia grega clássica, a ideia de corpo tomou outras vertentes. Para Platão,
em específico, a alma preexiste ao corpo, o que nos leva ao famoso dualismo platônico: o
corpo é uma coisa e a alma é outra. Nesse jogo de Platão, há uma desvalorização do corpo
e uma supervalorização da alma, pois, para esse filósofo, o corpo era um instrumento
para a recepção da alma, porque, se a pessoa morre, apenas morre o corpo; a alma, não.
A alma está identificada com a permanência, enquanto o corpo está com a mudança,
pois ele se altera com o passar do tempo. Platão criou, com isso, a ideia de metafísica,
buscando aquilo que se mantém para além da multiplicidade. Para Platão, também há a
questão do dualismo, só que, para ele, o corpo corrompe a alma, o corpo faz mal à alma;
todas as coisas boas que a pessoa faz ou alcança (como a paz e a justiça, por exemplo)
é porque a alma está atuando, pois a pessoa se volta para si mesma, ou seja, quando ela
enxerga seu próprio e verdadeiro interior, afastando-se dos desejos e das paixões que
são próprias do corpo. No entanto, para o filósofo Aristóteles, não existe esse dualismo
entre corpo e alma. Para esse filósofo, se morrer o corpo, morre também a alma, isto é,
não existe uma vida após a morte para Aristóteles. O corpo seria um instrumento da
racionalidade do ser humano, posto que o conhecimento vem por meio dos sentidos.
91
Já no Império Romano, o corpo, nas representações artísticas, não era tão
juvenil como nas representações gregas, haja vista que o objetivo estava mais para
a força física e as escolas juvenis estavam mais voltadas aos exercícios físicos para a
preparação militar do que à beleza estética. (VIEIRA, 1984). As representações eram,
principalmente, do imperador, pois ele deveria ser reverenciado e evidenciado, já que
significava uma demonstração de poder do imperador e dos romanos como sociedade.
Todos deveriam olhar, crer e obedecer ao imperador.

Figura 2 – Imperador romano Marco Aurélio

Fonte: https://bit.ly/3VmvQrJ. Acesso em: 13 out. 2022.

Na Idade Medieval, com a ascensão da Igreja, há uma outra concepção de corpo


e uma outra visão e prática para o corpo, em que havia a renúncia do corpo e de seus
prazeres, pois, naquele momento, o mais importante seria a salvação eterna da alma e
uma abdicação dos bens materiais e dos prazeres mundanos.

O corpo era um caminho e um instrumento que conduziam o ser humano


da dimensão terrena para a dimensão celeste. Ele era apenas um meio, não uma
finalidade, porque esta era dada pelo espírito. Nessa época, a relação do indivíduo com
o corpo foi marcada fortemente pelo puritanismo e há certa renúncia da aparência e
da sexualidade. Houve uma crescente valorização das práticas ligadas à fé e para a
preparação e o fortalecimento do espírito. E, para que isso acontecesse, deveria haver
uma renegação do corpo, distanciando-se das questões que provocavam o pecado da
carne e dos prazeres suscitados pela mente e pelo corpo. A corporalidade aparece como
um obstáculo a ser sobrepujado, sendo que os religiosos se compraziam em práticas de
autoflagelo para mostrar sua fé.

92
Figura 3 – A Lamentação de Giotto de Bondone – afresco da Capela Arena

Fonte: https://bit.ly/3T5HF48. Acesso em: 13 out. 2022.

A Idade Moderna tem como marco inicial a conquista de Constantinopla


por Maomé II (1453 d.C.) e avança, em duração, até a Revolução Francesa (1789 d.C.).
Somente no século XVII, temos a efetivação da Modernidade, que tem como pilar central
a racionalidade científica; período marcado pela modificação de costumes e de novas
criações artísticas, científicas, filosóficas e tecnológicas, tendo como características o
enfraquecimento da Igreja como detentora da “verdade absoluta” do mundo e do ser
humano. Há uma ruptura entre a “ordem humana” e a “ordem natural”, ocorrendo uma
separação entre Deus, Homem e Natureza. Com essa divisão, a Igreja deixa de ser
detentora do controle total sobre o ser humano. Passa-se de uma concepção teocêntrica,
ou seja, na qual Deus (Igreja) é o centro de tudo, para uma concepção antropocêntrica, em
que os novos conhecimentos do Universo, da matéria, da natureza e da sociedade e suas
relações têm como centro a ciência experimental. O corpo é visto em uma materialidade
que pode ser explicada; chega-se ao ser humano como ser material que pode descobrir
leis para suas dúvidas por meio de observação e de experimentos.

É no século XVII que acontecem as grandes mudanças tecnológicas,


inicialmente influenciadas com as descobertas de Galileu, que passaram a estudar
tanto o ser humano quanto a natureza, seguindo uma lógica em que tudo tem uma
organização e explicação, pois tudo é controlado pelas leis da física, pelas quais tudo
pode ser medido e quantificado. Na sequência, esses estudos são aprofundados e
aperfeiçoados por Isaac Newton. Para dar mais sustentabilidade a essas mudanças de
representação da realidade, temos o nome de René Descartes (SCHULTZ; SCHULTZ,

93
2000) com a nova concepção de realidade como engrenagem, explicada pelas leis
da física, e o corpo também passa a ser concebido e visto nessa mesma lógica.
Descartes postula que a mente e o corpo são duas coisas distintas, criando, assim,
uma dualidade para o ser humano.

O corpo estando separado da mente ganha uma outra posição social, pois,
dessa forma, o corpo ganha determinada “liberdade”. Pela razão e ciências, o corpo
está vinculado apenas à natureza e a tudo o que puder ser dito dela. Resumindo: o
corpo é apenas um corpo sem qualquer tipo de propósito. Nesse sentido, o corpo
começa a não ter mais sentido religioso como uma obrigação e razão de existir; ele
não tem nenhuma finalidade ou destino. Silva (2001, p. 14) mostra, ao se referir às
ideias de Descartes, o seguinte:

[...] o corpo humano é do domínio da natureza; o corpo é puramente


corpo, assim como a alma é puramente alma, princípio que autoriza
a razão, e a ciência, como instituição a conhecer e dominar o corpo
humano; tarefas as quais serão exacerbadas na atualidade.

Assim, o corpo também passa a ser um objeto científico. O corpo tornou-se


dessacralizado.

Figura 4 – Autorretrato de Rembrandt, século XVII

Fonte: https://bit.ly/3SYFVcR. Acesso em: 13 out. 2022.

94
Avançando na história, adentraremos na época das revoluções, tendo a França
e sua revolução, no ano de 1789, como marco inicial para o que chamamos de período
contemporâneo, que se estende até os dias atuais. Temos um grande movimento para
uma nova ordem social, com a classe burguesa se rebelando contra o sistema e tentando
controlar suas vidas e, principalmente, seu meio de produção. Com esse movimento, há a
queda das classes dominantes até então, que eram o clero (a Igreja) e a nobreza, ocorrendo
uma “libertação” da classe burguesa. É nesse momento que nascem as palavras de
ordem: “liberdade, igualdade, fraternidade”; lema da Revolução Francesa.

A classe burguesa consegue provocar os camponeses e a classe trabalhadora


(as mais baixas da população) a se revoltarem com a situação em que se encontravam
para lutar por igualdade social, mas, para que isso fosse possibilitado, seria necessário
se oporem ao antigo regime, que era governado pelo clero e pela nobreza.

A revolução se tornaria concreta porque a França se encontrava em uma


ebulição social, com o aumento da miséria, por causa das constantes altas nos preços
dos alimentos, por conta, também, das safras que foram prejudicadas e estavam
bem menores, e isso aprofundou ainda mais a crise socioeconômica. Esse cenário foi
uma estrutura que possibilitou que as pequenas lutas se avolumassem até alcançar
proporções de uma grande revolução, que modificou a França e impactou, praticamente,
toda a cultura e história ocidentais. A Revolução faz surgir a ideia de que o ser humano
pode ser dono do seu próprio destino, projetar e construir o seu próprio futuro e sua
própria história.

A Revolução Francesa muda a ordem social e mostra que há a possibilidade


de liberdade e de direitos. Se antes as relações de força poderiam ser impostas
diretamente, e isso implicava punições corporais indiscriminadas; agora, havia um apelo
a uma condição humana universal que deveria ser estendida a todo e qualquer um.
Os pensadores iluministas do século XVIII, como Denis Diderot, Voltaire, Jean-Jacques
Rousseau e Montesquieu, disseminaram ideias da importância da racionalidade. A razão,
incluindo nela a possibilidade de fazer escolhas e seguir a própria vontade, dá outro
sentido de vida para as pessoas. Pela primeira vez, a sua existência não está submetida
às ordens de uma nobreza.

Tudo isso faz despertar e ganhar força outra revolução, ainda que de outra
natureza, que já estava em curso na Inglaterra desde a metade do século XVIII e iria
até o século XIX, chamada Revolução Industrial, que, por sua vez, é a transição entre
a sociedade feudal e a sociedade capitalista cuja característica fundamental é a
predominância do capital mercantil sobre a produção. Deve-se destacar que a Revolução
Industrial tem como marco a criação da máquina a vapor, que transformaria a produção
têxtil da época, criando uma grande conquista e grande renovação tecnológica, com
as trocas dos teares, com uma fabricação artesanal, para os novos maquinários, que
operavam em escala industrial. Com isso, as fábricas abriram milhares de postos de

95
trabalho. Essas fábricas estavam nos centros urbanos; a partir desse advento, houve
enormes fluxos migratórios das pessoas que viviam e trabalhavam no meio rural
(população camponesa) para as grandes cidades. Como os corpos se comportaram
nesses contextos?

Primeiro, é preciso que se faça uma contextualização da Revolução Francesa


e o início da Revolução Industrial para que possamos demonstrar a história dos corpos
e suas relações com esses deslocamentos históricos. Começam a nascer os grandes
centros urbanos, a serviço da Revolução Industrial, com grande concentração de
pessoas. Temos uma outra configuração de sociedade, que passa de rural para urbana.
O corpo passa a ocupar um outro espaço longe da natureza, ou seja, o rural perde
importância e o corpo se torna uma engrenagem com função laboral na fábrica. Para
isso, há de ter um outro olhar e uma outra prática para e com o corpo.

A Revolução Industrial impactou a sociedade ocidental como um todo, inclusive


as ciências (física, química, biologia e engenharias) que estavam a serviço das indústrias
e de seu novo e crescente processo de produção.

E com toda uma atenção especial para a nova vida cotidiana da população,
que estava vivenciando uma urbanização precarizada, com grandes concentrações
populacionais, trazendo como consequência um espaço com enfermidade e propício
para a propagação de doenças ao alastramento de outras novas, que dissipavam parte
da população (epidemias). Então, foi necessário que as ciências se voltassem para o
estudo do corpo, mas agora com uma visão orientada para a saúde. Dessa maneira,
há necessidade de um olhar para a saúde pública, com uma intencionalidade para o
coletivo, para a questão dos indivíduos e da própria cidade. Começam a nascer e a
se aprofundarem estudos relacionados ao corpo, como a fisiologia, a fenologia, a
ergonomia, a eugenia e a própria medicina.

O corpo é visto de forma anatomofisiológica, ou seja, como objeto científico


e de estudo, passando a ser mais conhecido e, ao mesmo tempo, descoberto, pois o
corpo não tinha, na História, sido tão explorado e manipulado cientificamente como
nesse momento.

Cabe ressaltar a eugenia, que era considerada como ciência, emergindo, mais
especificamente, no final do século XIX e no início do século XX, tendo como principal
articulador Francis Galton, no ano de 1865, que constrói toda uma teoria cujo objetivo é
explicar as demandas que ocasionam as desigualdades sociais da época.

As questões biológicas passam a ser, também, de ordem biológica e social,


pois a eugenia surge como um indicador para diferenciar os povos. Ela dizia respeito ao
fortalecimento ou à melhoria da raça pela seleção dos mais fortes sobre os mais fracos,
o que, no caso da Europa, fazia tomar a cor de pele branca como ideal contra todos os
outros povos. Assim, os preconceitos poderiam ser justificados contra os diferentes.
Essa teoria se consolida nas primeiras décadas de século XX, sustentando as teses
racistas, que respingam em nossas sociedades até a atualidade.

96
A palavra eugenia acaba caindo em desuso após a Segunda Guerra Mundial,
por estar estritamente associada ao holocausto nazista, atualmente denominado pelos
judeus como Shoá, e pelos ciganos romanies como Porrajmos. Como afirmam Teixeira
e Silva (2017, p. 70), a palavra “[...] eugenia foi desacreditada, tanto do ponto de vista
científico quanto social, caindo o termo ‘eugenia’ em desuso”.

No Brasil, a eugenia era propagada para a melhoria da raça e consequentemente,


da nação. Vivíamos, em nosso país, pós-abolição da escravidão e pós Proclamação da
República, um momento com inúmeros problemas sociais. Por exemplo, as condições
precárias de saneamento e a saúde pública, o que se agrava com alarmante e absoluta
negligência com relação à população negra recém-liberta. A eugenia parecia ser uma
fórmula para a solução dos problemas em que estávamos mergulhados. Ela escondia,
na verdade, o resultado de relações escravocratas que os europeus criaram no processo
de colonização de outros povos.

Com relação à escola no Brasil, a Educação Física começa a fazer parte da


educação com um objetivo da educação do corpo para uma funcionalidade produtiva
que trabalha com a repetição (automação dos movimentos), já que um outro corpo
“físico” deveria ser criado para a nova racionalidade da sociedade industrial-fabril
(SILVA, 2001).

Uma boa ilustração para esse momento é o filme Tempos Modernos, de


Chaplin, que retrata a vida urbana de uma grande cidade, nos Estados Unidos, na
década de 1930, mostrando como funcionava o cotidiano das pessoas e os modos de
produção industrial. A outra linha de pensamento para a Educação Física está ligada
ao cuidado do corpo, pois havia uma demanda e uma grande preocupação com a
higiene da população e hábitos saudáveis dos corpos. Dessa forma, a Educação Física
era vista como elemento fundamental para a obtenção e a criação de corpos perfeitos,
produtivos e saudáveis.

Para falar de corpos na contemporaneidade, falaremos, principalmente, de


globalização e Modernidade Líquida, inspirados em Zygmunt Bauman (1925-2017),
sociólogo e filósofo polonês, que se dedicou a analisar os diversos temas contemporâneos,
tais como identidade, política, amor, trabalho, consumo, identidade, tempo, entre tantos
outros temas.

O fenômeno da globalização alterou a nossa percepção e compreensão de


tempo e de espaço, uma vez que as nossas comunicação e relações estão mediadas
por ferramentas tecnológicas e digitais. Dessa maneira, nossa relação com o tempo
e o espaço fogem de relações tradicionais, exercidas no passado (BAUMAN, 1999). A
tecnologia possibilitou a transformação da comunicação, de dados de informações e do
próprio conhecimento.

97
Podemos dialogar com outras pessoas simultaneamente sem estar no mesmo
espaço físico, ou seja, essas barreiras são “quebradas” com as novas tecnologias e com
as redes sociais. Podemos estudar no quarto e, ao mesmo tempo, estarmos em contato
com amigos em qualquer lugar de nosso planeta.

A pandemia causada pelo coronavírus, a partir do ano de 2020, aprofundou e


popularizou as “lives artísticas”, em que os artistas faziam seus shows e apresentações
de suas casas para as nossas, dando uma sensação de proximidade física com o artista.
Essas lives ficaram gravadas e podem ser acessadas a qualquer momento. Com esse
exemplo, podemos dar visibilidade sobre como as novas tecnologias mudaram a nossa
percepção de espaço e de tempo. Mais adiante, vamos estudar mais a fundo as relações
líquidas e o corpo “dual”, que navega entre a possibilidade do real e do virtual.

3 O CORPO NA HISTÓRIA
Você deve estar sentado, deitado ou em pé, lendo essas primeiras páginas. Pare!
Observe seu corpo. Em que posição ele se encontra? Se não fosse os nossos corpos,
essas linhas que você está vendo agora não existiriam. E, falar do corpo na História, é
também falar da própria História e da história da humanidade. Para traçar a linha do
corpo na História, usaremos a linha do tempo da História da Arte e mostraremos como
o corpo está “localizado” na construção de nossa história.

O corpo humano, para cada sociedade, espaço e tempo, não é apenas


algo “físico”, posto que extrapola esses limites. O corpo também é símbolo e tem
suas subjetividades; formas que vão se constituindo durante sua existência tanto
individual quanto coletiva. O corpo é afetado por uma época; a forma como ele é
visto e concebido, mas, por outro lado, a História também muda porque o corpo age e
influencia a sociedade, também afetando os rumos da História.

O nosso pontapé inicial será a partir da parede de cavernas, com os registros


pictóricos nas paredes das cavernas. A esses desenhos chamamos de arte rupestre;
palavra que tem sua origem no latim rupes, que significa rocha.

Resumindo, a arte rupestre é o nome da arte realizada nas paredes das cavernas
pelos homens pré-históricos. Esse período histórico representa o momento que se dá
entre o aparecimento do ser humano e se estende até a invenção da escrita e tem a
sua divisão em o homem das cavernas e a invenção da escrita; uma linha temporal que
perpassa por volta de 4000 a.C. Seu estudo depende da análise de documentos não
escritos, como restos de armas, utensílios, pinturas e desenhos.

Acredita-se que se realizavam possíveis ritos com expressão corporal com


algo que hoje tomaríamos como dança e teatralização (ARRUDA; PILETTI, 1995). A pré-
história está dividia em quatro períodos, a saber: Paleolítico, Mesolítico, Neolítico e Idade
dos Metais.
98
A arte rupestre mostra representações de corpo do homem primitivo em
momentos de caça, dança e rituais. Nesse período, o corpo, para os moradores das
cavernas, também era a sua ferramenta de caça e de defesa para a sobrevivência. O
corpo era a sua única possibilidade de enfrentamento dos predadores e para a busca
de comida.

Na pré-história, nossos antepassados, moradores das cavernas, preocupavam-


se apenas em sobreviver, sendo o corpo a arma de melhor embate na busca por comida.
No período Paleolítico, os homens das cavernas eram nômades e ainda não tinham
desenvolvido a agricultura, vivendo, portanto, de caça, de pesca e de colheitas do que
estava disponível na natureza. No final do Paleolítico, temos o início do Mesolítico cuja
característica principal é o assentamento.

No início do Neolítico, ocorreu a primeira grande descoberta que mudaria o rumo


da forma de vida dos hominídeos: a descoberta do fogo e, o mais importante, o controle
dele. Com o domínio do fogo, houve a possibilidade da caça noturna, do cozimento dos
alimentos e do cuidado e maior proteção do corpo, pois era possível espantar os animais
selvagens e se esquentar, protegendo-se do frio.

Vale ressaltar que foi durante esse período, há cerca de setenta mil anos, que o
homo sapiens desenvolveu sua revolução cognitiva, segundo o historiador Yuval Noah
Harari. O seu cérebro desenvolvido passou a ser capaz de contar histórias capazes de
reunir grandes quantidades de pessoas.

Os rituais passaram a ter um valor simbólico, o que significava que o corpo


ocupava um espaço entre o empírico e o ficcional. A linguagem humana tornou-se
capaz de se referir a coisas que não existiam empiricamente e isso serviu como forma
de construir relações sociais mais amplas, que acarretavam criações das grandes
mitologias e ritos iniciáticos, o que determinou o processo de representação do corpo
(HARARI, 2017, p. 32).

Posteriormente, houve o surgimento de outro domínio: o da natureza vegetal.


Nesse momento, inventa-se a agricultura; passo importante, pois a terra é utilizada
para a produção do próprio alimento. Com o surgimento da agricultura, não há mais a
necessidade de ser nômade; então, nasce uma outra necessidade: a criação de utensílios
domésticos, normalmente feitos de argila, para o armazenamento da produção.

A representação da arte também começa a mudar, nascendo a escultura,


sobretudo nos potes de argila, e as representações, em desenhos, não são mais só de
um corpo, mas de corpos que vivem no coletivo. Na Figura 5, podemos ver quando o ser
humano já tinha domínio da pecuária.

99
Figura 5 – Pinturas pré-históricas famosas da rocha de Tassili N'ajjer, Argélia

Fonte: https://shutr.bz/3Vn5yp7. Acesso em: 13 out. 2022.

O último período da pré-história se chama Idade dos Metais, que tem uma
outra revolução tecnológica: a descoberta da metalurgia, dando início à fabricação de
utensílios com metais, como armas (espadas e armaduras), utensílios e ferramentas
para o uso coletivo.

Os objetos passam a ser extensões do corpo, fazendo com que possam interagir
com mais poder dentro da vida. Nesse período, nascem as primeiras experiências de
escrita. Na abertura dessa seção, foi dito que o corpo também era uma ferramenta.

Com todas essas descobertas, invenções e domínios do ser humano na pré-


história, o corpo ganha liberdade por não precisar ser ferramenta e arma para sobreviver.
O corpo passa a dominar a natureza e a domar a própria vida.

No caso do Brasil, existem algumas produções de arte pré-histórica localizadas


em alguns estados, como Piauí, Paraíba, Mato Grosso e Santa Catarina. O grande
destaque são as pinturas rupestres encontradas na Serra da Capivara, no estado do
Piauí, que abriga mais de 100 pinturas rupestres que retratam cenas de caça, guerra,
sexo etc.

A Figura 6 é do sítio arqueológico Toca do Boqueirão, no Parque Nacional da


Serra da Capivara, do estado do Piauí.

100
Figura 6 – Pintura rupestre que é símbolo do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí,
Nordeste do Brasil

Fonte: https://shutr.bz/3esKYTL. Acesso em: 13 out. 2022.

A Grécia Antiga e Roma são denominadas Antiguidade Clássica, e a nossa


sociedade ocidental é influenciada com os pensamentos originados nesse período. No
período grego, há relatos de corpo em um tipo de literatura que veio a se chamar de
filosofia. Esses textos visavam a um conhecimento da realidade e do ser humano, o que
implicava entender a função do corpo nesse processo. Em certa medida, tentava-se
entender de que forma o homem é um ser integral; pensava-se como a alma e o corpo
poderiam ser associados.

Platão se expressou, principalmente, por meio de diálogos, em que Sócrates


era muitas vezes a personagem principal. Sua principal intenção era criar um tipo de
educação nova para o povo grego, o que significava um modo de ver o corpo. Cabe
perceber que, em muitos diálogos, por mais abstratos que fossem, os corpos são
descritos em atividade e em estados muito diferentes. Como no diálogo em O Banquete,
em que as personagens aparecem bêbadas, ensimesmadas e apaixonadas, tentando
descobrir o que é o amor.

Com relação aos fatos mais históricos, como vimos no primeiro tópico, na
Grécia a preparação do corpo estava a serviço do belo, que tinha na força física sua
maior expressão, com corpos atléticos tanto para as competições olímpicas quanto
para as batalhas.

101
A necessidade de corpos fortes e ágeis, bem como a estratégia militar eram
muito importantes, pois os conflitos na região eram comuns. Por exemplo, citamos a
Guerras Médicas (colônias da Ásia Menor com o Império Persa, de 492 a.C. a 448 a.C.),
com a vitória dos gregos, e a Guerra do Peloponeso (Esparta versus Atenas, 431 a.C. a
404 a.C.), na qual Esparta sai vitoriosa. Para retratar os jogos olímpicos, a beleza e a
força, trazemos a imagem da escultura do “Discóbolo de Míron”, também conhecido
como “O Lançador de Disco” ou somente “Discóbolo”, criada por Míron (480 a.C. a 449
a.C.). Podemos ver como a escultura representa características de força e energia, que
são elementares para os corpos dos atletas gregos.

Figura 7 – Escultura “Discóbolo”

Fonte: https://bit.ly/3rQ9S2z. Acesso em: 15 set. 2022.

Em referência ao Império Romano, vamos destacar o seu maior símbolo, que é


uma estrutura arquitetônica que impactou por sua grandiosidade e beleza, e também
para o seu uso. Estamos falando do Coliseu, onde era possível ter uma plateia com mais
de 50 mil espectadores.

A princípio, nos primeiros anos, os combates eram apenas entre os soldados


em treinamento, para demonstrar poder militar. Aos poucos, os treinamentos foram
realizados por criminosos, prisioneiros de guerra e escravos, ofertando um grande
“espetáculo” sanguinário para a população de Roma. Espetáculos de corpos em
combate e decisão tanto para o imperador quanto para plateia sobre a vida ou a morte
dos derrotados. Ainda hoje, o Coliseu é uma parada obrigatória para quem visita Roma e
quer se apropriar mais da história da cidade e da humanidade.

102
DICA
Dica cultural do filme Gladiador, dirigido por Ridley Scott (2000). Filme narra a
estória fictícia de um general romano, Maximus, que servia o imperador Marco
Aurélio. Ele é traído e aca tornando-se gladiador.

Com a decadência de Roma, materializada com a invasão da cidade pelos povos


bárbaros, tem-se o início do período histórico nomeado Idade Média. Com a tomada da
cidade, há também a substituição da arte e do modo de vida dos invasores. Antes, com
a cultura greco-romana, há um culto aos corpos; porém, agora, com a Igreja Católica
mantendo o poder, o corpo passa a ser pecaminoso e está estritamente ligado aos
temas religiosos. Na Idade Média, temos a arte medieval, dividida em duas vertentes,
a saber: no oriente, em Constantinopla; conhecida como a Bizantina, e, no ocidente,
chamada Romântica, em Roma.

A arte da Idade Média, de 500 d.C. até parte do século XV, cresceu a partir de
influências do Império Romano e da iconografia da Igreja Católica, enquanto artistas
do Renascimento europeu, que teve lugar entre os séculos XV e XVII, encontraram
inspiração em textos gregos clássicos redescobertos de poesia, filosofia, matemática e
arte da Antiguidade.

Com artistas já não retirando ideias principalmente da Igreja, a Renascença viu


a transição da arte para um estilo que tentou imitar a natureza (GOMBRICH, 1995). Nesse
período, o objetivo da vida era a salvação; então havia um foco no ideal cristão, calcado
na constante busca da salvação e da vida eterna.

A representação nas obras se distanciava do realismo. Com relação às


representações dos corpos, as obras que retratavam o nu estavam totalmente proibidas,
o que levou ao desaparecimento das características das obras greco-romanas também
referentes ao corpo.

Para as artes, entre a passagem da Idade Medieval para a Idade Moderna, há um


período específico chamado Renascentista, que nasce com a valorização do humanismo,
ou seja, do antropocentrismo, rompendo com os ideais da Igreja. O corpo se volta para
as representações a fim mostrar o belo, porque, novamente, o corpo deveria buscar o
prazer de viver e a beleza natural. Esse movimento surge com características filosóficas,
artísticas (particularmente na escultura e pintura) e literárias simultaneamente.

Com essa volta ao antropocentrismo, o corpo volta a ter um espaço central, pois
os artistas vão revisitar a arte greco-romana com influência das ciências (racionalidade)
e da matemática (formas geométricas) nas pinturas, configurando perspectiva,
proporcionalidade e as noções de profundidade. As pinturas ganham a técnica da
perspectiva, em que os corpos são pintados desde um ponto de vista bem claro, de
modo que podem ser entendidas ocupando espaços bem determinados nos quadros.

103
A obra que sintetiza esse período é o Homem Vitruviano (ca. 1490) de Leonardo
da Vinci (1452-1519), revelando a proporcionalidade, a perspectiva, o equilíbrio e
a harmonia do corpo humano. Para os renascentistas, tanto a natureza quanto o
ser humano eram harmônicos e perfeitos. Leonardo da Vinci relaciona o equilíbrio,
a harmonia e a proporcionalidade no corpo humano. Há duas posições sobrepostas
com os braços inscritos em um círculo e em um quadrado, separadas e simultâneas.
O Homem Vitruviano é considerado o símbolo da simetria básica do corpo humano e
para o Universo como um todo. Leonardo da Vinci se inspirou nos escritos do arquiteto
Marcus Vitruvius Pollio, no período I a.C., em que ele descrevia que as proporções do
corpo humano são um modelo ideal e perfeito, cujas proporções são um ideal para a
beleza clássica (GOMBRICH, 1995).

Figura 8 – Leonardo da Vinci, Homem Vitruviano, ponta metálica, tinta e toques de aquarela

Fonte: https://shutr.bz/3rUm6as. Acesso em: 13 out. 2022.

Leonardo da Vinci, o mais conhecido artista do Renascimento, fazia de seus


desenhos um jogo de luz e sombra para dar características e atmosfera realística a seus
desenhos. Da Vinci, como artista, também produziu esculturas e obras arquitetônicas.
Foi pesquisador, tendo estudado anatomia e matemática.

Também são conhecidas obras como a “Anunciação (1475-1480)”, “Adoração


dos Magos (1481)”, “A Última Ceia (1498)”, a famosa “Monalisa (Gioconda, 1503-1505)”, “A
Virgem e o Menino com Santa Ana (1510)” e “São João Batista (1514)”. Além de Da Vinci,
foram grandes nomes do Renascimento Michelangelo Buonarroti (1475-1564), com a
escultura “Pietá” e “Davi”, além das pinturas no teto da Capela Sistina, retratando a
história bíblica com mais de 300 representações em cerca de mil; Rafael Sanzio, também

104
chamado de príncipe dos pintores, com suas principais obras “O Casamento da Virgem
(1504)”, “A Deposição de Cristo (1507)”, “Madona de Baldaquino (1508)” e “Transfiguração
(1520)”. Temos, ainda, o artista Donatello (1368-1466), com suas esculturas “São Marcos”,
“Gattamelata”, “David”, “São Jorge”, “Maria Madelena” e “O Banquete de Herodes”. E, por
último, Sandro Botticelli (1445-1510), que retratava, principalmente, mitologia e religião,
com suas pinturas: “O Nascimento de Vênus”, “A Primavera” e “Adoração dos Magos”.

A Idade Moderna, como período histórico, é compreendida entre 1453 e 1789,


final marcado com o início da Revolução Francesa.

A obra que veremos é “Davi”, do artista Michelangelo Buonarroti. Essa escultura


é a representação do corpo de Davi, o herói bíblico do Antigo Testamento. A obra possui
5,17 m e pesa 5,5 toneladas. Michelangelo utilizou, nesse trabalho, o realismo do corpo
nu com o predomínio de linhas curvas. A escultura se encontra na Galeria da Academia
de Florença e foi feita entre 1501 e 1504. “Davi” é uma das doze esculturas bíblicas que
fazia parte de um projeto para decorar a parte externa da Catedral de Santa Maria del
Fiore, atualmente conhecida como Duomo de Florença.

Figura 9 – Davi, de Michelangelo

Fonte: https://shutr.bz/3eu4YW8. Acesso em: 13 out. 2022.

Ao adentrar a Arte Contemporânea, trazemos o quadro “Marat em seu último


suspiro” (1793), do pintor Jacques-Louis David (1748-1825). Na imagem, podemos
ver um corpo frágil, mas que não perde seus ideais de luta: “liberdade, igualdade e
fraternidade”. Quem está sendo retratado é o jornalista Jean-Paul Marat (1743-1793),
um dos grandes nomes da Revolução Francesa e do estilo neoclássico. O período da

105
Arte Contemporânea na História, tem início na Revolução Francesa e avança até nossos
tempos, ou seja, é a época em que vivemos. Falar em História e em Arte Contemporânea
é falar de nós e de um momento muito perto de nós. O mundo contemporâneo é um
mundo que está em movimento e que gera constante transformação, pois esse é o
nosso tempo de ação e o nosso tempo presente. Nesses poucos mais de dois séculos,
tivemos incontáveis revoluções e revoltas no Brasil e no mundo: quedas de monarquias
absolutistas, independências das nações, aumento da democracia, com a participação
popular na escolha de seus representantes políticos. Por outro lado, tivemos duas
grandes guerras.

Para ilustrar esse momento, indicamos a obra “Guernica (1937)”, uma pintura
histórica, de Picasso, que retrata os horrores da Segunda Guerra Mundial. A cidade de
Guernica, na Espanha, ficou completamente destruída por um bombardeio de aviões.
Picasso estava em Paris naquele momento e ficou horrorizado com as notícias.

A partir daí, começou a obra Guernica, mostrando o desespero, o grito de


crianças, de homens, de mulheres e até animais. Assim como na obra, que mostra
fragmentos de corpos humanos, está também está a alma e o espírito da humanidade
pós-guerra: fragmentado, trágico e pessimista.

Os corpos e a dores retratados por Picasso são as dores individuais do artista,


mas também uma síntese da humanidade, pois também não podemos esquecer dos
corpos queimados e esqueléticos acometidos pelo nazismo.

Figura 10 – Guernica, de Pablo Picasso

Fonte: https://shutr.bz/3EE1kn3. Acesso em: 13 out. 2022.

106
4 O CORPO NA ERA DIGITAL
Seria possível imaginar nossas vidas sem a existência de aparelhos eletrônicos,
em especial celulares, mas também sem tablets, câmeras e computadores? Como seriam
nossas vidas sem a internet? As Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação
(TDIC) pautam nossos hábitos, comportamento e forma de viver.

Se disséssemos, no início dos anos 2000, que uma pessoa não precisaria ir ao
banco, pois todas as suas contas poderiam ser pagas, que seria possível transferir dinheiro
instantaneamente a partir um telefone móvel, ninguém acreditaria. Podemos sair à rua
apenas com um celular, mas sem dinheiro físico e, mesmo assim, fazer compras em um
supermercado ou em alguma loja, efetuando o pagamento remotamente. O guarda de
trânsito pode nos parar e podemos mostrar nossos documentos e os documentos do
carro pelo celular, por exemplo.

Para Bauman (2011, p. 112), vivemos uma “[...] crise atual [...] diferente das
demais”, porque estamos criando nossas relações intermediadas e permeadas por
novas tecnologias, em que tudo em nosso mundo se torna mais veloz, “líquido”,
descartável e flexível. Diante dessa realidade, Zygmunt Bauman estuda o impacto
da globalização e das tecnologias em nossa era contemporânea, para mostrar as
novas relações sociais que vamos construindo. O crescimento do uso de tecnologia
como meio de percepção e vivência implica novas percepções do corpo. Bauman
(2011) criou o conceito de “Modernidade Líquida” para mostrar que, nesse momento,
impera a “liquidez”, uma vez que o uso do termo “líquido” representa as mudanças que
ocorrerem de forma muito rápida e são de fácil adaptação. Pensamos a questão do
espaço, pois, antigamente, estava-se em contato apenas com a pessoa que estivesse
no mesmo espaço físico que o nosso. Hoje, podemos estar em contato com várias
pessoas de lugares distintos no mundo inteiro. Vivemos em um cenário globalizado e
nosso corpo se tornou mais líquido também.

A globalização, com a circulação dinâmica das informações, impacta as culturas


de uma forma rápida e geral. As tendências de músicas e moda, por exemplo, atravessam
países instantaneamente, o que pode fazer com que as sociedades mais poderosas virem
espelho e referência para outras localidades, possibilitando, de certa forma, globalizar
suas culturas e valores a países periféricos, contudo, esse fenômeno é complexo e
híbrido, e não pode ser visto como puramente negativo, pois, em uma pequena cidade
do Brasil, podemos ouvir uma música novaiorquina, vestir uma roupa de marca europeia
e usar uma sandália feita pelo artista cearense Espedito Seleiro. Atualmente, a marca
de Espedito Seleiro está impressa na moda, no cinema e nas galerias de arte, com
visibilidade internacional. Ele faz parte do ciclo do couro, produzindo principalmente
calçados com inspiração na vida do sertanejo nordestino. O ateliê de Espedito Seleiro
está na cidade de Nova, no Ceará.

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Todo o nosso cotidiano está dentro de um celular. Podemos usá-lo como
despertador ou como agenda; enviar mensagens simultâneas ou enviar e-mail; filmar,
fotografar e fazer edições; ouvir música e podcasts; assistir a vídeos e a filmes; conversar
com amigos. Um exemplo disso é o celular; dispositivo móvel que estende o corpo pela
necessidade que temos de utilizá-lo diariamente para despertar, enviar mensagens,
enviar e-mails, filmar, conversar com amigos, tirar fotos, jogar, ouvir músicas. A
versatilidade dessa ferramenta preenche todo o nosso cotidiano facilitando a nossa vida
e nos deixando em contato com o outro e com o mundo o tempo todo.

O corpo também está inserido nessa lógica das novas tecnologias, pois
vivenciamos novos formatos de interação e de práticas sociais. Por isso, vamos traçar
linhas lógicas entre redes sociais, corpo e imagem. Com as redes sociais, podemos ser
uma vitrine para o mundo com as postagens de nossas imagens, tanto por fotos quanto
por vídeos. A nossa imagem e corpo ganham visibilidade global.

Temos a emergência de um corpo “no espaço digital”, que é todo produzido


(local, iluminação) e editado (filtros) para mostrar um corpo ou a imagem do corpo
perfeito de um mundo real, um processo de transformar o corpo em uma imagem
visível, admirado e desejável. Como bem sintetiza Sant’Anna (2005, p. 106), referente a
toda uma estrutura e comércio para a produção de um corpo, ele se torna um “outdoor”
para um “marketing privilegiado do eu”.

O corpo tornou-se uma imagem que pode ser mercantilizada. A possibilidade de


um mercado transnacional permitiu uma troca de impressões rápidas que constituem a
era atual como um momento de valorização absoluta do presente. O ideal de juventude
e de perfeição corporal tornou-se um produto para ser comprado. Hoje, é possível
perceber toda uma indústria que vê a saúde como algo a ser vendido para a construção
de uma imagem digital em redes sociais.

108
Figura 11 – Corpo mercantilizado

Fonte: https://bit.ly/3yy2Nrp. Acesso em: 13 out. 2022.

O corpo, como figura estética, não evolui na mesma velocidade das relações
sociais complexas em que se vive. A noção de moda, como conjunto de gostos e
opiniões, tornou-se um padrão para a definição de beleza e, portanto, fugidia e efêmera,
transformando-se a cada toque na tela dos smartphones.

É interessante comentar, também, o trabalho da filósofa Donna Haraway,


que comentou, na década de 1980, a relação entre o ser humano e a tecnologia no
seu “Manifesto ciborgue”. Seu objetivo era conhecer as metáforas que atravessam
as teorias biológicas e que se relacionam com a tecnologia. Inspirado no “Manifesto
Comunista”, Haraway escreve um novo em que pretende reunir a disseminação global do
capitalismo tecnológico, a identidade política feminista e uma visão irônica da sociedade
contemporânea por meio da figura do ciborgue. Ela cria essa imagem como forma de
ocupação e de profanação da vida. O resultado é abandonar a categoria de ser humano
para pensar uma ideia de pós-raça, pós-espécie, pós-humano.

Um ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e


organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura
de ficção. Realidade social significa relações sociais vividas, significa
nossa construção política mais importante, significa uma ficção
capaz de mudar o mundo (HARAWAY, 2009, p. 36).

A fronteira entre o humano e o animal foi transgredida pelas criações humanas.


Haraway (2009) entende que essas circunstâncias não devem ser pensadas como
determinismos que foram vislumbrados em filmes de ficção científica. Eles devem
oportunizar a chance de pensar uma nova dimensão política, pois o físico e o não físico
ficam com sua barreira mais permeável diante das invenções tecnológicas. Seria a
chance de aproveitar esse momento para ir além do que se entendia por humano no
109
passado e criar uma nova forma de humanidade que possa revolucionar politicamente,
mediada pela tecnologia: “[...] meu mito do ciborgue significa fronteiras transgredidas,
potentes fusões e perigosas possibilidades – elementos que as pessoas progressistas
podem explorar como um dos componentes de um necessário trabalho político”
(HARAWAY, 2009, p. 44).

Como podemos ver até agora, as evoluções e as descobertas tecnológicas


fizeram parte do desenvolvimento da humanidade, criadas para as necessidades de
cada tempo. Hoje, temos ferramentas tecnológicas que são uma extensão de nossos
corpos, por exemplo: projetar para fora de si a sua memória (possibilidade de armazenar
informações fora do corpo), próteses para várias partes do corpo. Temos uma relação
entre o corpo humano e o corpo artificial, que leva ao conceito de pós-humano.

Para cada sociedade, o corpo humano é o símbolo da sua própria estrutura; agir
sobre o corpo é sempre um meio, de alguma forma, de agir sobre a sociedade. Além
disso, o modo de representar o corpo na arte é um reflexo da estrutura social. Pensar o
corpo com e pelas invenções tecnológicas de hoje se torna mais uma possibilidade de
representação ou de performance para todos.

110
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:

• A história do corpo e como ele é constituído e se constitui desde a pré-história até


os dias atuais, com avanço rápido e eficaz das tecnologias digitais, mudaram a nossa
percepção de espaço e de tempo no corpo e do corpo.

• O corpo na História, como o corpo é representado em cada época e que a relação do


corpo com a História perpassa a questão meramente do físico; o corpo também é
símbolo e faz parte da História e faz história, tanto de forma individual quanto coletiva.
O corpo está inserido em uma época e é afetado por ela, da maneira de como ele é
visto e concebido.

• O corpo na era digital, vimos como a lógica das novas tecnologias media a nossa
existência, que passa pela imagem nas redes e para as redes, fazendo-nos vivenciar
um novo formato de interação e de práticas sociais, de como o nosso corpo e imagem
estão expostos como em uma vitrine para o mundo todo. Por isso, vamos traçar
linhas em uma lógica entre redes sociais, corpo e imagem e vamos nos mobilizar para
a busca de um corpo perfeito, tanto no mundo virtual quanto real.

• A relação que acontece entre o corpo e os objetos ser tão inclusiva a ponto de que
a identidade humana precise ser revisada. Surge a ideia do ciborgue, meio humano
meio máquina, para que possa servir como uma nova proposta de vida social. Ele
serve para aceitar as transformações da tecnologia, a fim de trazer uma visão política
nova nos comportamentos humanos.

111
AUTOATIVIDADE
1 A sociedade ocidental foi influenciada pela cultura grega antiga. Muitas das
instituições e valores construídos por aquele povo foram sementes para as ideias
que se desenvolveram na cultura europeia e acabaram constituindo boa parte das
pessoas nos tempos de hoje. Não poderia ser diferente no que tange ao assunto do
corpo, pois os gregos se referiam a ele pela noção de kálon. Sobre o exposto, assinale
a alternativa que melhor explica o termo.

a) ( ) Significa “forte” e se refere a tudo o que resiste e ultrapassa limites.


b) ( ) Significa “belo” e se refere a tudo o que pode ser admirado, que agrada aos olhos.
c) ( ) Significa “perfeito” e se refere a tudo o que é idealizado e platônico.
d) ( ) Significa “justo” e se refere à conexão entre o objeto e os sentidos físicos.

2 O corpo sempre foi um ponto de inflexão artística para toda a humanidade. Mesmo o
passado mais longínquo da espécie humana conectou-se com a expressão corporal
como um elemento essencial para a representação humana. No que se refere à arte
realizada nos primórdios da humanidade, no período que se convencionou chamar de
Era das Cavernas, analise as sentenças a seguir.

I- Ela se configurou por ser um período que foi chamado de arte rupestre, em que
“rupes” significa rocha.
II- Não havia, no período das cavernas, nenhum tipo de expressividade corporal, ainda
que ligada a um processo ritual.
III- Trata-se de um período artístico se dá entre o aparecimento do ser humano e se
estende até a invenção da escrita.

Assinale a alternativa CORRETA.


a) ( ) Somente a sentença I está correta.
b) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) As sentenças I, II e III estão corretas.

112
3 O desenvolvimento cultural humano constrói ferramentas constantemente para
extensão dos corpos. Desde a época antiga, o ser humano tem um uso criativo da
realidade em seu entorno, em que se usavam pedras para quebrar, rasgar e moer
outros alimentos e outros objetos. Hoje, vive-se uma época em que as pedras foram
substituídas por aparelhos de alta tecnologia. Sobre a relação do corpo na era digital,
classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas..

( ) A tecnologia construiu novas relações sociais e isso implica uma nova percepção
do corpo.
( ) As Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC), pautam a nossos
hábitos, comportamento e forma de vivenciar.
( ) A tecnologia alterna nossa relação espacial, pois antigamente só poderia entrar em
contato com a pessoa que estivesse no mesmo espaço físico do que o nosso.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA.


a) ( ) F – F – V.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) V – V – F.
d) ( ) V – V – V.

4 O movimento do tempo altera nossa vivência corporal. O modo como uma pessoa se
comporta em uma época entrega valores com os quais se vive e isso torna as ideias
abstratas que o envolvem perceptíveis. O corpo é o meio material para a compreensão
da vida espiritual do ser humano. Nesse sentido, qual foi a transformação sofrida do
período medieval para a época moderna, em termos de percepção e vivência do corpo?

5 A era contemporânea é conhecida por uma série de mudanças e de revoluções


culturais que foram prestadas pelo ser humano. No passado, o mundo local dos povos
era muito relevante para a construção da corporalidade e de seus processos criativos,
mas, hoje, as conquistas tecnológicas e as mudanças financeiras enveredaram
por caminhos bastante diferentes. Sobre o exposto, explique como a globalização
influencia o corpo na atualidade.

113
114
UNIDADE 2 TÓPICO 2 -
O CORPO NO ESPAÇO

1 INTRODUÇÃO
Quando falamos de corpo, estamos trabalhando com uma limitação, pois
nunca somos apenas um corpo, mas, pela maneira como nos transformamos e somos
diferentes uns dos outros, devemos nos pensar como estruturas plurais. São os nossos
formatos diferentes e as distintas maneiras de vivenciar o mundo que realmente
habitam o espaço em que se vive. O que importa é pensar que cada corpo carrega a sua
inscrição e forma de estar no mundo. A observação de corpos e culturas diferentes nos
mostra essa variabilidade.

Observar o que cada indivíduo tem de diferente permite reconhecer a


singularidade da vida. Um corpo pode ser maior do que outro, ou mais ágil, ou mais
robusto, ou ainda mais sensível. Pode-se perceber, na qualidade de cada uma, sua
própria marca e o seu direito próprio a existir. E, ao escrever sobre os corpos observados,
descrevem-se, também, os espaços em que vivemos. No primeiro subtópico veremos
a multiplicidade corporal, estudando vários tipos de corpos e suas potências com e na
arte, com experiência em montagens de espetáculos de dança e teatro. No segundo
subtópico, apontaremos o elemento etnográfico do corpo, sua vivência em comunidade
e o que a ciência da etnocenologia pode nos ajudar a pensar nele. No último subtópico,
teremos os corpos mutantes, que são as modificações que realizamos no corpo
com intervenções cirúrgicas, com próteses ou cosméticos; tudo isso relacionado às
tecnologias digitais e suas ferramentas, e sendo usados tanto com efeitos estéticos
quanto para a saúde.

Vamos percorrer um caminho que nos mostrará uma grande variedade de corpos
e de como esses corpos estão se relacionando com as tecnologias, com a deficiência,
com as culturas populares, interligados com a arte.

2 AS MULTIPLICIDADES CORPORAIS
A matemática nos ajuda a montar o conceito que seguiremos por agora, pois
múltiplo é o conjunto cujos elementos são obtidos após a multiplicação. Refere-se
àquilo que não é uno, que se apresenta em diversas, muitas ou variadas formas.

Multiplicidade corporal implica uma variedade de corpos. E não precisamos


ir longe para ver uma quantidade diferente de entidades materiais. Na nossa família,
provavelmente, há pessoas mais velhas, mais novas, mais gordas, mais magras, altas e
baixas. Com cabelos distintos em tamanhos, texturas e cores. Para construir uma lógica
nessa temática, traremos experiências e práticas com corpos múltiplos.
115
O primeiro exemplo que traremos para apresentar as multiplicidades corporais é
a dança. Dançar é um ato e uma criação humana por meio do espaço que o contorna. O
corpo de quem dança cria os movimentos, como se desenhasse no ar, sempre em atrito
com as partículas, sejam de outras matérias ou de outros corpos.

A dança pode ser feita por profissionais, amadores, por pessoas que,
simplesmente, queiram dançar por prazer. Todas elas experimentam a transformação do
corpo pelo movimento. Qualquer corpo pode dançar: alto, baixo, médio, gordo, magro,
com deficiência, homens cis e trans, mulheres cis e trans. Pessoas de todas as idades
podem experimentar a dança dentro das suas próprias condições, sejam elas crianças
ou idosos.

Como não há um padrão a ser seguido, cada um experimenta singularmente a


sensação de dançar. Todos com sua história de vida, com suas limitações, habilidades e
criatividade podem dançar. No entanto, nem sempre foi assim.

A tradição da dança, infelizmente, construiu uma imagem ideal do dançarino no


passado. Sua figura precisava se portar de determinada maneira e ter certos requisitos
para executar os passos prescritos. Isso ocasionou que os corpos de dançarinos
deveriam ter certo tipo de flexibilidade, força e até mesmo uma altura para serem
validados pelo meio artístico. Tudo o que não se encaixasse dentro dessa linguagem
precisava ser apartado ou restringido. Isso impediu que muitos corpos pudessem ser
vistos e sentidos.

O principal resultado de uma visão assim não estava desligado da medicina, pois
tudo aquilo que não está na ordem do dia não deve ser visto como normal. Todos os corpos
fora do padrão precisam ser tratados e estigmatizados pelos poderes sociais constituídos.

Se existe uma regra que deve ser acatada, tudo que se desvia dela deve ser
visto como estranho, deformado, errado, bizarro, violento e até monstruoso. Por isso,
o biólogo Étienne Wolf criou a ideia de que haveria uma teratologia do corpo no modo
como era classificado pelos povos do passado (CORBIN et al., 2012, p. 487). “Teratos”
vem do grego e significa monstro e, no caso, ele apontou para que todas as deficiências
fossem vistas como monstruosidades.

DICA
Dica cultural do filme Freaks, de Todd Browning (1932). Em um circo de atrações
bizarras, Cleópatra é uma bela trapezista que é cortejada por um anão. Ao
descobrir que ele é herdeiro de uma fortuna, ela arquiteta um plano com o seu
amante, Hércules, de casar-se com o anão e depois envenená-lo.

116
Os processos de racionalização e de medicalização do ocidente construíram
uma noção de dominação do corpo diferente. Sua origem se devia à superstição e à
religião que tentavam explicar como certos corpos que não eram agradáveis surgiram.
A ciência, à medida que se formava, acabou adotando muitos dos preconceitos e
impediu que o estranho ao olhar pudesse circular de modo livre. Os séculos XVIII e XIX
experimentaram o surgimento dos freak shows e de que raridades biológicas eram
apresentadas como curiosidades para qualquer um que estivesse disposto a pagar para
ver anões, gigantes, gêmeos siameses, mulheres com hipertricose (excesso de pelos no
corpo) ou pessoas com formação de membros não usuais.

Figura 12 – Exemplos de circenses dos shows de freaks

Fonte: https://bit.ly/3EEKLaW. Acesso em: 13 out. 2022.

Isso acontecia pela ficcionalização que se construiu sobre essa diversidade de


corpos. Percebe-se que havia uma lógica de que a monstruosidade era designada pela
hibridação; a pessoa era vista como contendo algo humano, mas não completamente.
Ela estava misturada com algum tipo de fera ou de entidade fora do campo humano,
preferencialmente da animalidade. Existiriam pelo menos três modos de enxergar
esse processo, sendo o primeiro uma relação de centralidade ou periferia. O aspecto
animal era um elemento periférico, mas que contaminava, em alguma medida, o centro
humano. Outro ponto, o segundo critério dessa hibridação, é que o ser poderia pecar por
ter algum excesso ou alguma falta, podendo ter membros a mais ou a menos do que se
espera de uma pessoa comum.

Nunca foi impossível que uma pessoa pudesse nascer com um braço ou uma
perna a mais, mesmo que não tivesse estrutura para ser usada. Mesmo formações ósseas
estranhas poderiam fazer parecer que uma pessoa nasceu com um chifre, por exemplo.

117
Outra forma de encontrar essas “monstruosidades” era pela terceira característica:
noção de profundidade e superfície. Esse quesito aparece o que está avesso, invertido
ou trocado. Problemas de pele, a presença de apenas uma narina ou partes expostas do
interior exemplificam isso.

O que importa perceber aqui é que um corpo tem validade por ele mesmo no
modo como experimenta a vida. Toda maneira de exterminá-lo está ligada à imposição
de uma regra. A dança e o teatro também sofreram com isso, ao indicar quais seriam os
corpos ideais para as representações e as performances artísticas. Hoje, vive-se uma
época aberta para as transformações corporais em que pessoas não são mais vistas
pelas suas determinações físicas. O grupo de teatro físico DV8 criou uma belíssima
obra, intitulada The Cost of Living, em que apresenta um dançarino que não possui
as pernas e realiza incríveis movimentos de dança com seu tronco e seu braço. Nesse
sentido, é que se deve pensar como os múltiplos corpos podem ser encarados com
relação as suas diferenças.

Figura 13 – The Cost of Living do Grupo DV8

Fonte: https://bit.ly/3CPj50v. Acesso em: 13 out. 2022.

A multiplicidade do corpo pode ser vista, principalmente, com relação ao


tamanho e ao peso. Vamos falar de um tipo de corpo em específico que, muitas vezes,
é desconsiderado pelo imaginário social: o corpo obeso. A obesidade é entendida pela
medicina como o acúmulo excessivo de gordura no corpo. Quando a ingestão alimentar
é maior do que o gasto energético correspondente, há aumento de peso. Entende-se
que ele é principalmente causado por um consumo energético acima do necessário
para a subsistência saudável na alimentação.

118
Talvez não seja simples determinar o limite necessário de substâncias a serem
metabolizadas para a manutenção e realização das atividades do dia a dia, mas não há
dúvida que, quando se ultrapassa o limite do que é usado pelo organismo, há um aumento
de seu volume e, em algumas circunstâncias, esse aumento pode ser prejudicial para
a saúde completa do corpo, embora seja errado assumir que pessoas acima do peso
sejam necessariamente doentes, ainda que o preconceito exista.

Vivemos em um tempo que nos dizem que podemos ter o corpo que desejarmos,
para ter a imagem do corpo de nossos sonhos. Essa fantasia ganha força com o avanço
da tecnologia e do mercado da beleza. Somos o tempo todo bombardeados pelas mídias
com produtos, atividades e procedimentos que nos conduzem a certa idealização de
beleza, com corpos perfeitos, mas principalmente que sejam esbeltos e magros. O
corpo tem sido uma boa fonte de consumo, pois é necessário investimento de tempo
e, sobretudo, de dinheiro para se ter um corpo saudável, belo, magro e forte; tudo isso
ao mesmo tempo. Por outro lado, temos corpos gordos que são submetidos a olhares
discriminatórios, excludentes e estigmatizados, pois, na sociedade, a obesidade está
associada a características negativas, aumentando os sentimentos de insatisfação com
quem é obeso. O Brasil é um dos países que mais realizam cirurgias plásticas estéticas
no mundo, sendo um resultado de nossa busca por determinados tipos de corpos.

Figura 14 – Jussara Belchior em Peso Bruto

Fonte: https://bit.ly/3Vm3a1Y. Acesso em: 13 out. 2022.

Para trazer toda essa temática para a discussão, a bailarina brasileira Jussara
Belchior cria espetáculos de dança para refletir sobre obesidade na sociedade e
apresentaremos o seu espetáculo Peso Bruto. Jussara se autodeclara “gorda bailarina”,
o que permite uma boa reflexão, pois seu volume lhe dá o substantivo, enquanto a
qualidade adjetiva é dada pela profissão de dançarina.

119
Ela cria um espetáculo, cujo a inspiração é o peso do seu corpo, no qual
problematiza “[...] as noções da pessoa obesa como subjetividade que opera um corpo
errado, inadequado, não permitido, não belo e não desejável”. Suas repostas, para essas
perguntas, que constroem subjetividades, estão na criação do espetáculo Peso Bruto.
Fazendo uma série de movimentos que traçam “[...] uma dança que articula diálogos
entre o peso, o desejo, o apetite e a beleza colocando em contraposição o controle e a
brutalidade” (BELCHIOR, 2018, s. p.), Jussara encontra na dança a resposta e o caminho
para o seu empoderamento e desejo de ser bailarina com o corpo que tem. Ela nos
mostra que a dança é uma das possibilidades de que pode nosso corpo. Corpo, ou a
concepção de corpo, é uma construção histórica e uma construção individual.

Jussara Belchior quebra estereótipos da dança com o peso, discute sobre a


qualidade de quem dança, pois, quando as pessoas olham e julgam, é como se qualidade
da dança estivesse relacionada ao peso, pois se a pessoa é magra, e provavelmente
dança bem. A própria bailarina diz que já acreditou nessa lógica, pois ela, sendo gorda,
não seria capaz de se tornar uma bailarina clássica pelo preconceito de que um corpo
gordo não seria capaz de dançar (BELCHIOR, 2018).

Foi na década de 1960 que a dança clássica começa a ganhar outros


significados e diversos movimentos começaram a quebrar e a questionar os padrões
convencionais de corpos para a dança, com determinada cor, tamanho, forma e peso
(MARQUES, 2012). Outras possibilidades começaram a ser inseridas na dança, de forma
gradual, como distintos corpos: com deficiência, gordos, de várias etnias e velhos, por
exemplo. A própria Jussara Belchior (2018) conta que era muito difícil e cruel participar
de festivais, pois sempre era muito observada por causa do seu peso, nos bastidores.
E que eram constantes as falas para que ela emagrecesse, para levar a vida como
bailarina profissional: “[...] eu escutei mais na minha vida, ‘você precisa emagrecer para
continuar’, do que ‘você devia parar, porque você é gorda.’ (BELCHIOR, 2018, s. p.).

A ideia e os conceitos de beleza não são únicos, universais e estáticos, pois estão
diretamente entrelaçados com questões culturais, sociais, históricas e singularidades
pessoais. Essa forma de ver e de estar no mundo moldam a forma como cada sujeito
e grupos de sujeitos percebem o modo de beleza, que é sempre construída a partir do
local e da época em que esses sujeitos estão inseridos.

O momento em que vivemos, apesar de todas as liberdades individuais que


temos, faz pressão estética, mexendo com a nossa subjetividade, ditando que todos
devem ter um corpo belo, magro e jovem. Essa pressão exercida sobre nós é perceptível
pelas mídias (TV, revistas, mídias sociais…), por exemplo, e isso vai impondo padrões
de beleza que levam as pessoas a uma corrida sem fim, porque, cotidianamente, para
estar nesse padrão, temos de fazer, por obrigação, atividades físicas, dietas da moda e
intervenções estéticas, para alcançar a beleza ditada pelos padrões atuais.

120
A bailarina Jussara Belchior, com o seu espetáculo, questiona os padrões de
beleza impostos, tanto para a vida cotidiana quanto para a dança, rompendo paradigmas
estéticos e mostrando mais do que um corpo. “A dança, enquanto arte, tem o potencial
de trabalhar a capacidade de criação, imaginação, sensação e percepção, integrando o
conhecimento corporal ao intelectual.” (MARQUES, 2012, p. 5).

O espetáculo foi contemplado com prêmios e participou de festivais; com isso,


ele pôde viajar por muitos lugares do país, levando essa reflexão e arte a vários lugares,
levando outras multiplicidades corporais para a fazer as pessoas questionaram os
estereótipos a partir da dança.

O próximo exemplo de multiplicidade de corpos é também de dança pelo viés da


deficiência, mais especificamente na cadeira de rodas.

A dança em cadeira de rodas chama a atenção porque corpos considerados


“diferentes” para o padrão da dança simplesmente dançam, fazendo do palco um espaço
de liberdade, e não de limitação por causa da cadeira de rodas, também quebrando
os estereótipos corporais para a dança. Tais corpos usam do movimento, do gesto, do
domínio da cadeira para manifestar seus desejos e o medo para representar e expressar
sua cultura.

Na cidade de Fortaleza, existe a Companhia de Dança sobre Rodas, um dos


projetos da Associação Elos da Vida, uma organização não governamental que trabalha
com qualificação profissional. Essa ONG pensa a arte voltada para pessoas com
deficiência e desenvolve atividades artísticas inclusivas.

A inclusão está pautada na potencialidade do corpo, que o bailarino e bailarina


aprendam a olhar e valorizar seus corpos, no qual a cadeira de roda não seja um objeto
para limitar seus movimentos, mas que a cadeira faça parte da coreografia, pois as
técnicas e fundamentos da dança ganham, principalmente, objetivos artísticos e
pedagógicos, tanto no seu resultado final quanto no processo desenvolvido nas aulas
(ou ensaios), explorando a arte por meio do corpo e da cadeira de roda, como poética e
estética, e não como algo limitador.

121
Figura 15 – Companhia Dança Sobre Rodas

Fonte: https://bit.ly/3RZyVuW. Acesso em: 13 out. 2022.

O objeto da cadeira de rodas não é um empecilho, mas um elemento por meio


do qual podem dançar diferentes estilos e distintas modalidades. Estilos como dança de
salão, balé clássico, dança livre ou moderno, dentre outras. Existem também distintas
modalidades, como a dança combinada, com uma pessoa dançando na cadeira de rodas
e a outra não; dança em dupla, em que duas pessoas, em cadeira de rodas, dançam
juntas; dança de grupo, na qual todos podem estar em cadeiras de rodas, ou mistas,
também com pessoas sem cadeiras de roda; dança individual, com a pessoa em cadeira
de rodas sozinha. As coreografias podem ser estruturadas ou livres. A dança em cadeira
de rodas é entendida como uma prática motora de variados estilos de dança sobre a
cadeira de rodas, sendo, portanto, mais democrática e inclusiva, pois há a possibilidade
de um número maior de pessoas no universo da dança.

A cadeira de rodas, para quem dança, passa a ser ressignificada e a fazer parte
do movimento, da estética e da gestualidade da coreografia. A cadeira de roda não é
um limitador, mas mais uma possibilidade de elemento para a dança. Com a dança, a
cadeira de rodas pode deixar de ser um estigma da pessoa com deficiência física, como
muitas vezes é vista social e culturalmente, e passa a ser elemento de prazer do corpo,
de expressão e sentido (FERREIRA; FERREIRA, 2004). A modalidade e estilo de dança
não têm a técnica da dança como elemento principal e determinante para a habilidade
da linguagem da dança, mas uma descoberta do próprio corpo, ressignificando a cadeira
de rodas e os próprios movimentos do corpo. Dessa forma, o sujeito se reconhece como
capaz de dançar e produtor de arte, já que produz com seus movimentos, intervindo na
relação de seu corpo e deficiência com o seu mundo social.

122
A dança, mesmo a profissional, não está focada apenas na "performance"
artística, como exposição de força do bailarino e suas possibilidades corporais pela
técnica clássica. A arte é trabalhada como um modo de expressar, mostrar e explicitar a
nossa forma de estar mundo; assim, as possibilidades da prática de dança são muitas e
não limitadoras. Cada corpo que está nesse mundo é um corpo vivo, que sente, que tem
memórias, dores e prazeres. Todo corpo tem sua subjetividade e suas peculiaridades.
Cadeirantes, por exemplo, não precisam fazer dança para abordar apenas a deficiência
como temática. Eles podem usar qualquer temática para dançar e fazer coreografia, pois a
dança é expressão, e não limitação. O último espetáculo da Associação Elos da Vida se
chamava “Borboleta” e era sobre as transformações e fases da vida. Os dançarinos eram
com e sem deficiência; isso com o objetivo de mostrar que todos somos um.

A dança é uma prática e vivência que une o sensível e o saber do corpo com
os movimentos intencionais. A dança é a tradução, em gestos e movimentos, e a
construção de sentidos de sujeitos e de seus mundos. A dança possibilita o respeito à
singularidade de cada corpo, não importando o “tipo de corpo”: se o corpo tem ou não
alguma deficiência, se é leve, ou pesado; grande ou pequeno, se o corpo é de um idoso
ou de uma criança na educação infantil. A dança também é a arte das diferenças, da
diversidade humana e das multiplicidades corporais.

A dança se apresenta, ao longo da nossa história, como uma das principais


linguagens e formas de expressão, de sentimentos e de comunicação. Qual o material
primordial da dança, que, sem ele, não existe a dança? O corpo, o único material
necessário para que a dança aconteça, é o próprio corpo. A dança poderia ser mais
valorizada em nossa sociedade, tanto na educação quanto em espaços fora dela. A
dança pode ser somente entretenimento e diversão, mas ela é muito potente para
transformar a vida das pessoas e até de uma comunidade.

Podemos aprender muito com os atores e os bailarinos do ato do experimento,


porque, no teatro e na dança, quando se monta um espetáculo, os primeiros ensaios
são dedicados exclusivamente à experimentação, empresta-se a voz e o corpo a fim de
fazer experimentos para dar vida e movimento às palavras ou aos gestos que estavam
enclausurados no papel ou no pensamento. “O ator possui um extraordinário potencial
para criar vínculos entre a sua imaginação e o público, fazendo com que um objeto
banal possa transformar-se num objeto mágico” (BROOK, 2010, p. 38).

O ator e o bailarino fazem do palco o ensaio, seu laboratório, pois é lá que se fazem
muitas tentativas de erros e acertos para se chegar a uma determinada cena. As cenas e
as coreografias nascem das tensões entre as potencialidades e os limites do corpo com o
contexto social e cultural que circunscreve os sujeitos envolvidos nas produções.

123
Quando as cenas e as coreografias se tornam uma obsessão, quando os ensaios
não cessam de ir e vir no pensamento e no corpo, o espetáculo vai se materializando,
tomando formas concretas, aí tudo deixa de ser um ensaio e vira um espetáculo, que
vai levar a ideia, a arte e a temática para outras pessoas. A partir daí, temos outros
movimentos e outros corpos são atingidos pela magia da arte.

O último exemplo de multiplicidades corporais vem do outro lado do país e é


sobre o teatro. Teatro feito por pessoas surdas, o Grupo Signatores, nasceu em 2010,
com o intuito de fazer realizações práticas e teóricas na área do teatro formado por
acadêmicos e por pesquisadores ouvintes e surdos da área de Teatro e da Educação.
Outro objetivo do grupo é incentivar a formação de professores e pesquisadores na
área do teatro para jovens e adultos surdos do teatro, com criações artísticas dos
surdos, “[...] um grupo de pesquisa teatral composto por atores que utilizam a Língua
de Sinais na interação comunicativa, sejam eles surdos ou ouvintes” (SOMACAL, 2014,
p. 48). Com relação ao histórico de teatro para surdos e também feitos por surdos, em
1967 foi fundado o Teatro Nacional dos Surdos (National Theater of the Deaf – NTD), no
qual usavam o inglês em sinais em seus espetáculos. Em 1973, enceraram uma peça
utilizando a língua de sinais e, na sequência, muitos grupos pelo mundo todo foram
influenciados pelo NTD, inclusive no Brasil.

Figura 16 – Companhia de teatro Signatores

Fonte: https://bit.ly/3VrZ0FG. Acesso em: 13 out. 2022.

As montagens teatrais realizadas pelos grupos de teatro de surdos utilizam


a língua de sinais e a expressão corporal como elementos principais das produções.
As produções têm como objetivo atingir a plateia de surdos e ouvintes. O teatro como
linguagem estimula a aprendizagem, potencializando a capacidade comunicativa e a
compreensão e a expressão do mundo. O teatro tem a possibilidade de articular suas

124
características gestuais por suas características visuoespaciais da língua de sinais,
possibilitando ao ator (ou ao aluno que faz teatro) se expressar artisticamente, utilizando
sua própria língua. O trabalho cênico faz com que o ator tenha o reconhecimento do
corpo, como meio de comunicação, pela expressão corporal; o teatro pode ser feito por
todos, como bem escreve Viola Spolin (2010, p. 13):

Todas as pessoas são capazes de atuar no palco. Todas as pessoas


são capazes de improvisar. As pessoas que desejarem são capazes
de jogar e aprender a ter valor no palco. Aprendemos através da
experiência e ninguém ensina nada a ninguém. Isto é válido tanto
para a criança que se movimenta inicialmente chutando o ar,
engatinhando e depois andando, como para o cientista com suas
equações. Se o ambiente permitir, pode-se aprender qualquer
coisa, e se o indivíduo permitir, o ambiente lhe ensinará tudo o que
ele tem para ensinar. “Talento” ou “falta de talento” tem muito pouco
a ver com isso.

O sujeito surdo tem a sua língua com características próprias, sendo ela com
uma estrutura e regras específicas, e não deve ser vista como uma deficiência. O teatro
tem potencial para se trabalhar a diversidade e com a diversidade, além da inclusão
de pessoas surdas na sociedade. O teatro com surdos promove uma reflexão sobre
o cotidiano, possibilitando o desenvolvimento artístico da comunidade surda, além de
democratizar o acesso aos bens culturais universais.

Com relação ao teatro na escola, mesmo que a maioria das escolas não ofereça
aulas específicas de teatro no currículo, mesmo sem jamais terem ido a um teatro, os
alunos reconhecem e “fazem” teatro. Sem dúvida, suas referências são a televisão e as
atividades de dramatização realizadas na própria escola, como os conhecidos “teatrinhos”.
Portanto, mesmo não havendo, na escola, aula de teatro, há uma prática teatral escolar.
Essa prática, muitas vezes, consiste em gestos, enredo e movimento “clássicos” que
se repetem todos os anos na escola. Quantas vezes já vimos, nas apresentações das
escolas, as crianças batendo a mão no peito esquerdo para ilustrar um coração ou
mencionar o amor? Como podemos apagar da memória o gesto de colocar as mãos para
cima, abrindo e fechando-as sem cessar para se referir às estrelas (que brilham)? Vemos
se perpetuar um modo de se fazer teatro na escola que normalmente é repetido. Creio
que assim vai se instituindo uma gramática gestual de se fazer teatro na escola, uma
gramática que tem regras a serem seguidas, com gestos e movimentos corporais que
vemos se repetirem muitas e muitas vezes nas apresentações nas escolas, instituídos
pelas práticas teatrais na escola.

125
3 A CENA E A ETNOLOGIA
Observar o que nos é, a princípio, de diferente, escrever sobre o observado,
que espaço ou espaços ocupa? Que saberes produzem, como se origina? Etnologia
seria o estudo do Outro e sobre o Outro. É a ciência que estuda os fatos levantados
pela etnografia, a compilação de dados culturais; ramo da antropologia cultural que
compara as diferenças entre os povos. Esse campo de estudo serve para indicar limites
ao modo como cada cultura percebe a si, possibilitando uma crítica ao que se chama
de etnocentrismo, a ideia de que sua cultura é central e superior às outras. Dessa
forma, pode-se analisar o corpo e sua expressão cênica, apontando toda a sua riqueza,
evitando o preconceito racial e cultural. Ao se estudar as formas cênicas que não estão
na linha principal de visibilidade, aprende-se mais das próprias conquistas e limites.

Essa leitura cultural poderia passar observando como povos diferentes


desenvolvem suas artes cênicas. Por outro lado, pode-se observar como certas
representações são feitas fora do centro hegemônico cultural das grandes cidades. Nosso
estudo fará um passeio nas cenas de algumas festas populares para ver a dramaticidade
e/ou teatralidade para descobrir e conhecer mais os códigos estéticos e culturais de
nossas festas populares. Para começar, vejamos o que se entende por folclore:

Na cabeça de alguns, folclore é tudo o que o homem do povo faz


e reproduz como tradição. Na de outros, é só uma pequena parte
das tradições populares. Na cabeça de uns, o domínio do que é
folclore é tão grande quanto o do que é cultura. Na de outros, por
isso mesmo folclore não existe e é melhor chamar cultura, cultura
popular o que alguns chamam folclore. E, de fato, para algumas
pessoas as duas palavras são sinônimas e podem suceder-se sem
problemas em um mesmo parágrafo. Bráulio do Nascimento, diretor
do Instituto Nacional do Folclore, diz o seguinte na Introdução de um
álbum sobre o Museu de Folclore Edison Carneiro: “A cultura popular
pode intervir como elemento moderador no processo cultural, pois
dispõe de instrumentos próprios para o equilíbrio necessário ao
seu harmônico desenvolvimento”. Um mesmo tom ele usa mais
adiante, e muda apenas uma palavra pela outra: “A valorização do
folclore, o reconhecimento da importância das manifestações
populares na formação do lastro cultural da nação, constituem
procedimentos capazes de assegurar as opções necessárias ao seu
desenvolvimento”. Com muita sabedoria, Luís da Câmara Cascudo
mistura uma coisa com a outra e define folclore como “a cultura do
popular tornada normativa pela tradição” (BRANDÃO, 1984, p. 22-23).

Folclore é o que está no corpo do povo. Ele se expressa pelas relações cênicas
que não têm apenas uma raiz e surge do choque de vários grupos culturais em ação. No
Brasil, isso fica claro nas festas, pois elas relacionam elementos das culturas indígenas,
afrodescendentes e europeias. O ponto mais importante a ser considerado aqui é que
a cultura popular não é inversa ou diferente da cultura erudita por nenhuma questão
essencial. O que é erudito pode ser tomado emprestado pelo uso popular e, da mesma
maneira, o erudito usa constantemente o popular. Essa diferenciação surge por uma
hegemonia de alguns grupos sobre outros, mas que não se sustentam de nenhuma
forma como superioridade cultural.
126
As trocas culturais são sempre dinâmicas, de modo que não existem categorias
rígidas que se separam uma de outra; apenas normatividade social. O corpo se expressa
em ambos os casos, sem dúvida, mas a cultura popular tem uma vida e uma resistência
próprias dentro do grupo em que se manifesta.

O folclore se mostra como um saber-fazer relacionado ao corpo que se passa pela


comunidade, mantendo uma identidade. A tradição passa movimentos, gestos, imagens,
artesanias e cantos que celebram ritualisticamente valores pela expressão corporal.

Os processos para criação de espetáculos de dança e teatro contemporâneos


buscam nas manifestações folclórica e nos folguedos populares inspiração para suas
pesquisas, conceitos e estética para as montagens de suas apresentações. Essas
manifestações populares estão carregadas de dramaticidade, movimentos dançantes,
música, jogos, brincantes e festas, e com elas carregam a identidade de um povo.
Podemos citar o Jongo, reisados, Congada, Folia de Reis, Bumba-meu-boi (e suas
variadas versões), Moçambique e o próprio carnaval.

Figura 17 – Carnaval

Fonte: https://bit.ly/3fZgaud. Acesso em: 15 set. 2022.

A primeira manifestação cultural que apresentaremos é o Carnaval. Muitas


pessoas acreditam que essa festa nasceu no Brasil, mais especificamente nas
cidades do Rio de Janeiro ou na Cidade de Salvador na Bahia, por serem as nossas
festas mais conhecidas.

O Carnaval é difícil de ser localizado historicamente, mas uma das fontes mais
prováveis aponta para a Grécia Antiga há mais de 2.500 anos. Era um ritual para um
deus grego chamado Dioniso, conhecido como o deus do vinho, do teatro e inspirador

127
da fertilidade (MACHADO, 2006). Seus cortejos sempre são representados com muita
bebedeira e com conotação sexual. As celebrações para Dioniso sempre eram grandes
festas, para comemorar as colheitas, consistindo em procissões com danças, cantos,
máscaras e fantasias de animais.

As festas para o Dioniso eram acompanhadas de teatros, tragédias e comédias.


A representação de Dioniso nem sempre é igual, porque não tinha templo, vivia como
nômade. Observando um pouco, encontramos muitos elementos que fazem parte do
Carnaval que está presente na cultura ocidental, principalmente com a questão das
fantasias, das máscaras e dos elementos teatrais. O deus Baco seria a correspondência
do deus do vinho e do teatro para os romanos.

Na língua portuguesa, há uma palavra que tem origem em Baco, que é a


“bacanal”. Na Idade Média, tendo a Igreja como a entidade suprema, os prazeres do corpo
são pecados. Festas populares como a do Carnaval, que poderia ter todo um contexto
que seria contra os padrões cristãos, foram proibidas ou inibidas. Houve repressão e
tentativas de acabar com essas festas populares (CARDOSO, 2000). A origem da palavra
Carnaval tem duas vertentes: uma que pode ser do dialeto milanês carnelevale ou do
latim carnevale (abstenção de carne). Esta última parece estar mais ligada ao início da
quaresma cristã. A oficialização do período de carnaval, com os três dias que antecedem
a Quarta-Feira de Cinzas, dá-se em 1582, com o Papa Gregório XIII.

Os estudos dão conta de que o Carnaval veio para o Brasil com os portugueses
no período colonial, depois os brasileiros (escravizados e não escravizados) satirizavam
os colonizadores se fantasiando com camisas rasgadas, pintando seus rostos com
farinha e atirando limões de cheiro. Com a vinda da família real, os festejos de Carnaval
eram em espaços fechados, e não “selvagens” e “bárbaros”. Com essa nova forma de
comemorar o Carnaval, cria-se uma festa com duas possibilidades diferentes: a rua e
o salão, demonstrando claramente uma divisão de classes e as diversidades de seus
estilos de lazer e diversão (SILVA, 2019).

O Carnaval, hoje, no Brasil, é tão diverso e grande como o próprio Brasil.


Atualmente, as escolas de samba que tem um trabalho interdisciplinar, que trabalham
figurino, enredo, coreografia e teatralidade a partir de uma temática para criar seus
desfiles estão em todo o país, nasceram no Rio, mas, hoje, está em todo país. Temos
o Carnaval em Recife e Olinda, com o frevo, com toda as suas danças e execução de
música ao vivo pelas orquestras. Em Pernambuco, temos a junção de vários estilos
musicais e populares na mesma festa, um encontro lindo do maracatu, caboclinho,
afoxé, samba e bonecos gigantes.

Na Bahia, com todo o sincretismo religioso, com seus trios elétricos guiando
a multidão tocando afoxé, axé, micareta e samba, todos estão em uma mesma festa.
Da cidade de Salvador, merece um destaque especial o bloco carnavalesco Ilê Aiyê,
reconhecido como o primeiro grupo afro-brasileiro por exaltar a história das mulheres e
dos homens negros no Brasil, resgatando sua luta, ancestralidade e resistência.

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Nos últimos anos, antes da pandemia do coronavírus SARS-CoV-2, os blocos
de rua estavam ganhando força e volume em todo país, pessoas que pulam carnaval
apenas para comemorar, outros como ato de resistência e ato político. O Carnaval é
cultural; transforma junto com seu povo e passa por transformações sociais e de
ressignificações históricas constantemente.

Carnaval é criar uma persona, uma máscara que é quase um personagem e


brincar fazendo uma espécie de performance teatral e até uma dança, porque se usa o
corpo, fantasias, brinca-se de ser Outro. É uma celebração em que se festeja o encontro
com o Outro. São feitas pequenas encenações, aprende-se coreografias ou dança-se
livremente, ou a pessoa apenas veste uma fantasia para brincar e pular o Carnaval. A
festa do Carnaval, com toda a sua teatralidade, dança, música e festejo, atravessa os
corpos, os sentimentos e os desejos.

Outra festa popular que traremos é a festa do “boi-bumbá”; festa difundida na


cultura pela e um dos ingredientes responsáveis por fazer a festa do boi ter diversas
versões pelo país. Essa festa é um patrimônio cultural imaterial que integra o imaginário
narrativo popular do Brasil. A festa do boi tem os nomes diferentes conforme o local
em que se desenvolve. No Norte, chama-se Boi-Bumbá tanto no estado do Amazonas
quanto no estado do Pará. No Nordeste, está presente em mais de um lugar também
com nomes diferentes: no Maranhão, é chamado exatamente de Bumba meu Boi, mas,
no Rio Grande do Norte, cavalo-marinho; na Paraíba, bumba de reis ou rei de bois. No sul
do país, temos eventos desse tipo também. Em Santa Catarina e Paraná, chama-se boi
de mamão e, no Rio Grande do Sul, boizinho. No Sudeste, tem-se exemplos, no Espírito
Santo, com o boi calemba e, no Rio de Janeiro, de boi pintadinho.

O enredo e a história da festa do boi para as representações e desfile são o


seguinte: um escravizado (Pai Francisco, na maioria das vezes), para satisfazer o desejo
de sua esposa (Mãe Catirina), que estava grávida e com uma enorme vontade de comer
a língua de boi, acaba matando o animal, mas aquele boi não era qualquer boi, mas sim
o bicho de estimação de seu patrão. Com a morte do boi, começa uma investigação que
acaba apontando Pai Francisco como culpado. Com o objetivo de absolvê-lo da pena,
seria imposta pelo fazendeiro que pajés, curandeiros e outras personagens realizassem
rituais que culminam na ressurreição do boi. Diante disso, começa uma festa com
música, dança e, em alguns casos, desfiles para comemorar.

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Figura 18 – Bumba Meu Boi

Fonte: https://shutr.bz/3MqCk4R. Acesso em: 13 out. 2022.

Há estudos que indicam que a parte da ressurreição do boi tenha sido retirada de
uma peça de teatro (um auto) dos jesuítas que, originalmente, servia para a catequização
dos indígenas, transmitindo os valores morais e religiosos do cristianismo aos indígenas.

Estudos também apontam que primeiros registros formais, ou seja, registros


escritos, sobre folguedo em torno do boi são dos séculos XIX e XX, com surgimento
no norte e nordeste do Brasil, de origem popular da festa, principalmente pelo festejo
sincretizar influências africanas e indígenas. Podemos perceber que dos indígenas, no
enredo festivo, há os elementos da natureza; dos portugueses, o catolicismo medieval;
e, dos africanos, o culto às entidades ancestrais da África. Dessa forma, a festa do boi
está toda mergulhada em um sincretismo religioso e nas diversas matrizes culturais.

Ao ver a festa do boi de Parintins, no Amazonas, observamos que são


trabalhadas diversas vertentes artísticas que lidam com as questões da corporeidade,
pois todo o tempo há dramatização dos elementos do folclore e da realidade do caboclo,
dos indígenas e da comunidade ribeirinha. Os costumes, os hábitos e as tradições são
representados pela forma das brincadeiras, nas roupas, nos adereços e nas alegorias.

Retomando o que foi comentado anteriormente, pode-se dizer que essas


festividades foram vistas como expressões menores da cultura por não pertencerem
aos grupos hegemônicos por completo. Como eram feitas pelas camadas mais simples
e subalternizadas socialmente, foram tratadas com menos valor. Em um país como
o nosso, que passou por um processo de colonização e criou relações de poder e de
dependência que muitas vezes se expressam nas narrativas folclóricas, mas que não

130
as dominam completamente, o folclore fala da vida do colonizado que encontra no
momento da festa a chance de trazer a sua versão da história. Há uma breve ruptura da
ordem estabelecida para que os explorados consigam obter, por um tempo limitado, a
liberdade que lhes falta na vida comum.

Que se veja a importância da roda de ciranda feita em Pernambuco por Lia de


Itamaracá, reconhecida artista que mora na ilha que lhe deu o nome artístico. A ciranda
era uma dança que chegou ao Brasil pelos portugueses. A palavra vem de peneira, que
era usada para joeirar os grãos. Na Ilha de Itamaracá, há um momento de celebração da
vida em que as estruturas sociais podem ser suspensas e todos podem sentir a força
vital que uma festa traz. Nos anos 1970, as canções usadas ficaram conhecidas por todo
o país pela voz de Lia. Suas canções e danças oportunizam a participação de toda a
coletividade sem discriminações. Como ela mesma revela em entrevista:

A Ciranda é todo mundo de mãos dadas, é uma dança de roda, a


Ciranda não tem preconceito; na Ciranda dança pobre, dança rico,
dança aleijado, todo mundo! É uma maravilha. A Ciranda casa e
batiza. Às vezes tá tão amuado em casa, pensando: “Meu Deus, que
é que tem pra gente vê? Não tem nada”; tem uma roda de Ciranda!
Vamo lá? Aí você já vai com aquele astral, se anima e quer chegar ali.
E é um andamento muito bom, muito lento e bonito. Eu adoro. Faço
todo mundo feliz. Tenho contato com todo mundo (OTELO; VIEIRA,
2016, s. p.).

Indo para outras paragens, percebe-se que cada povo faz usos próprios do corpo
conforme os espaços culturais que ocupa. Nesse sentido, cabe pensar na importância
de uma ciência relativamente nova que pode ajudar a pensar em como isso funciona:
a etnocenologia. Trata-se da ciência que estuda o comportamento espetacular em
diferentes grupos sociais e culturais. Do ponto de vista metodológico, a etnocenologia
mapeia relações entre visões teóricas diferentes, entre universos intelectuais distintos
de conhecimento como os da Antropologia, das Ciências Cognitivas, da Estética, da
Filosofia, por exemplo. A diferença está em essas relações envolvem a análise de
objetos que vão do teatro à culinária, passando por manifestações populares, rituais e,
principalmente, estudos do corpo.

Saiba-se que há uma quantidade bastante razoável de disciplinas que foram


enriquecidas pelo prefixo etno, sugerindo, com isso, como certos aspectos do objeto
científico também têm um contexto cultural.

É nessa linha que se torna importante pesquisar como o ser humano manifesta
o mistério que liga o simbólico ao corpo (PRADIER, 1998). Existe uma extraordinária
pluralidade das aparências estéticas corporais com descendências milenares. São
virtuosidades extravagantes dos corpos em todos seus aspectos vivos do imaginário
que dão sabedoria e conhecimento à cultura em que vivem.

131
A etnocenologia é uma ciência interdisciplinar e internacional por necessidade.
Permite que relações entre visões diferentes de cena possam se encontrar e até
dialogar. Uma cultura cênica francesa em que separa corpo e mente pode aprender
com a tradição indiana do Shamkya cuja visão é mais integrada à natureza humana. A
corporalidade da humanidade está à disposição do pesquisador com a possibilidade de
amplificar as vias de conhecimento por não se prender apenas à própria cultura como
norma. Como o criador da ciência, Jean-Marie Pradier, comenta:

Numa disciplina internacional e interdisciplinar o fundo comum da


humanidade está à disposição de cada um, dando a chance de
multiplicar as vias do conhecimento no qual nenhuma delas sozinha
tem condição de levar ao centro da complexidade. Convém também
não se deter na denominação da “etnocenologia”, presente de Gregos
evocadores da dimensão orgânica da atividade simbólica, numa
perspectiva universal que transcende às particularidades culturais.
(Grego escrever à mão) [Skenos] é tomado aqui no seu sentido arcaico
para evocar o corpo humano e sua relação dinâmica com a alma.
[Etnos] destaca a extrema diversidade das práticas e seu valor fora
de toda referência de um modelo dominador. O sufixo “logia” implica
em ideia de estudo, de descrição, de discurso, de arte e de ciência
(PRADIER, 1998, s. p.).

Essa ciência permite ler as especificidades dos usos corporais diferentes


e, assim, entender que o corpo físico é um ser pensante. Os mecanismos sensório-
motores que respondem ao ambiente são formas de pensamento mais sofisticadas
do que se imagina. Observando corpos diferentes em contextos cênicos diferentes,
podemos achar princípios que unem os corpos como uma dimensão interrelacional.

O corpo carrega relações e pode construir-se e reconstruir-se criativamente. A


etnocenologia une visões divergentes entre praticantes culturais singulares, em que as
comparações ajudam a pensar a cena de modo geral, sem diminuir as individualidades
dos envolvidos.

Dançarinos de tango podem ser influenciados por dançarinos de samba e alterar


sua base cênica. Um dançarino de Butoh pode aprender com um artista russo e alterar
sua emoção durante os passos de dança. Um ator de teatro tradicional pode aprender
observando um gaúcho campeiro domando seu gado a como agir com presença. O local
da cultura deixa de ser um espaço físico e se transforma em uma função. A cena não
possui limites, a não ser a que os artistas escolhem.

132
4 O CORPO MUTANTE
Nunca se falou tanto em corpo como neste século. Nossos corpos nunca
estiveram tão sujeitos às transformações da ordem social, cultural, corpórea e
tecnológica como na sociedade contemporânea. Um grande exemplo disso é a
preocupação com corpos atléticos, também chamados de “em boa forma”. Nas
academias de musculação, o corpo tende a buscar um estado específico, uma
aparência padronizada. Ele passa por processos para parecer sempre jovem, magro e/
ou musculoso, por vezes favorecendo mais a questão estética do que a própria saúde. A
eterna busca de juventude tem conseguido ganhar, cada vez mais, prolongamento com
tantos cosméticos e procedimentos estéticos; uma forma de entender como o corpo
pode estar em transformação conforme a vontade humana.

Ao ver ou ouvir a palavra mutante, a primeira coisa que vem à cabeça são
X-men, os quadrinhos que também viraram filme e desenhos, da Marvel Comics. Seus
personagens são humanos que nasceram com modificações fisiobiológicas que os
tornam possuidores de habilidades anormais, ou seja, diferentemente de outros super-
heróis que adquirem seus superpoderes por acidentes ou experimentos científicos.
Interessante constar que algumas pessoas, de fato, nascem com condições corporais
raras, como o chamado ouvido absoluto, podendo discernir facilmente os vários tipos
de som; a alta flexibilidade em que o colágeno do corpo é excessivo, permitindo maior
contorção de partes do corpo; algumas pessoas têm imunidade ao sono, não sofrem
com a privação soturna; ou autistas que possuem um tipo de super memória, podendo
lembrar-se de eventos em mínimos detalhes. Para o nosso estudo, o nosso recorte sobre
corpo mutante é outro, pois mutação é um termo muito mais amplo. Estamos mais para
o lado da personagem Robocop, que tem seu corpo modificado com tecnologias digitais
e ferramentas, como um braço mecânico, por exemplo.

Figura 19 – Imagem do brinquedo baseado no ciborgue do filme Robocop

Fonte: https://shutr.bz/3g46leB. Acesso em: 13 out. 2022.

133
E não podemos esquecer que o nosso corpo é mutante, pois você deve estar
um pouco diferente de 10 anos atrás. Com certeza, nosso estado físico estará bem
diferente daqui a 30 anos. O envelhecimento se mostra um elemento essencial para a
compreensão do corpo, inclusive de um ponto de vista cognitivo, já que as sensações
nascem bastante livres com relação ao meio e vão perdendo a acuidade no final da vida.

Apesar de ser um processo natural, presente em várias espécies vivas,


o modo como os humanos envelhecem parte de processos muito singulares. Na
contemporaneidade, algumas perguntas nascem ao ver nossos corpos: existem
fronteiras para meu corpo? O que pode um corpo? O corpo pode durar mais? Posso
melhorar meu corpo?

A partir da década de 1950, as experiências que relacionam e ligam o corpo à


tecnologia não pertencem mais apenas às ficções científicas, mas vêm migrando para o
nosso cotidiano. Nos anos 1850, as pessoas nem sonhavam com a existência de aparelho
marcapasso, que é um dispositivo implantado no peito ou no abdômen, cujo objetivo é
regular os batimentos cardíacos. Um trabalhador braçal não poderia imaginar, em 1990,
que seria possível termos chips para controlar hormônios dentro do corpo, como o chip
da beleza, com a liberação controlada e avançada da insulina. Próteses são acopladas ou
instaladas nos corpos para a superação de deficiências ou para curar doenças.

Já iniciamos essa conversa quando estudamos as redes sociais e os corpos, o


culto a um determinado padrão de corpo e culto à beleza. Muitos procuram academias
para construir um corpo mais forte (sim, há pessoas que também vão por causa da
saúde física e mental) e perfeitos, o que alguns teóricos chamam de metamorfose física
do corpo, inclusive com uso de remédios (anabolizantes, por exemplo) para se chegar
mais rápido ao corpo desejado. Também há a disposição, para quem pode pagar, de
intervenções médicas com variados procedimentos médicos, cirurgias e/ou implantes.
Os avanços tecnológicos e médicos ajudam a construir um novo corpo, assim como
também novos espaços e tempos para o corpo (LÉVY, 2003).

O ser humano é um ser inventivo e, como podemos ver nesse nosso percurso de
estudo, as invenções também nos reinventam. Essas reinvenções nos tornam diferentes
com técnicas que nos fazem nos ver diferentes e mudam nosso olhar de mundo e de
nós mesmos.

O fogo, a roda, o carro, a fotografia, as próteses, as lentes de contato e os


transplantes são exemplos de como os artefatos que inventamos nos mudam e podem
mudar nossos corpos e as formas como esses corpos habitam o mundo.

As tecnologias e os artefatos estão cada vez mais fazendo parte do corpo


humano. Órgãos artificiais estão sendo criados; aparelhos cada vez mais modernos
estão fazendo parte de nosso corpo, tanto externo quanto externo. A qualidade de vida
melhora e a vida se prolonga com artefatos que ajudam, por exemplo, o coração, o
pulmão, o sangue, os olhos. Como bem explica Pierre Lévy (2003, p. 30), ao escrever
sobre implantes, transplantes, mutações e próteses:

134
Os implantes e as próteses confundem a fronteira entre o que é
mineral e o que está vivo: óculos, lentes de contatos, dentes falsos,
silicone, marca-passos, próteses acústicas, implantes auditivos,
filtros externos funcionando como rins sadios. [...] Os olhos (as
córneas), o esperma, os óvulos, os embriões e, sobretudo o sangue
são agora socializados, mutualizados e preservados em bancos
especiais. Um sangue desterritorializado corre de corpo em corpo
através de uma enorme rede internacional [...]. O fluido vermelho da
vida irriga um corpo coletivo, sem forma, disperso.

Até aqui desenvolvemos a ideia de mutação com auxílios de artefatos, como


próteses, cuja função são as modificações corporais por causa de uma doença e o corpo
precisa dessas cirurgias e implantes que “[...] também potencializam o corpo, mas que
foram procedimentos a partir de um sofrimento e que, mesmo após reparação, o corpo
ainda sofre com a possibilidade de uma reincidência” (AMORIM; COUTO, 2020, p. 3).

A partir de agora, falaremos da mutação, mas no sentido da escolha da pessoa


para seu corpo, para se sentir melhor, como o uso de botox, lipoaspiração, rinoplastia,
mamoplastia de aumento (prótese de silicone).

O culto a determinado tipo e estilo de corpo tem se propagando como uma das
formas e condições para ser feliz, aceito e desejado na nossa sociedade e também no
mundo das redes sociais, em nossa sociedade contemporânea.

Nos últimos tempos, com as descobertas científicas, tecnológicas e farmacêu-


ticas, a ideia de ter um corpo perfeito parece estar mais próxima de nós, circundados e
dentro de uma “vida tecnocientífica” (COUTO, 2007, p. 42).

Tempos em que nos dizem que é só fazer uma cirurgia aqui, outra ali, fazer
academia, usar suplementos ou esteroides para conquistar um corpo mais atlético
mais rapidamente. Os cosméticos, as vitaminas, os procedimentos invasivos e não
invasivos estão no mercado nos prometendo uma juventude mais prolongada. Todos
esses elementos têm o poder de construir um imaginário, que nos diz o tempo todo
que só está fora do padrão de beleza e fora de forma e vigor físico quem quer (COUTO,
2007, p. 42).

O fascínio, a possibilidade e a realização de modificações do corpo estiveram


sempre na nossa história e em diferentes povos: da tatuagem dos aborígenes, das
ornamentações dos hominídeos (neolíticos), aos cremes rejuvenescedores, à aplicação
de botox de nossos dias, são as intervenções, transformações e mutações que o ser
humano vem realizando, ao longo da história, em seus corpos. Com objetivos variados,
para embelezar, fortalecer, curar, para se sentir pertencente a determinado grupo
social. O corpo se modifica com a história, com as sucessivas descobertas e os avanços
tecnológicos e médicos. O corpo sempre está em constantes modificações. Voltamos à
pergunta inicial: o que pode um corpo?

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Para nos ajudar a pensar nessas ideias, talvez seja relevante pensar o corpo
não como uma unidade sintética, mas em constante transformação, pois não há uma
essência para se pensar essa corporalidade. Poderíamos pensar o corpo como uma
entidade absorvente, que recebe as modificações criadas pelo ser humano como
produtor de si e se transforma em um novo conteúdo. Pode ajudar a pensar nessa
situação o pensador Peter Sloterdijk (2013), ao anunciar um novo conceito para entender
o comportamento humano: a antropotécnica.

O filósofo parte da percepção de que o próprio ser humano é capaz de gerar


sua humanidade: a partir de técnicas, ele se autoproduz. Ele se perpetua pelo que o
pensador entende por “exercícios”. O que é um exercício para Sloterdijk? Trata-se de
qualquer operação que conserva ou melhora a qualificação do agente para que, assim,
possa realizar novamente essa mesma operação quando surgir outra oportunidade
(SLOTERDIJK, 2013).

Para o pensador não importa se ela é declarada ou não, mas que se pratique certo
comportamento. Para entender isso melhor, trata-se de entender que o ser humano
está sempre em possibilidade de decadência. Ele pode sempre desaparecer como ser
humano, mas se ele fizer exercícios visando buscar um ideal e de forma ascética, ele
conseguirá se manter-. Não se trata de ter uma religião, mas uma dedicação ao que se
faz para manter-se humano. A ascese aqui deve ser entendida como um processo de
autossuperação independentemente de crenças extrafísicas.

O filósofo exemplifica exatamente com pessoas com deficiência física que


superam sua situação com um tipo de dedicação que os transforma socialmente. Pense
naqueles que não possuindo os braços aprendem a pintar usando os pés. Se antes a
pessoa era vista como inválida, ela se transforma e se reconfigura como ser humano ao
se dedicar a um uso diferente do habitual de outra parte do corpo. Aquele que era visto
pejorativamente como aleijado, torna-se um excepcional simplesmente por reaprender
a usar a si mesmo. Como ele busca superar sua situação, não importa por que motivo,
ele precisa criar uma disciplina que o torna mais humano.

Dessa forma, podemos perceber que a relação do ser humano com os objetos
também deve ser revisitada. Uma pessoa que usa óculos para enxergar não é inferior
a alguém que tem uma visão perfeita de nascença. Os óculos passam a ser parte da
humanidade da pessoa; ele se torna uma forma de relação em que ele se exercita para
se fazer humano. As ações que o ser humano imagina permitem a sua mutação onde os
limites residem apenas na sua criatividade e dedicação.

Nas artes cênicas, tem-se mutações constantes, pois o ser humano artista
precisa se reconstruir seguidamente. Um dançarino precisa construir novos movimentos
para cada coreografia que apresenta. Um ator de teatro precisa se reconfigurar para
cada personagem que precisa apresentar diante do público. O corpo se torna, hoje,

136
uma entidade animada que tem valor próprio. A criação de cenas implica deixar a
materialidade permeável por meio da ficção. Vive-se, hoje, uma era em que as linhas
divisórias do espaço quase desapareceram e, com isso, conseguiu-se desenvolver uma
liberdade maior.

Coube, portanto, ao século XX a invenção teórica do corpo. Corpo


este que passou a ligar-se ao inconsciente, e foi amarrado ao sujeito
e inserido nas formas sociais da cultura. Esse século conheceu, pela
primeira vez na história, uma superexposição obsessiva do corpo
íntimo e sexuado. Assim, viu-se afrouxar as “coerções e disciplinas
herdadas do passado”, bem como o fortalecimento e a “legitimidade
outorgada ao prazer”, sem que com isso, evidentemente, tenham
desaparecido por completo as tensões “entre desejos do corpo
sexuado e normas de controle social”, especialmente na primeira
metade do século XX (COLLAÇO, 2008).

O teatro passa a ser um meio de experimentação cultural, um espaço para


transformações e mutações. Como não vivemos mais na época que privilegia sentidos
objetivos e referências textuais e com isso alcança um novo território.

O pensador Hans Thies Lehmann denominou esse período de teatro pós-


dramático. Esse termo significa que o drama como elemento organizador perdeu seu
caráter de centralidade. O teatro não é mais capaz de síntese, não há uma narrativa
que o explique e o faça ser compreendido diretamente. As cenas estão mais próximas
de imagens oníricas como queriam os surrealistas, em que cada espectador reage de
forma singular ao que experimenta, pois as cenas são como colagens e montagens
livres e sem nexo necessário.

O texto escrito está em tensão com o texto encenado; o que resulta é o que
Lehmann (2013) chama de texto da performance, em que os signos teatrais são
rearranjados por essa estrutura tensionada. Por fim, é um teatro que não se preocupa
com a comunicação direta, mas com a sinestesia (quando sentidos ficam confusos e
trocados), em que o excesso de elementos confunde a percepção do observador.

A estrutura dramática de ficção e situação cênica passou a ser sobrepujada pelo


acontecimento performático e precisa operar para além do drama. O instituto do drama
ainda existe, mas ele está enfraquecido, falido e até mínimo. O texto como organizador
da ação dos personagens dá lugar à ação sensorial que os artistas cênicos podem
provocar. O espetáculo é visto apenas como uma situação cênica em que os artistas
e o público respiram juntos, o que quer dizer que a ficção dentro da cena não é tão
importante quanto as ações que os artistas realizam.

Arte e vida caminham sem barreiras que as separem. O espaço no teatro prós-
dramático não tem molduras, é completamente livre para a experimentação, não se
preocupa em fazer sentido, mas a ser sentido sensorialmente.

137
O corpo nesse tipo de teatro é perfeito para ser entendido como em processo
de mutação. Ele está mais preocupado em articular uma energia pelo modo como
se movimenta ou se mantém em repouso do que trazer algum significado para ser
entendido narrativamente. Muitas vezes, o corpo se faz estranho a si mesmo, porque os
artistas se colocam em posições inusitadas e até violentas.

Os artistas do diretor Bob Wilson, muitas vezes, faziam movimentos repetitivos e


em câmera lenta; o grupo espanhol La Fura dels Baus já realizou espetáculos em que
seus performers corriam com serras elétricas ligadas; Pina Bausch fazia seus bailarinos
executarem movimentos contorcidos e espasmódicos e constantemente misturava
seus corpos com objetos materiais, como folhas, terra e água. O corpo mutante deve
ser um convite para os processos criativos dos artistas cênicos.

Figura 20 – Bailarina contemporânea

Fonte: Pixabay (2022). Acesso em: 13 out. 2022.

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RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:

• A multiplicidade de corpos e o rompimento de limites e de barreiras impostas pelo


sistema. Como vimos, o peso não pode impedir um corpo de dançar profissionalmente,
que a cadeira de roda pode ser ressignificada na dança e que surdos podem fazer
teatro usando sua própria linguagem. A expressão e a comunicação, além das
transformações sociais, podem ser potencializadas com a arte, independentemente
de corpo, cor e textura do cabelo.

• A olhar as manifestações populares, como etnologia, com base na cultura popular,


pois são cenas carregadas de dramaticidade, dança, música, jogos, brincadeira e
festas. As manifestações carregam a identidade de um povo.

• Os corpos mutantes e como os artefatos, como próteses, têm modificado nossos


corpos, como cirurgias e implantes para ajudar na cura de doenças, para amenizá-las
ou reparar/auxiliar em reparações dos órgãos ou partes do corpo, bem como também
pode ser usada para questão estética.

• As transformações de que o corpo é capaz de fazer em sua expressão, como o termo


do filósofo Peter Sloterdijk (2013) de antropotécnica explicita, a possibilidade de o
humano se autossuperar e se reconceitualizar, além de como os corpos no teatro
pós-dramático são apresentados na sua energia mais básica e sensorialidade de
modo a obter um grau de mutação não visto em outras épocas.

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AUTOATIVIDADE
1 O corpo humano é uma multiplicidade de imagens e de sensações que se renovam
e se sobrepõem a cada instante de vida. O lugar do corpo não é estável, pois está
sempre em transformação. O corpo infantil se desenvolve e dá lugar ao adolescente
na puberdade, passa pela maturidade para encontrar os limites dados pela velhice.
Considerando os aspectos múltiplos do corpo, assinale a alternativa CORRETA.

a) ( ) A verdadeira transformação do corpo só pode ser experimentada pela dança


realizada por profissionais, pois eles treinam para experimentar a si mesmos.
b) ( ) Não existe um padrão único de corpo, sendo que cada um deixa sua marca no
mundo na maneira como o experimenta pelas sensações.
c) ( ) Felizmente, a dança sempre foi um meio para que qualquer corpo pudesse experi-
mentar as sensações do movimento, nunca existindo um tipo ideal de dançarino.
d) ( ) A visão do corpo estava desligada da medicina e, por isso, foi difícil a criação de
um padrão universal.

2 Vive-se uma época em que as artes cênicas não podem mais ficar presas a apenas
uma disciplina de estudo. É comum perceber que muitos conhecimentos, como as
neurociências e a sociologia, têm sido convocados para pensar a expressividade
corporal em toda a sua riqueza. Um conhecimento, no entanto, destaca-se para
pensar o aspecto cultural da cena: a etnologia. Sobre o exposto, analise as sentenças
a seguir.

I- A etnologia apresenta-se como um estudo do Outro. Trata-se de uma ciência que


estuda os fatos levantados pela etnografia, a compilação de dados culturais.
II- A etnologia possibilita uma crítica ao que se chama de etnocentrismo: a ideia de que
uma cultura é central e superior às outras.
III- Ao observar como certas representações são feitas fora do centro hegemônico
cultural das grandes cidades, aprende-se o próprio processo cênico.

Assinale a alternativa CORRETA.


a) ( ) Somente a sentença I está correta.
b) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
c) ( ) Somente a sentença III está correta.
d) ( ) As sentenças I, II e III estão corretas.

140
3 Existem muitas questões do que caracteriza o corpo humano. Por muito tempo,
ele foi visto como uma unidade fechada que poderia ser estudada facilmente. Hoje
em dia, percebe-se como esse corpo é um atravessamento de forças que o torna
cada vez mais maleável e, em certo sentido, mutante. No que se refere à veracidade,
classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas.

( ) Como o envelhecimento é um aspecto natural, ele não se encaixa nesse aspecto


de pensar a mutação do corpo.
( ) Quando se fala em mutação do corpo, só se pode falar de situações genéticas
específicas, como ouvido absoluto ou ultraflexibilidade.
( ) A busca da “boa forma”, independentemente da saúde, mostra uma maneira de
entender as transformações pelas quais o corpo pode passar, dependendo da
vontade do ser humano.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA.


a) ( ) F – F – V.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) V – V – F.
d) ( ) V – V – V.

4 As formas culturais estão ligadas ao comportamento e, portanto, o corpo se torna


uma expressão da cultura. Nesse sentido, vale a pena pensar como certas expressões
se colocam mais dentro da centralidade de uma cultura, enquanto outras acabam
sendo vistas como periféricas, principalmente se são de ordem mais popular em
contraponto a alguma noção de saber erudito. Explique de que maneira o folclore
funciona como expressão do corpo.

5 Cada cultura se expressa cenicamente de algum modo. Alguns grupos não possuem
teatro como se entende no ocidente, com seu processo de representação, o que de
modo algum os coloca em situação inferior. Povos indígenas americanos ou grupos
africanos, apenas para citar dois exemplos entre milhões, possuem os mais diferentes
rituais que engajam seus corpos expressivamente. Explique como a ciência da
etnocenologia ajuda a pensar isso.

141
142
UNIDADE 2 TÓPICO 3 -
O CORPO E AS ARTES

1 INTRODUÇÃO
O corpo humano tem sido um dos temas mais comuns entre os artistas.
Ele aparece representado em pinturas, fotografias e esculturas. Assim, ao longo do
tempo, podemos encontrar vários tipos de representação da figura humana, desde as
esculturas de pedra da Antiguidade até os grafites realizados nos muros das grandes
cidades atuais. As figuras humanas criadas pelos artistas podem ser usadas para ilustrar
sentimentos ou valores abstratos, como a esperança, o amor, a liberdade. E, apesar de
a figura humana ser um tema constante na arte, é sempre um desafio para os artistas
expressar as ideias e as emoções das pessoas por meio de suas obras.

O primeiro subtópico faz uma excursão nas obras de arte da pintura, mostrando
como o corpo é representado e o processo de criação dos artistas visuais. A escultura
e o corpos são os personagens principais do segundo subtópico, analisando as obras
e seus impactos. No terceiro subtópico, passamos para a música, tendo um recorte
bem específico para a educação por meio da musicalização. E por último, e também
de grandiosa importância, temos o encontro do cinema com o corpo e como ele se
transforma, como meio de comunicação, expressão e sensibilidade conforme a arte
cinematográfica evolui, tanto em técnica quanto em estética e em tecnologia.

As artes já foram vistas como meio histórico para compreensão do corpo, mas,
neste momento, será percebido como a corporeidade deve ser sentida como objeto
puramente estético. Aqui, incide a possibilidade de pensar o olhar como mediação por
uma representação física e indireta do corpo, seja ele um mármore, uma tela pintada,
a sonoridade ou a película fílmica. Vamos adentrar, agora, o incrível mundo da arte e
perceber como ele se relaciona com o corpo humano como objeto e produtor.

2 PROCESSO CRIATIVO DO CORPO E A PINTURA


Um simples painel branco pode proporcionar um infinito de imagens, exigindo
apenas algum tipo de material para rabiscar nele. Ao fazer pontos e linhas, criar formas e
texturas, dar volume e colorir, entra-se no universo das artes visuais que se abre para um
pintor. Com sua capacidade de observação e percepção, técnica e muita imaginação, os
pintores fazem nascer algo novo, que convencionamos chamar de obra de arte.

O corpo, desde os primórdios, na arte rupestre é objeto de representação


pictórica. Temos pessoas que conseguem olhar para si mesmas e projetar algo em
uma parede usando pedras lascadas como ferramenta e argilas, carvão, e vegetais

143
como pigmentos. Existe a séria possibilidade que esses desenhos, como forma de
comunicação, foram relevantes para o desenvolvimento da linguagem. Os desenhos
nas cavernas são os primeiros registros do corpo humano, comunicando os afazeres
cotidianos e possíveis interpretações cosmológicas da realidade, mostrando a caça de
animais selvagens, como ursos, mamutes, cabritos montanheses, bisontes, e grandes
felinos. São também locais para o registro dos rituais religiosos, festas, danças, colheita
e pesca. Acredita-se que, no caso da caça, a representação pictórica seria um indício
do domínio espiritual sobre a criatura a ser caçada. Apesar de não haver prova absoluta,
é um palpite bem fundamentado (GOMBRICH, 1995). A arte serve para se comunicar,
para se expressar, para se imaginar. A criação das pinturas servia como uma forma de
preparação para a vida.

Os gregos, como vimos, tinham a busca pelo belo, usando o corpo forte e
atlético para representar tanto o ser humano quanto os deuses. A pintura na Grécia
era realizada em distintos suportes, sendo encontrada, principalmente, em peças de
cerâmica (vasos e potes usados tanto para os cerimoniais quanto para guardar alimentos
e bebidas como água e vinho). Desenhos são encontrados em decoração de estátuas
(esculturas), na arquitetura (paredes e murais) e na cenografia para os teatros. Assim
como na arte da pré-história, os gregos retravam, em suas pinturas, o próprio cotidiano
e os elementos de sua mitologia. Por exemplo, podemos ver esses motivos pintados
em um cálice, mostrando Teseu vencendo o Minotauro e ao lado está a deusa Atena.
Tal obra é atribuída ao pintor Aison. Cabe também comentar sobre Zeuxis, pintor que se
destacava pela qualidade realista de suas imagens, respeitando os volumes dos corpos.

Figura 21 – Fundo de cálice grego do século V a. C.

Fonte: https://bit.ly/3MvIIYg. Acesso 15 set. 2022.

144
Identificamos que mostram equilíbrio tanto na forma quanto nas cores na
exposição dos corpos nus. Os romanos, que sofreram forte influência da cultura grega,
conseguiram fazer representações mais realísticas dos corpos, seguindo a linha grega
de representar os deuses em belas imagens. Suas pinturas também retratavam cenas do
cotidiano, a religião e mitologia. Pela arte, captavam a beleza do mundo que percebiam
e a registravam para a passagem no tempo. A arte romana floresce principalmente na
época do início do império. Dentre os nomes famosos, cabe citar laia de Cízico, pintora
que se destacou pela gravura em marfim, e o pintor Arellius, que usou as mulheres
amadas como modelos para a pintura das deusas.

Figura 22 – Pintor Arellius

Fonte: https://bit.ly/3RYlNGm. Acesso em: 15 set. 2022.

O desenho do corpo, na arte bizantina, era para dar a sensação de poder; por
isso, era, de forma geral, a característica de frontalidade, dando ares de autoridade e
respeito da figura representada. As pinturas eram de santos, para difundir, a partir das
imagens, a doutrina cristã. Os afrescos nas capelas e os mosaicos em murais mostram
os corpos em estado de solenidade religiosa.

Para ilustrar o Renascimento alemão e as representações do corpo, traremos a


obra Jogos Infantis (1560) de Pieter Brugel, O velho (1525 – 1569); pintura que retrata
a cultura popular, os costumes e os festejos da vida camponesa. Ele desenhava em
miniatura, pois ele coloca, nessa obra, cerca de 230 pessoas brincando e jogando,
sendo, praticamente todos, crianças, adolescentes e bebês. Em seu processo de
criação, os rostos e as vestimentas das crianças fazem com que elas se pareçam com
adultas. No Renascimento, o conceito de infância não existia, as crianças eram vistas
como “miniadultos”. Destacamos que, na representação na pintura de corpos infantis,
podem-se encontrar cerca de 83 atividades lúdicas. As dimensões corporais ganhavam
complexidade de movimento, gesto e expressão facial.

145
Figura 23 – Jogos Infantis de Pieter Brugel, o velho

Fonte: https://bit.ly/3EDQ2iI. Acesso em: 15 set. 2022.

Com relação à contemporaneidade, traremos duas obras: a primeira dela é


um ícone para a história, pois retrata a liberdade, na Revolução Francesa, de Eugène
Delacroix, a obra “A Liberdade guiando o povo às barricadas” (1831). Na obra, pode-
se ver uma multidão com os braços erguidos segurando armas, tendo um dinamismo
nas posições dos corpos que dá a sensação de que as pessoas estão em movimento.
A pintura mostra corpos nus e, no chão, os mortos, que tanto lutaram pela revolução.
Ao centro, temos a imagem de uma mulher com um corpo desnudo, carregando uma
bandeira; essa figura feminina materializa a liberdade.

146
Figura 24 – Liberdade Guiando o Povo às Barricadas, de Eugène Delacroix

Fonte: https://bit.ly/2F6xAzN. Acesso em: 15 set. 2022.

Outra obra que trazemos se chama “Segunda Classe” (1933), de Tarsila do


Amaral. Com a ideia de olhar mais para a nossa gente, buscava-se uma originalidade
brasileira, rompendo as referências estrangeiras, principalmente europeia (MOTTA,
1994). Tarsila, em sua pintura, retrata o êxodo rural que estava acontecendo em nosso
país, deixando o campo à procura de emprego nas grandes cidades. A cena se passa
em uma estação de trem, composta com 14 figuras: seis crianças, três homens e cinco
mulheres. Os rostos trazem as marcas de uma grande tristeza, todos eles descalços.
Os artistas brasileiros, da semana da Arte Moderna da década de 1920, traziam para as
obras uma “brasilidade”, desenhando nossa gente, com características negras, indígena
e da vida camponesa, por exemplo, rompendo com os padrões estéticos estrangeiros.

Figura 25 – Segunda Classe, de Tarsila do Amaral

Fonte: https://bit.ly/3rTmi9Y. Acesso em: 15 set. 2022.

147
Até esse momento, mostramos como os corpos eram representados na pintura.
A partir de agora, mostraremos não os corpos como modelo, mas sim como suporte,
ou seja, o corpo sendo “a tela” para a realização da pintura e do desenho. Iniciaremos
com as tatuagens, que são desenhos feitos na pele permanentemente. As tatuagens
fazem parte da identidade dos indivíduos que a possuem e também eram usadas para
mostrar e diferenciar as classes sociais, como aponta Lévi-Strauss (1993): nobreza,
plebeu, escravos e guerreiros. As tatuagens podem ser decorativas, com significados
pessoais, como já faziam a tribo de guerreiros Maori da Nova Zelândia, que, por outro
lado, também usavam a tatuagens ligadas à sua mitologia, com estreita relação com a
natureza e de culto e respeito aos mais velhos.

Figura 26 – Guerreiros Maori

Fonte: https://shutr.bz/3Th9J3V. Acesso em: 13 out. 2022.

Os hindus também fazem uso da pintura corporal, como uma forma de rito de
passagem, para a preparação da noiva para o casamento. Era uma forma de frisar a
passagem de vida de solteira para a de casada. Essas pinturas usavam principalmente as
mãos e pés como área para ser desenhada. Quanto mais detalhes fossem encontrados
na criação dos desenhos no corpo, que eram feitos em henna, maior seria o presságio
de sorte na vida de casado.

A África é um grande continente, tanto em território quanto cultural e de


identidades, com distintas línguas e religiões. Suas identidades podem ser diferenciadas
conforme o dialeto, trajes, pinturas e adornos corporais.

As pinturas fazem parte do cotidiano da África ancestral, sendo que nas


cerimônias as pinturas nas peles eram específicas para aquele momento. As pinturas
também eram uma forma de expressar sentimentos e ritos de passagem (vida adulta,

148
casamento, morte). Cada pintura tinha seu significado particular e modos de criação
(CASTRO, 2000). As pinturas corporais, além de serem elementos estéticos, também
eram funcionais cuja marca servia para marcar ou mostrar algo de alguém ou de
alguma tribo.

Para os povos originários indígenas, a pintura aplicada no corpo também tem


uma função estética, de pertencimento a uma tribo (identidade grupal), religiosa e
ambiental. Lembrando que os povos indígenas não se veem separados da natureza
e do meio ambiente, tudo é um corpo só. Podemos observar que a prática cultural de
pinturas nos corpos ainda faz parte da cultura das comunidades, como nos mostram
Gomes e Paiva (2016, p. 5) ao falar das pinturas corporais indígenas da etnia potiguara:
“[...] esses traços representam proteção espiritual, e uma marca cultural. Essas
pinturas estão presentes não apenas em seus corpos, como também nas casas que
habitam, em escolas, prédios de associações, em organizações, em igrejas católicas,
dentre outros locais”.

Figura 27 – Indígenas Potiguara

Fonte: https://bit.ly/3CpCR2e. Acesso em: 13 out. 2022.

3 PROCESSO CRIATIVO DO CORPO E A ESCULTURA


Esculpir é a arte de tomar uma matéria e exercer ações para transformá-la em
algo diferente. Significa construir uma forma em três dimensões valorizando o volume,
principalmente. Modificar a madeira, a argila, o mármore ou o metal para dar outros
significados, outras visualidades e assim constituir o objeto de uma maneira nova ao
mundo. Os primeiros registros que temos de escultura vêm do Oriente Médio, usando
crânios; portanto, um material que é modelado do próprio corpo, na verdade, de restos
corporais. Essas esculturas eram guardadas em casa, como laço afetivo com a pessoa
falecida (IBÁÑEZI; GONZALEZ; BRAEMER, 2014).
149
Novamente, somos remetidos à pré-história, ao falar de corpo e escultura, pois
temos a escultura de um corpo feminino, a “Vênus de Willendorf”, tendo sido criada
entre 28000 e 25000 anos a.C. A estátua foi descoberta há mais de 110 anos na região
da Áustria, medindo 11 cm de altura, tendo seios, barriga e vulva muito avantajados.
Inicialmente, foi pensada como uma forma esculpida por homens observando uma
mulher que seria o padrão de beleza da época, mas essa posição acabou mostrando-
se chauvinista, pois as relações entre os gêneros poderiam ser mais igualitárias do que
hoje em dia.

Figura 28 – Vênus de Willendorf

Fonte: https://shutr.bz/3eu82RW. Acesso em: 13 out. 2022.

Considera-se, atualmente, a possibilidade de que essa estátua fosse uma forma


de educação do corpo feminino entre as mulheres. Ela também foi constantemente
relacionada à ideia de fertilidade no sentido amplo, e não apenas sexual.

As estatuetas de corpos femininos foram chamadas de Vênus, deusa da


fertilidade e do amor do povo romano, conjugado com o nome do lugar onde foram
encontradas como a Vênus de Monruz; portanto, uma leitura em homenagem ao
classicismo pelos arqueólogos e antropólogos europeus. Acredita-se que ela tenha sido
criada na região hoje pertencente à Itália, mas que o povo de caçadores-coletores a
carregou consigo viajando pela Europa.

As esculturas foram marcantes no Egito Antigo para constituição cultural de


seu povo. Elas eram construídas na tentativa da “preservação do corpo”, guardando-o
para a volta à vida no futuro. Os egípcios antigos acreditavam que, ao voltar para a
vida, retornariam ao mesmo corpo; por isso, a função da escultura seria o de substituir
o corpo carnal. As esculturas eram dos corpos dos faraós, pois eles também tinham
um papel divino. O faraó, além de ser considerado um filho de uma divindade, também

150
seria a representação (encarnação) da própria divindade (MORRIS, 2010). Também eram
feitas as esculturas de escravos e servos dos faraós as quais eram enterradas juntas,
nas tumbas dos faraós, pois acreditavam que, na volta, continuariam a servir mesmo
em outra vida. A mumificação é um dos elementos mais conhecidos dessa cultura. As
criações esculturais egípcias perduram protegidas até hoje, como a máscara fúnebre
de Tutankamón (1336 a 1327 a.C.) e escultura de pedra de Nefertiti (cerca de 1340
a.C.). Essas imagens mostram como o corpo era ligado a um tipo de espiritualidade e
cada parte do corpo era para ser vista por ângulos específicos, o que fazia as imagens
gravadas em paredes parecerem às vezes tão planas.

Figura 29 – Máscara mortuária de Tutankamon

Fonte: https://bit.ly/3g5yDFk. Acesso em: 15 set. 2022.

Os primeiros escultores gregos receberam influências dos egípcios, pois


encontramos muitas semelhanças estéticas e de estrutura nas representações dos
corpos. Na sequência, os gregos, assim como nas demais artes, buscavam a perfeição
física, com corpos em que músculos e contornos apareciam em ação com proporções
ideais e de harmonia em suas esculturas.

Assim como na pintura, deuses e deusas seguiam o mesmo modelo de corpos


perfeitos na escultura, como podemos observar na obra “Laocoonte e seus Filhos”,
produzida em mármore, retratando uma cena de crueldade promovida pelos deuses
contra os mortais. Percebemos a dor pelas expressões da face e tensão muscular para
se livrarem das serpentes que tentam esmagá-los.

151
Figura 30 – Laocoonte

Fonte: https://bit.ly/3SUVWQS. Acesso em: 13 out. 2022.

Os romanos tentavam ser mais realistas nas construções de suas esculturas, não
se interessando pela perfeição e o belo, como os gregos. Os romanos representavam os
verdadeiros traços dos rostos, dando mais detalhes a faces e a suas expressões; por isso,
encontramos, por exemplo, corpos e rostos mais envelhecidos.

Uma obra grandiosa por sua estrutura física, cultural e histórica é a “Coluna de
Trajano”, de 114 D.C., edificada no auge do Império Romano, pelo arquiteto Apolodoro
de Damasco, a pedido do imperador Trajano, sendo, ao mesmo tempo, uma obra de
arquitetura e de escultura.

A coluna de mármore, esculpida em relevo, possui 38 metros de altura, narrando


a história da guerra de Roma versus Dácia, como se fosse um diário contando as
cenas de batalhas e acampamentos militares. A obra tem cerca de 2500 figuras, todas
com detalhes realistas, em 155 cenas. Esse monumento também é um “importante
documento histórico em pedra” (PROENÇA, 2008, p. 43).

152
Figura 31 – Coluna de Trajano

Fonte: https://bit.ly/3Cy78vK. Acesso em: 13 out. 2022.

No período medieval, temos o desmantelamento do conhecimento e das


técnicas de criação, das obras e do estilo greco-romano por causa de dois elementos:
as invasões dos bárbaros e a ascensão do cristianismo. Com ascensão da religião cria-
se uma arte que tem um interesse no estudo da alma. Assim como na pintura, os temas
da escultura estavam a serviço das igrejas e das religiões, tendo como objetivo educar
as pessoas, para que aprendessem e se apropriassem da religiosidade, pois, como a
maioria da população era analfabeta, poderia aprender pelas histórias contadas pelas
esculturas, como relatam Boswell e Stricland (2014, p. 34): “Cenas da ascensão de Cristo
ao trono celestial eram muito populares, assim como dioramas do Juízo Final, em que
demônios agarram almas desesperadas e diabos horríveis estrangulam e cospem nos
corpos nus dos condenados”.

153
Figura 32 – Ascenção de Cristo, quadro medieval de Frei Carlos

Fonte: https://bit.ly/3MwQLV6. Acesso em: 13 out. 2022.

Os corpos voltam à cena porque, no período Renascentista, tem-se o estudo


científico do corpo humano e também do mundo natural cujo propósito é reproduzir,
com realismo, as formas da natureza.

A arte greco-romana é basilar para os processos de criação dos artistas


renascimento, que aprimoraram novas técnicas e expandiram novos conhecimentos.
No período medieval, as esculturas serviam para decorar paredes de igrejas e castelos.

Já no Renascimento, as esculturas passam novamente à tridimensionalidade


e podem ser apreciadas e vistas em todos os seus ângulos. A harmonia, as expressões
do corpo e os traços faciais indicam que o corpo e a figura humana são o centro,
características do Humanismo e Antropocentrismo, mas também continuou com temas
religiosos e com a construção das narrativas alegóricas de histórias bíblicas.

154
Figura 33 – Pietá de Michelangelo

Fonte: https://bit.ly/3rPD75R. Acesso em: 13 out. 2022.

É importante comentar os corpos representados na escultura barroca do século


XVII; período cultural que visava lidar com o tempo e expor as contradições do ser
humano sobre as necessidades do corpo e a espiritualidade cristã. As imagens utilizadas
acabavam mostrando sempre dinamismo, intensidade, dramaticidade com efeitos
extravagantes, como curvas fortes, decoração luxuosa e o seu uso para complementar
a arquitetura de edifícios e igrejas.

Destacou-se, nessa arte, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, aqui no Brasil.


Os corpos de suas esculturas tinham dobras agudas, proporções quadrangulares para
as mãos e os pés posicionados em ângulos retos.

155
Figura 34 – Anjo com o Cálice da Paixão, de Aleijadinho

Fonte: https://bit.ly/3CvAE5l. Acesso em: 13 out. 2022.

Dentro da arte moderna, pode-se falar, ainda, em Auguste Rodin, que nasceu
no século XIX, mas entrou no século XX. Criador de obras imortais como “O Beijo”, “O
Pensador”, “Monumento a Balzac”, “São João Batista” e “A Idade do Bronze”.

Os corpos que representava tinham elementos estilizados dentro de aspectos


realistas, não tinham a qualidade de “acabados”, ou seja, Rodin deixava elementos
não esculpidos para que a imaginação do observador completasse. Suas obras davam
impressões de estar emergindo, como se formassem no momento do encontro com
o olhar.

Outro escultor importante foi o suíço Alberto Giacometti, que se afastava


completamente do realismo com suas esculturas com figuras finas e alongadas trazendo
a impressão de corpos extremamente magros. São reconhecidas as obras: “O Homem
que aponta”, “Mulher-colher”, “Homem que marcha” e “Mulher de Veneza”. A escultura
não representa mais a realidade, mas a sensação de fragilidade da subjetividade.

156
Figura 35 – O Beijo, de Rodin

Fonte: https://bit.ly/3yDAGXO. Acesso em: 13 out. 2022.

4 PROCESSO CRIATIVO DO CORPO E A MÚSICA


O nosso corpo pode ser uma grande fonte de som e é considerado por muitos
como o nosso primeiro e mais fundamental instrumento musical. Ao vibrar, o corpo
produz sons e isso não é estranho no nosso cotidiano. O coração tem os seus ritmos
marcados pelas batidas, a respiração tem seus compassos, o andar e correr também
fazem parte da composição do nosso som corporal. Cabe entender alguns conceitos
primeiro, portanto.

O som em música possui pelo menos quatro características próprias, conjugadas


na sua expressão: altura, duração, intensidade e timbre. A altura é a forma como o
som é recebido em termos de frequência, o número de ciclos que o som faz, o som
grave, que tem uma sensação de peso, faz poucos ciclos enquanto o agudo, que tem
uma sensação de ser fino, tem muitos. A duração diz respeito ao tempo que o som
permanece em nossos ouvidos, sendo curto, extinguindo-se logo, ou longo, com uma
sensação que se estende. A intensidade se refere à força do som em termos de energia,
sendo um som forte aquele que vai para o máximo no volume dos aparelhos e o som
fraco é que vai para o quase imperceptível. Por fim, o timbre se refere à cor do som; é o
que distingue as vozes e os instrumentos entre si, pois cada um tem um timbre.

Pode-se falar ainda do ritmo, da harmonia e da melodia. O primeiro está


ligado ao tempo; logo, à duração. Ele é obtido pela combinação dessas durações em
padrões ou regularidades chamadas pulsações. O modo como se repetem no tempo
criam andamentos, que podem dar a impressão de que a música é mais rápida ou mais

157
lenta. O termo alegro se refere quando a música tem um andamento mais rápido, o
andante pode ser entendido como moderado, enquanto o adágio é visto como mais
lento. A harmonia é a combinação dos sons quando ouvidos simultaneamente. As notas
musicais poderiam ser tocadas individualmente, mas, quando tocadas em conjunto,
criam acordes, que soam explorações mais complexas do som musical.

A melodia é uma sequência de sons em intervalos irregulares. Ela contrasta com


o ritmo, pois normalmente se superpõe a ele, como nas partes solos de uma música,
como a voz do cantor ou algum instrumento que ganha destaque.

A voz humana é uma fonte maravilhosa de musicalidade com timbres, altura e


intensidades distintas, explorando a voz e a escuta. Sentimos a presença do ritmo na
batida de nosso coração, em nossa respiração ou ao caminharmos. As crianças exploram
e brincam com os sons do próprio corpo, fazendo barulho com a boca (vocalizações,
movimentos com a língua e lábios), batendo partes do corpo como mãos e pés (palmas
e sapateados), por exemplo.

Figura 36 – Cantores de ópera – O Barbeiro de Sevilha

Fonte: https://bit.ly/3epxOaf. Acesso em: 13 out. 2022.

Com relação à voz humana, temos inúmeros timbres, intensidades e alturas.


Identificamos, de longe, a voz das pessoas que conhecemos e de cantores de que
gostamos. Reconhecemos a voz de quem fala e as melodias que são construídas na
exploração de nossa voz e na escuta da voz do outro. O corpo é um espaço de inscrição
de cada cultura e época. Gestos e movimentos apreendidos e internalizados pelo corpo
e no corpo sinalizam fragmentos da história do corpo e da sociedade na qual aquele
corpo pertence. O corpo é uma fotografia de uma época que carrega consigo códigos,
regras e costumes de uma época.

158
A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) dá ênfase à exploração do som e dos
materiais sonoros, ao som e às suas relações com o meio e a cultura, à manipulação
de fontes sonoras, à busca da música como expressão e como impressão de uma
determinada cultura. O repertório para a prática e exploração da música pode ser muito
grande na educação. O corpo, por exemplo, pode ser uma fonte rica para que as crianças
pesquisem e produzam sons corporais. Um exemplo prático é a “dança da cadeira”;
atividade lúdica, ou seja, uma brincadeira musical, na qual se trabalham a atenção na
audição, a agilidade corporal e o próprio silêncio (BRASIL, 2017).

A música, no decorrer da história brasileira, por muitas vezes, esteve incluída


ou retirada de nosso currículo escolar. O currículo também é um retrato histórico da sua
época; por isso, vemos que tantos disciplinas e conteúdos somem e reaparecem na grade
curricular. A arte sempre esteve na “corda bamba” no entrar e sair do ensino formal.

Quando falamos em música e em corpo, sem dúvida o mais explorado é a


canto, que é muito diverso no mundo inteiro, trabalhando vários estilos e gostos. Temos,
também, muitas outras possibilidades a serem exploradas, como sapateado, assobios,
estalos de dedos e língua, sons vocais. Deve-se lembrar que a voz não está fora do corpo,
mas é uma emissão vinda do seu centro. É preciso todo o aparelho respiratório para que
o som cantado seja projetado. A voz se torna um componente cênico importante na
maneira como modula os sons das letras e emite notas musicais.

A música faz parte da vida da arte e das manifestações culturais de cada


comunidade ou local. Aqui no Brasil, entre muitas músicas, podemos observar que a dança
do coco tem seu sapateado característico e o ritmo é marcado pelas palmas. O xaxado tem
um sapateado no qual o pé direito cruza o esquerdo num rápido e deslizante sapateado,
que vai construindo o ritmo. No samba de roda e na capoeira, as palmas marcam o ritmo
da música para quem canta ou joga. Pelo mundo, presenciamos o sapateado com o
som que os dançarinos produzem com os sapatos batendo ritmados e coordenados no
chão, fazendo dos pés verdadeiros instrumentos de percussão. O beatbox, que consiste
e usar a própria boca, nariz, lábios e língua para produzir sons e ritmos que podem imitar
instrumentos convencionais (guitarras, baterias e instrumentos de sopro).

Música e processo de criação com o corpo têm como base as contribuições de


Émile-Jacques Dalcroze (1865-1950), educador musical nascido na Suíça, criador da
rítmica, no qual fez toda uma teoria e prática da música ligada à experiência sensorial,
fazendo uma integração entre música, como algo da mente (raciocínio lógico), do afeto
(sensibilidade) e também corporal.

O grupo musical brasileiro Barbatuques é um grupo de música brasileiro que


tem a percussão corporal como sua atuação tanto na pesquisa quanto no trabalho,
fazendo espetáculos. Ele foi criado em 1995, na cidade de São Paulo. O Barbatuques
usa a percussão corporal como o seu trabalho principal, e não como um “instrumento
extra” ou auxiliar; resumindo: o trabalho central é a percussão corporal. O grupo tem

159
trilhas sonoras, espetáculos, CDs, DVDs e cursos. Entre suas produções, destacam-se
a participação do Barbatuques na gravação da trilha do filme de animação infantil Rio
2, de superprodução de Hollywood; da trilha do filme de animação O Menino e o Mundo.
Até os dias de hoje, o grupo apresenta-se em shows, eventos, gravações, produz trilhas
musicais para cinema, TV, teatro, publicidade e, paralelamente, ministra oficinas e
workshops para os mais diversos públicos.

O Barbatuques possui um Núcleo Educacional, que trabalha o lado artístico


e pedagógico, ministrando oficinas e workshops em escolas, formação continuada
de professores e nos mais diversos espaços. O grupo acredita que o fazer artístico e
pedagógico devem sempre caminhar juntos. O fundador do Grupo, Fernando Barba, é
músico de formação, mas sempre diz que o projeto já nasceu muito cedo, já na escola,
pois, no recreio, já se juntava com os colegas para batucar e fazer música de forma
lúdica com os amigos.

Figura 37 – Grupo Barbatuques

Fonte: https://bit.ly/3MvuWFb. Acesso em: 13 out. 2022.

Trabalhar na perspectiva da percussão corporal não é fazer qualquer coisa,


mas sim pensar, pesquisar, analisar e experimentar as possibilidades sonoras do corpo.
Brincar com o corpo como pensadora e, também, base para um fazer musical. O objetivo
está nas descobertas sonoras e musicais que o corpo tem.

As crianças têm muito a expressar: se construirmos um caminho na educação


para isso, elas se expressam pela fala, pelas manifestações corporais, pelo som, assim
expandido suas alternativas, ampliando o repertório do seu fazer artístico e musical e
trazendo perspectivas educacionais artísticas que trabalhem uma educação com arte
e um fazer musical que não limite, mas que amplie o conhecimento da criança consigo,
com o seu corpo e com o mundo.
160
Para a BNCC, as diferentes linguagens artísticas (artes visuais, dança, música,
teatro e suas tecnologias) deverão ser trabalhadas baseadas nas seis dimensões
do conhecimento, a saber: criação (fazer artístico, criar, produzir, construir), crítica
(pesquisar e estudar a obra, saber sua origem histórica, política, social e estética), estesia
(sensibilidade e percepção da obra), expressão (procedimento para a materialização da
obra), fruição (ao prazer ou estranhamento ao ver a obra) e reflexão (analisar, interpretar
as manifestações artísticas e culturais) (BRASIL, 2017).

Partindo dessa estrutura e metodologia do ensino da música, ela pode ampliar e


aprofundar o desenvolvimento motor, linguístico e afetivo dos estudantes, construindo
conhecimento a partir da infância, utilizando a linguagem musical, favorecendo, dessa
forma, o gosto e o aprendizado musicais, a sensibilidade, a imaginação, a concentração
e a consciência corporal e de movimentação, permitindo que a criança conheça melhor
a si mesma, o seu corpo e possibilitando uma ampliação da própria comunicação.

A união entre o ensino da música e os movimentos corporais (dança e teatro)


é de grande importância para a educação da criança como para o espaço escolar. A
formação integral das crianças está cada mais presente, como pode ser observada na
Base Nacional Comum Curricular, que atravessa toda a Educação Básica Brasileira. De
acordo com a BNCC (BRASIL, 2017), as atividades humanas são realizadas nas práticas
sociais e mediadas pelas diferentes linguagens: verbal (oral, visual-motora, como Libras, e
escrita), corporal, visual e sonora (musical) e digital. Os sujeitos sociais são constituídos
nessas práticas e nos processos de interação.

A educação musical segundo a nossa legislação deve estar presente na escola,


em todos os níveis da Educação Básica, com obrigatoriedade na Educação Infantil e no
Ensino Fundamental, sendo facultativa no Ensino Médio. A música, como uma disciplina
escolar, é de fundamental importância para a formação dos estudantes, principalmente
se trabalhada desde a Educação Infantil, mas, para isso, é necessário entender que
necessita de métodos de ensino, formação inicial e continuada de professores.

Para que a prática do ensino da música seja significativa e possa ampliar


a aprendizagem e o desenvolvimento integral na educação, a educação musical
deve ser integradora, e a BNCC sugere que sua prática dentro da escola, nas suas
redes pedagógicas e didática, seja “voltada ao seu acolhimento, reconhecimento e
desenvolvimento pleno, nas suas singularidades e diversidades” (BRASIL, 2017, p. 14).
A música possui muitos cursos universitários ao redor do país, demonstrando sua
validação acadêmica.

161
4.1 O CORPO E A MUSICALIZAÇÃO NA CRIAÇÃO
A linguagem musical envolve diversos aspectos que promovem a ampliação
do repertório artístico dos estudantes, a comunicação e a integração, se trabalhada
no contexto educacional, de forma artística e pedagógica, porque, segundo a BNCC,
o trabalho com música na escola possibilita a “[...] ampliação e a produção dos
conhecimentos musicais passam pela percepção, experimentação, reprodução,
manipulação e criação de materiais sonoros diversos, dos mais próximos aos mais
distantes da cultura musical dos alunos” (BRASIL, 2017, p. 196).

Tendo um olhar especial para a Educação Infantil, vemos que a musicalização


é uma área muito importante para o desenvolvimento integral dos estudantes. A
musicalização na educação é um processo e uma prática para a inserção dos estudantes
dentro do universo cultural da música. A educação musical, assim como as demais
áreas artísticas, não tem como objetivo formar músicos ou artistas, mas trazer a música
para o desenvolvimento integral do estudante, como escreve Valim (2021, p. 28) sobre a
presença da música na educação:

Estando na sala de aula como componente curricular, abrange a


aprendizagem coletiva e desenvolvimento de habilidades musicais
para todos os alunos. Prevê uma familiarização com a linguagem
musical, não um treinamento para a criação de músicos, diferente da
abordagem do ensino de música individualizado, em conservatórios
e aulas de instrumento.

O aprendizado em música, que utiliza o corpo e outros materiais, não extrapola


somente o conhecimento musical; agregam-se ganhos em outras áreas do conhecimento
e do desenvolvimento pelo engajamento corporal. A música, para a Educação Infantil,
no currículo, não aparece isolada nas habilidades, nos Campos de Experiências, mas
sim de maneira integral, como podemos ver no Objetivo de Aprendizagem 1 para os
bebês, do Campo de Experiência Traços, sons, cores e formas, que está assim: “Explorar
sons produzidos com o próprio corpo e com objetos do ambiente” (BRASIL, 2017, p.
48). Assim, na Educação Infantil desenvolvem-se práticas musicais que são atividades
lúdicas e corporais, oferecendo diferentes situações que permitam aos bebês e às
crianças pequenas participarem e iniciarem processos de musicalização brincando com
o próprio corpo, objetos e brinquedos, escutando-os e manipulando-os, pois, desde
mesmo antes do nascimento, a criança está em contato com a música, sons e ritmos.

Os campos de experiências são as áreas nas quais as atividades e as rotinas da


Educação Infantil estão alicerçadas na Base Nacional Comum Curricular. Eles apresentam
o fazer e o agir da criança como motores; esses campos são meios para potencializar
suas experiências e descobertas, com a medição das professoras e do próprio espaço.
A organização curricular está estruturada em cinco campos que abrigam as situações
e as experiências concretas da vida cotidiana das crianças da Educação Infantil. São
eles: 1) o eu, o outro e o nós (interação com os pares e com adultos que as crianças
vão constituindo um modo próprio de agir, sentir e pensar, autoconhecimento; 2) corpo,

162
gestos e movimentos (com o corpo, as crianças desde cedo exploram o mundo, o espaço
e os objetos do seu entorno, estabelecem relações); 3) traços, sons, cores e formas
(conviver com diferentes manifestações artísticas, culturais e científicas possibilita
às crianças, por meio de experiências diversificadas, vivenciar diversas formas de
expressão e linguagens); 4) oralidade e escrita (apropriação da língua oral e, por meio de
falar e ouvir, ampliação dos recursos de expressão, compreensão e de vocabulário); e 5)
espaços, tempos, quantidades, relações e transformações (curiosidade do mundo físico
e se deparam, também, nessas experiências e em muitas outras, com conhecimentos
matemáticos).

São nos descritores, objetivos e conceituação, do Campo de Experiências


traços, sons, cores e formas que a arte e a música, de forma geral, estão mais presentes,
mas a música está inserida nas linguagens artísticas e também aparece em todos os
outros campos de experiências.

Os principais objetivos eram ampliar o repertório musical das crianças e explorar


as partes do corpo com ludicidade por meio de dança e de brincadeiras. Propostas
como essas se aproximam do Campo de Experiências “Corpo, gestos e movimentos”,
que considera importante criar movimentos, gestos, olhares, mímicas e diversas formas
de expressão a partir de jogos e brincadeiras, bem como interagir com colegas e adultos
(BRASIL, 2017). É importante que o professor, ao trabalhar com musicalidade, crie
situações nas quais os corpos, os instrumentos musicais, os objetos e os brinquedos sejam
explorados para que o estudante possa ter o acesso à ampliação do desenvolvimento
gestual, do sonoro, corporal, emocional e cognitivo. Ao pensar em musicalização como
uma prática na educação, ela pode auxiliar na ampliação e na aquisição da linguagem
oral e escrita, na capacidade da escuta. Além disso, desenvolver e estimular as mais
variadas expressões, como a corporal, pois a música está diretamente ligada ao corpo,
ela passa pelo corpo. A música, como arte e linguagem, tem suas especificidades e
conhecimento, mas na educação, ela não se fecha em si mesma, não caminha “isolada”,
sempre está aberta para potencializar o desenvolvimento amplo e integral do estudante.

A música permite ao sujeito expressar seus sentimentos por meio do seu canto,
da letra, dos movimentos (dança) provocados pelos mais variados e tipos de sons. A
música, como linguagem artística, propicia aos sujeitos desvendar seus mundos e
entender o nosso mundo, ou seja, a música com a corporeidade, oportuniza modos de
como enxergamos o mundo e formas de estar na realidade que estamos inseridos.

5 PROCESSO CRIATIVO DO CORPO E O CINEMA


Após todas essas exposições, resta pensar como o corpo aparece e é retratado
pela sétima arte: o cinema. A arte cinematográfica é herdeira de todas as formas de
projeção experimentadas na história, como o teatro de sombras e os brinquedos
ópticos, até chegar às invenções tecnológicas do final do século XIX, enquanto Thomas
Edison desenvolvia seu quinetoscópio nos Estados Unidos, os irmãos Louis e Auguste
163
Lumière realizavam, em Paris, uma exibição pública do cinematógrafo em 1895. Ambos
acreditavam que estavam criando um equipamento técnico que serviria para ajudar na
gravação de trabalhos, não imaginando que estavam abrindo um novo campo artístico.
Para eles, a representação do corpo pelo cinema seria algo transparente, realista e
direto pela câmera.

Na França, foi Georges Méliès que fez um uso criativo com efeitos de cena
com elementos teatrais e acrobáticos. Ele apresentava corpos fantásticos que se
transformam rapidamente nas telas, em narrativas de ficção científica e sobrenaturais.

O cinema se construía como uma arte que gravava a realidade em uma película,
na sucessão de vinte e quatro quadros por segundo.

Desde que o cinema apareceu, ele foi usado para captar a expressão corporal
de atores que se apresentavam diante das câmeras. O modo como esses corpos foram
captados mostra como cada época e lugar compreendeu a imagem dos corpos, pois
eles acabavam servindo como maneiras que seriam idealizadas e admiradas pelos
espectadores e se tornariam parte do costume e do imaginário social.

Enquanto procura definir uma “apresentação” própria da sétima arte,


Éric Rohmer, redator-chefe do Cahiers do Cinéma, fala sobre “aquilo
que restará do cinema” e lança a seguinte hipótese: “A própria matéria
do filme é o registro de uma construção espacial e de expressões
corporais”. Registrar, com o auxílio de uma câmera, corpos que
relacionam em um espaço, eis a definição dessa organização formal
chamada cinema. Eis aí uma pista para uma história do corpo tal
como é ajeitado para aparecer na tela: seguir as principais evoluções
do corpo posto em cena no século XX, esta trama tecida graças aos
cruzamentos contínuos dos diferentes corpos de cinema (CORBIN et
al., 2012, p. 481).

O cinema mudo, por exemplo, exigia uma quantidade muito grande de


expressividade física. Como não havia o som, os diálogos e as descrições deveriam
ser reduzidos ao mínimo para serem expostos em letreiros escritos na tela. A maior
parte da trama deveria ser resolvida pelas ações, gestos, movimentos e expressões
faciais dos artistas.

Um exemplo interessante surgiu na Alemanha, no que foi o movimento estético


de vanguarda chamado Expressionismo. Esse movimento artístico da década de 1920
buscava desvelar os elementos obscuros da mente, pela expressão das emoções mais
recônditas na arte. O resultado é que as imagens que se formavam acabavam sendo
distorcidas e bizarras, e todos os elementos seriam formas da subjetividade.

No cinema, isso aparece claramente em filmes como O Cabinete do Dr. Caligari,


dirigido por Robert Wiene, Nosferatu, dirigido por F. W. Murnau, e a Morte cansada,
dirigido por Fritz Lang (MASCARELLO, 2006, p. 65-69).

164
Os artistas usam movimentos estilizados que os colocam em posições
estranhas, às vezes parecendo máquinas se mexendo, gestos minimalistas e espasmos
desordenados. O corpo se manifesta de uma maneira puramente estética.

Figura 38 – Cabinete do Dr. Caligari

Fonte: https://bit.ly/3CVZxZe. Acesso em: 13 out. 2022.

Hollywood se torna a grande produtora de filmes com uma multiplicidade de


estilos. Filmes dramáticos, comédias pastelão e épicos são feitos em grandes produções.
Para cada tipo de filme, um corpo aparece como o mais apropriado para contar a estória.
E, com isso, imagens se formam designando os valores que envolvem esses corpos.

É importante destacar como as artes cênicas acabam influenciando a própria


arte cinematográfica, principalmente pelo corpo. Vários tipos de comédia serão
experimentados, mas um dos mais notáveis no início era a comédia pastelão, do inglês
Slapstick. Essa palavra veio diretamente do circo e se referia a chapas de madeira
que os palhaços usavam para pedir aplausos. Dentro desse gênero, teremos muitos
tipos de corpos diferentes: desde o corpo singelo de Charles Chaplin, em sua roupa de
vagabundo, fazendo cenas ligeiras e inteligentes, ao humor mais físico e burlesco nas
cenas de O Gordo e o Magro. Não se pode deixar de mencionar o humor visual de Buster
Keaton, que usava suas gags em combinação com os efeitos cinemáticos de cortes e
tomadas de câmera.

165
Figura 39 – Charles Chaplin em Tempos Modernos

Fonte: https://bit.ly/3Tg5jKK. Acesso em: 13 out. 2022.

Os filmes do cinema também foram influenciados pela arte teatral. A beleza de


Greta Garbo era recheada por uma narrativa melodramática, apoiada no uso da música
com gestos acima do cotidiano para que a emoção da personagem sempre ficasse
clara ao espectador. Cabe mencionar, também, o aspecto acrobático e circense de
certos filmes de aventura que criavam cenas de ação impressionantes, como os casos
em que o ator Douglas Fairbanks fazia uso de atletismo único em filmes de capa e
espada, saltando de mastros de navio e se pendurando em cordas sem o uso de dublê.
Os corpos cinemáticos, influenciados pelas artes cênicas eram expostos das mais
diferentes maneiras e tomando posições únicas, o que se tornou ainda mais complexo
com o uso da voz falada.

O cinema falado surge em 1927 com o filme americano O Cantor de Jazz. O


cinema passa a usar o som acoplado à imagem e, aos poucos, o realismo passa a ser
uma das características gerais do cinema. Artistas acostumados com o modo de fazer
do cinema mudo acabaram sendo colocados de lado, pois era preciso um novo modo de
atuar para a câmera que captava o corpo em sua vocalidade agora. No princípio, os atores
precisavam falar alto para serem escutados e gravados pelo equipamento, o que trazia
uma repercussão no corpo que se adaptava à tecnologia nova.

166
Figura 40 – Al Jonson usando blackface no Cantor de Jazz (atores brancos se pintavam para
parecer negros. uma prática justificadamente repudiada nos dias de hoje)

Fonte: https://bit.ly/3TeV2z3. Acesso em: 13 out. 2022.

O cinema é uma arte bastante recente, mas que já carrega em si a semente


da multiplicidade. O corpo foi apresentado diferentemente em várias épocas e lugares.
No entanto, Hollywood permaneceu por muito tempo como um paradigma por ser
uma indústria altamente lucrativa, movimentando tanto dinheiro que conseguiu ser
distribuída em vários locais do planeta. O seu Star system (Sistema de estrelas), herdeiro
do teatro de vaudeville americano, apostava em artistas como modelos que atraíam o
público. Seus corpos, nutridos pelos artifícios dos movimentos de câmera e maquiagem,
tornam-se os exemplos de beleza e admiração em todo o planeta.

Figura 41 – A estrela de Hollywood Rita Hayworth

Fonte: https://bit.ly/3EMum3U. Acesso em: 13 out. 2022.

167
Também são reconhecidos pela monstruosidade que podem produzir nas
telas. Corpos doentes e estranhos também convocam os olhares, pois existe um prazer
secreto em sentir repulsa. Filmes de Terror trazem a experiência do magnífico em
conexão com o assustador. O visivelmente deformado de criaturas como Frankenstein,
Drácula e Lobisomem mexem com as sensações dos espectadores. Até hoje, o terror
tem sua fascinação, seja por apresentar mortos-vivos em cenas repugnantes, seja pelo
suspense psicológico de expor corpos em situação de estresse e de espera.

Poderíamos citar, ainda, outros gêneros que acabam tendo repercussões


estéticas na representação corporal como o western, o filme noir e o musical. No primeiro
caso, o faroeste apresenta um ideal de virilidade e agressividade no corpo masculino
que desbrava o oeste estadunidense, tendo o ator John Wayne com um corpo rígido de
movimentos lentos e duros, veloz apenas na reação do uso das armas.

Figura 42 – Jonh Wayne no filme Comancheros

Fonte: https://bit.ly/3g2d0G4. Acesso em: 13 out. 2022.

O cinema noir explorava a decadência moral dos corpos com a mulher sedutora
e o sujeito iludido em uma cidade corrupta, em clima de mistério. Filmes como Os
Assassinos e Pacto de Sangue são representativos desse gênero criado nos Estado
Unidos e nomeados na França. O musical foi a grande representação do corpo em dança
em que os saltos, o sapateado e todos os movimentos corporais desafiam a captação
da imagem com movimentos rápidos e vigorosos. Nesse último gênero, há nomes como
Fred Astaire, Ginger Rogers e Gene Kelly.

168
DICA
Assista ao filme Cantando na Chuva (1952), de Stanley Donen. Don Lockwood e
Lina Lamont são dois dos astros mais famosos da época do cinema mudo em
Hollywood. Seus filmes são um verdadeiro sucesso e as revistas apostam num
relacionamento mais íntimo entre os dois, o que não existe. Porém o cinema
falado chega para mudar totalmente a situação de ambos no mundo da fama.
Decidido a produzir um filme falado com o casal mais famoso do momento, Don e
Lina precisam, entretanto, superar as dificuldades do novo método para conseguir
manter a fama conquistada.

A projeção em uma tela grande em que a ação é construída por uma montagem
que leva a narrativa em uma linha direta de um problema ao seu clímax e posterior
resolução proporciona às pessoas se sentirem imersas no acontecimento do filme. Todo
espectador de cinema tem a tendência a acreditar no que acontece na tela como se isso
fosse uma estória contada apenas para si mesmo. E, apesar de esse tipo de arte não
possuir a cinestesia que o teatro oferece, o corpo ainda se torna um elemento-chave
para a recepção da arte. Isso significa que os filmes podem não ser realistas, mas a sua
ilusão cria no espectador um efeito de realismo. As deformações do cinema se tornam
ideais para os espectadores, incluindo a representação dos corpos.

Uma resposta a isso veio de vários movimentos ao redor do mundo que visavam
repensar o modo como o ser humano era representado na tela. O cinema usa a câmera
como mecanismo para explorar e captar o movimento. O registro imagético do corpo
atribui um novo sentido em que a expressividade corporal se soma a uma moldura
construída artificialmente. Na França da década de 1960, surge um movimento que
tenta repensar o cinema e, portanto, o uso estético dos corpos nele: a Nouvelle Vague
(Nova Onda). Jovens críticos de cinema começaram a pensar a cinemateca como um
local de criatividade e experimentaram novas percepções artísticas. Entre eles, podem-
se citar os cineastas Jean-Luc Godard e François Truffault.

DICA
Assista ao filme Jules e Jim – uma mulher para dois (1952), de François Truffault. Dois
artistas, um austríaco e um francês, se apaixonam pela mesma mulher. Esse amor
se estende no tempo por mais de 20 anos, mas, quando a Primeira Guerra Mundial
acontece, o triângulo se desfaz.

O corpo se transforma em parte de um fluxo em que não importa o


enquadramento fechado e realista, mas as impressões que podem ser suscitadas por
movimentos improvisados, ângulos oblíquos que deixam partes não visíveis, o uso do
próprio espaço superando a necessidade de diálogos para localizar a ação. O cinema vai

169
se tornando mais um meio para a exposição de sensações do que simplesmente contar
uma estória. As cenas de rua seguiam os corpos dos atores e tinham continuidade em
espaços fechados, suas vozes se interpelavam criando mais uma atmosfera do que um
significado reconhecível. Esse movimento alterou as ideias do que se pensava sobre
cinema e trouxe consequências para o resto das produções no mundo.

No Japão, essa nova onda apresenta corpos em estado latente com as obras de
Nagisa Oshima, com Juventude Nua, e Shohei Imamura, com a Balada de Narayama, em
que a sexualidade é mostrada de forma não idealizada, às vezes beirando o escatológico.
O cinema alemão de Werner Herzog mostra corpos em estados diferentes dos usuais
com O coração de cristal, em que deixava seus atores em situação hipnótica, ou Os
Anões Também Começaram Pequenos, em que mostra um mundo pós-guerra povoado
de corpos com nanismo. O cinema brasileiro também trouxe essa criatividade corporal
nos filmes de Glauber Rocha, nos quais os atores se manifestam de forma alegórica para
demonstrar as contradições políticas.

Figura 43 – Glauber Rocha

Fonte: https://bit.ly/3S0v2pk. Acesso em: 13 out. 2022.

Hollywood também foi renovada, principalmente na década de 1970, quando


jovens cineastas trazem novidades na forma de expor os corpos com crueza e violência
gráfica. Martin Scorsese mostra uma sociedade paranoica e moralista por meio do coro
de Robert de Niro em Taxi Driver. Francis Ford Copolla mostra os corpos divididos em
sombras e luz em seu O Poderoso Chefão. Mesmo o terror é revisitado com Carrie, a
Estranha, de Brian de Palma, em que as emoções são expressas nos excessos do corpo
humilhado de Sissi Spacek coberto de tinta.

170
Importante ressaltar ainda que o cinema como forma de captação e de projeção
também adentrou as artes cênicas. Não são poucos os espetáculos que usam o recurso
cinemático para criar tensões entre o corpo presencial e o corpo representado em tela. O
diretor de teatro contemporâneo John Jesurun explora essas tensões ao colocar atores
que, em cena, no palco, agem de modo robótico e artificial, enquanto esses atores em
projeção fazem ações naturais e realistas quando falam (LEHMANN, 2013). O artista
está dialogando com a ideia do filósofo Giles Deleuze de que seria possível apagar a
falsa distinção entre imagem como realidade psicológica e movimento físico. Assim,
o elemento do cinema seria construído por “imagens-movimento”, corpos móveis, em
eternas mediações, pois nunca seria uma questão de pose estática, mas de gesto
sempre em transformação. O cinema cria espaços táteis, possibilidades de afeto que
lhe são próprias (DELEUZE, 1985).

Essa exposição demonstra a diversidade que o cinema pode conseguir quando


visto por meio do corpo não apenas como objeto real, mas também como signo. O
corpo se torna elemento primordial para pensar a sensação, não importa a mídia em
que seja retratado.

171
LEITURA
COMPLEMENTAR
CORPO NA ARTE, BODY ART, BODY MODIFICATION: FRONTEIRAS

Priscilla Ramos da Silva

Tão frequentemente associado à produção artística atual, o termo corpo na


arte é, para muitos, uma incógnita. Afinal, do que se trata falar, simultaneamente em
arte e corpo? A junção das duas palavras parece, à primeira vista, mais confundir do
que esclarecer. Com frequência, a arte do corpo dos anos 1990/2000 é confundida
duas outras manifestações em que o corpo é o suporte da criação: a body art dos anos
1960/70 e o a body modification, fenômeno que compreende a realização de piercings,
tatuagens, escarificações e outras intervenções corporais. No que se refere à arte
contemporânea, um estudo aprofundado da questão do corpo deve se deter em duas
questões metodológicas fundamentais: a primeira é a definição o do próprio termo corpo
na arte. A segunda, a delimitação das fronteiras entre os três campos de ação distintos:
a arte do corpo atual, body art e a body modification.

Body art

No final da década de 1950, a arte permite o surgimento de uma relação


totalmente nova com o corpo. Para além de pintado ou desenhado, o corpo passa a ser
apresentado. Surge a body art, decretando o corpo o suporte da obra da arte.

É justamente aqui que nosso percurso tem início. Não é possível compreender o
que atualmente chamamos de arte do corpo (ou corpo na arte) sem nos reportarmos ao
rótulo cunhado nos anos 60. A body art põe o corpo em tão em evidência, e o submete
a experimentações tão variadas, que sua influência estende-se aos dias de hoje.

Se na arte atual as possibilidades de investigação do corpo parecem ilimitadas


– pode-se escolher entre representar, apresentar, ou ainda apenas evocar o corpo – isto
ocorre graças ao legado dos artistas pioneiros que, há décadas, fizeram de seus corpos
meios privilegiados de expressão.

Compreendendo uma variada gama de procedimentos, a body art é um conceito


amplo. Nos anos 1970 e 1960, práticas corporais as mais diversas foram apresentadas
como arte: há quem tenha se despido, se lambuzado de tinta e se deixado manipular
de maneira irrestrita pelo público. Há quem tenha comido vidro, bebido sangue, levado
tiros e até se masturbado no museu. Correm lendas (e elas são apenas lendas) de quem
tenha se castrado ou mesmo se suicidado em nome da arte.

172
Certamente, proposições radicais como estas não foram recebidas com
indiferença na época em que foram realizadas. Ainda hoje, a body art impressiona
pela intensidade de suas experiências, e a audácia - ou a loucura - de seus artistas.
Suscitando um misto de atração e repulsa, e operando na contramão do ideal clássico
de arte, a body art convida à reflexão.

Dentre todas as experimentações às quais o corpo foi submetido, as mais


polêmicas foram, sem dúvida, aquelas em que a violência ou a automutilação foram
empregadas. Citemos, como exemplos, as performances da artista Gina Pane. No início
dos anos 1970, Pane havia engolido carne moída estragada, se cortado com lâminas,
mastigado vidro, subido uma escada cravejada de pontas cortantes e realizado uma
série de outras ações semelhantes.

Há que se perguntar, naturalmente, a que poderíamos creditar tamanha


hostilidade ao corpo na body art. Ferir para libertar – eis um dos principais intuitos do
ataque à pele e à carne na arte do período.

Crescia, frente a um ambiente repressivo, a ânsia pela construção de um novo


homem e uma nova sociedade; uma sociedade, segundo o crítico François Pluchart, “enfim
livre e harmoniosa, livre de falsa ética, ditadores de qualquer tipo, ideologias repressivas e
censores”. Neste contexto, o corpo se apresentava como um instrumento de ação social
e uma poderosa arma, por meio da qual era possível, ainda nas palavras de Pluchart,
“denunciar determinismos, tabus, obstáculos à liberdade e à expressão do indivíduo”.

Na body art, a investida violenta contra o corpo visava chocar o espectador,


retirando-o de um estado de indiferença e passividade. A questão era despertar a consciência
do indivíduo, tanto frente à arte, quanto à vida. Neste processo, o artista se posicionava
muitas vezes como um guia ou messias, cuja atuação traria a salvação do homem.

Devemos assinalar, naturalmente, que nem todos os artistas da body art se


alinharam a este ideal libertário. Vale mencionar aqui o performer australiano Stelarc
que, desde os anos 1970, procura ampliar o corpo por meio de próteses e extensões dos
mais variados tipos.

Os trabalhos mais conhecidos de Stelarc são as suspensões – performances


em que o artista é pendurado por meio de ganchos que perfuram sua pele. Quando
falamos em suspensões, devemos lembrar que esta prática foi tanto explorada por
artistas integrados ao sistema “formal” da arte quanto por adeptos da body modification
– indivíduos que realizam intervenções em seus corpos.

173
Body modification

Segundo Beatriz Pires, autora do livro O corpo como suporte da arte, o conceito
body modification designa as modificações corporais executadas das mais diversas
formas. Entre seus procedimentos estão “a mudança das cores da epiderme e a feitura
de incisões, queimaduras, perfurações, mutilações e implantes de diferentes tipos, com
a finalidade de modificar os contornos e acrescentar elementos à silhueta [...]”3. Em seu
estudo, a autora trata não daqueles que modificam seus corpos em função da moda,
mas de indivíduos para a quais a body modification possui outros significados – sejam
eles psicológicos, filosóficos ou mesmo religiosos. Entre estas pessoas, estão os modern
primitives – grupo de adeptos de modificações corporais para os quais a manipulação
do corpo possui um caráter místico e transcendental. Fakir Musafar, criador do termo
modern primitives, lista algumas das práticas da body modification, às quais ele chama
de “jogos” (cito aqui três dos sete itens mencionados por Fakir):

5) Jogos com fogo: queimar. Utilizam bronzeamento exagerado,


corrente elétrica aplicada de forma contínua ou através de choques,
vapor e calor, marcas feitas a ferro ou por queimaduras etc. 6) Jogos
de penetrações: invadir. Compreendem flagelações, perfurações,
tatuagens, o ato de picar-se, espetar-se, deitar sobre cama de pregos
ou espadas, injetar-se agentes químicos etc. 7) Jogos de suspensão:
pendurar. A suspensão, por meio de ganchos de açougueiro, pode
ser feita em cruz, pelos pulsos, coxas, peito, tornozelos, associada a
constrições ou a múltiplos furos pelo corpo etc.

Nota-se como muitos dos jogos mencionados por Musafar já foram explorados
por artistas da body art; entretanto, cabe estabelecer as semelhanças e diferenças
entre as modificações corporais e a arte do corpo. Até que ponto a body modification
pode ser entendida como arte? Ainda que em geral se defina tanto a body art quanto a
body modification enquanto práticas nas quais o corpo é o suporte da arte, há que se
esclarecer o que se entende, em cada um dos casos, pela palavra “arte”. Quando se fala
em body modification, o termo arte não se refere, necessariamente, à arte dos museus
e galerias. A intervenção no corpo é chamada de “arte” não porque quem a realiza é um
artista plástico, mas porque se considera que, ao alterar seu o corpo, o indivíduo o faz
de maneira criativa, de modo a obter determinados resultados estéticos.

Já quando nos referimos à body art (anos 1960 e 1970) ou ao corpo na arte
(anos 1990 e 2000) tratamos justamente de uma arte inserida em determinado sistema
- isto é, arte feita por indivíduos que se declaram artistas, cuja produção é exibida em
museus e/ou galerias. Embora a body modification não se insira, na maioria das vezes,
no espaço institucionalizado da arte, ela se aproxima em muitos aspectos da body art.
Basicamente, a body modification e a body art possuem as seguintes características
em comum: as intervenções no corpo; o caráter positivo atribuído à agressão corporal;
a presença do ritual; e a identificação do artista/indivíduo com o xamã ou o mártir.

174
O que mais une as duas práticas que viemos discutindo é, certamente, a
intervenção no corpo. Em linhas gerais, podemos dividir as intervenções corporais
em basicamente três níveis. A maneira mais direta ou radical pela qual o corpo pode
ser trabalhado é, a meu ver, aquela em que há ruptura ou alteração da estrutura da
pele. Aqui se encaixam a maioria dos procedimentos da body modification, e alguns
dos procedimentos da body art. A pele é perfurada, costurada, submetida a implantes,
tatuagens e queimaduras. Busca-se macular a pele (perfurações, costuras, suspensões),
ou marcá-la e alterá-la definitivamente (tatuagens, escarificações, cirurgias plásticas,
implantes). Os adeptos da body modification parecem buscar alterações definitivas mais
frequentemente do que os artistas da body art. Como observa Beatriz Pires:

a body modification cria uma relação do artista com o corpo


totalmente diferente das estabelecidas pela body art e pela
performance. Nela, a relação corpo-objeto é independente da relação
tempo-espaço (...). Não há distinção entre o artista e a obra, entre o
sujeito criador e o objeto criado. O sujeito é o objeto e não deixará de
ser, independentemente do tempo e do espaço em que se encontre.
O evento artístico não se reduz ao tempo da exposição ou da
apresentação. O tempo de exposição é o tempo de vida do indivíduo,
e o espaço destinado a ela é composto por todos os ambientes por
onde ele circula. Não vigora aqui a premissa do pensamento racional,
de discurso conceitual. A obra é determinada pelo inconsciente,
pelo afeto; é designada como algo fundamental para a formação da
identidade do sujeito.

Um outro nível segundo o qual o corpo pode ser trabalhado é aquele em que
ele se transforma em tela ou pincel. Aqui, a pele não é desafiada ou alterada de modo
permanente; não há cortes nem danos ao tecido. A pele apenas muda temporariamente
impregnando-se dos mais diversos materiais (tinta, cosméticos, barro, lama, sangue
animal e outros). O corpo como ferramenta ou suporte da pintura foi explorado em
diversas ocasiões pelos artistas da body art, especialmente em performances. Já a body
modification não parece se identificar com esta relação efêmera entre corpo e pintura.

Muito menos a body modification se aproxima da arte em que o corpo é


substituído por algo que remeta a ele – e é aqui que devemos introduzir a discussão
sobre corpo na arte dos anos 90/2000. Como vimos, os adeptos das modificações
corporais não desejam trabalhar em quaisquer outros suportes que não seus próprios
corpos. Já grande parte dos artistas trabalhando o corpo na arte atualmente prefere
referir-se ao corpo a atuar diretamente sobre ele.

O corpo na arte dos anos 1990 e 2000

Reina, atualmente, um conceito amplo do corpo na arte – tão amplo que sua
própria validade tem sido questionada. Num artigo sobre a exposição “O corpo na arte
contemporânea brasileira”, realizada em 2005 no Instituto Itaú Cultural, em São Paulo, o
crítico Teixeira Coelho comentava:

175
A questão mais específica a esta mostra desdobra-se em duas: 1) O
que é corpo, afinal? A maleta 007 com pregos no interior; um vestido;
arte do corpo, arte com o corpo? Se forem, tudo é corpo, então nada
é; 2) O que é arte para esta exposição?, pergunta motivada pelo vídeo
com Lygia Clark e os gadgets sensoriais para passar no corpo de
seus pacientes e com isso “tratá-los”: arte é terapia, aqueles gadgets
são arte? Se sim, a psicanálise e o rolinho japonês que passo no pé
também. Uma exposição que faz pensar...

Uma maleta, um vestido, uma coleção de objetos terapêuticos – como relacionar


tais objetos à arte e ao corpo? Eis a pergunta do crítico frente às obras de Carlos Zilio,
Nazareth Pacheco e Lygia Clark. Há que se admitir o exagero de Teixeira Coelho ao
criticar a presença da “terapia” de Lygia Clark na galeria: o fato de a artista ter se tornado
terapeuta não a torna irrelevante para a “arte do museu”, nem esgota o interesse em
suas investigações sobre o corpo. Já no que se refere à maleta de Carlos Zilio, o crítico
coloca uma questão pertinente: onde, exatamente, está o corpo nesta obra?

O desconcerto do crítico frente à total ausência do corpo justifica-se, em


parte, pelo fato de muitas das “obras sobre o corpo” atuais não mais representarem o
corpo. De fato, o corpo representado (em desenho, pintura ou escultura) permanece
na arte, ao lado do corpo apresentado (como na performance) ou do corpo evocado
(por meio de fotografias, vídeos, moldes, traços, vestígios, objetos etc.). A vertente da
arte contemporânea que se ocupa do corpo evocado é, sem dúvida, a mais intrigante.
Na referida obra de Nazareth Pacheco, um corpo aparentemente ausente toma forma
dentro de um vestido feito de miçangas e lâminas de barbear: como, diante de um
objeto tão sedutor e ameaçador, feito para vestir, não se imaginar o (próprio) corpo? Já
na maleta de Calos Zilio, o enigma permanece: nem mesmo um corpo fantasma parece
vir à tona quando do encontro com o objeto.

Quando falamos do corpo evocado, estamos estabelecendo uma diferença


entre a body art e o corpo na arte atual. Se antes havia uma intensa desmaterialização
da obra de arte, hoje o corpo aparece predominantemente em objetos. Porém, acima
disto, o que caracteriza o que chamamos de corpo na arte contemporânea é um novo
modelo de corporeidade, muito bem definido por Stella Senra:

[...] o corpo que se oferece ao discurso cultural e à experimentação


artística [...] não é o mesmo que sediou as liberdades nos anos 60-
70 – o corpo que foi, ao mesmo tempo, lugar da identidade e de seu
questionamento, meio de expressão e inscrição no espaço tempo.
Com o recente desenvolvimento da genética e da informática,
os anos 80-90 assistem a um deslocamento do modelo de
corporeidade: a engenharia genética, a clonagem, a robótica, as
próteses, a descoberta do vírus da AIDS, mas também a reprodução
assistida e a reprodução sem sexo passam a colocar em questão a
integridade corporal, a embaralhar os limites biológicos e a distinção
entre as espécies, entre o humano e as máquinas [...] também no
plano social o corpo passa a ser visto sob uma nova perspectiva:
novos comportamentos valorizam o “desempenho” físico, fazendo do
corpo algo a ser “construído” por meio de técnicas de modelagem.

176
Outro fator importante no que se refere à arte do corpo atual é o esvaziamento
da questão política que caracterizara a body art. Ao longo do tempo, os aspectos outrora
dramáticos da liberação do corpo foram se transformando. Pode-se afirmar que a arte
do corpo, atualmente, ocupa-se mais do indivíduo que da coletividade. Reina uma arte
introspectiva com as características de um diário: intimista, confessional, particular. No
discurso sobre o corpo, há um deslocamento do social ao privado, ou da política rumo
à psicologia (como quer o crítico Hal Foster). O que um dia foi celebração comunitária
converte-se em certa solidão, e, findas as utopias, a arte passa a incorporar em seu
vocabulário algo da frieza e da incomunicabilidade contemporâneas.

Procuramos, nesta comunicação, caracterizar a body art, a body modification


e a arte do corpo. Conclui-se, pelo texto incompleto aqui apresentado, que a questão
é ampla demais para ser resolvida em um espaço limitado. Buscamos, com esta
reflexão, apenas lançar ao debate algumas das questões envolvendo o corpo e a arte
na contemporaneidade. Estabelecer os limites entre as os três campos de ação aqui
mencionados não é uma tarefa simples. Qual seria a essência de cada uma dessas
práticas? É difícil dizer – ainda mais quando se tem em conta o quanto a body art, a
body modification e a arte do corpo podem, ocasionalmente, se interrelacionar.

Fonte: SILVA, P. R. da. Corpo na arte, body art, body modification: fronteiras. In: ENCONTRO DE
HISTÓRIA DA ARTE, 2., 2006, Campinas. Anais [...]. Campinas: Unicamp, 2006. Disponível em:
https://bit.ly/3EAOFS5. Acesso em: 24 ago. 2022.

177
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:

• A relação das artes visuais com especificidade da pintura em representar o corpo.


Desde a era Paleolítica, o ser humano usou a pintura como um processo de
conhecimento e de preparação para a vida, isto é, a história da pintura e sua relação
com as formas de representação imagética.

• A relação das artes plásticas na representação do corpo pela escultura. O corpo ganha
três dimensões em várias imagens durante a história, passando por um recorte que
toma exemplos da pré-história até a Idade Moderna.

• A representação do corpo em sua relação com a música. O corpo se apresenta como


um produtor sonoro, seja ele ritmo que constrói com sua percussão corporal, seja
pelo uso da melodia da voz, pois esta também faz parte de sua estrutura física. A
música tem uma função pedagógica que pode ser estimulada pelo jogo cênico, como
fica claro na observação do BNCC.

• O uso que o cinema, como sétima arte, faz dos corpos para representar sensações
e ideais. Cada época cinematográfica trouxe modos de olhar próprios para o corpo,
tornando-o uma imagem em movimento, por um lado pela forma de recepção, mas,
por outro, criativa, ao permitir que influencie os comportamentos e os costumes de
que corpos devem ser sentidos e admirados.

178
AUTOATIVIDADE
1 A pintura é uma forma de expressão artística bastante antiga entre os vários
processos de representação da humanidade. Um de seus principais modelos sempre
foi o corpo humano, principalmente em ação. Esse objeto de representação estava
presente desde as primeiras incursões das coletividades humanas com a arte dentro
das cavernas. Nesse sentido, assinale a alternativa CORRETA.

a) ( ) As ferramentas usadas pelos habitantes do Paleolítico eram pedras lascadas


com pigmentos de uso vegetal e carvão, por exemplo.
b) ( ) As representações nas cavernas seriam realizadas pensando um corpo
idealizado de modo que teve pouca relação no processo de desenvolvimento da
comunicação e da linguagem.
c) ( ) As imagens das cavernas demonstram que não há qualquer possibilidade de
relação prática das pinturas na vida da comunidade.
d) ( ) Pintavam-se animais nas cavernas, mas com objetivo puramente estético e sem
relação simbólica ou ritual para os seus criadores.

2 As artes plásticas acompanham a formação humana desde muitos anos. A escultura


se tornou uma forma de expressão do corpo humano desde os primórdios da
relação do ser humano em coletividade. Objetos esculturais foram achados em sítios
arqueológicos, mostrando sua relevância desde o período Paleolítico. Sobre a Vênus
de Willendorf, analise as sentenças a seguir.

I- A estátua foi descoberta na região da Áustria, mas acredita-se que tenha chegado
por uma peregrinação desde a região da Itália.
II- Inicialmente, foi vista como uma possibilidade de representação do corpo feminino
por homens, mas, atualmente, considera-se que possa ter sido feita como uma
forma educativa entre as mulheres.
III- O nome de Vênus é uma designação única que foi dada para essa estátua por seu
descobridor na região de Willendorf, não existindo em nenhuma outra estátua do
período Paleolítico.

Assinale a alternativa CORRETA.


a) ( ) Somente a sentença I está correta.
b) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
c) ( ) Somente a sentença III está correta.
d) ( ) As sentenças I, II e III estão corretas.

179
3 A música é uma expressão humana que carrega muita emoção. Sua relação com o
corpo sempre foi vista com muita agudeza por vários povos, em diferentes culturas,
durante toda a história. O processo pedagógico que percebe o corpo como elemento
musical mostra-se cada vez mais atual. Considerando o exposto, classifique V para
as sentenças verdadeiras e F para as falsas.

( ) A voz humana é parte expressiva do corpo e uma fonte maravilhosa de musicalidade


com timbres, altura e intensidades distintas, explorando a voz e a escuta.
( ) As crianças exploram e brincam com os sons do próprio corpo, fazendo barulho
com a boca (vocalizações, movimentos com a língua e os lábios), batendo partes
do corpo, como mãos e pés (palmas e sapateados).
( ) O som é uma vibração, mas é um exagero tentar encontrar musicalidade no corpo
a partir das batidas do coração ou dos tempos da respiração.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA.


a) ( ) F – F – V.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) V – V – F.
d) ( ) V – V – V.

4 A arte cinematográfica é bastante recente quando comparada a todas as outras,


considerando que é chamada de sétima arte e a sexta é a escrita, criada há milhares
de anos. Desde sua criação, o cinema sempre esteve presente na representação
criativa do corpo. Nesse sentido, apresente a origem histórica dessa arte e sua
relação inicial do corpo.

5 A música é uma experiência tão poderosa na cultura humana que, de início, era vista
apenas como um entretenimento e logo se tornou um campo cognitivo próprio.
Sua relação com o corpo é cada vez mais apontada nos discursos acadêmicos,
demonstrando a valorização que a sociedade constituiu gradativamente. Diante
disso, explique como a música é incentivada na educação formal do Brasil.

180
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184
UNIDADE 3 —

O CORPO E A CRIAÇÃO
COMO PROPOSTA
EDUCATIVA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• analisar os diferentes elementos que compõem o movimento cênico;

• elaborar material artístico com o próprio corpo e alheios;

• compreender a função do jogo na pedagogia do corpo;

• desenvolver capacidade crítica para o trabalho pedagógico corporal.

PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar
o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – LINGUAGEM DO MOVIMENTO


TÓPICO 2 – O CORPO E O JOGO NA CRIAÇÃO
TÓPICO 3 – EDUCAÇÃO ESTÉTICA PARA O CORPO

CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

185
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 3!

Acesse o
QR Code abaixo:

186
UNIDADE 3 TÓPICO 1 —
LINGUAGEM DO MOVIMENTO

1 INTRODUÇÃO
De acordo com Lola Brikman, o movimento corporal é a linguagem do corpo, a
forma como o corpo se expressa. Ao longo da história humana, a dança exerce diferentes
papéis que explicitam a forma com que o corpo foi compreendido, vivido e treinado; e,
por conseguinte, surgiram diferentes linguagens. A expressão corporal busca maneiras
de o corpo do artista chegar a uma forma própria de expressão, preservando suas
idiossincrasias, sua subjetividade, valorizando sua espontaneidade.

Diferentes técnicas foram criadas para que o corpo desenvolvesse a habilidade


de expressar-se de forma cênica. Vamos conhecer, agora, a linguagem do movimento
ao longo dos períodos históricos.

A dança é uma das formas de expressão artística mais praticada pela humanidade
desde os tempos pré-históricos. Nas páginas seguintes, você vai conhecer brevemente
a história da dança com foco no Ocidente e vai perceber a relação intrínseca que existe
entre o corpo, o modo de vida e o contexto da humanidade. A linguagem do movimento
é expressa pelo corpo, e ele, o corpo, tem sua história. Além disso, você vai compreender
a diferença entre a história a partir da perspectiva positivista e da história cultural, a fim
de desenvolver o seu senso crítico, para repensar os fatos históricos como possíveis de
serem reescritos sob um novo ponto de vista.

Você vai conhecer o legado da Escola Vianna e sua importância para a educação
somática brasileira tanto no âmbito pedagógico quanto no âmbito artístico. O legado de
Klauss Vianna e sua profícua produção são um marco na dança brasileira.

O trabalho de Rudolf Laban e seu estudo em torno do Sistema de Análise de


Movimento será apresentado neste subtópico. Laban foi precursor da formação com
ênfase na expressão corporal, no entanto, o Sistema Laban, desenvolvido por Irmgard
Bartenieff, é também uma importante abordagem pedagógica do âmbito da educação
somática. É também a forma mais conhecida de notação coreográfica que possibilita a
composição por meio de jogos de improvisação. Vamos, então, dar início à nossa jornada
ao longo da história da dança, com ênfase no Ocidente.

187
2 BREVE HISTÓRIA DA DANÇA
Que história é essa? Existem diferentes abordagens do conhecimento histórico.
Imagine você, acadêmico: se um historiador publicou um livro no século passado, sobre
vestígios rupestres do período neolítico que ele observou, e ainda hoje utilizássemos
esses textos sem questionar sua análise! Por isso, é importante analisarmos as fontes
de nossa pesquisa com crítica de modo a interpelar a autoridade do historiador ou
da historiadora para classificar e descrever cada dança, questionando suas opiniões
dadas e relacioná-las com nosso contexto atual. Assim, em vez de constatar a história,
o historiador de hoje constrói a história, uma vez que analisa os dados e os reformula
criando novos registros e interpretações para o futuro.

Considerando que se deve olhar para os documentos do passado com os olhos


críticos de hoje, vamos analisar a história da dança a partir de textos muito conhecidos
e que são geralmente citados para descrever a dança ao longo dos tempos. Vamos ver
o exemplo de um livro clássico que aborda as danças do mundo.

O livro A história universal da dança, de Curt Sachs, foi primeiramente publicado


em alemão em 1933 e, somente nos anos 1960, foi traduzido para o inglês. A obra foi
o primeiro livro a retratar a dança para além do Ocidente. Por ser pioneiro, o livro já foi
traduzido para diversas línguas, reeditado e lançado em todo o mundo e é, ainda hoje,
uma das principais referências para abordar as danças não ocidentais, no entanto, é
possível identificar muitas lacunas ao estudarmos seu texto.

Uma lacuna determinante é seu ponto de vista etnocêntrico, explicitado a partir


do modo com o qual compara as danças ocidentais das não ocidentais. Por exemplo,
segundo Sachs as danças pré-históricas foram relacionadas às danças orientais em
rituais tribais. Para ele, tais danças se mantiveram imutáveis ao longo dos tempos, ao
contrário das danças europeias, consideradas formas muito evoluídas de dança.

INTERESSANTE
Veja você, acadêmico, que o pensamento vigente da época em que Sachs
desenvolveu seu estudo era o evolucionismo. Na perspectiva evolucionista,
o desenvolvimento das sociedades tem como base a civilização europeia,
considerada a mais evoluída entre as civilizações. Assim, o futuro das demais
culturas do mundo seria evoluir a ponto de ter a mesma organização social e
econômica da Europa. Isso explica por que Sachs acreditava que as formas
de dança não ocidentais não eram evoluídas, pois, para ele, o futuro dessas
danças seria tornarem-se similares às de sua própria cultura!

Agora que estamos com os olhos bem abertos para o positivismo e suas
lacunas, vamos analisar textos consagrados acerca da história da dança? Vamos iniciar
percorrendo a pré-história, depois passearemos pela Antiguidade, abordaremos a Idade
Média até chegarmos à Idade Moderna e à Idade Contemporânea.
188
NOTA
A pré-história compreende os períodos Paleolítico (2,7 milhões de anos
atrás até 10000 a.C.) e o período Neolítico (10000 a.C. até 3000 a.C.). Já a
História propriamente dita abarca os períodos da Antiguidade (3500 a.C. até
476 d.C.), da Idade Média (século V ao século XV), da Idade Moderna (ano
1453 d.C. a 1789 d.C.) e da Idade Contemporânea (a partir da Revolução
Francesa de 1789 em diante).

2.1 A DANÇA NA PRÉ-HISTÓRIA


Vamos olhar brevemente para a pré-história e abordar vestígios de dança
de nossos ancestrais para compreender em quais contextos nossos antepassados
dançavam e por quais motivos.

Partimos do famoso livro de Paul Bourcier (2006), A história da dança no


Ocidente. Para Bourcier (2006), a primeira dança foi praticada como um ato sagrado!
Segundo ele, o primeiro vestígio de dança encontra-se em uma parede da gruta de
Gabillou (perto de Mussidan, na Dordonha). Em uma imagem do ano 12000 a.C., há uma
figura de 30 cm retratada em posição por ele identificada como de dança. Já em 10000
a.C., na gruta de Trais Frères, próximo de Montesquieu, há uma representação humana
posicionada em preparo de giro. Bourcier (2006) relaciona o giro com a busca por um
estado de consciência alterado, possivelmente praticado para se alcançar o transe
durante a dança.

Figura 1 – Figuras dançantes na Pré-História

Fonte: https://bit.ly/3TpPaTg; https://bit.ly/3S11et0. Acesso em: 3 out. 2022.

189
Curiosamente, essa figura foi também encontrada em vestígios na Suécia e na
África do Sul. Como essa mesma figura espalhou-se em diferentes partes do mundo é
um mistério. Independentemente de sabermos qual foi o primeiro registro, é consenso
entre autores como Sachs, Bourcier (2006), Rengel e Langendonck (2006), que a dança
tenha surgido como um ato ritualístico, praticado em cerimônias de adoração a deuses
e deusas, em celebrações ligadas aos fenômenos da natureza e em referência aos
períodos de plantio e de colheita.

Também no Brasil encontramos vestígios rupestres que retratam a dança.


Rengel e Langendonck (2006) citam as cavernas da Serra da Capivara (Piauí), em que
desenhos rupestres retratam cenas de pessoas em roda, executando diferentes ações,
como saltar ou imitar animais.

Figura 2 – Serra da Capivara

Fonte: https://bit.ly/3S0Jcag. Acesso em: 3 out. 2022.

A partir dessas descrições, compreendemos que, em diferentes continentes, e


por muitos milhares de anos, nossos antepassados praticavam a dança como um ato
ritualístico sagrado, em conexão com o universo e com as forças da natureza.

À medida que o homem primitivo passou a estabelecer-se em comunidades,


deixando de ser nômade, formaram-se agrupamentos sociais organizados para o cultivo
da agricultura e da pecuária. As danças, então, passaram a representar não somente os
rituais sagrados, mas as características de cada grupo social.

Bourcier (2006) ressalta uma lacuna de tempo em que não há vestígios ou


estudo de dança por um longo período. A partir do Paleolítico, encontramos estudos
sobre a história da dança apenas na Grécia Antiga e no Antigo Egito.

190
2.2 A DANÇA NA ANTIGUIDADE
Para abordarmos a dança na Antiguidade, vamos partir do Oriente Médio. No
Egito, a dança sagrada perpassa o período Neolítico até o ano 30 da Era Moderna. A
vasta iconografia de hieróglifos e tumbas mortuárias descrevem danças acrobáticas e
danças em círculos de mulheres que acompanhavam a direção da rotação planetária.
Os cultos à fertilidade em honra à deusa Ísis e ao deus sol Rá foram encontrados em
muitos templos da época do Egito faraônico.

Figura 3 – Desenho de dança no Egito Antigo

Fonte: https://bit.ly/3ThAqp6. Acesso em: 3 out. 2022.

Bourcier (2006, p. 14) ainda descreve símbolos que representam coreografias


obrigatórias em certos ritos mortuários:

[...] desde o período pré-faraônico, o Egito marca sua originalidade


através de representações coreográficas em armas rituais. Nos
túmulos, e desde a época antiga, qualquer que fosse a condição
de seu proprietário, vê-se dançarinos e dançarinas aparentemente
especializados, acompanhando cortejos funerários guiando os
defuntos até o limiar de sua vida pós-terrestre.

Na Grécia, a dança era uma prática presente em rituais religiosos, em


treinamentos militares, festividades e na educação dos cidadãos. Uma prova
contundente da importância dada à dança pelos gregos são as colocações feitas por
importantes filósofos e poetas:

Segundo Sócrates (470-399 a. C), a dança formava um cidadão


completo e nunca era tarde para se aprender a dançar. Ele, já adulto,
aprendeu a dançar a menphis, ou a dança mefítica, dedicada à
Atena, deusa da justiça. Platão (428-377 a. C), outro filósofo e o poeta
Homero (século IX – séculoVII a.C.) também consideravam a dança
como parte da educação dos cidadãos. Diziam que ela servia para
santificar e curar os corpos, além de trazer mais agilidade, beleza e
sabedoria (RENGEL; LANGENDONCK, 2006, p. 12, grifo nosso).

191
De acordo com Bourcier (2006), Roma foi a responsável por transformar a
dança ritual sagrada em um ato profano, com utilidades apenas de recreação. Ainda
que a dança sagrada subsistisse na cultura antiga em meio ao povo, lentamente ela foi
perdendo prestígio e espaço para a pantomima.

As origens religiosas das danças haviam sido completamente


esquecidas, estas passaram a ser apenas uma arte de recreação. Daí
a hostilidade de estadistas como Cipião Emiliano que mandou fechar
as escolas onde os ludi saltatori gregos ensinavam as crianças de
boas famílias. Também Cicero qualifica a dança de ministra voluptatis.
Mas, subsistiam as danças tradicionais da velha cultura romana, a
dos bufões, quando das cerimônias triunfais, as das obséquias de
grande personalidade e as cerimônias nupciais (BOURCIER, 2006, p.
43, grifo nosso).

Perceba como a dança adquiriu outras finalidades do período pré-histórico até


a Antiguidade. É possível perceber as mudanças de acordo com as transformações
sociais. Se antes o objetivo da vida de nossos ancestrais era a subsistência por meio
da caça, as danças representavam ações ligadas aos animais. Já ao deixarem de ser
nômades e iniciarem as atividades agrárias, o culto à fertilidade e à natureza passou a
fazer parte dos desenhos rupestres encontrados.

O culto a deuses e deusas ligados à natureza esteve presente também na


Antiguidade, porém com novas finalidades, como cultos fúnebres no Egito e treinamento
militar na Grécia.

Com base nas descrições de Bourcier (2006), Rengel e Langendonck (2006),


podemos concluir que a dança passou a ter novas finalidades e que dançarinos e
dançarinas passaram a ter um treinamento especializado para atender às diferentes
demandas rituais. Até mesmo coreografias já eram executadas para tais finalidades.
Fascinante, não é mesmo?

Agora, vamos seguir nossa viagem no tempo e descobrir como a dança


desenvolveu-se na Idade Média.

2.3 A DANÇA NA IDADE MÉDIA


Um destaque importante da dança na Idade Média são as atividades da Igreja
Católica e sua incursão para sobrepor-se às crenças pagãs em que a dança era atividade
ritual preponderante. Para que as mudanças acontecessem entre as pessoas comuns,
a Igreja promulgou uma série de proibições referentes à dança, lançadas sob a forma
de concílios, reuniões eclesiásticas em que bispos eram escolhidos para atenderem a
um território. Além de escolherem os bispos, os concílios lançavam decretos para que a
região seguisse. Grande parte deles previa punições pela prática do paganismo e seus
rituais dançados. As danças, antes sagradas e partes ritualísticas de passagem social,
como casamentos e funerais, agora passaram a ser controladas pela Igreja:

192
Como exemplo disso temos um decretal do Papa Zacarias, no ano de
774, “contra os movimentos indecentes da dança ou carola”, a homilia
de papa Leão V que condenava, em 847, “os cantos e carolas das
mulheres na igreja”. No final do século XIII as constituições sinodais do
bispo de Paris, Odon (costitution, 36), prescrevem ao clérigo que proíba
a dança “principalmente em três lugares: nas igrejas, nos cemitérios e
nas procissões” (BOURCIER, 2006, p. 47, grifo nosso).

NOTA
Chorea ou carola era uma dança típica dançada em roda fechada ou aberta
praticada na Idade Média até o século XIII.

A história da dança tem muitas lacunas, pois houve muitas perdas de fontes
bibliográficas devido a ações do tempo e da humanidade, como queima de livros
e incêndio de bibliotecas inteiras. Além disso, você já deve ter notado que a Idade
Média significou uma ruptura brutal da dança como ritual e como educação. Isso, caro
acadêmico, revela um fator muito importante: a relação da humanidade com seu corpo,
com sua vida cotidiana e com o modo como compreende o mundo a sua volta incide no
modo como ele se expressa na dança.

Vamos pensar juntos no homem pré-histórico. Sua relação com a vida estava
ligada ao sentido de sobrevivência em que o clima e a caça eram determinantes para
sua vida. No momento em que passou a dominar a agricultura, a humanidade passou a
compreender a fertilidade como uma dádiva divina na qual o corpo que dança poderia
servir como ponte para comunicação espiritual. Na Antiguidade, a dança passou a
acumular outros ritos de passagem, como casamentos e funerais, e serviu, também,
como modo de educação e de treinamento militar e social.

Ao chegarmos à Idade Média e com o avanço do poderio da Igreja Católica


sob as crenças pagãs, a dança, sofre alterações. Constitui-se uma separação entre
o sagrado e o profano. O corpo como forma de expressão e comunicação espiritual
passa a conviver com a ideia de pecado, muitas vezes sendo visto como o portador da
tentação. Essas transformações certamente delinearam a forma com que as danças
se desenvolveram a partir de então, impondo limites e formas mais aceitáveis de
expressão aos olhos da Igreja.

Cabe comentar que mesmo assim surgiram uma grande variedade de danças
nesse período, a ponto de se permitir pensar que foi uma época que inventou uma retórica
do corpo (BOURCIER. 2006). Apesar de proibições da Igreja, sabe-se que a Chronique de

193
Saint Martial, de Limoges, indica a organização de uma Chorea, também conhecida como
Carola, em homenagem aos cruzados (BOURCIER, 2006). Tratava-se de uma roda, às
vezes fechada chamada de Branle, outras vezes aberta. Também dançavam o Tripudium,
uma dança em três tempos em que os executantes não se tocavam.

Figura 4 – Carola

Fonte: https://bit.ly/3EIKdkm. Acesso em: 3 out. 2022.

Os nobres possuíam suas danças como a “Basse Danse” criada na corte de


Borgonha no século XV. Era conhecida pelo uso de dois compassos ternários, o que é
conhecido na musicologia como Hemíola. Mesmo entre os camponeses encontram-se
danças típicas como a dança do ovo. Essa dança surgiu no período da Páscoa como um
jogo em que eram colocados ovos no chão e o objetivo era dançar quebrando o mínimo
possível. Deve-se comentar também a Farandola, uma dança popular na Provence
surgida para celebrar o Corpus Christi.

Atente agora, acadêmico, para o fato de que falaremos da dança no Ocidente,


posto que não seria possível descrever como a dança de todo o planeta se desenvolveu
em somente uma disciplina ou capítulo, no entanto, é importante que você tenha em vista
o recorte de nosso estudo para não incorrer no erro de generalizar e de acreditar que a
dança se desenvolveu da mesma forma na África, na América ou na Ásia, por exemplo.

E não estamos falando de uma dança mais evoluída ou melhor! Lembre-se do


que vimos de etnocentrismo: temos a tendência a achar que nosso modo de vida é
o melhor; por isso, é importante ter em mente que as danças de outras culturas são
diferentes e constituíram-se de modo distinto. Não nos cabe julgar se é melhor ou pior!
Vamos avançar um pouco mais no tempo e analisar como se deram os fatos históricos
que marcaram a dança na Idade Moderna, no Ocidente.

194
2.4 A DANÇA NA IDADE MODERNA
Agora que compreendemos nosso recorte de estudo, vamos conhecer o balé
de corte; o modo como o balé surgiu antes de transformar-se no estilo de dança
sistematizado que conhecemos hoje.

NOTA
O termo balé veio da palavra italiana ballo e de seu diminutivo balleto. Na
França, sob influência do termo em italiano, utiliza-se ballet, porém, em
português, utilizamos a palavra balé.

O fato que demarca a Idade Moderna para a dança foi o surgimento do balé
clássico. Ao contrário do que muitos acreditam, o balé surgiu na Itália, em Florença, a
partir do século XV, no palácio de Médicis (RENGEL; LANGENDONCK, 2006). Somente
quando Catarina de Médicis casou-se com o Duque de Orléans, futuro rei Henrique II
da França, a prática do balé e suas apresentações foram levadas para a corte como
entretenimento da nobreza francesa.

INTERESSANTE
O balé clássico era quase que exclusivamente dançado por homens, inclusive o
próprio rei participava como um personagem mítico ou um deus. A função de
coreógrafo era incumbência de músicos, a exemplo da Grécia Antiga. A criação
das cinco posições básicas do balé clássico deu-se somente no século XVIII, por
Pierre Beauchamp (1636-1705), quase 300 anos depois do início da prática do
que já se conhecia como balé.

No entanto, foi na corte de Luís XIV (1638-1715) que o balé deu um grande salto.
O francês Luís XIV era exímio bailarino e contribuiu muito para o desenvolvimento da
dança por meio de investimentos em coreografias e em artistas. Sua primeira e marcante
aparição foi aos 15 anos de idade, no balé chamado A noite, no qual interpretou o rei-sol;
título que o acompanhou ao longo da vida.

Em 1661, Luís XIV fundou a Academia Real da Música e da Dança e, em 1713,


fundou também uma companhia de dança. A partir dessas iniciativas, o balé começou
a se profissionalizar e a expandir para além da corte.

195
IMPORTANTE
Veja, a seguir, os inovadores do balé clássico.

• Maillot, costureiro da ópera de Paris, criou a malha para propiciar maior


liberdade de movimento aos bailarinos. O uso da malha foi autorizado
pelo papa Pio VI, desde que em cor azul para contrastar com a cor da pele
(RENGEL; LANGENDONCK, 2006).
• O francês Jean-Georges Noverre (1727-1810) foi o criador do balé de ação.
Concebeu mais de 150 espetáculos, levando o balé para o teatro, posto
que antes estava limitado a festas da corte.
• O francês Pierre Beauchamp (1636-1705) foi o criador das cinco posições
básicas do balé. Ele era professor e coreógrafo da Academia Real de Dança
e foi o responsável por codificar o balé.

Agora, acadêmico, vamos conhecer uma nova fase do balé: o balé romântico,
compreendido como um período da dança em que as óperas musicais reproduziam as
bailarinas como sílfides, pálidas e etéreas.

Foi também quando surgiu a sapatilha de ponta e as grandes obras as quais


conhecemos até hoje, como O Lago dos Cisnes e Giselle. Com o balé romântico, nasce
a figura de bailarinos e bailarinas, uma vez que, antes, somente os coreógrafos foram
considerados notáveis e foram imortalizados na história da dança. Mais do que isso, a
mulher torna-se a grande protagonista desses balés, anteriormente dominados pela
figura masculina, da criação à execução.

O balé romântico tomou forma na França, a partir de 1830, e espalhou-se pela


Europa. O fascínio pela mitologia grega, que antes fez parte de obras do balé de corte,
transformou-se em personagens, como a feiticeira, a fada, o vampiro, a bruxa, seres
extraordinários presentes nas histórias e nos contos ocidentais.

Figura 5 – Anna Pavlova

Fonte: https://shutr.bz/3MEieEk. Acesso em: 14 out. 2022.

196
IMPORTANTE
Veja, a seguir, grandes artistas e suas inovações.

• Marie Taglioni, bailarina da ópera de Paris (Estocolmo, 1804-1884), criou


o tutu.
• O francês Marius Petipa (1818-1910) foi o coreógrafo de A Bela
Adormecida (1890), O Quebra-Nozes (1892) e O Lago dos Cisnes (1895).
• A bailarina russa Anna Pavlova foi a primeira bailarina a utilizar a sapatilha
de ponta, em 1904, com a peça O Lago dos Cisnes.
• O bailarino russo Vaslav Nijinsky (1890-1950) quebrou os padrões do
balé romântico criando coreografias que valorizavam a expressão de um
grupo, rompendo com a ideia de corpo de baile utilizada nas composições
de balé até então. Uma de suas grandes e polêmicas criações foi a obra
A Sagração da Primavera (1913).

Vimos que o balé nasceu como dança de corte e foi desenvolvido com
contribuições de artistas, coreógrafos e bailarinas que criaram, organizaram, inovaram
e disseminaram a dança a ponto de ela ser codificada e atravessar barreiras do tempo
e de territórios. Ainda assim, o balé continua em constante aperfeiçoamento. Uma
grande inovação contemporânea do balé é a própria pedagogia da dança. O fato de
você estar estudando para ensinar outras pessoas a dançar é uma mudança importante
e necessária para possibilitar a longevidade dos bailarinos e bailarinas da dança, evitar
lesões e para contribuir com a valorização da profissão. Você também é parte importante
dessa inovação!

2.5 A DANÇA NA IDADE CONTEMPORÂNEA


A Idade Contemporânea parte da Revolução Francesa até os dias atuais. Você
já sabe o quanto a dança transformou-se ao longo do tempo. A partir das referências
da Idade Contemporânea aqui selecionadas, você vai conhecer artistas ocidentais que
influenciam a dança mundial até hoje, inclusive o Brasil.

Vamos conhecer, agora, o surgimento da dança moderna e seus principais


artistas. Como vimos, a dança acontecia sempre relacionada ao contexto da vida
humana ao longo dos tempos. Assim, de um ato sagrado ela passou a ser considerada
uma ameaça à Igreja; depois, foi tornada dança cênica e transformada em arte de e para
a elite, entretanto, séculos se passaram. O mundo havia atravessado a Primeira Grande
Guerra e isso certamente transformou a sociedade e seus modos de se expressarem
na dança. Dessa forma, a dança moderna surgiu como uma reação à insatisfação de
bailarinas e coreógrafas que buscavam maior liberdade de expressão. Em resposta ao
uso de sapatilhas de pontas, elas dançavam de pés descalços; em vez de tutus e de
vestidos volumosos, o uso de túnicas com pouco tecido.

197
Essa dança trouxe muitas mudanças: pés descalços, movimentos
de tronco de um modo mais flexível e técnicas executadas ao nível
do solo, com os dançarinos deitando, sentando e se ajoelhando. Na
técnica clássica, a maioria dos exercícios era, e ainda é, em geral,
executada em pé. O mais importante, porém, foi a mudança de ideias:
preocupações sociais, políticas, sentimentos humanos mostrados
por meio da dança. O tema e personagens principais eram o homem
moderno, sua vida, suas tradições, seus conflitos, enfim, o homem
inserido no seu mundo (RENGEL; LANGENDONCK, 2006, p. 41).

Entre outras, essas foram algumas das grandes mudanças que a dança moderna
trouxe para a dança. Os artistas da dança moderna queriam criar novos conhecimentos
para além do palco. Eles se preocupavam, também, com a formação dos bailarinos e
com uma forma mais harmoniosa de dança. Para isso, passaram a estudar anatomia,
ritmo, espaço, sensações, sentimentos e aspectos intelectuais do corpo que dança.
Pesquisavam, de igual modo, História das Artes, Filosofia, Psicologia e Pedagogia.

Como falamos, a dança moderna buscou romper com a fantasia, o romantismo


e a nobreza do balé, e tornar a dança mais próxima da vida humana e de seus conflitos.
Com isso, criaram-se, para a dança, novos vocabulários de movimento e modos de
formação corporal. Além disso, a dança moderna propunha uma estética não voltada
para o entretenimento, em que cada movimento expressasse um sentimento/
significado, impulso; cada pensamento deveria encontrar sua realização em movimento.

Para romper com a ideia de coreografia como simples junção de passos


harmoniosos, alguns coreógrafos, como Rudolf Laban (1879-1958), utilizavam-se de
improvisação para composição coreográfica.

Vamos, agora, conhecer os principais artistas da dança moderna. Você também


pode pesquisar a respeito deles na internet e descobrir como eram seus movimentos!
Atente-se para os nomes a seguir como sendo alguns dos grandes revolucionários e
precursores da dança moderna ocidental:

• François Delsarte (1811-1871), França. Dramaturgo, cantor, orador e filósofo. Criou a


estética aplicada: sistema de treinamento voltado para desenvolver a expressividade
corporal de atores e bailarinos.
• Jacques Dalcroze (1865-1950), Áustria. Era músico e criou um sistema de ensino
chamado eurritmia em que os movimentos do corpo eram transformados em
ginástica buscando maior ritmo e dinâmica.
• Isadora Duncan (1877-1927), Estados Unidos. Precursora em utilizar a improvisação
em cena, buscando espontaneidade. Dançava de pés descalços.
• Loie Fuller (1862-1928), Estados Unidos. Pioneira da dança moderna e da luz cênica.

198
DICA
Assista ao vídeo Serpentine Dance! Disponível em: https://bit.ly/3gayi4g.

• Rudolf Laban (1879-1958), Inglaterra. Dançarino, coreógrafo, teatrólogo, musicólogo,


intérprete, considerado o maior teórico da dança do século XX e o “pai da dança-
teatro”. Criou o sistema Laban de análise e escrita do movimento.
• Martha Graham (1894-1991), Estados Unidos. Dançarina e coreógrafa que revolucionou
a história da dança moderna. Foi criadora de uma técnica singular, baseada no
movimento aliado à contração e ao relaxamento do abdômen, expandindo a energia
da pelve até a cervical. Além de obras memoráveis, Graham também formou grandes
bailarinos que revolucionariam a dança anos mais tarde.

Figura 6 – Martha Graham

Fonte: https://bit.ly/3rTT7Uk. Acesso em: 13 set. 2022.

Doris Humphrey (1895-1958), Estados Unidos. Desenvolveu conceitos


importantes para a formação dos bailarinos, como a busca para desenvolver a habilidade
de queda/recuperação e o equilíbrio precário.

Merce Cunningham (1919-2009), Estados Unidos. Criou mais de 200 coreografias.


Pregava o movimento pelo movimento, independentemente de uma narrativa ou
contexto, a dança como a base para a cena, podendo ser realizada com música ou até
sem ela. Já em idade avançada, foi também um dos precursores do uso da tecnologia
para composição coreográfica.

199
A nova geração de artistas que viriam após os precursores da dança moderna,
muitos dos quais formados pelos próprios coreógrafos, como Alvin Nikolai por Martha
Graham, passaram a questionar a liberdade de criação da dança moderna. Veja você,
caro acadêmico, que, nesse momento histórico, o Ocidente passava por grandes
transformações. Passou-se a falar em liberdade sexual, surgiram os movimentos
feministas. Dessa forma, as inovações da dança moderna já não eram libertadoras o
suficiente para essa nova geração.

Na sequência, vamos conhecer o surgimento da dança pós-moderna ou dança


contemporânea. Como vimos, o estilo moderno de dança já não estava satisfeito com
os padrões homogêneos de composição, formação e recepção da dança. Inspirados nos
encontros de cursos lançados Robert Dunn para exploração do acaso e pelo surgimento
do Happening, esse novo estilo questionaria os limites da dança, discutindo a técnica, o
papel passivo do espectador, o gesto natural em uma busca por romper com a estética
do espetáculo e qualquer limite imposto à dança e ao artista da dança.

INTERESSANTE
Happening surgiu nos Estados Unidos com a criação do artista Allan Kaprow no
final dos anos 1950. Os Happenings uniram as artes plásticas e o teatro (sem
texto) para realizar acontecimentos artísticos. Kaprow (2006, p. 17) explica: “Sua
forma é aberta, inacabada e fluida: nada, obviamente, é solicitado e, portanto,
nada se ganha, exceto a certeza de um número de ocorrências às quais estamos
mais atentos”.

Como você já sabe, a dança expressa as mudanças sociais da época. Assim,


mais do que a diferença de novas técnicas e passos, o que se transforma são as ideias,
os significados e os propósitos de cada criação. Ao mesmo tempo, uma estética não
anula a outra. Continuamos a ver grandes escolas de balé clássico bem como bailarinos
formados em dança moderna.

Foi justamente em laboratórios de criação organizados por Robert Dunn, que,


por sua vez, foi aluno de John Cage, músico e companheiro de Merce Cunningham,
que bailarinos passaram a buscar um local para desenvolverem um laboratório de
experimentação com base nas proposições lançadas por Robert Dunn. Por volta dos
anos 1960, eles se reuniram em uma igreja cedida como espaço de ensaio a Judson
Church. Devido ao nome do local, o grupo passou também a ser conhecido como grupo
da Judson Church.

200
A grande contribuição de Robert Dunn foi a ideia do acaso na improvisação,
na liberdade do movimento independentemente da música. Os artistas da Judson
Church eram envolvidos com a experimentação de vanguarda e rejeitaram os limites
da prática de dança moderna, inclusive o espaço cênico e a própria ideia de dança
cênica. A Judson Church era um espaço de colaboração e de experimentação em que
artistas de diferentes áreas, como atores, pintores e desenhistas, buscavam novas
formas de criar em dança, imbuídos em uma atmosfera de diversidade e de liberdade.
O manifesto de Yvonne Rainer (1965) resume o espírito de rejeição aos padrões
estéticos da dança moderna:

Não ao espetáculo, não ao virtuosismo, não às transformações


e à magia e ao uso de truques, não “glamour” e à transcendência
da imagem da star, não ao heroísmo, não ao anti-heroísmo, não às
imaginárias de pechisbeque, não ao comprometimento do bailarino
ou do espectador, não ao estilo, não às maneiras afetadas, não à
sedução do espectador graças aos estratagemas do bailarino, não
à excentricidade, não ao fato de alguém se mover ou se fazer mover
(GIL, 2018, p. 151, grifo nosso).

Os bailarinos da Judson Church trabalhavam juntos de forma colaborativa, o


que hoje chamamos de coletivo independente, pois rejeitavam a figura de um diretor ou
coreógrafo. Nascia, aí, o conceito de intérprete-bailarino; aquele capaz de coreografar
e dançar sua própria dança. Conheça, a seguir, alguns dos grandes dançarinos que
fizeram parte do grupo da Judson Church.

Steve Paxton (1939), Estados Unidos. Criador do contato-improvisação (CI); uma


dança que utiliza o contato com o corpo de outros bailarinos como apoio para explorar
a gravidade e criar novos movimentos.

Yvonne Rainer (1934), Estados Unidos. Buscou o corpo não artístico, trabalhou o
minimalismo em cena procurando valorizar o corpo e a dança acima de tudo.

Trisha Brown. Questionou o virtuosismo na dança, colocando, em suas obras,


pessoas comuns ao lado de bailarinos.

Além desses, você pode querer conhecer Simone Forti, Douglas Dunn e Lucinda
Childs. Conheça suas obras no YouTube!

Caro acadêmico, agora que você já conhece brevemente a história da dança no


Ocidente talvez você queira saber a história da dança no Brasil. Existem muitos estudos
acerca desse assunto, mas, se você for dançarino ou dançarina de outra dança, como as
regionais ou diaspóricas, você se surpreenda em saber que há pouco ou nada publicado
da história de sua dança em sua região. Quem sabe não será você a fazer esse registro?

201
3 A ESCOLA VIANNA
Ao abordarmos a Escola Vianna, estamos falando de uma tríade: três pessoas
de uma família que revolucionaram a dança brasileira e inspiraram artistas da dança
e do teatro em todo o mundo. Estamos falando do casal Klauss e Angel Vianna, e
de seu filho Rainer. A família Vianna foi precursora da educação somática no Brasil.
Vamos falar brevemente da vida de cada um deles para, então, adentrarmos suas
contribuições e inovações.

ESTUDOS FUTUROS
Você vai saber mais de educação somática no Tópico 3. Por ora, compreenda
o significado de soma: corpo todo, corpo vivo. Assim, a palavra “somático”
remete à experiência do corpo vivo.

3.1 BREVE BIOGRAFIA DE KLAUSS VIANNA


Klauss Vianna (Belo Horizonte, 1928 – São Paulo, 1992) foi bailarino, ator
e preparador corporal de atores. Alguns deles foram Marco Nanini e José Wilker.
Desenvolveu estudos anatômicos e dedicou-se a pesquisar o que poderia ser uma
dança brasileira modernista.

Aos 20 anos, começou a praticar balé clássico na escola de Carlos Leite (1914-
1955) em Belo Horizonte. Atuou como assistente do mestre entre 1948 e 1954, quando
começou, também, a criar suas próprias coreografias. Nos anos 1950, passou a fazer parte
do coletivo Geração Complemento em São Paulo, iniciando, assim, sua trajetória no teatro.

Em 1952, Klauss inaugurou sua escola de balé e, em 1959, oficializou sua parceria
com Angel Vianna, criando obras de cunho modernista para seu balé. Em 1962, o casal
é convidado a contribuir como docentes na Escola de Dança da Universidade Federal
da Bahia (UFBA), onde permaneceram até 1962. Lá, participaram do curso de Anatomia
Aplicada com o professor Antônio Brochado, experiência que redefiniu o trabalho
artístico-pedagógico de ambos a partir de então.

O casal mudou-se para o Rio de Janeiro, onde Klauss atuou como professor de
balé na Escola Municipal de Bailados até 1977. Nesse período, também passou a atuar
com a preparação de atores, além de dirigir peças e coreografar.

202
Figura 7 – Angel e Klaus Vianna

Fonte: https://bit.ly/3g8asq7. Acesso em: 13 set. 2022.

Além dessas instituições, Klauss Vianna atuou, também, no Centro de Pesquisa


Corporal Arte e Educação no Rio de Janeiro, em 1975; no grupo Teatro do Movimento até
1980; na Escola Martins Pena, entre 1976 e 1978; e, entre 1978 e 1980, dirigiu o Instituto
Estadual das Escolas de Arte do Rio de Janeiro.

Embora Klauss utilizasse a técnica no balé clássico em suas aulas, o seu grande
diferencial foi a pesquisa que criou uma nova pedagogia e uma nova estética com
base na realização de movimentos pela consciência anatômica e estrutural de sua
execução. O professor Marcílio Vieira (2015, p. 142) descreve algumas características
da técnica Vianna:

A atenção, as massagens, as caminhadas, os apoios, os movimentos


em espiral, as oposições, as resistências e a percepção geral eram
os elementos primordiais para a conscientização do corpo, conceitos
esses experimentados ao modo que propunha Vianna. Para esse
artista criador, o que importa não é a forma, mas como se chega
até ela respeitando a particularidade de cada um. Nesse processo,
consciência corporal e criatividade caminham juntas na elaboração
da dramaturgia corporal consciente e criativa.

3.2 BREVE BIOGRAFIA DE ANGEL VIANNA


Maria Ângela Abras Vianna (1928) é bailarina, professora, coreógrafa,
pesquisadora, fundadora da Escola e Faculdade de Dança Angel Vianna no Rio de
Janeiro. Assim como Klauss, formou-se em balé clássico, no Balé de Minas Gerais, com
o professor Carlos Leite. Formou-se, também, em Artes Plásticas, na Escola de Belas
Artes de Belo Horizonte, e estudou música com o maestro Francisco Masferrer. Ao lado

203
de Klauss, fundou a Escola de Dança Klauss Vianna. Em 1964, parte com ele para a
Bahia, com o propósito de ministrar a disciplina de dança clássica na Escola de Dança
da Universidade Federal da Bahia.​Em 1965, Angel mudou-se com Klauss para o Rio de
Janeiro, onde atuou na televisão e lecionou dança e expressão corporal na escola de
Tatiana Leskova.

Ao lado de Klauss e Thereza D’Aquino, inaugurou o Centro de Pesquisa Corporal


Arte e Educação em 1975. ​Em 1983, ao lado de seu filho Rainer Vianna e de Neide Neves,
abriu o Centro de Estudo do Movimento e Artes – Espaço Novo, que viria a tornar-se
a atual Escola Angel Vianna. Além disso, criou vários espetáculos com base em seu
projeto Núcleo Coreográfico Teatro do Movimento, de onde surgiram várias companhias
de dança. Foi premiada amplamente e homenageada por dois presidentes da República:
Fernando Henrique Cardoso e Dilma Rousseff.

3.3 BREVE BIOGRAFIA DE RAINER VIANNA


Rainer Abras Vianna nasceu em Belo Horizonte, em 1958, e faleceu no Rio de
Janeiro, em 1995, vítima de afogamento. A morte dele impactou imensamente a vida de
seus pais a partir de então. Rainer foi bailarino, coreógrafo, professor e ator. Casou-se
com Neide Neves, que se dedicou ao campo acadêmico para manter o legado de Rainer
vivo, criando o curso de especialização em dança da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo.

Figura 8 – Rainer Vianna

Fonte: https://bit.ly/3CXMS8d. Acesso em: 13 set. 2022.

204
Quando seus pais se mudaram para o Rio de Janeiro em 1965, Rainer manteve-
se em Belo Horizonte com a avó paterna. Em seu testemunho no documentário Memória
em Movimento (1992), Rainer conta que sentia ciúmes dos pais devido ao grande amor
que dedicavam à dança, contudo, foi ao assistir ao espetáculo Hoje é Dia de Rock (1971),
de Klauss, que ele se rendeu e passou também a dedicar sua vida para as artes da cena.

Rainer iniciou seus estudos aos 15 anos, primeiramente com os pais, depois
estudou expressão corporal nos anos 1970 no Rio de Janeiro, com Ausonia Bernardes
Monteiro (1945), e, na Argentina, com Lola Brikman e Patrícia Stokoe (1919-1996).
Estudou, também, eutonia, em 1978, com Gerda Alexander (1908-1994), e teatro, com
Maria Clara Machado (1921-2001), no Teatro Tablado, no Rio de Janeiro.

Como professor, destaca-se sua atuação no Centro de Pesquisa Corporal de


Arte e Educação, de 1975 a 1980.

Trabalhou no cinema como ator, foi preparador corporal, coreógrafo e bailarino.


Participou com Neide Neves e Angel da criação do Espaço Novo – Centro de Estudos do
Movimento e Artes que mais tarde tornou-se a Escola Angel Vianna.

Em 1987, Rainer e Neide mudam-se para São Paulo, onde ele se dedicou a
sistematizar e a estruturar a técnica de seu pai.

3.4 A TÉCNICA DA ESCOLA VIANNA


Se você visitar o site da Escola Vianna, vai encontrar uma explanação acerca
do uso do termo “escola” para denominar o espaço de ensino, pesquisa, prática e
formação da técnica Vianna. A escolha pelo termo “escola” consiste na conjunção de
pensamento crítico e pedagógico-artístico entre Klauss, Angel e Rainer, que resultou em
uma proposta formativa em comum. Assim, chamou-se Escola Vianna ao conjunto de
pensamentos, técnicas e produções artístico-pedagógicas da família Vianna, reunidos
em saberes para fins de formação e de aperfeiçoamento artístico-profissional.

O desenvolvimento de um trabalho pedagógico surgiu quando Klauss iniciou a


tarefa de preparação de atores e percebeu que eles não exploravam as possibilidades do
corpo, como se “não tivessem corpo”. Assim, Klauss passou a investigar e a desenvolver
uma técnica que promovesse “a escuta do corpo”, levando a atenção para a criação de
espaços intervertebrais, com atenção à respiração e ao movimento interno dos órgãos.

Klauss percebeu que a correria do dia a dia, os sons urbanos, a urgência sempre
presente em nosso cotidiano e a técnica corporal mecanicista impedem o domínio do
corpo do artista, pois, antes de qualquer técnica, é preciso que o artista domine as
possibilidades de seu corpo. Desse modo, Vianna sentiu que precisava fazer o artista
viver a experiência de seu corpo e o dominar integralmente:

205
Minha proposta é essa: por meio do conhecimento e do autodomínio
chego à forma, à minha forma – e não o contrário. É uma inversão
que muda toda a estética, toda a razão do movimento. A técnica na
dança tem apenas uma finalidade: preparar o corpo para responder à
exigência do espírito artístico (VIANNA, 2005, p. 73).

Para desenvolver esse preparo em seus alunos e alunas, Klauss Vianna


desenvolveu uma série de estratégias de preparação corporal. Vamos conhecer algumas
delas. Você lembra que vimos que o estudo da anatomia marcou profundamente a
pedagogia dos Vianna? Isso porque Klauss percebeu que o domínio do conhecimento do
corpo é importante não só para o professor, como educador corporal, mas para o artista,
que precisa conhecer e apropriar-se das funcionalidades do seu corpo. A aplicação da
anatomia na pedagogia Vianna transformou-se, assim, em um grande legado para as
gerações de artistas brasileiros do futuro.

O estudo da anatomia propunha, a partir da escuta do corpo, promover um


reconhecimento de si e aprender novos pontos de apoio do corpo. Conhecendo o sistema
de alavancas do corpo e o direcionamento ósseo, é possível trabalhar os vetores de
força. Ao conhecer sua anatomia, o artista da técnica Klauss Vianna é capaz de explorar
os vetores de força e perceber os direcionamentos ósseos que dinamizam o fluxo de
movimento pelo espaço. A percepção dos vetores de força é uma das premissas básicas
da técnica Vianna.

Da mesma forma, a ideia de escuta do corpo e o espaço interno ressignificaram


as dinâmicas de treinamento do artista a partir da experiência do corpo:

Os espaços correspondem às diversas articulações do corpo


no qual é possível localizar fluxos energéticos importantes e no
qual se inserem os vários grupos musculares. Em sentido mais
amplo, a ideia de espaço corporal está intimamente ligada à
ideia de respiração – que, ao contrário do que pensamos, não
se resume à entrada e saída do ar pelo nariz. Na verdade, o
corpo não respira apenas através dos pulmões. Em linguagem
corporal, fechar, calcificar, e endurecer são sinônimos de
asfixia, degeneração, esterilidade. Respirar, ao contrário,
significa abrir, dar espaço. Portanto, subtrair os espaços
corporais é o mesmo que impedir a respiração, bloqueando
o ritmo livre e natural dos movimentos (VIANNA, 2005, p. 71).

DICA
Assista ao filme Memória presente: Klauss Vianna, disponível em:
https://bit.ly/3S3xnA6.

206
Na busca por despertar a consciência corporal de seus alunos e alunas, o
professor Klauss Vianna ligou o movimento do corpo ao movimento das células corporais
e do próprio Universo. Para ele, o desequilíbrio emocional correspondia ao desequilíbrio
postural. Assim, antes de dominar a técnica era preciso dominar o corpo como um todo:
“A primeira coisa que um professor precisa fazer é dar um corpo ao aluno” (VIANNA,
2005, p. 76).

Vianna chamou atenção para a ideia de que o simples fato de observar a


execução de um movimento, por exemplo, a respiração, já a modifica. Ao controlar a
respiração, ativam-se músculos profundos e importantes para ampliar o domínio
corporal. Klauss alertou que a respiração também é um potente ativador de afetos na
cena. A simples alteração da respiração pode dar a ideia de emoções à cena. Além disso,
a respiração pode contribuir para o controle da voz e do movimento. Para a técnica
Vianna, a respiração não se limita ao nariz, mas encontra-se no espaço corporal, entre
os ossos, músculos e articulações.

Assim, partindo de movimentos básicos, como a caminhada, é possível


explorar os movimentos internos dos órgãos ao respirar, podendo interferir e modificar,
de modo a criar novas possibilidades. A observação da respiração parte do princípio
de que não existe silêncio, assim como não existe pausa. Mesmo parados, estamos
sempre em movimento.

Klauss Vianna (2005) propôs que o bailarino vai adquirindo habilidade técnica
com a dança praticada, seu eixo, equilíbrio e flexibilidade mudam, da mesma forma que,
ao questionar e observar atentamente a si mesmo, o bailarino muda também a visão de
mundo, a óptica das coisas e das pessoas.

Experimente, agora, acadêmico. Pare por alguns segundos, imóvel. Perceba


seus movimentos internos. Mesmo que você interrompa a respiração, você vai sentir
a tensão muscular em diferentes partes do corpo, como a coluna torácica e a cervical.

Segundo Viana (2005), se há vida, há movimento; se há movimento, há som. A


percepção dos movimentos mais elementares é um princípio básico da técnica Vianna.

Para Viana (2005), a parte mais importante do corpo eram os pés; por isso, sempre
utilizava a automassagem dos pés em sala de aula. A atividade possibilita que os alunos e
alunas percebam novos pontos de apoio e, assim, possam trabalhar sua postura.

Angel e Rainer Vianna preocuparam-se em sistematizar a técnica de Viana. Eles


estruturam a técnica em postulados, a saber: o processo lúdico, o processo dos vetores
e o processo coreográfico ou processo didático. Vamos conhecer brevemente cada um
deles a seguir.

207
• Processo lúdico – nesse processo, o corpo é instigado a perceber-se e a desbloquear
partes motoras de modo a transformar padrões nocivos ou estereotipados de
movimento. O processo lúdico é considerado a introdução à técnica Klauss Vianna.
São abordados os sete temas corporais: presença, articulações, peso, apoios,
resistência, oposições e eixo global.
• Processo dos vetores – nessa etapa, compreendem-se as direções ósseas,
experimentando diferentes improvisações até chegar a um processo criativo. É uma
etapa de aprofundamento do estudo o qual requer uma consciência corporal maior
para o domínio dos vetores de força: metatarso, calcâneo, púbis, sacro, escápulas,
cotovelos, metacarpo e a sétima vértebra cervical.
• Processo coreográfico – cada um dos vetores será explorado de maneira lúdica, como
um jogo de experimentação dirigida por tema para improvisações (VIEIRA, 2015).

Assim, os grandes coreógrafos internacionais que vimos anteriormente,


Klauss Vianna, Angel e Rainer Vianna, marcaram profundamente a dança moderna
e contemporânea brasileira por meio de uma técnica formativa, com um sistema de
preparação corporal singular e por meio de uma vasta lista de espetáculos criados,
coreografados e dirigidos.

A Escola Vianna e seu conjunto de ensinamentos e legado artístico é um


marco nas artes cênicas brasileiras, de estudo indispensável para todos os profis-
sionais da área.

4 EXPRESSÃO CORPORAL COMO DISCIPLINA


Vimos que o corpo é histórico, é um organismo vivo em constante movimento.
Você conheceu a Escola Vianna e sua preocupação em aumentar a percepção do corpo
para os artistas de modo que eles possam ampliar suas possibilidades criativas. Vamos,
na sequência, conhecer um pouco das abordagens que trabalham a expressão corporal.

O ser humano é expressivo por natureza. Ele não se comunica somente com
a fala, mas com expressões faciais e corporais também. A expressão corporal pode
ser compreendida como o modo pelo qual o corpo se expressa, comunica ideias e
sentimentos. A proposta de ampliar e dominar as possibilidades do corpo expressivo
vem acompanhando o artista desde que a dança e o teatro se tornaram espetáculo.
Assim, diferentes coreógrafos, dramaturgos e preparadores corporais dedicaram-se a
descobrir formas de tornar o corpo cada vez mais hábil a expressar-se. A expressão
corporal, como disciplina, busca trabalhar alunos e alunas de modo a instigar sua
criatividade e sua expressividade corporal. Vamos conhecer a definição de expressão
corporal pela argentina Lola Brikman (1989, p. 23):

A expressão corporal como atividade surgiu na Argentina há


poucos lustros, com a proposta de resguardar a alegria e a natural
espontaneidade do movimento da criança. Até então, apenas se fazia
dança clássica ou moderna e ginástica. Quando se quis enquadrar o

208
novo trabalho, não se encontrou um nome para ele, e foi chamado
então, de expressão corporal. [...] Efetivamente, a expressão
corporal tem um ponto de partida diferente, a expressão corporal é
o cumprimento, por parte do ser humano, de sua possibilidade de
manifestar-se através de seu corpo.

No início do século XX, a preocupação com a expressão corporal tornou-se uma


reação ao mecanicismo do balé clássico e a formas rígidas de encenação. Na pedagogia
da arte, a expressão corporal visa orientar os alunos a encontrar novos caminhos para
explorar sua criatividade, reunindo sensibilização, percepção e a conscientização do
corpo e suas sensações por meio de atividades.

Na infância, a expressão corporal favorece o desenvolvimento da comunicação


coletiva, da interação individual (o indivíduo em relação a si mesmo), a habilidade de
comunicação, o estímulo do conhecimento de técnicas corporais diversas e atenção.
Em resumo, a expressão corporal favorece o desenvolvimento motor, cognitivo, sensível,
além do corporal-expressivo do ser humano.

4.1 RUDOLF LABAN – O PRECURSOR DA


EXPRESSÃO CORPORAL
Um dos pesquisadores mais renomados que se dedicou a investigar, criar
e sistematizar um método de ensino, preparação e criação de movimento foi Rudolf
Laban (Eslováquia, 1879 – Reino Unido, 1958). Laban é considerado o maior teórico da
dança do século XX. O trabalho de Laban é inclusive citado como um dos trabalhos a
ser desenvolvido pelos professores de dança da Educação Básica na Base Nacional
Comum Curricular (BNCC). Por isso, acadêmico, este é um nome importante para você
conhecer, explorar e dominar!

Figura 9 – Rudolf Laban

Fonte: https://bit.ly/3MuilSN. Acesso em: 13 set. 2022.

209
Laban preocupou-se com as técnicas que enrijeciam o bailarino, sem deixá-lo
criar e explorar as possibilidades de seu próprio corpo. Assim, dedicou-se a desenvolver
formas livres de criação de movimento que partem de tarefas e de ações, propondo ao
bailarino propostas para que ele ou ela crie a partir de improvisações.

Laban foi bailarino, professor e coreógrafo. Sua formação partiu de uma


mescla de experiências de vida, uma vez que era um grande observador do movimento
humano. Aos poucos, passou também a desenhar o corpo em movimento. Laban
buscou desenvolver uma dança universal. Como seu pai era militar, Laban viajou para
vários lugares do mundo, o que favoreceu a observação de diferentes manifestações de
dança, como africanas, indígenas e folclóricas diversas.

Em 1899, recebeu treinamento militar e percebeu o quanto os movimentos


repetitivos e treinados para unificar o conjunto em paradas militares e na vida industrial
tornava o movimento mecânico, sem espontaneidade, expressão e criatividade.

Com base em suas observações e estudos, Laban criou a Análise de


Movimento ou Sistema Laban de Movimento. O sistema Laban foi criado com o
objetivo de “[...] delineamento de uma linguagem apropriada ao movimento corporal
com aplicações teóricas, coreográficas, educativas e terapêuticas'” (FERNANDES,
2002, p. 25). Após a Segunda Guerra Mundial, muitos de seus alunos migraram para
países e continuaram seus estudos. Deles, surgiram ramificações importantes, como a
Labanotação (labanotation) e a Labanálise (labanalysis). A labanotação tem o objetivo
de registrar uma coreografia por meio de códigos que representam o movimento de
modo que, ainda que a ideia de movimento seja mantida, ainda há como a bailarina ou
o bailarino o interpretarem de forma singular. Veja um exemplo de labanotação a seguir.

Figura 10 – Exemplo de notação Laban: descrição do corpo

Fonte: Fernandes (2002, p. 29)

210
Irmgard Bartenieff (1900-1982) foi uma das alunas de Laban que desenvolveu,
nos Estados Unidos, os Fundamentos Corporais Bartenieff e os incluiu no Sistema Laban.
O Sistema Laban-Bartenieff é uma formação teórico-prática que concede um Certifica-
do de Analista de Movimento (CMA) reconhecido internacionalmente. Existem centros de
formação no sistema Laban/Bartenieff nos Estados Unidos e no Reino Unido.

O treinamento implica o aprofundamento do estudo de movimento, iniciado por La-


ban, dentro do que hoje se entende por Laban Movement Analysis (LMA) ou Análise Laban de
Movimento. No Brasil, alguns profissionais possuem essa formação, tais como: Ciane Fernan-
des, Regina Miranda, Marta Soares, Henrique Schueller, Flávia Pilla Valle, dentre outros.

A Análise Laban de Movimento é utilizada como forma de descrição e de registro


de movimento cênico ou cotidiano, como um método de treinamento corporal, composição
coreográfica ou de cena em teatro, como pesquisa cênica ou como terapia pelo movimento.

4.2 O SISTEMA DE MOVIMENTO LABAN


Ao observar os movimentos, Laban percebeu que eles sempre acontecem em
dinâmicas ligadas a quatro elementos/fatores fundamentais, os quais, combinando
suas qualidades, geram diferentes tipos de vocabulários corporais. O elemento esforço é
o que dá conteúdo e forma ao movimento. Para reforçar a ideia de que não há hierarquia
entre conteúdo e forma, Laban propôs a escrita effort/shape ou conteúdo/forma. De
modo a sistematizar e descrever os movimentos, Laban criou fatores de movimento
para descrever a forma, o “como” um movimento é realizado. Os fatores de movimento
são: espaço, peso, tempo e fluência. Combinados ao elemento esforço, esses quatro
fatores podem se expressar por meio de inúmeras variações. Observe o Quadro 1:

Quadro 1 – Fatores de movimento

Fonte: adaptado de Laban (1978, p. 126)

211
Vamos compreender, agora, como Laban descreveu seus fundamentos.
Acompanhe os próximos parágrafos!

O elemento esforço evidencia que o movimento não acontece somente quando


é visível, mas sim que parte de dentro do corpo e o antecede. É uma preparação ao
movimento, um pré-movimento que tem sensações e emoções, preparações e direções
que se expressam e o tornam visível ao serem realizadas.

O fator fluência diz respeito ao controle do movimento em diferentes partes


do corpo. É a energia muscular utilizada para dar dinâmica ao movimento, seja ela uma
dinâmica livre ou controlada. Ele é o primeiro fator a manifestar-se no ser humano. A
fluência manifesta-se na ligação entre movimentos para interrompê-los ou conectá-los.

O fator espaço é o segundo a manifestar-se no desenvolvimento humano. O


espaço pode manifestar-se com o foco direto ou flexível. A tarefa do elemento espaço é
a comunicação consigo e com os outros, enquanto a atitude relacionada ao espaço é a
atenção que altera o foco do movimento.

O fator peso é o terceiro a surgir no desenvolvimento humano e refere-se à


verticalidade (ficar em pé). Possui as qualidades: leve e firme, e tem relação com a gravidade
e a como o corpo está resistindo a ela. Assim, o fator peso pode ser firme ou leve. A atitude
relacionada ao peso é a intenção que afeta a sensação e a percepção do movimento.

O fator tempo é o último a surgir no movimento humano. Possui as qualidades


súbita (rápida) e/ou sustentada (lenta). Sua tarefa é a operacionalidade, enquanto a
atitude refere-se à decisão, de modo a afetar a intuição e a execução do movimento.
Salienta-se que o tempo pode ser métrico e não métrico, pois cada pessoa pode interagir
com o tempo conforme queira, ou, no métrico, adequar o tempo à música.

De acordo com Laban (1978, p. 49, grifo nosso), o movimento é regido por leis
físicas ligadas à produção de energia e a sua transformação em movimento:

O peso do corpo segue a lei da gravidade. O esqueleto do corpo


pode ser comparado a um sistema de alavancas que faz com que
se alcancem, no espaço, as distâncias e se sigam as direções. Estas
alavancas são acionadas pelos nervos e músculos que providenciam
a força necessária para superarmos o peso das partes do corpo que se
movem. A fluência do movimento é controlada por centros nervosos
que reagem aos estímulos internos e externos. Os movimentos
se processam durante algum tempo, e podem ser medidos com
exatidão. A força propulsora do movimento é a energia desenvolvida
por um processo de combustão no interior dos órgãos corporais. O
combustível consumido nesse processo é o alimento.

212
Os fatores de movimento variam também de acordo com o elemento esforço,
dependendo da quantidade de energia empregada para realizar. O esforço realiza-
se em certo tempo, e, em dado espaço, o movimento. De acordo com Laban (1978),
o esforço parte de um movimento invisível dentro do corpo, até tornar-se visível e
adquirir as qualidades de movimento. É uma organização interna que prepara o
movimento e o antecede.

Além disso, a partir do elemento esforço e dos fatores de movimento, Laban


propôs a ideia de ação corporal partindo de oito ações básicas, também conhecidas
como oito dinâmicas de movimento. Dessas oito ações básicas, nascem as ações
derivadas. As ações básicas são: deslizar, flutuar, pontuar, sacudir, pressionar, torcer,
socar e chicotear. Exemplos de ações derivadas são: empurrar, chutar e cutucar, as
quais são derivadas da ação básica socar. O soco é uma ação forte e direta (combinação
de peso e espaço). No próximo subtópico, teremos vários exemplos de aplicação de
atividades utilizando as ações corporais básicas no Ensino Básico.

Por fim, uma ideia importante desenvolvida por Laban foi a corêutica, que
consiste na organização espacial com base no corpo da bailarina ou do bailarino e seu
deslocamento no espaço. Devido a isso, a corêutica não pode ser aplicada em separado
da eucinética, pois o deslocamento no espaço e suas dinâmicas compõem a realidade.

Como Laban representava o movimento por meio de desenhos, ele criou a


cinesfera ou icosaedro (a esfera de movimento) para representar o espaço corporal em
movimento e suas possíveis direções.

Figura 11 – Icosaedro

Fonte: Fernandes (2002, p. 194)

213
O emprego do sistema Laban em sala de aula permite um desenvolvimento da
dança de modo mais criativo. Em sua teoria e prática, Laban evidenciou a premissa de
que aprendemos tudo a partir da experiência do corpo. Por conta disso, sua utilização
como processos formativos é incentivada nas escolas.

Os estudos de Laban são vastos e complexos, porém é possível aplicá-los


seguindo uma organização de estudos e um planejamento de aulas. Quanto a isso,
esperamos colaborar com você a partir de algumas propostas que serão apresentadas
nas páginas seguintes.

DICA
Assista ao documentário sobre Rudolf Laban, em português, no YouTube:
Disponível em: https://bit.ly/3TkGhKv.

214
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:

• A história da dança no Ocidente partindo de uma exposição sobre o que é a história


cultural e seu papel para refletirmos as fontes e a importância de as analisarmos com
base em uma avaliação contextua.

• Do período pré-histórico à Idade Contemporânea e compreendeu que o contexto


histórico e social interfere no modo como as pessoas compreendem o corpo e, por
consequência, desenvolvem abordagens técnicas e criativas a partir dele.

• A linguagem corporal e conheceu a Escola Vianna e seu aspecto pioneiro na criação


de uma técnica somática brasileira capaz de criar espetáculos e formar artistas da
cena. A Escola Vianna é referência mundial e possui uma sede no Rio de Janeiro
responsável por formar artistas e pedagogos das artes cênicas em cursos livres, de
graduação e de pós-graduação.

• O exemplo do Sistema Laban/Bartenieff como uma abordagem somática muito


utilizada como formação de artistas com ênfase na expressão corporal. Seu trabalho
de descrição dos movimentos a partir dos fatores peso, tempo, espaço e fluência,
unidos ao elemento esforço, resulta na exploração de ações básicas e derivadas, as
quais possibilitam a formação corporal orgânica, sem uma estética rígida, mas, por
outro lado, apta aos jogos de improvisação.

215
AUTOATIVIDADE
1 A dança passou por muitos períodos diferentes durante a história. Cada época
terminou por constituir formas dinâmicas próprias por meio de seus dançarinos.
Dentre as várias épocas, cabe mencionar que a era medieval é também responsável
por uma personificação própria do corpo com a dança. Nesse sentido, pensando na
dança medieval, assinale a alternativa CORRETA.

a) ( ) A igreja católica foi a principal responsável pela criação das danças medievais,
usando da religião como uma espiritualidade do corpo.
b) ( ) A Basse Danse foi uma dança criada pelos camponeses e se caracterizava pelo
seu aspecto circular.
c) ( ) Uma forma de dança popular medieval foi a dança dos ovos em que os dançarinos
tinham que dançar perto de ovos evitando estourá-los.
d) ( ) A Hemíola é um tipo de dança criada pela corte da Borgonha em que se dança
obedecendo um compasso ternário.

2 De acordo com Bourcier (2006), a Idade Média significou uma ruptura brutal da dança
como ritual e como educação. A dança deixou de ser uma prática espiritual para
tornar-se uma prática profana. Segundo o autor, as mudanças na dança têm relação
com o modo como a humanidade compreende o corpo em relação a sua vida cotidiana
e ao mundo a sua volta. Sobre a principal mudança relacionada à compreensão do
corpo no contexto da Idade Média, assinale a alternativa CORRETA.

Fonte: BOURCIER, P. História da dança no ocidente.


São Paulo: Martins Fontes, 2006.

a) ( ) A conquista de poder da Igreja Católica, que passou a ver o corpo como fonte de
pecado e de tentação.
b) ( ) As práticas pagãs, que passaram a compreender o corpo como meio espiritual
de ritualização.
c) ( ) Ao dominar a agricultura, a humanidade passou a compreender o corpo como
ponte para a fertilidade.
d) ( ) O homem não necessitou mais caçar para sobreviver; por isso, o corpo deixou de
ser ligado ao sentido de sobrevivência.

216
3 A Idade Contemporânea foi marcada por movimentos que buscaram maior liberdade
e domínio da criação artística por parte dos intérpretes, tanto no teatro quanto na
dança. A Judson Church foi um local que reuniu artistas que inovaram na dança,
inspirados nos Happenings e no advento da performance art. Todos os artistas
criadores da Judson Church foram responsáveis por importantes inovações e alguns
até criaram novas estéticas e conceitos em composição cênica. Entre eles, destaca-
se o Contato Improvisação, uma técnica que utiliza a distribuição do peso dos corpos
dos intérpretes para criarem movimentos que desafiam a gravidade e exploram a
percepção por meio da educação somática. Sobre a criadora ou o criador do Contato
Improvisação, assinale a alternativa CORRETA.

a) ( ) Trisha Brown.
b) ( ) Steve Paxton.
c) ( ) Yvonne Rainer.
d) ( ) Merce Cunningham.

4 A dança expressa as mudanças sociais de uma época. Foi assim que, nos anos 1960,
a busca por liberdade inspirou artistas a desenvolverem novas formas de expressão
artística. O grupo reunia-se para realizar cursos com Robert Dunn na Judson
Church e assim ficaram conhecidos como o grupo da Judson Church. Explique qual
movimento o grupo inaugurou e suas principais características.

5 A Escola Vianna foi pioneira no Brasil na criação de uma técnica somática para
formação de artistas das artes cênicas. Explique quais as características que a
tornaram pioneira nessa área.

217
218
UNIDADE 3 TÓPICO 2 -
O CORPO E O JOGO NA CRIAÇÃO

1 INTRODUÇÃO
Neste tópico, você vai descobrir que as artes cênicas foram pioneiras na
utilização de jogos como uma forma lúdica de ensino.

Você vai ver, também, a importância dos jogos como processo formativo na
Educação Básica, inclusive incentivados como estratégia educativa nas Bases Nacionais
Comuns Curriculares (BNCC).

2 O QUE É O JOGO
Acadêmico, agora você vai conhecer algumas aplicações da expressão corporal
em sala de aula e em processos de composição, com base na ideia de jogo e de sua
aplicação nas artes da cena.

Embora a ideia de jogo tenha ganhado espaço na mídia a partir da proposta de


gamificação do conhecimento, as artes cênicas, há muito tempo, já aplicam os jogos
como forma de aprendizado por meio da ludicidade.

Porém, antes de falarmos das artes cênicas, vamos começar pensando na palavra
“jogo” e seu significado. Para compreender a palavra “jogo”, buscamos concepções
filosóficas para delimitar seu sentido ou noção para, então, aplicá-la pedagogicamente.
Veja você, acadêmico, em inglês, a palavra play pode ser usada tanto para brincar quanto
para jogar. Em diferentes línguas, percebemos concepções diferentes e isso implica o
modo como a cultura percebe e entende o jogo dentro de sua estrutura social, contudo,
no Brasil, será que jogo e brincadeira são a mesma coisa?

Para o filósofo Johan Huizinga (1990), que se debruçou sobre a relação da


humanidade com o ato de jogar, o jogo corresponde a uma das noções mais primitivas
e enraizadas da realidade humana e é anterior à própria cultura, uma vez que ela se
originou a partir do jogo que, segundo ele “é uma atividade que se processa dentro
de certos limites temporais e espaciais, segundo uma determinada ordem e um dado
número de regras livremente aceitas, e fora da esfera da necessidade ou da utilidade
material” (HUIZINGA, 1990, p. 147).

Ao refletir sobre o sentido da palavra “jogo” em diferentes culturas, Huizinga


(2007, p. 33) aponta que:

219
Ao falarmos do jogo como algo que todos conhecem e ao procurarmos
analisar ou definir a ideia que essa palavra exprime, precisamos ter
sempre presente que essa noção é definida e talvez até limitada
pela palavra que usamos para exprimi-la. Nem a palavra nem a
noção tiveram origem num pensamento lógico ou científico, e sim
na linguagem criadora, isto é, em inúmeras línguas, pois esse ato de
“concepção” foi efetuado por mais do que uma vez. Não seria lícito
esperar que cada uma das diferentes línguas encontrasse a mesma
ideia e a mesma palavra ao tentar dar expressão à noção de jogo, à
semelhança do que se passa com as noções de “pé” ou “mão”, para as
quais cada língua tem uma palavra bem definida.

Diferentes jogos e brincadeiras da cultura brasileira compartilham a língua,


cantigas, regras e visões de mundo que ensinam às crianças relações com a cultura e
com a sociedade. A pesquisadora Ana Carolina Klacewicz (2022, p. 84) aponta que:

A etimologia de “jogo”, do latim, significa “aquilo que incita o riso”,


piada, brincadeira, passatempo e da mesma origem surgiu o vocábulo
“jocoso”. Jogo também é a palavra usada para a ação recreativa com
finalidade de entretenimento e diversão, mas também a objetos, tais
como cartas, tabuleiros, dados, aos aparatos necessários para jogar
algo específico. Jogos podem remeter à competição, mas também
à sorte e ao azar. Em nossa língua são diversas as expressões que
combinam o termo com outros para dar ideia de composição ou
associação, tais como “jogo de ideias”, “jogo de panelas”. Ainda há
as que criam a atmosfera de tensão, como “colocar em jogo”, a qual
produz a ideia de que algo está sendo posto em risco.

Compreendendo que a palavra “jogo” assume diferentes compreensões


socioculturais, é preciso apropriar-nos do seu significado em nossa cultura e em nossa
área de atuação: as artes cênicas. Vamos pensar na palavra “jogo” em nosso contexto.
De acordo com Andrade e Godoy (2018), o jogo possui regras e objetivos delimitados,
enquanto a brincadeira possui um sentido em si mesma. Para Juul (2019, p. 45), um jogo
é “um sistema baseado em regras com um resultado quantificável e variável, no qual a
diferentes resultados são designados diferentes valores, o jogador exerce esforço para
influenciar o resultado, o jogador se sente emocionalmente conectado ao resultado e as
consequências da atividade são negociáveis”.

Para o autor, as regras do jogo devem ser simples; por outro lado, não podem
ser de simples execução. As regras devem oferecer um desafio, um estímulo, uma vez
que são elas que:

[...] oferecem ao jogador desafios que ele não pode superar facilmen-
te. É um paradoxo básico dos jogos que, ao mesmo tempo que as
próprias regras são definidas, inequívocas e fáceis de entender, o
prazer de um jogo depende de essas regras fáceis de aplicar apre-
sentarem desafios que não podem ser facilmente superados (JUUL,
2019, p. 17).

220
No que se refere à dança, a professora Teodora Alves (2019, p. 232), da
Universidade do Rio Grande do Norte, explica que jogo e brincadeira são importantes
estratégias educativas:

[...] podemos pensar que, sobretudo para criança, o jogo é a base do


prazer de dançar, pois quando não está presente, tudo parece mais
monótono, sem sentido, feito por obrigação. Por isso, evidenciamos
aqui a necessidade de nossos estudantes de Licenciatura em
Dança refletirem a todo momento sobre a base do ensino ter como
metodologia a ludicidade, o prazer de se fazer algo não apenas pelo
fato de estarmos ensinando, mas sobretudo, em função do sentido
que está tendo para quem vivencia a dança.

Tanto na dança quanto no teatro, o jogo é utilizado como processo artístico


e pedagógico. No teatro, há a concepção de jogos dramáticos que buscam criar
e desenvolver dinâmicas cênicas. Oliveira (2020) define a ideia de jogo teatral como
aquele em que atores jogam em frente a uma plateia. Já o jogo dramático é aquele
desenvolvido para criar a peça que irá ser encenada para a plateia; é um jogo que levará
a uma criação.

O jogo, nas artes cênicas, envolve a participação de artistas, atrizes, bailarinos,


performers, diretoras(es) para que cumpram as regras, ou tarefas, a fim de buscar novos
movimentos ou dinâmicas de cena.

Na dança, utilizamos os jogos como forma de estímulos para a improvisação,


buscando, por meio da experimentação, a criação de movimentos inusitados e
espontâneos. A improvisação em dança utiliza dinâmicas que se assemelham a jogos
tanto para crianças quanto para adultos. As regras equivalem às tarefas de composição
delineadas, por exemplo, o caminho a percorrer, como percorrer, qual ação desenvolver,
qual a temática corporal, qualidades de movimento a explorar ou, ainda, pequenas
sequências ou roteiros (OLIVEIRA, 2020), no entanto, todas essas regras ou tarefas
buscam sempre que intérpretes explorem novas possibilidades e as ampliem a partir
das propostas estabelecidas, pois o objetivo não deve ser limitar a criação por conta de
regras e limites, mas, sim, expandir.

Rengel (2007) explica que a utilização de jogos nas artes cênicas na formação
educativa das crianças tem a função não só de desenvolver aspectos socioculturais,
mas também de estabelecer noções de geometria, matemática e física, com base em
relações do corpo com o espaço, com a gravidade e com o tempo. Da mesma forma,
concepções nessas disciplinas também favorecem o desenvolvimento na arte. Assim, o
diálogo interdisciplinar “[...] colaboraria para atender o corpo, que já une, sozinho, teoria
e prática. A teoria se faz em prática e a prática formata a teoria, pois elas estão, juntas,
agindo nos textos do corpo” (RENGEL, 2007, p. 4).

221
Assim, Oliveira (2020, p. 18) propõe a definição de dança-jogo como:

[...] aquela que surge a partir da relação entre os jogos propostos em


sala de aula e que impulsiona nos alunos modos de improvisação
e criação em dança, que movimentam o corpo a partir da proposta
de uma aula divertida, significativa e consistente. Nesse processo,
é importante perceber que a dança-jogo desperta a ação nos
movimentos e em suas nuanças.

DICA
O livro Jogos teatrais na sala de aula, de Viola Spolin (1982), é um manual
riquíssimo para professores e professoras que queiram dar seus primeiros
passos na arte de ensinar por meio de jogos. No apêndice do livro, você pode
conferir exemplos de jogos e o passo a passo para aplicá-los em aula.

Para aguçar a sua curiosidade, vamos apresentar algumas dicas importantes de


Spolin (1982) ditadas no livro. Para a autora, o jogo é composto por quatro elementos
principais: objetivo, foco, instrução e avaliação.

O objetivo do jogo deve ser claro e atingível. O foco não é o objetivo do jogo. É
um elemento necessário para que o objetivo seja atingido. É preciso permanecer com
foco para jogar e transformar a forma em um evento teatral, pois “[...] o esforço em
permanecer em foco e a incerteza sobre o resultado diminui preconceitos, cria apoio
mútuo e gera envolvimento orgânico no jogo.” (SPOLIN, 1982, p. 32).

A instrução é um enunciado para manter jogadores e jogadoras com foco. Deve


gerar atenção, interação, movimento e transformação.

Por fim, a avaliação é a finalização do jogo em que todos discutem o que foi
realizado. Spolin (1982) alerta para que não seja uma avaliação crítica, com julgamentos
de qualquer ordem. O importante é que cada um reflita sobre se o objetivo proposto foi
atingido da melhor forma.

As colocações de Spolin (1982) são, também, de ordem emocional. É muito


importante que você, ao instruir seus alunos e alunas, tenha atenção voltada para a
organização dos grupos, para as instruções e para a forma de avaliação. Isso porque,
ao organizar alunos e alunas em grupos, é preciso evitar a exclusão e a formação deles
na turma.

Spolin (1982) alerta que esse é um momento de insegurança e de ansiedade,


visto que há constrangimento pela possibilidade de um aluno ou uma aluna não ser
acolhido por nenhum membro do grupo.

222
Para evitar isso, Spolin (1982) sugere uma dinâmica em que, por exemplo, uma
turma de 30 seja dividida em cinco pequenos grupos, da seguinte forma: todos sentados
em suas cadeiras vão contando de um a seis. Todos que disseram um ficam juntos, os
que disseram dois ficam juntos e assim sucessivamente. Outra dica importante para
manter o clima tranquilo entre participantes é que você nunca chame a atenção dos
jogadores pelo nome, e sim que incentive o grupo a ajudar alguém que esteja com
dificuldade, de modo a integrar todos e todas.

Compreendemos, então, que o jogo é uma palavra ligada à ideia de ludicidade,


a qual permite o estabelecimento de algumas regras e que empreende relações
socioculturais. Por meio da utilização dos elementos foco, objetivo, instrução e
avaliação, é possível favorecer o aprendizado social, cultural e artístico a partir da
experiência do corpo. Nas artes, o jogo funciona tanto para propor dinâmicas em cena
quanto para formação corporal com a exploração de novas propostas de encenação
pela experimentação. Com base nisso, vamos, agora, entender como se dá o ensino de
arte pelo jogo do corpo.

2.1 ENSINO DE ARTE PELO JOGO DO CORPO


Neste subtópico, você vai compreender a importância do ensino da arte para a
compreensão do mundo a partir da experiência do corpo e o quanto o jogo é decisivo
nesse processo.

Primeiramente, é preciso compreender que o processo educativo das artes


cênicas não acontece somente no âmbito escolar, na academia e nos diversos cursos
livres ou projetos sociais em que são ensinadas.

O processo educativo do teatro e da dança também acontece nas relações


estabelecidas entre todos os profissionais da área envolvidos no cenário social,
desde que seja realizada como uma prática reflexiva que estabeleça relações de
conhecimento por meio das artes cênicas, e não somente contato por meio das artes
cênicas (PORPINO, 2018).

Pensando nos diferentes espaços educacionais a partir de Gadotti (2005),


pode-se considerar a educação formal como aquela com objetivos claros e específicos
centrada em diretrizes curriculares. Já os processos educacionais não formais podem
ser compreendidos como aqueles menos burocráticos e hierárquicos, sem uma diretriz
curricular fixa e de duração variável.

Relacionando essa proposta para a dança, o ensino formal da dança dá-se no


âmbito da educação básica, nos cursos técnicos e na universidade, enquanto o ensino
não formal da dança acontece fora desse espaço, como no espaço cênico, em projetos
sociais, cursos livres, academias, práticas culturais e artísticas:

Dançar é expressar-se, é sentir-se enquanto corpo, é poder brincar


223
com os movimentos e interligá-los, fragmentá-los, relacioná-los
com as variações de tempo e espaço, é poder construir significado a
partir do meu próprio corpo e do corpo do outro, é perceber-se sendo
artista. E quando esse universo é construído com e para crianças,
ele se torna ainda mais propenso à criatividade, ao jogo, ao prazer de
dançar (ALVES, 2019, p. 231).

A dança e o teatro são processos educativos, mesmo no ensino não formal. Neste
subtópico, vamos dar atenção ao ensino das artes cênicas em ambos os ambientes. No
que se refere à dança, segundo Alves (2019) podemos compreender que ela evidencia
a sensação de ser corpo por meio de brincadeiras, ao mover e construir relações com o
mundo, com o próprio corpo e com o corpo dos outros.

No entanto, não só as crianças aprendem com os jogos; ainda que jogar seja
considerada uma ação supérflua para o adulto, mesmo assim ele pode ter prazer ao jogar
e sentir a necessidade a partir daí (HUIZINGA, 2007). Portanto, promover conhecimento
pelos jogos corporais com as crianças e com os adultos é desenvolver um processo
educativo que pode ser estabelecido em qualquer espaço, não só no âmbito escolar
(OLIVEIRA, 2020).

Então, de que forma podemos estabelecer uma prática reflexiva para promover
conhecimento por meio do jogo do corpo? Como fazer o indivíduo perceber e refletir
sobre o mundo a sua volta por meio da dança ou do teatro? De que forma o corpo
aprende a técnica e a torna arte?

Mônica Dantas é uma bailarina pesquisadora que publicou muito sobre o corpo
e sua relação com a dança. Baseada na filosofia de Pareyson (1993), Dantas (2020)
estabelece relações entre a teoria da formatividade e a composição coreográfica. A
formação de quem dança ou atua pressupõe um preparo corporal; o período de dar
forma à arte que se realiza no corpo:

A atividade artística pressupõe um formar preocupado especifica-


mente com … o próprio formar. Formar, em arte, é fazer, inventando,
concomitantemente, o modo de fazer; é realizar – procedendo por
ensaio, por tentativa e erro – um processo de produção que é, ao
mesmo tempo e indissoluvelmente, invenção que resulta em obras
que são formas. Portanto o resultado de um processo de formar, em
arte, tem como finalidade a própria forma, a qual não apresenta, ne-
cessariamente, fins utilitários e tudo o que puder ser lido, interpre-
tado, dito ou pensado sobre ela decorre da sua especificidade como
forma (DANTAS, 2020, p. 27).

Assim, entende-se que a utilidade da arte é ela mesma; no entanto, como já


vimos, formar o corpo em arte tem a utilidade de fazer o indivíduo estabelecer relações
com ele, com os outros e com o mundo a sua volta. Se a formação artística pressupõe
a formação em novas habilidades, pressupõe, então, o preparo corporal a partir do
treinamento em uma ou mais técnicas. A etimologia da palavra técnica vem do grego
techné, que significa ofício, habilidade, arte:

224
Um dos objetivos das técnicas de dança é tornar natural o movimento:
um movimento que não é inato, mas motivado e construído torna-
se aparentemente natural e de fácil execução para o bailarino (ou
ao menos aparentemente). Esse movimento passa a pertencer
a seu repertório, a fazer parte do seu modo de ser corpo. Mais do
que disfarçar o esforço, é necessário incorporá-lo e torná-lo dança
(DANTAS, 2020, p. 37).

Assim também explicou Laban (1978, p. 26) ao dizer que “[a] grande economia
de esforço que caracteriza a habilidade é comum ao artesão e ao virtuose. Quanto maior
a economia de esforço, menos aparente é a fadiga”, no entanto, a técnica não deve
limitar o artista a ela; não deve impor limites. É nesse momento que o jogo surge como
um ativador da criatividade.

Com base no que vimos de jogo, formar o corpo em uma técnica por meio de
jogos pressupõe ludicidade e o estabelecimento de regras, porém sem a imposição de
limites. Em dança, a utilização de jogos está ligada à ideia de improvisação:

A improvisação é como um jogo cuja regra principal é estar sensível às


propostas que estão surgindo. Há na improvisação uma predisposição
para atuar de acordo com o movimento: o improvisador está pronto
para transformar toda circunstância em ocasião, todo acidente em
possibilidade e se dispõe a explorar constantemente a memória à
procura de soluções criadas pelo jogo. Sendo assim, não se improvisa
a partir do nada: toda pessoa possui um repertório de impressões
sensitivas diversificadas no âmbito das sensações acústicas, visuais,
táteis, cinesiológicas, de olfato, de paladar, de equilíbrio. [...] A
improvisação em dança está relacionada, não só, mas principalmente,
com toda a bagagem de movimento das pessoas. A partir de
determinado tema, motivação ou situação pode ocorrer a utilização
momentânea e espontânea, experimental e livre, de movimentos,
gestos, atitudes, comportamentos já conhecidos, de um modo
diferente, inédito e até mesmo inusitado (DANTAS, 2020, p. 94).

Cabe à professora ou ao diretor guiar e estimular a improvisação por meio de


estímulos, propostas e a criação das regras. Um grande aporte que serve de apoio a
essa tarefa é o Sistema Laban, por ser ele um gerador de propostas livres que servem
de mote para a experimentação tanto de bailarinos quanto de atores. Vamos ver de
que modo utilizar o sistema Laban como jogos de estímulo à criação e à improvisação.
De acordo com Laban (1978), para compreender os princípios básicos do movimento
humano é preciso responder às questões a seguir.

• O que se move: todo o corpo, ou qual parte, como uma só unidade, como se organiza
e quais formas assumidas durante o movimento?
• Como se move: qual a qualidade de movimento, quais as dinâmicas, os esforços que
expressam as nossas sensações?
• Onde se move: qual espaço ocupa, o que está imediatamente ao redor do corpo
(espaço parcial) e qual lugar em que se move?
• Com quem se move: qual o relacionamento, com quais pessoas estabelecemos
contato e/ou ligações?
225
Além dos princípios de movimento descritos, os movimentos também seguem
dimensões que são a vertical (a linha da coluna vertebral), horizontal (pelo centro do
corpo, à direita ou à esquerda) e sagital (pelo centro do corpo, para frente ou para trás).
Tem-se, então, seis direções de movimento: em cima, em frente, à direita, embaixo,
atrás e à esquerda. Laban postulou, também, que existem quatro fatores comuns a todo
movimento: o fator fluência, o fator espaço, o fator tempo e o fator peso. Vimos as ações
básicas propostas por Laban (1978): deslizar, flutuar, pontuar, sacudir, pressionar, torcer,
socar e chicotear.

Utilizando o elemento esforço forte ou fraco, somado aos fatores e às suas


direções, podem-se criar estímulos, como socar forte à frente com ambos os braços,
deslizar o tronco para a esquerda lentamente e depois sacudir os ombros para frente e
para trás. Este é um exemplo muito simples de uma aplicação do Sistema Laban para
estímulo à criação e à experimentação nas artes cênicas; entretanto, existem diversos
relatos de experiência artística e pedagógica utilizando Laban em propostas educacionais.

3 A EDUCAÇÃO BÁSICA E OS JOGOS CORPORAIS


NO PROCESSO CRIATIVO
Vejamos, agora, o que é imprescindível ao ensino da dança pelo jogo do corpo,
a partir da exploração da expressão corporal:

Cada grupo e cada pessoa que descobre sua linguagem corporal


promove seu próprio desenvolvimento – sempre imprevisível. A
observação e o registro que se faça de cada aluno será muito útil
para planejar futuras propostas de trabalho. As propostas podem ser
feitas de suas maneiras: conscientizando-se o motivo: “proponho a
você que faça este trabalho porque sua coluna necessita flexibilizar-
se”; ou sem conscientizar o motivo: proporcionando sugestões que
permitam ao aluno vivenciar ou brincar com seu corpo. O importante
é que o professor tenha a formação e a informação adequada e o
domínio dos recursos que possibilitem ao aluno enriquecer sua
linguagem de movimento. O ponto de partida é observar e deixar
fazer, mas buscando sempre resgatar e fixar todos os movimentos
sadios, não falseados, para cumprir com o treinamento corporal
(BRIKMAN, 1989, p. 82-83, grifo nosso).

Para Brikman (1989), a linguagem corporal é única, ela existe a partir da vivência
de cada pessoa e de toda sua prática corporal. A improvisação é um jogo que busca
a exploração de movimentos em que a intérprete utiliza todo o seu repertório de
movimentos para cumprir a tarefa ou as regras do jogo ditadas pelo guia, mestre ou
coreógrafa ou professora.

Segundo Brikman (1989), o professor deve ter o domínio dos recursos de


improvisação. Dessa forma, sugerimos a você, acadêmico ou acadêmica, que explore as
ações básicas de Laban em diferentes dinâmicas.

226
Registre sua improvisação por vídeo, conforme sugere a autora Lola Brikman
(1989), e prepare-se para deixar seus alunos e alunas explorarem o jogo de improvisação.
À medida que você for dominando diferentes jogos de improvisação em seu próprio
corpo, você terá mais habilidade para guiar seus estudantes ao domínio do próprio
corpo e suas novas possibilidades criativas.

A seguir, vamos conhecer alguns exemplos de experiências que podem servir


para você, acadêmico, em sua futura jornada docente.

O jogo “Cora decide coreografar”, de Ana Carolina Klacewicz (2022), foi elaborado
em sua dissertação de mestrado em artes cênicas, buscando criar um material de uso
pedagógico em aulas de dança e de literatura, uma vez que a pesquisadora é também
professora de português.

Ao longo do trabalho, a professora pesquisadora apresenta personagens para


viabilizar a experimentação cênica e coreográfica por meio de um jogo de composição
coreográfica inspirado na estrutura dos RPGs, os Role Playing Games. O jogo é composto
por cartas com personagens do texto escrito por ela, além de qualidades do movimento,
espaço, tempo e o mapa, que funciona como um tabuleiro. A proposta é um excelente
estímulo para o ensino da dança de forma lúdica, ligando a leitura de capítulos do texto
à proposta. Veja uma das sugestões de uso do jogo para uma atividade proposta por
Klacewicz (2022, p. 117):

Topa brincar com o acaso? Então pegue suas cartas-


movimento, aquelas que usou para aquecer e separe em
duas pilhas. Faça o mesmo com as cartas-espaço. Tu tem
quatro pilhas, certo!? Coloque uma pedrinha sobre cada
uma. Não repita as cores. Agora... a vez do acaso. Sorteie as
outras pedras. Elas determinarão a sequência de movimentos
e o deslocamento. O que fazer com a quinta cor? Crie uma
tarefa: pode ser uma pausa, um movimento improvisado, uma
repetição. Use a criatividade!

DICA
A dissertação de mestrado de Ana Carolina Klacewicz disponibiliza todo o jogo
criado por ela. É um excelente material para uso em sala de aula! Acesse em:
https://bit.ly/3VthLsl.

227
Fonte: https://bit.ly/3VthLsl. Acesso em: 13 ago. 2022.

Outro exemplo da utilização do Sistema Laban para a Educação é o projeto Jogo


Coreográfico, criado em 2002 pela professora Lígia Tourinho, no Rio de Janeiro. Trata-se
de uma proposta divertida que envolve bailarinos e plateia em uma coreografia criada ao
vivo por todos. O trabalho tem como base o grande tema labaniano: função e expressão.

[...] é um jogo de fazer danças com estrutura espacial e regras defini-


das. O Espaço Cênico é delimitado visivelmente: seja por linóleo, crepe
ou fita colorida. [...] Existem três tipos de funções no jogo: Intérpretes,
Coreógrafos e Público. Geralmente os jogadores podem transitar nas
três funções. Ou seja, podem performar, coreografar (propor danças
para serem performadas) ou contemplar as danças que estão acon-
tecendo. Quando o Jogo acontece na sala de aula, os jogadores pas-
sam pelas 3 funções. Quando o Jogo vira performance, geralmente
os artistas jogadores passam pelas 3 funções e o público pode, além
de contemplar as danças, ser convidado somente a coreografar ou a
coreografar e dançar. [...] Cada Jogador Intérprete possui uma parti-
tura coreográfica. Eles estão preparados para imitar uns aos outros a
partir de dinâmicas de coro e corifeu. O Coreógrafo é aquele que pro-
põe verbalmente as danças, ele pode combinar livremente as possi-
bilidades de movimento dos intérpretes. Ele verbaliza os conteúdos,
criando uma estrutura para o surgimento das danças, numa dinâmica
fluida entre a funcionalidade do movimento e sua expressividade. [...]
O movimento é linguagem e as complexidades do conteúdo explorado
durante o Jogo Coreográfico partem da Análise de Movimento Laban/
Bartenieff (TOURINHO, 2020, p. 118).

228
No jogo teatral, por meio da forma de construção da forma estética, a criança
estabelece, com seus pares, uma relação de trabalho em que a fonte de imaginação
criadora – o jogo simbólico – é combinada com a prática e a consciência da regra do
jogo, a qual interfere no exercício artístico coletivo.

O jogo teatral passa, necessariamente, pelo estabelecimento do acordo do


grupo, com regras livremente consentidas entre os parceiros. O jogo teatral é um jogo
de construção com a linguagem artística. Na prática, com o jogo teatral, o jogo de regras
é princípio organizador do grupo de jogadores para a atividade teatral. O trabalho com
a linguagem do teatro desempenha a função de construção de conteúdos pela forma
estética (SPOLIN, 1982).

Esses são alguns exemplos de jogos de composição criados para a sala de aula
e que também podem servir como um jogo cênico. Como estes, existem muitos outros
que podem servir como base ou como fonte de inspiração para que você descubra
outros modos de apropriação.

Caro acadêmico, vamos prosseguir em nossos estudos e compreender como o


jogo pode ser um apoio para a criação no âmbito da educação básica. Para Viola Spolin
(1982), todos nós somos capazes de atuar no palco, seja improvisando, encenando um
texto, dança ou performance, desde que o desejem.

Segundo Spolin (1982), o foco em atingir o objetivo do jogo e as instruções


dadas de modo respeitoso e criativo provocam uma grande energia que gera a
espontaneidade. Spolin (1982) argumenta que nós aprendemos pela experiência,
não há o ensino, e sim o incentivo e a busca pessoal de cada aprendiz em explorar
sua criatividade por meio da improvisação. E os jogos são ferramentas decisivas para
oportunizar a prática da improvisação.

Com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, a dança também


passou a ser parte integrante da formação do aluno da Educação Básica, porém, foi
somente conteúdo obrigatório a partir da Lei nº 13.278 de 2016, que modificou a Lei de
Diretrizes e Bases para a educação brasileira (BRASIL, 1996) inserindo a dança como
uma das linguagens do ensino de Arte. Desde então, novos saberes do corpo passaram a
integrar a formação do professor com a preocupação da formação integral do estudante.
A formação integral refere-se não só ao conteúdo a ser adquirido pelo estudante, mas
também a habilidades sociais e emocionais para o seu desenvolvimento como um todo.
A oferta de cursos em licenciatura em dança e em artes cênicas ampliaram-se no país,
bem como a pesquisa na área a fim de compor e atualizar as propostas para o ensino,
estudo e prática em artes cênicas na Educação Básica.

De acordo com a Bases Nacionais Comuns Curriculares (BNCC), no Ensino


Fundamental é esperado da dança que desenvolva um conjunto de habilidades e de
conhecimentos específicos. A BNCC é um documento de caráter normativo, concebido

229
para servir como referência de organização dos currículos e garantir a equidade na
educação brasileira. Segundo a BNCC, a dança, como uma das linguagens de arte, deve
articular seis dimensões do conhecimento de forma simultânea e indissociável:

[...] criação – o fazer artístico investigativo que confere materialidade


aos sentimentos; crítica – são impressões que impulsionam os
alunos a novas compreensões do espaço em que vivem; estesia
– experiência sensível em relação ao espaço, tempo, som, ação,
imagens, ao próprio corpo e aos diferentes materiais em articulação;
expressão – possibilidade de exteriorizar e manifestar as criações
subjetivas por meio de procedimentos artísticos individuais e
coletivos; fruição – o deleite, prazer e estranhamento, possibilidade
de sensibilizar-se durante a participação em práticas culturais;
reflexão – construir argumentos e ponderações sobre as fruições, as
experiências e processos artísticos e culturais (BRASIL, 2017, p. 194).

São habilidades concernentes à dança as habilidades corporais, socializadoras


e culturais baseadas na consciência da corporeidade do aluno e na relação harmônica
entre o indivíduo e o espaço em que vive (VIEIRA, 2018). A BNCC não estipula quais
danças podem desenvolver as habilidades específicas por meio do trabalho com as
dimensões do conhecimento. São sugeridos jogos de improvisação, atividades, assistir a
espetáculos, bem como criá-los. Dessa forma, você já deve ter percebido a importância
das artes cênicas na escola como forma de as crianças e os estudantes estabelecerem
relações com seu corpo e com o seu contexto de modo crítico e reflexivo.

Na BNCC, a Arte é um componente curricular que se divide nas seguintes


linguagens: artes visuais, dança, música e teatro. A partir da prática com essas linguagens,
é esperado dos estudantes que articulem conhecimentos em torno de manifestações
artísticas e, a partir das práticas de criar, ler, produzir, construir, exteriorizar, refletir
sobre elas. Dessa forma, não só praticando ou assistindo, alunas e alunos participam
também como criadores em Arte e, assim, podem desenvolver o senso crítico sobre a
complexidade do mundo, o respeito às diferenças e ao diálogo intercultural, pluriétnico
e plurilíngue, importantes para o exercício da cidadania. De acordo com a BNCC, a dança
no Ensino Fundamental:

[...] se constitui como prática artística pelo pensamento e


sentimento do corpo, mediante a articulação dos processos
cognitivos e das experiências sensíveis implicados no
movimento dançado. Os processos de investigação e produção
artística da dança centram-se naquilo que ocorre no e pelo
corpo, discutindo e significando relações entre corporeidade
e produção estética. Ao articular os aspectos sensíveis,
epistemológicos e formais do movimento dançado ao seu
próprio contexto, os alunos problematizam e transformam
percepções acerca do corpo e da dança, por meio de arranjos
que permitem novas visões de si e do mundo. Eles têm, assim,
a oportunidade de repensar dualidades e binômios (corpo
versus mente, popular versus erudito, teoria versus prática),
em favor de um conjunto híbrido e dinâmico de práticas
(BRASIL, 2017, p. 193).

230
Portanto, para que o aluno seja capaz de articular os conhecimentos e as
vivências de movimento para criar, é preciso que ele exerça essa competência em
sala de aula e ensaio. E os jogos são ótimas estratégias para desenvolver dinâmicas de
composição. Os jogos são incentivados e citados na BNCC como recursos educacionais
da dança no Ensino Fundamental mediante a distinção entre jogo como conteúdo
específico e jogo como ferramenta educacional:

Não é raro que, no campo educacional, jogos e brincadeiras sejam


inventados com o objetivo de provocar interações sociais específicas
entre seus participantes ou para fixar determinados conhecimentos.
O jogo, nesse sentido, é entendido como meio para se aprender outra
coisa, como no jogo dos “10 passes” quando usado para ensinar
retenção coletiva da posse de bola, concepção não adotada na
organização dos conhecimentos de Educação Física na BNCC. Neste
documento, as brincadeiras e os jogos têm valor em si e precisam ser
organizados para ser estudados. São igualmente relevantes os jogos
e as brincadeiras presentes na memória dos povos indígenas e das
comunidades tradicionais, que trazem consigo formas de conviver,
oportunizando o reconhecimento de seus valores e formas de viver
em diferentes contextos ambientais e socioculturais brasileiros
(BRASIL, 2017, p. 212).

Espera-se da dança, na Educação Básica, que promova experimentação e


apreciação de diferentes formas de dança presentes em diferentes culturas e contextos
de modo a incentivar a percepção, a imaginação e a compreensão da diversidade. Da
mesma forma, espera-se que a dança contribua com a percepção de si a partir de
compreensões do corpo e de suas funções para a elaboração do movimento.

O Sistema de Movimento Laban pode ser utilizado para possibilitar a


experimentação de diferentes formas de orientação no espaço (deslocamentos,
planos, direções, caminhos etc.) e ritmos de movimento (lento, moderado e rápido)
na construção do movimento dançado, assim como a experimentação dos fatores de
movimento (tempo, peso, fluência e espaço) (BRASIL, 2017).

A dança deve, ainda, promover a criação e a improvisação de movimentos de


modo individual, coletivo e colaborativo com base em aspectos estruturais, dinâmicos
e expressivos dos elementos do movimento. Por fim, de acordo com o documento, a
dança deve: “[...] discutir, com respeito e sem preconceito, as experiências pessoais e
coletivas em dança vivenciadas na escola, como fonte para a construção de vocabulários
e repertórios próprios” (BRASIL, 2017, p. 205). Desse modo, acadêmico, as artes cênicas
têm um papel definitivo na Educação brasileira e na formação do cidadão. Cabe aos
futuros professores e professoras a tarefa de utilizar a criatividade e de promover o
conhecimento de modo responsável, mas também lúdico.

231
DICA
O site Pequenices.com apresenta vários materiais gratuitos para utilização
didática. O trabalho é resultado da pesquisa de professores licenciados
em dança e com mestrado em artes cênicas e reúne os conhecimentos
adquiridos ao longo da carreira artística e docente dos artistas. Vale a pena
conferir! Disponível em: https://www.pequenices.com/.

Para encerrar este tópico, seguem alguns exemplos da utilização de dinâmicas


em jogo de dança e teatro para sala de aula no Ensino Básico, ambos com a brincadeira
do pega-pega:

PEGA-PEGA DANÇANTE
Não existe alguém que nunca tenha brincado de pega-pega, né?
E entre todas as suas modalidades – paralítico, corrente, hospital,
mais todas essas outras aí que tu conheces – não poderia faltar uma
dançante! No pega-pega dançante, não vale só correr para fugir ou
pegar, é preciso dançar… E quando eu for pego? Bem, daí tu ficas
impossibilitado de se deslocar pelo espaço e sua movimentação
“trava” num único e repetitivo movimento. Mas eu posso ser
salvo? Sim! Basta alguém conseguir, na sua frente, imitar essa
movimentação por pelo menos três segundos. Tu estás livre para
continuar fugindo! Dica: Para essa brincadeira, é bacana escolher
músicas bem animadas. Varie o pegador/pegadora. Podem ser
inseridas outras tarefas/conteúdos como: só pode pegar saltando;
só pode fugir com giros; todos devem estar no nível baixo; etc. Com
quem precisa ser salvo, também é possível direcionar os movimentos
repetitivos indicando com quais partes do corpo devem ser realizados
(ex.: somente com os braços) ou ainda diferentes qualidades de
movimento (ex.: ondulado) (BOFF, 2017, p. 32).

Jogo teatral câmera lenta/pegar e congelar (SPOLIN, 1982). Observações


importantes sobre o jogo: atente para restringir o espaço de modo que a duração da
atividade não se prolongue demais. Caso o número de participantes seja muito grande,
escolha dois pegadores.

Ao final da atividade, peça que um pegue o outro. Para deixar a atividade ainda
mais atualizada, que tal tirar uma foto do grupo ao final? Será um registro bem divertido
do qual seus alunos e alunas irão dar boas risadas!

Objetivo: explorar movimentos e expressões físicas.


Foco: movimentar-se em câmera lenta.
Descrição: Muitos jogadores (se o tempo permitir metade do grupo é
plateia enquanto a outra metade joga). Depois de um curto período
de aquecimento [...], um jogo de pegador com congelamento é
realizado em câmera muito lenta e dentro dos limites. Aponte para
o 1º pegador. Todos os jogadores devem estar correndo, respirando,
agachando, olhando, rindo etc. em câmera lenta. Quando pegar outro
jogador, o pegador deve congelar na posição exata em que estava

232
naquele momento. O novo pegador continua em câmera lenta e
congela naquela posição em que estava ao pegar um novo jogador.
Todos os jogadores devem ficar dentro dos limites e movimentar-se
em câmera lenta entre, ao redor, dos jogadores congelados (como
em torno de árvores, numa floresta). O jogo continua até que todos
estejam congelados (SPOLIN, 1982, p. 66).

Caro acadêmico, neste subtópico você conheceu a importância do jogo para o


aprendizado corporal de crianças e adultos tanto no ensino formal quanto em cursos
livres. Esperamos que você desbrave a internet e que encontre muito material, além
dos que deixamos aqui como referência. Vamos, agora, compreender outras formas de
aprendizado corporal e sua utilização para o ensino e para a criação cênica.

233
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:

• As características dos jogos cênicos tanto para a formação artística quanto para a
composição coreográfica e teatral. Destacamos o pioneirismo das artes cênicas em
utilizar-se da ludicidade dos jogos como estratégia pedagógica e como possibilidade
de ampliação do repertório cênico.

• O jogo possui elementos importantes para tornar seu fim educativo ou criativo, tais
quais objetivo, foco, instruções e avaliação. Sua correta aplicação possibilita que
jogadores se envolvam de tal modo a manterem uma energia capaz de provocar a
espontaneidade em suas soluções criativas.

• Os jogos de improvisação são importantes para a formação corporal e também em


processos criativos de composição e encenação. Abordagens somáticas utilizam-
se de jogos para que bailarinos e bailarinas entrem em contato com a consciência
interna (o interior do corpo) e a externa (a aparência do corpo, sua forma no espaço).
Os jogos de improvisação podem se utilizar de diferentes técnicas somáticas, como
o Sistema Laban, ou a técnica Alexander, e aplicá-las para a criação estética em
diferentes estéticas, por exemplo, a dança contemporânea, o Contato Improvisação,
dentre outras.

• O ensino da arte pelo jogo do corpo propõe a formação de artistas aptos à criação
cênica, libertos de técnicas mecanicistas que restringem sua movimentação, porém,
é importante compreender que mesmo técnicas rígidas, como o balé clássico, podem
ser trabalhadas a partir de uma abordagem somática. Por outro lado, estéticas que
podem ser libertárias, como a dança contemporânea, podem desenvolver corpos
rígidos e inábeis para a improvisação se trabalhadas de forma mecânica, amparada
somente no ensino de passos e de habilidades de repetição, em vez de habilidades
para a criação cênica.

234
AUTOATIVIDADE
1 O jogo é uma importante estratégia de ensino utilizada nas artes cênicas para
desenvolver a espontaneidade e a criatividade para improvisação. Um elemento
importante para tornar o jogo atrativo para a educação do corpo e a compreensão de
relações socioculturais é a ludicidade. Nas artes, o jogo funciona tanto para propor
dinâmicas em cena quanto para a formação corporal por meio da exploração de
novas propostas de encenação pela experimentação. Com base nisso, assinale a
alternativa que aponta CORRETAMENTE os principais elementos do jogo para sua
aplicação educativa nas artes cênicas.

a) ( ) Os elementos são foco, objetivo, instrução e avaliação.


b) ( ) Os elementos são regras, objetivo, instrução e avaliação.
c) ( ) Os elementos são regras, objetivo, instrução e disciplina.
d) ( ) Os elementos são foco, objetivo, instrução e disciplina.

2 De acordo com a BNCC: “Ao articular os aspectos sensíveis, epistemológicos e


formais do movimento dançado ao seu próprio contexto, os alunos problematizam
e transformam percepções acerca do corpo e da dança, por meio de arranjos
que permitem novas visões de si e do mundo. Eles têm, assim, a oportunidade de
repensar dualidades e binômios (corpo versus mente, popular versus erudito, teoria
versus prática), em favor de um conjunto híbrido e dinâmico de práticas” (BRASIL,
2017, p. 193). Assinale a afirmativa CORRETA acerca das dimensões do conhecimento
concernentes às artes cênicas na educação básica.

Fonte: BRASIL. Ministério da Educação. Base


nacional comum curricular. Brasília, DF: MEC, 2017.

a) ( ) Criação – o fazer artístico investigativo que confere subjetividade aos sentimentos.


b) ( ) Fruição – são impressões que impulsionam os alunos a novas compreensões do
espaço em que vivem.
c) ( ) Ludicidade – sensação de alegria e de entusiasmo com relação aos diferentes
materiais em articulação.
d) ( ) Expressão – possibilidade de exteriorizar e manifestar as criações subjetivas por
meio de procedimentos artísticos individuais e coletivos.

3 De acordo com o estudo da educação estética pelo corpo e pelo ensino de dança, reflita
sobre as formas de ensinar que promovem a formação integral do indivíduo, conforme
disposto na BNCC, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas.

Fonte: BRASIL. Ministério da Educação. Base


nacional comum curricular. Brasília, DF: MEC, 2017.

235
( ) Para que uma estética seja educativa, é preciso que ela seja oferecida como uma
prática sensível e lúdica.
( ) Para que uma estética seja educativa, é preciso que ela seja oferecida como uma
prática crítica e lúdica.
( ) Para que uma estética seja educativa, é preciso que ela seja oferecida como uma
prática crítica e reflexiva.
( ) O balé clássico pode ser ensinado como uma prática crítica e reflexiva, a exemplo
do trabalho de Klauss Vianna.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA.


a) ( ) F – F – F – V.
b) ( ) F – F – V – V.
c) ( ) V – F – V – F.
d) ( ) F – V – V – V.

4 Atualmente, a utilização de jogos em processos pedagógicos é uma tendência


mundial; é a ideia da gamificação da experiência de ensino. Muito antes disso, porém,
as artes cênicas já utilizavam os jogos como processos pedagógicos e criativos.
Explique de que forma as artes cênicas utilizam os jogos em seus processos artísticos
e pedagógico.

5 Para formar o corpo em uma técnica por meio de jogos, é preciso atuar com ludicidade
e estabelecer regras, porém sem a imposição de limites. Em dança, a utilização de
jogos está ligada à ideia de improvisação. Explique como a professora ou o professor
pode trabalhar a improvisação com seus alunos e alunas na área da dança.

236
UNIDADE 3 TÓPICO 3 -
EDUCAÇÃO ESTÉTICA PARA CORPO

1 INTRODUÇÃO
Você já se perguntou qual o papel das artes cênicas para a Educação? Como
a educação corporal pode transformar os educandos? Neste subtópico, você vai
compreender a importância do ensino estético a partir da experiência do corpo e como
é importante seu papel para estimular seus alunos e suas alunas nesse caminho.

Para a professora Karenina Porpino (2018), a dança se reflete como educação


estética a partir da filosofia e da dança moderna de Isadora Duncan. De acordo com
Porpino (2018, p. 17), Duncan percebeu que a professora de dança poderia não só ensinar
a dançar mas também ensinar a viver e a desfrutar o mundo de modo sensível com base
na experiência do corpo, não restringindo a dança como educação ao âmbito do ensino
formal, mas compartilhando “[...] o pensamento de Isadora como campo gerador de
reflexões acerca de uma concepção de dança que não se separe da vida e que possa
encontrar na experiência estética bases epistemológicas para repensar a educação.”

2 EDUCAÇÃO ESTÉTICA PELO CORPO


Porpino (2018, p. 19) entende estética “[...] como vivência do sensível e
criação de novos sentidos para a vida”. De modo geral, a estética pode também estar
relacionada à característica artística de uma artista, de um movimento cultural, de
uma época, por exemplo. Para nossos estudos, não vamos escolher uma estética
em detrimento da outra, tomando como base a BNCC, que nos aponta que qualquer
dança pode ser educativa, desde que apresente uma prática crítica e reflexiva. Para
isso, é preciso contextualizar o ensino da prática. Quem são os sujeitos da prática?
Onde praticam? Qual o objetivo? Como a prática corporal ensinada por você pode
colaborar com a vida de seus alunos e suas alunas? Como eles e elas compreenderão
o mundo em torno de si com a prática que você oferece? Quando você tiver certeza
dessas respostas, então você estará transformando seu aluno ou sua aluna a partir da
experiência estética do corpo.

A tarefa de experimentar diferentes estéticas culturais no corpo pode contribuir


com o questionamento em torno de padrões hierárquicos, preconceitos e estereótipos,
favorecendo a compreensão de que existem outros modos de vida, outras culturas e
conhecimentos diversos.

237
Ampliando a experiência sensível do ser humano desde a infância, colaboraremos
com o aprendizado de questões de gênero, raça, empatia, autocuidado dentre outras.
Para além da competência no ato de criação, a sensibilização estética auxilia em
processos de criatividade e crítica. Vamos, então, apropriar-nos de diferentes formas de
fomentar esse desenvolvimento importante?

2.1 EDUCAÇÃO SOMÁTICA


Vamos conhecer a etimologia da palavra somática para compreender qual a
sua especificidade. Em grego, soma refere-se à pessoa viva, ao ser corporal consciente.
Em 1976, o filósofo e teórico do movimento estadunidense Thomas Hanna publicou
um estudo lançando o termo e a concepção do que chamou de educação somática.
Para Hanna (1983, p. 7), educação somática era “[...] a arte e a ciência de um processo
relacional interno entre a consciência, o biológico e o meio-ambiente. Estes três fatores
vistos como um todo agindo em sinergia”.

Dito de outra forma, a educação somática considera o ser humano como um


todo; a experiência do aqui e agora corporal, uma consciência de si, do outro e do
espaço em torno. A educação somática reúne uma série de técnicas de consciência
corporal pelo movimento com fins de formação corporal, terapêutica e de criação
cênica, estimulando o domínio sensorial, afetivo, cognitivo, motor e espiritual. Algumas
técnicas somáticas são as técnicas de Alexander, Feldenkrais, Bartenieff, a Ideokinesis,
o Body-Mind Centering, dentre outras. No Brasil, Klauss Vianna foi um pioneiro no uso
da educação somática em aulas de formação corporal para artistas. Embora utilizasse a
técnica do balé clássico seu trabalho propunha desenvolver as características técnico-
expressivas e criativas a partir da educação somática para o desenvolvimento corporal
do intérprete-criador (VIEIRA, 2015).

Para o professor Marcílio Vieira (2015, p. 127), a educação somática é “[...] um


campo interdisciplinar que se interessa pela consciência do corpo e seu movimento
e que se propõe a uma descoberta pessoal de seus próprios movimentos, de suas
próprias sensações”.

A educação somática busca desenvolver a consciência corporal com base em


uma ativação dos órgãos sensoriais por meio de estímulos internos e externos. Uma
de suas principais ferramentas para isso é o recurso do tato. A partir do estímulo ao
toque de si, do outro e do ambiente, busca-se a exploração da sensibilidade da pele, a
ativação da memória afetiva, a troca energética experimentando textura, temperatura,
sensação, dentre outros atributos.

Para que os alunos busquem uma consciência do corpo maior e maior ativação
sensorial, nas aulas de educação somática não são utilizados espelhos, pois o espelho
projeta a imagem para fora da experiência corporal, sendo que:

238
[...] para a educação somática não se trata de um corpo observado
externamente, ela centra sua ação no corpo vivido e o que importa
é a experiência do corpo, acessível pelo próprio corpo. [...] De um
modo geral, os métodos de educação somática desenvolvem um
trabalho de refinamento da sensação e da percepção do movimento
com o objetivo de aperfeiçoar a consciência do corpo (DANTAS,
2020, p. 129).

Acadêmico, conheça algumas técnicas de educação somática e suas principais


características a seguir.

• Técnica Alexander – criada por Matthias Alexander, na Austrália (1869-1955). Na


iminência de perder a voz, o ator percebeu que poderia curar-se ao trabalhar a sua
postura. Assim, criou um método para transformar maus hábitos posturais com base
em movimentos simples do sentar-levantar-caminhar, sensibilizando a consciência
das reações físicas e mentais ligadas ao eixo cabeça-pescoço-costas.
• Método Feldenkrais – criado pelo ucraniano-israelense Moshe Feldenkrais (1904-1984),
seu método visa a uma melhor integração sensorial, emotiva e intelectual, despertando
a consciência pelo movimento. O método propõe uma ampliação do repertório de
movimentos por meio da exploração e da combinação de ações inesperadas.
• Sistema Laban/Bartenieff – trata-se de um sistema desenvolvido a partir do trabalho
de Rudolf Laban, o qual deu início à disseminação do trabalho de Laban nos Estados
Unidos a partir dos anos 1970. Foi desenvolvido por Irmgard Bartenieff, tendo como
base a ideia de que o movimento é um processo contínuo de transformação,
modulação e variação. O sistema Laban/Bartenieff busca aperfeiçoar as relações do
corpo com o espaço, suas formas possíveis e suas emoções a fim de enfatizar a
interação entre função e expressão (DANTAS, 2020).

A prática da educação somática contribui para a melhora da técnica corporal,


seu refinamento pela conscientização, a prevenção e a cura de traumas a que artistas
do corpo estão expostos e o desenvolvimento da expressão corporal.

Por outro lado, a educação somática não exclui a formação de artistas da cena
em uma técnica específica; ao contrário, conforme Dantas (2020, p. 130) ela é “[...] um
meio de facilitar a aprendizagem e de integrar diferentes experiências vividas pelos
dançarinos”, por atuar no refinamento da propriocepção, facilitando a apreensão de
técnicas e de criação de novas possibilidades motoras.

Dantas aponta que, devido à contribuição ao processo formativo e sensorial


da educação somática ao artista da cena, a educação somática é uma disciplina
importante nos cursos universitários em artes cênicas de todo o mundo, bem como
no âmbito não formal de ensino para aprimoramento de professores e de artistas de
maneira independente.

239
A educação somática trabalha o alinhamento postural negando modelos
impostos e fixos, como a postura do balé clássico, por exemplo. Ela tem base em criações
individuais acerca da postura com base em um refinamento sensorial, percebendo
como o corpo se organiza de modo que a organização respeite os limites de cada corpo
e sua especificidade orgânica:

Na busca por alternativas ao alinhamento corporal clássico, que


se baseia em um modelo estático, a educação somática sugere a
elaboração de padrões de referências dinâmicas – uma compreensão
de que o alinhamento e a postura estão em constante adaptação aos
movimentos e gestos realizados por realizar (DANTAS, 2020, p. 132).

Apesar de tratar e prevenir lesões, a educação somática não está vinculada


ao âmbito médico, pois não faz o diagnóstico nem o prognóstico. Ela está relacionada
à educação do praticante para que busque um modo mais saudável de executar
seu movimento estando atento aos seus hábitos, reeducando seu esforço físico e
organização do movimento, experimentando uma movimentação lenta para um maior
conforto e possibilitando a percepção do movimento.

Na concepção da educação somática, os corpos não podem ser homogêneos.


Se você olhar em uma sala de dança, vai observar diferentes tamanhos, formas, cores.
É a ideia de corpo vivido, uma vez que cada corpo tem uma história, uma microcultura
envolvendo o círculo social, além de suas singularidades.

Como, então, ensinar a todos da mesma forma e esperando atingir o mesmo


objetivo ao mesmo tempo? Assim, a educação somática não quer copiar modelos de
aprendizagem, mas trabalha com parâmetros como a anatomia, os apoios do corpo, os
impulsos para realizar movimentos e a busca pela economia de esforço (você lembra
que Laban nos ensinou que uma melhor realização do movimento no virtuose requer
menor esforço?).

Assim, a educação somática é uma abordagem que, somada a técnicas de


formação corporal, beneficia o praticante para a descoberta de um modo de desenvolver
uma movimentação mais orgânica, não dual (corpo-mente), integrado a partir da
experimentação embasada no estudo do corpo e de sua percepção.

Agora que você compreendeu o que é educação somática e qual a sua


importância para o ensino das artes cênicas, vamos entender o que é a concepção
de corpo orgânico e de que modo podemos buscar essa experiência para o seu
desenvolvimento pedagógico e artístico.

Acadêmico, você viu que a educação somática se preocupa em compreender o


corpo, suas dinâmicas de movimento e percebendo a si mesmo a partir da experiência
do corpo vivido (não o corpo refletido no espelho ou aquele que persegue padrões
homogêneos de treinamento e técnica).

240
Dessa forma, a preocupação das técnicas de educação somática centra-se em
despertar um corpo orgânico e disponível para a criação artística. Por isso, ela é também
utilizada para desenvolver a expressão corporal dos artistas da cena.

Ainda que seu objetivo seja pedagógico, é curioso que a maioria das técnicas
somáticas tenham surgido a partir da necessidade de seus criadores se restabelece-
rem de alguma lesão ou problema de saúde. E isso deve-se ao desenvolvimento de
um sistema orgânico de movimentação corporal, contribuindo com o desenvolvimen-
to da propriocepção:

Podemos ver certas abordagens da educação somática como um


retorno à natureza do corpo. A noção de gestos fundamentais,
a busca de um alinhamento corporal neutro, a utilização de
parâmetros anátomo-funcionais para uma reorganização do corpo
em movimento são alguns aspectos a indicar uma possibilidade de
recurso à natureza do corpo como base para a construção de corpos
dançantes (DANTAS, 2020, p. 131).

Além dessas noções, Dantas (2020) destaca a busca por um alinhamento


corporal que respeite as estruturas e funções musculoesqueléticas, rompendo com os
padrões de corpo impostos pela dança ocidental, sobretudo o padrão balético.

A professora Heloisa Gravina (2017, p. 294, grifos nossos) explica que o corpo da
educação somática oscila entre dois modos de percepção, pois percebe-se internamente
quanto externamente:

Por isso, posso dizer que tenho um corpo ou que sou um corpo. O
que muda é o modo percepção acionado. Pode acontecer, ainda, que
ambos operem simultaneamente e, nesse caso, a diferença entre
‘ter’ e ‘ser’ um corpo é simplesmente uma questão de ênfase.

Assim, você pode perceber que o corpo é primordial na educação somática,


percebendo-o como experiência vivida, a partir da sensibilização de seus recursos
sensoriais, principalmente os táteis, favorecendo a emergência de novas corporeida-
des dançantes.

Por meio de suas técnicas, a educação somática possibilita a volta ao corpo


orgânico, na medida em que concebe o corpo como um elemento vivo, que sente,
sofre, tem prazer e apropria conhecimento de elaboração de um processo imagético
e simbólico combinando seu processo de evolução filogenética e sujeito a leis físico-
químicas (DANTAS, 2020). Une-se, assim, o biológico ao sensível e criativo.

241
3 CORPO ORGÂNICO, ENERGIA E APRENDIZADO
Com base no que você leu anteriormente de expressão corporal e o aprendizado
pelo uso de jogos, é possível perceber que o corpo orgânico que a educação somática
desenvolve não pressupõe um treinamento rígido, nem formas fixas, mas sim a busca
por espontaneidade e do respeito pela fisiologia, história e anatomia de cada corpo,
dentro de seus limites.

Diferentemente dos coreógrafos, os reformadores de


movimento não pensavam na padronização de corpos, nem
tinham uma pré-concepção estética. O desenvolvimento de
suas técnicas, embora tenham surgido da necessidade de
solucionar problemas específicos e mesmo pessoais, tinha
como objetivo exatamente o oposto: resgatar a unidade
e identidade do Ser Humano. Estas técnicas partiam do
princípio de que nenhum Ser Humano é igual ao outro e de
que estas diferenças deveriam ser respeitadas e mantidas
(STRAZZACAPPA, 2009, p. 49).

É importante perceber que a educação somática é uma área de educação


corporal ligada à saúde e à formação cênica tanto de artistas da dança quanto do teatro,
no entanto, nem só a sala de aula ou de ensaio são processos formativos para o artista.
Também a própria coreografia, no caso da dança, ou da peça, no caso de atores ou
atrizes, são processos em que a educação somática pode atuar como formadora de
corpos dançantes. Vamos, na sequência, compreender como se dão processos criativos
como formas pedagógicas de preparar o corpo para a cena.

Vimos que a concepção de corpo mudou muito ao longo do tempo. A cada


mudança de compreensão sobre o corpo, mudaram também os entendimentos acerca
da forma com que esse corpo aprende e apreende experiências técnicas para a formação
artística: do contato com o mecanicismo do balé clássico e a pedagogia do período
moderno até a preocupação com a quebra de padrões no período contemporâneo,
no entanto, é preciso estar alerta ao fato de que, mesmo o balé clássico pode ser
ensinado de uma forma criativa e libertária, e até mesmo em perspectiva somática,
como na técnica de Klauss Vianna, bem como uma estética contemporânea pode ser
trabalhada de forma rígida e mecanicista. Tudo depende da forma com que o trabalho
corporal é desenvolvido pelo professor, instrutora ou coreógrafa. Por isso, é importante
compreender que o objetivo das técnicas e das abordagens somáticas é formar um
corpo orgânico e disponível para criação, entretanto, o que seria um corpo disponível
para criação? Vamos ver a definição a partir da perspectiva de duas pesquisadoras: uma
da dança e outra do teatro.

No que se refere à dança, Mônica Dantas (2020, p. 108, grifo nosso) esclarece o
que é o corpo disponível para criação:

[...] a dança, ao se efetivar em ação formativa, efetiva-se formando


corpos disponíveis para criação. Um corpo disponível para criação
é capaz de assimilar técnicas de movimento e de resgatar, na sua

242
memória, atitudes, posturas e gestos; é capaz de inventar diferentes
modos de se mover – suscitando formas corporais inéditas – e de
estabelecer novas relações com outros corpos. É um corpo que realiza
uma intenção, corporifica ações e sentimentos, vivencia a criação por
meio da lógica do movimento e elabora seus saberes corporais.

Da mesma forma, porém com relação ao teatro, Sônia Azevedo (2001, p. 192,
grifo nosso) define o corpo disponível para a criação teatral:

O corpo disponível é aquele que consegue responder aos nossos


impulsos vitais, que é uno com nossa realidade interna, que tem
mesmo o poder para canalizar ou impedir o livre fluxo de energia para
que o autocontrole possa existir [...]. O corpo disponível é aquele que
permite, que não isola do fluxo dos acontecimentos ao redor de si,
que se envolve com o meio ambiente e com os estímulos vindos, não
só da personagem, mas da relação com o grupo de criação. Corpo
disponível é aquele capaz das respostas espontâneas e novas que
somente a ausência de preconceitos e defesas maiores contra o
mundo podem assegurar.

A partir das definições das autoras, podemos compreender que a pedagogia das
artes cênicas contemporânea se preocupa em formar corpos disponíveis para a criação,
mais do que corpos treinados em uma técnica específica. Essa compreensão favoreceu
a entrada de diferentes correntes de técnicas, latinas, orientais, africanas, técnicas
de meditação, entre muitas outras, contribuindo, assim, com o questionamento sobre
hierarquias e padrões estéticos consolidados. Conforme aponta Azevedo (2001), o ator
pode utilizar-se de técnicas mistas e até opostas para a composição por improvisação,
valendo-se de sua memória emotiva para isso.

3.1 PROCESSOS CRIATIVOS E PEDAGÓGICOS PELO CORPO


Caro acadêmico, neste tópico vamos pensar em modos de ensino a serem
desenvolvidos por você para possibilitar a formação de corpos disponíveis.

Há um grande número de técnicas que favorecem o ensino partindo de


propostas que privilegiem o corpo orgânico, livre de formas rígidas de movimento e dos
limites de criação impostos por modelos estéticos tradicionais ou clássicos.

É preciso, além de tudo, compreender o ser educando e seu soma como um


ser criativo e potente para a criação, porém, é preciso colocar ao seu dispor estímulos
próprios para a experimentação.

Cabe a você experimentar diferentes técnicas e estar aberto ou aberta para


receber com empatia toda tentativa de participação por parte de educandos, assim
como toda criação com a atenção adequada e dar oportunidade de contemplação,
fruição artística e sua devida crítica, dentro e fora da sala de aula.

243
Entenda, caro acadêmico ou acadêmica, que mesmo os processos criativos
são formativos. Lembre-se das exigências presentes nas Bases Comuns Curriculares
(2018), as quais incentivam que docentes estimulem seus alunos e suas alunas a
serem incentivados a criarem em aula. Daí a importância da utilização de jogos a fim de
habilitar que a improvisação seja exercitada, desenvolvendo o preparo para elaboração
de formas inusitadas e espontâneas pelo corpo. A pesquisadora Gisela Biancalana (2017)
nos explica o termo corporeidade cênica para esclarecer a formação corporal do corpo
para a cena. A corporeidade diz respeito às:

[...] formas de se expressar e de comunicar, inseridas em seus univer-


sos socioculturais dotadas de diferentes funções, objetivos, sonori-
dades, enfim um arsenal de códigos, posturas, línguas, compondo
milhares de possibilidades. No contexto da arte, a corporeidade cêni-
ca está voltada para construções poéticas e o investimento válido a
ser realizado deveria ser profundidade e, especialmente, deveria ser
voltado para si, para a vida, além da técnica e do objeto imediato da
cena performativa, não correndo assim o risco de tornar-se acessório
da presença no mundo contemporâneo espetacularizado. Nos cor-
pos são depositados, assimilados e transformados conhecimentos
oriundos de muitas fontes. As experiências, as técnicas, as tradições,
enfim, formam uma bagagem de saberes para o cumprimento do ofí-
cio da arte durante o processo formativo de um performer. (BIANCA-
LANA, 2017, p. 230).

A partir dessa exposição, percebemos que o artista da cena está em constante


formação, pois toda a experiência de vida, sua memória afetiva, sua observação e visão
de mundo tornam-se materiais para a composição da cena. Suas experiências de vida e
de treinamento poderão ser usadas em exercícios de improvisação.

Com o surgimento do papel do artista na concepção de sua personagem ou


coreografia, passou-se, também, a pensar a ideia do intérprete-criador, dividindo a
responsabilidade da concepção dos espetáculos com coreógrafos e diretores.

No que tange à dança, podemos detalhar o surgimento do papel do intérprete-


criador ao relembrarmos que, no contexto da dança clássica romântica no século XVIII,
valorizava-se a dançarina que executava de maneira fiel as solicitações de coreógrafos
e coreógrafas.

Anos mais tarde, já no contexto da dança moderna, houve a preocupação de que


a execução envolvesse, também, os sentimentos e as emoções relativas às questões
sociais da época.

Para isso, a formação da dança passou a buscar referências em diferentes


matrizes, tanto orientais quanto ocidentais. Ainda que bailarina ou bailarino participassem
da criação, somente coreógrafos recebiam o mérito pela criação. Tal status só mudou a
partir dos workshops de Robert Dunn e com o desenvolvimento artístico subsequente
do grupo de coreógrafos da Judson Church Dance, em Nova York.

244
A partir desse novo paradigma, artistas de dança passaram a ser valorizados por
sua participação na criação coreográfica, surgindo, assim, a figura do intérprete-criador.
O intérprete-criador, como o nome diz, cria suas próprias composições em uma obra
coreográfica com base em seus conhecimentos corporais e nos estímulos propostos
pela direção do trabalho. A intérprete criadora utiliza toda sua vivência e técnica para
colaborar ou criar uma obra coreográfica.

No Brasil, Klauss Vianna (2005) foi o responsável por inaugurar o termo


intérprete-criador. Para ele, o bailarino pode, a partir da técnica, alcançar uma forma
singular de desenvolvê-la:

Se a dança torna-se adulta em mim, se levantar o braço é um


processo que conheço intimamente, que conheço como meu, posso
então criar um gesto maduro, individual. À medida que trabalhamos,
é preciso buscar a origem, a essência, a história dos gestos – fugindo
da repetição mecânica de formas vazias e pré-fabricadas. Só assim
o trabalho resultará em uma criação original, em uma técnica que é
meio e não fim, pois a técnica só tem utilidade quando se transforma
em uma segunda natureza do artista (VIANNA, 2005, p. 73).

Veja você, acadêmico, por mais criativo que seja um diretor ou diretora, as
possibilidades de inovação são muito maiores se o trabalho de composição puder contar
com a criatividade de artistas habilidosos na prática da criação por meio da improvisação.
Veja o que fala o filósofo José Gil (2001, p. 83) da criação por improvisação na dança:

O que é experimentar, “ensaiar”? É chegar a um ponto de


“coordenações físicas” tais que “a energia” passa “naturalmente”.
Trata-se de fluxos de movimentos mais do que de formas ou de
figuras (como no ballet). Ensaiando uma sequência de movimentos
e verificando que a energia passa, o bailarino encontra-se diante
de múltiplas possibilidades de outros movimentos. Ensaia de novo,
e escolhe, e assim sucessivamente, criando um fluxo de energia.
As formas compõem-se pouco a pouco, e pesam sem a dúvida na
escolha das sequências; mas não são determinantes, pelo contrário,
dependem do destino que o bailarino quer dar à energia, criando
núcleos intensivos ou atenuando o seu impulso, acelerando a
velocidade, modulando a força do movimento.

Antes de ensinar seus alunos e alunas a composição por improvisação, é preciso


que você aprenda tal tarefa. Como disse Dantas (2020) e Vianna (2005), a improvisação
só se aprende praticando. Por isso, é importante que você experimente por meio de
diferentes estímulos. A descrição de Gil (2001) citada é um bom começo.

Que tal escolher uma sequência que você conhece? Pode ser parte de uma
coreografia. Experimente sem a música, em câmera lenta; experimente utilizando
diferentes planos (alto, médio, baixo) ou explorando diferentes deslocamentos no
espaço, modificando aspectos dos fatores de movimento, como a fluência e o peso,
conforme nos ensinou Laban (1978). Grave, assista, repita. Utilize o acaso; o erro é uma
nova possibilidade.

245
Faça, também, um caderno de campo. Anote suas impressões em cada
experimentação que você realizar. Se for prazeroso para você, certamente será para
sua turma de alunos e alunas. O caderno de campo é a principal ferramenta para a
criação por experimentação, pois artistas que criam são também pesquisadores de si,
investigam seu processo de criação e a forma que melhor funciona para realizarem suas
experimentações. Como disse Viola Spolin (1982), todos podem criar e improvisar; basta
praticar! Veja o que fala Biancalana (2017, p. 236) da prática formativa da improvisação:

A habilidade para reger o instante, estar em improviso, lidar


com o estado de arte, ou seja, com o corpo-arte no aqui e
agora, interfere na qualidade da presença performativa e nas
relações que se estabelecem com o público, independente
da estética em questão. Se a obra sustentar uma proposta
interativa, as exigências são ainda maiores. Adquirir a
habilidade para o improviso é tarefa árdua, mas relativamente
simples para aqueles que conseguiram assimilar esse saber
do imprevisto instaurado no corpo considerando que os
processos formativos em arte são, antes de tudo, pautados por
regras preestabelecidas. Mesmo na mais absoluta proposta
improvisacional as performances artísticas acontecem a partir
de parâmetros sobre os quais alicerçam seus procedimentos.

Como vimos, a improvisação não se limita a ser uma proposta formativa. Ela
é também utilizada tanto no teatro quanto da dança como parte da encenação. A
composição por improvisação pode ser feita nos laboratórios de criação ou em cena. A
propósito da dança, Dantas (2020) escreveu sobre a criação coreográfica desenvolvida
a partir de processos de improvisação, já que muitos coreógrafos e coreógrafas a
utilizam para a criação de um espetáculo, e nos dá alguns exemplos. O primeiro deles
é a coreógrafa alemã Pina Bausch (1940-2009). Pina trabalhava com seus bailarinos e
bailarinas como matéria-prima de suas criações. Seu processo de criação era bastante
extenso. Ela fazia uso de um processo de investigação em que tentava captar a
intimidade de cada artista, utilizando, inclusive, suas vivências reais como instruções
de exercícios de improvisação. Apesar de saber o que buscava de cada intérprete, ela
provocava as reações em cada um deles e delas, evitando dar as respostas para as
tarefas a serem desvendadas por suas bailarinas e bailarinos.

Já o belga Alain Platel (1956) relatou que o início dos trabalhos de composição
era muito difícil porque ele nunca tinha nada pronto; apenas deixava que os bailarinos
experimentassem a partir de suas vivências e das instruções que Alan levava para
o laboratório.

Da mesma forma, a belga Anne Teresa de Keersmaeker relatou sua experiência


de composição, declarando que apenas dava o início e o final do processo. Então,
para Alan e Anne Teresa o mérito da criação era de seus intérpretes-criadores, pois a
composição “[...] é um processo de investigação e invenção, como também de seleção
e organização de materiais trazidos por bailarinos e coreógrafos” (DANTAS, 2020, p. 95).

246
Agora, é o momento de analisar o modo em que se deu o surgimento de artistas-
criadores no teatro. No século passado, o autor* da peça era a grande autoridade, uma
vez que o texto era visto como mais importante do que a atuação e do que a direção. O
ator era analisado por sua capacidade de ditar o texto com entonação vocal.

ATENÇÃO
Utilizamos autor e ator em masculino para nos referir aos artistas do teatro no
século passado porque esta era uma tarefa direcionada, na maioria das vezes, aos
homens. Essa foi uma herança da Idade Média em que homens tanto escreviam
quanto encenavam as peças, atuando até mesmo em papéis femininos.

De acordo com Odette Aslan (2010), o percurso do ator no século XX, na França,
aponta que o ator era valorizado por sua voz; ele deveria ditar o texto. Sua formação
dava-se, sobretudo, a partir da experiência em cena:

No século passado, os principiantes se desenvolviam nos teatros


da periferia parisiense. Eram-lhes confiadas “figurações”, “pontas”,
substituições e finalmente papéis. As marcações eram simples:
levantar-se, sentar-se, dar passos à frente, para proferir uma fala
diante da caixa do ponto [...]. As personagens correspondiam a tipos
convencionais. Em suma, era preciso somente dizer o texto com certa
desenvoltura e conhecer alguns truques para “tirar efeitos”. Haveria
outra escolha para o aprendiz além do respeito a uma tradição ou o
empirismo mais desenvolto? (ASLAN, 2010, p. 3)

Aslan (2010) relembra o trabalho do ator nessa época. Não havia ensaio no
espaço cênico, visto que o deslocamento do ator e seu movimento corporal não eram
valorizados. Hoje, diferentemente, o espaço é configurado pensando no movimento de
atores e atrizes, e é preciso que o espaço cênico contribua com os jogos dramatúrgicos.
Há uma valorização da coletividade para que a obra se realize.

Aslan (2010) refere-se à criação de laboratórios de pesquisa, nos dias atuais,


para que artistas descubram novas possibilidades cênicas e novos modos de atuação.
Já no século XX, surgiram várias expressões artísticas que influenciaram os modos
de realização artística dos atores: simbolismo, expressionismo, futurismo, dadaísmo e
surrealismo, por exemplo.

Surge a figura do encenador para sobrepor sua autoridade e criatividade ao


texto. O encenador poderia dar uma nova forma de interpretar e até mudar totalmente o
texto para criar uma nova estética dramatúrgica.

247
Aslan (2010) faz uma crítica à supervalorização da improvisação em companhias
como o Living Theatre e o Open Theatre. Segundo ela, essas companhias exacerbaram
o uso da improvisação a ponto que:

[a] improvisação tornou-se a panaceia universal. Qualquer tipo de


exercício é aceito nas inúmeras escolas de arte dramática surgidas
há alguns anos. Do trabalho malfeito com o texto, caiu-se no trabalho
malfeito sem texto. À noção do trabalho sem texto, do jogo não-
verbal, associa-se a noção do trabalho com o corpo, quase de mímica
(ASLAN, 2010, p. 320).

E, mais adiante, a autora se refere à habilidade de improvisar como fator


determinante para que atores sejam considerados talentosos: “Uns [diretores]
expulsam como ineptos os aprendizes-atores pouco dotados para improvisar, outros
temem que nem sempre os melhores improvisadores sejam os melhores atores”
(ASLAN, 2010, p. 321). A partir da colocação de Aslan, é possível perceber que, ainda
que os atores criassem por meio de sua improvisação, o mérito de autoria continuou
sendo do diretor/encenador.

Assim, a noção de ator-criador surgiu a partir da necessidade de que atores e


atrizes tivessem maior controle e autoridade sobre a criação cênica. Não mais o texto
como autoridade em cena, nem o diretor definindo quem e como deve-se atuar. No
processo de ator-criador, atores e atrizes trabalham como criadores para construírem
sua própria dramaturgia e são valorizados por isso, dispensando autores e encenadores.

Com base nas exposições anteriores, você pode concluir que a improvisação é
uma habilidade valorizada tanto no campo da dança quanto no do teatro. Como vimos,
a formação dessa habilidade se dá a partir da prática. Portanto, compreende-se que ela
é importante não só para a criação cênica, mas também como processo formativo.

É o que afirma Biancalana (2017) ao explicar que, no passado, a dança possuía


uma separação entre o processo para a criação artística e o processo de formação
corporal na dança. De um lado, as aulas de preparação corporal e, de outro, os laboratórios
de criação com seus ensaios para que o coreógrafo ou a coreógrafa lapidassem o que
foi criado em laboratório, no entanto, hoje é possível encontrar tanto o modelo descrito
quanto propostas em que o percurso técnico expressivo pode acontecer em cena, com
os bailarinos e as bailarinas compondo a partir de marcações e instruções dadas pela
pessoa coreógrafa ou pelos próprios intérpretes criadores.

Dantas (2020) refletiu sobre a composição coreográfica a partir de experimentos


amparados em técnicas somáticas. Embora menos exploradas por pesquisadores, as
técnicas somáticas são, segundo ela, muito utilizadas em processos de composição
em dança. Ela cita artistas da Judson Church como precursores dessa proposta. Para
Dantas, Trisha Brown é um exemplo, pois, em suas experiências de improvisação, ela
fazia uso de investigações a partir de imagens corporais: as fontes neuro-esquelético-
musculares do movimento.

248
Outro exemplo de forma de composição por improvisação de membros da Jud-
son Church é o estadunidense Steve Paxton (1939). A improvisação por contato criada
por Steve é uma técnica corporal que pode ser utilizada como composição na cena. O CI
(Contact Improvisation) é uma técnica em que intérpretes distribuem o peso dos seus
corpos e utilizam o corpo do outro como apoio para realizarem movimentos.

No Sul do país, Dantas (2020) cita a coreógrafa Eva Schul (1948) como pioneira
na utilização de técnicas somáticas para a preparação de espetáculos, desde o ensino
da técnica até a composição em dança. Em 1975, Eva criou o espaço e o grupo Mudança
em Porto Alegre – RS, interessada em desenvolver uma expressão própria a partir de
estratégias que viabilizassem que o corpo fosse o protagonista de um diálogo com a
plateia. Uma das principais produções de Eva com base em suas experimentações foi
Um Berro Gaúcho, de 1977.

De acordo com Dantas (2020, p. 134-135), a coreografia “[...] resultou de laboratórios


de criação coletiva, nos quais foram gerados a música, a coreografia, os figurinos, os
materiais de divulgação e os modos de produção e viabilização do espetáculo”.

Ainda que a técnica de Eva esteja presente nos corpos de seus bailarinos e
bailarinas, as técnicas somáticas utilizadas em sala de aula e ensaio possibilitam que
intérpretes mantenham sua identidade. O objetivo da coreógrafa não é uniformizar os
corpos, pois a técnica não pode limitar-se “[...] à proficiência na realização de passos e
figuras de danças, mas deve incluir improvisação, criatividade e habilidades coreográficas
de performance” (DANTAS, 2020, p. 135).

IMPORTANTE
É importante você saber que, assim como existem muitos relatos de
experiência pedagógica na área do teatro e da dança, também existem
muitos relatos de experiência cênica com propostas somáticas e de
improvisação em laboratórios de criação. Esses relatos estão disponíveis em
anais de eventos científicos, como:

• Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas –


ABRACE: http://portalabrace.org/4/.
• Associação Nacional de Pesquisadores em Dança – ANDA: https://
portalanda.org.br/.

Explorando os relatos de experiência cênica, você vai perceber que o estudo e


a prática da improvisação são os melhores caminhos para a inovação em artes cênicas.

249
A professora Heloísa Gravina compartilhou seu relato do “Seminário I – Laboratório
de criação: uma abordagem somática para a dança”, realizado na Universidade Federal
de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Ela compartilha sua sensação ao guiar estudantes
na investigação do corpo a partir da improvisação com a técnica somática Alexander.

O seminário realizou um laboratório de três dias em torno da técnica Alexander


e de suas possibilidades para composição em dança.

A técnica Alexander possui alguns fundamentos que foram experimentados pela


professora durante a realização do seminário. O controle primordial é um fundamento
que remete às escolhas voluntárias realizadas no processo.

Em seu relato, Gravina conta que, para ela, o controle primordial configurou-se
em um esforço por não intervir, abandonando o desejo de acertar, para escolher o desejo
de sentir acima de tudo. O sentir é importante para a realização, pois, na proposição de
educação somática, a percepção sensorial já evidencia o movimento. Assim, qualquer
percepção sobre o movimento já interfere em sua realização.

Outro fundamento é o controle primário, que consiste em uma organização


relacional entre cabeça, pescoço e costas, que deve repercutir em toda a organização
postural de intérpretes.

Gravina (2017) conta que não tem nenhuma formação oficial em técnicas
somáticas. Sua formação foi obtida a partir de processos de composição em que
participou como bailarina com base nas técnicas somáticas de Trisha Brown – a partir
da experiência de Tatiana da Rosa, que estudou por dois anos em seu instituto – e de
Laban – a partir da experiência compartilhada por Cibele Sastre, que cursou a formação
no Laban Institute of Movement Studies, em Nova York. Esse depoimento corrobora com
a concepção de que também os processos de composição coreográfica são processos
formativos para bailarinos e bailarinas.

A primeira fase do processo consistiu no mapeamento dos ossos, em que os


ossos eram identificados “[...] através de seu contato com o chão, como se fôssemos
imprimindo nesse chão um mapa tridimensional de nosso esqueleto” (GRAVINA, 2017,
p. 293).

Em seguida, Gravina (2017) descreve a dificuldade em manter o foco na tarefa


de investigação dos ossos e identifica essa fase como uma oscilação entre a observação
interna do corpo (os ossos) e a externa (quando pensa em seu corpo no espaço enquanto
investiga seus ossos). Ao perceber a capacidade de autorregulação entre observar e
controlar o que se observa no corpo, a professora conclui que:

[...] na medida que o corpo-soma se percebe como agente


regulador de si mesmo, o sujeito deixa de ser alguém que reage
inconscientemente ao meio, passando a se perceber ativo na sua

250
relação com esse meio. Sob esse ponto de vista, podemos inferir que,
ao trabalhar através de uma abordagem somática em aula, estamos
propiciando ao acadêmico uma possibilidade de se perceber como
agente de seu processo de aprendizado e, por conseguinte, sujeito
que interfere ativamente em seu meio a partir de ações conscientes
(GRAVINA, 2017, p. 295).

Seguindo seu esforço em compartilhar sua experiência docente com as


técnicas somáticas para composição, Gravina (2017) relata a experiência com alunos e
alunas de graduação em dança. Uma de suas atividades consistiu no uso do Contato
Improvisação em sala de aula realizado em duplas. Participantes deveriam investigar
formas de realizações de movimento a partir do contato costas com costas e barriga
com barriga.

A professora conta que a experiência desenvolveu vínculos entre alunos e


alunas, pois “[...] várias emoções afloram e foram acolhidas pelo grupo. Embora o enfoque
primordial da disciplina não fosse terapêutico, mas criativo, foi-se formando, ao longo do
semestre, uma relação coletiva de respeito e aceitação” (GRAVINA, 2017, p. 302).

Dessa maneira, é importante que você se prepare para algumas manifestações


emotivas durante o trabalho. Manter o ambiente de receptividade e de confiança é
importante para que o grupo possa acolher as manifestações com respeito e aceitação,
como relata a professora. Por isso, os acordos entre grupo devem ser cuidadosamente
elaborados antes de qualquer experiência desse tipo.

Outro relato importante abordado por Gravina (2017) é a experiência de ter


alunos que tiveram pouquíssimo contato com dança juntamente com artistas já
reconhecidos, com carreira consolidada tanto como intérpretes-criadores quanto
professores. Gravina (2017) observou que, mesmo assim, ambos tiveram ganhos
expressivos de experiência. A iniciante, por agregar novos conhecimentos, e o artista
solo, por experimentar, pela primeira vez, a composição compartilhada em grupo. A
negociação entre o que se quer alcançar e o que o grupo propõe, somada à negociação
de seu modo de criar como solista com o modo de composição em grupo, trouxe
grandes desafios e aprendizados para o intérprete.

Além disso, sabemos que cada processo é único. Cada prática é uma nova
vivência que leva experiências ao corpo do intérprete, que o habilitam, cada vez mais, a
criar e a aumentar o seu repertório corporal.

No caminho para a formação de um corpo disponível para a criação, está a


experiência, a disponibilidade de tentar e de descobrir novos modos de fazer. É preciso
entender cada experiência, seja ela pedagógica, formativa ou criativa, como um
aprendizado. Por isso, registrar suas experiências em caderno de campo é o melhor
caminho para o seu treinamento! Experimente, tente, ensaie, explore e registre.

251
LEITURA
COMPLEMENTAR
SENSAÇÕES/PERCEPÇÕES E CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTOS
EM DANÇA DE SALÃO

Elaine Fiuza Carvalho

Dispomos de mecanismos para acionar informações e produzir respostas


motoras – a sensação e a percepção. “Sensação é a atividade neural disparada por um
estímulo que ativa um receptor sensorial que promove impulsos nervosos sensoriais que
chegam ao cérebro através de caminhos nervosos sensoriais” (HAYWOOD; GETCHELL,
2004). “Percepção é um processo que ocorre no cérebro e possui muitos estágios,
envolvendo seleção, processamento, organização e integração das informações
recebidas pelos sentidos” (HAYWOOD; GETCHELL, 2004). As sensações/percepções
partem de um diálogo corporal entre condutor(a) e conduzida(o) na qual as diferentes
sensações levam a percepções diferentes aguçando memórias e emoções.

A dança de salão propicia ao sujeito a construção de conhecimentos pela


interpelação e recepção da dramaturgia corporal representada pelos dançarinos. Este
sujeito cognitivo que pensa pela ação do movimento está constantemente passível de
sensações/percepções. De acordo com Silveira (2012, p. 29) quando “[...] dançamos
com o outro, ao tocarmos em sua pele não estamos apenas em contato com uma parte
anatômica do corpo do outro, mas também nos deparamos com todos os registros
que aquela pessoa já vivenciou”. A cada dança, momento e movimento os corpos são
transformados pela conexão corporal com outrem, transformando a própria forma de
dançar conforme as sensações/percepções experenciadas e promovendo inquietações
na recepção que corresponde à ação de receber ou acolher.

Diante dessa afirmação e de existir maneiras diferentes de comunicação do par,


dentro da dança de salão, entendemos que diferentes formas de dançar se revelam
enquanto nos comunicamos em dança, revelando novas formas de dançar a dois e
consequentemente a construção de novos conhecimentos porquanto o corpo é um
meio para pesquisar a recepção. Sendo assim, o olhar será na inter-relação e recepção
da dramaturgia representada pela técnica e expressividade que coabitam a composição
da ação dramática no corpo que dança.

252
Dramaturgia é uma forma de arte na qual uma ou várias pessoas apresentam
uma determinada história que desperta na recepção sentimentos variados. “Está
explícito nas movimentações de todo o processo dançante: a co-condução atuando nos
corpos para produzir determinados movimentos da dança” (FEITOZA, 2011, p. 63). Estes
representados pela dramaturgia corporal. “Os dois estão atuando simultaneamente em
cooperatividade” (FEITOZA, 2011, p. 60).

Ali está o corpo, a dramaturgia corporal e o movimento. As sensações/percepções


das variadas formas de co-conduzir são um convite a vários direcionamentos durante
a dança. É um convite a pesquisar a dança de salão in loco e com foco. Convidar é
uma solicitação de presença ou convocação que se faz a alguém para que essa pessoa
compareça, esteja presente ou participe de algo.

O eu corpo convida para dançar e se movimentar expressivamente seguindo


movimentos ritmados ao som de uma música, portanto é uma investigação do
funcionamento dos corpos que se encontram e se co-conduzem. O convidar para dançar,
é pedir o comparecimento de alguém ao ato de dançar, é unir pessoas compartilhando
o que ambos sentem a cada momento/movimento, é uma condução para celebrar a
vida, são encontros, trocas de conhecimentos, atos cognitivos das relações de estar no
mundo e de viver momentos.

A percepção é a interpretação da sensação. A mesma sensação (ou sensações


muito semelhantes) pode levar a percepções diferentes em pessoas diferentes. “A
sensação é de duas pessoas dançando como um corpo só” (STRACK, 2017). “É pelo
corpo que se compreende o outro e é através dele que se percebem as coisas, mas a
percepção do corpo e dos objetos é confusa na imobilidade” (MERLEAU-PONTY, 1999).

Contudo, devemos estar atentos para quais tipos de sensações/percepções


estão orientando nossas ações em dança e como elas promovem novas formas de
dançar. A partir de Strack (2017) e Merleau-Ponty (1999), sabemos que na descoberta
do eu interno, do corpo sensível e expressivo, desenvolve-se a ampliação da percepção
dos mecanismos corporais envolvidos no movimento como também a necessidade de
se desenvolver um estado de prontidão e disponibilidade para o movimento. “Sendo
assim, [...] ao se executar movimentos, percebe-se que emergem sensações, imagens,
memórias, que vão realimentar o movimento, sem que, muitas vezes, houvesse a
intenção anterior de acessar uma imagem específica. Simplesmente acontece” (NEVES,
2008, p. 78). Quando o par entra em sintonia, a informação veiculada pelo movimento
emerge das escolhas de caminhos internos e das conexões entre o corpo e o ambiente,
no instante da execução do movimento. Com a atitude de atenção ao próprio corpo,
ao corpo do outro e, simultaneamente, ao espaço e às pessoas do entorno o tônus
muscular é alterado, trazendo a qualidade de presença e prontidão (NEVES, 2008).

Damasio salienta os cinco sentidos tradicionais – visão, audição, tato, paladar e


olfato a qual quatro desses órgãos – os da visão, audição, paladar e olfato – localizam-
se na cabeça, relativamente próximos uns dos outros.

253
Damasio ressalta o tato como um órgão especializado, distribuído por toda a
superfície da pele e das mucosas, com a qual é por meio deste que vibrações corporais
advindas da audição e visão proporcionam e estimulam as sensações/percepções do
espectador. Deste modo, há em torno de qualquer objeto uma aura de espaço físico
criada pela sua presença, em que se constrói dramaturgia pela fricção (relação de
corpos), gerando sensações e emoções diversas.

No teatro contemporâneo, no qual a tríade drama, ação, imitação é posta em


xeque, o objeto, como já observado, adquire novo estatuto, em seus múltiplos modos de
relação com o espectador. Dentre as inúmeras acepções, podemos ressaltar algumas,
nas quais vislumbramos a gama de situações em que ele se “apresenta” no espaço-
tempo cênico. Posto em palavra, o objeto sofre ressemantização. Feito matéria, ele é
mostrado, consumido, animado, construído ou destruído.

Converte-se em personagem, sofre metamorfoses, traz em si um caráter lúdico,


simbólico, e opera deslizamentos metonímicos e metafóricos. O atuante joga com o
objeto e faz-se objeto em cena, em distintos graus (COSTA, 2007).

Na dança a dois, esse conhecimento motor e perceptivo adquirido abre


caminho para desenvolver a escuta do corpo do outro; a percepção do limite e das
possibilidades do outro, de uma maneira respeitosa visto que as sensações/percepções
são parte integrante da co-condução, em que ambos expressam suas volições, com a
qual ocorrem descobertas importantes do eu.

O ambiente neste contexto tem duas leituras: refere-se ao corpo do par


e, também, ao ambiente interno como também a construção de conhecimentos e
movimentos em dança. Estar disponível para sentir e provocar emoções ao mesmo
tempo, unindo psicologia e dança, pautado na descoberta de um sentido, dramas e
alegrias desse lugar. Memórias que trazem referências como o abraço, as músicas e o
dançar. Com isso, para adquirir um corpo sensível e expressivo é preciso a descoberta
do eu interno, de um ser único, individual e criativo o que é indispensável ao exercício da
dança se quisermos que ela se torne uma forma de expressão da comunidade humana
(NEVES, 2008 apud VIANNA, 2005, p. 111).

A vida ao longo de sua trajetória escreve uma história que ocupa espaço. O
corpo se comunica através da música tocada pela vida. A dança existe no sujeito desde
a sua origem. Dança-se para comemorar, afastar a tristeza, conectar-se, divertir-se,
amar e até sem se saber o motivo. Dança-se inconscientemente diariamente criando
passos misteriosos ao compasso dos sonhos. Dança-se com as mãos, olhos, sorriso
e imaginação. “O corpo nas danças de salão, legitima a atitude de atenção ao próprio
corpo, ao corpo do outro e, simultaneamente, ao espaço e às pessoas do entorno [...]”
(NEVES, 2008).

254
É um processo de (re)criação de novas possibilidades e combinações de
movimentos advindos de memórias e de sensações/percepções ao dançar e ao observar.
“Dance, dance senão estamos perdidos... Certas coisas se podem dizer com palavras, e
outras, com movimentos” (BAUSCH, 2000). Dançar é falar sem palavras, sentir, perceber
e construir conhecimentos.

Fonte: CARVALHO. E. F. C. Sensações/percepções e construção de conhecimentos em dança


de salão. In: SOUZA, M. A. da C. As poéticas, políticas do corpo e seus trânsitos nas
danças do por-vir: cadernos de resumos expandidos. Salvador: ANDA, 2020. (Coleção Quais
danças estarão por vir? Trânsitos, poéticas e políticas do corpo, 11). Disponível em: https://bit.
ly/3gaRQFW. Acesso em: 13 set. 2022.

255
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:

• A importância de abordarmos diferentes estéticas para nossos alunos e alunas, a fim


de que a experiência estética contribua com a elaboração do senso crítico, com a
ampliação de repertório corporal e para tornar seus corpos disponíveis para a criação
com improvisação.

• A “Educação somática” foi abordada ressaltando suas qualidades para a formação


artística, habilitando a disponibilidade criativa do corpo, prevenindo lesões e
proporcionando uma expressão corporal maior devido aos seus processos, que
promovem um intercâmbio entre o foco interno e externo do próprio corpo.

• Processos criativos e pedagógicos pelo corpo, de modo preparar para o ensino da


improvisação. Existem muitos relatos de experiência que podem ser aliados no
processo de desenvolvimento, porém uma grande aliada é a experiência prática, seu
registro e suas impressões anotados em caderno de campo.

• O corpo está em constante processo de aprendizado, seja na vida, seja na preparação


corporal, toda experiência vivida é material para a improvisação cênica.

• O trabalho pedagógico em torno do preparo para a improvisação requer muita prática


de experimentação no próprio corpo antes que os laboratórios de improvisação por
jogos sejam aplicados em sala de aula. É preciso que educadores tenham prazer
em realizar experiências de improvisação para que seus alunos e alunas também
desfrutem da atividade com prazer. Além disso, a utilização da improvisação requer
um preparo emocional para lidar com a fragilidade dos alunos que podem manifestar
inseguranças e conflitos durante as atividades sensíveis.

256
AUTOATIVIDADE
1 Em grego, soma refere-se à pessoa viva, ao ser corporal consciente. Em 1976, Thomas
Hanna criou o termo educação somática para descrever “[...] a arte e a ciência de um
processo relacional interno entre a consciência, o biológico e o meio-ambiente. Estes
três fatores vistos como um todo agindo em sinergia” (HANNA, 1983, p. 7). A respeito das
características das técnicas de educação somática, assinale a alternativa CORRETA.

Fonte: HANNA, T. Somatics: reawakening the mind’s


control of movement. New York: Perseus Books, 1983.

a) ( ) A educação somática busca desenvolver a consciência sinestésica a partir de


uma ativação dos órgãos sensoriais por meio de estímulos internos e externos.
b) ( ) Para que os alunos busquem uma maior consciência do corpo e maior ativação
sensorial, nas aulas de educação somática são utilizados espelhos.
c) ( ) Apesar de tratar e prevenir lesões, a educação somática está vinculada ao âmbito
médico, pois não faz o diagnóstico nem o prognóstico.
d) ( ) A partir do estímulo ao toque de si, do outro e do ambiente, busca-se a troca
energética experimentando textura, temperatura, sensação, dentre outros
atributos táteis.

2 Leia as características de diferentes compreensões de corpo e as relacione ao termo


CORRETO:

(1) Corpo vivido.


(2) Corpo orgânico.
(3) Corpo disponível.

( ) É aquele que consegue responder aos nossos impulsos vitais, que é uno com nossa
realidade interna.
( ) Tem gestos fundamentais, alinhamento corporal neutro e a utilização de parâmetros
anatomofuncionais para sua reorganização.
( ) É heterogêneo, pois possui uma história, uma microcultura envolvendo o círculo
social, além de suas singularidades.
( ) É capaz de assimilar técnicas de movimento e de resgatar, na sua memória,
atitudes, posturas e gestos.

Assinale a alternativa CORRETA.


a) ( ) 1 – 2 – 2 – 3.
b) ( ) 3 – 3 – 2 – 1.
c) ( ) 1 – 3 – 2 – 2.
d) ( ) 2 – 1 – 3 – 1.

257
3 De acordo com a educação estética pelo corpo e sua aplicação pedagógica nos
processos criativos pelo jogo do corpo, analise as sentenças a seguir.

I- Eva Schul e Steve Paxton são exemplos de coreógrafos que utilizam técnicas
somáticas para preparação corporal e para a elaboração de espetáculos.
II- A improvisação é uma habilidade que não se aprende; é preciso que a pessoa
descubra por si só como realizar e criar em cena.
III- Nas técnicas somáticas, a percepção do movimento não interfere em sua execução,
pois o intérprete está muito concentrado em sua percepção externa e interna.
IV- Para aumentar o repertório corporal na dança, é preciso que a bailarina seja treinada
em balé clássico ou dança contemporânea primeiramente.

Assinale a alternativa CORRETA.


a) ( ) Somente a alternativa 1 está correta.
b) ( ) Somente as alternativas 1 e 2 estão corretas.
c) ( ) Somente a alternativa 3 está correta.
d) ( ) Somente a alternativa 4 está correta.

4 Com base nas definições de educação somática e nos objetivos pedagógicos do


ensino das artes cênicas, disserte sobre as concepções de corpo propostas e os
modos de ensinar de maneira a formar intérpretes-criadores.

5 No que diz respeito à improvisação, o uso de improvisação para a composição, tanto


no teatro quanto na dança, trouxe benefícios para as artes cênicas. Descreva quais
foram esses benefícios.

258
REFERÊNCIAS
ALVES, T. A et al. Plano de cultura da UFRN: percursos, ações e resultados: 2015-
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