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Corpo na
Arte e
Processos
Criativos
Prof.ª Andréa Cristiane Machado Moraes
Prof. Daniel Fraga de Castro
Prof. Edmar Galiza dos Santos
Indaial – 2022
1a Edição
Elaboração:
Prof.ª Andréa Cristiane Machado Moraes
Prof. Daniel Fraga de Castro
Prof. Edmar Galiza dos Santos
261p.
ISBN 978-65-5466-198-0
ISBN Digital 978-65-5466-199-7
“Graduação - EaD”.
1. Corpo 2. Arte 3. Criatividade.
CDD 792.92
Bibliotecário: João Vivaldo de Souza CRB- 9-1679
Impresso por:
APRESENTAÇÃO
Olá, acadêmico!
O corpo humano não pode ser visto de maneira unívoca. Nesta disciplina, será
possível estudar os processos criativos e estéticos que se relacionam com o corpo
durante a história das ideias. Todo arte-educador precisa reconhecer o corpo do ponto
de vista da ciência, da cultura e das artes. Essa disciplina ensinará a reconhecer como
cada ciência ajuda a pensar o corpo, sua relação com as artes e o modo como a dança
e o teatro ajudam na sua pedagogia.
Bons estudos!
GIO
Olá, eu sou a Gio!
ENADE
Acadêmico, você sabe o que é o ENADE? O Enade é um
dos meios avaliativos dos cursos superiores no sistema federal de
educação superior. Todos os estudantes estão habilitados a participar
do ENADE (ingressantes e concluintes das áreas e cursos a serem
avaliados). Diante disso, preparamos um conteúdo simples e objetivo
para complementar a sua compreensão acerca do ENADE. Confira,
acessando o QR Code a seguir. Boa leitura!
LEMBRETE
Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma
disciplina e com ela um novo conhecimento.
REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 84
REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 181
REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 259
UNIDADE 1 -
CORPO: REPRESENTAÇÃO
E EXPRESSÃO
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.
CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.
1
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 1!
Acesse o
QR Code abaixo:
2
UNIDADE 1 TÓPICO 1 -
O QUE É O CORPO?
1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, no Tópico 1 abordaremos os conhecimentos necessários para
a compreensão do que é o corpo. Na primeira parte desta unidade, iniciaremos o
trabalho discutindo os conceitos e os limites que podemos atribuir à palavra “corpo”:
sua configuração do ponto de vista científico, como entidade viva e estudada pelas
ciências biológicas. Esse estudo será contrastado com uma outra perspectiva: a dos
significados que o ser humano atribui ao seu fazer físico, em suas ideias de cultura. Para
que isso não seja tratado de uma forma cartesianamente simplória, pretende-se, por
fim, perceber como essas duas visões conseguem articular-se em dinamismo, de um
modo transversal, em que um aspecto é atravessado pelo outro.
Por fim, entraremos nas razões principais que motivam esse trabalho. Como
o corpo se apropria da realidade em termos de representação? De que maneira ele
consegue substituir um sentido pela sua ação e sua materialidade? Mais importante do
que isso será verificar que o corpo vale pela sua existência em execução direta; aquilo
que veio a se nomear performance nas últimas décadas do século XX. Um termo que
não se restringe ao que é utilizado pelas artes visuais, mas que trata de si como uma
experiência única.
Se você tiver um tempo e puder verificar o dicionário, vai descobrir que a primeira
definição da palavra corpo não é a mais óbvia. No Aurélio, consta como “[...] a parte
central ou principal (de um edifício [...])” (CORPO, 2008, p. 269-270). Um edifício, por
sua vez, é uma construção que serve para abrigar os seres humanos e suas atividades.
Assim, quando se fala em corpo se fala em algo muito maior do que a noção
comum de ser uma substância física ou estrutura de homem ou animal. O termo corpo
é um aspecto central da existência humana, que se mistura a todas as suas ações, sem
a qual não pode constar como vivo.
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O próprio termo vem do latim, corpus, e designa, além da parte física, um
conjunto de elementos com algum tipo de unidade. O corpo humano deve ser entendido
como elemento essencial para tudo aquilo que é feito, pensado e sentido. Para pensar
os seus usos, em primeiro lugar precisamos entender esse seu caráter como uma
estrutura que potencializa tudo o que se pode imaginar. Precisamos entender como o
corpo é visto pela ciência.
2 DIMENSÃO BIOLÓGICA
Existimos em um mundo material. O que isso significa? Do ponto de vista
científico, matéria é toda substância que compõe um corpo, não importa seu estado:
sólido, líquido ou gasoso. Aqui, já aparece a palavra que vai acompanhar esta disciplina:
corpo. Nesse caso, ele se refere a tudo o que tem massa e volume, ou seja, que ocupa um
espaço no mundo. Tudo ao nosso redor é composto de átomos e moléculas (incluindo
nós mesmos!). Talvez estejamos acostumados a entender alguns conhecimentos
como automáticos, mas será impossível compreender o fato de ter um corpo se não
vislumbramos nossa constituição mais básica.
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O metabolismo diz respeito a todos os processos físicos e químicos do corpo
que constituem elementos complexos ou os quebram em elementos mais simples. Da
mesma maneira que uma célula precisa manter uma harmonia química interna para se
manter coesa, assim é o corpo humano. Todo o processo de alimentação só é possível por
essas reações internas que lidam com os carboidratos e as proteínas. Esse é o processo
responsável por se obter a energia necessária para executar qualquer trabalho. Sem
energia, seria impossível para um artista realizar suas apresentações.
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Por fim, a última característica que define o ser vivo é o da reprodução. Trata-se
da capacidade tanto de repor novas células por reparo ou troca quanto da possibilidade
de produzir um novo ser. Um corpo humano em bom funcionamento implica reconhecer
seu estado vital e procurar mantê-lo de modo estável, recompondo danos e recuperando-
se de doenças. Para um artista, a reprodução física não é uma questão direta, mas saber
como cuidar do seu corpo é fundamental para que possa atingir a perfeição artística.
A vida não existiu desde sempre; a Terra precisou encontrar condições materiais
muito específicas para sua existência relativamente estável. Inúmeras formas de vida
surgiram, sucederam-se e desapareceram até chegarmos ao momento atual. Para se
ter uma ideia e para ficar apenas com a figura humana; portanto, com uma estrutura
cerebral mais desenvolvida e bípede, o gênero homo data de, pelo menos, seis milhões
de anos atrás (BENTON, 2012). Qual é a relevância disso para o trabalho artístico de
atores e dançarinos? Isso significa que temos toda essa história natural presente nos
corpos humanos de hoje.
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A homeostasia do corpo humano é “desafiada” continuamente.
Algumas perturbações vêm do ambiente interno na forma de
agressões físicas como o calor intenso de um dia quente de verão ou
a falta de oxigênio suficiente para aquela corrida de 3.200 m. Outros
agravos se originam no ambiente interno, como o nível de glicose
sanguínea que cai muito quando a pessoa não ingere seu desjejum.
Os desequilíbrios homeostáticos também podem ocorrer por causa
de estresse psicológico no nosso ambiente social – as demandas
do trabalho e da escola, por exemplo. Na maioria dos casos, a
perturbação da homeostasia é moderada e temporária e as respostas
das células do corpo reestabelecem rapidamente o equilíbrio no meio
interno. Entretanto, em alguns casos a perturbação da homeostasia
pode ser intensa e prolongada, como no envenenamento, na
superexposição a temperaturas extremas, na infecção grave ou
em uma grande cirurgia. Felizmente, o corpo tem muitos sistemas
regulatórios que podem normalmente levar o ambiente interno ao
equilíbrio (DERRYCKSON; TOROTORA, 2016, p. 40).
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O tecido nervoso é o responsável por manter condições controladas nos limites
compatíveis com a vida. É o sistema nervoso que regula todas as atividades por meio
de respostas rápidas pela compreensão e pela recepção dos impulsos nervosos. Ele
regula nossas ações conscientes e todos os outros sistemas de modo ininterrupto. A
sensibilidade do corpo depende completamente desse processo constituído pelas células
nervosas, porque ela faz a detecção consciente e subconsciente do ambiente. Todas as
escolhas criativas de um artista cênico passam por esse processamento interno.
NOTA
A epiderme tem uma quantidade variada de funções, pois ao mesmo
tempo em que protege a estrutura corporal de toxinas e bactérias também
impede a perda de líquidos. Suas glândulas exócrinas são responsáveis pela
produção do suor que ajuda na regulação térmica.
Por sua vez, é o sistema circulatório que transporta as substâncias pelo sangue
bombeado pelo coração. O sistema respiratório é responsável pela captação do oxigênio
fundamental para que as células humanas metabolizem suas substâncias. Todo aquele
que trabalha com a expressividade corporal deve estar atento para o bom uso da
respiração, pois o movimento só pode ganhar graça e qualidade quando é executado
em consonância com o ar que se respira; em que se aproveita a inspiração e a expiração
nas contrações e nas extensões corporais.
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Visto esse mapeamento pelo corpo em termos de funções biológicas internas,
pode-se passar para um caráter mais global no que tange ao corpo em atividade
consciente. Mesmo as funções psíquicas do ser humano se reportam, em grande medida,
a sua composição orgânica. O comportamento da espécie humana está relacionado a
sua psicologia, pois mantemos muitos aspectos semelhantes com o modo de agir dos
animais. Charles Darwin já apontava essa relação em seu livro A Expressão da Emoção
no Homem e no Animal. Na estrutura física, já se carregam elementos instintivos que
serão responsáveis por uma série de atitudes e mesmo hábitos no indivíduo humano
(EDELMAN, 1992).
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batidas corporais ritmadas para se comunicar socialmente e ganhar a atenção do grupo.
Desse modo, seria possível pensar que as representações cênicas das coletividades de
hoje e do passado são um desenvolvimento que os animais ancestrais já realizavam
para sobreviver.
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Para mencionar algum segmento específico para descrição de movimentos, é
importante reconhecer a posição anatômica como ela é usada universalmente, pois
é a referência-padrão do corpo usada para descrever a localização de estruturas. Os
termos medial e lateral se referem a posições relativas mais próximas ou mais distantes,
respectivamente, da linha média que divide o corpo em duas metades iguais. As
porções proximal e distal são terminologias usadas para descrever uma posição relativa
a um ponto predeterminado, sendo que o primeiro se refere ao que é mais próximo e o
segundo ao que é mais distante. O ponto de referência comum é normalmente o centro
do corpo (MOREIRA, 2005).
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Figura 3 – A estrutura do corpo
3 DIMENSÃO CULTURAL
No subtópico anterior, foram vistos, panoramicamente, os elementos
constitutivos do corpo, em particular pelas áreas científica e médica. O que se precisa
refletir, agora, é como esses dados apresentados anteriormente serviram para
compreender a materialidade do corpo, pois o assunto sobre o corpo não se encerra
com essas informações. Somos nós, na qualidade de indivíduos e de coletividades que
determinamos as práticas corporais nas maneiras que escolhemos como nos comportar
com aquilo que herdamos. Todas as nossas ações são determinadas também pela nossa
visão cultural. É nesse sentido que cabe a pergunta: o que é cultura?
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NOTA
Segundo o crítico literário Terry Eagleton (2003), um dos significados originários da noção
de cultura advém de “lavoura”, relacionando-se com a atividade humana ocupada com o
crescimento natural de uma plantação. A palavra inglesa “coulter”, que tem sua raiz como
cognata de cultura, por exemplo, significa a lâmina do arado. A palavra cultura,
dessa maneira, compartilha sua raiz com a palavra “cultivo”. Está ligada à
ideia de que a conquista da terra pela agricultura foi o momento em que
o ser humano se afastou da natureza e passou a se relacionar com ela de
forma mais direta a ponto de ter algum controle sobre alguns de seus efeitos.
Basicamente, quando se fala cultura por esse viés estamos privilegiando a
atividade humana e o trabalho.
O termo tem muitas acepções, mas alguns pontos parecem convergir para uma
ideia em que a construção humana se sobrepõe sobre aquilo que ele determina como
natural, que acabaria se definindo, por sua vez, como aquilo que não foi tocado pela
manipulação humana e é, de alguma forma, independente dele. Dessa noção prática,
passou-se à concepção da cultura como uma atividade abstrata, realizada pelo espírito
humano. Aqui, entra-se no conjunto de saberes intelectuais que constituem os valores
imateriais de uma sociedade. Uma pessoa que é tomada como culta é alguém que se
sofisticou por uma educação primorosa e tem acesso a uma quantidade de informações
que outras não desenvolveram. Baseado nessas duas vertentes, pode-se dizer que tudo
o que o ser humano cria ou desenvolve com seu contato, seja ele físico ou não, carrega
o germe da cultura. E essa palavra ainda pode ser mais:
Aqui, vemos que o termo ainda designa a ideia de pertencimento, como uma
morada, um local em que se vive e no qual, de alguma maneira, plantam-se as próprias
raízes. Habitar é tornar-se um com a região que o cerca; uma forma de transformar a
si mesmo em conjunto com o próprio espaço ao redor. De maneira quase contraditória,
tem-se também a ideia religiosa de um plano transcendente sobre o mundo natural.
Cultura traz algo de si que não se pode encontrar pela mera observação, mas como uma
revelação íntima de um universo que fica escondido dos sentidos corporais.
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A palavra cultura traz em si o problema da tensão da consciência humana
nesses quatro sentidos tão peculiares: atividade, abstração, habitação e culto. A noção
de corpo terá de dialogar com esse aspecto, pois, agora, precisa ser vista também
como uma criação original da consciência humana. O trabalho artístico do corpo em
cena se configura nesses quatro campos ao se ocupar ativamente de uma prática que
transforma o mundo.
Depois dessa definição, deve ficar claro que cultura não se trata apenas
daquilo que o ser humano elabora a partir de uma matéria-prima da natureza, mas
de algo que pode estar presente em suas atitudes. O modo como cumprimentamos
alguém, como dizemos sim ou não com a cabeça, como expressamos raiva ou nojo
com uma expressão facial e até mesmo a maneira de beber e comer são todas formas
culturais. O modo de enxergar e tratar o corpo estará relacionado à cultura como um
todo. Se em uma sociedade como as do ocidente atual tendem a ver o corpo de uma
maneira fechada, certas sociedades tradicionais conseguem enxergar uma abertura
no seu comportamento. Para um homem europeu, é fácil tratar o corpo como uma
propriedade, ao passo que para um aborígene australiano essa ideia pode não fazer
muito sentido. Assim, o corpo pode ser visto como um instrumento para um objetivo
para alguns, enquanto para outros é tratado como uma entidade que não se dissocia
de sua realidade ambiental.
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É nesse sentido que se comenta que o corpo humano pode ser pensado como
uma estrutura aberta, o que não significa que seja sempre padronizado em todos os
seus comportamentos. Estar vivo implica estar em constante mudança, porque isso é a
resposta da sua característica adaptativa. Em certos grupos, o corpo pode ser um objeto
de desejo; em outros, o resultado de dominações; e, muitas vezes, pode ser ambos ao
mesmo tempo.
Pense inicialmente no tom de pele que tem sido motivação injustificada para
segregação, preconceito e racismo até os dias de hoje. O que determina a cor, do ponto
de vista da matéria, deve-se a apenas um milímetro da pele; algo quase translúcido
quando separado do corpo. E como ela se constituiu? Hoje, ela está nos humanos como
um resultado genético, mas vem de uma herança complexa em que os genótipos se
adaptaram aos diferentes ambientes. O modo como o sol incidiu sobre a melanina no
corpo em diferentes regiões gerou a grande diversidade de tons que temos hoje. A
decisão de um grupo em permanecer em uma região e se adaptar a ela foi fundamental
para que essas diferenças surgissem. Perceba que a adaptação que as coletividades
formaram em cada lugar e época determinou comportamentos diferentes e, assim,
corpos diversos.
No campo das artes cênicas, isso pode ficar claro na maneira como artistas de
países diferentes se comportam no processo de criação. As sociedades criam significados
próprios para as suas representações cênicas e, para isso, criam imagens que irão
exigir comportamentos diferentes de seus atores e dançarinos. Uma maquiagem para
o ator ocidental pode ser simplesmente um adorno que ele coloca com uma finalidade
específica. Para um artista do Kathakali, gênero artístico e religioso do sul da Índia, a
maquiagem pode durar quatro horas e tem uma função ritual de se conectar com o
cosmos (AZEVEDO, 2002).
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O pensamento cristão trouxe noções de pureza e santidade que fazem com que
seus praticantes estejam sempre tentando evitar certas atitudes negativas, entendidas
como pecados. O filósofo Descartes trouxe a diferenciação entre o que acontece no
reino do pensamento e o que acontece no reino do corpo. O resultado disso é que o
ocidental tem, geralmente, uma visão mais pragmática do corpo, valorizando ações
ascéticas e reprimindo os desejos como perversidades.
Outras culturas viram o corpo mais conectado com uma espiritualidade física
e não diferenciaram o processo intelectual das necessidades corporais. As religiões
de origem africana ou os indígenas do continente americano, por exemplo, têm uma
tendência de ver o corpo como um receptáculo de comunicação com as entidades da
natureza ou de divindades cósmicas. Povos asiáticos trouxeram práticas meditativas
que buscam um contato maior com o ritmo que a vida corporal pede. Essas culturas
tendem a ver a vida de maneira mais integrada do que o ocidental. Por outro lado, o ator
oriental não tem a noção de expressividade que o ocidental tem, pois sua educação é
bastante restrita, de modo a ter um aprendizado detalhado e exato do gestual que se
passa por tradição entre mestre e aluno (AZEVEDO, 2002).
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grupos de pessoas com os quais o indivíduo possa interagir. Em toda interação humana,
são tecidas relações sociais das quais emergem significados variados e, em alguns
casos, até inesperados. Nas múltiplas relações, é possível pensar na constituição de
identidades que são resultados dessa quantidade quase incalculável de procedimentos
e de processos de socialização e de aprendizagem.
Também é importante trazer aqui um conceito que pode ser desenvolvido dos
exemplos anteriores: o relativismo cultural, na medida em que se torna incontestável a
diversidade de culturas nas milhares de respostas diferentes às necessidades humanas.
Basicamente, não seria possível determinar paradigmas que possam ser usados para
todos os povos. Cada expressão, crença ou ação só encontra sua validade no contexto
em que nasce (BONTE; IZARD,1991). Essa posição foi muito relevante para criar uma
resposta à noção de que as culturas evoluem em uma direção e que a sociedade
europeia seria o modelo para todos os outros povos do mundo.
Tomar o conceito de uma cultura por outra pode gerar uma série de mal-
entendidos e de incompreensões. Relações de poder surgem e acabam por minar trocas
saudáveis entre os povos. Aqui, tem-se o fenômeno do etnocentrismo; a ideia de que
a visão de mundo de um grupo é suficiente para hierarquizar os povos. Julgamentos
morais enviesados são tidos como universais (BONTE; IZARD, 1991).
Em sua essência, todos os projetos de colonização são eivados desse vício, pois
tomam as práticas de grupos culturais diversos como dependentes e limitadas. Muitas
das ideias raciais não passam de erros etnocêntricos de povos que tinham poder material
para impor sua estrutura de valores. Exemplos sobre o corpo já foram mencionados nas
páginas anteriores, mas outros podem se somar a essa percepção.
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Figura 4 – Bailarina muçulmana
DICA
Para entender melhor a rede simbólica dos processos culturais, leia o livro
Interpretação das Culturas de Clifford Geertz.
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como se entende o comportamento implicará a forma como ele é passado adiante entre
as gerações, como as diferentes vestimentas que restringem os movimentos de seus
usuários. E o tipo de comida e de bebida que se ingere transforma progressivamente o
corpo humano, em especial nos dias de hoje, em que os produtos superprocessados e
gordurosos geram uma quantidade maior de obesos.
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4 RELAÇÃO TRANSVERSAL ENTRE CIÊNCIA E CULTURA
Pela ciência, somos determinados pela carga hereditária de nossos antepassados,
mas, pelo estudo dos processos culturais, podemos dizer que não existe composição
fixa; o corpo se transforma nas diferentes situações a que é lançado. Como foi apontado
anteriormente, algumas de nossas características genéticas surgiram pelo contato dos
grupos humanos em sobrevivência com o ambiente. Pode-se perguntar, então, de que
corpo humano se está falando quando se consideram essas duas polaridades. O que
é mais relevante: o discurso da ciência biológica, que diz o que é a natureza, ou as
ciências humanas, que estudam as práticas humanas?
Quando o dançarino ou o ator se apresenta, ele utiliza seu corpo como meio de
expressão. São seus movimentos, gestos e vozes que preenchem o tempo e o espaço
para o deleite dos espectadores. E, aqui, surge o grande problema com o corpo nesse
tipo de trabalho artístico: o artista se apresenta como sujeito ou como objeto? O corpo é
o resultado de um trabalho ou é ele o criador da arte? Como considerar o fenômeno das
artes cênicas nesse contexto?
Figura 6 – Dançarino
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A arte, de modo geral, sempre provocou incômodos aos seus executantes por
ser, antes de qualquer coisa, uma forma indisciplinada. As obras artísticas estão sempre
em fricção e ruptura com o tecido social. As artes cênicas acrescentam o problema de
não terem seus limites facilmente perceptíveis. Por essa razão, precisamos pensar uma
noção de corpo que não fique presa a categorias específicas. Não podemos dizer que
tudo o que uma representação artística traz possa ser adequado completamente a sua
estrutura biológica ou às construções culturais que desenvolveu.
É preciso fazer uma leitura transversal dos conhecimentos expostos pela ciência
mais rígida da natureza e os conhecimentos do comportamento humano. Escolher um
sobre o outro é ficar preso em estruturas rígidas de pensamento que não ajudam a
desvendar a criatividade humana. Os conjuntos de conhecimento precisam ser vistos
em relação dinâmica para que se possa ver como o artista da cena constrói seu percurso
de modo original. Todo aquele que quer estudar as artes corporais precisa de uma visão
transversal entre elas.
Nesse sentido é que se convoca uma noção mais contemporânea para o trabalho
do corpo em arte. Ler os conteúdos conhecidos de modo transversal permitirá que se
perceba como um artista desenvolve seu corpo. Transversalidade implica algo que segue
seu sentido de modo oblíquo, inclinado ou desviante de um ponto de referência. Na
educação, consiste em contextualizar os conteúdos acadêmicos e resgatar a vivência
dos acontecimentos criando uma nova composição. Não basta que o aluno domine um
conceito; ele precisa também ser capaz de usá-lo criativamente em sua vida.
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convenções estabelecidas pela ciência experimental anterior. Uma visão que ainda
poderia apontar para os limites que podiam ser apreendidos, um modo de conhecer que
buscava compreender cada ser vivo na sua individualidade, sem perder a conexão com
a totalidade.
Para tratar assuntos do corpo, ele precisa ser visto na sua singularidade, ou
seja, como uma forma própria de viver e de existir no mundo. A arte é o campo que
pode atravessar os conteúdos e servir para uma comunicação original. As artes cênicas,
tanto pela dança quanto pelo teatro, podem servir para que alunos aprendam mais
sobre suas existências como corpos humanos. Porém, se a ciência clássica não as vir
como um domínio próprio se torna quase impossível compreender essa relevância. E
é por essa razão que uma nova visão epistemológica precisa ser mais de acordo com
as experiências realizadas pelas artes. É preciso que se pense mais próximo da noção
como foram ensinadas pelos cientistas e biólogos Humberto Maturana e Francisco
Varela (2010).
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Tudo aquilo que organiza uma entidade viva, ou no nosso caso um corpo,
estabelece limites com o seu entorno. Essas limitações são apenas consequências das
organizações internas. O exemplo mais claro usado pelos autores é o de uma célula,
que, pelas reações químicas, constitui a sua membrana que a separa do resto. Isso
implica que o processo de construção interna do ser vivo é responsável por designar
onde ele termina com relação ao ambiente. Da mesma maneira, é o desenvolvimento
do organismo humano que produz sua pele e, com isso, limita e protege a integridade
de sua vida com o mundo exterior.
Se for desse jeito, formas que mantêm alguma coesão, mas que estão sempre
se organizando e se reestruturando, necessitam de uma lógica que possa mostrar
como a vida não pode ser dividida entre as noções de sujeito e de objeto, pois cada
organização é um pouco dos dois. Para que isso seja possível, deve-se pensar que há
uma relação circular entre os componentes de um corpo e ele mesmo. E, aqui, entra
a ideia de autopoiese palavra derivada do grego (autopoiesis) e surgida da união de
autós (por si próprio) e poiesis (produção); ou seja, significa autoprodução (MATURANA;
VARELA, 2010).
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Uma entidade pode produzir-se, porque se mantém em estado de interdepen-
dência com seu meio. Ela mantém alguma unidade e individualidade, tanto que pode
ser reconhecida como tal, mas apenas porque se coloca em um foco específico em suas
próprias relações.
Assim, podemos trazer esse modo de pensar para a situação do artista que cria
com o próprio corpo. O que torna sua visão fundamental para um pensamento transversal
é que a vida só se sustenta por uma relação de autopoiese. Diferenciam-se entre si por
terem estruturas diferentes, mas são iguais em sua organização por estarem em troca a
partir dos mesmos componentes. Pode-se entender que toda tensão entre um indivíduo
autopoiético e seu meio é uma forma de simbiose, isto é, uma relação proveitosa entre
ambos. O que está em jogo, nessa noção autopoiética, é a capacidade de se reconstruir e
de se formar a si mesmo com as condições exteriores que lhe são ofertadas.
Estas simbioses são uma forma de ver como as culturas se assentam com
relação ao ser humano. As coletividades criaram uma diversidade de comportamentos
sociais que acabaram ganhando uma autonomia, mas, na verdade, estão em relação
constante com o aspecto vivo de sua natureza. Das várias formas culturais criadas,
está a arte que precisa, por isso, ser entendida como projeto externo e também como
experiência interna. Ela se torna uma forma de coexistência social, principalmente por
meio da dança e do teatro.
24
Não se trata, portanto, de pensar a arte do corpo como uma produção separada
do seu produto. Aqui, podemos trazer mais um conceito que dialoga com essa noção
de transversalidade entre natureza e cultura, sujeito e objeto, criador e criatura, pois
a ideia de que uma forma artística corporal possui certa autonomia, apesar de um
entrecruzamento de influências, só pode fazer sentido com uma noção que vem da
teoria social contemporânea: a teoria do pensamento complexo, de Edgar Morin (2011).
25
Portanto, ter um pensamento complexo implica reunir os elementos divergentes
de modo a trazer mais riqueza. Não se separa natureza de cultura ou sujeito de objeto. O
trabalho com as artes cênicas tem sua riqueza pelos próprios paradoxos que pode produzir.
Da mesma forma, o professor de teatro ou de dança não precisa se preocupar que os
alunos executem suas atividades dentro de um valor de certeza, mas que experienciem
e aproveitam cada instante. O erro de um ensaio pode se transformar em uma cena de
extrema beleza se for cuidada e alimentada nas suas contradições e ambiguidades. Arte
não trata de certo ou errado, mas de viver o estado indefinido da vida.
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RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:
• O corpo humano não pode ser visto de maneira única quando se trata da compreensão
de seus processos criativos. Quando se fala de corpo, é preciso reconhecer tanto
a sua universalidade, pois é um elemento comum a todos, quanto também a sua
singularidade, já que cada corpo é diferente e único. Para isso, são necessários muitos
conhecimentos para compreender todas as potencialidades criativas disponíveis.
• Sobre a dimensão física, constitui-se em uma outra camada que pode ser
entendida como cultural. A cultura precisa ser compreendida como cultivo, ou
seja, a transformação dessa materialidade pelas relações coletivas entre os seres
humanos. Aspectos do corpo que poderiam ser vistos como naturais são, na verdade,
construções humanas.
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AUTOATIVIDADE
1 O corpo humano é um vasto conjunto de processos biológicos que o mantém
em atividade. Um artista do corpo precisa aprender suas funções biológicas para
compreender a base de seu comportamento e, assim, poder ter liberdade para
construir sua expressão cênica a partir de movimentos livres e internamente
desimpedidos. Nesse sentido, analise as sentenças a seguir e assinale a CORRETA no
que tange ao assunto do metabolismo.
2 O corpo humano não tem apenas um aspecto definido pela ciência natural da biologia
como se fosse apenas um conjunto material de células reunidas. Ele possui uma
dimensão cultural que o torna muito mais complexo para ser definido. Um assunto
relevante para todos aqueles que desejam se expressar cenicamente, sejam
profissionais do teatro ou da dança. Nesse sentido, analise as sentenças a seguir, que
tratam do assunto da cultura e de sua relação na formação do corpo.
I- O corpo é uma realidade universal; por isso, pode-se dizer que todas as culturas o
enxergam da mesma forma.
II- O aspecto cultural permite ver o corpo como uma criação original da consciência
humana.
III- A antropologia, como ciência, ajuda a compreender a ideia da existência de um
corpo cultural.
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inextricavelmente entrelaçadas, indelevelmente presentes em todas as nossas
atividades, e os fenómenos nelas produzidos inelutavelmente diversos” (MATURANA,
2014, p. 9). Baseado na noção de relação transversal entre biologia e cultura,
classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas.
( ) A teoria autopoiética parte do princípio de que a vida, ao ser entendida como processo
ininterrupto, cria mecanismos que unem o conhecer e o viver ao mesmo tempo.
( ) Não é possível conhecer, objetivamente, fenômenos sociais nos quais o próprio
observador-pesquisador que descreve o fenômeno está envolvido.
( ) Cada entidade viva pode ser vista ao mesmo tempo como parte de um meio
ambiente e ter uma singularidade que age por si mesma.
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UNIDADE 1 TÓPICO 2 -
O CONHECIMENTO DO CORPO
1 INTRODUÇÃO
Vistas as condições estruturais da criatividade, neste segundo tópico da
Unidade 1 vamos entender como se realiza o processo criativo dos artistas cênicos,
considerando que os aspectos culturais e fisiológicos deverão ser contemplados nos
termos de transversalidade comentados no Tópico 1.
O corpo possui sua própria sabedoria. Todo artista que trabalha a partir de si
mesmo e de sua corporeidade precisa estar disponível para essa relação íntima consigo
mesmo. Isso significa estar consciente da sua sensibilidade física, aguçando seus
sentidos corporais, para obter vivências mais transparentes com a realidade. O corpo é
em si mesmo um modo de conhecer, deve ser visto como um paradigma com o qual se
estruturam os saberes e é o seu ato de existir, a cada momento, que será relevante para
a constituição de sua arte.
A voz de um tenor pode atingir tons agudos de até cinco oitavas. Alguns povos
africanos são conhecidos por realizarem rituais de dança que podem durar dias inteiros.
Algumas pessoas nascem com o dom do ouvido absoluto, sabendo discernir sons
com perfeição. Indivíduos se colocam em provações físicas dos mais diversos tipos
todos os dias. Um corpo é capaz de realizar proezas únicas, mas que nem sempre são
reconhecidas como saberes próprios.
31
É nesse sentido que podemos ver condições no mundo de hoje para um corpo
como produtor e produto de sua própria sabedoria. Precisamos apenas perceber a
potencialidade do corpo humano como estrutura capaz de criar e isso implica o trabalho
do educador cênico, seja pela dança, seja pelo teatro. Perceber que cada movimento,
toque e sensação podem produzir uma ruptura no que se tem por estabelecido
historicamente é que o torna arredio ao discurso herdado e cria um novo conhecimento
que permite a transformação.
Alcançado esse entendimento que permite ver o corpo individual como uma
importância social e política, precisamos pensar em algumas estruturas que possam
servir de diálogo para compreender sua força viva. Voltamos, então, para suas condições
de promover o movimento, pois é a partir dele que os artistas conhecem a realidade.
32
Figura 7 – Planos e eixos
Eixo longi-
tudinal
Plano Plano
sagital frontal
Eixo ântero-
-posterior
Eixo lárero-
-lateral
Plano
horizontal
Um eixo de movimento precisa ser entendido como uma dobradiça, pois é a sua
extensão que determina um movimento dentro de um determinado plano, percebendo
como o corpo se abre ou se fecha, ou como se estende ou se contrai. São três planos
e três eixos que se cruzam permitindo o movimento. Os nomes dos planos são: sagital,
frontal e transverso. Os nomes dos eixos são: sagital, frontal e longitudinal.
O plano sagital irá dividir o corpo igualmente entre um lado esquerdo e um lado
direito, como se fosse uma lâmina que passasse da superfície posterior para a anterior.
O eixo frontal é o que permite a criação desse plano. Os movimentos de extensão e de
flexão são os movimentos comuns ao plano.
33
Figura 8 – Os três tipos de planos: sagital, transverso e frontal
34
É preciso ter em mente que tipos diferentes de movimento podem acontecer
em um mesmo corpo. Um skatista pode seguir seu corpo total em uma direção linear
enquanto seus quadris, joelho e tornozelo fazem movimentos angulares para impulsionar
a prancha. A maioria dos movimentos corporais é angular, mas a tendência de ações
para fora do corpo é linear.
35
Figura 10 – Tipos de movimento: ombros e mãos
36
que fazem inversão, movimento medial da planta do pé para dentro e eversão:
movimento lateral da planta do pé para fora. Existe, ainda, a protrusão: um movimento
linear do braço paralelo ao solo para frente e afastando-se do plano frontal do corpo;
e o seu contrário, a retração: também um movimento linear com o braço em paralelo
ao solo, mas na direção oposta, ou seja, para trás. Com esse vocabulário, você já pode
entender um pouco a natureza do movimento físico e suas possibilidades, uma vez que
se apresentou uma visão mais anatômica e geral.
De posse dessas informações, podemos dar mais um salto para outro campo
de conhecimento que ajuda a perceber o potencial criativo do corpo. Se o corpo é
uma figura física e natural, mas também cultural e o processo de interação dessas
dimensões permite o seu uso criativo, deve ficar claro que os aspectos emocionais e
intelectuais também atravessam essas dimensões corporais. Um corpo que se exercita
e se expressa em grupo implica não apenas trocas de sensação, mas o despertar de
sentimentos e ideias. Por essa razão, precisa-se comentar a importância da terapia
física no trabalho do educador (AZEVEDO, 2002). Várias formas de terapia expressiva
enxergam a totalidade do corpo pelo movimento. Se estamos buscando um novo
paradigma do corpo, enxergá-lo a partir de um novo episteme, precisamos adentrar
visões que colocam essas dimensões em interação.
37
Para iniciar, vamos começar com a posição do autor israelense Moshe
Feldenkreiss e seu método de consciência pelo movimento. Seus exercícios são
planejados para que o atuante se torne mais consciente de sua própria individualidade
por meio de um treinamento autoeducacional, ou seja, cada praticante vai descobrindo
o sentido e a potencialidade de seu próprio corpo em ação. Ele rejeitava exatamente as
forças que tentam uniformizar os seres humanos em sociedade como se todos fossem
corporalmente iguais. O resultado são indivíduos que não compreendem os desejos que
brotam de seus corpos.
Estas condições levam a maior parte dos adultos hoje em dia a viver
atrás das máscaras, a máscara da personalidade, que o indivíduo
tenta apresentar aos outros e a si mesmo. Cada aspiração e desejo
espontâneo são sujeitos a rígida crítica interna, por medo de que
revelem a natureza fundamental do indivíduo. Tais aspirações e
desejos trazem ansiedade e remorso, o indivíduo procura suprimir o
impulso de realizá-los. [...] A necessidade de apoio constante é tão
grande, que a maior parte das pessoas passa a maior parte das suas
vidas reforçando as máscaras (FELDENKRAIS, 1977, p. 23).
A autora parte da ideia de que existem muitas fixações nas relações musculares
que precisam ser reintegradas ao comando geral do corpo. Isso exige toda uma série
de exercícios que trazem relaxamento para que cada pessoa aprenda a aumentar ou a
38
diminuir o tônus conforme a necessidade de suas ações. O contato é mais importante do
que o tato, pois implica a vivência consciente da ação e a percepção das alterações de
tônus, de circulação e de metabolismo. Saber avaliar as próprias sensações e descobrir
seu próprio estilo de movimentação é o objetivo de todo eutonista.
DICA
Para o estudo mais aprofundado dessa prática terapêutica e corporal veja a obra
Eutonia da autora, Gerda Alexander.
Por fim, temos uma outra forma de terapia corporal que nasceu do trabalho
de observação de um ator. Trata-se da técnica de Alexander, criada pelo australiano
Mathias Alexander. Em seus trabalhos como artista, Alexander muitas vezes se viu em
uma situação em que, durante uma apresentação, perdia a voz. Ao verificar com um
médico e ver que não tinha nenhum problema nas cordas vocais, decidiu pesquisar
sobre si mesmo e criar um conhecimento do próprio corpo.
Lembro-me ainda de, nesse período, discutir com meu pai os erros do
uso que eu havia observado tanto em mim quanto em outras pessoas
e de argumentar que, nesse aspecto, não havia diferença entre nós
e um cão ou um gato. Quando ele me perguntou por que, respondo:
‘porque nosso conhecimento sobre o uso de nós mesmos não é maior
que o de um cão ou um gato’. Com isso eu queria dizer que a direção
que o homem imprimia a seu uso, por ser baseada na sensação, era tão
irracional e instintiva quanto a do animal (ALEXANDER, 2010, p. 28-29).
Com seus estudos, Alexander (2010) chegou à conclusão de que todo ser
humano tem o poder de se modificar. Para isso, precisa romper com os hábitos que
constituiu no processo de seu crescimento.
39
do pescoço para obter a organização do corpo inteiro. A apreciação sensorial enganosa
é o quarto princípio. Ele implica desconfiar das sensações do corpo, pois, por conta dos
maus hábitos, o usual parece correto, mas pode estar equivocado. Pela conscientização
e exercícios, pode-se criar uma apreciação corporal verdadeira (AZEVEDO, 2002).
3 AS TÉCNICAS DO CORPO
Como se viu anteriormente, não se trata de fazer o corpo criar algo externo a
si, mas que está ligado a sua própria existência. Isso significa que precisamos entender
que o corpo é capaz de construir um tipo de discurso que lhe é próprio.
40
O filósofo Michel Foucault (2008) criou um termo para designar como cada época
legitima seu discurso sobre o conhecimento: o episteme. O pensador a caracteriza como o
conjunto de relações de uma época específica, quando se analisa as regularidades dos
discursos das ciências do período. Não é um conhecimento em si mesmo, mas todos
os recursos que permitem que algo seja visto como um conhecimento digno de ser
estudado. O problema acontece quando coisas diferentes e dispersas são vistas como
universais e atemporais. A episteme é:
Você já parou para pensar o que é uma técnica? O que se esconde por trás
dessa palavra tão comumente usada em diversos setores da sua vida? Nós a usamos,
normalmente, para designar um conhecimento especializado; algo que apenas algumas
pessoas dominam e são capazes de realizar. A origem mais provável da palavra é que ela
tenha vindo do grego téchne, que significava a arte ou a habilidade de realizar alguma
coisa, muito ligada à noção de artesania. O modo como alguém aprende a fazer um
41
jarro de barro ou produz um tecido com as próprias mãos são exemplos bem pontuais.
O termo técnico se refere a um conhecimento, mas que passa pelas relações pessoais
e pela observação. Perceba que, no passado anterior à criação da indústria, todo
aprendizado de conhecimento precisa passar por esse tipo de relação em que pelas
experiências com alguém mais entendido se desenvolvia um ofício.
O sociólogo francês Marcel Mauss foi o primeiro a utilizar esse termo empregado
ao corpo humano. Ele falava em técnicas do corpo, no plural, pois se referia a todas
as maneiras como os seres humanos, de sociedade em sociedade, de uma forma
tradicional, sabem servir-se dos seus próprios corpos. Assim, imaginava proceder a
uma investigação das situações concretas para o terreno mais abstrato (MAUSS, 2003).
Estudando etnografia, ele percebeu que nem todos os povos possuem todas as práticas
físicas da mesma maneira. Os polinésios, segundo ele, não sabiam nadar como os
franceses. Estava-se diante de um fenômeno social importante, pois isso significava
que cada povo desenvolvia criativamente a sua forma de realizar uma ação.
Outro fato que deixava claro o que se entendia por técnica corporal residia na
maneira como gerações diferentes aprenderam a nadar. O autor comentava que, em
sua juventude, primeiro se aprendia a nadar para só então aprender a mergulhar na
água e que isso deveria ser feito fechando os olhos e depois, dentro da água, abrindo.
Na época em que escrevia seu artigo, os ensinamentos estavam completamente
invertidos: a criança começava a aprender a se acostumar com a água mergulhando de
olhos abertos (MAUSS, 2003).
No mesmo sentido, ele considerou a diferença das técnicas pelas idades dos
indivíduos. Uma criança tem mais facilidade em se agachar do que um adulto. Isso o
fez considerar que algumas práticas poderiam ser socialmente mais utilizadas se não
fossem reprimidas ainda na infância. Percebeu como os soldados australianos se
portavam melhor por não saberem se agachar como as crianças e ele, como francês,
tinha dificuldade de fazer o mesmo gesto (MAUSS, 2003). Essa ideia ressoa bastante
com as pesquisas dos terapeutas físicos apresentados no subtópico anterior. Saber
ouvir as necessidades do corpo e estimulá-las conscientemente faz toda a diferença
para um conhecimento saudável de si.
43
Esse processo de adestramento retorna aqui com o tema da educação, pois a
técnica corporal existe apenas por uma relação humana que permitiu sua aquisição.
Mauss (2003) tem a argúcia de perceber que os detalhes são essenciais para que
haja a aprendizagem dessas técnicas corporais. Ele comentava que se reconhecia
um muçulmano facilmente pela educação que teve em se alimentar apenas com a
mão direita e limitando o uso da mão esquerda nos locais que tocava. As repetições
de elementos aparentemente supérfluos constroem um hábito, um modo de vida, ou,
melhor, uma técnica corporal.
Fica definido, assim, que toda forma de cuidado de um corpo traz consequências
para a sua existência. Algumas pessoas podem achar que nossa relação com a
saúde física no comportamento sempre existiu, mas, na verdade, ela foi construída
culturalmente e se dá em grande medida nos termos apresentados aqui, de modo
técnico. A ginástica, por exemplo, surgiu com os espartanos na Grécia Antiga, perto do
século VI a.C. Vários outros povos tinham práticas semelhantes de exercício do corpo,
mas apenas os gregos a valorizaram pela nudez estética. Isso gerou um modelo artístico
que pode ser observado nas pinturas, esculturas e nos desenhos legados por eles.
44
A ginástica era estimulada como forma educacional para que os jovens tivessem
condições de defender a cidade. Mantém-se até hoje a prática do pentatlo: os cinco
exercícios competitivos que se faziam na ginástica, que, na época antiga, eram: corrida,
salto, lançamento de disco, lançamento de dardo e luta. Desde então, sofreu várias
modificações, sendo hoje composto de esgrima, tiro, hipismo, natação e corrida. E,
evidentemente, em decorrência da mudança dos costumes, a própria nudez que foi um
fator importante para o exercício foi abandonada por completo. Um detalhe desaparece
com o tempo, mas algo da técnica se mantém.
O que parece ficar claro aqui é que as técnicas do corpo não se limitam ao uso de
instrumentos ou ferramentas, embora isso também tenha influência na transformação
corporal. Pessoas que passam a vida usando um tipo de roupa têm sua estrutura
corporal contida pela vestimenta, orientando formas de tensão e de expressão típicas.
Mesmo a relação com outros seres pode ajudar nas transformações corporais. Uma
pessoa que cavalga com frequência terá um tipo de abertura nas pernas diferente de
quem não o faz.
Nenhum ser humano nasce sem a sua disposição em obter uma máscara social.
São conhecidas as histórias de crianças selvagens que foram criadas por animais e, com
isso, repetiam seus comportamentos, como correr em quatro patas. Mera presença de
modelos, ainda que não humanos, pode conferir os estímulos para as técnicas corporais
de qualquer um. A construção cultural está sempre em conexão com a vida biológica,
como vimos no Tópico 1. De qualquer maneira, a técnica corporal tem sua independência
pelo aspecto da aprendizagem social.
45
Não escaparemos do construído social. Por ser sem dúvida uma
banalidade, esta observação toma uma importância considerável
num domínio em que uma de suas originalidades é engendrar
medos, fascinações ou rejeições particulares. O simbólico, no sentido
de Marcel Mauss, é indissociável do empírico e do tratamento social
(CORBIN; COURTINE; VIGARELLO, 2012, p. 347).
A ideia de que técnicas corporais são a aplicação de normas sociais nos faz
pensar que somos apenas um fruto da sociedade. Por outro lado, isso não implica
que somos vítimas dos primeiros aprendizados, mas que sempre se pode tomar outro
caminho durante a formação. Isso significa que já nascemos com a disposição para
nossas próprias criações corporais. Se não existe uma essência corporal natural que
todos teriam se fosse negado o ensino, isso significa que todo corpo é concretamente
válido para construir-se tecnicamente.
Dessa forma, fica claro que as técnicas do corpo carregam algo de intangível
pela forma como são transmitidas e absorvidas. Também deve-se comentar que não
existe uma técnica corporal fechada, pois, se ela depende de relações sociais que
se transformam em espaço e tempo, elas serão sempre múltiplas e só podem ser
conhecidas e reconhecidas por comparação. O espontâneo de nosso comportamento
passa sempre por relações invisíveis que lhes trazem significado. É nesse contexto que
se deve pensar o processo artístico pelo corpo.
Toda pessoa que já fez balé sabe o sofrimento que muitos dançarinos passam
para adquirir a musculatura e a elasticidade necessárias nos lugares certos para que
possam executar seus passos. Um corpo se transforma pelas práticas que percebe e
executa; daí muitos artistas passam tanto tempo em ensaios e em treinamentos. Seus
corpos podem começar frágeis, mas eles ganham as características próprias na medida
em que repetem suas séries de movimentos e de gestos.
46
seus alunos aprendam a lidar com suas dificuldades e descubram formas de agir mais
espontaneamente, sem ficarem presos aos vícios corporais que a sociedade lhes
impingiu. Precisam desenvolver tonicidade, flexibilidade, orientação no espaço, ritmo
coordenado, lateralidade e resistência.
47
A dança e o teatro servem como um caminho possível para a conscientização,
porque seu processo técnico ajuda a nomear e a perceber as partes do corpo que não
estão conscientes. Enquanto o artista se movimenta, confere significado e sentido
às partes do corpo que não percebia que eram fundamentais para sua existência e
movimento. As preocupações intelectuais das pessoas as separaram da vida comum e
se perdeu a consciência de muitas partes do corpo, mas, quando se executa uma ação
com consciência, isto é, seguindo-a detalhadamente, logo descobre-se que mesmo a
mais simples e a mais comum das ações, tal como levantar-se da cadeira, tinha algo de
misterioso e que não se tinha absolutamente ideia de como isso era feito até o momento
(FELDENKRAIS, 1977).
48
Figura 14 – A presença de Paulo Autran no palco
O corpo cênico precisa estar cuidadosamente atento a si, aos seus colegas
de cena e a todo o contexto em que está envolvido. A sua força sensorial precisa ser
aberta e conectada. É a atenção que faz a diferença. A atenção é uma precondição para
a ação cênica, ou seja, um estado de alerta sem tensão excessiva, quase relaxada, que
se experimenta pela firmeza dos movimentos que foram educados e desenvolvidos pelas
técnicas. Uma técnica corporal criativa é exatamente isso: a atenção dirigida ao trabalho
e todas as influências do meio, para que possa se transformar conforme as necessidades.
49
DICA
Para aprofundar mais a relação das artes cênicas com o corpo, procure o livro
História Mundial do Teatro de Margot Berthold.
Dentro do teatro, uma das primeiras grandes escolas vem da Rússia e foi
constituída por Konstantin Stanislavski. Em uma época em que se buscava uma atuação
mais perto da realidade, o mestre russo procurou criar um sistema que evitasse o clichê
e alimentasse a verdade na atuação.
O ator deveria ser capaz de criar uma vida no palco com sua personagem
e expressá-la de forma bela. Se o ator usasse sua imaginação pesquisando as
circunstâncias dadas pelo texto dramatúrgico e pela personagem, ele poderia pesquisar
ações que seriam os meios de expressão da emoção. Para isso, o corpo precisava
estar preparado com exercícios que trariam relaxamento, mobilidade, flexibilidade e
expressividade (AZEVEDO, 2002).
50
influenciado pelo circo, a commedia dell’arte e o music hall. Utilizava-se de um sistema
de treinamento que racionalizava os movimentos: a chamada biomecânica, que consistia
em pequenas coreografias que contavam histórias com movimentos exagerados
(AZEVEDO, 2002). A memorização e a repetição dos movimentos preparavam o ator
para ter condições de atuar.
51
e se dedicou para que o ator fosse como um músico instrumentista de seu próprio
corpo. O ator deveria aprender impecavelmente a técnica de tocar seu corpo, como um
instrumento musical que toca uma partitura. Decroux criou sua visão do corpo cênico
como uma série de movimentos e conjunto de gestos que serviam para constituir um
vocabulário próprio com o qual se criaram as cenas.
52
No início do século XX, os balés russos revolucionaram a dança tradicional com
um novo entendimento do comportamento do corpo. Unindo pantomima, ginástica,
esporte e atletismo à dança, acabaram por criar um treinamento em que os movimentos
não precisavam mais da antiga coordenação acadêmica. Os braços poderiam dançar
em um tempo diferente das pernas, por exemplo (AZEVEDO, 2002). Uma herança que
aparece na dança moderna.
Ela ficará conhecida por ter seus bailarinos trabalhando a partir de contrações,
torções e desencaixes para alcançar uma liberdade diferente do ballet clássico. Cada
linha pedirá um tipo de comportamento cênico específico. Um último exemplo fundador
e modelo desse estilo foi Isadora Duncan. A bailarina acreditava em seu trabalho como
expressão de seu temperamento e de sua história pessoal. Inspirou-se nas ações mais
comuns do ser humano: andar, correr e saltar. Usava também a ginástica como base
de seu treinamento para criar músculos ágeis e vigorosos. Somente depois desse
preparo, viria a dança em que o corpo responderia às pulsações da natureza em seus
movimentos, dançando descalça e em ondulações.
53
A técnica é um resultado, mas também um limite. É preciso
superá-la; mas é preciso tocar este limite. No início nosso interesse
concentrou-se na técnica. Tínhamos a necessidade de nos afirmar
profissionalmente, de acordo com as teorias teatrais vigentes, para
superar nosso senso de inferioridade e nosso complexo de rejeição. A
técnica foi um objetivo na nossa biografia de grupo. Depois chegou o
dia em que nos perguntamos como ir além dos resultados alcançados.
Vimos que estávamos nos tornando um modelo, corríamos o risco de
ficar igual a midas: tudo o que tocávamos transformava-se em ouro,
algo que brilha, mas não tem valor nutritivo (BARBA, 2010, p. 95).
Esse ponto é muito importante para aqueles que trabalham com processos
criativos a partir do corpo. A técnica não é uma mera mecanização em que se repetem
comportamentos culturalmente estáticos de modo idêntico. As técnicas corporais nas
artes cênicas servem a propósitos muito claros; elas devem desenvolver o corpo para
que ganhe os atributos necessários a sua apresentação. Por outro lado, não se espera
que esses atributos valham por eles mesmos; o artista precisará achar uma forma de
transcender o que aprendeu. A criatividade surge pelo aprendizado, e não sem ele.
Desse modo, cada técnica tem valor para aquilo que se pretende alcançar.
Colocar um bailarino clássico para fazer dança moderna pode não ter bons resultados.
Ele estará preparado tecnicamente, mas a sua preparação veio junto com o aprendizado
de uma linguagem estética específica. Ele precisará se adaptar às exigências de outra
estética. Talvez, isso crie a ideia de que se deve aprender as várias técnicas, mas isso
também não resolverá o problema.
54
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:
• Visto que o corpo é uma entidade complexa que se transforma pelas mais variadas
razões e sentidos, passa-se a entendê-lo como uma parte do ser humano no processo
de conhecimento. O fato de o corpo existir já traz para ele a possibilidade de conhecer
a partir dessa existência; um fato fundamental para artistas que trabalham com o
processo criativo do corpo.
55
AUTOATIVIDADE
1 Para determinar o movimento de algum objeto, é preciso ter um termo de referência
que possa servir para indicar o deslocamento. Considerando a estrutura do corpo
humano, do ponto de vista anatômico e cinesiológico, ele só pode ser estudado em
sua potencialidade de movimentos quando são determinados padrões que indicam
os tipos de ação possíveis de serem realizados. Nesse sentido, leia as sentenças a
seguir sobre eixos e planos.
2 “É este o mundo imediato, mundo dos sentidos e dos meios, dos estados físicos, que
restitui primeiramente uma história do corpo; um mundo que varia com as condições
materiais, os modos de habitar os modos de garantir as trocas, de fabricar objetos,
impondo modos diferentes de experimentar o sensível e de utilizá-lo.” (MAUSS, 2003,
p. 407). Sobre a técnica do corpo de Marcel Mauss, classifique V para as sentenças
verdadeiras e F para as falsas.
56
3 O corpo humano é um local de desenvolvimento criativo. Todo ser humano tem um
potencial a ser despertado no uso do movimento corporal por meio de técnicas de
dança e de teatro. Um dos resultados do trabalho cênico é alcançar o que o psicólogo
Mihaly Csikszentmihalyi (1992) chamou de estado de fluência. Nesse sentido, assinale
a alternativa que melhor define esse tipo de comportamento.
5 O sociólogo Marcel Mauss (2003) passou a ideia de que uma técnica do corpo deve
muito ao aprendizado que recebe pela coletividade. O artista cênico é alguém que
aprende formas de comportamento específicas para a cena, seja ele um pesquisador
pela via do teatro ou da dança. Nesse sentido, explique como se adapta a ideia de
técnica corporal ao processo criativo no comportamento cênico.
57
58
UNIDADE 1 TÓPICO 3 -
CORPO CRIATIVO: REPRESENTAÇÃO
E PERFORMANCE
1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, no Tópico 3 abordaremos o processo criativo do corpo com relação
à cênica total. Compreendidos os elementos formadores do corpo e a maneira como ele
se transforma criativamente, pode-se entrar, agora, no processo artístico propriamente
completo. Como já se disse, o corpo é um meio e um objetivo quando transformado
pelos processos criativos dos artistas. Nesse sentido, vamos entrar, neste tópico, em
conceitos que tocam a dança e o teatro quanto às suas criações.
59
constantemente no uso de nossa linguagem. Quando falamos o nome de algo ou
de alguém, estamos trocando sua presença física pelo som de seu nome. Para que
fique mais claro, quando leio a palavra “elefante” imagino o animal de carne e osso,
mas ele não vai surgir caminhando com suas pesadas toneladas, fazendo bramidos
com sua poderosa tromba. O que acontece é que conseguimos comunicar um objeto
real trocando-o pela palavra que comumente o designa. Algo que aprendemos com a
semiótica, da qual se pode dizer:
Quando se fala a palavra “corpo”, o que você imagina? Poderia ser uma
pessoa magra ou gorda; alta ou baixa; forte ou fraca; masculino, feminino ou outro;
de qualquer tom de pele. As palavras representam o que existe e o que não existe
ao mesmo tempo. Esse é o ponto importante que se precisa saber para lidar com a
expressão dentro da cena.
No caso das artes cênicas, tanto o teatro quanto a dança podem parecer que
não representam nesse sentido que faz a linguagem, como uma espécie de nova
apresentação de algo. Afinal, quando se leva um espetáculo para um palco, não parece
que se está trazendo algo que existe em outro lugar, pois os artistas realizam suas ações
naquele exato momento. Por outro lado, no caso do teatro, pode-se afirmar que ele traz,
sim, alguma coisa que já existe para o instante da apresentação. O texto dramático que
estava na forma textual existia apenas como palavras impressas e agora é realizado
pelo elenco.
60
Basicamente, um autor escreveu uma obra dramática a qual o diretor e seu elenco
precisam transformar em cena viva. Designam-se os atores para suas personagens e se
criam as representações do que foi concebido em forma escrita. Deseja-se trazer uma
estória que antes só podia ser acessada pela leitura para um terreno novo como o palco.
DICA
Para conhecer melhor o processo de representação, procure o livro Grandes
Teorias do Teatro de Jean Jacques Roubine. No livro o autor expõe as novidades
alcançadas historicamente na Europa.
61
A representação em dança acaba tendo de recorrer a sua singularidade técnica.
Cada escola apresenta um modo de improvisação e de construção de um vocabulário
de movimentos. Seus exercícios existem para que os dançarinos possam descobrir
como criar suas coreografias. O que mostra a criatividade corporal é que, apesar de
todos compartilharem da mesma linha técnica, cada um a reconstrói conforme sua
própria imaginação. O ensino técnico se torna permeável para que os corpos possam se
expressar esteticamente e encantar cinestesicamente.
Isso implica que a palavra representar deve ser lida nesse aspecto de tornar
algo presente; no caso, no instante da apresentação cênica. Como coloca o teórico
Patrice Pavis, existem, pelo menos, dois critérios fundamentais para compreender a
ideia de representação no palco: “[...] repetição de um dado prévio e criação temporal do
acontecimento cênico – estão, com efeito, na base de toda encenação” (PAVIS, 1996, p.
338). O fato é que se apresenta algo que não tinha vida autônoma antes da representação.
Todos os modelos que possam ter servido para orientar seus trabalhos nunca
serviram para determinar cabalmente o trabalho. A origem do trabalho, de onde veio a
representação, existe apenas em estado latente, mas ela pode tomar qualquer forma,
dependendo do que os artistas selecionarem e criarem.
62
Figura 19 – Sagração da primavera
Como Otelo vai sentir ciúmes? Como serão os passos dos dançarinos com a
música? Os artistas vão explorando nos ensaios e depois decidem o que lhes convém
mostrar em sua representação. Essa interpretação do processo de representação
parece, portanto, abandonar a noção de fidelidade da cena com aquilo que a originou. O
teatro passou por essa questão, constantemente, no passado, tendo defensores de que
não passaria de um galho em que a árvore é a literatura; uma ideia que, hoje, já encontra
o esgotamento.
63
Diante de todas essas questões levantadas, outra maneira de entender as artes
cênicas em representação seria entendê-la como símbolo. A fala, como já apresentamos
anteriormente ao tratar da semiótica, pode ser considerada uma simbolização de ideias,
ao usarmos sons específicos das palavras para nos fazermos compreender. Entretanto,
a filósofa Susanne Langer (1989) percebeu que existiriam algumas ideias que não podem
ser expressas diretamente pela linguagem discursiva. Ela trouxe a ideia de que existiriam
símbolos apresentativos, ou seja, tudo aquilo que não cabe dentro de uma conceituação
intelectual e só pode ser apresentada por imagem, sons, movimentos, ritmos e figuras.
Os artistas fazem simbolizações com seus corpos tanto na dança quanto no teatro.
Como a autora conceitua:
O que a autora quer dizer é que existem formas de representação que não
podem ser tomadas exatamente como a linguagem comum faz. Um dançarino pode
representar o amor com movimentos de modo que a palavra escrita não consegue.
Contudo, esse tipo de ideia de uma representação simbólica que não depende de uma
ideia preexistente fez muitos teóricos refletirem se a natureza da palavra representação
é adequada ao teatro e à dança.
64
Representar é apenas uma pequena parte, embora relevante. É a apresentação
que a torna marcante ou não. Perceba que o que se comenta aqui está presente em
outras artes também. Todos os livros escritos em língua portuguesa recorrem às mesmas
regras gramaticais e às palavras do idioma; no entanto, apenas alguns podem promover
essa relação emocional no momento exato da leitura. No caso das artes cênicas, o fator
que desejamos nomear aqui é a presença.
Não se pode descrever exatamente esse estado e a maneira como ele move
emocionalmente o espectador, mas apenas se sente. Por isso, o processo simbólico das
artes cênicas é o que melhor aponta para a compreensão da criatividade pelo corpo.
Entretanto, se o termo representação apresenta esses limites, talvez fosse necessário
pensar em uma palavra que ajudasse os artistas a se expressarem melhor. Daí, criou-se
uma noção mais adequada da palavra performance.
Essa expressão foi usada muito tempo para apreender o trabalho de todo artista
que fazia exibições ao vivo. O ator, o dançarino, o cantor e o músico ficaram conhecidos
como tipos diferentes de “performers”, pois precisavam realizar um tipo de ação direta
que marcava o seu desempenho diante de uma plateia. Com o tempo, a palavra começou
a ganhar outras conotações dentro das artes visuais e plásticas: um tipo de arte que se
relaciona com a dança e o teatro, mas que desenvolveu sua própria autonomia.
65
Na Itália de 1909, surgiu uma nova proposta artística que visava revolucionar o
entendimento cultural vigente com uma violência incendiária. Era publicado o primeiro
manifesto do Futurismo, movimento artístico de múltiplas frentes, criado por Filippo
Marinetti. Ele foi influenciado pela obra do dramaturgo Alfred Jarry e sua peça Ubu Rei,
uma peça provocadora com um cenário simples e em que o personagem principal abria
o espetáculo falando “Merdra” (GOLDBERG, 2006).
INTERESSANTE
Ubu Rei foi um grande deboche com a cultura francesa, inspirado em Macbeth de
Shakespeare. Para conhecer e entender melhor o fenômeno do Ubu Rei, leia o
próprio texto escrito por Alfred Jarry em várias edições no país.
66
Essas ideias são transportadas para a Rússia em poucos anos e fazem sucesso
em Moscou e em São Petersburgo, em 1913. Os artistas desse período eram conhecidos
por seus comportamentos extravagantes, como rostos pintados, brincos e até rabanetes
ou colheres nas casas dos botões do casaco (GOLDBERG, 2006). Essa é a efervescência
cultural do Construtivismo russo, um movimento que preconizava uma arte voltada para
a sociedade industrial, com o uso de estéticas inovadoras e com um viés sociopolítico.
Autores como Vladmir Tatlin e Vladmir Maiakovski estão entre os nomes mais
importantes desse movimento. Pode-se citar como exemplo dessa estética a ópera
Vitória sobre o Sol, com um cenário cubista, com formas cônicas de Kasemir Malevitch,
ou o balé Danças mecânicas, de Nicolai Foregger, em que os dançarinos se moviam de
modo mecanizado. O corpo é reconfigurado para além dos princípios de beleza que se
consolidaram no século anterior, buscando um ser humano em conexão com a máquina,
criando um tipo de obra artística até então não vista.
Lá, surgiram nomes como os escritores Hugo Ball, Frank Wedekind, Richard
Huelsenbeck e Tristan Tzara, pintor romeno. Acreditavam que foi o abandono da frase
logicamente construída de seus textos devido a dois fatores: um grupo cheio de energia
67
em um período em que não havia tempo para descanso e em que precisavam produzir
constantemente, e a influência de Marinetti. Eles produziram esquetes despreocupadas
de uma fábula ou de um sentido para serem absorvidas pelo público. O som e o corpo
acabavam sendo fontes mais interessantes do que qualquer história encenada. Existem
muitas histórias a respeito da origem do movimento, mas basicamente a palavra “dadá”
não tem significado algum e era assim que a arte deveria ser: despreocupada de
qualquer valor transcendente.
68
Obras cênicas foram bastante pontuais entre as produções dos surrealistas.
Sua preocupação em aproximar a realidade vivida do mundo onírico trazia dificuldades
para a composição de cenas. Não se pode deixar de mencionar algumas peças, como
a de Roger Vitrac, Mistérios do Amor, e Jato de Sangue, de Antonin Artaud, como
exemplos de teatro surrealista. Também deve-se mencionar o balé Rêlache, escrito por
Francis Picabia, que apresentava um bombeiro que fumava enquanto despejava água
de um balde a outro e homens de fraque seguiam uma bailarina (GOLDBERG, 2006). De
qualquer maneira, foi pensada a necessidade de um novo corpo que pudesse responder
às exigências do sonho humano.
Figura 22 – Rêlache
Estamos falando de uma arte que não se separa da experiência de estar vivo.
Poderíamos citar muitas outras formas artísticas que surgiram nessa linha. A escola de
arte alemã Bauhaus fez importantes experimentos cênicos com Oskar Schlemer e seu
ballet triádico em que, observando o movimento de bonecos, criou movimentos mais
estilizados. Nos Estados Unidos, o Black Mountain College também buscou inovar as
artes cênicas e de lá surgiram o músico John Cage, cuja melodia surge do silêncio e do
ruído, e Merce Cunninghan, que colocava dançarinos fora do compasso.
69
Como se percebe, muitos tipos de artes diferentes se juntam para que sejam
executadas de maneira mais caótica e interativa. Os artistas não se diferenciavam muito
dos espectadores, que, em muitos casos, poderiam interferir. Isso colocava essa arte
próxima do ritual e com um caráter estético que escapava de qualquer racionalização.
Muitas vezes, o corpo do performer era o ponto principal do acontecimento. Apenas um
exemplo para que se possa entender é sobre a performance de Marina Abramovic, o
Ritmo 0. Marina colocou 72 objetos (que podiam gerar prazer ou dor) sobre uma mesa.
Desde um batom, penas, uvas, até uma tesoura, faca, chicote e uma arma carregada
com uma bala. Ela ficou seis horas à disposição para que usassem esses elementos em
seu corpo.
Neste momento, já deve ter ficado claro que o termo performance é muito mais
amplo do que a noção de representação. Os artistas da cena não buscam retomar um
sentido já pré-constituído de alguma maneira, mas criar algo mais original e em grande
medida relacionado ao corpo humano. A ideia de performance revolucionou as artes
da cena ao colocar o corpo como uma forma que se autoproduz artisticamente sem
precisar de referências externas para que seja visto como arte.
70
trabalha com colaboradores que são tão importantes quanto ele, podendo interferir
no resultado. O corpo é apresentado sem necessidade de personagem; ele basta pelo
que se apresenta em termos poéticos e plásticos. É uma arte viva que dispensa o
narrativo para dar ênfase à associação e ao ritual.
Aqui, é importante ter uma visão bastante ampla do que se pode compreender
por ritual. Não basta pensar apenas na cerimônia religiosa, embora ela, com certeza, seja
um bom exemplo. Um ritual é uma estrutura, ou seja, ele diz respeito a uma materialidade
muito concreta, pois pode ser visto, ouvido e sentido na medida em que tudo o que o
compõe ocupa um lugar no espaço. Ele serve para uma função, por mais estranha ou
ingênua que possa parecer aos olhos de alguém, ele sempre é realizado para alguma
finalidade. Eles são realizados para que seus participantes tenham ou marquem alguma
mudança; logo, eles também são um processo que se dá no tempo. E o mais interessante
é que ele é algo do qual se participa, conecta-se na medida em que se interage.
Portanto, um ritual é uma ação e é isso que o relaciona com a ideia de performance.
São ações que servem para controlar e redirecionar as emoções, organizam a vida diária
determinando hierarquia e suas mudanças, marcam os territórios com significações e
ajudam a compreender as relações entre os indivíduos e os grupos. Estamos falando
de ações que são feitas com o corpo e que alteram o estado em que ele se encontra.
A formatura em uma universidade é um ritual que marca a passagem do aluno para o
graduado; cantar o hino nacional é uma marca de identidade de uma coletividade; e
todas as formas protocolares de agir em situações sociais marcam formas seguras de
se manifestar perante as pessoas.
71
Entretanto, deve já ficar esclarecido que tomar a cena como execução de um
ato não significa reduzi-la aos seus elementos observáveis materialmente. Em toda
performance, existem forças implícitas que carregam a motivação e a finalidade dessa
ação. Trata-se aqui de considerar que sempre há um elemento ficcional na cena e,
portanto, no uso dos corpos.
Esse tripé é essencial para que haja uma troca: um agente, uma mensagem e
um receptor. Não existe representação sem espectadores. É preciso que todo educador
saiba que o ensino das representações e as performances do corpo exigem que alguém
72
possa vê-las para que se possa sentir a sua arte. São os espectadores que determinam
o sucesso ou o fracasso de uma tendência estética, se um comportamento corporal
se tornará um padrão artisticamente relevante ou se será abandonado. Um espetáculo
artístico só pode sobreviver se for devidamente recebido pela sociedade.
Talvez uma reflexão mais interessante seria perguntar por que o público se move
de suas casas para assistir a uma apresentação cênica hoje em dia. Considerando a
história da dança e do teatro, sabemos que os espectadores não tinham muitas opções
para assistir no passado; então, a possibilidade de ficar três horas de pé assistindo
alguém declamar um texto poderia ser bem interessante. Hoje, vive-se uma situação
muito diferente diante da quantidade de opções que a tecnologia oferece. De qualquer
maneira, é inegável que existia no passado uma busca por entretenimento, o que ainda
seria a resposta de hoje em dia. As pessoas que vão aos espetáculos de dança e teatro
na atualidade ainda buscam por entretenimento, mas de um caráter diferente do que
podem obter em casa.
73
O que acontece é que a recepção de um espetáculo recorre a uma singularidade
que não pode ser encontrada em outras formas de tecnologia, como os smartphones.
A pessoa se coloca diante de um artista em um grau de proximidade que não pode ser
simplesmente esquecido. A cena tem uma qualidade viva que interfere no imaginário
dos espectadores. As pessoas que se dispõem a sair de casa para ir a um espaço ver
uma cena artística estão em busca de um encontro em que poderão presenciar corpos
em movimento. Uma dança ou uma peça de teatro podem arremeter as consciências
dos espectadores para caminhos inesperados.
Embora a citação anterior se refira ao teatro, ela não deixa de se conectar com
a dança como uma arte de presença corporal que também convoca a imaginação do
observador. O ponto é que observar um espetáculo que acontece na situação de “aqui e
agora” cria, de igual modo, a sua mitologia.
74
O homem se movimenta a fim de satisfazer uma necessidade. Com
sua movimentação, tem por objetivo atingir algo que lhe é valioso.
É fácil perceber o objetivo do movimento de uma pessoa, se é
dirigido para algum objeto tangível. Entretanto, há também valores
intangíveis que inspiram movimentos.
Isso significa que o público se comunica com as artes cênicas como uma
espécie de convivência corporal que promove valor. Mais do que espectadores que
passivamente percebem movimentos diante de si, eles ajudam a construir o significado
artístico do evento.
Vale a pena perceber que uma experiência de convívio não é algo materialmente
tangível. Ela é uma relação que precisa ser confirmada constantemente para ser
percebida. Isso acontece pelo seu caráter efêmero. Ela vale por aquele acontecimento,
por aquela ação no instante determinado. E isso também lhe traz outra característica:
ele é irrepetível. O dia de apresentação de uma peça é composto por um grupo
de performers e um público. Os sentimentos que eles carregam para o evento, as
contingências que vivem naquele momento e o modo como trocam as relações tornam
cada dia de apresentação único. Trata-se de uma conjunção de interfaces complexas.
Cada pessoa é um universo em composição com outros universos.
Por serem artes feitas pelo corpo, existe um elemento que precisa ser
considerado, pois ele confirma o aspecto do receptor que os torna singular nos tempos
de hoje. Entra, aqui, em questão também a cinestesia, a percepção de movimento, a
posição e o peso por estímulos do próprio corpo. Ela vai além do olhar; a proximidade
com um corpo que se movimenta pode ser sentida pelo próprio corpo que está presente
(CORBIN; COURTINE; VIGARELLO, 2012).
75
Pode-se dizer, então, que o movimento de um corpo não apenas vai além
da noção de representação que se dá ao olhar, mas também se coloca como uma
experiência própria e única. Um educador corporal de dança ou teatro precisa estar
consciente em proporcionar experiências cinestésicas aos seus alunos. Além de criarem
suas formas de movimentos, precisam aprender a experimentar a percepção delas em
outras pessoas. Um corpo precisa se fazer sentir.
As cenas corporais podem estar abertas para serem transformadas por aqueles
que convivem com elas, pois elas carregam elementos de improvisação, inacabamento,
pesquisa e colaboração que não deixam seu aspecto simbólico funcionar como uma
mensagem única (DESGRANGES, 2012). Nesse sentido, é que a arte do corpo deve ser
ensinada como algo que vale pela sua própria execução e deve ser sentida dessa forma.
76
LEITURA
COMPLEMENTAR
CORPO E ENCENAÇÃO: OS INSTRUMENTOS DO ATOR E DO BAILARINO
A Dança Moderna surgiu no cenário artístico europeu como uma forma de arte
inteiramente nova: insubmissa e ligada ao presente, ela buscava novos paradigmas, e
por isso identificou-se imediatamente com as vanguardas artísticas. Deste modo, aderiu
aos questionamentos do Teatro Moderno em sua crítica à estética e procedimentos
acadêmicos, sua reflexão sobre a preparação do ator e sua preocupação com a relação
entre o espetáculo e o espectador.
77
A partir de então, o corpo começou a ganhar cada vez mais importância no
processo dramático, de modo a impulsionar a experimentação, teorização e publicação
de trabalhos como os de Delsarte, Stanislavski, Appia, Craig, Schlemmer, Meyerhold. Eles
produziram um conjunto de obras que enriqueceu a fortuna teórico-prática do drama, e
que sob muitos aspectos ajudou a redefinir as técnicas de atuação como reveladoras dos
poderes expressivos do corpo. Esta percepção do corpo como centro da cena teatral por
parte dos diretores e atores facilitou mais uma vez a aproximação entre a arte da dança
e a arte do teatro. Para Roubine, as questões cruciais do teatro no começo do século
surgiram a partir do advento do cinema, que de um certo modo fez com que o teatro se
confrontasse consigo mesmo, refletindo-se, tanto em seus aspectos estéticos, como
sobre sua própria identidade e finalidade. Foi então que ambas as correntes teatrais em
vigor (o Naturalismo e o Simbolismo) começaram, cada uma a seu modo, a explorar o
espaço cênico e a questionar-se em sua relação com o espectador e a sociedade.
78
Segundo Ruyter, os Cursos de Estética Aplicada de Delsarte originaram a
Ginástica Harmônica de seu discípulo americano Steele Mackay, que em seguida
inspirou o trabalho de Geneviève Stebbins, que utilizou seus conhecimentos da Yoga,
para criar sua Respiração Dinâmica. Portanto os fundamentos de Delsarte foram sendo
adaptados e aplicados ao movimento dançado de modo a permitir que Ruth Saint
Denis e Isadora Duncan elaborassem danças com movimentos livres das imposições
da técnica clássica. Susan Leigh Foster afirma que ambas facilitaram a substituição
do modelo da auto-apresentação pelo modelo da autoexpressão. Uma revolução que
consequentemente estendeu-se à recepção do espetáculo. “Pela primeira vez, pedia-
se aos espectadores, para identificarem-se com o dançarino e com a dança, para sentir
sua experiência de vida no palco, ao invés de apenas vê-la”.
79
o bailarino passaram a buscar a adaptação de seus personagens a sua experiência. No
teatro e na dança, não se pensou mais o papel do intérprete como um mero repetidor
de uma partitura imutável e que deveria ser transcrita fielmente. Dançarinos e atores se
inclinaram para a busca de um movimento mais despojado e, portanto, mais natural.
Artistas e público tornaram-se receptivos aos movimentos simples, básicos, de andar,
correr, saltar, girar, respirar, dentre outros. É neste retorno ao próprio corpo do dançarino
que ele poderá descobrir seu próprio vocabulário de movimento. É o corpo natural de
Duncan, o corpo livre de Laban, o corpo autêntico de Wigman, os quais ignoraram as
exigências do formalismo plástico e do culto à beleza harmoniosa propagados pela
tradição estética. Na modernidade da dança, a elegância do mundo clássico seria quase
sempre preterida em prol de uma corporeidade mais humanizada e de movimentos de
intensidade expressiva.
80
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:
• A expressão corporal alcança seu significado pelo modo como é criada, apresentada
e recebida. Tanto a dança quanto o teatro são formas de arte e, por essa razão,
precisam que alguém as testemunhe. A expressão corporal que as constitui só pode
ser elevada ao patamar de arte quando ela ultrapassa seu criador e chega ao receptor.
• O trabalho cênico pode ser mais bem pensado na atualidade pela ideia de performance.
Seria um ato total, uma forma artística em que o corpo se apresenta sem se preocupar
em fazer um sentido ou trazer algo pré-programado. O termo foi estudado em sua
história mostrando exemplos variados e sua relação com as vanguardas estéticas.
81
AUTOATIVIDADE
1 A expressão corporal se faz todos os dias por todas as pessoas, mas é no seu processo
criativo que ela se mostra mais pungente. O artista não expressa um corpo qualquer
e não o faz de qualquer maneira, pois ele normalmente se coloca dentro de certas
molduras para que seja apreciado e se faça sentir de maneira diferente de como as
pessoas se comportam no cotidiano. Nesse sentido, classifique V para as sentenças
verdadeiras e F para as falsas.
2 Desde o início do século XX, uma série de eventos culturais e artísticos aconteceram
na Europa e nos Estados Unidos procurando ampliar os limites da arte como era
concebida até então. Trata-se do que veio a se popularizar posteriormente pelo termo
performance. Leia as sentenças a seguir sobre esse tipo de arte.
I- Muitos consideram que os saraus (serata) dos futuristas italianos foram os principais
responsáveis pela criação da performance.
II- John Cage foi o coreógrafo responsável pela criação de performances na Inglaterra,
inspirado pelo construtivismo russo.
III- O Surrealismo foi a vanguarda estética que mais contribuiu para a performance,
porque criaram-se muitas peças de teatro e de dança nesse sentido.
82
3 Um dançarino é reconhecido pelo modo como constrói uma coreografia diante de seu
público. Da mesma forma, é o ator que precisa representar uma personagem sobre o
palco. Ambos precisam apresentar suas expressões cênicas de modo a conseguirem
mover os sentimentos de quem os observa. Nesse sentido, assinale a alternativa
CORRETA sobre o público das artes cênicas.
4 O teatro e a dança são formas artísticas autônomas, mas que existem na singularidade
de seu meio: a cena. São formas de arte que se preocupam em dar visibilidade e
sensação ao aspecto corporal. As artes cênicas, embora autônomas, são semelhantes
a outras artes, como a literatura usa das palavras para mexer com o íntimo do leitor.
Desse modo, cite e explique os elementos que formam o tripé que compõem a cena.
83
REFERÊNCIAS
ALEXANDER, F. M. O uso de si mesmo. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
AZEVEDO, S. M. de. O papel do corpo no corpo do ator. São Paulo: Perspectiva, 2002.
CORBIN, A.; COURTINE, J. J.; VIGARELLO, G. História do corpo. v. 3. Petrópolis: Vozes, 2012.
84
LABAN, R. Domínio do movimento. São Paulo: Summus, 1978.
MATURANA, H.; VARELA, F. A árvore do conhecimento. São Paulo: Palas Athena, 2010.
MATURANA, H. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014.
MILLER, J. Qual é o corpo que dança? Dança e educação somática para adultos e
crianças. São Paulo: Summus, 2012.
85
86
UNIDADE 2 —
REPRESENTAÇÕES DO
CORPO E A ARTE
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
• perceber as diferenças culturais dos corpos humanos e sua recepção por diferen-
tes povos;
PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.
CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.
87
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 2!
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88
UNIDADE 2 TÓPICO 1 —
O CORPO NO TEMPO
1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, nosso estudo falará do corpo do ponto de vista histórico, ampliando
o que se comentou na unidade anterior. Faremos um passeio histórico sobre o corpo e
depois um passeio sobre o corpo na história, tudo com muita arte, principalmente com
esculturas e desenhos, que ilustrarão as ideias centrais abordadas de corpo.
2 HISTÓRIA DO CORPO
O corpo sempre esteve representado nas artes, ao longo de nossa história.
Desde os primeiros vestígios de humanidade, nosso corpo estava lá, desenhado ou
esculpido. O corpo exerce um fascínio em nossa memória e ganha materialidade e se
eterniza nas representações artísticas.
89
marca o corpo, o corpo também marca a cultura, influenciando e marcando a história.
O corpo é a nossa existência; falar do corpo é falar de nós mesmos. O nosso corpo se
transforma com a passagem do tempo, pois as coisas se transformaram e existem por
causa da nossa existência e pela existência de nossos corpos. A nossa realidade existe
porque nosso corpo existe.
90
Passamos, agora, a fazer um recorte no tempo, iniciando nosso passeio na
história do corpo. Na Grécia Antiga, a ideia de corpo estava bastante vinculada com o
conceito do belo: corpos fortes e atléticos, bonitos e saudáveis. O termo que os gregos
utilizavam era o de kálon, que significava exatamente a palavra “belo”. Referia-se àquilo
que agradava aos olhos, ao que poderia e deveria ser admirado. E os corpos também
seguiam essa lógica e prática de agradar aos olhos. O culto ao corpo era uma prática
que fazia parte do cotidiano dos gregos, podendo ser encontradas referências, nas
obras de artes, tais como nos textos literários, nos mitos e nas artes. Nas esculturas,
representadas no bronze e no mármore, vemos a representação de corpos, tanto de
homens quanto de mulheres, jovens e atléticos, cujas figuras têm suas musculaturas
bem aparentes e delineadas. Inclusive, os corpos de deuses e deusas também tinham
essas representações atléticas e belas. A educação, que também faz parte histórica
e social de determinado local e tempo, e segue aos interesses do Estado, na Grécia
Antiga; a educação era trabalhada com a lógica da adoração e da glorificação do corpo.
Daí, as práticas corporais, em busca de um corpo saudável e também para a reprodução.
Outros dois pontos que merecem destaque são que o corpo deveria ser forte e atlético
porque serviria tanto para os jogos olímpicos quanto para a guerra, eram constantes
naquele período.
DICA
Uma dica cultural do filme 300 de Esparta, dirigido por Rudolph Maté, (USA,
1962, 117min). Filme ficcional que narra um momento das guerras Médicas
(Cidades-Estado gregas contra os persas) pelo ponto de vista dos espartanos.
Conta da que ele teria ido a guarra apenas com sua escolta pessoal de
trezentos homens.
Na filosofia grega clássica, a ideia de corpo tomou outras vertentes. Para Platão,
em específico, a alma preexiste ao corpo, o que nos leva ao famoso dualismo platônico: o
corpo é uma coisa e a alma é outra. Nesse jogo de Platão, há uma desvalorização do corpo
e uma supervalorização da alma, pois, para esse filósofo, o corpo era um instrumento
para a recepção da alma, porque, se a pessoa morre, apenas morre o corpo; a alma, não.
A alma está identificada com a permanência, enquanto o corpo está com a mudança,
pois ele se altera com o passar do tempo. Platão criou, com isso, a ideia de metafísica,
buscando aquilo que se mantém para além da multiplicidade. Para Platão, também há a
questão do dualismo, só que, para ele, o corpo corrompe a alma, o corpo faz mal à alma;
todas as coisas boas que a pessoa faz ou alcança (como a paz e a justiça, por exemplo)
é porque a alma está atuando, pois a pessoa se volta para si mesma, ou seja, quando ela
enxerga seu próprio e verdadeiro interior, afastando-se dos desejos e das paixões que
são próprias do corpo. No entanto, para o filósofo Aristóteles, não existe esse dualismo
entre corpo e alma. Para esse filósofo, se morrer o corpo, morre também a alma, isto é,
não existe uma vida após a morte para Aristóteles. O corpo seria um instrumento da
racionalidade do ser humano, posto que o conhecimento vem por meio dos sentidos.
91
Já no Império Romano, o corpo, nas representações artísticas, não era tão
juvenil como nas representações gregas, haja vista que o objetivo estava mais para
a força física e as escolas juvenis estavam mais voltadas aos exercícios físicos para a
preparação militar do que à beleza estética. (VIEIRA, 1984). As representações eram,
principalmente, do imperador, pois ele deveria ser reverenciado e evidenciado, já que
significava uma demonstração de poder do imperador e dos romanos como sociedade.
Todos deveriam olhar, crer e obedecer ao imperador.
92
Figura 3 – A Lamentação de Giotto de Bondone – afresco da Capela Arena
93
2000) com a nova concepção de realidade como engrenagem, explicada pelas leis
da física, e o corpo também passa a ser concebido e visto nessa mesma lógica.
Descartes postula que a mente e o corpo são duas coisas distintas, criando, assim,
uma dualidade para o ser humano.
O corpo estando separado da mente ganha uma outra posição social, pois,
dessa forma, o corpo ganha determinada “liberdade”. Pela razão e ciências, o corpo
está vinculado apenas à natureza e a tudo o que puder ser dito dela. Resumindo: o
corpo é apenas um corpo sem qualquer tipo de propósito. Nesse sentido, o corpo
começa a não ter mais sentido religioso como uma obrigação e razão de existir; ele
não tem nenhuma finalidade ou destino. Silva (2001, p. 14) mostra, ao se referir às
ideias de Descartes, o seguinte:
94
Avançando na história, adentraremos na época das revoluções, tendo a França
e sua revolução, no ano de 1789, como marco inicial para o que chamamos de período
contemporâneo, que se estende até os dias atuais. Temos um grande movimento para
uma nova ordem social, com a classe burguesa se rebelando contra o sistema e tentando
controlar suas vidas e, principalmente, seu meio de produção. Com esse movimento, há a
queda das classes dominantes até então, que eram o clero (a Igreja) e a nobreza, ocorrendo
uma “libertação” da classe burguesa. É nesse momento que nascem as palavras de
ordem: “liberdade, igualdade, fraternidade”; lema da Revolução Francesa.
Tudo isso faz despertar e ganhar força outra revolução, ainda que de outra
natureza, que já estava em curso na Inglaterra desde a metade do século XVIII e iria
até o século XIX, chamada Revolução Industrial, que, por sua vez, é a transição entre
a sociedade feudal e a sociedade capitalista cuja característica fundamental é a
predominância do capital mercantil sobre a produção. Deve-se destacar que a Revolução
Industrial tem como marco a criação da máquina a vapor, que transformaria a produção
têxtil da época, criando uma grande conquista e grande renovação tecnológica, com
as trocas dos teares, com uma fabricação artesanal, para os novos maquinários, que
operavam em escala industrial. Com isso, as fábricas abriram milhares de postos de
95
trabalho. Essas fábricas estavam nos centros urbanos; a partir desse advento, houve
enormes fluxos migratórios das pessoas que viviam e trabalhavam no meio rural
(população camponesa) para as grandes cidades. Como os corpos se comportaram
nesses contextos?
E com toda uma atenção especial para a nova vida cotidiana da população,
que estava vivenciando uma urbanização precarizada, com grandes concentrações
populacionais, trazendo como consequência um espaço com enfermidade e propício
para a propagação de doenças ao alastramento de outras novas, que dissipavam parte
da população (epidemias). Então, foi necessário que as ciências se voltassem para o
estudo do corpo, mas agora com uma visão orientada para a saúde. Dessa maneira,
há necessidade de um olhar para a saúde pública, com uma intencionalidade para o
coletivo, para a questão dos indivíduos e da própria cidade. Começam a nascer e a
se aprofundarem estudos relacionados ao corpo, como a fisiologia, a fenologia, a
ergonomia, a eugenia e a própria medicina.
Cabe ressaltar a eugenia, que era considerada como ciência, emergindo, mais
especificamente, no final do século XIX e no início do século XX, tendo como principal
articulador Francis Galton, no ano de 1865, que constrói toda uma teoria cujo objetivo é
explicar as demandas que ocasionam as desigualdades sociais da época.
96
A palavra eugenia acaba caindo em desuso após a Segunda Guerra Mundial,
por estar estritamente associada ao holocausto nazista, atualmente denominado pelos
judeus como Shoá, e pelos ciganos romanies como Porrajmos. Como afirmam Teixeira
e Silva (2017, p. 70), a palavra “[...] eugenia foi desacreditada, tanto do ponto de vista
científico quanto social, caindo o termo ‘eugenia’ em desuso”.
97
Podemos dialogar com outras pessoas simultaneamente sem estar no mesmo
espaço físico, ou seja, essas barreiras são “quebradas” com as novas tecnologias e com
as redes sociais. Podemos estudar no quarto e, ao mesmo tempo, estarmos em contato
com amigos em qualquer lugar de nosso planeta.
3 O CORPO NA HISTÓRIA
Você deve estar sentado, deitado ou em pé, lendo essas primeiras páginas. Pare!
Observe seu corpo. Em que posição ele se encontra? Se não fosse os nossos corpos,
essas linhas que você está vendo agora não existiriam. E, falar do corpo na História, é
também falar da própria História e da história da humanidade. Para traçar a linha do
corpo na História, usaremos a linha do tempo da História da Arte e mostraremos como
o corpo está “localizado” na construção de nossa história.
Resumindo, a arte rupestre é o nome da arte realizada nas paredes das cavernas
pelos homens pré-históricos. Esse período histórico representa o momento que se dá
entre o aparecimento do ser humano e se estende até a invenção da escrita e tem a
sua divisão em o homem das cavernas e a invenção da escrita; uma linha temporal que
perpassa por volta de 4000 a.C. Seu estudo depende da análise de documentos não
escritos, como restos de armas, utensílios, pinturas e desenhos.
Vale ressaltar que foi durante esse período, há cerca de setenta mil anos, que o
homo sapiens desenvolveu sua revolução cognitiva, segundo o historiador Yuval Noah
Harari. O seu cérebro desenvolvido passou a ser capaz de contar histórias capazes de
reunir grandes quantidades de pessoas.
99
Figura 5 – Pinturas pré-históricas famosas da rocha de Tassili N'ajjer, Argélia
O último período da pré-história se chama Idade dos Metais, que tem uma
outra revolução tecnológica: a descoberta da metalurgia, dando início à fabricação de
utensílios com metais, como armas (espadas e armaduras), utensílios e ferramentas
para o uso coletivo.
Os objetos passam a ser extensões do corpo, fazendo com que possam interagir
com mais poder dentro da vida. Nesse período, nascem as primeiras experiências de
escrita. Na abertura dessa seção, foi dito que o corpo também era uma ferramenta.
100
Figura 6 – Pintura rupestre que é símbolo do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí,
Nordeste do Brasil
Com relação aos fatos mais históricos, como vimos no primeiro tópico, na
Grécia a preparação do corpo estava a serviço do belo, que tinha na força física sua
maior expressão, com corpos atléticos tanto para as competições olímpicas quanto
para as batalhas.
101
A necessidade de corpos fortes e ágeis, bem como a estratégia militar eram
muito importantes, pois os conflitos na região eram comuns. Por exemplo, citamos a
Guerras Médicas (colônias da Ásia Menor com o Império Persa, de 492 a.C. a 448 a.C.),
com a vitória dos gregos, e a Guerra do Peloponeso (Esparta versus Atenas, 431 a.C. a
404 a.C.), na qual Esparta sai vitoriosa. Para retratar os jogos olímpicos, a beleza e a
força, trazemos a imagem da escultura do “Discóbolo de Míron”, também conhecido
como “O Lançador de Disco” ou somente “Discóbolo”, criada por Míron (480 a.C. a 449
a.C.). Podemos ver como a escultura representa características de força e energia, que
são elementares para os corpos dos atletas gregos.
102
DICA
Dica cultural do filme Gladiador, dirigido por Ridley Scott (2000). Filme narra a
estória fictícia de um general romano, Maximus, que servia o imperador Marco
Aurélio. Ele é traído e aca tornando-se gladiador.
A arte da Idade Média, de 500 d.C. até parte do século XV, cresceu a partir de
influências do Império Romano e da iconografia da Igreja Católica, enquanto artistas
do Renascimento europeu, que teve lugar entre os séculos XV e XVII, encontraram
inspiração em textos gregos clássicos redescobertos de poesia, filosofia, matemática e
arte da Antiguidade.
Com essa volta ao antropocentrismo, o corpo volta a ter um espaço central, pois
os artistas vão revisitar a arte greco-romana com influência das ciências (racionalidade)
e da matemática (formas geométricas) nas pinturas, configurando perspectiva,
proporcionalidade e as noções de profundidade. As pinturas ganham a técnica da
perspectiva, em que os corpos são pintados desde um ponto de vista bem claro, de
modo que podem ser entendidas ocupando espaços bem determinados nos quadros.
103
A obra que sintetiza esse período é o Homem Vitruviano (ca. 1490) de Leonardo
da Vinci (1452-1519), revelando a proporcionalidade, a perspectiva, o equilíbrio e
a harmonia do corpo humano. Para os renascentistas, tanto a natureza quanto o
ser humano eram harmônicos e perfeitos. Leonardo da Vinci relaciona o equilíbrio,
a harmonia e a proporcionalidade no corpo humano. Há duas posições sobrepostas
com os braços inscritos em um círculo e em um quadrado, separadas e simultâneas.
O Homem Vitruviano é considerado o símbolo da simetria básica do corpo humano e
para o Universo como um todo. Leonardo da Vinci se inspirou nos escritos do arquiteto
Marcus Vitruvius Pollio, no período I a.C., em que ele descrevia que as proporções do
corpo humano são um modelo ideal e perfeito, cujas proporções são um ideal para a
beleza clássica (GOMBRICH, 1995).
Figura 8 – Leonardo da Vinci, Homem Vitruviano, ponta metálica, tinta e toques de aquarela
104
chamado de príncipe dos pintores, com suas principais obras “O Casamento da Virgem
(1504)”, “A Deposição de Cristo (1507)”, “Madona de Baldaquino (1508)” e “Transfiguração
(1520)”. Temos, ainda, o artista Donatello (1368-1466), com suas esculturas “São Marcos”,
“Gattamelata”, “David”, “São Jorge”, “Maria Madelena” e “O Banquete de Herodes”. E, por
último, Sandro Botticelli (1445-1510), que retratava, principalmente, mitologia e religião,
com suas pinturas: “O Nascimento de Vênus”, “A Primavera” e “Adoração dos Magos”.
105
Arte Contemporânea na História, tem início na Revolução Francesa e avança até nossos
tempos, ou seja, é a época em que vivemos. Falar em História e em Arte Contemporânea
é falar de nós e de um momento muito perto de nós. O mundo contemporâneo é um
mundo que está em movimento e que gera constante transformação, pois esse é o
nosso tempo de ação e o nosso tempo presente. Nesses poucos mais de dois séculos,
tivemos incontáveis revoluções e revoltas no Brasil e no mundo: quedas de monarquias
absolutistas, independências das nações, aumento da democracia, com a participação
popular na escolha de seus representantes políticos. Por outro lado, tivemos duas
grandes guerras.
Para ilustrar esse momento, indicamos a obra “Guernica (1937)”, uma pintura
histórica, de Picasso, que retrata os horrores da Segunda Guerra Mundial. A cidade de
Guernica, na Espanha, ficou completamente destruída por um bombardeio de aviões.
Picasso estava em Paris naquele momento e ficou horrorizado com as notícias.
106
4 O CORPO NA ERA DIGITAL
Seria possível imaginar nossas vidas sem a existência de aparelhos eletrônicos,
em especial celulares, mas também sem tablets, câmeras e computadores? Como seriam
nossas vidas sem a internet? As Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação
(TDIC) pautam nossos hábitos, comportamento e forma de viver.
Se disséssemos, no início dos anos 2000, que uma pessoa não precisaria ir ao
banco, pois todas as suas contas poderiam ser pagas, que seria possível transferir dinheiro
instantaneamente a partir um telefone móvel, ninguém acreditaria. Podemos sair à rua
apenas com um celular, mas sem dinheiro físico e, mesmo assim, fazer compras em um
supermercado ou em alguma loja, efetuando o pagamento remotamente. O guarda de
trânsito pode nos parar e podemos mostrar nossos documentos e os documentos do
carro pelo celular, por exemplo.
Para Bauman (2011, p. 112), vivemos uma “[...] crise atual [...] diferente das
demais”, porque estamos criando nossas relações intermediadas e permeadas por
novas tecnologias, em que tudo em nosso mundo se torna mais veloz, “líquido”,
descartável e flexível. Diante dessa realidade, Zygmunt Bauman estuda o impacto
da globalização e das tecnologias em nossa era contemporânea, para mostrar as
novas relações sociais que vamos construindo. O crescimento do uso de tecnologia
como meio de percepção e vivência implica novas percepções do corpo. Bauman
(2011) criou o conceito de “Modernidade Líquida” para mostrar que, nesse momento,
impera a “liquidez”, uma vez que o uso do termo “líquido” representa as mudanças que
ocorrerem de forma muito rápida e são de fácil adaptação. Pensamos a questão do
espaço, pois, antigamente, estava-se em contato apenas com a pessoa que estivesse
no mesmo espaço físico que o nosso. Hoje, podemos estar em contato com várias
pessoas de lugares distintos no mundo inteiro. Vivemos em um cenário globalizado e
nosso corpo se tornou mais líquido também.
107
Todo o nosso cotidiano está dentro de um celular. Podemos usá-lo como
despertador ou como agenda; enviar mensagens simultâneas ou enviar e-mail; filmar,
fotografar e fazer edições; ouvir música e podcasts; assistir a vídeos e a filmes; conversar
com amigos. Um exemplo disso é o celular; dispositivo móvel que estende o corpo pela
necessidade que temos de utilizá-lo diariamente para despertar, enviar mensagens,
enviar e-mails, filmar, conversar com amigos, tirar fotos, jogar, ouvir músicas. A
versatilidade dessa ferramenta preenche todo o nosso cotidiano facilitando a nossa vida
e nos deixando em contato com o outro e com o mundo o tempo todo.
O corpo também está inserido nessa lógica das novas tecnologias, pois
vivenciamos novos formatos de interação e de práticas sociais. Por isso, vamos traçar
linhas lógicas entre redes sociais, corpo e imagem. Com as redes sociais, podemos ser
uma vitrine para o mundo com as postagens de nossas imagens, tanto por fotos quanto
por vídeos. A nossa imagem e corpo ganham visibilidade global.
108
Figura 11 – Corpo mercantilizado
O corpo, como figura estética, não evolui na mesma velocidade das relações
sociais complexas em que se vive. A noção de moda, como conjunto de gostos e
opiniões, tornou-se um padrão para a definição de beleza e, portanto, fugidia e efêmera,
transformando-se a cada toque na tela dos smartphones.
Para cada sociedade, o corpo humano é o símbolo da sua própria estrutura; agir
sobre o corpo é sempre um meio, de alguma forma, de agir sobre a sociedade. Além
disso, o modo de representar o corpo na arte é um reflexo da estrutura social. Pensar o
corpo com e pelas invenções tecnológicas de hoje se torna mais uma possibilidade de
representação ou de performance para todos.
110
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:
• O corpo na era digital, vimos como a lógica das novas tecnologias media a nossa
existência, que passa pela imagem nas redes e para as redes, fazendo-nos vivenciar
um novo formato de interação e de práticas sociais, de como o nosso corpo e imagem
estão expostos como em uma vitrine para o mundo todo. Por isso, vamos traçar
linhas em uma lógica entre redes sociais, corpo e imagem e vamos nos mobilizar para
a busca de um corpo perfeito, tanto no mundo virtual quanto real.
• A relação que acontece entre o corpo e os objetos ser tão inclusiva a ponto de que
a identidade humana precise ser revisada. Surge a ideia do ciborgue, meio humano
meio máquina, para que possa servir como uma nova proposta de vida social. Ele
serve para aceitar as transformações da tecnologia, a fim de trazer uma visão política
nova nos comportamentos humanos.
111
AUTOATIVIDADE
1 A sociedade ocidental foi influenciada pela cultura grega antiga. Muitas das
instituições e valores construídos por aquele povo foram sementes para as ideias
que se desenvolveram na cultura europeia e acabaram constituindo boa parte das
pessoas nos tempos de hoje. Não poderia ser diferente no que tange ao assunto do
corpo, pois os gregos se referiam a ele pela noção de kálon. Sobre o exposto, assinale
a alternativa que melhor explica o termo.
2 O corpo sempre foi um ponto de inflexão artística para toda a humanidade. Mesmo o
passado mais longínquo da espécie humana conectou-se com a expressão corporal
como um elemento essencial para a representação humana. No que se refere à arte
realizada nos primórdios da humanidade, no período que se convencionou chamar de
Era das Cavernas, analise as sentenças a seguir.
I- Ela se configurou por ser um período que foi chamado de arte rupestre, em que
“rupes” significa rocha.
II- Não havia, no período das cavernas, nenhum tipo de expressividade corporal, ainda
que ligada a um processo ritual.
III- Trata-se de um período artístico se dá entre o aparecimento do ser humano e se
estende até a invenção da escrita.
112
3 O desenvolvimento cultural humano constrói ferramentas constantemente para
extensão dos corpos. Desde a época antiga, o ser humano tem um uso criativo da
realidade em seu entorno, em que se usavam pedras para quebrar, rasgar e moer
outros alimentos e outros objetos. Hoje, vive-se uma época em que as pedras foram
substituídas por aparelhos de alta tecnologia. Sobre a relação do corpo na era digital,
classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas..
( ) A tecnologia construiu novas relações sociais e isso implica uma nova percepção
do corpo.
( ) As Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC), pautam a nossos
hábitos, comportamento e forma de vivenciar.
( ) A tecnologia alterna nossa relação espacial, pois antigamente só poderia entrar em
contato com a pessoa que estivesse no mesmo espaço físico do que o nosso.
4 O movimento do tempo altera nossa vivência corporal. O modo como uma pessoa se
comporta em uma época entrega valores com os quais se vive e isso torna as ideias
abstratas que o envolvem perceptíveis. O corpo é o meio material para a compreensão
da vida espiritual do ser humano. Nesse sentido, qual foi a transformação sofrida do
período medieval para a época moderna, em termos de percepção e vivência do corpo?
113
114
UNIDADE 2 TÓPICO 2 -
O CORPO NO ESPAÇO
1 INTRODUÇÃO
Quando falamos de corpo, estamos trabalhando com uma limitação, pois
nunca somos apenas um corpo, mas, pela maneira como nos transformamos e somos
diferentes uns dos outros, devemos nos pensar como estruturas plurais. São os nossos
formatos diferentes e as distintas maneiras de vivenciar o mundo que realmente
habitam o espaço em que se vive. O que importa é pensar que cada corpo carrega a sua
inscrição e forma de estar no mundo. A observação de corpos e culturas diferentes nos
mostra essa variabilidade.
Vamos percorrer um caminho que nos mostrará uma grande variedade de corpos
e de como esses corpos estão se relacionando com as tecnologias, com a deficiência,
com as culturas populares, interligados com a arte.
2 AS MULTIPLICIDADES CORPORAIS
A matemática nos ajuda a montar o conceito que seguiremos por agora, pois
múltiplo é o conjunto cujos elementos são obtidos após a multiplicação. Refere-se
àquilo que não é uno, que se apresenta em diversas, muitas ou variadas formas.
A dança pode ser feita por profissionais, amadores, por pessoas que,
simplesmente, queiram dançar por prazer. Todas elas experimentam a transformação do
corpo pelo movimento. Qualquer corpo pode dançar: alto, baixo, médio, gordo, magro,
com deficiência, homens cis e trans, mulheres cis e trans. Pessoas de todas as idades
podem experimentar a dança dentro das suas próprias condições, sejam elas crianças
ou idosos.
O principal resultado de uma visão assim não estava desligado da medicina, pois
tudo aquilo que não está na ordem do dia não deve ser visto como normal. Todos os corpos
fora do padrão precisam ser tratados e estigmatizados pelos poderes sociais constituídos.
Se existe uma regra que deve ser acatada, tudo que se desvia dela deve ser
visto como estranho, deformado, errado, bizarro, violento e até monstruoso. Por isso,
o biólogo Étienne Wolf criou a ideia de que haveria uma teratologia do corpo no modo
como era classificado pelos povos do passado (CORBIN et al., 2012, p. 487). “Teratos”
vem do grego e significa monstro e, no caso, ele apontou para que todas as deficiências
fossem vistas como monstruosidades.
DICA
Dica cultural do filme Freaks, de Todd Browning (1932). Em um circo de atrações
bizarras, Cleópatra é uma bela trapezista que é cortejada por um anão. Ao
descobrir que ele é herdeiro de uma fortuna, ela arquiteta um plano com o seu
amante, Hércules, de casar-se com o anão e depois envenená-lo.
116
Os processos de racionalização e de medicalização do ocidente construíram
uma noção de dominação do corpo diferente. Sua origem se devia à superstição e à
religião que tentavam explicar como certos corpos que não eram agradáveis surgiram.
A ciência, à medida que se formava, acabou adotando muitos dos preconceitos e
impediu que o estranho ao olhar pudesse circular de modo livre. Os séculos XVIII e XIX
experimentaram o surgimento dos freak shows e de que raridades biológicas eram
apresentadas como curiosidades para qualquer um que estivesse disposto a pagar para
ver anões, gigantes, gêmeos siameses, mulheres com hipertricose (excesso de pelos no
corpo) ou pessoas com formação de membros não usuais.
Nunca foi impossível que uma pessoa pudesse nascer com um braço ou uma
perna a mais, mesmo que não tivesse estrutura para ser usada. Mesmo formações ósseas
estranhas poderiam fazer parecer que uma pessoa nasceu com um chifre, por exemplo.
117
Outra forma de encontrar essas “monstruosidades” era pela terceira característica:
noção de profundidade e superfície. Esse quesito aparece o que está avesso, invertido
ou trocado. Problemas de pele, a presença de apenas uma narina ou partes expostas do
interior exemplificam isso.
O que importa perceber aqui é que um corpo tem validade por ele mesmo no
modo como experimenta a vida. Toda maneira de exterminá-lo está ligada à imposição
de uma regra. A dança e o teatro também sofreram com isso, ao indicar quais seriam os
corpos ideais para as representações e as performances artísticas. Hoje, vive-se uma
época aberta para as transformações corporais em que pessoas não são mais vistas
pelas suas determinações físicas. O grupo de teatro físico DV8 criou uma belíssima
obra, intitulada The Cost of Living, em que apresenta um dançarino que não possui
as pernas e realiza incríveis movimentos de dança com seu tronco e seu braço. Nesse
sentido, é que se deve pensar como os múltiplos corpos podem ser encarados com
relação as suas diferenças.
118
Talvez não seja simples determinar o limite necessário de substâncias a serem
metabolizadas para a manutenção e realização das atividades do dia a dia, mas não há
dúvida que, quando se ultrapassa o limite do que é usado pelo organismo, há um aumento
de seu volume e, em algumas circunstâncias, esse aumento pode ser prejudicial para
a saúde completa do corpo, embora seja errado assumir que pessoas acima do peso
sejam necessariamente doentes, ainda que o preconceito exista.
Vivemos em um tempo que nos dizem que podemos ter o corpo que desejarmos,
para ter a imagem do corpo de nossos sonhos. Essa fantasia ganha força com o avanço
da tecnologia e do mercado da beleza. Somos o tempo todo bombardeados pelas mídias
com produtos, atividades e procedimentos que nos conduzem a certa idealização de
beleza, com corpos perfeitos, mas principalmente que sejam esbeltos e magros. O
corpo tem sido uma boa fonte de consumo, pois é necessário investimento de tempo
e, sobretudo, de dinheiro para se ter um corpo saudável, belo, magro e forte; tudo isso
ao mesmo tempo. Por outro lado, temos corpos gordos que são submetidos a olhares
discriminatórios, excludentes e estigmatizados, pois, na sociedade, a obesidade está
associada a características negativas, aumentando os sentimentos de insatisfação com
quem é obeso. O Brasil é um dos países que mais realizam cirurgias plásticas estéticas
no mundo, sendo um resultado de nossa busca por determinados tipos de corpos.
Para trazer toda essa temática para a discussão, a bailarina brasileira Jussara
Belchior cria espetáculos de dança para refletir sobre obesidade na sociedade e
apresentaremos o seu espetáculo Peso Bruto. Jussara se autodeclara “gorda bailarina”,
o que permite uma boa reflexão, pois seu volume lhe dá o substantivo, enquanto a
qualidade adjetiva é dada pela profissão de dançarina.
119
Ela cria um espetáculo, cujo a inspiração é o peso do seu corpo, no qual
problematiza “[...] as noções da pessoa obesa como subjetividade que opera um corpo
errado, inadequado, não permitido, não belo e não desejável”. Suas repostas, para essas
perguntas, que constroem subjetividades, estão na criação do espetáculo Peso Bruto.
Fazendo uma série de movimentos que traçam “[...] uma dança que articula diálogos
entre o peso, o desejo, o apetite e a beleza colocando em contraposição o controle e a
brutalidade” (BELCHIOR, 2018, s. p.), Jussara encontra na dança a resposta e o caminho
para o seu empoderamento e desejo de ser bailarina com o corpo que tem. Ela nos
mostra que a dança é uma das possibilidades de que pode nosso corpo. Corpo, ou a
concepção de corpo, é uma construção histórica e uma construção individual.
A ideia e os conceitos de beleza não são únicos, universais e estáticos, pois estão
diretamente entrelaçados com questões culturais, sociais, históricas e singularidades
pessoais. Essa forma de ver e de estar no mundo moldam a forma como cada sujeito
e grupos de sujeitos percebem o modo de beleza, que é sempre construída a partir do
local e da época em que esses sujeitos estão inseridos.
120
A bailarina Jussara Belchior, com o seu espetáculo, questiona os padrões de
beleza impostos, tanto para a vida cotidiana quanto para a dança, rompendo paradigmas
estéticos e mostrando mais do que um corpo. “A dança, enquanto arte, tem o potencial
de trabalhar a capacidade de criação, imaginação, sensação e percepção, integrando o
conhecimento corporal ao intelectual.” (MARQUES, 2012, p. 5).
121
Figura 15 – Companhia Dança Sobre Rodas
A cadeira de rodas, para quem dança, passa a ser ressignificada e a fazer parte
do movimento, da estética e da gestualidade da coreografia. A cadeira de roda não é
um limitador, mas mais uma possibilidade de elemento para a dança. Com a dança, a
cadeira de rodas pode deixar de ser um estigma da pessoa com deficiência física, como
muitas vezes é vista social e culturalmente, e passa a ser elemento de prazer do corpo,
de expressão e sentido (FERREIRA; FERREIRA, 2004). A modalidade e estilo de dança
não têm a técnica da dança como elemento principal e determinante para a habilidade
da linguagem da dança, mas uma descoberta do próprio corpo, ressignificando a cadeira
de rodas e os próprios movimentos do corpo. Dessa forma, o sujeito se reconhece como
capaz de dançar e produtor de arte, já que produz com seus movimentos, intervindo na
relação de seu corpo e deficiência com o seu mundo social.
122
A dança, mesmo a profissional, não está focada apenas na "performance"
artística, como exposição de força do bailarino e suas possibilidades corporais pela
técnica clássica. A arte é trabalhada como um modo de expressar, mostrar e explicitar a
nossa forma de estar mundo; assim, as possibilidades da prática de dança são muitas e
não limitadoras. Cada corpo que está nesse mundo é um corpo vivo, que sente, que tem
memórias, dores e prazeres. Todo corpo tem sua subjetividade e suas peculiaridades.
Cadeirantes, por exemplo, não precisam fazer dança para abordar apenas a deficiência
como temática. Eles podem usar qualquer temática para dançar e fazer coreografia, pois a
dança é expressão, e não limitação. O último espetáculo da Associação Elos da Vida se
chamava “Borboleta” e era sobre as transformações e fases da vida. Os dançarinos eram
com e sem deficiência; isso com o objetivo de mostrar que todos somos um.
A dança é uma prática e vivência que une o sensível e o saber do corpo com
os movimentos intencionais. A dança é a tradução, em gestos e movimentos, e a
construção de sentidos de sujeitos e de seus mundos. A dança possibilita o respeito à
singularidade de cada corpo, não importando o “tipo de corpo”: se o corpo tem ou não
alguma deficiência, se é leve, ou pesado; grande ou pequeno, se o corpo é de um idoso
ou de uma criança na educação infantil. A dança também é a arte das diferenças, da
diversidade humana e das multiplicidades corporais.
O ator e o bailarino fazem do palco o ensaio, seu laboratório, pois é lá que se fazem
muitas tentativas de erros e acertos para se chegar a uma determinada cena. As cenas e
as coreografias nascem das tensões entre as potencialidades e os limites do corpo com o
contexto social e cultural que circunscreve os sujeitos envolvidos nas produções.
123
Quando as cenas e as coreografias se tornam uma obsessão, quando os ensaios
não cessam de ir e vir no pensamento e no corpo, o espetáculo vai se materializando,
tomando formas concretas, aí tudo deixa de ser um ensaio e vira um espetáculo, que
vai levar a ideia, a arte e a temática para outras pessoas. A partir daí, temos outros
movimentos e outros corpos são atingidos pela magia da arte.
124
características gestuais por suas características visuoespaciais da língua de sinais,
possibilitando ao ator (ou ao aluno que faz teatro) se expressar artisticamente, utilizando
sua própria língua. O trabalho cênico faz com que o ator tenha o reconhecimento do
corpo, como meio de comunicação, pela expressão corporal; o teatro pode ser feito por
todos, como bem escreve Viola Spolin (2010, p. 13):
O sujeito surdo tem a sua língua com características próprias, sendo ela com
uma estrutura e regras específicas, e não deve ser vista como uma deficiência. O teatro
tem potencial para se trabalhar a diversidade e com a diversidade, além da inclusão
de pessoas surdas na sociedade. O teatro com surdos promove uma reflexão sobre
o cotidiano, possibilitando o desenvolvimento artístico da comunidade surda, além de
democratizar o acesso aos bens culturais universais.
Com relação ao teatro na escola, mesmo que a maioria das escolas não ofereça
aulas específicas de teatro no currículo, mesmo sem jamais terem ido a um teatro, os
alunos reconhecem e “fazem” teatro. Sem dúvida, suas referências são a televisão e as
atividades de dramatização realizadas na própria escola, como os conhecidos “teatrinhos”.
Portanto, mesmo não havendo, na escola, aula de teatro, há uma prática teatral escolar.
Essa prática, muitas vezes, consiste em gestos, enredo e movimento “clássicos” que
se repetem todos os anos na escola. Quantas vezes já vimos, nas apresentações das
escolas, as crianças batendo a mão no peito esquerdo para ilustrar um coração ou
mencionar o amor? Como podemos apagar da memória o gesto de colocar as mãos para
cima, abrindo e fechando-as sem cessar para se referir às estrelas (que brilham)? Vemos
se perpetuar um modo de se fazer teatro na escola que normalmente é repetido. Creio
que assim vai se instituindo uma gramática gestual de se fazer teatro na escola, uma
gramática que tem regras a serem seguidas, com gestos e movimentos corporais que
vemos se repetirem muitas e muitas vezes nas apresentações nas escolas, instituídos
pelas práticas teatrais na escola.
125
3 A CENA E A ETNOLOGIA
Observar o que nos é, a princípio, de diferente, escrever sobre o observado,
que espaço ou espaços ocupa? Que saberes produzem, como se origina? Etnologia
seria o estudo do Outro e sobre o Outro. É a ciência que estuda os fatos levantados
pela etnografia, a compilação de dados culturais; ramo da antropologia cultural que
compara as diferenças entre os povos. Esse campo de estudo serve para indicar limites
ao modo como cada cultura percebe a si, possibilitando uma crítica ao que se chama
de etnocentrismo, a ideia de que sua cultura é central e superior às outras. Dessa
forma, pode-se analisar o corpo e sua expressão cênica, apontando toda a sua riqueza,
evitando o preconceito racial e cultural. Ao se estudar as formas cênicas que não estão
na linha principal de visibilidade, aprende-se mais das próprias conquistas e limites.
Folclore é o que está no corpo do povo. Ele se expressa pelas relações cênicas
que não têm apenas uma raiz e surge do choque de vários grupos culturais em ação. No
Brasil, isso fica claro nas festas, pois elas relacionam elementos das culturas indígenas,
afrodescendentes e europeias. O ponto mais importante a ser considerado aqui é que
a cultura popular não é inversa ou diferente da cultura erudita por nenhuma questão
essencial. O que é erudito pode ser tomado emprestado pelo uso popular e, da mesma
maneira, o erudito usa constantemente o popular. Essa diferenciação surge por uma
hegemonia de alguns grupos sobre outros, mas que não se sustentam de nenhuma
forma como superioridade cultural.
126
As trocas culturais são sempre dinâmicas, de modo que não existem categorias
rígidas que se separam uma de outra; apenas normatividade social. O corpo se expressa
em ambos os casos, sem dúvida, mas a cultura popular tem uma vida e uma resistência
próprias dentro do grupo em que se manifesta.
Figura 17 – Carnaval
O Carnaval é difícil de ser localizado historicamente, mas uma das fontes mais
prováveis aponta para a Grécia Antiga há mais de 2.500 anos. Era um ritual para um
deus grego chamado Dioniso, conhecido como o deus do vinho, do teatro e inspirador
127
da fertilidade (MACHADO, 2006). Seus cortejos sempre são representados com muita
bebedeira e com conotação sexual. As celebrações para Dioniso sempre eram grandes
festas, para comemorar as colheitas, consistindo em procissões com danças, cantos,
máscaras e fantasias de animais.
Os estudos dão conta de que o Carnaval veio para o Brasil com os portugueses
no período colonial, depois os brasileiros (escravizados e não escravizados) satirizavam
os colonizadores se fantasiando com camisas rasgadas, pintando seus rostos com
farinha e atirando limões de cheiro. Com a vinda da família real, os festejos de Carnaval
eram em espaços fechados, e não “selvagens” e “bárbaros”. Com essa nova forma de
comemorar o Carnaval, cria-se uma festa com duas possibilidades diferentes: a rua e
o salão, demonstrando claramente uma divisão de classes e as diversidades de seus
estilos de lazer e diversão (SILVA, 2019).
Na Bahia, com todo o sincretismo religioso, com seus trios elétricos guiando
a multidão tocando afoxé, axé, micareta e samba, todos estão em uma mesma festa.
Da cidade de Salvador, merece um destaque especial o bloco carnavalesco Ilê Aiyê,
reconhecido como o primeiro grupo afro-brasileiro por exaltar a história das mulheres e
dos homens negros no Brasil, resgatando sua luta, ancestralidade e resistência.
128
Nos últimos anos, antes da pandemia do coronavírus SARS-CoV-2, os blocos
de rua estavam ganhando força e volume em todo país, pessoas que pulam carnaval
apenas para comemorar, outros como ato de resistência e ato político. O Carnaval é
cultural; transforma junto com seu povo e passa por transformações sociais e de
ressignificações históricas constantemente.
129
Figura 18 – Bumba Meu Boi
Há estudos que indicam que a parte da ressurreição do boi tenha sido retirada de
uma peça de teatro (um auto) dos jesuítas que, originalmente, servia para a catequização
dos indígenas, transmitindo os valores morais e religiosos do cristianismo aos indígenas.
130
as dominam completamente, o folclore fala da vida do colonizado que encontra no
momento da festa a chance de trazer a sua versão da história. Há uma breve ruptura da
ordem estabelecida para que os explorados consigam obter, por um tempo limitado, a
liberdade que lhes falta na vida comum.
Indo para outras paragens, percebe-se que cada povo faz usos próprios do corpo
conforme os espaços culturais que ocupa. Nesse sentido, cabe pensar na importância
de uma ciência relativamente nova que pode ajudar a pensar em como isso funciona:
a etnocenologia. Trata-se da ciência que estuda o comportamento espetacular em
diferentes grupos sociais e culturais. Do ponto de vista metodológico, a etnocenologia
mapeia relações entre visões teóricas diferentes, entre universos intelectuais distintos
de conhecimento como os da Antropologia, das Ciências Cognitivas, da Estética, da
Filosofia, por exemplo. A diferença está em essas relações envolvem a análise de
objetos que vão do teatro à culinária, passando por manifestações populares, rituais e,
principalmente, estudos do corpo.
É nessa linha que se torna importante pesquisar como o ser humano manifesta
o mistério que liga o simbólico ao corpo (PRADIER, 1998). Existe uma extraordinária
pluralidade das aparências estéticas corporais com descendências milenares. São
virtuosidades extravagantes dos corpos em todos seus aspectos vivos do imaginário
que dão sabedoria e conhecimento à cultura em que vivem.
131
A etnocenologia é uma ciência interdisciplinar e internacional por necessidade.
Permite que relações entre visões diferentes de cena possam se encontrar e até
dialogar. Uma cultura cênica francesa em que separa corpo e mente pode aprender
com a tradição indiana do Shamkya cuja visão é mais integrada à natureza humana. A
corporalidade da humanidade está à disposição do pesquisador com a possibilidade de
amplificar as vias de conhecimento por não se prender apenas à própria cultura como
norma. Como o criador da ciência, Jean-Marie Pradier, comenta:
132
4 O CORPO MUTANTE
Nunca se falou tanto em corpo como neste século. Nossos corpos nunca
estiveram tão sujeitos às transformações da ordem social, cultural, corpórea e
tecnológica como na sociedade contemporânea. Um grande exemplo disso é a
preocupação com corpos atléticos, também chamados de “em boa forma”. Nas
academias de musculação, o corpo tende a buscar um estado específico, uma
aparência padronizada. Ele passa por processos para parecer sempre jovem, magro e/
ou musculoso, por vezes favorecendo mais a questão estética do que a própria saúde. A
eterna busca de juventude tem conseguido ganhar, cada vez mais, prolongamento com
tantos cosméticos e procedimentos estéticos; uma forma de entender como o corpo
pode estar em transformação conforme a vontade humana.
Ao ver ou ouvir a palavra mutante, a primeira coisa que vem à cabeça são
X-men, os quadrinhos que também viraram filme e desenhos, da Marvel Comics. Seus
personagens são humanos que nasceram com modificações fisiobiológicas que os
tornam possuidores de habilidades anormais, ou seja, diferentemente de outros super-
heróis que adquirem seus superpoderes por acidentes ou experimentos científicos.
Interessante constar que algumas pessoas, de fato, nascem com condições corporais
raras, como o chamado ouvido absoluto, podendo discernir facilmente os vários tipos
de som; a alta flexibilidade em que o colágeno do corpo é excessivo, permitindo maior
contorção de partes do corpo; algumas pessoas têm imunidade ao sono, não sofrem
com a privação soturna; ou autistas que possuem um tipo de super memória, podendo
lembrar-se de eventos em mínimos detalhes. Para o nosso estudo, o nosso recorte sobre
corpo mutante é outro, pois mutação é um termo muito mais amplo. Estamos mais para
o lado da personagem Robocop, que tem seu corpo modificado com tecnologias digitais
e ferramentas, como um braço mecânico, por exemplo.
133
E não podemos esquecer que o nosso corpo é mutante, pois você deve estar
um pouco diferente de 10 anos atrás. Com certeza, nosso estado físico estará bem
diferente daqui a 30 anos. O envelhecimento se mostra um elemento essencial para a
compreensão do corpo, inclusive de um ponto de vista cognitivo, já que as sensações
nascem bastante livres com relação ao meio e vão perdendo a acuidade no final da vida.
O ser humano é um ser inventivo e, como podemos ver nesse nosso percurso de
estudo, as invenções também nos reinventam. Essas reinvenções nos tornam diferentes
com técnicas que nos fazem nos ver diferentes e mudam nosso olhar de mundo e de
nós mesmos.
134
Os implantes e as próteses confundem a fronteira entre o que é
mineral e o que está vivo: óculos, lentes de contatos, dentes falsos,
silicone, marca-passos, próteses acústicas, implantes auditivos,
filtros externos funcionando como rins sadios. [...] Os olhos (as
córneas), o esperma, os óvulos, os embriões e, sobretudo o sangue
são agora socializados, mutualizados e preservados em bancos
especiais. Um sangue desterritorializado corre de corpo em corpo
através de uma enorme rede internacional [...]. O fluido vermelho da
vida irriga um corpo coletivo, sem forma, disperso.
O culto a determinado tipo e estilo de corpo tem se propagando como uma das
formas e condições para ser feliz, aceito e desejado na nossa sociedade e também no
mundo das redes sociais, em nossa sociedade contemporânea.
Tempos em que nos dizem que é só fazer uma cirurgia aqui, outra ali, fazer
academia, usar suplementos ou esteroides para conquistar um corpo mais atlético
mais rapidamente. Os cosméticos, as vitaminas, os procedimentos invasivos e não
invasivos estão no mercado nos prometendo uma juventude mais prolongada. Todos
esses elementos têm o poder de construir um imaginário, que nos diz o tempo todo
que só está fora do padrão de beleza e fora de forma e vigor físico quem quer (COUTO,
2007, p. 42).
135
Para nos ajudar a pensar nessas ideias, talvez seja relevante pensar o corpo
não como uma unidade sintética, mas em constante transformação, pois não há uma
essência para se pensar essa corporalidade. Poderíamos pensar o corpo como uma
entidade absorvente, que recebe as modificações criadas pelo ser humano como
produtor de si e se transforma em um novo conteúdo. Pode ajudar a pensar nessa
situação o pensador Peter Sloterdijk (2013), ao anunciar um novo conceito para entender
o comportamento humano: a antropotécnica.
Para o pensador não importa se ela é declarada ou não, mas que se pratique certo
comportamento. Para entender isso melhor, trata-se de entender que o ser humano
está sempre em possibilidade de decadência. Ele pode sempre desaparecer como ser
humano, mas se ele fizer exercícios visando buscar um ideal e de forma ascética, ele
conseguirá se manter-. Não se trata de ter uma religião, mas uma dedicação ao que se
faz para manter-se humano. A ascese aqui deve ser entendida como um processo de
autossuperação independentemente de crenças extrafísicas.
Dessa forma, podemos perceber que a relação do ser humano com os objetos
também deve ser revisitada. Uma pessoa que usa óculos para enxergar não é inferior
a alguém que tem uma visão perfeita de nascença. Os óculos passam a ser parte da
humanidade da pessoa; ele se torna uma forma de relação em que ele se exercita para
se fazer humano. As ações que o ser humano imagina permitem a sua mutação onde os
limites residem apenas na sua criatividade e dedicação.
Nas artes cênicas, tem-se mutações constantes, pois o ser humano artista
precisa se reconstruir seguidamente. Um dançarino precisa construir novos movimentos
para cada coreografia que apresenta. Um ator de teatro precisa se reconfigurar para
cada personagem que precisa apresentar diante do público. O corpo se torna, hoje,
136
uma entidade animada que tem valor próprio. A criação de cenas implica deixar a
materialidade permeável por meio da ficção. Vive-se, hoje, uma era em que as linhas
divisórias do espaço quase desapareceram e, com isso, conseguiu-se desenvolver uma
liberdade maior.
O texto escrito está em tensão com o texto encenado; o que resulta é o que
Lehmann (2013) chama de texto da performance, em que os signos teatrais são
rearranjados por essa estrutura tensionada. Por fim, é um teatro que não se preocupa
com a comunicação direta, mas com a sinestesia (quando sentidos ficam confusos e
trocados), em que o excesso de elementos confunde a percepção do observador.
Arte e vida caminham sem barreiras que as separem. O espaço no teatro prós-
dramático não tem molduras, é completamente livre para a experimentação, não se
preocupa em fazer sentido, mas a ser sentido sensorialmente.
137
O corpo nesse tipo de teatro é perfeito para ser entendido como em processo
de mutação. Ele está mais preocupado em articular uma energia pelo modo como
se movimenta ou se mantém em repouso do que trazer algum significado para ser
entendido narrativamente. Muitas vezes, o corpo se faz estranho a si mesmo, porque os
artistas se colocam em posições inusitadas e até violentas.
138
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:
139
AUTOATIVIDADE
1 O corpo humano é uma multiplicidade de imagens e de sensações que se renovam
e se sobrepõem a cada instante de vida. O lugar do corpo não é estável, pois está
sempre em transformação. O corpo infantil se desenvolve e dá lugar ao adolescente
na puberdade, passa pela maturidade para encontrar os limites dados pela velhice.
Considerando os aspectos múltiplos do corpo, assinale a alternativa CORRETA.
2 Vive-se uma época em que as artes cênicas não podem mais ficar presas a apenas
uma disciplina de estudo. É comum perceber que muitos conhecimentos, como as
neurociências e a sociologia, têm sido convocados para pensar a expressividade
corporal em toda a sua riqueza. Um conhecimento, no entanto, destaca-se para
pensar o aspecto cultural da cena: a etnologia. Sobre o exposto, analise as sentenças
a seguir.
140
3 Existem muitas questões do que caracteriza o corpo humano. Por muito tempo,
ele foi visto como uma unidade fechada que poderia ser estudada facilmente. Hoje
em dia, percebe-se como esse corpo é um atravessamento de forças que o torna
cada vez mais maleável e, em certo sentido, mutante. No que se refere à veracidade,
classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas.
5 Cada cultura se expressa cenicamente de algum modo. Alguns grupos não possuem
teatro como se entende no ocidente, com seu processo de representação, o que de
modo algum os coloca em situação inferior. Povos indígenas americanos ou grupos
africanos, apenas para citar dois exemplos entre milhões, possuem os mais diferentes
rituais que engajam seus corpos expressivamente. Explique como a ciência da
etnocenologia ajuda a pensar isso.
141
142
UNIDADE 2 TÓPICO 3 -
O CORPO E AS ARTES
1 INTRODUÇÃO
O corpo humano tem sido um dos temas mais comuns entre os artistas.
Ele aparece representado em pinturas, fotografias e esculturas. Assim, ao longo do
tempo, podemos encontrar vários tipos de representação da figura humana, desde as
esculturas de pedra da Antiguidade até os grafites realizados nos muros das grandes
cidades atuais. As figuras humanas criadas pelos artistas podem ser usadas para ilustrar
sentimentos ou valores abstratos, como a esperança, o amor, a liberdade. E, apesar de
a figura humana ser um tema constante na arte, é sempre um desafio para os artistas
expressar as ideias e as emoções das pessoas por meio de suas obras.
O primeiro subtópico faz uma excursão nas obras de arte da pintura, mostrando
como o corpo é representado e o processo de criação dos artistas visuais. A escultura
e o corpos são os personagens principais do segundo subtópico, analisando as obras
e seus impactos. No terceiro subtópico, passamos para a música, tendo um recorte
bem específico para a educação por meio da musicalização. E por último, e também
de grandiosa importância, temos o encontro do cinema com o corpo e como ele se
transforma, como meio de comunicação, expressão e sensibilidade conforme a arte
cinematográfica evolui, tanto em técnica quanto em estética e em tecnologia.
As artes já foram vistas como meio histórico para compreensão do corpo, mas,
neste momento, será percebido como a corporeidade deve ser sentida como objeto
puramente estético. Aqui, incide a possibilidade de pensar o olhar como mediação por
uma representação física e indireta do corpo, seja ele um mármore, uma tela pintada,
a sonoridade ou a película fílmica. Vamos adentrar, agora, o incrível mundo da arte e
perceber como ele se relaciona com o corpo humano como objeto e produtor.
143
como pigmentos. Existe a séria possibilidade que esses desenhos, como forma de
comunicação, foram relevantes para o desenvolvimento da linguagem. Os desenhos
nas cavernas são os primeiros registros do corpo humano, comunicando os afazeres
cotidianos e possíveis interpretações cosmológicas da realidade, mostrando a caça de
animais selvagens, como ursos, mamutes, cabritos montanheses, bisontes, e grandes
felinos. São também locais para o registro dos rituais religiosos, festas, danças, colheita
e pesca. Acredita-se que, no caso da caça, a representação pictórica seria um indício
do domínio espiritual sobre a criatura a ser caçada. Apesar de não haver prova absoluta,
é um palpite bem fundamentado (GOMBRICH, 1995). A arte serve para se comunicar,
para se expressar, para se imaginar. A criação das pinturas servia como uma forma de
preparação para a vida.
Os gregos, como vimos, tinham a busca pelo belo, usando o corpo forte e
atlético para representar tanto o ser humano quanto os deuses. A pintura na Grécia
era realizada em distintos suportes, sendo encontrada, principalmente, em peças de
cerâmica (vasos e potes usados tanto para os cerimoniais quanto para guardar alimentos
e bebidas como água e vinho). Desenhos são encontrados em decoração de estátuas
(esculturas), na arquitetura (paredes e murais) e na cenografia para os teatros. Assim
como na arte da pré-história, os gregos retravam, em suas pinturas, o próprio cotidiano
e os elementos de sua mitologia. Por exemplo, podemos ver esses motivos pintados
em um cálice, mostrando Teseu vencendo o Minotauro e ao lado está a deusa Atena.
Tal obra é atribuída ao pintor Aison. Cabe também comentar sobre Zeuxis, pintor que se
destacava pela qualidade realista de suas imagens, respeitando os volumes dos corpos.
144
Identificamos que mostram equilíbrio tanto na forma quanto nas cores na
exposição dos corpos nus. Os romanos, que sofreram forte influência da cultura grega,
conseguiram fazer representações mais realísticas dos corpos, seguindo a linha grega
de representar os deuses em belas imagens. Suas pinturas também retratavam cenas do
cotidiano, a religião e mitologia. Pela arte, captavam a beleza do mundo que percebiam
e a registravam para a passagem no tempo. A arte romana floresce principalmente na
época do início do império. Dentre os nomes famosos, cabe citar laia de Cízico, pintora
que se destacou pela gravura em marfim, e o pintor Arellius, que usou as mulheres
amadas como modelos para a pintura das deusas.
O desenho do corpo, na arte bizantina, era para dar a sensação de poder; por
isso, era, de forma geral, a característica de frontalidade, dando ares de autoridade e
respeito da figura representada. As pinturas eram de santos, para difundir, a partir das
imagens, a doutrina cristã. Os afrescos nas capelas e os mosaicos em murais mostram
os corpos em estado de solenidade religiosa.
145
Figura 23 – Jogos Infantis de Pieter Brugel, o velho
146
Figura 24 – Liberdade Guiando o Povo às Barricadas, de Eugène Delacroix
147
Até esse momento, mostramos como os corpos eram representados na pintura.
A partir de agora, mostraremos não os corpos como modelo, mas sim como suporte,
ou seja, o corpo sendo “a tela” para a realização da pintura e do desenho. Iniciaremos
com as tatuagens, que são desenhos feitos na pele permanentemente. As tatuagens
fazem parte da identidade dos indivíduos que a possuem e também eram usadas para
mostrar e diferenciar as classes sociais, como aponta Lévi-Strauss (1993): nobreza,
plebeu, escravos e guerreiros. As tatuagens podem ser decorativas, com significados
pessoais, como já faziam a tribo de guerreiros Maori da Nova Zelândia, que, por outro
lado, também usavam a tatuagens ligadas à sua mitologia, com estreita relação com a
natureza e de culto e respeito aos mais velhos.
Os hindus também fazem uso da pintura corporal, como uma forma de rito de
passagem, para a preparação da noiva para o casamento. Era uma forma de frisar a
passagem de vida de solteira para a de casada. Essas pinturas usavam principalmente as
mãos e pés como área para ser desenhada. Quanto mais detalhes fossem encontrados
na criação dos desenhos no corpo, que eram feitos em henna, maior seria o presságio
de sorte na vida de casado.
148
casamento, morte). Cada pintura tinha seu significado particular e modos de criação
(CASTRO, 2000). As pinturas corporais, além de serem elementos estéticos, também
eram funcionais cuja marca servia para marcar ou mostrar algo de alguém ou de
alguma tribo.
150
seria a representação (encarnação) da própria divindade (MORRIS, 2010). Também eram
feitas as esculturas de escravos e servos dos faraós as quais eram enterradas juntas,
nas tumbas dos faraós, pois acreditavam que, na volta, continuariam a servir mesmo
em outra vida. A mumificação é um dos elementos mais conhecidos dessa cultura. As
criações esculturais egípcias perduram protegidas até hoje, como a máscara fúnebre
de Tutankamón (1336 a 1327 a.C.) e escultura de pedra de Nefertiti (cerca de 1340
a.C.). Essas imagens mostram como o corpo era ligado a um tipo de espiritualidade e
cada parte do corpo era para ser vista por ângulos específicos, o que fazia as imagens
gravadas em paredes parecerem às vezes tão planas.
151
Figura 30 – Laocoonte
Os romanos tentavam ser mais realistas nas construções de suas esculturas, não
se interessando pela perfeição e o belo, como os gregos. Os romanos representavam os
verdadeiros traços dos rostos, dando mais detalhes a faces e a suas expressões; por isso,
encontramos, por exemplo, corpos e rostos mais envelhecidos.
Uma obra grandiosa por sua estrutura física, cultural e histórica é a “Coluna de
Trajano”, de 114 D.C., edificada no auge do Império Romano, pelo arquiteto Apolodoro
de Damasco, a pedido do imperador Trajano, sendo, ao mesmo tempo, uma obra de
arquitetura e de escultura.
152
Figura 31 – Coluna de Trajano
153
Figura 32 – Ascenção de Cristo, quadro medieval de Frei Carlos
154
Figura 33 – Pietá de Michelangelo
155
Figura 34 – Anjo com o Cálice da Paixão, de Aleijadinho
Dentro da arte moderna, pode-se falar, ainda, em Auguste Rodin, que nasceu
no século XIX, mas entrou no século XX. Criador de obras imortais como “O Beijo”, “O
Pensador”, “Monumento a Balzac”, “São João Batista” e “A Idade do Bronze”.
156
Figura 35 – O Beijo, de Rodin
157
lenta. O termo alegro se refere quando a música tem um andamento mais rápido, o
andante pode ser entendido como moderado, enquanto o adágio é visto como mais
lento. A harmonia é a combinação dos sons quando ouvidos simultaneamente. As notas
musicais poderiam ser tocadas individualmente, mas, quando tocadas em conjunto,
criam acordes, que soam explorações mais complexas do som musical.
158
A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) dá ênfase à exploração do som e dos
materiais sonoros, ao som e às suas relações com o meio e a cultura, à manipulação
de fontes sonoras, à busca da música como expressão e como impressão de uma
determinada cultura. O repertório para a prática e exploração da música pode ser muito
grande na educação. O corpo, por exemplo, pode ser uma fonte rica para que as crianças
pesquisem e produzam sons corporais. Um exemplo prático é a “dança da cadeira”;
atividade lúdica, ou seja, uma brincadeira musical, na qual se trabalham a atenção na
audição, a agilidade corporal e o próprio silêncio (BRASIL, 2017).
159
trilhas sonoras, espetáculos, CDs, DVDs e cursos. Entre suas produções, destacam-se
a participação do Barbatuques na gravação da trilha do filme de animação infantil Rio
2, de superprodução de Hollywood; da trilha do filme de animação O Menino e o Mundo.
Até os dias de hoje, o grupo apresenta-se em shows, eventos, gravações, produz trilhas
musicais para cinema, TV, teatro, publicidade e, paralelamente, ministra oficinas e
workshops para os mais diversos públicos.
161
4.1 O CORPO E A MUSICALIZAÇÃO NA CRIAÇÃO
A linguagem musical envolve diversos aspectos que promovem a ampliação
do repertório artístico dos estudantes, a comunicação e a integração, se trabalhada
no contexto educacional, de forma artística e pedagógica, porque, segundo a BNCC,
o trabalho com música na escola possibilita a “[...] ampliação e a produção dos
conhecimentos musicais passam pela percepção, experimentação, reprodução,
manipulação e criação de materiais sonoros diversos, dos mais próximos aos mais
distantes da cultura musical dos alunos” (BRASIL, 2017, p. 196).
162
gestos e movimentos (com o corpo, as crianças desde cedo exploram o mundo, o espaço
e os objetos do seu entorno, estabelecem relações); 3) traços, sons, cores e formas
(conviver com diferentes manifestações artísticas, culturais e científicas possibilita
às crianças, por meio de experiências diversificadas, vivenciar diversas formas de
expressão e linguagens); 4) oralidade e escrita (apropriação da língua oral e, por meio de
falar e ouvir, ampliação dos recursos de expressão, compreensão e de vocabulário); e 5)
espaços, tempos, quantidades, relações e transformações (curiosidade do mundo físico
e se deparam, também, nessas experiências e em muitas outras, com conhecimentos
matemáticos).
A música permite ao sujeito expressar seus sentimentos por meio do seu canto,
da letra, dos movimentos (dança) provocados pelos mais variados e tipos de sons. A
música, como linguagem artística, propicia aos sujeitos desvendar seus mundos e
entender o nosso mundo, ou seja, a música com a corporeidade, oportuniza modos de
como enxergamos o mundo e formas de estar na realidade que estamos inseridos.
Na França, foi Georges Méliès que fez um uso criativo com efeitos de cena
com elementos teatrais e acrobáticos. Ele apresentava corpos fantásticos que se
transformam rapidamente nas telas, em narrativas de ficção científica e sobrenaturais.
O cinema se construía como uma arte que gravava a realidade em uma película,
na sucessão de vinte e quatro quadros por segundo.
Desde que o cinema apareceu, ele foi usado para captar a expressão corporal
de atores que se apresentavam diante das câmeras. O modo como esses corpos foram
captados mostra como cada época e lugar compreendeu a imagem dos corpos, pois
eles acabavam servindo como maneiras que seriam idealizadas e admiradas pelos
espectadores e se tornariam parte do costume e do imaginário social.
164
Os artistas usam movimentos estilizados que os colocam em posições
estranhas, às vezes parecendo máquinas se mexendo, gestos minimalistas e espasmos
desordenados. O corpo se manifesta de uma maneira puramente estética.
165
Figura 39 – Charles Chaplin em Tempos Modernos
166
Figura 40 – Al Jonson usando blackface no Cantor de Jazz (atores brancos se pintavam para
parecer negros. uma prática justificadamente repudiada nos dias de hoje)
167
Também são reconhecidos pela monstruosidade que podem produzir nas
telas. Corpos doentes e estranhos também convocam os olhares, pois existe um prazer
secreto em sentir repulsa. Filmes de Terror trazem a experiência do magnífico em
conexão com o assustador. O visivelmente deformado de criaturas como Frankenstein,
Drácula e Lobisomem mexem com as sensações dos espectadores. Até hoje, o terror
tem sua fascinação, seja por apresentar mortos-vivos em cenas repugnantes, seja pelo
suspense psicológico de expor corpos em situação de estresse e de espera.
O cinema noir explorava a decadência moral dos corpos com a mulher sedutora
e o sujeito iludido em uma cidade corrupta, em clima de mistério. Filmes como Os
Assassinos e Pacto de Sangue são representativos desse gênero criado nos Estado
Unidos e nomeados na França. O musical foi a grande representação do corpo em dança
em que os saltos, o sapateado e todos os movimentos corporais desafiam a captação
da imagem com movimentos rápidos e vigorosos. Nesse último gênero, há nomes como
Fred Astaire, Ginger Rogers e Gene Kelly.
168
DICA
Assista ao filme Cantando na Chuva (1952), de Stanley Donen. Don Lockwood e
Lina Lamont são dois dos astros mais famosos da época do cinema mudo em
Hollywood. Seus filmes são um verdadeiro sucesso e as revistas apostam num
relacionamento mais íntimo entre os dois, o que não existe. Porém o cinema
falado chega para mudar totalmente a situação de ambos no mundo da fama.
Decidido a produzir um filme falado com o casal mais famoso do momento, Don e
Lina precisam, entretanto, superar as dificuldades do novo método para conseguir
manter a fama conquistada.
A projeção em uma tela grande em que a ação é construída por uma montagem
que leva a narrativa em uma linha direta de um problema ao seu clímax e posterior
resolução proporciona às pessoas se sentirem imersas no acontecimento do filme. Todo
espectador de cinema tem a tendência a acreditar no que acontece na tela como se isso
fosse uma estória contada apenas para si mesmo. E, apesar de esse tipo de arte não
possuir a cinestesia que o teatro oferece, o corpo ainda se torna um elemento-chave
para a recepção da arte. Isso significa que os filmes podem não ser realistas, mas a sua
ilusão cria no espectador um efeito de realismo. As deformações do cinema se tornam
ideais para os espectadores, incluindo a representação dos corpos.
Uma resposta a isso veio de vários movimentos ao redor do mundo que visavam
repensar o modo como o ser humano era representado na tela. O cinema usa a câmera
como mecanismo para explorar e captar o movimento. O registro imagético do corpo
atribui um novo sentido em que a expressividade corporal se soma a uma moldura
construída artificialmente. Na França da década de 1960, surge um movimento que
tenta repensar o cinema e, portanto, o uso estético dos corpos nele: a Nouvelle Vague
(Nova Onda). Jovens críticos de cinema começaram a pensar a cinemateca como um
local de criatividade e experimentaram novas percepções artísticas. Entre eles, podem-
se citar os cineastas Jean-Luc Godard e François Truffault.
DICA
Assista ao filme Jules e Jim – uma mulher para dois (1952), de François Truffault. Dois
artistas, um austríaco e um francês, se apaixonam pela mesma mulher. Esse amor
se estende no tempo por mais de 20 anos, mas, quando a Primeira Guerra Mundial
acontece, o triângulo se desfaz.
169
se tornando mais um meio para a exposição de sensações do que simplesmente contar
uma estória. As cenas de rua seguiam os corpos dos atores e tinham continuidade em
espaços fechados, suas vozes se interpelavam criando mais uma atmosfera do que um
significado reconhecível. Esse movimento alterou as ideias do que se pensava sobre
cinema e trouxe consequências para o resto das produções no mundo.
No Japão, essa nova onda apresenta corpos em estado latente com as obras de
Nagisa Oshima, com Juventude Nua, e Shohei Imamura, com a Balada de Narayama, em
que a sexualidade é mostrada de forma não idealizada, às vezes beirando o escatológico.
O cinema alemão de Werner Herzog mostra corpos em estados diferentes dos usuais
com O coração de cristal, em que deixava seus atores em situação hipnótica, ou Os
Anões Também Começaram Pequenos, em que mostra um mundo pós-guerra povoado
de corpos com nanismo. O cinema brasileiro também trouxe essa criatividade corporal
nos filmes de Glauber Rocha, nos quais os atores se manifestam de forma alegórica para
demonstrar as contradições políticas.
170
Importante ressaltar ainda que o cinema como forma de captação e de projeção
também adentrou as artes cênicas. Não são poucos os espetáculos que usam o recurso
cinemático para criar tensões entre o corpo presencial e o corpo representado em tela. O
diretor de teatro contemporâneo John Jesurun explora essas tensões ao colocar atores
que, em cena, no palco, agem de modo robótico e artificial, enquanto esses atores em
projeção fazem ações naturais e realistas quando falam (LEHMANN, 2013). O artista
está dialogando com a ideia do filósofo Giles Deleuze de que seria possível apagar a
falsa distinção entre imagem como realidade psicológica e movimento físico. Assim,
o elemento do cinema seria construído por “imagens-movimento”, corpos móveis, em
eternas mediações, pois nunca seria uma questão de pose estática, mas de gesto
sempre em transformação. O cinema cria espaços táteis, possibilidades de afeto que
lhe são próprias (DELEUZE, 1985).
171
LEITURA
COMPLEMENTAR
CORPO NA ARTE, BODY ART, BODY MODIFICATION: FRONTEIRAS
Body art
É justamente aqui que nosso percurso tem início. Não é possível compreender o
que atualmente chamamos de arte do corpo (ou corpo na arte) sem nos reportarmos ao
rótulo cunhado nos anos 60. A body art põe o corpo em tão em evidência, e o submete
a experimentações tão variadas, que sua influência estende-se aos dias de hoje.
172
Certamente, proposições radicais como estas não foram recebidas com
indiferença na época em que foram realizadas. Ainda hoje, a body art impressiona
pela intensidade de suas experiências, e a audácia - ou a loucura - de seus artistas.
Suscitando um misto de atração e repulsa, e operando na contramão do ideal clássico
de arte, a body art convida à reflexão.
173
Body modification
Segundo Beatriz Pires, autora do livro O corpo como suporte da arte, o conceito
body modification designa as modificações corporais executadas das mais diversas
formas. Entre seus procedimentos estão “a mudança das cores da epiderme e a feitura
de incisões, queimaduras, perfurações, mutilações e implantes de diferentes tipos, com
a finalidade de modificar os contornos e acrescentar elementos à silhueta [...]”3. Em seu
estudo, a autora trata não daqueles que modificam seus corpos em função da moda,
mas de indivíduos para a quais a body modification possui outros significados – sejam
eles psicológicos, filosóficos ou mesmo religiosos. Entre estas pessoas, estão os modern
primitives – grupo de adeptos de modificações corporais para os quais a manipulação
do corpo possui um caráter místico e transcendental. Fakir Musafar, criador do termo
modern primitives, lista algumas das práticas da body modification, às quais ele chama
de “jogos” (cito aqui três dos sete itens mencionados por Fakir):
Nota-se como muitos dos jogos mencionados por Musafar já foram explorados
por artistas da body art; entretanto, cabe estabelecer as semelhanças e diferenças
entre as modificações corporais e a arte do corpo. Até que ponto a body modification
pode ser entendida como arte? Ainda que em geral se defina tanto a body art quanto a
body modification enquanto práticas nas quais o corpo é o suporte da arte, há que se
esclarecer o que se entende, em cada um dos casos, pela palavra “arte”. Quando se fala
em body modification, o termo arte não se refere, necessariamente, à arte dos museus
e galerias. A intervenção no corpo é chamada de “arte” não porque quem a realiza é um
artista plástico, mas porque se considera que, ao alterar seu o corpo, o indivíduo o faz
de maneira criativa, de modo a obter determinados resultados estéticos.
Já quando nos referimos à body art (anos 1960 e 1970) ou ao corpo na arte
(anos 1990 e 2000) tratamos justamente de uma arte inserida em determinado sistema
- isto é, arte feita por indivíduos que se declaram artistas, cuja produção é exibida em
museus e/ou galerias. Embora a body modification não se insira, na maioria das vezes,
no espaço institucionalizado da arte, ela se aproxima em muitos aspectos da body art.
Basicamente, a body modification e a body art possuem as seguintes características
em comum: as intervenções no corpo; o caráter positivo atribuído à agressão corporal;
a presença do ritual; e a identificação do artista/indivíduo com o xamã ou o mártir.
174
O que mais une as duas práticas que viemos discutindo é, certamente, a
intervenção no corpo. Em linhas gerais, podemos dividir as intervenções corporais
em basicamente três níveis. A maneira mais direta ou radical pela qual o corpo pode
ser trabalhado é, a meu ver, aquela em que há ruptura ou alteração da estrutura da
pele. Aqui se encaixam a maioria dos procedimentos da body modification, e alguns
dos procedimentos da body art. A pele é perfurada, costurada, submetida a implantes,
tatuagens e queimaduras. Busca-se macular a pele (perfurações, costuras, suspensões),
ou marcá-la e alterá-la definitivamente (tatuagens, escarificações, cirurgias plásticas,
implantes). Os adeptos da body modification parecem buscar alterações definitivas mais
frequentemente do que os artistas da body art. Como observa Beatriz Pires:
Um outro nível segundo o qual o corpo pode ser trabalhado é aquele em que
ele se transforma em tela ou pincel. Aqui, a pele não é desafiada ou alterada de modo
permanente; não há cortes nem danos ao tecido. A pele apenas muda temporariamente
impregnando-se dos mais diversos materiais (tinta, cosméticos, barro, lama, sangue
animal e outros). O corpo como ferramenta ou suporte da pintura foi explorado em
diversas ocasiões pelos artistas da body art, especialmente em performances. Já a body
modification não parece se identificar com esta relação efêmera entre corpo e pintura.
Reina, atualmente, um conceito amplo do corpo na arte – tão amplo que sua
própria validade tem sido questionada. Num artigo sobre a exposição “O corpo na arte
contemporânea brasileira”, realizada em 2005 no Instituto Itaú Cultural, em São Paulo, o
crítico Teixeira Coelho comentava:
175
A questão mais específica a esta mostra desdobra-se em duas: 1) O
que é corpo, afinal? A maleta 007 com pregos no interior; um vestido;
arte do corpo, arte com o corpo? Se forem, tudo é corpo, então nada
é; 2) O que é arte para esta exposição?, pergunta motivada pelo vídeo
com Lygia Clark e os gadgets sensoriais para passar no corpo de
seus pacientes e com isso “tratá-los”: arte é terapia, aqueles gadgets
são arte? Se sim, a psicanálise e o rolinho japonês que passo no pé
também. Uma exposição que faz pensar...
176
Outro fator importante no que se refere à arte do corpo atual é o esvaziamento
da questão política que caracterizara a body art. Ao longo do tempo, os aspectos outrora
dramáticos da liberação do corpo foram se transformando. Pode-se afirmar que a arte
do corpo, atualmente, ocupa-se mais do indivíduo que da coletividade. Reina uma arte
introspectiva com as características de um diário: intimista, confessional, particular. No
discurso sobre o corpo, há um deslocamento do social ao privado, ou da política rumo
à psicologia (como quer o crítico Hal Foster). O que um dia foi celebração comunitária
converte-se em certa solidão, e, findas as utopias, a arte passa a incorporar em seu
vocabulário algo da frieza e da incomunicabilidade contemporâneas.
Fonte: SILVA, P. R. da. Corpo na arte, body art, body modification: fronteiras. In: ENCONTRO DE
HISTÓRIA DA ARTE, 2., 2006, Campinas. Anais [...]. Campinas: Unicamp, 2006. Disponível em:
https://bit.ly/3EAOFS5. Acesso em: 24 ago. 2022.
177
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:
• A relação das artes plásticas na representação do corpo pela escultura. O corpo ganha
três dimensões em várias imagens durante a história, passando por um recorte que
toma exemplos da pré-história até a Idade Moderna.
• O uso que o cinema, como sétima arte, faz dos corpos para representar sensações
e ideais. Cada época cinematográfica trouxe modos de olhar próprios para o corpo,
tornando-o uma imagem em movimento, por um lado pela forma de recepção, mas,
por outro, criativa, ao permitir que influencie os comportamentos e os costumes de
que corpos devem ser sentidos e admirados.
178
AUTOATIVIDADE
1 A pintura é uma forma de expressão artística bastante antiga entre os vários
processos de representação da humanidade. Um de seus principais modelos sempre
foi o corpo humano, principalmente em ação. Esse objeto de representação estava
presente desde as primeiras incursões das coletividades humanas com a arte dentro
das cavernas. Nesse sentido, assinale a alternativa CORRETA.
I- A estátua foi descoberta na região da Áustria, mas acredita-se que tenha chegado
por uma peregrinação desde a região da Itália.
II- Inicialmente, foi vista como uma possibilidade de representação do corpo feminino
por homens, mas, atualmente, considera-se que possa ter sido feita como uma
forma educativa entre as mulheres.
III- O nome de Vênus é uma designação única que foi dada para essa estátua por seu
descobridor na região de Willendorf, não existindo em nenhuma outra estátua do
período Paleolítico.
179
3 A música é uma expressão humana que carrega muita emoção. Sua relação com o
corpo sempre foi vista com muita agudeza por vários povos, em diferentes culturas,
durante toda a história. O processo pedagógico que percebe o corpo como elemento
musical mostra-se cada vez mais atual. Considerando o exposto, classifique V para
as sentenças verdadeiras e F para as falsas.
5 A música é uma experiência tão poderosa na cultura humana que, de início, era vista
apenas como um entretenimento e logo se tornou um campo cognitivo próprio.
Sua relação com o corpo é cada vez mais apontada nos discursos acadêmicos,
demonstrando a valorização que a sociedade constituiu gradativamente. Diante
disso, explique como a música é incentivada na educação formal do Brasil.
180
REFERÊNCIAS
ARRUDA, J. J. de A.; PILETTI, N. Toda história. São Paulo: Ática, 1996.
ALVES, C. L. (org.). Interações: crianças, dança e escola. São Paulo: Blücher, 2012.
BERTAZZO, I. Espaço e corpo: guia de reeducação do movimento. São Paulo: SESC, 2004.
181
COLLAÇO, V. As aparências mutantes de um corpo que se desnuda. Urdimento,
Florianópolis, v. 1, n. 27, p. 231-245, dez. 2008.
182
MOTA, C. G. Ideologia da cultura brasileira: 1933-1974. 9 ed. São Paulo: Ática, 1994.
SCHULTZ, D. P.; SCHULTZ, S. E. História da psicologia moderna. 12. ed. São Paulo:
Cultrix, 2000.
SILVA, D. N. História do carnaval. Brasil Escola, [s. l.], 2019. Disponível em:
https://bit.ly/2T83Vyt. Acesso em: 17 abr. 2019.
183
VALIM, M. Música na/da Escola: interlocuções entre políticas educacionais e
subjetivação da Educação Musical nos espaços escolares. 2021. 138 f. Mestrado
(Educação) – Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual do Rio Grande do
Sul, UERGS, Osório, 2021.
184
UNIDADE 3 —
O CORPO E A CRIAÇÃO
COMO PROPOSTA
EDUCATIVA
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar
o conteúdo apresentado.
CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.
185
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 3!
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186
UNIDADE 3 TÓPICO 1 —
LINGUAGEM DO MOVIMENTO
1 INTRODUÇÃO
De acordo com Lola Brikman, o movimento corporal é a linguagem do corpo, a
forma como o corpo se expressa. Ao longo da história humana, a dança exerce diferentes
papéis que explicitam a forma com que o corpo foi compreendido, vivido e treinado; e,
por conseguinte, surgiram diferentes linguagens. A expressão corporal busca maneiras
de o corpo do artista chegar a uma forma própria de expressão, preservando suas
idiossincrasias, sua subjetividade, valorizando sua espontaneidade.
A dança é uma das formas de expressão artística mais praticada pela humanidade
desde os tempos pré-históricos. Nas páginas seguintes, você vai conhecer brevemente
a história da dança com foco no Ocidente e vai perceber a relação intrínseca que existe
entre o corpo, o modo de vida e o contexto da humanidade. A linguagem do movimento
é expressa pelo corpo, e ele, o corpo, tem sua história. Além disso, você vai compreender
a diferença entre a história a partir da perspectiva positivista e da história cultural, a fim
de desenvolver o seu senso crítico, para repensar os fatos históricos como possíveis de
serem reescritos sob um novo ponto de vista.
Você vai conhecer o legado da Escola Vianna e sua importância para a educação
somática brasileira tanto no âmbito pedagógico quanto no âmbito artístico. O legado de
Klauss Vianna e sua profícua produção são um marco na dança brasileira.
187
2 BREVE HISTÓRIA DA DANÇA
Que história é essa? Existem diferentes abordagens do conhecimento histórico.
Imagine você, acadêmico: se um historiador publicou um livro no século passado, sobre
vestígios rupestres do período neolítico que ele observou, e ainda hoje utilizássemos
esses textos sem questionar sua análise! Por isso, é importante analisarmos as fontes
de nossa pesquisa com crítica de modo a interpelar a autoridade do historiador ou
da historiadora para classificar e descrever cada dança, questionando suas opiniões
dadas e relacioná-las com nosso contexto atual. Assim, em vez de constatar a história,
o historiador de hoje constrói a história, uma vez que analisa os dados e os reformula
criando novos registros e interpretações para o futuro.
INTERESSANTE
Veja você, acadêmico, que o pensamento vigente da época em que Sachs
desenvolveu seu estudo era o evolucionismo. Na perspectiva evolucionista,
o desenvolvimento das sociedades tem como base a civilização europeia,
considerada a mais evoluída entre as civilizações. Assim, o futuro das demais
culturas do mundo seria evoluir a ponto de ter a mesma organização social e
econômica da Europa. Isso explica por que Sachs acreditava que as formas
de dança não ocidentais não eram evoluídas, pois, para ele, o futuro dessas
danças seria tornarem-se similares às de sua própria cultura!
Agora que estamos com os olhos bem abertos para o positivismo e suas
lacunas, vamos analisar textos consagrados acerca da história da dança? Vamos iniciar
percorrendo a pré-história, depois passearemos pela Antiguidade, abordaremos a Idade
Média até chegarmos à Idade Moderna e à Idade Contemporânea.
188
NOTA
A pré-história compreende os períodos Paleolítico (2,7 milhões de anos
atrás até 10000 a.C.) e o período Neolítico (10000 a.C. até 3000 a.C.). Já a
História propriamente dita abarca os períodos da Antiguidade (3500 a.C. até
476 d.C.), da Idade Média (século V ao século XV), da Idade Moderna (ano
1453 d.C. a 1789 d.C.) e da Idade Contemporânea (a partir da Revolução
Francesa de 1789 em diante).
189
Curiosamente, essa figura foi também encontrada em vestígios na Suécia e na
África do Sul. Como essa mesma figura espalhou-se em diferentes partes do mundo é
um mistério. Independentemente de sabermos qual foi o primeiro registro, é consenso
entre autores como Sachs, Bourcier (2006), Rengel e Langendonck (2006), que a dança
tenha surgido como um ato ritualístico, praticado em cerimônias de adoração a deuses
e deusas, em celebrações ligadas aos fenômenos da natureza e em referência aos
períodos de plantio e de colheita.
190
2.2 A DANÇA NA ANTIGUIDADE
Para abordarmos a dança na Antiguidade, vamos partir do Oriente Médio. No
Egito, a dança sagrada perpassa o período Neolítico até o ano 30 da Era Moderna. A
vasta iconografia de hieróglifos e tumbas mortuárias descrevem danças acrobáticas e
danças em círculos de mulheres que acompanhavam a direção da rotação planetária.
Os cultos à fertilidade em honra à deusa Ísis e ao deus sol Rá foram encontrados em
muitos templos da época do Egito faraônico.
191
De acordo com Bourcier (2006), Roma foi a responsável por transformar a
dança ritual sagrada em um ato profano, com utilidades apenas de recreação. Ainda
que a dança sagrada subsistisse na cultura antiga em meio ao povo, lentamente ela foi
perdendo prestígio e espaço para a pantomima.
192
Como exemplo disso temos um decretal do Papa Zacarias, no ano de
774, “contra os movimentos indecentes da dança ou carola”, a homilia
de papa Leão V que condenava, em 847, “os cantos e carolas das
mulheres na igreja”. No final do século XIII as constituições sinodais do
bispo de Paris, Odon (costitution, 36), prescrevem ao clérigo que proíba
a dança “principalmente em três lugares: nas igrejas, nos cemitérios e
nas procissões” (BOURCIER, 2006, p. 47, grifo nosso).
NOTA
Chorea ou carola era uma dança típica dançada em roda fechada ou aberta
praticada na Idade Média até o século XIII.
A história da dança tem muitas lacunas, pois houve muitas perdas de fontes
bibliográficas devido a ações do tempo e da humanidade, como queima de livros
e incêndio de bibliotecas inteiras. Além disso, você já deve ter notado que a Idade
Média significou uma ruptura brutal da dança como ritual e como educação. Isso, caro
acadêmico, revela um fator muito importante: a relação da humanidade com seu corpo,
com sua vida cotidiana e com o modo como compreende o mundo a sua volta incide no
modo como ele se expressa na dança.
Vamos pensar juntos no homem pré-histórico. Sua relação com a vida estava
ligada ao sentido de sobrevivência em que o clima e a caça eram determinantes para
sua vida. No momento em que passou a dominar a agricultura, a humanidade passou a
compreender a fertilidade como uma dádiva divina na qual o corpo que dança poderia
servir como ponte para comunicação espiritual. Na Antiguidade, a dança passou a
acumular outros ritos de passagem, como casamentos e funerais, e serviu, também,
como modo de educação e de treinamento militar e social.
Cabe comentar que mesmo assim surgiram uma grande variedade de danças
nesse período, a ponto de se permitir pensar que foi uma época que inventou uma retórica
do corpo (BOURCIER. 2006). Apesar de proibições da Igreja, sabe-se que a Chronique de
193
Saint Martial, de Limoges, indica a organização de uma Chorea, também conhecida como
Carola, em homenagem aos cruzados (BOURCIER, 2006). Tratava-se de uma roda, às
vezes fechada chamada de Branle, outras vezes aberta. Também dançavam o Tripudium,
uma dança em três tempos em que os executantes não se tocavam.
Figura 4 – Carola
194
2.4 A DANÇA NA IDADE MODERNA
Agora que compreendemos nosso recorte de estudo, vamos conhecer o balé
de corte; o modo como o balé surgiu antes de transformar-se no estilo de dança
sistematizado que conhecemos hoje.
NOTA
O termo balé veio da palavra italiana ballo e de seu diminutivo balleto. Na
França, sob influência do termo em italiano, utiliza-se ballet, porém, em
português, utilizamos a palavra balé.
O fato que demarca a Idade Moderna para a dança foi o surgimento do balé
clássico. Ao contrário do que muitos acreditam, o balé surgiu na Itália, em Florença, a
partir do século XV, no palácio de Médicis (RENGEL; LANGENDONCK, 2006). Somente
quando Catarina de Médicis casou-se com o Duque de Orléans, futuro rei Henrique II
da França, a prática do balé e suas apresentações foram levadas para a corte como
entretenimento da nobreza francesa.
INTERESSANTE
O balé clássico era quase que exclusivamente dançado por homens, inclusive o
próprio rei participava como um personagem mítico ou um deus. A função de
coreógrafo era incumbência de músicos, a exemplo da Grécia Antiga. A criação
das cinco posições básicas do balé clássico deu-se somente no século XVIII, por
Pierre Beauchamp (1636-1705), quase 300 anos depois do início da prática do
que já se conhecia como balé.
No entanto, foi na corte de Luís XIV (1638-1715) que o balé deu um grande salto.
O francês Luís XIV era exímio bailarino e contribuiu muito para o desenvolvimento da
dança por meio de investimentos em coreografias e em artistas. Sua primeira e marcante
aparição foi aos 15 anos de idade, no balé chamado A noite, no qual interpretou o rei-sol;
título que o acompanhou ao longo da vida.
195
IMPORTANTE
Veja, a seguir, os inovadores do balé clássico.
Agora, acadêmico, vamos conhecer uma nova fase do balé: o balé romântico,
compreendido como um período da dança em que as óperas musicais reproduziam as
bailarinas como sílfides, pálidas e etéreas.
196
IMPORTANTE
Veja, a seguir, grandes artistas e suas inovações.
Vimos que o balé nasceu como dança de corte e foi desenvolvido com
contribuições de artistas, coreógrafos e bailarinas que criaram, organizaram, inovaram
e disseminaram a dança a ponto de ela ser codificada e atravessar barreiras do tempo
e de territórios. Ainda assim, o balé continua em constante aperfeiçoamento. Uma
grande inovação contemporânea do balé é a própria pedagogia da dança. O fato de
você estar estudando para ensinar outras pessoas a dançar é uma mudança importante
e necessária para possibilitar a longevidade dos bailarinos e bailarinas da dança, evitar
lesões e para contribuir com a valorização da profissão. Você também é parte importante
dessa inovação!
197
Essa dança trouxe muitas mudanças: pés descalços, movimentos
de tronco de um modo mais flexível e técnicas executadas ao nível
do solo, com os dançarinos deitando, sentando e se ajoelhando. Na
técnica clássica, a maioria dos exercícios era, e ainda é, em geral,
executada em pé. O mais importante, porém, foi a mudança de ideias:
preocupações sociais, políticas, sentimentos humanos mostrados
por meio da dança. O tema e personagens principais eram o homem
moderno, sua vida, suas tradições, seus conflitos, enfim, o homem
inserido no seu mundo (RENGEL; LANGENDONCK, 2006, p. 41).
Entre outras, essas foram algumas das grandes mudanças que a dança moderna
trouxe para a dança. Os artistas da dança moderna queriam criar novos conhecimentos
para além do palco. Eles se preocupavam, também, com a formação dos bailarinos e
com uma forma mais harmoniosa de dança. Para isso, passaram a estudar anatomia,
ritmo, espaço, sensações, sentimentos e aspectos intelectuais do corpo que dança.
Pesquisavam, de igual modo, História das Artes, Filosofia, Psicologia e Pedagogia.
198
DICA
Assista ao vídeo Serpentine Dance! Disponível em: https://bit.ly/3gayi4g.
199
A nova geração de artistas que viriam após os precursores da dança moderna,
muitos dos quais formados pelos próprios coreógrafos, como Alvin Nikolai por Martha
Graham, passaram a questionar a liberdade de criação da dança moderna. Veja você,
caro acadêmico, que, nesse momento histórico, o Ocidente passava por grandes
transformações. Passou-se a falar em liberdade sexual, surgiram os movimentos
feministas. Dessa forma, as inovações da dança moderna já não eram libertadoras o
suficiente para essa nova geração.
INTERESSANTE
Happening surgiu nos Estados Unidos com a criação do artista Allan Kaprow no
final dos anos 1950. Os Happenings uniram as artes plásticas e o teatro (sem
texto) para realizar acontecimentos artísticos. Kaprow (2006, p. 17) explica: “Sua
forma é aberta, inacabada e fluida: nada, obviamente, é solicitado e, portanto,
nada se ganha, exceto a certeza de um número de ocorrências às quais estamos
mais atentos”.
200
A grande contribuição de Robert Dunn foi a ideia do acaso na improvisação,
na liberdade do movimento independentemente da música. Os artistas da Judson
Church eram envolvidos com a experimentação de vanguarda e rejeitaram os limites
da prática de dança moderna, inclusive o espaço cênico e a própria ideia de dança
cênica. A Judson Church era um espaço de colaboração e de experimentação em que
artistas de diferentes áreas, como atores, pintores e desenhistas, buscavam novas
formas de criar em dança, imbuídos em uma atmosfera de diversidade e de liberdade.
O manifesto de Yvonne Rainer (1965) resume o espírito de rejeição aos padrões
estéticos da dança moderna:
Yvonne Rainer (1934), Estados Unidos. Buscou o corpo não artístico, trabalhou o
minimalismo em cena procurando valorizar o corpo e a dança acima de tudo.
Além desses, você pode querer conhecer Simone Forti, Douglas Dunn e Lucinda
Childs. Conheça suas obras no YouTube!
201
3 A ESCOLA VIANNA
Ao abordarmos a Escola Vianna, estamos falando de uma tríade: três pessoas
de uma família que revolucionaram a dança brasileira e inspiraram artistas da dança
e do teatro em todo o mundo. Estamos falando do casal Klauss e Angel Vianna, e
de seu filho Rainer. A família Vianna foi precursora da educação somática no Brasil.
Vamos falar brevemente da vida de cada um deles para, então, adentrarmos suas
contribuições e inovações.
ESTUDOS FUTUROS
Você vai saber mais de educação somática no Tópico 3. Por ora, compreenda
o significado de soma: corpo todo, corpo vivo. Assim, a palavra “somático”
remete à experiência do corpo vivo.
Aos 20 anos, começou a praticar balé clássico na escola de Carlos Leite (1914-
1955) em Belo Horizonte. Atuou como assistente do mestre entre 1948 e 1954, quando
começou, também, a criar suas próprias coreografias. Nos anos 1950, passou a fazer parte
do coletivo Geração Complemento em São Paulo, iniciando, assim, sua trajetória no teatro.
Em 1952, Klauss inaugurou sua escola de balé e, em 1959, oficializou sua parceria
com Angel Vianna, criando obras de cunho modernista para seu balé. Em 1962, o casal
é convidado a contribuir como docentes na Escola de Dança da Universidade Federal
da Bahia (UFBA), onde permaneceram até 1962. Lá, participaram do curso de Anatomia
Aplicada com o professor Antônio Brochado, experiência que redefiniu o trabalho
artístico-pedagógico de ambos a partir de então.
O casal mudou-se para o Rio de Janeiro, onde Klauss atuou como professor de
balé na Escola Municipal de Bailados até 1977. Nesse período, também passou a atuar
com a preparação de atores, além de dirigir peças e coreografar.
202
Figura 7 – Angel e Klaus Vianna
Embora Klauss utilizasse a técnica no balé clássico em suas aulas, o seu grande
diferencial foi a pesquisa que criou uma nova pedagogia e uma nova estética com
base na realização de movimentos pela consciência anatômica e estrutural de sua
execução. O professor Marcílio Vieira (2015, p. 142) descreve algumas características
da técnica Vianna:
203
de Klauss, fundou a Escola de Dança Klauss Vianna. Em 1964, parte com ele para a
Bahia, com o propósito de ministrar a disciplina de dança clássica na Escola de Dança
da Universidade Federal da Bahia.Em 1965, Angel mudou-se com Klauss para o Rio de
Janeiro, onde atuou na televisão e lecionou dança e expressão corporal na escola de
Tatiana Leskova.
204
Quando seus pais se mudaram para o Rio de Janeiro em 1965, Rainer manteve-
se em Belo Horizonte com a avó paterna. Em seu testemunho no documentário Memória
em Movimento (1992), Rainer conta que sentia ciúmes dos pais devido ao grande amor
que dedicavam à dança, contudo, foi ao assistir ao espetáculo Hoje é Dia de Rock (1971),
de Klauss, que ele se rendeu e passou também a dedicar sua vida para as artes da cena.
Rainer iniciou seus estudos aos 15 anos, primeiramente com os pais, depois
estudou expressão corporal nos anos 1970 no Rio de Janeiro, com Ausonia Bernardes
Monteiro (1945), e, na Argentina, com Lola Brikman e Patrícia Stokoe (1919-1996).
Estudou, também, eutonia, em 1978, com Gerda Alexander (1908-1994), e teatro, com
Maria Clara Machado (1921-2001), no Teatro Tablado, no Rio de Janeiro.
Em 1987, Rainer e Neide mudam-se para São Paulo, onde ele se dedicou a
sistematizar e a estruturar a técnica de seu pai.
Klauss percebeu que a correria do dia a dia, os sons urbanos, a urgência sempre
presente em nosso cotidiano e a técnica corporal mecanicista impedem o domínio do
corpo do artista, pois, antes de qualquer técnica, é preciso que o artista domine as
possibilidades de seu corpo. Desse modo, Vianna sentiu que precisava fazer o artista
viver a experiência de seu corpo e o dominar integralmente:
205
Minha proposta é essa: por meio do conhecimento e do autodomínio
chego à forma, à minha forma – e não o contrário. É uma inversão
que muda toda a estética, toda a razão do movimento. A técnica na
dança tem apenas uma finalidade: preparar o corpo para responder à
exigência do espírito artístico (VIANNA, 2005, p. 73).
DICA
Assista ao filme Memória presente: Klauss Vianna, disponível em:
https://bit.ly/3S3xnA6.
206
Na busca por despertar a consciência corporal de seus alunos e alunas, o
professor Klauss Vianna ligou o movimento do corpo ao movimento das células corporais
e do próprio Universo. Para ele, o desequilíbrio emocional correspondia ao desequilíbrio
postural. Assim, antes de dominar a técnica era preciso dominar o corpo como um todo:
“A primeira coisa que um professor precisa fazer é dar um corpo ao aluno” (VIANNA,
2005, p. 76).
Klauss Vianna (2005) propôs que o bailarino vai adquirindo habilidade técnica
com a dança praticada, seu eixo, equilíbrio e flexibilidade mudam, da mesma forma que,
ao questionar e observar atentamente a si mesmo, o bailarino muda também a visão de
mundo, a óptica das coisas e das pessoas.
Para Viana (2005), a parte mais importante do corpo eram os pés; por isso, sempre
utilizava a automassagem dos pés em sala de aula. A atividade possibilita que os alunos e
alunas percebam novos pontos de apoio e, assim, possam trabalhar sua postura.
207
• Processo lúdico – nesse processo, o corpo é instigado a perceber-se e a desbloquear
partes motoras de modo a transformar padrões nocivos ou estereotipados de
movimento. O processo lúdico é considerado a introdução à técnica Klauss Vianna.
São abordados os sete temas corporais: presença, articulações, peso, apoios,
resistência, oposições e eixo global.
• Processo dos vetores – nessa etapa, compreendem-se as direções ósseas,
experimentando diferentes improvisações até chegar a um processo criativo. É uma
etapa de aprofundamento do estudo o qual requer uma consciência corporal maior
para o domínio dos vetores de força: metatarso, calcâneo, púbis, sacro, escápulas,
cotovelos, metacarpo e a sétima vértebra cervical.
• Processo coreográfico – cada um dos vetores será explorado de maneira lúdica, como
um jogo de experimentação dirigida por tema para improvisações (VIEIRA, 2015).
O ser humano é expressivo por natureza. Ele não se comunica somente com
a fala, mas com expressões faciais e corporais também. A expressão corporal pode
ser compreendida como o modo pelo qual o corpo se expressa, comunica ideias e
sentimentos. A proposta de ampliar e dominar as possibilidades do corpo expressivo
vem acompanhando o artista desde que a dança e o teatro se tornaram espetáculo.
Assim, diferentes coreógrafos, dramaturgos e preparadores corporais dedicaram-se a
descobrir formas de tornar o corpo cada vez mais hábil a expressar-se. A expressão
corporal, como disciplina, busca trabalhar alunos e alunas de modo a instigar sua
criatividade e sua expressividade corporal. Vamos conhecer a definição de expressão
corporal pela argentina Lola Brikman (1989, p. 23):
208
novo trabalho, não se encontrou um nome para ele, e foi chamado
então, de expressão corporal. [...] Efetivamente, a expressão
corporal tem um ponto de partida diferente, a expressão corporal é
o cumprimento, por parte do ser humano, de sua possibilidade de
manifestar-se através de seu corpo.
209
Laban preocupou-se com as técnicas que enrijeciam o bailarino, sem deixá-lo
criar e explorar as possibilidades de seu próprio corpo. Assim, dedicou-se a desenvolver
formas livres de criação de movimento que partem de tarefas e de ações, propondo ao
bailarino propostas para que ele ou ela crie a partir de improvisações.
210
Irmgard Bartenieff (1900-1982) foi uma das alunas de Laban que desenvolveu,
nos Estados Unidos, os Fundamentos Corporais Bartenieff e os incluiu no Sistema Laban.
O Sistema Laban-Bartenieff é uma formação teórico-prática que concede um Certifica-
do de Analista de Movimento (CMA) reconhecido internacionalmente. Existem centros de
formação no sistema Laban/Bartenieff nos Estados Unidos e no Reino Unido.
211
Vamos compreender, agora, como Laban descreveu seus fundamentos.
Acompanhe os próximos parágrafos!
De acordo com Laban (1978, p. 49, grifo nosso), o movimento é regido por leis
físicas ligadas à produção de energia e a sua transformação em movimento:
212
Os fatores de movimento variam também de acordo com o elemento esforço,
dependendo da quantidade de energia empregada para realizar. O esforço realiza-
se em certo tempo, e, em dado espaço, o movimento. De acordo com Laban (1978),
o esforço parte de um movimento invisível dentro do corpo, até tornar-se visível e
adquirir as qualidades de movimento. É uma organização interna que prepara o
movimento e o antecede.
Por fim, uma ideia importante desenvolvida por Laban foi a corêutica, que
consiste na organização espacial com base no corpo da bailarina ou do bailarino e seu
deslocamento no espaço. Devido a isso, a corêutica não pode ser aplicada em separado
da eucinética, pois o deslocamento no espaço e suas dinâmicas compõem a realidade.
Figura 11 – Icosaedro
213
O emprego do sistema Laban em sala de aula permite um desenvolvimento da
dança de modo mais criativo. Em sua teoria e prática, Laban evidenciou a premissa de
que aprendemos tudo a partir da experiência do corpo. Por conta disso, sua utilização
como processos formativos é incentivada nas escolas.
DICA
Assista ao documentário sobre Rudolf Laban, em português, no YouTube:
Disponível em: https://bit.ly/3TkGhKv.
214
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:
215
AUTOATIVIDADE
1 A dança passou por muitos períodos diferentes durante a história. Cada época
terminou por constituir formas dinâmicas próprias por meio de seus dançarinos.
Dentre as várias épocas, cabe mencionar que a era medieval é também responsável
por uma personificação própria do corpo com a dança. Nesse sentido, pensando na
dança medieval, assinale a alternativa CORRETA.
a) ( ) A igreja católica foi a principal responsável pela criação das danças medievais,
usando da religião como uma espiritualidade do corpo.
b) ( ) A Basse Danse foi uma dança criada pelos camponeses e se caracterizava pelo
seu aspecto circular.
c) ( ) Uma forma de dança popular medieval foi a dança dos ovos em que os dançarinos
tinham que dançar perto de ovos evitando estourá-los.
d) ( ) A Hemíola é um tipo de dança criada pela corte da Borgonha em que se dança
obedecendo um compasso ternário.
2 De acordo com Bourcier (2006), a Idade Média significou uma ruptura brutal da dança
como ritual e como educação. A dança deixou de ser uma prática espiritual para
tornar-se uma prática profana. Segundo o autor, as mudanças na dança têm relação
com o modo como a humanidade compreende o corpo em relação a sua vida cotidiana
e ao mundo a sua volta. Sobre a principal mudança relacionada à compreensão do
corpo no contexto da Idade Média, assinale a alternativa CORRETA.
a) ( ) A conquista de poder da Igreja Católica, que passou a ver o corpo como fonte de
pecado e de tentação.
b) ( ) As práticas pagãs, que passaram a compreender o corpo como meio espiritual
de ritualização.
c) ( ) Ao dominar a agricultura, a humanidade passou a compreender o corpo como
ponte para a fertilidade.
d) ( ) O homem não necessitou mais caçar para sobreviver; por isso, o corpo deixou de
ser ligado ao sentido de sobrevivência.
216
3 A Idade Contemporânea foi marcada por movimentos que buscaram maior liberdade
e domínio da criação artística por parte dos intérpretes, tanto no teatro quanto na
dança. A Judson Church foi um local que reuniu artistas que inovaram na dança,
inspirados nos Happenings e no advento da performance art. Todos os artistas
criadores da Judson Church foram responsáveis por importantes inovações e alguns
até criaram novas estéticas e conceitos em composição cênica. Entre eles, destaca-
se o Contato Improvisação, uma técnica que utiliza a distribuição do peso dos corpos
dos intérpretes para criarem movimentos que desafiam a gravidade e exploram a
percepção por meio da educação somática. Sobre a criadora ou o criador do Contato
Improvisação, assinale a alternativa CORRETA.
a) ( ) Trisha Brown.
b) ( ) Steve Paxton.
c) ( ) Yvonne Rainer.
d) ( ) Merce Cunningham.
4 A dança expressa as mudanças sociais de uma época. Foi assim que, nos anos 1960,
a busca por liberdade inspirou artistas a desenvolverem novas formas de expressão
artística. O grupo reunia-se para realizar cursos com Robert Dunn na Judson
Church e assim ficaram conhecidos como o grupo da Judson Church. Explique qual
movimento o grupo inaugurou e suas principais características.
5 A Escola Vianna foi pioneira no Brasil na criação de uma técnica somática para
formação de artistas das artes cênicas. Explique quais as características que a
tornaram pioneira nessa área.
217
218
UNIDADE 3 TÓPICO 2 -
O CORPO E O JOGO NA CRIAÇÃO
1 INTRODUÇÃO
Neste tópico, você vai descobrir que as artes cênicas foram pioneiras na
utilização de jogos como uma forma lúdica de ensino.
Você vai ver, também, a importância dos jogos como processo formativo na
Educação Básica, inclusive incentivados como estratégia educativa nas Bases Nacionais
Comuns Curriculares (BNCC).
2 O QUE É O JOGO
Acadêmico, agora você vai conhecer algumas aplicações da expressão corporal
em sala de aula e em processos de composição, com base na ideia de jogo e de sua
aplicação nas artes da cena.
Porém, antes de falarmos das artes cênicas, vamos começar pensando na palavra
“jogo” e seu significado. Para compreender a palavra “jogo”, buscamos concepções
filosóficas para delimitar seu sentido ou noção para, então, aplicá-la pedagogicamente.
Veja você, acadêmico, em inglês, a palavra play pode ser usada tanto para brincar quanto
para jogar. Em diferentes línguas, percebemos concepções diferentes e isso implica o
modo como a cultura percebe e entende o jogo dentro de sua estrutura social, contudo,
no Brasil, será que jogo e brincadeira são a mesma coisa?
219
Ao falarmos do jogo como algo que todos conhecem e ao procurarmos
analisar ou definir a ideia que essa palavra exprime, precisamos ter
sempre presente que essa noção é definida e talvez até limitada
pela palavra que usamos para exprimi-la. Nem a palavra nem a
noção tiveram origem num pensamento lógico ou científico, e sim
na linguagem criadora, isto é, em inúmeras línguas, pois esse ato de
“concepção” foi efetuado por mais do que uma vez. Não seria lícito
esperar que cada uma das diferentes línguas encontrasse a mesma
ideia e a mesma palavra ao tentar dar expressão à noção de jogo, à
semelhança do que se passa com as noções de “pé” ou “mão”, para as
quais cada língua tem uma palavra bem definida.
Para o autor, as regras do jogo devem ser simples; por outro lado, não podem
ser de simples execução. As regras devem oferecer um desafio, um estímulo, uma vez
que são elas que:
[...] oferecem ao jogador desafios que ele não pode superar facilmen-
te. É um paradoxo básico dos jogos que, ao mesmo tempo que as
próprias regras são definidas, inequívocas e fáceis de entender, o
prazer de um jogo depende de essas regras fáceis de aplicar apre-
sentarem desafios que não podem ser facilmente superados (JUUL,
2019, p. 17).
220
No que se refere à dança, a professora Teodora Alves (2019, p. 232), da
Universidade do Rio Grande do Norte, explica que jogo e brincadeira são importantes
estratégias educativas:
Rengel (2007) explica que a utilização de jogos nas artes cênicas na formação
educativa das crianças tem a função não só de desenvolver aspectos socioculturais,
mas também de estabelecer noções de geometria, matemática e física, com base em
relações do corpo com o espaço, com a gravidade e com o tempo. Da mesma forma,
concepções nessas disciplinas também favorecem o desenvolvimento na arte. Assim, o
diálogo interdisciplinar “[...] colaboraria para atender o corpo, que já une, sozinho, teoria
e prática. A teoria se faz em prática e a prática formata a teoria, pois elas estão, juntas,
agindo nos textos do corpo” (RENGEL, 2007, p. 4).
221
Assim, Oliveira (2020, p. 18) propõe a definição de dança-jogo como:
DICA
O livro Jogos teatrais na sala de aula, de Viola Spolin (1982), é um manual
riquíssimo para professores e professoras que queiram dar seus primeiros
passos na arte de ensinar por meio de jogos. No apêndice do livro, você pode
conferir exemplos de jogos e o passo a passo para aplicá-los em aula.
O objetivo do jogo deve ser claro e atingível. O foco não é o objetivo do jogo. É
um elemento necessário para que o objetivo seja atingido. É preciso permanecer com
foco para jogar e transformar a forma em um evento teatral, pois “[...] o esforço em
permanecer em foco e a incerteza sobre o resultado diminui preconceitos, cria apoio
mútuo e gera envolvimento orgânico no jogo.” (SPOLIN, 1982, p. 32).
Por fim, a avaliação é a finalização do jogo em que todos discutem o que foi
realizado. Spolin (1982) alerta para que não seja uma avaliação crítica, com julgamentos
de qualquer ordem. O importante é que cada um reflita sobre se o objetivo proposto foi
atingido da melhor forma.
222
Para evitar isso, Spolin (1982) sugere uma dinâmica em que, por exemplo, uma
turma de 30 seja dividida em cinco pequenos grupos, da seguinte forma: todos sentados
em suas cadeiras vão contando de um a seis. Todos que disseram um ficam juntos, os
que disseram dois ficam juntos e assim sucessivamente. Outra dica importante para
manter o clima tranquilo entre participantes é que você nunca chame a atenção dos
jogadores pelo nome, e sim que incentive o grupo a ajudar alguém que esteja com
dificuldade, de modo a integrar todos e todas.
A dança e o teatro são processos educativos, mesmo no ensino não formal. Neste
subtópico, vamos dar atenção ao ensino das artes cênicas em ambos os ambientes. No
que se refere à dança, segundo Alves (2019) podemos compreender que ela evidencia
a sensação de ser corpo por meio de brincadeiras, ao mover e construir relações com o
mundo, com o próprio corpo e com o corpo dos outros.
No entanto, não só as crianças aprendem com os jogos; ainda que jogar seja
considerada uma ação supérflua para o adulto, mesmo assim ele pode ter prazer ao jogar
e sentir a necessidade a partir daí (HUIZINGA, 2007). Portanto, promover conhecimento
pelos jogos corporais com as crianças e com os adultos é desenvolver um processo
educativo que pode ser estabelecido em qualquer espaço, não só no âmbito escolar
(OLIVEIRA, 2020).
Então, de que forma podemos estabelecer uma prática reflexiva para promover
conhecimento por meio do jogo do corpo? Como fazer o indivíduo perceber e refletir
sobre o mundo a sua volta por meio da dança ou do teatro? De que forma o corpo
aprende a técnica e a torna arte?
Mônica Dantas é uma bailarina pesquisadora que publicou muito sobre o corpo
e sua relação com a dança. Baseada na filosofia de Pareyson (1993), Dantas (2020)
estabelece relações entre a teoria da formatividade e a composição coreográfica. A
formação de quem dança ou atua pressupõe um preparo corporal; o período de dar
forma à arte que se realiza no corpo:
224
Um dos objetivos das técnicas de dança é tornar natural o movimento:
um movimento que não é inato, mas motivado e construído torna-
se aparentemente natural e de fácil execução para o bailarino (ou
ao menos aparentemente). Esse movimento passa a pertencer
a seu repertório, a fazer parte do seu modo de ser corpo. Mais do
que disfarçar o esforço, é necessário incorporá-lo e torná-lo dança
(DANTAS, 2020, p. 37).
Assim também explicou Laban (1978, p. 26) ao dizer que “[a] grande economia
de esforço que caracteriza a habilidade é comum ao artesão e ao virtuose. Quanto maior
a economia de esforço, menos aparente é a fadiga”, no entanto, a técnica não deve
limitar o artista a ela; não deve impor limites. É nesse momento que o jogo surge como
um ativador da criatividade.
Com base no que vimos de jogo, formar o corpo em uma técnica por meio de
jogos pressupõe ludicidade e o estabelecimento de regras, porém sem a imposição de
limites. Em dança, a utilização de jogos está ligada à ideia de improvisação:
• O que se move: todo o corpo, ou qual parte, como uma só unidade, como se organiza
e quais formas assumidas durante o movimento?
• Como se move: qual a qualidade de movimento, quais as dinâmicas, os esforços que
expressam as nossas sensações?
• Onde se move: qual espaço ocupa, o que está imediatamente ao redor do corpo
(espaço parcial) e qual lugar em que se move?
• Com quem se move: qual o relacionamento, com quais pessoas estabelecemos
contato e/ou ligações?
225
Além dos princípios de movimento descritos, os movimentos também seguem
dimensões que são a vertical (a linha da coluna vertebral), horizontal (pelo centro do
corpo, à direita ou à esquerda) e sagital (pelo centro do corpo, para frente ou para trás).
Tem-se, então, seis direções de movimento: em cima, em frente, à direita, embaixo,
atrás e à esquerda. Laban postulou, também, que existem quatro fatores comuns a todo
movimento: o fator fluência, o fator espaço, o fator tempo e o fator peso. Vimos as ações
básicas propostas por Laban (1978): deslizar, flutuar, pontuar, sacudir, pressionar, torcer,
socar e chicotear.
Para Brikman (1989), a linguagem corporal é única, ela existe a partir da vivência
de cada pessoa e de toda sua prática corporal. A improvisação é um jogo que busca
a exploração de movimentos em que a intérprete utiliza todo o seu repertório de
movimentos para cumprir a tarefa ou as regras do jogo ditadas pelo guia, mestre ou
coreógrafa ou professora.
226
Registre sua improvisação por vídeo, conforme sugere a autora Lola Brikman
(1989), e prepare-se para deixar seus alunos e alunas explorarem o jogo de improvisação.
À medida que você for dominando diferentes jogos de improvisação em seu próprio
corpo, você terá mais habilidade para guiar seus estudantes ao domínio do próprio
corpo e suas novas possibilidades criativas.
O jogo “Cora decide coreografar”, de Ana Carolina Klacewicz (2022), foi elaborado
em sua dissertação de mestrado em artes cênicas, buscando criar um material de uso
pedagógico em aulas de dança e de literatura, uma vez que a pesquisadora é também
professora de português.
DICA
A dissertação de mestrado de Ana Carolina Klacewicz disponibiliza todo o jogo
criado por ela. É um excelente material para uso em sala de aula! Acesse em:
https://bit.ly/3VthLsl.
227
Fonte: https://bit.ly/3VthLsl. Acesso em: 13 ago. 2022.
228
No jogo teatral, por meio da forma de construção da forma estética, a criança
estabelece, com seus pares, uma relação de trabalho em que a fonte de imaginação
criadora – o jogo simbólico – é combinada com a prática e a consciência da regra do
jogo, a qual interfere no exercício artístico coletivo.
Esses são alguns exemplos de jogos de composição criados para a sala de aula
e que também podem servir como um jogo cênico. Como estes, existem muitos outros
que podem servir como base ou como fonte de inspiração para que você descubra
outros modos de apropriação.
229
para servir como referência de organização dos currículos e garantir a equidade na
educação brasileira. Segundo a BNCC, a dança, como uma das linguagens de arte, deve
articular seis dimensões do conhecimento de forma simultânea e indissociável:
230
Portanto, para que o aluno seja capaz de articular os conhecimentos e as
vivências de movimento para criar, é preciso que ele exerça essa competência em
sala de aula e ensaio. E os jogos são ótimas estratégias para desenvolver dinâmicas de
composição. Os jogos são incentivados e citados na BNCC como recursos educacionais
da dança no Ensino Fundamental mediante a distinção entre jogo como conteúdo
específico e jogo como ferramenta educacional:
231
DICA
O site Pequenices.com apresenta vários materiais gratuitos para utilização
didática. O trabalho é resultado da pesquisa de professores licenciados
em dança e com mestrado em artes cênicas e reúne os conhecimentos
adquiridos ao longo da carreira artística e docente dos artistas. Vale a pena
conferir! Disponível em: https://www.pequenices.com/.
PEGA-PEGA DANÇANTE
Não existe alguém que nunca tenha brincado de pega-pega, né?
E entre todas as suas modalidades – paralítico, corrente, hospital,
mais todas essas outras aí que tu conheces – não poderia faltar uma
dançante! No pega-pega dançante, não vale só correr para fugir ou
pegar, é preciso dançar… E quando eu for pego? Bem, daí tu ficas
impossibilitado de se deslocar pelo espaço e sua movimentação
“trava” num único e repetitivo movimento. Mas eu posso ser
salvo? Sim! Basta alguém conseguir, na sua frente, imitar essa
movimentação por pelo menos três segundos. Tu estás livre para
continuar fugindo! Dica: Para essa brincadeira, é bacana escolher
músicas bem animadas. Varie o pegador/pegadora. Podem ser
inseridas outras tarefas/conteúdos como: só pode pegar saltando;
só pode fugir com giros; todos devem estar no nível baixo; etc. Com
quem precisa ser salvo, também é possível direcionar os movimentos
repetitivos indicando com quais partes do corpo devem ser realizados
(ex.: somente com os braços) ou ainda diferentes qualidades de
movimento (ex.: ondulado) (BOFF, 2017, p. 32).
Ao final da atividade, peça que um pegue o outro. Para deixar a atividade ainda
mais atualizada, que tal tirar uma foto do grupo ao final? Será um registro bem divertido
do qual seus alunos e alunas irão dar boas risadas!
232
naquele momento. O novo pegador continua em câmera lenta e
congela naquela posição em que estava ao pegar um novo jogador.
Todos os jogadores devem ficar dentro dos limites e movimentar-se
em câmera lenta entre, ao redor, dos jogadores congelados (como
em torno de árvores, numa floresta). O jogo continua até que todos
estejam congelados (SPOLIN, 1982, p. 66).
233
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:
• As características dos jogos cênicos tanto para a formação artística quanto para a
composição coreográfica e teatral. Destacamos o pioneirismo das artes cênicas em
utilizar-se da ludicidade dos jogos como estratégia pedagógica e como possibilidade
de ampliação do repertório cênico.
• O jogo possui elementos importantes para tornar seu fim educativo ou criativo, tais
quais objetivo, foco, instruções e avaliação. Sua correta aplicação possibilita que
jogadores se envolvam de tal modo a manterem uma energia capaz de provocar a
espontaneidade em suas soluções criativas.
• O ensino da arte pelo jogo do corpo propõe a formação de artistas aptos à criação
cênica, libertos de técnicas mecanicistas que restringem sua movimentação, porém,
é importante compreender que mesmo técnicas rígidas, como o balé clássico, podem
ser trabalhadas a partir de uma abordagem somática. Por outro lado, estéticas que
podem ser libertárias, como a dança contemporânea, podem desenvolver corpos
rígidos e inábeis para a improvisação se trabalhadas de forma mecânica, amparada
somente no ensino de passos e de habilidades de repetição, em vez de habilidades
para a criação cênica.
234
AUTOATIVIDADE
1 O jogo é uma importante estratégia de ensino utilizada nas artes cênicas para
desenvolver a espontaneidade e a criatividade para improvisação. Um elemento
importante para tornar o jogo atrativo para a educação do corpo e a compreensão de
relações socioculturais é a ludicidade. Nas artes, o jogo funciona tanto para propor
dinâmicas em cena quanto para a formação corporal por meio da exploração de
novas propostas de encenação pela experimentação. Com base nisso, assinale a
alternativa que aponta CORRETAMENTE os principais elementos do jogo para sua
aplicação educativa nas artes cênicas.
3 De acordo com o estudo da educação estética pelo corpo e pelo ensino de dança, reflita
sobre as formas de ensinar que promovem a formação integral do indivíduo, conforme
disposto na BNCC, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas.
235
( ) Para que uma estética seja educativa, é preciso que ela seja oferecida como uma
prática sensível e lúdica.
( ) Para que uma estética seja educativa, é preciso que ela seja oferecida como uma
prática crítica e lúdica.
( ) Para que uma estética seja educativa, é preciso que ela seja oferecida como uma
prática crítica e reflexiva.
( ) O balé clássico pode ser ensinado como uma prática crítica e reflexiva, a exemplo
do trabalho de Klauss Vianna.
5 Para formar o corpo em uma técnica por meio de jogos, é preciso atuar com ludicidade
e estabelecer regras, porém sem a imposição de limites. Em dança, a utilização de
jogos está ligada à ideia de improvisação. Explique como a professora ou o professor
pode trabalhar a improvisação com seus alunos e alunas na área da dança.
236
UNIDADE 3 TÓPICO 3 -
EDUCAÇÃO ESTÉTICA PARA CORPO
1 INTRODUÇÃO
Você já se perguntou qual o papel das artes cênicas para a Educação? Como
a educação corporal pode transformar os educandos? Neste subtópico, você vai
compreender a importância do ensino estético a partir da experiência do corpo e como
é importante seu papel para estimular seus alunos e suas alunas nesse caminho.
237
Ampliando a experiência sensível do ser humano desde a infância, colaboraremos
com o aprendizado de questões de gênero, raça, empatia, autocuidado dentre outras.
Para além da competência no ato de criação, a sensibilização estética auxilia em
processos de criatividade e crítica. Vamos, então, apropriar-nos de diferentes formas de
fomentar esse desenvolvimento importante?
Para que os alunos busquem uma consciência do corpo maior e maior ativação
sensorial, nas aulas de educação somática não são utilizados espelhos, pois o espelho
projeta a imagem para fora da experiência corporal, sendo que:
238
[...] para a educação somática não se trata de um corpo observado
externamente, ela centra sua ação no corpo vivido e o que importa
é a experiência do corpo, acessível pelo próprio corpo. [...] De um
modo geral, os métodos de educação somática desenvolvem um
trabalho de refinamento da sensação e da percepção do movimento
com o objetivo de aperfeiçoar a consciência do corpo (DANTAS,
2020, p. 129).
Por outro lado, a educação somática não exclui a formação de artistas da cena
em uma técnica específica; ao contrário, conforme Dantas (2020, p. 130) ela é “[...] um
meio de facilitar a aprendizagem e de integrar diferentes experiências vividas pelos
dançarinos”, por atuar no refinamento da propriocepção, facilitando a apreensão de
técnicas e de criação de novas possibilidades motoras.
239
A educação somática trabalha o alinhamento postural negando modelos
impostos e fixos, como a postura do balé clássico, por exemplo. Ela tem base em criações
individuais acerca da postura com base em um refinamento sensorial, percebendo
como o corpo se organiza de modo que a organização respeite os limites de cada corpo
e sua especificidade orgânica:
240
Dessa forma, a preocupação das técnicas de educação somática centra-se em
despertar um corpo orgânico e disponível para a criação artística. Por isso, ela é também
utilizada para desenvolver a expressão corporal dos artistas da cena.
Ainda que seu objetivo seja pedagógico, é curioso que a maioria das técnicas
somáticas tenham surgido a partir da necessidade de seus criadores se restabelece-
rem de alguma lesão ou problema de saúde. E isso deve-se ao desenvolvimento de
um sistema orgânico de movimentação corporal, contribuindo com o desenvolvimen-
to da propriocepção:
A professora Heloisa Gravina (2017, p. 294, grifos nossos) explica que o corpo da
educação somática oscila entre dois modos de percepção, pois percebe-se internamente
quanto externamente:
Por isso, posso dizer que tenho um corpo ou que sou um corpo. O
que muda é o modo percepção acionado. Pode acontecer, ainda, que
ambos operem simultaneamente e, nesse caso, a diferença entre
‘ter’ e ‘ser’ um corpo é simplesmente uma questão de ênfase.
241
3 CORPO ORGÂNICO, ENERGIA E APRENDIZADO
Com base no que você leu anteriormente de expressão corporal e o aprendizado
pelo uso de jogos, é possível perceber que o corpo orgânico que a educação somática
desenvolve não pressupõe um treinamento rígido, nem formas fixas, mas sim a busca
por espontaneidade e do respeito pela fisiologia, história e anatomia de cada corpo,
dentro de seus limites.
No que se refere à dança, Mônica Dantas (2020, p. 108, grifo nosso) esclarece o
que é o corpo disponível para criação:
242
memória, atitudes, posturas e gestos; é capaz de inventar diferentes
modos de se mover – suscitando formas corporais inéditas – e de
estabelecer novas relações com outros corpos. É um corpo que realiza
uma intenção, corporifica ações e sentimentos, vivencia a criação por
meio da lógica do movimento e elabora seus saberes corporais.
Da mesma forma, porém com relação ao teatro, Sônia Azevedo (2001, p. 192,
grifo nosso) define o corpo disponível para a criação teatral:
A partir das definições das autoras, podemos compreender que a pedagogia das
artes cênicas contemporânea se preocupa em formar corpos disponíveis para a criação,
mais do que corpos treinados em uma técnica específica. Essa compreensão favoreceu
a entrada de diferentes correntes de técnicas, latinas, orientais, africanas, técnicas
de meditação, entre muitas outras, contribuindo, assim, com o questionamento sobre
hierarquias e padrões estéticos consolidados. Conforme aponta Azevedo (2001), o ator
pode utilizar-se de técnicas mistas e até opostas para a composição por improvisação,
valendo-se de sua memória emotiva para isso.
243
Entenda, caro acadêmico ou acadêmica, que mesmo os processos criativos
são formativos. Lembre-se das exigências presentes nas Bases Comuns Curriculares
(2018), as quais incentivam que docentes estimulem seus alunos e suas alunas a
serem incentivados a criarem em aula. Daí a importância da utilização de jogos a fim de
habilitar que a improvisação seja exercitada, desenvolvendo o preparo para elaboração
de formas inusitadas e espontâneas pelo corpo. A pesquisadora Gisela Biancalana (2017)
nos explica o termo corporeidade cênica para esclarecer a formação corporal do corpo
para a cena. A corporeidade diz respeito às:
244
A partir desse novo paradigma, artistas de dança passaram a ser valorizados por
sua participação na criação coreográfica, surgindo, assim, a figura do intérprete-criador.
O intérprete-criador, como o nome diz, cria suas próprias composições em uma obra
coreográfica com base em seus conhecimentos corporais e nos estímulos propostos
pela direção do trabalho. A intérprete criadora utiliza toda sua vivência e técnica para
colaborar ou criar uma obra coreográfica.
Veja você, acadêmico, por mais criativo que seja um diretor ou diretora, as
possibilidades de inovação são muito maiores se o trabalho de composição puder contar
com a criatividade de artistas habilidosos na prática da criação por meio da improvisação.
Veja o que fala o filósofo José Gil (2001, p. 83) da criação por improvisação na dança:
Que tal escolher uma sequência que você conhece? Pode ser parte de uma
coreografia. Experimente sem a música, em câmera lenta; experimente utilizando
diferentes planos (alto, médio, baixo) ou explorando diferentes deslocamentos no
espaço, modificando aspectos dos fatores de movimento, como a fluência e o peso,
conforme nos ensinou Laban (1978). Grave, assista, repita. Utilize o acaso; o erro é uma
nova possibilidade.
245
Faça, também, um caderno de campo. Anote suas impressões em cada
experimentação que você realizar. Se for prazeroso para você, certamente será para
sua turma de alunos e alunas. O caderno de campo é a principal ferramenta para a
criação por experimentação, pois artistas que criam são também pesquisadores de si,
investigam seu processo de criação e a forma que melhor funciona para realizarem suas
experimentações. Como disse Viola Spolin (1982), todos podem criar e improvisar; basta
praticar! Veja o que fala Biancalana (2017, p. 236) da prática formativa da improvisação:
Como vimos, a improvisação não se limita a ser uma proposta formativa. Ela
é também utilizada tanto no teatro quanto da dança como parte da encenação. A
composição por improvisação pode ser feita nos laboratórios de criação ou em cena. A
propósito da dança, Dantas (2020) escreveu sobre a criação coreográfica desenvolvida
a partir de processos de improvisação, já que muitos coreógrafos e coreógrafas a
utilizam para a criação de um espetáculo, e nos dá alguns exemplos. O primeiro deles
é a coreógrafa alemã Pina Bausch (1940-2009). Pina trabalhava com seus bailarinos e
bailarinas como matéria-prima de suas criações. Seu processo de criação era bastante
extenso. Ela fazia uso de um processo de investigação em que tentava captar a
intimidade de cada artista, utilizando, inclusive, suas vivências reais como instruções
de exercícios de improvisação. Apesar de saber o que buscava de cada intérprete, ela
provocava as reações em cada um deles e delas, evitando dar as respostas para as
tarefas a serem desvendadas por suas bailarinas e bailarinos.
Já o belga Alain Platel (1956) relatou que o início dos trabalhos de composição
era muito difícil porque ele nunca tinha nada pronto; apenas deixava que os bailarinos
experimentassem a partir de suas vivências e das instruções que Alan levava para
o laboratório.
246
Agora, é o momento de analisar o modo em que se deu o surgimento de artistas-
criadores no teatro. No século passado, o autor* da peça era a grande autoridade, uma
vez que o texto era visto como mais importante do que a atuação e do que a direção. O
ator era analisado por sua capacidade de ditar o texto com entonação vocal.
ATENÇÃO
Utilizamos autor e ator em masculino para nos referir aos artistas do teatro no
século passado porque esta era uma tarefa direcionada, na maioria das vezes, aos
homens. Essa foi uma herança da Idade Média em que homens tanto escreviam
quanto encenavam as peças, atuando até mesmo em papéis femininos.
De acordo com Odette Aslan (2010), o percurso do ator no século XX, na França,
aponta que o ator era valorizado por sua voz; ele deveria ditar o texto. Sua formação
dava-se, sobretudo, a partir da experiência em cena:
Aslan (2010) relembra o trabalho do ator nessa época. Não havia ensaio no
espaço cênico, visto que o deslocamento do ator e seu movimento corporal não eram
valorizados. Hoje, diferentemente, o espaço é configurado pensando no movimento de
atores e atrizes, e é preciso que o espaço cênico contribua com os jogos dramatúrgicos.
Há uma valorização da coletividade para que a obra se realize.
247
Aslan (2010) faz uma crítica à supervalorização da improvisação em companhias
como o Living Theatre e o Open Theatre. Segundo ela, essas companhias exacerbaram
o uso da improvisação a ponto que:
Com base nas exposições anteriores, você pode concluir que a improvisação é
uma habilidade valorizada tanto no campo da dança quanto no do teatro. Como vimos,
a formação dessa habilidade se dá a partir da prática. Portanto, compreende-se que ela
é importante não só para a criação cênica, mas também como processo formativo.
248
Outro exemplo de forma de composição por improvisação de membros da Jud-
son Church é o estadunidense Steve Paxton (1939). A improvisação por contato criada
por Steve é uma técnica corporal que pode ser utilizada como composição na cena. O CI
(Contact Improvisation) é uma técnica em que intérpretes distribuem o peso dos seus
corpos e utilizam o corpo do outro como apoio para realizarem movimentos.
No Sul do país, Dantas (2020) cita a coreógrafa Eva Schul (1948) como pioneira
na utilização de técnicas somáticas para a preparação de espetáculos, desde o ensino
da técnica até a composição em dança. Em 1975, Eva criou o espaço e o grupo Mudança
em Porto Alegre – RS, interessada em desenvolver uma expressão própria a partir de
estratégias que viabilizassem que o corpo fosse o protagonista de um diálogo com a
plateia. Uma das principais produções de Eva com base em suas experimentações foi
Um Berro Gaúcho, de 1977.
Ainda que a técnica de Eva esteja presente nos corpos de seus bailarinos e
bailarinas, as técnicas somáticas utilizadas em sala de aula e ensaio possibilitam que
intérpretes mantenham sua identidade. O objetivo da coreógrafa não é uniformizar os
corpos, pois a técnica não pode limitar-se “[...] à proficiência na realização de passos e
figuras de danças, mas deve incluir improvisação, criatividade e habilidades coreográficas
de performance” (DANTAS, 2020, p. 135).
IMPORTANTE
É importante você saber que, assim como existem muitos relatos de
experiência pedagógica na área do teatro e da dança, também existem
muitos relatos de experiência cênica com propostas somáticas e de
improvisação em laboratórios de criação. Esses relatos estão disponíveis em
anais de eventos científicos, como:
249
A professora Heloísa Gravina compartilhou seu relato do “Seminário I – Laboratório
de criação: uma abordagem somática para a dança”, realizado na Universidade Federal
de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Ela compartilha sua sensação ao guiar estudantes
na investigação do corpo a partir da improvisação com a técnica somática Alexander.
Em seu relato, Gravina conta que, para ela, o controle primordial configurou-se
em um esforço por não intervir, abandonando o desejo de acertar, para escolher o desejo
de sentir acima de tudo. O sentir é importante para a realização, pois, na proposição de
educação somática, a percepção sensorial já evidencia o movimento. Assim, qualquer
percepção sobre o movimento já interfere em sua realização.
Gravina (2017) conta que não tem nenhuma formação oficial em técnicas
somáticas. Sua formação foi obtida a partir de processos de composição em que
participou como bailarina com base nas técnicas somáticas de Trisha Brown – a partir
da experiência de Tatiana da Rosa, que estudou por dois anos em seu instituto – e de
Laban – a partir da experiência compartilhada por Cibele Sastre, que cursou a formação
no Laban Institute of Movement Studies, em Nova York. Esse depoimento corrobora com
a concepção de que também os processos de composição coreográfica são processos
formativos para bailarinos e bailarinas.
250
relação com esse meio. Sob esse ponto de vista, podemos inferir que,
ao trabalhar através de uma abordagem somática em aula, estamos
propiciando ao acadêmico uma possibilidade de se perceber como
agente de seu processo de aprendizado e, por conseguinte, sujeito
que interfere ativamente em seu meio a partir de ações conscientes
(GRAVINA, 2017, p. 295).
Além disso, sabemos que cada processo é único. Cada prática é uma nova
vivência que leva experiências ao corpo do intérprete, que o habilitam, cada vez mais, a
criar e a aumentar o seu repertório corporal.
251
LEITURA
COMPLEMENTAR
SENSAÇÕES/PERCEPÇÕES E CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTOS
EM DANÇA DE SALÃO
252
Dramaturgia é uma forma de arte na qual uma ou várias pessoas apresentam
uma determinada história que desperta na recepção sentimentos variados. “Está
explícito nas movimentações de todo o processo dançante: a co-condução atuando nos
corpos para produzir determinados movimentos da dança” (FEITOZA, 2011, p. 63). Estes
representados pela dramaturgia corporal. “Os dois estão atuando simultaneamente em
cooperatividade” (FEITOZA, 2011, p. 60).
253
Damasio ressalta o tato como um órgão especializado, distribuído por toda a
superfície da pele e das mucosas, com a qual é por meio deste que vibrações corporais
advindas da audição e visão proporcionam e estimulam as sensações/percepções do
espectador. Deste modo, há em torno de qualquer objeto uma aura de espaço físico
criada pela sua presença, em que se constrói dramaturgia pela fricção (relação de
corpos), gerando sensações e emoções diversas.
A vida ao longo de sua trajetória escreve uma história que ocupa espaço. O
corpo se comunica através da música tocada pela vida. A dança existe no sujeito desde
a sua origem. Dança-se para comemorar, afastar a tristeza, conectar-se, divertir-se,
amar e até sem se saber o motivo. Dança-se inconscientemente diariamente criando
passos misteriosos ao compasso dos sonhos. Dança-se com as mãos, olhos, sorriso
e imaginação. “O corpo nas danças de salão, legitima a atitude de atenção ao próprio
corpo, ao corpo do outro e, simultaneamente, ao espaço e às pessoas do entorno [...]”
(NEVES, 2008).
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É um processo de (re)criação de novas possibilidades e combinações de
movimentos advindos de memórias e de sensações/percepções ao dançar e ao observar.
“Dance, dance senão estamos perdidos... Certas coisas se podem dizer com palavras, e
outras, com movimentos” (BAUSCH, 2000). Dançar é falar sem palavras, sentir, perceber
e construir conhecimentos.
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RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:
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AUTOATIVIDADE
1 Em grego, soma refere-se à pessoa viva, ao ser corporal consciente. Em 1976, Thomas
Hanna criou o termo educação somática para descrever “[...] a arte e a ciência de um
processo relacional interno entre a consciência, o biológico e o meio-ambiente. Estes
três fatores vistos como um todo agindo em sinergia” (HANNA, 1983, p. 7). A respeito das
características das técnicas de educação somática, assinale a alternativa CORRETA.
( ) É aquele que consegue responder aos nossos impulsos vitais, que é uno com nossa
realidade interna.
( ) Tem gestos fundamentais, alinhamento corporal neutro e a utilização de parâmetros
anatomofuncionais para sua reorganização.
( ) É heterogêneo, pois possui uma história, uma microcultura envolvendo o círculo
social, além de suas singularidades.
( ) É capaz de assimilar técnicas de movimento e de resgatar, na sua memória,
atitudes, posturas e gestos.
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3 De acordo com a educação estética pelo corpo e sua aplicação pedagógica nos
processos criativos pelo jogo do corpo, analise as sentenças a seguir.
I- Eva Schul e Steve Paxton são exemplos de coreógrafos que utilizam técnicas
somáticas para preparação corporal e para a elaboração de espetáculos.
II- A improvisação é uma habilidade que não se aprende; é preciso que a pessoa
descubra por si só como realizar e criar em cena.
III- Nas técnicas somáticas, a percepção do movimento não interfere em sua execução,
pois o intérprete está muito concentrado em sua percepção externa e interna.
IV- Para aumentar o repertório corporal na dança, é preciso que a bailarina seja treinada
em balé clássico ou dança contemporânea primeiramente.
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REFERÊNCIAS
ALVES, T. A et al. Plano de cultura da UFRN: percursos, ações e resultados: 2015-
2019. Natal: EDUFRN, 2019.
ASLAN, O. O ator no século XX. Tradução Rachel Araújo de Baptista Fuser, Fausto
Fuser e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2010.
AZEVEDO, S. M. de. O papel do corpo no corpo do ator. São Paulo: Perspectiva, 2001.
BRASIL. Ministério da Educação. Base nacional comum curricular. Brasília, DF: MEC, 2017.
259
GIL, J. Movimento total: o corpo e a dança. São Paulo: Iluminuras, 2018.
HANNA, T. Somatics: reawakening the mind’s control of movement. New York: Perseus
Books, 1983.
HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. Perspectiva: São Paulo, 1990.
JUUL, J. Half-real: videogames entre regras reais e mundos ficcionais. São Paulo:
Blücher, 2019.
260
STRAZZACAPPA, M. Educação somática: princípios e possíveis desdobramentos.
Repertório – Teatro e Dança, Salvador, ano 12, n. 13, p. 48-54, 2009.
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