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Antropologia

Filosófica e Sociológica

Prof. Kelvin Custódio Maciel


Prof.a Luciane da Luz
Prof. Pedro Fernandes Leite da Luz

Indaial – 2020
2a Edição
Elaboração:
Prof. Kelvin Custódio Maciel
Prof.a Luciane da Luz
Prof. Pedro Fernandes Leite da Luz

Copyright © UNIASSELVI 2020

Revisão, Diagramação e Produção:


Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

M152a

Maciel, Kelvin Custódio

Antropologia filosófica e sociológica. / Kelvin Custódio Maciel;


Luciane da Luz; Pedro Fernandes Leite da Luz. – Indaial: UNIASSELVI, 2020.

192 p.; il.

ISBN 978-65-5663-215-5
ISBN Digital 978-65-5663-216-2

1. Antropologia filosófica. - Brasil. I. Maciel, Kelvin Custódio. II.


Luz, Luciane da. III. Luz, Pedro Fernandes Leite da. IV. Centro Universitário
Leonardo Da Vinci.

CDD 128
Impresso por:
APRESENTAÇÃO
Prezado acadêmico! Bem-vindo ao estudo de Antropologia Filosófica e
Sociológica, que vai lhe auxiliar em uma melhor compreensão do que consiste a Ciência
Antropológica, como se situa no campo das Ciências Sociais, quais são seus objetos de
estudo e quais os métodos de que se vale para o entendimento dos fenômenos relativos
aos seres humanos.

Também é nosso objetivo familiarizá-lo com as teorias antropológicas, as


principais discussões nesta área de conhecimento e como se enfocam e refletem
acerca da dimensão religiosa da vida humana.

Na Unidade 1 nós definiremos o que é Antropologia, explicitaremos


as etapas do fazer antropológico, os principais conceitos da área e o método
específico desta disciplina.

Na Unidade 2, nós travaremos contato com as principais teorias antropológicas e


veremos como elas se relacionam com o desenvolvimento histórico da disciplina, também
veremos alguns dos principais temas relacionados à investigação da Antropologia.

Na unidade 3, será abordado as principais discussões acerca da antropologia


filosófica, desde os gregos antigos até as formulações modernas. Serão privilegiados,
nesta unidade, autores e textos considerados “clássicos” no percurso da história da
filosofia, embora não exista uma lista universal que forneça quais seriam os “clássicos”.
Com certeza, os autores, aqui apresentados, contribuem muito para o objetivo desta
unidade: discutir uma visão geral sobre a perspectiva histórica da antropologia filosófica
no ocidente.

A terminologia antropologia é um conceito recente na história da filosofia, mas


que abarca uma amplitude de pensamento que se inicia na Grécia Antiga, há mais de
dois mil anos, nas primeiras civilizações do ocidente. A consolidação do termo se deu
graças ao filósofo alemão Immanuel Kant, que intitulou uma de suas obras Anthropologie
in Hinsicht (Antropologia de Um Ponto de Vista Pragmático), de 1798. Kant define a
antropologia como a doutrina do conhecimento do homem ordenada sistematicamente.

Portanto, quando nos referimos à antropologia filosófica, temos que ter em


mente que se trata de uma ciência que tem, por objeto, o homem, em seus fundamentos
últimos. Há dois usos clássicos do termo antropologia que fazem parte de outros
campos do conhecimento. Por exemplo, as Unidades 1 e 2 tratam da antropologia
sob a perspectiva etnológica, cultural, ou seja, quando olhamos para o homem sob o
ponto de vista da sua origem histórica, e a antropologia física ou empírica, que tem, por
prerrogativa, o estudo do homem sob o ponto de vista físico-somático. Evidente que
existem muitas teorizações sobre a antropologia, haja vista a polissemia do termo, além
do seu emprego nas ciências humanas.
Nesta última unidade, iremos nos orientar sob o sentido filosófico do termo
antropologia, cuja tarefa primordial é responder à pergunta: O que é o homem? Propomos
a você, acadêmico, um convite a embarcar nessa aventura antropológica, que se inicia
a partir do seu esforço em estranhar, pôr em questão o mundo que se apresenta como
“natural”, ou seja, produto do processo de socialização dos homens em um tempo e
espaço específicos. Nesse sentido, além de apresentar diferentes visões de homem sob
a perspectiva da antropologia filosófica, você terá a liberdade de pensar e compreender
sobre si mesmo, uma experiência verdadeiramente filosófica.

Prof. Kelvin Custódio Maciel


Prof.a Luciane da Luz
Prof. Pedro Fernandes Leite da Luz

GIO
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Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada!


SUMÁRIO
UNIDADE 1 — O QUE É ANTROPOLOGIA, OBJETO E MÉTODO.........................................................1

TÓPICO 1 — O QUE É ANTROPOLOGIA....................................................................................3


1 INTRODUÇÃO........................................................................................................................3
2 A ANTROPOLOGIA ENQUANTO CIÊNCIA............................................................................ 7
3 A ANTROPOLOGIA NA PRÁTICA..........................................................................................9
RESUMO DO TÓPICO 1.......................................................................................................... 12
AUTOATIVIDADE................................................................................................................... 13

TÓPICO 2 — ETNOGRAFIA, ETNOLOGIA, ANTROPOLOGIA CULTURAL E


ANTROPOLOGIA SOCIAL...................................................................................................... 15
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 15
2 ETNOGRAFIA...................................................................................................................... 15
3 ETNOLOGIA........................................................................................................................ 18
4 ANTROPOLOGIA CULTURAL............................................................................................. 21
5 ANTROPOLOGIA SOCIAL.................................................................................................. 25
RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................... 28
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................. 29

TÓPICO 3 — CULTURA, ETNOCENTRISMO E RELATIVISMO CULTURAL............................ 31


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 31
2 CULTURA........................................................................................................................... 32
3 ETNOCENTRISMO............................................................................................................. 46
4 RELATIVISMO CULTURAL.................................................................................................47
RESUMO DO TÓPICO 3.......................................................................................................... 51
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................. 52

TÓPICO 4 — O TRABALHO DE CAMPO E A OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE....................... 53


1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 53
2 TRABALHO DE CAMPO..................................................................................................... 54
3 OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE......................................................................................... 55
LEITURA COMPLEMENTAR..................................................................................................59
RESUMO DO TÓPICO 4......................................................................................................... 63
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................. 64

UNIDADE 2 — AS ESCOLAS ANTROPOLÓGICAS E OS GRANDES TEMAS


DA DISCIPLINA..................................................................................................................... 65

TÓPICO 1 — ESCOLAS ANTROPOLÓGICAS: EVOLUCIONISMO, DIFUSIONISMO,


E ESCOLA DA CULTURA E PERSONALIDADE......................................................................67
1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................67
2 A ESCOLA EVOLUCIONISTA ............................................................................................. 68
3 PRINCIPAIS ANTROPÓLOGOS EVOLUCIONISTAS E SUAS TEORIAS SOCIAIS..............70
3.1 LEWIS HENRY MORGAN......................................................................................................................70
3.2 EDWARD BURNET TYLOR ................................................................................................................. 73
4 A ESCOLA DIFUSIONISTA .................................................................................................76
4.1 O DIFUSIONISMO INGLÊS: A ESCOLA HIPERDIFUSIONISTA....................................................... 77
4.2 DIFUSIONISMO ALEMÃO-AUSTRÍACO............................................................................................78
4.3 DIFUSIONISMO NORTE-AMERICANO: FRANZ BOAS E O HISTORICISMO OU
PARTICULARISMO HISTÓRICO............................................................................................................. 79
4.3.1 As duas principais comunidades estudadas por Franz Boas ........................................ 81
5 A ESCOLA DA CULTURA E PERSONALIDADE OU CONFIGURACIONISMO CULTURAL......... 84
5.1 PRINCIPAIS REPRESENTANTES DA ESCOLA DE CULTURA E PERSONALIDADE.......................85
5.1.1 Edward Sapir (1884-1939).........................................................................................................85
5.1.2 Ruth Benedict (1887-1948)......................................................................................................86
5.1.3 Margaret Mead (1901-1978)......................................................................................................87
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................. 89
RESUMO DO TÓPICO 1.......................................................................................................... 91
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................. 92

TÓPICO 2 — ESCOLAS ANTROPOLÓGICAS: FUNCIONALISMO,


ESTRUTURAL-FUNCIONALISMO, ESTRUTURALISMO, NEOEVOLUCIONISMO
E PÓS-MODERNISMO........................................................................................................... 93
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 93
2 AS ESCOLAS FUNCIONALISTA E ESTRUTURAL-FUNCIONALISTA .............................. 93
2.1 A ESCOLA SOCIOLÓGICA FRANCESA – OS PRECURSORES DO
FUNCIONALISMO E ESTRUTURAL-FUNCIONALISMO.................................................................94
2.2 A ESCOLA FUNCIONALISTA E SEU PRINCIPAL REPRESENTANTE:
BRONISLAW MALINOWSKI..................................................................................................................95
2.2.1 Mas o que é Kula? ......................................................................................................................96
2.3 TEORIA DAS NECESSIDADES HUMANAS DE MALINOWSKI......................................................98
2.4 A ESCOLA ESTRUTURAL-FUNCIONALISTA: RADCLIFFE-BROWN...........................................99
2.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE A ESCOLA FUNCIONISTA
E ESTRUTURAL-FUNCIONALISTA..................................................................................................102
3 A ESCOLA ESTRUTURALISTA: CLAUDE LÉVI-STRAUSS..............................................103
3.1 PRINCIPAL REPRESENTANTE DA ESCOLA ESTRUTURALISTA: CLAUDE
LÉVI-STRAUSS ..................................................................................................................................104
3.2 RELAÇÕES SOCIAIS, ESTRUTURA E MODELOS.........................................................................105
3.2.1 Natureza e história...................................................................................................................106
3.2.2 Culturas simples e complexas ........................................................................................... 107
3.2.3 O que seriam os modelos consciente e inconsciente que Lévi-Strauss utiliza?............107
4 A ESCOLA NEOEVOLUCIONISTA.....................................................................................108
4.1 LESLIE A. WHITE.................................................................................................................................108
5 ANTROPOLOGIA PÓS-MODERNA.................................................................................... 110
5.1 PRINCIPAIS AUTORES ...................................................................................................111
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................ 113
AUTOATIVIDADE................................................................................................................. 114

TÓPICO 3 — GRANDES TEMAS DA ANTROPOLOGIA: UNIÃO, CASAMENTO


E PARENTESCO................................................................................................................... 115
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 115
2 UNIÃO ............................................................................................................................... 115
3 CASAMENTO.................................................................................................................... 116
3.1 EXOGAMIA.............................................................................................................................................116
3.2 ENDOGAMIA......................................................................................................................................... 117
4 MODALIDADES DE CASAMENTOS...................................................................................117
4.1 PREÇO POR PROGÊNIE OU RIQUEZA DA NOIVA..........................................................................118
4.2 PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DO PRETENDENTE À FAMÍLIA......................................................119
4.3 TROCA DE PRESENTES ....................................................................................................................119
4.4 CAPTURA ............................................................................................................................................120
4.5 MATRIMÔNIO POR AFINIDADE, SUBSTITUIÇÃO OU CONTINUAÇÃO:
O LEVIRATO E O SORORATO ...........................................................................................................120
4.6 FUGA COM O AMADO.........................................................................................................................121
4.7 ADOÇÃO................................................................................................................................................121
5 SISTEMA DE PARENTESCO.............................................................................................122
5.1 CONCEITUANDO SISTEMA DE PARENTESCO.............................................................................. 122
5.2 ELEMENTOS QUE COMPÕEM O PARENTESCO........................................................................... 123
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................125
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................ 131
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................132

UNIDADE 3 — FUNDAMENTOS DA ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA....................................133

TÓPICO 1 — A CONCEPÇÃO DE HOMEM NA CULTURA GREGA.........................................135


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................135
2 O HOMEM NA FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA...................................................................136
3 OS SOFISTAS E A ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA...........................................................138
4 A ANTROPOLOGIA SOCRÁTICA-PLATÔNICA................................................................. 141
5 A ANTROPOLOGIA ARISTOTÉLICA................................................................................ 144
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................148
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................150

TÓPICO 2 — A CONCEPÇÃO DE HOMEM NO PERÍODO CRISTÃO-MEDIEVAL...................153


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................153
2 A CULTURA MEDIEVAL: O HOMEM SEGUNDO A TRADIÇÃO BÍBLICA...........................153
3 ANTROPOLOGIA PATRÍSTICA ........................................................................................156
4 ESCOLÁSTICA E A CONCEPÇÃO TOMISTA DE PESSOA................................................159
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................164
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................165

TÓPICO 3 — A CONCEPÇÃO DE HOMEM NA MODERNIDADE............................................ 167


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 167
2 O HOMEM NO RACIONALISMO DE DESCARTES.............................................................168
3 A ANTROPOLOGIA NA IDADE CARTESIANA....................................................................171
4 A ÉPOCA DA ILUSTRAÇÃO: KANT E A ANTROPOLOGIA PRAGMÁTICA........................ 176
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................180
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................186
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................189

REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 191
UNIDADE 1 -

O QUE É ANTROPOLOGIA,
OBJETO E MÉTODO

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• levar o(a) acadêmico(a) a compreender o que é Antropologia, Etnologia e Etnografia;

• proporcionar ao(à) aluno(a) elementos para que distinga Antropologia Social e


Antropologia Cultural;

• instrumentalizar o(a) acadêmico(a) com os conceitos fundamentais da disciplina,


notadamente o de cultura;

• tornar o(a) aluno(a) capaz de caracterizar e utilizar o método antropológico.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em quatro tópicos. No decorrer dela, você encontrará
autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – O QUE É ANTROPOLOGIA


TÓPICO 2 – ETNOGRAFIA, ETNOLOGIA, ANTROPOLOGIA CULTURAL E
ANTROPOLOGIA SOCIAL
TÓPICO 3 – CULTURA, ETNOCENTRISMO E RELATIVISMO CULTURAL
TÓPICO 4 – O TRABALHO DE CAMPO E A OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE

CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

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A TRILHA DA
UNIDADE 1!

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2
UNIDADE 1 TÓPICO 1 -
O QUE É ANTROPOLOGIA

1 INTRODUÇÃO
Prezado acadêmico, bem-vindo ao estudo da disciplina Antropologia Geral
e da Religião. Nesta primeira unidade nós veremos o que é Antropologia, seu objeto
e método.

Inscrita na tradição do conhecimento científico, embora tendo se constituído


enquanto ciência somente no final do século XIX, a Antropologia, ramo tardio das Ciências
Sociais, irá nos servir em nossa caminhada na compreensão dos fenômenos humanos,
notadamente, no caso deste Caderno de Estudos, no que diz respeito à Religião.

Para utilizarmos a Antropologia como ferramenta para nossa prática profissional


e crescimento pessoal, é preciso saber no que consiste exatamente, quais as pretensões
e alcance deste saber e como o mesmo pode nos ajudar a entender o fenômeno religioso.

Como toda ciência, a Antropologia apresenta um objeto que lhe é próprio e uma
abordagem metodológica característica. Também se constrói por etapas e apresenta
diversos campos de investigação, como veremos nesta unidade.

Aqui apresentaremos a você, nosso(a) atento(a) leitor(a), não só as definições


mais aceitas desta disciplina, explicitando do que ela se ocupa (qual o objeto de sua
investigação), mas também as maneiras pelas quais a Antropologia se aproxima da
realidade que ela pretende elucidar, como se constrói o edifício do saber antropológico
(com suas diversas etapas), quais seus campos de pesquisa e ainda alguns de seus
conceitos mais importantes e a maneira própria deste conhecimento científico proceder
na elucidação dos problemas de que trata (seu método característico).

Assim, no Tópico 1 definiremos Antropologia, a partir de sua fundação enquanto


ciência, na visão dos praticantes e teóricos deste saber, para levar você, acadêmico(a),
a ser capaz de refletir criticamente acerca do fazer antropológico.

No Tópico 2 veremos as diferentes etapas e áreas deste conhecimento, para


que você, estudante da UNIASSELVI, seja familiarizado com o campo semântico da
disciplina e o alcance deste saber, a partir da análise de como este se forja e do que
se ocupa.

3
No Tópico 3 trataremos de alguns dos conceitos mais importantes da Antropologia,
conceitos estes que são fundamentais para a compreensão da especificidade do olhar
antropológico e de seu objeto, para que você aprofunde seu entendimento do que trata
a Antropologia.

Por fim, no Tópico 4 nós veremos a Antropologia na prática, o método próprio


desta ciência, que a distingue das demais Ciências Sociais, para que você, nosso(a)
aluno(a), possa saber como se faz, afinal, o conhecimento antropológico.

Esperamos que esta primeira unidade vá despertar sua curiosidade e interesse


em saber mais a respeito da Antropologia e de como ela pode nos ajudar a compreender
este fenômeno complexo que é o ser humano.

NOTA
Aqui utilizaremos ser humano em vez de “homem” para nos referirmos
ao “anthropos” (o objeto da Antropologia) por entendermos, dentro da
visão antropológica do fenômeno humano, que nossa espécie apresenta
uma enorme diversidade de gêneros (às vezes dentro de uma mesma
sociedade) o que torna o termo “homem” inapropriado para definir o
conjunto dos seres humanos.

FIGURA 1 – REPRESENTAÇÃO DE POPULAÇÃO PRÉ-HISTÓRICA DO NORDESTE BRASILEIRO

FONTE: <http://msalx.viajeaqui.abril.com.br/2013/08/29/1431/5tY2z/ilustra-final-jubran.
jpeg?1377804486>. Acesso em: 31 mar. 2015.

A partir de seu próprio nome, Antropologia, podemos inferir do que se ocupa


esta disciplina, que, de agora em diante, será alvo de seus estudos, Prezado acadêmico
da UNIASSELVI. De fato, este nome de origem grega é revelador do foco desta ciência.

4
Vejamos: o mesmo compõem-se de dois substantivos daquela língua clássica,
a saber, anthropos, o ser humano, e logos, estudo (ou ainda razão e lógica).

Antropologia trata-se assim do “Estudo do Ser Humano”, definição que a põe


inserida na tradição científica, no campo das Ciências Humanas, próxima, portanto,
da Sociologia e da Economia, por exemplo. Nesta perspectiva, a mesma investiga a
constituição e a dinâmica da experiência humana, tanto em suas relações internas,
quanto aquelas com o meio circundante.

De acordo com Gomes (2013, p. 11), outra tradução possível para Antropologia
seria “Lógica do Ser Humano”, o que colocaria alguns dos focos e análises desta matéria
em sintonia com determinadas áreas da Filosofia, como a Lógica, a Metafísica e a
Hermenêutica, na busca do sentido da experiência humana em sua especificidade.

FIGURA 2 – REPRODUÇÃO DA LINHAGEM QUE CONSTITUIU NOSSA ESPÉCIE

FONTE: <http://www.ahistoria.com.br/wp-content/uploads/historia-da-evolucao-humana.jpg>.
Acesso em: 8 abr. 2015.

Gomes (2013) chama a atenção para o fato de que, embora a origem do nome
seja grega, não foram os gregos que inventaram a Antropologia, ainda que eles não se
furtassem a especular sobre a condição humana. Isto devido ao etnocentrismo deste
povo, que se julgava superior às demais nações de seu tempo.

NOTA
Etnocentrismo: conceito fundamental da Antropologia, no qual nos
aprofundaremos mais adiante, mas que aqui adiantamos tratar-se da tendência
natural de toda cultura humana de considerar-se superior as demais.

5
Ora, para o fazer antropológico é preciso a superação do entrave colocado pelo
etnocentrismo e se admitir a unidade da espécie humana. É necessário reconhecer que,
apesar de nossas imensas diferenças culturais, somos uma só humanidade.

Esta perspectiva, que possibilita a reflexão antropológica, só se coloca


numa época mais recente da humanidade, a partir do Iluminismo, quando começa a
especulação filosófica, a princípio, acerca das possibilidades da existência e da ação
humana (GOMES, 2013).

FIGURA 3 – FILÓSOFOS ILUMINISTAS REUNIDOS EM DEBATE

FONTE: <http://files.seculodasluzes.webnode.com.br/200000006-67d3168ccf/50000000.jpg>.
Acesso em: 8 abr. 2015.

Desta maneira, de um ângulo filosófico, a Antropologia seria uma forma de se


pensar a diversidade da experiência humana, que se reflete nas diferentes culturas.
Posteriormente, com a introdução da teoria da evolução, a Antropologia aproxima-se
mais do campo científico, procurando integrar a especificidade do ser humano em um
contínuo com a natureza.

Assim, a Antropologia comporta dois aspectos, tanto como Filosofia da cultura,


quanto ciência do ser humano, procurando ora interpretar, ora explicar as características
próprias da humanidade.

Mais recentemente, com o desconstrucionismo pós-moderno do fazer


antropológico, a Antropologia tem sido considerada como uma forma particular de
literatura, sendo, portanto, tida como uma arte. Um dos autores que advoga este ponto
de vista é James Clifford, que junto com George E. Marcus foi responsável por um livro
emblemático da visão pós-moderna em Antropologia (Writing Culture: The Poetics and
Politics of Ethnography, University of California Press, 1986), sendo os dois os principais
autores a realizar a desconstrução das etnografias clássicas em Antropologia.

6
Dentro da perspectiva destes autores a Antropologia seria a arte da crítica
cultural, onde a cultura reveste-se de um caráter polissêmico, sendo que a interpretação
do antropólogo é apenas uma das possíveis, junto com aquelas de seus interlocutores,
membros das culturas estudadas.

FIGURA 4 – OS DOIS PRINCIPAIS AUTORES DA CORRENTE PÓS-MODERNA EM ANTROPOLOGIA,


JAMES CLIFFORD (À ESQUERDA DA FOTO) E GEORGE E. MARCUS EM UMA PRAÇA PARISIENSE

FONTE: Disponível em: <https://typhoon-production.s3.amazonaws.com/uploads/image_


attachment/image_attachment/543/inline_clifford___marcus_resized.jpeg>. Acesso: 9 abr. 2015.

2 A ANTROPOLOGIA ENQUANTO CIÊNCIA


Arte, Filosofia ou Ciência? Você deve estar se perguntando, querido(a)
acadêmico(a). Bom, você já deve ter percebido que a Antropologia comporta diferentes
aspectos da realidade dos grupos sociais. Neste Caderno de Estudos nos concentraremos
na dimensão científica da Antropologia.

Neste sentido, a exemplo de Marconi e Presotto (2001), consideramos que a


Antropologia, dentro do campo científico, comporta três aspectos, em virtude de sua
abordagem própria (que procura ver o fenômeno humano com um todo), a saber:

a) Enquanto Ciência Social, procurando conhecer o ser humano em sua dimensão


de participante de grupos sociais organizados diversos, como uma determinada
sociedade, por exemplo.
b) Enquanto Ciência Humana, voltando-se para a totalidade da experiência humana,
como sua história, usos e costumes, linguagem e demais fenômenos relacionados ao
ser humano.
c) Enquanto Ciência Natural, a Antropologia investiga as características psicossomáticas
do ser humano e sua evolução no mundo natural.

7
Vemos assim que a abordagem antropológica do ser humano pretende ser
total, contemplando sua dimensão física, sociocultural e ainda filosófica. Em suas
investigações procura a Antropologia captar e transmitir o modo de vida dos povos que
estuda em todos os aspectos possíveis.

Desta maneira a Antropologia tem como objetivo conhecer o ser humano


em sua totalidade, tanto em seu aspecto biológico (através dos estudos da evolução
de nossa espécie), quanto cultural (investigando seu comportamento, vida social
e produção cultural). De acordo com Marconi e Presotto (2001) em nenhuma outra
disciplina científica encontraríamos uma investigação tão sistemática e unificada das
manifestações e atividades humanas.

Enquanto Ciência da Humanidade e da Cultura, a Antropologia apresenta um


enorme campo de investigação, abrangendo todo o planeta habitado e na dimensão
temporal, pelo menos há dois milhões de anos (quando surgiram os primatas que
acabaram evoluindo no ser humano moderno), procurando cobrir ainda todas as
sociedades de que se tem registro (MARCONI; PRESOTTO, 2001).

A distribuição da humanidade através do tempo.

FIGURA 5 – MAPA MOSTRANDO A DISTRIBUIÇÃO ESPAÇO-TEMPORAL DO SER HUMANO

FONTE: <http://www.conevyt.org.mx/cursos/cursos/cnaturales_v2/interface/main/recursos/
antologia/imagenes/cnant_1_1_1.jpg>. Acesso em: 9 abr. 2015.

Prezado acadêmico, certamente, pelo que dissemos até agora, você já deve
intuir que a Antropologia é um discurso humano (literário, científico e filosófico,
simultaneamente) acerca de tudo o que diz respeito à experiência humana, e sua
singularidade. Contribui assim a Antropologia para a compreensão teórica do que é ser
humano, em todos os sentidos e dimensões que dizem respeito à humanidade, em si e
para si, a partir de si mesma, de seu logos, sua razão autorreflexiva.
8
E a Antropologia faz isso à sua própria maneira, com seus métodos e teorias
produzidas e utilizadas neste campo da ciência, que lhe dão uma exclusividade
legitimadora diante do conhecimento humano. Procuraremos esclarecer neste caderno,
ao máximo a você aluno(a) da UNIASSELVI, com o intuito de ajudá-lo(a) a refletir
criticamente a respeito da experiência humana, notadamente a experiência religiosa.

O êxtase religioso, experiência humana do divino.

FIGURA 6 – XAMÃ, VESTINDO MÁSCARA, EM TRANSE DURANTE RITO DE SUA CULTURA

FONTE: <http://www.xamanismo.com.br/twiki/pub/Universo/SubUniverso1191191114It010/te.jpg>.
Acesso em: 10 abr. 2015.

3 A ANTROPOLOGIA NA PRÁTICA
Mas seria só isso? A Antropologia limitar-se-ia a ser mais uma teoria (com
sua especificidade, bem verdade) em meio a outras que procuram dar conta do que
somos nós?

Sendo a Ciência do ser humano e da cultura por excelência (MARCONI;


PRESOTTO, 2001), a Antropologia conjuga ao aspecto teórico, também a dimensão
prática. Ela nos ajuda não só a pensarmos acerca de nós mesmos, mas igualmente nos
auxilia em efetivarmos mudanças para melhor em nossa vivência no mundo e darmos
conta, de maneira mais eficaz, das questões que nos são próprias.

Se os teóricos puros em Antropologia buscam atingir aquele conhecimento total


(ou idealmente total) do ser humano, que resulte em uma compreensão mais apurada da
humanidade, o fazem com o intuito de levar este saber a aplicações práticas que tragam
benefícios efetivos para as diferentes populações humanas com as quais trabalham.

9
Os antropólogos estão conscientes e zelam para que a aplicabilidade do
conhecimento que produzem seja pautada por determinados princípios que são
imprescindíveis e indissociáveis de um exercício ético da profissão. É importante que
você, nosso(a) aluno(a), conheça que princípios são estes.

O mais importante é o respeito à diversidade cultural e aos diferentes valores que


cada cultura apresenta. Dentro desta perspectiva, a ação do antropólogo e a aplicação
de seu saber deve conduzir-se pelo reconhecimento da autonomia dos grupos humanos
e o direito destes à autodeterminação.

Todos os povos têm de ter reconhecido e garantido o direito de produzirem


sua própria cultura, tê-la para si e mudá-la a partir de sua própria dinâmica e lógica
interna. Os membros das diferentes culturas têm o direito de ter suas crenças, hábitos,
costumes e ideologias próprios, que lhes conferem suas identidades.

A partir desta perspectiva os conhecimentos antropológicos podem e devem


ser aplicados de maneira prática, visando o bem-estar das populações. Desta forma, a
Antropologia aplicada teria os seguintes papéis (MARCONI; PRESOTTO, 2001):

a) Contribuir para a solução de problemas causados em função da diversidade cultural,


minimizando conflitos resultantes de desequilíbrios e tensões que se originam nas
diferenças culturais, procurando garantir o respeito às especificidades culturais.
b) Colocar o conhecimento antropológico a serviço da solução de problemas de fundo
social, político e econômico dos diferentes povos.

FIGURA 7 – REPRESENTAÇÃO DA DIVERSIDADE CULTURAL DO BRASIL POR REGIÕES

FONTE: Disponível em: <http://www.infojovem.org.br/wp-content/uploads/2009/06/Diversidade-


Brasileira1.bmp>. Acesso em: 10 abr. 2015.

10
Efetivamente a Antropologia tem contribuído para a solução de problemas e
desafios colocados pelo colonialismo, advogando pelos direitos dos povos nativos e
zelando pela preservação cultural destas populações.

O conhecimento antropológico tem ajudado na implantação de projetos de


desenvolvimento em diversas áreas (colonização de terras, reforma agrária, fortalecimento
comunitário e da economia local etc.) e ainda na promoção da coexistência pacífica em
nações multiculturais e na garantia de territórios de povos indígenas e quilombolas.

A Antropologia igualmente tem dado sua contribuição às sociedades complexas


e industrializadas, não só ajudando-as a conviver de maneira justa e equânime com
outros povos, mas também procurando apresentar soluções à crise colocada pelas
relações sociais próprias das nações capitalistas.

FIGURA 8 – VISTA AÉREA DA COMUNIDADE DA ROCINHA, UMA DAS MAIORES FAVELAS DA


AMÉRICA LATINA, TENDO AO FUNDO O BAIRRO DE SÃO CONRADO, DE ALTO PODER AQUISITIVO

FONTE: Disponível em: <http://static.todamateria.com.br/upload/54/21/5421c7a093384-


desigualdade-social-no-brasil.jpg>. Acesso em: 10 abr. 2015.

Prezado acadêmico, a esta altura de nosso Caderno de Estudos nós esperamos


que você já seja capaz de definir, a partir do que expusemos, o que seja Antropologia.
Vejamos agora, em nosso próximo tópico, as etapas do fazer antropológico e as principais
áreas deste saber.

11
RESUMO DO TÓPICO 1
• Neste Tópico nós vimos o escopo da Antropologia, no que consiste e do que se
ocupa, caracterizando-a enquanto um discurso racional e sistemático acerca de
nós mesmos, na nossa especificidade enquanto seres vivos.

• Também contemplamos a Antropologia sob a ótica científica, localizando-a neste


campo do conhecimento e caracterizando-a enquanto Ciência Humana, na área
das Ciências Sociais.

• Igualmente nos ocupamos em especificar as atividades desenvolvidas pelos


antropólogos, explanando a utilidade prática do conhecimento antropológico e
como vem sendo empregado em nosso país.

12
AUTOATIVIDADE
Responda às seguintes perguntas:

1 O que é Antropologia?

2 O que foi preciso superar, e quando isto se deu, para que a Antropologia tivesse gênese?

3 Como a Antropologia se coloca enquanto Ciência Social?

4 Cite uma das aplicações práticas do conhecimento antropológico.

13
14
UNIDADE 1 TÓPICO 2 -
ETNOGRAFIA, ETNOLOGIA,
ANTROPOLOGIA CULTURAL E
ANTROPOLOGIA SOCIAL

1 INTRODUÇÃO
Prezado acadêmico, neste segundo tópico de nosso Caderno de Estudos
veremos as diferentes etapas do fazer antropológico, a saber, a etnografia e a etnologia, e
os dois principais campos da Antropologia, ou seja, aqueles que investigam os domínios
cultural e social de nossa espécie.

Aqui cabe um esclarecimento: a exemplo de Lévi-Strauss (1967 apud MARCONI;


PRESOTTO, 2001), consideraremos a etnografia e a etnologia como etapas distintas da
construção da Antropologia enquanto ciência.

Dizemos isso por que outros autores (ver GOMES, 2013, p. 63) consideram a etnografia
e a etnologia como ramos da ciência da cultura, enquanto que alguns antropólogos têm a
etnografia e a etnologia como métodos procedimentais da disciplina Antropologia.

2 ETNOGRAFIA
Afinal, o que seria Etnografia? Vejamos a origem etimológica da palavra para tentar
entendê-la. Etnografia vem do grego έθνος, ethno - nação, povo e γράφειν, graphein –
escrever. Literalmente “etnografia” tem o sentido de “escrever sobre os povos” (HOEBEL;
FROST, 2006, p. 8).

FIGURA 9 – O ETNÓGRAFO E ANTROPÓLOGO BRASILEIRO ROQUETTE-PINTO EM CAMPO

FONTE: <http://www.fm94.rj.gov.br/application/assets/img/img_historico_02.jpg>.
Acesso em: 10 abr. 2015.

15
Assim, etnografia seria a maneira pela qual a Antropologia coletaria os dados de
que lança mão em suas especulações, sendo resultado do contato entre a subjetividade
do antropólogo e aquela dos membros das culturas que estuda. Podemos, desta
maneira, afirmar que a etnografia consiste em um “estudo descritivo das sociedades
humanas” (HOEBEL; FROST, 2006, p. 8-9).

Aqui cabe destacar que as primeiras etnografias não foram feitas por
antropólogos, de fato, muito antes da constituição da Antropologia enquanto Ciência
já tínhamos descrições de outros povos feitas por pensadores de diferentes culturas.

Em seus primórdios, mesmo a Antropologia trabalhava com relatos acerca de


populações nativas feitos por exploradores, missionários, funcionários administrativos,
viajantes, comerciantes, soldados e demais indivíduos que tiveram contato com povos
distintos e os descreveram. Somente a partir do final do século XIX que os antropólogos
passaram a ir a campo e realizarem as descrições dos povos por eles investigados.

FIGURA 10 – O ANTROPÓLOGO MALINOWSKI RECOLHENDO INFORMAÇÃO ACERCA DOS


TROBIANDESES ENTRE ESTES

FONTE: <http://conceito.de/wp-content/uploads/2011/11/etnografia-238x171.jpg>.
Acesso em: 10 abr. 2015.

Presentemente grande parte das etnografias são realizadas por antropólogos


que passaram por treinamento nas diferentes técnicas antropológicas contemporâneas
de coleta de dados e registro de culturas distintas, técnicas que implicam o convívio
empático e participativo junto aos povos por eles estudados (HOEBEL; FROST, 2006).

De fato, uma das grandes “provas iniciáticas” da Antropologia está em realizar


a etnografia da cultura acerca da qual o antropólogo pretende refletir. Idealmente
todo antropólogo deveria iniciar sua carreira produzindo uma descrição etnográfica
de algum povo, cultura, ou grupo social, alvo de suas pesquisas.

16
Embora tenha um caráter prático, a etnografia não é livre da influência das
teorias produzidas em Antropologia, uma vez que toda etnografia é informada por
certo referencial teórico que lhe dá uma estrutura e enfoque próprio, muito embora
as descrições etnográficas não se ocupem de problemas teóricos, nem formulem
hipóteses ou teses acerca dos fenômenos sociais e culturais que descreve.

FIGURA 11 – O ETNÓGRAFO DE ORIGEM ALEMÃ CURT NIMUENDAJÚ (AO CENTRO DA IMAGEM,


SENTADO) RECOLHENDO DADOS EM CAMPO

FONTE: <https://encrypted-tbn3.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcSiKdqwjr7QXaPzwkTE2-
4WQRBL0BrX4Xd3fM4TjzV6Q4-eCYD5>. Acesso em: 10 abr. 2015.

Vemos assim que etnografia originalmente designa a descrição e o estudo de


uma determinada cultura ou povo, sendo, de preferência, sistemática e abrangente,
contemplando todos os aspectos, da religião à economia, dos povos que investiga
(GOMES, 2013), sendo um documento que é a base empírica da legitimação da
Antropologia enquanto ciência.

Lévi-Strauss (1967, p. 14 apud MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 27) diz que a etnografia:

consiste na observação e análise de grupos humanos considerados


em sua particularidade (frequentemente escolhidos, por razões
teóricas e práticas, mas que não se prendem de modo algum à
natureza da pesquisa, entre aqueles que mais diferem do nosso),
e visando à reconstituição, tão fiel quanto possível, da vida de cada
um deles.

Assim o etnógrafo seria aquele especialista no conhecimento “exaustivo” da


cultura dos povos que investiga, realizando a observação, descrição, reconstituição
e análise de diferentes populações nativas, coletando material de forma abrangente
acerca de todos os aspectos culturais possíveis de serem observados e descritos por ele
para a compreensão dos povos pesquisados (MARCONI; PRESOTTO, 2001).

17
FIGURA 12 – O ANTROPÓLOGO FRANCÊS LÉVI-STRAUSS FAZENDO ETNOGRAFIA ENTRE OS
NAMBIKWARA, GRUPO INDÍGENA BRASILEIRO DO MATO GROSSO E RONDÔNIA

FONTE: <http://www.cella.com.br/blog/wp-content/uploads/2009/11/claudep.jpg>.
Acesso em: 10 abr. 2015.

3 ETNOLOGIA
Prezado acadêmico, agora você já deve estar ciente de que a etnografia, isto é, a
descrição científica de um determinado povo, grupo social ou cultura, é a primeira etapa
do fazer antropológico. Mas qual seria a etapa seguinte? Esta, querido(a) estudante,
seria a Etnologia. Mas o que ela vem a ser?

FIGURA 13 – CAPAS DE ALGUNS DOS PRIMEIROS ESTUDOS EM ETNOLOGIA PRODUZIDOS NO BRASIL

FONTE: Capa 1: <http://twixar.me/FWhm>. Acesso em 10 abr. 2015.


Capa 2: <http://twixar.me/LWhm>. Acesso em: 10 abr. 2015.
Capa 3: <http://twixar.me/WWhm>. Acesso em: 10 abr. 2015.

18
Dentro do ponto de vista que adotamos aqui podemos dizer que a etnologia é
a etapa seguinte da edificação do saber antropológico, após o levantamento de dados
e informações feitas na fase da etnografia. Seria, assim, a etnologia a reflexão, ou
estudo baseado nos fatos documentados no registro de uma cultura, tendo em vista
a apreciação analítica e sua comparação com dados semelhantes de outras culturas.

Etnologia define-se também por seu método próprio, denominado por Espina
Barrio (2005, p. 37) como “método comparativo transcultural”, tendo por base os dados
empíricos levantados na etnografia, comparam-se as informações particulares de cada
povo com o intuito de inferir algo a respeito da humanidade.

Trata-se de, a partir de estudos aprofundados em uma determinada população


humana, de caráter empírico, revelar algo da humanidade em geral, pela comparação
entre os diferentes povos, remetendo então ao campo da teoria acerca do ser humano.

Espina Barrio (2005, p. 21) chama a atenção para o fato de a etnologia ir além
das descrições das diferentes culturas, feitas pela etnografia, com o intuito de, pela
comparação entre as diversas etnografias, “analisar as constantes variáveis que se
dão entre as sociedades humanas, e estabelecer generalizações e reconstruções da
história cultural”.

Etnologia, desta forma, apresenta-se como o estudo dos diferentes povos, como
a palavra, de origem grega, revela: éthnos, povo; logos, estudo. Mas, como já dissemos em
relação à etnografia, foi somente a partir do Iluminismo que se estabeleceu um estudo
de cunho verdadeiramente científico da humanidade, a partir da comparação entre os
povos. Embora já na antiguidade clássica alguns autores comparassem os costumes
das diferentes populações humanas de seu tempo, somente com a ideia de unidade da
espécie humana constitui-se a ciência da Antropologia.

De fato, a primeiro emprego moderno do termo etnologia é do final do século


XVIII, o chamado século das luzes, e foi de Kóllar, jurista e etnólogo na corte do império
Austro-Húngaro. Este autor definia etnologia como: "a ciência das nações e povos, ou,
o estudo dos eruditos no qual investigam nas origens, línguas, costumes e instituições
das várias nações, e finalmente, na pátria e antigas sedes para poder julgar melhor as
nações e povos de seus próprios tempos". (FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.
org/wiki/Etnologia>. Acesso em: 14 abr. 2015).

Definição que deixa claro as bases científicas da prática etnológica, fundada em


dados empíricos, na comparação e na concepção de uma humanidade única.

Na figura abaixo, o autor Adam František Kollár de Keresztén.

19
FIGURA 14 – KÓLLAR AUTOR QUE CUNHOU E DEFINIU O TERMO “ETNOLOGIA”

FONTE: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/9/93/AFKollar_1779.jpg/220px-
AFKollar_1779.jpg>. Acesso em: 14 abr. 2015.

Enquanto etapa do fazer antropológico, a etnologia insere-se no campo da


ciência da cultura, consistindo em, a partir de dados coletados e registrados em uma
etnografia, comparar as informações concernentes a diversas culturas e analisá-los e
interpretá-los, tendo em vista as semelhanças e diferenças apresentadas, na tentativa
de compreender o ser humano em suas inter-relações e relações com o meio ambiente.
Procura igualmente o etnólogo ver e analisar o ser humano, tanto enquanto indivíduo,
quanto como membro de uma determinada sociedade ou cultura, ao mesmo tempo em
que tenta revelar como operam e se modificam. (MARCONI; PRESOTTO, 2001).

Para Gomes (2013) a etnologia teria um estatuto científico superior à


etnografia, consistindo em um “estudo comparativo de etnografias” estudo este
que facilitaria a reflexão mais aprofundada dos temas e traços comuns aos povos
comparados, lançando bases, desta maneira, a produção de teorias mais amplas, de
caráter antropológico. Este autor vê assim uma hierarquia entre os termos etnografia-
etnologia-antropologia, que ele diz ser amplamente aceita pelos antropólogos.

A etnologia, análise científica dos povos, suas culturas e suas trajetórias,


enquanto tal, ao longo do tempo, supera a preocupação etnográfica buscando, dentro da
perspectiva da ciência, revelar e compreender as relações que as diferentes populações
estabelecem com o ambiente, natural e social, onde vivem, bem como a relação dos
seres humanos com os grupos dos quais fazem parte e das culturas entre si e suas
diferenças (HOEBEL; FROST, 2006).

As diferenças culturais e a unidade da espécie humana.

20
FIGURA 15 – REPRESENTAÇÃO DA DIVERSIDADE CULTURAL E APELO À CONSCIENTIZAÇÃO DA
UNIDADE DA HUMANIDADE

FONTE: <http://www.numeroreal.com.br/cerp/wp-content/uploads/2014/08/mafalda.jpg>.
Acesso em: 14 abr. 2015.

Esperamos ter deixado claro a você, Prezado acadêmico, o que é etnologia.


A partir de agora veremos dois dos campos principais da Antropologia, dois enfoques
distintos desta ciência, que representam duas tradições diferentes da mesma, a saber:
a Antropologia Cultural e a Antropologia Social.

4 ANTROPOLOGIA CULTURAL
A princípio, dentro da tradição norte-americana, a Antropologia divide-se em
quatro grandes áreas de investigação, a saber:

a) A Antropologia Física ou Biológica, que estuda o ser humano em suas características


biológicas, procurando determinar a origem e evolução de nossa espécie (a partir
do achado de fósseis de hominídeos e pré-hominídeos), sua anatomia, fisiologia e
características fenológicas, tanto em populações humanas atuais, quanto nas antigas.

FIGURA 16 – ANTROPÓLOGO FÍSICO EXAMINA RESTOS DE OSSADAS HUMANAS NA ESPANHA

FONTE: <http://twixar.me/JZhm>. Acesso em: 14 abr. 2015.

21
b) A Arqueologia, que investiga a evolução das sociedades humanas ao longo da
história, focando exclusivamente naquelas extintas e sem escrita, e tendo por
base os vestígios arqueológicos, isto é, os objetos, utensílios, pinturas, restos de
habitações e demais sinais da ocupação humana de um determinado local, revelados
por escavações sistemáticas e de acordo com a metodologia desta ciência, tentando
reconstruir nosso passado.

FIGURA 17 – ARQUEÓLOGOS ESCAVANDO ANTIGO SÍTIO DE OCUPAÇÃO HUMANA

FONTE: <http://www.abrhestagios.com.br/img/noticia/0959415001411151811arqueologia-a.jpg>.
Acesso em: 22 maio 2015.

c) A Linguística, que se ocupa das línguas humanas, no que diz respeito à sua estrutura
interna, suas conexões, história, dinâmica de mudança e, notadamente, o significado
que estas conferem à cultura e à expressão do ser humano em uma dada sociedade,
dentro da perspectiva que é a língua o meio privilegiado pelo qual nossa espécie
apreende o mundo e lhe dá sentido.

FIGURA 18 – CHARGE DEMONSTRANDO A VARIEDADE LINGUÍSTICA E CULTURAL BRASILEIRA

FONTE: Disponível em: <https://encrypted-tbn0.gstatic.com/


images?q=tbn:ANd9GcSXDNEDRYWWPBQ52l8_B6280yzRR0lB5DMM74epL-HyISz-XcyRBg>.
Acesso em: 14 abr. 2015.

d) Por fim a Antropologia Cultural, na qual nos aprofundaremos a seguir.

22
É possível, Prezado acadêmico, que você tenha visto em outros livros de
Antropologia uma divisão diferente da que aqui apresentamos. Isto é natural, uma vez
que estas divisões refletem visões e tradições diferentes da disciplina. Nenhuma está
mais correta que a outra, mas todas ajudam a sistematizar o campo e ilustrar o imenso
escopo da Antropologia, que, como você já deve ter percebido, procura dar conta da
totalidade da experiência humana.

A Antropologia Cultural igualmente pode ser definida de diversas maneiras e,


conforme a tradição na qual se insere o autor que dela trata, pode abarcar diferentes
aspectos da realidade que procura elucidar.

Espina Barrio (2005, p. 19) define Antropologia Cultural como “... o estudo e
descrição dos comportamentos aprendidos que caracterizam os diferentes grupos
humanos”. Este autor prossegue informando que o ofício do antropólogo cultural
consiste em investigar os feitos e obras materiais e sociais criados por nossa espécie
ao longo de sua história e que nos possibilitou nos relacionarmos entre nós nas
diversas sociedades e a se apropriar e transformar o meio ambiente de maneira a
garantir nossa sobrevivência.

Para Marconi e Presotto (2001) a Antropologia Cultural apresentaria o maior


e mais abrangente campo da ciência antropológica. Comportaria, na visão das
autoras, o estudo do ser humano enquanto ser cultural, isto é, produtor de cultura.

NOTA
Mais adiante nos deteremos mais aprofundadamente no conceito de cultura
dentro da perspectiva antropológica.

O antropólogo cultural investigaria as diferentes culturas humanas, ao longo


do tempo e em todo o espaço ocupado por nossa espécie, levantando a origem e
desenvolvimento destas, suas semelhanças e diferenças. Seu interesse primordial está
em conhecer o comportamento humano em sua dimensão cultural, ou seja, as formas
pelas quais nós agimos em função da cultura da qual fazemos parte.

Este aspecto da pesquisa das maneiras pelas quais se apresenta o


comportamento humano também é destacado por Hoebel e Frost (2006, p. 7) em relação
à Antropologia Cultural: “... trata das características do comportamento civilizado nas
sociedades humanas passadas, presentes e futuras.”
23
Podemos ver que a Antropologia Cultural foca preferencialmente na pesquisa
acerca do desenvolvimento das sociedades humanas no mundo, ao longo de
toda sua história. Ela investiga os comportamentos apresentados pelos diferentes
grupos humanos, pesquisando, entre outros temas, os costumes, hábitos, práticas
e convenções de origens sociais e culturais, o surgimento e desenvolvimento das
diferentes instituições que apresentamos, como a família, a religião e outros, bem como
a evolução das diferentes técnicas que nossa espécie desenvolveu para lidar com o
mundo natural e prover nossas necessidades.

A cultura determina nosso comportamento.

FIGURA 19 – MULHERES GANESAS PARTICIPANDO DE RITO DE SUA CULTURA

FONTE: <http://cdn5.yorokobu.es/wp-content/uploads/1ghana.jpeg>. Acesso em: 17 abr. 2015.

De uma maneira geral a Antropologia Cultural está mais ligada à tradição norte-
americana da ciência antropológica. Mais adiante neste caderno iremos ver como a
gênese e o desenvolvimento da Antropologia nos E. U. A. ficou marcada pelo conceito
de cultura, cujo papel fundamental na reflexão antropológica norte-americana pode ser
visto ao longo da história da antropologia neste país nas diversas escolas da disciplina
que lá floresceram.

Na imagem a seguir, Franz Boas, fundador da Antropologia norte-americana.

24
FIGURA 20 – O ANTROPÓLOGO FRANZ BOAS DEMONSTRA UM RITO DO POVO QUE ESTUDOU

FONTE: <https://encrypted-tbn1.gstatic.com/
images?q=tbn:ANd9GcT21zYLNgQ0v0_3K9eGBUwOpwmXm_11gZv_tN-65bv9JsopZ2PH>.
Acesso em: 18 abr. 2015

Já a Antropologia Social está indelevelmente ligada à tradição britânica da


Antropologia, mas no que consiste esta última?

5 ANTROPOLOGIA SOCIAL
Para Espina Barrio (2005) a Antropologia Social se ocuparia de problemas
relativos à estrutura social, a saber: aqueles referentes às relações que os membros
de uma determinada sociedade estabelecem entre si, e com os de fora, e as diferentes
instituições sociais humanas, como a família, o parentesco, os diferentes grupos sociais
de caráter político e semelhantes, que determinam a forma e o conteúdo destas relações.

Marconi e Presotto (2001) chamam a atenção para o fato de a Antropologia


Social focar seus estudos naqueles processos culturais e da estrutura social manifestos
na sociedade e nas instituições sociais.

Segundo estas autoras o ofício do antropólogo social centra-se na análise das


diferenças e semelhanças observáveis entre os diversos grupos humanos, no que tange
às maneiras pelas quais estes inculcam, regulam e normatizam as relações sociais que
os indivíduos estabelecem entre si, enquanto membros de uma dada sociedade.

Neste sentido a Antropologia Social privilegia aqueles aspectos da vida social


que são relativos à família e ao parentesco e ainda ao domínio do econômico, do político,
do religioso e do jurídico, entendendo-os enquanto partes de um todo articulado que os
determina, a saber: a sociedade.

25
Desta forma (MAIR, 1972 apud MARCONI; PRESOTTO, 2001), caberia ao
antropólogo social fazer a observação das relações sociais entre os membros de uma
sociedade, em sua totalidade. Observando e estudando a sociedade como um todo,
a partir de suas diferentes instituições, o antropólogo social seria capaz de chegar a
determinar a estrutura e organização de dada sociedade.

Para Hoebel e Frost (2006) a principal característica da Antropologia Social


está em seu enfoque sincrônico e sua recusa à diacronia, isto é, a Antropologia Social
não se preocupa com a reconstituição histórica das instituições que observa em uma
dada sociedade, mas antes privilegia a comparação com outras observáveis em outras
sociedades. Para estes autores os antropólogos sociais são especialistas nas relações
sociais manifestas na família e no parentesco, bem como nos diferentes grupos
etários, na organização política e jurídica e nas atividades econômicas, aquilo que eles
denominam como estrutura social.

Religião, uma instituição social que estrutura a sociedade.

FIGURA 21 – RITO RELIGIOSO DOS INDÍGENAS DO NOROESTE AMAZÔNICO

FONTE: <http://img.socioambiental.org/d/260823-1/noroeste_43.jpg>. Acesso em: 18 abr. 2015.

Prezado acadêmico, esperamos que você já seja capaz de diferenciar a


Antropologia Cultural da Antropologia Social. Já deu para perceber que uma privilegia
a cultura e a outra a sociedade em seus estudos. Mas isto coloca um problema, pois as
diferenças entre “social” e “cultural”, como coloca Marconi e Presotto (2001), não seriam
tão substanciais assim. As diferenças estariam, não tanto no conteúdo, mas antes nas
tendências e enfoques teóricos, onde a Antropologia Cultural se vincula à tradição
norte-americana, enquanto que a Antropologia Social à britânica da Antropologia.

Para Espina Barrio (2005) enquanto que a Antropologia norte-americana foi mais
influenciada pelo conceito de cultura, na Antropologia britânica teve mais peso o conceito de
sociedade. Se os antropólogos norte-americanos estavam mais preocupados com os valores
dos povos que estudavam, seus colegas britânicos privilegiavam as “vinculações concretas”,
isto é, as relações sociais, que os constituíam.

Radcliffe-Brown, antropólogo britânico seminal que influenciou todas as


gerações seguintes de antropólogos na Grã-Bretanha.

26
FIGURA 22 – CHARGE DE RADCLIFFE-BROWN OBSERVANDO NATIVOS AFRICANOS

FONTE: <http://www.visindavefur.is/myndir/radcliffe_brown2_210203.jpg>. Acesso em: 18 abr. 2015.

Prezado acadêmico, esperamos que esta leitura do segundo tópico de


nosso Caderno de Estudos tenha-lhe sido proveitosa, proporcionando-lhe aquele
conhecimento básico que o(a) guiará daqui para frente na busca do conhecimento
antropológico e despertando sua curiosidade.

Chegou a hora de nos aprofundarmos na investigação daqueles conceitos


fundamentais da disciplina que orientam o olhar e o interesse, a saber: os conceitos de cultura,
etnocentrismo e relativismo cultural, que faremos em nosso próximo tópico.

FIGURA 23 – CHARGE REPRESENTANDO AS DIFERENTES RELIGIÕES PRESENTES EM NOSSO PAÍS


E O ARTIGO DA CONSTITUIÇÃO QUE GARANTE A LIBERDADE RELIGIOSA NO BRASIL

FONTE: <http://tocantinsembrasilia.com.br/wp-content/uploads/2014/01/diversidade-religiosa-740x600.jpg>.
Acesso em: 18 abr. 2015.

27
RESUMO DO TÓPICO 2
• Neste tópico vimos o que é etnografia, caracterizando-a enquanto registro total e
pormenorizado de um determinado povo, procurando descrever todos os aspectos
da vida social e da sua cultura.

• Também contemplamos neste tópico o que é etnologia, definindo-a enquanto estudo


comparativo dos diferentes povos, a partir das etnografias disponíveis, procurando
destacar as semelhanças e diferenças, de maneira a esclarecer a especificidade da
experiência humana no mundo.

• Igualmente nos ocupamos em discorrer acerca da Antropologia Cultural e da


Antropologia Social, associando a primeira aos estudos acerca das diferentes
culturas, em suas expressões próprias e em sua influência nos diferentes domínios
da ação e reflexão humanas, e a segunda as investigações que dizem respeito às
instituições sociais e a estrutura da sociedade, a partir das relações sociais presentes
nos diversos grupos humanos organizados.

28
AUTOATIVIDADE
Responda às seguintes perguntas:

1 Quais são as características que fazem de um relato acerca de um determinado povo


uma etnografia?

2 Qual a base sobre a qual se dá a reflexão etnológica e no que consiste?

3 Qual o foco privilegiado do olhar do antropólogo cultural?

4 O que procura determinar a Antropologia Social e a partir do que ela constrói sua reflexão?

29
30
UNIDADE 1 TÓPICO 3 -
CULTURA, ETNOCENTRISMO E
RELATIVISMO CULTURAL

1 INTRODUÇÃO
Prezado acadêmico, já falamos anteriormente em cultura aqui neste Caderno
de Estudos, você certamente já ouviu esta palavra e deve ter uma ideia do que seria isto.
Mas será que o conceito antropológico de cultura corresponde ao que o senso comum
diz a respeito dela?

Todos nós já ouvimos falar de alguém que este seria “culto”, ou que determinada
pessoa não teria nenhuma cultura, ou ainda que a população de um determinado bairro
não tem acesso à cultura.

Será que o uso desta palavra nestes casos tem alguma correspondência com a
aplicação que o antropólogo faz dela?

FIGURA 24 – O SENSO COMUM TENDE A CONFUNDIR CULTURA COM AS MANIFESTAÇÕES


ARTÍSTICAS, QUE, PARA O ANTROPÓLOGO, SERIAM APENAS EXPRESSÕES DESTA

FONTE: <http://chrisgar.com.br/blog/wp-content/uploads/2014/10/mais-cultura-logo.jpg>.
Acesso em: 24 abr. 2015.

Bom, será disto que trataremos aqui neste tópico, procurando esclarecer a você,
nosso atento e curioso acadêmico, no que consiste a Cultura, de acordo com o emprego
científico deste léxico sob o ponto de vista da Antropologia.

Assim nós conceituaremos a palavra cultura de acordo com a visão antropológica,


caracterizando e vendo o alcance deste conceito para a compreensão do ser humano
sob a ótica desta ciência.

31
Igualmente trabalharemos outros conceitos correlatos que ajudam e
complementam o entendimento do que seja cultura para a Antropologia e que a
distinguem em sua compreensão própria do ser humano.

Dentro desta perspectiva analisaremos no que consiste o etnocentrismo, uma


característica universal de nossa espécie, e como a Antropologia desenvolveu, e com
que fim emprega, o conceito de relativismo cultural.

Desta forma nós travaremos contato com o campo semântico relacionado ao


conceito antropológico de cultura e o alcance teórico que tem para a disciplina, bem
como as limitações que ele lhe impôs ao longo de sua história.

2 CULTURA
Se nós antropólogos tivéssemos que nomear aquele que seria nosso “conceito
básico e central”, conforme afirmou Leslie A. White (In: KAHN, 1975, p. 129 apud MARCONI;
PRESOTTO, 2001, p. 42), este seria, sem dúvida alguma, o conceito de cultura.

Como já mencionamos anteriormente, o senso comum difere da visão científica


da Antropologia em sua compreensão do que seja cultura. De um modo geral as pessoas
tendem a identificar cultura com o domínio do conhecimento acerca dos diferentes
campos artístico e intelectual que se adquire pela instrução, desta forma alguém pode
ser “culto” ou “inculto” na visão popular.

Isto é algo que não se coaduna com a visão antropológica, que não emprega o
termo com este sentido e nem faz juízo de valor em relação às diferentes culturas. Para
a Antropologia todo o povo possui cultura, nenhuma cultura é qualitativamente superior
à outra, nem pode alguém ser destituído de cultura. De fato, é a cultura que nos faz
humanos, sendo ela uma característica distintiva de nossa espécie.

No sentido antropológico, cultura (ver MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 42) tem


um significado mais amplo, designando o termo as maneiras pelas quais as pessoas
orientam seu comportamento e suas crenças e que são aprendidos e transmitidos
através da vida social no seio de um determinado grupo humano ou sociedade.

Ora, você, querido acadêmico, já deve, pelo exposto, ter intuído a importância
que o conceito antropológico de cultura tem para a Antropologia e que, portanto, se
desenvolveu junto com ela.

De fato, isto se deu, ao longo de sua história a Antropologia vem elaborando e


reelaborando o conceito de cultura, a partir das diferentes perspectivas teóricas que a
disciplina desenvolveu para a compreensão do fenômeno humano.

32
O relativamente longo período em que a Antropologia floresceu e se desenvolveu
a possibilitou refinar, aprimorar e adaptar o conceito de cultura às necessidades
explicativas da disciplina, conforme as teorias que nasceram neste campo de reflexão e
aos problemas relativos ao ser humano sobre os quais ela se deteve.

Então, conforme o período histórico e a orientação teórica do antropólogo, o


conceito de cultura adquire diferentes feições, sem deixar, entretanto, sua centralidade
e certas características que acompanham sua evolução.

De uma maneira geral têm os antropólogos compreendido cultura enquanto


comportamento adquirido, enquanto abstração do comportamento, enquanto ideias,
enquanto objetos imateriais, materiais ou ambos (MARCONI; PRESOTTO, 2001).

Inicialmente a definição de cultura foi aquela dada pelo antropólogo britânico


Edward B. Tylor, que assim se referia: “Cultura... é aquele todo complexo que inclui o
conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos
e aptidões adquiridos pelo homem como membro da sociedade.”

FIGURA 25 – O ANTROPÓLOGO EDWARD B. TYLOR, O PRIMEIRO A CONCEITUAR DE MANEIRA


CIENTÍFICA CULTURA

FONTE: <https://encrypted-tbn1.gstatic.com/
images?q=tbn:ANd9GcQirq3YE0KRRgeYBfY4Ezu0o264iDh34j5gRy02S2IFFfPPZUIu8A>.
Acesso em: 24 abr. 2015.

Seguindo Marconi e Presotto (2001) daremos aqui algumas definições de cultura


aventadas por diferentes antropólogos ao longo da história da Antropologia que servem
para ilustrar as mudanças que houve neste conceito e os diferentes vieses teóricos que
orientavam os pesquisadores.

33
Para Ralph Linton (apud MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 43) a cultura consistiria “...
na soma total de ideias, reações emocionais condicionadas a padrões de comportamento
habitual que seus membros adquirem por meio da instrução ou imitação e de que todos,
em maior ou menor grau, participam”. Desta forma, em um sentido geral, para este autor
a cultura representa “a herança social total da humanidade”.

FIGURA 26 – O ANTROPÓLOGO AMERICANO RALPH LINTON

FONTE: <http://d.gr-assets.com/authors/1358767843p5/69487.jpg>. Acesso em: 24 abr. 2015.

Segundo Franz Boas (apud MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 43), cultura seria “a
totalidade das reações e atividades mentais e físicas que caracterizam o comportamento
dos indivíduos que compõem um grupo social”.

FIGURA 27 – O ANTROPÓLOGO DE ORIGEM ALEMÃ FRANZ BOAS EM CAMPO ENTRE OS INUIT,


VESTINDO ROUPA TÍPICA DESTE POVO

FONTE: <http://www.newstalk.com/content/000/images/000035/37889_60_news_hub_
multi_630x0.jpg>. Acesso em: 24 abr. 2015.

34
De acordo com Malinowski (apud MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 43) poderíamos
conceituar cultura como “o todo global consistente de implementos e bens de consumo,
de cartas constitucionais para os vários agrupamentos sociais, de ideias e ofícios
humanos, de crenças e costumes”.

FIGURA 28 – O ANTROPÓLOGO DE ORIGEM POLONESA MALINOWSKI ENTRE OS


NATIVOS TROBIANDESES

FONTE: Disponível em: <http://www.tribalartbrokers.net/praisetribal/wp-content/


uploads/2013/05/804d19d75d6d31dca3c3f25430623a68.jpg>. Acesso em: 24 abr. 2015.

Na visão de Kroeber e Kluckhohn (apud MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 43)


cultura se considera como “uma abstração do comportamento concreto, mas em si
própria não é comportamento”.

FIGURA 29 – O ANTROPÓLOGO AMERICANO KROEBER, À ESQUERDA DA FOTO, COM UM DE


SEUS PRINCIPAIS INFORMANTES, O INDÍGENA ISHI

FONTE: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/4/47/Ishi.jpg/250px-Ishi.jpg>.
Acesso em: 24 abr. 2015.

35
Definida por Leslie White cultura seria “quando coisas e acontecimentos
dependentes de simbolização são considerados e interpretados num contexto
extrassomático, isto é, face a relação que têm entre si, ao invés de com organismos
humanos”.

FIGURA 30 – O ANTROPÓLOGO NORTE-AMERICANO LESLIE WHITE

FONTE: <http://www.nndb.com/people/327/000099030/leslie-a-white-1.jpg>. Acesso em: 24 abr. 2015.

Uma definição mais recente seria aquela proposta por Clifford Geertz, onde
“cultura deve ser vista como um conjunto de mecanismos de controle – planos, receitas,
regras, instituições – para governar o comportamento”.

FIGURA 31 – O ANTROPÓLOGO ESTADUNIDENSE CLIFFORD GEERTZ

FONTE: <http://graphics8.nytimes.com/images/2006/11/01/arts/01geertz.jpg>. Acesso em: 24 abr. 2015.

36
Podemos ver, através destas definições dadas como exemplo, a variabilidade
do conceito antropológico de cultura ao longo da evolução da disciplina, variabilidade
esta que revela as transformações que se deram nos paradigmas da Antropologia e que
são sintomáticas das diversas escolas teóricas forjadas neste campo de conhecimento.

Assim cultura é vista ora como ideias, ora como abstrações do comportamento,
ora como comportamento, ora como algo extra somático, ora como os elementos
materiais e imateriais do conhecimento humano e ainda como um mecanismo de
controle do comportamento (MARCONI; PRESOTTO, 2001).

Desta forma podemos ver que as definições de cultura refletem as diversas


abordagens da disciplina ao problema colocado pela existência humana. Esta pode ser
analisada a partir de diferentes enfoques, considerando-se a cultura como o conjunto
de ideias que apresentamos, relativa, portanto ao domínio do conhecimento e da
filosofia; as crenças que professamos, ligadas aos sistemas religiosos e as superstições;
os valores que nos guiam, dizendo respeito ao campo da ideologia e da moral; as normas
que seguimos, relacionadas aos costumes e as leis; nossas atitudes, reveladoras dos
nossos preconceitos e postura diante do outro; os padrões de conduta usuais de nossa
sociedade; a abstração do comportamento, isto é, os símbolos expressivos para nós; as
instituições sociais, como família e sistema econômico; as técnicas, referente a nossa
habilidade e arte e por fim os artefatos que produzimos (MARCONI; PRESOTTO, 2001).

A cultura determina nossos comportamentos e crenças.

FIGURA 31 – RITO RELIGIOSO DOS POVOS XINGUANOS

Fonte: <http://www.thecities.com.br/miniaturas/Brasil/Cultura/A_Cultura_
Brasileira/4_1258980357.8385.jpg>. Acesso em: 24 abr. 2015.

37
Aqui, prezado acadêmico, é preciso ter em mente que a cultura é algo que
nos distingue enquanto espécie e que ela mesma é fruto das pressões evolutivas que
nos forjaram. Ou seja, a cultura é algo próprio do ser humano, foi no processo de nos
tornarmos humanos, através das mutações genéticas que levaram ao surgimento de
nossa espécie, que nós desenvolvemos este extraordinário mecanismo adaptativo
que é a cultura. Entretanto, foi esta mesma cultura que nos permitiu escapar dos
determinismos biológicos.

Assim o ser humano voa sem ter asas, cruza os oceanos sem ter escamas nem
barbatanas, nada embaixo d´água sem ter guelras, mora no ártico sem ter pelagem
espessa e realiza uma série de atividades para as quais sua natureza biológica não o
preparou, mas cuja possibilidade se abriu a partir da cultura.

Para Hoebel e Frost (2006) a cultura consistiria em um sistema integrado


de padrões comportamentais aprendidos na vida social e que são típicos de uma
determinada formação social, não sendo, portanto, fruto de uma herança biológica. Isto
coloca a questão de a cultura ser, em sua essência, não instintiva, ou seja, as diferentes
expressões culturais não são inatas, mas totalmente arbitrárias, isto é, fruto do engenho
e do desejo humano. Muito embora a cultura seja comportamento apreendido, ela é
também, como dissemos antes, parte de nossa natureza, tanto quanto o andar bípede
e a postura ereta que nos distingue.

Entre nós seres humanos a cultura sobrepuja inteiramente os instintos, é


através do processo de socialização, no convívio com outros seres humanos, que nós
aprendemos como satisfazer nossas necessidades básicas e é a cultura que determina
a forma pela qual nós o faremos. Somente vivendo em sociedade que podemos
desenvolver as habilidades necessárias à nossa sobrevivência, através do aprendizado
de uma determinada cultura.

Vamos dar um exemplo para tentar clarificar este ponto para você acadêmico
da UNIASSELVI.

Todos os seres vivos têm que se alimentar, esta é uma necessidade básica
inescapável, procurar alimento é instintivo em todas as espécies. Mas e entre nós?
Embora seja um imperativo da natureza ingerir alimentos, aquilo que nós consideramos
como um alimento próprio, as maneiras pelas quais nós os ingerimos, quando, na
companhia de quem, de que forma e outras tantas variáveis, são aprendidas em
sociedade pelo processo de endoculturação, isto é, através da introjeção no indivíduo
da cultura da qual ele faz parte.

Desta forma enquanto que em certos países asiáticos é perfeitamente lícito


e desejável comer carne de cachorro, nos países do ocidente este fato é fortemente
condenado pela cultura dos membros destas sociedades. Se em nosso país jamais
ingeriríamos carne de caracol, na França esta é uma iguaria apreciada. Em determinados
países africanos come-se com as mãos, enquanto que entre nós faz-se o uso de talheres,

38
já na China come-se com o auxílio de duas varetas. Se entre nós comer sozinho é um
ato normal, entre os Hüpda (povo indígena da Amazônia) ingerir algum alimento sem a
companhia, ou o oferecimento a outrem, é uma ofensa grave. Nas grandes cidades é
costume almoçar ao meio dia, já nos seringais do Acre o almoço é uma refeição tomada
por volta das 10 h da manhã. Nenhum destes comportamentos é instintivo, mas antes
determinado pela cultura dos diferentes povos que os apresentam.

A cultura determina nossa alimentação, não os instintos.

FIGURA 33 – BANCA DE INSETOS VENDIDOS COMO ALIMENTO NA TAILÂNDIA

FONTE: <http://img.estadao.com.br/thumbs/910/resources/jpg/8/8/1415931593288.jpg>.
Acesso em: 28 abr. 2015.

Esperamos que sua compreensão de cultura por agora seja suficiente para nós
aprofundarmos alguns assuntos relacionados com este tema.

Um importante aspecto da cultura está em seu caráter simbólico, que se


transmite preferencialmente através da linguagem, o método propriamente humano,
não instintivo de transmitir ideias, emoções e desejos (HOEBEL; FROST, 2006, p. 19).
Desta forma a cultura se expressa por meio de um conjunto de símbolos significantes
que dão conteúdo a cultura da qual fazemos parte e que são aprendidos no processo de
se adquirir a cultura de nosso grupo.

Nós seres humanos adquirimos a cultura da sociedade em que vivemos e a


compreensão dos símbolos que dão expressão a ela, através de um processo, já mencionado
aqui anteriormente, denominado de endoculturação. Mas no que ela consiste?

39
FIGURA 34 – A CULTURA ADQUIRE-SE DURANTE A VIDA SOCIAL DO INDIVÍDUO. EM NOSSA
SOCIEDADE A ESCOLA É UM DOS ESPAÇOS PRIVILEGIADOS NESTE PROCESSO

FONTE: <http://www.pco.org.br/banco_arquivos/conoticias/imagens/19547.jpg>.
Acesso em: 28 abr. 2015.

Endoculturação consiste no processo que se dá desde a infância e por toda a


vida, nunca cessando, de aprendizado da cultura que fazemos parte e que estrutura o
condicionamento de nossa conduta, conferindo assim estabilidade aquela cultura a qual
pertencemos (MARCONI; PRESOTTO, 2001). É através do processo de endoculturação
que a sociedade controla os atos, atitudes e comportamentos de seus membros,
impedindo que ajamos de forma diferenciada em relação à nossa cultura, mas antes de
acordo com ela.

Todos nós adquirimos as crenças, o modo de vida, os valores e comportamentos


da cultura a qual pertencemos, mas não dominamos todos os aspectos dela, uma vez
que participamos diferentemente de nossa cultura, conforme nossa faixa etária, classe
social, educação recebida, grupos sociais dos quais fazemos parte e trajetória de vida,
entre outros condicionantes.

Desta forma embora faça parte de nossa cultura tocar violão, jogar futebol ou
fazer cálculos matemáticos, nem todos temos estas habilidades ou as desenvolvemos
plenamente. Entretanto, todos nós adquirimos ao longo da vida certos conhecimentos
básicos de nossa cultura que nos permite socializar com seus diferentes membros.

Consistindo a cultura em normas comportamentais ou de costumes, conforme


Marconi e Presotto (2001), poderíamos classificar as normas em três classes distintas,
condicionadas pelo nível de participação dos indivíduos nestas. Desta forma teríamos
normas universais, especializadas, alternativas e aquelas sujeitas à variabilidade
individual.

Variando de uma sociedade a outra os padrões de conduta de uma determinada


cultura apresentam coerência e coesão para todos os membros da sociedade no nível
das normas universais desta cultura. Seriam aquelas normas determinantes de ideias,
costumes, reações emocionais e comportamentos que se apresentam em comum

40
para todos os membros daquela cultura. Nas sociedades simples estas normas são
predominantes e se expressam através da língua, dos padrões morais dominantes e dos
valores que orientam a vida social naquele grupo. As normas culturais universais, isto é,
comum a todos os membros de uma determinada cultura, abarcam assim as tradições, os
usos, as ideias, os costumes e as práticas que são compartilhados igualmente por todos.

FIGURA 35 – O CUMPRIMENTO, UMA NORMA COMPARTILHADA POR TODOS EM NOSSA CULTURA

FONTE: <https://encrypted-tbn2.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcSZtfJEdMkB0oiLxINrh3_00zO
Yoash-pL0ntshAgjc05VRbaGW>. Acesso em: 28 abr. 2015.

Já as normas especializadas consistiriam naquelas que são praticadas e


seguidas por um determinado grupo que compõe aquela sociedade. Estas normas podem
até ser aceitas e de conhecimento dos outros membros daquela cultura, mas não são
praticadas, em função deles não pertencerem a grupos específicos que formam o tecido
social. Estas normas condicionam padrões de comportamento de um determinado
segmento especializado daquela cultura, consistindo em capacidades e conhecimentos
interdependentes, de forma recíproca, associados a partes distintas da sociedade.
Seriam os conhecimentos técnicos diversos e as diferentes habilidades necessárias ao
funcionamento da sociedade apresentadas por segmentos especializados desta, como
o xamã, ou curandeiro, a liderança política, ou, nas sociedades complexas, o médico, o
engenheiro, ou o músico, por exemplo. Este conjunto de conhecimentos e habilidades,
embora não sejam compartilhados por todos, são aceitos e conhecidos por toda a
sociedade e possibilita a esta desenvolver as atividades necessárias à sua manutenção.
Assim vemos que um indivíduo jamais poderá adquirir todos os elementos que fazem
parte de sua cultura, participando diferentemente destes conforme sua faixa etária,
gênero, profissão etc. (MARCONI; PRESOTTO, 2001).

41
FIGURA 36 – O SACERDOTE, UM PAPEL SOCIAL ESPECIALIZADO NAS DIFERENTES CULTURAS

FONTE: <http://i.ytimg.com/vi/4a86ZcQ3fhk/hqdefault.jpg>. Acesso em: 28 abr. 2015.

Existem igualmente certas normas ou padrões de cultura que não são


universais, nem restritos a grupos especializados, mas que antes se apresentam como
alternativas a todos os membros daquela sociedade em determinadas situações onde
elas se admitem. Estas alternativas variam e são sujeitas à livre escolha do indivíduo
consistindo naquele espaço de manobra dentro de uma determinada cultura à expressão
do indivíduo que dela faz parte. A cultura fornece várias alternativas de conduta diante
de certas situações, fica a critério do indivíduo sua adesão a elas ou não. Quanto maior
e mais complexa a sociedade, maior as possiblidades alternativas que apresenta a seus
membros. Poderíamos exemplificar com a possibilidade, em nossa cultura, de aderirmos
a uma dieta vegetariana ou não.

Por fim todos nós apresentamos condutas e comportamentos que são frutos
de nossa vivência própria de nossa cultura e que são condicionados por nossa
trajetória individual, consistindo nas diferentes peculiaridades do indivíduo, em nossas
características pessoais, não sendo compartilhadas por outras pessoas de nosso grupo.

Em uma determinada cultura os universais e as especialidades apresentam


maior estabilidade e constituem no núcleo da cultura (MARCONI; PRESOTTO, 2001)
determinando a coesão e coerência desta através do equilíbrio entre estes dois
aspectos. Notamos, entretanto, que as alternativas comportamentais são de grande
importância para uma dada cultura, possibilitando sua renovação e transformação,
fazendo parte assim de sua dinâmica de maneira definitiva e determinante.

Um dos aspectos da cultura é no que consiste e que tem uma existência espaço-
temporal, localizando-se conforme sua qualidade. Vamos tentar tornar isto mais claro
para você, nosso leitor.

42
Aqueles aspectos da cultura que consistem em conceitos, crenças, atitudes,
emoções, no imaginário, e semelhantes, têm uma localização intraorgânica, ou seja,
estão dentro do organismo humano.

Já os aspectos relacionais da cultura, as diferentes formas de interação que


apresentamos entre nós na vida social, localizam-se interorganicamente, ou seja, entre
os organismos humanos.

Por fim, as expressões materiais da cultura, os diferentes aparatos tecnológicos


que compõem esta, como machados, computadores etc., situam-se fora dos organismos
humanos, são localizados extraorganicamente, portanto.

Vimos até aqui que a cultura essencialmente consiste em ideias, abstrações


e comportamento. Vamos clarificar um pouco mais o que são estes do ponto de vista
antropológico.

Para Marconi e Presotto (2001, p. 46) as ideias que apresentamos seriam as


“... concepções mentais de coisas concretas ou abstratas, ou seja, toda a variedade de
conhecimentos e crenças teológicas, filosóficas, científicas, tecnológicas, históricas etc.”
Estas autoras dão como exemplo do campo de ideias as diferentes línguas humanas, a
arte as mitologias que são próprias de nossa espécie.

FIGURA 37 – NOSSAS IDEIAS, ASPECTO DESTACADO DE NOSSAS CULTURAS

FONTE: <http://www.labsdesign.com.br/images/slider/slide01.jpg>. Acesso em: 28 abr. 2015.

Já as abstrações que consistem na cultura seriam aqueles aspectos não


materiais, não observáveis e não palpáveis do domínio de nossa mente, lembrando
que a capacidade de abstrair é exclusiva de nossa espécie e componente distintivo da
cultura, que se expressa por meio de diferentes abstrações, que adquirem significado e
lhe dão sentido.

43
Por fim, um dos aspectos essenciais da cultura está nos comportamentos que
ela determina, entendidos aqui enquanto maneiras de agir, ou conjunto de reações e
atitudes comuns aos indivíduos em função de sua pertença a uma determinada cultura,
sendo, portanto, não instintivos, mas antes resultado da invenção social e transmitidos
e aprendidos através da linguagem e do aprendizado (MARCONI; PRESOTTO, 2001).

Toda cultura pode ser classificada em diferentes aspectos, uma classificação


amplamente aceita desta seria aquela que a divide entre material, imaterial, real e ideal.

A cultura material consiste em coisas materiais propriamente, ou seja, em


bens tangíveis (MARCONI; PRESOTTO, 2001), o que incluiria artefatos, instrumentos
e todos os demais objetos que têm em comum o fato de serem produto do engenho
humano, da criação humana e que refletem a tecnologia de uma dada sociedade.
A cultura material abrangeria igualmente as técnicas e realizações humanas que
decorrem das normas e costumes de uma determinada cultura.

FIGURA 38 – ALGUNS DOS ARTEFATOS CULTURAIS REPRESENTANTES DA CULTURA NEOLÍTICA

FONTE: <http://www.zun.com.br/fotos/2012/05/machado-e-pedra..jpg>. Acesso em: 28 abr. 2015.

Já a cultura imaterial abarca todos os elementos intangíveis da cultura, ou


seja, aqueles que não têm substância material, a saber: as crenças, os conhecimentos,
hábitos, aptidões, normas, valores e significados apresentados por uma determinada
cultura e que são compartilhados por seus membros e tidos como verdadeiros e reais
(embora sejam de fato arbitrários).

44
FIGURA 39 – ALGUNS DOS VALORES PREGADOS PELAS GRANDES RELIGIÕES

FONTE: <http://www.webquestfacil.com.br/pastas/1362/Valores_humanos,_tesouro_da_
humanidade.gif>. Acesso em: 28 abr. 2015.

A cultura classifica-se ainda como real e ideal, onde a cultura real seria aquela
efetivamente vivenciada por seus membros no cotidiano. A cultura real seria a expressão
na prática de uma determinada cultura, como ela se efetiva no mundo, através das
ações de seus membros, é a cultura no plano concreto.

Já a cultura ideal é a cultura tal como a mesma se apresenta no discurso de seus


membros, consistindo no conjunto de ações idealizadas por aqueles que compõem uma
dada cultura, revelando aqueles comportamentos tidos como bons, desejáveis e perfeitos
pelo grupo, mas que podem ou não serem efetivamente praticados.

Embora o altruísmo seja valorizado por nossa cultura, muitas vezes nos
comportamos de maneira egoísta. Na foto uma mulher indiana compartilha o pão com
um morador de rua.

FIGURA 40 – CULTURA IDEAL

FONTE: <https://encrypted-tbn2.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcTpomYhie-UF0_
L078Num5MFd5f-CP36PWF-FlouLH7pXyHjLOl7A>. Acesso em: 28 abr. 2015.

45
Prezado acadêmico, já dissemos aqui anteriormente que para os membros de
uma determinada cultura seus preceitos são tidos como reais e verdadeiros e que a sua
cultura parece ser superior às demais. Esta atitude é universal, sendo uma característica
própria de todos os grupos humanos. Tal fato chamou a atenção da Antropologia que
cunhou um termo para designar este tipo de postura. Está na hora de nos aprofundarmos
no que consiste o etnocentrismo.

3 ETNOCENTRISMO
Hoebel e Frost (2006, p. 446) definem etnocentrismo como: “Visão das coisas
segundo a qual os valores e o modo de ser do próprio grupo são o centro de tudo, e
todas as outras são avaliadas e julgadas com referência a ela”.

Para Marconi e Presotto (2001) o etnocentrismo consistiria na atitude do


indivíduo de supervalorizar sua própria cultura contra todas as outras. Estas autoras
prosseguem dizendo que a atitude etnocêntrica tem como característica o julgamento
das outras culturas a partir da perspectiva da cultura da qual o indivíduo faz parte. Em
situações extremas o etnocentrismo pode levar ao sentimento de superioridade e a
hostilidade, e algumas vezes a agressão, àqueles que são diferentes por pertencerem a
outra cultura.

Entretanto, o etnocentrismo teria um papel positivo para o próprio grupo,


favorecendo o ajuste individual à cultura e a coesão social, por levar os membros de
uma determinada cultura a “considerar e aceitar o seu modo de vida como o melhor, o
mais saudável...” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 52-53).

Toda cultura tende a considerar seus valores, crenças, hábitos, práticas e


comportamentos como bons, justos e verdadeiros, e até mesmo naturais. Para os
membros de uma determinada cultura aquilo que eles acreditam e praticam é, não só
o que é certo, mas o que é natural. Desta forma as maneiras e jeitos dos outros grupos
são inferiores, imperfeitos e até antinaturais.

Etnocentrismo.

46
FIGURA 41 – PARA OS MEMBROS DE UMA RELIGIÃO AS OUTRAS PARECEM ABSURDAS

FONTE: <http://image.slidesharecdn.com/eletnocentrismoparapresentar-140506110155-
phpapp01/95/el-etnocentrismo-para-presentar-5-638.jpg?cb=1399392170>. Acesso em: 29 abr. 2015.

Ora, mas como tem se posicionado a Antropologia face ao etnocentrismo? Já


vimos aqui que para os antropólogos não existe nenhuma cultura superior ou melhor
que outra. Esta perspectiva antropológica levou a disciplina a desenvolver um conceito
e uma postura metodológica que foi denominada de relativismo cultural. Vamos ver o
que é isto?

4 RELATIVISMO CULTURAL
Para Hoebel e Frost (2006) embora as culturas possam ter certas características
gerais em comum, elas sempre variarão em determinados pontos de seus postulados
básicos. De fato, as culturas diferem umas das outras em muitos aspectos, e algumas
vezes muito significativamente.

Sabemos que a humanidade é uma só, mas a variabilidade cultural é


imensa. Povos ocupando o mesmo habitat ecológico podem apresentar crenças e
comportamentos tão diversos entre si como aqueles de povos habitando regiões muito
distantes uma da outra.

Todas as culturas, entretanto, mostram-se suficientes para dar conta de


orientar seus membros em suas relações com o meio ambiente e com os outros
membros de sua e de outras sociedades, fornecendo um sistema coerente que
modela seu comportamento e as crenças, valores e ideologias que lhes dão
sustentação.

Sob este aspecto todas as culturas são iguais e devem ser igualmente
respeitadas e admiradas. Não que a cultura seja sempre coerente, funcional e
harmônica, mas sempre serve como normatizadora e mediadora dos conflitos que por
acaso apresente.

47
A Antropologia não discrimina entre as diferentes culturas, entendendo
todas como fundamentalmente iguais em seu papel adaptativo para nossa espécie.
A compreensão antropológica deste fato levou ao desenvolvimento do conceito de
relativismo cultural.

Segundo Hoebel e Frost (2006, p. 22), o relativismo cultural é consequência direta


do método comparativo em Antropologia. De acordo com estes autores: “O conceito
de relatividade cultural afirma que os padrões do certo e do errado (valores) e dos usos e
atividades (costumes) são relativos à cultura da qual fazem parte”.

Uma consequência disto é que cada prática ou costume cultural é correto e


válido nos termos de sua própria cultura.

Para o antropólogo isto tem implicações tremendas, determinando neste profissional


uma postura firme no sentido de não exercer um juízo sobre a cultura que estuda, mas antes
que procure entender e ver o mundo de acordo com o povo pesquisado, tendo empatia por ele
(como decorrência da visão humanística inerente ao relativismo), sem perder o rigor científico,
entretanto (HOEBEL; FROST, 2006).

Hoebel e Frost (2006, p. 22) chegam a afirmar que sem renunciar ao


etnocentrismo e adotar o relativismo cultural ninguém pode vir a ser um antropólogo,
ou seja, alguém capaz de “... assumir o papel de observadores objetivos e não de
apologistas, condenadores ou convertedores”.

Para estes autores o relativismo cultural confere determinadas características


aos antropólogos: “sabem rir com o povo, não rir dele”, sendo necessário para a prática
da Antropologia um respeito real e profundo pelo ser humano, seja ele quem for.

Para Marconi e Presotto (2001) o relativismo cultural fundamenta-se no princípio


de que os indivíduos são fruto dos condicionamentos culturais (que determinam seu
modo de vida próprio), apresentando estes assim valores e identidades relativos à
cultura a qual pertencem.

Desta forma suas crenças, costumes e práticas devem ser vistas sempre em
relação à cultura da qual fazem parte, como partes integradas de um sistema que
fornece o mapa para a ação e reflexão dos indivíduos ali endoculturados.

A postura relativista implica em considerar os padrões e os valores do que seja


certo ou errado, dos usos e costumes, das crenças e discursos, sempre em relação à
cultura na qual estão inseridas, e não a partir da cultura do observador.

Para Laraia (2004) toda cultura tem uma lógica própria e cada hábito cultural
apresenta coerência em relação ao sistema do qual faz parte. Devemos, portanto,
compreender cada cultura a partir de sua lógica interna.

48
Devemos compreender cada costume a partir da lógica da cultura onde se
apresenta. Para as muçulmanas usar o véu é um valor positivo de sua religião e cultura.

FIGURA 42 – RELATIVISMO CULTURAL

FONTE: <http://www.smh.com.au/content/dam/images/1/5/h/t/5/image.related.
articleLeadwide.620x349.15hy0.png/1284915601000.jpg>. Acesso em: 30 abr. 2015.

Prezado acadêmico, para tentar facilitar sua compreensão dos conceitos de


etnocentrismo e relativismo cultural, vamos dar um exemplo que ilustra bem estes dois
conceitos e que é fruto de nossa experiência como antropólogo em campo.

Estivemos durante um ano e quatro meses vivendo entre um grupo nômade coletor-
caçador do noroeste amazônico, conhecidos na literatura antropológica como Hüpda.

Neste período de nosso trabalho de campo tivemos a oportunidade de


presenciar inúmeros deslocamentos que os Hüpda realizaram dentro de seu território,
por motivos diversos.

Nestas ocasiões os homens Hüpda levavam consigo apenas seus arcos e


flechas, zarabatanas e demais armas de que dispunham, enquanto que as mulheres
carregavam todo o peso, os pertences, víveres, utensílios e demais bens “carregáveis”
do grupo, em cestos que portavam as costas.

Ao observar tal costume um desavisado poderia, a partir de uma atitude


etnocêntrica, julgar os homens Hüpda preguiçosos, por não carregarem peso, e
machistas, por fazerem suas mulheres carregarem o mesmo.

Mas um antropólogo treinado é capaz de observar este mesmo costume com


uma posição relativista, isto é, contextualizando o mesmo na cultura Hüpda, para
entendê-lo de acordo com a lógica desta.

Assim vai perceber que durante os deslocamentos na floresta equatorial úmida,


onde habitam, os Hüpda ficam expostos ao ataque de seus inimigos e de predadores
deste ambiente, fazendo todo sentido, de acordo com a cultura Hüpda, que os homens
viagem com as mãos livres, para que assim possam dispor rapidamente de suas armas.

49
Desta forma um ato aparentemente machista em relação às mulheres, de
acordo com nossa cultura, revela-se um ato de cuidado e altruísmo em relação a elas,
de acordo com a cultura Hüpda.

FIGURA 43 – ÍNDIO HÜPDA PREPARA O IPADÚ DE ACORDO COM OS COSTUMES DE SUA CULTURA

FONTE: <http://img.socioambiental.org/d/281930-4/maku_4.jpg?g2_GALLERYSID=TMP_SESSION_
ID_DI_NOISSES_PMT>. Acesso em: 4 maio 2015.

50
RESUMO DO TÓPICO 3
• Neste tópico nós estudamos o conceito de cultura, vendo como ele é central na
Antropologia e como tem se modificado ao longo da história. Vimos também como
a cultura é um mecanismo adaptativo próprio de nossa espécie, como determina
nossas crenças, discursos, práticas, hábitos e comportamentos, nos orientando em
nossa vida social e em nossa relação com o meio ambiente.

• Também discutimos o que é o etnocentrismo, vendo-o tanto pelo seu aspecto


positivo, de conferir coesão à sociedade e adesão do indivíduo, bem como pelo seu
lado negativo, a saber: de gerador de preconceito e hostilidade em relação àqueles
que apresentam uma cultura diferente. Capacitamo-nos ainda na compreensão de
que etnocentrismo consiste fundamentalmente em julgar as outras culturas a partir
dos valores e crenças de nossa própria cultura.

• Igualmente foi alvo de nossa reflexão a questão do relativismo cultural, que


compreendemos aqui como a atitude metodológica própria da Antropologia, fruto
de seu método comparativo, de levar em conta as diferentes culturas a partir de
sua lógica interna, despindo o olhar antropológico dos preconceitos e valores do
observador, mas tornando-o capaz de iluminar a compreensão dos componentes de
uma cultura.

51
AUTOATIVIDADE
Responda às seguintes perguntas:

1 É correto afirmar que o determinismo biológico é inescapável?

2 Como chamamos a atitude de julgar as outras culturas a partir das crenças e valores
de nossa própria cultura?

3 Qual o conceito desenvolvido pela Antropologia, decorrência de seu método comparativo,


que permite ao antropólogo estudar um traço cultural a partir da lógica interna da cultura
do qual faz parte?

52
UNIDADE 1 TÓPICO 4 -
O TRABALHO DE CAMPO E A
OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE

1 INTRODUÇÃO
Prezado acadêmico, já vimos anteriormente como a Antropologia se inscreve
entre as Ciências Sociais, destacando-se em razão de sua abordagem própria do
fenômeno humano.

Se outros ramos do conhecimento apresentam o mesmo objeto da Antropologia,


a saber: o ser humano, é o saber antropológico que vai primar por uma aproximação
empírica deste.

De fato, a Antropologia adquire sua especificidade face às outras ciências que


tratam do ser humano, não só pelo recorte total que lhe dá, mas principalmente por se
valer da investigação empírica em seus estudos.

Se em seus primórdios a Antropologia lançava mão do relato de terceiros, com


sua evolução histórica enquanto disciplina científica a Antropologia passa a fazer do
trabalho de campo sua marca distintiva e verdadeira “prova de fogo” para o exercício
da profissão.

Atualmente o trabalho de campo não diminuiu de importância no estudo e na


prática da Antropologia, mas adquiriu novas dimensões, com o espaço virtual e outras
inovações tecnológicas no relacionamento humano.

O espaço virtual apresenta-se hoje como um novo espaço de interação social,


onde as pessoas podem interagir através de seus avatares.

FIGURA 44 – ESPAÇO VIRTUAL

FONTE: <https://encrypted-tbn1.gstatic.com/
images?q=tbn:ANd9GcQCjh0d0LCaxEzYNNJPUXGNGj6q1QUC9UvXK-_SxaQhH8Sr-qyrMw>.
Acesso em: 4 maio 2015.

53
Mas no que consiste, afinal, o trabalho de campo? Vamos descobrir juntos,
prezado aluno?

2 TRABALHO DE CAMPO
Para Gomes (2013) a pesquisa, ou trabalho, de campo consiste no deslocamento
até onde se encontra o objeto da pesquisa, para lá aplicarem-se as diferentes técnicas
e métodos de pesquisa próprias da Antropologia.

De acordo com Espina Barrio (2005, p. 37), o trabalho de campo implica o contato
prolongado e pessoal do antropólogo com o povo que estuda e deve se orientar pela
investigação das inter-relações sociais, com o mínimo de interferência possível por parte
do antropólogo, concentrando os esforços empíricos deste numa parcela da humanidade e
representando um verdadeiro rito de iniciação do pesquisador.

Segundo este autor ainda o trabalho de campo ultrapassa a dimensão de


ser uma observação despida de preconceitos de uma comunidade estranha à do
observador, mas constitui-se igualmente em uma imersão essencial na maneira de ser
do grupo estudado.

Hoebel e Frost (2006, p. 5) chamam a atenção para o fato de o trabalho de


campo ser uma característica distintiva da Antropologia, sendo ocasião da obtenção
dos dados e teste das hipóteses desta disciplina. As Ciências Sociais assim têm a
oportunidade de, através do trabalho de campo realizado pelos antropólogos, coletar
informações por observação de situações existentes na prática, e não aquelas
idealizadas experimentalmente, como em outros ramos do conhecimento, notadamente
nas ciências exatas.

O trabalho de campo confere assim cientificidade à investigação antropológica,


através da observação empírica de seu objeto.

FIGURA 45 – O ANTROPÓLOGO BRASILEIRO DARCY RIBEIRO FAZENDO TRABALHO DE CAMPO


ENTRE UM GRUPO INDÍGENA DO BRASIL

FONTE: <http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/abril2007/fotosju354-on-line/12b.jpg>.
Acesso em: 4 maio 2015.

54
Trabalho de campo consiste assim em uma etapa importante do fazer
antropológico, sendo uma verdadeira iniciação do profissional desta área na prática
característica de sua profissão, representando o momento de coleta empírica dos
dados com os quais o antropólogo irá trabalhar e implicando necessariamente o contato
profícuo com o povo alvo de sua investigação.

O trabalho de campo antropológico destaca-se, outrossim, pelo emprego de uma


técnica da disciplina igualmente importante no conferimento de especificidade face a
outras ciências humanas e que se convencionou chamar de “observação participante”.

Mas no que ela consistiria exatamente, você saberia dizer, Prezado acadêmico?

O antropólogo deve procurar viver o maior número de aspectos possíveis da


cultura estudada. Aqui um antropólogo participa de rito religioso do povo que investiga.

FIGURA 46 – OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE

FONTE: <http://cec.vcn.bc.ca/rdi/images/elder03c.jpg>. Acesso em: 4 maio 2015.

3 OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE
Para Marconi e Presotto (2001) seria através da observação participante que o
antropólogo teria a chance de viver entre o grupo estudado, podendo assim tomar parte
de suas conversas, ritos e atividades e observar o conjunto de manifestações de caráter
ideológico e material deste povo, bem como as maneiras pelas quais os indivíduos da
sociedade pesquisada reagem aos estímulos psicológicos e ainda os mecanismos
adaptativos e o sistema de valores de sua cultura.

Segundo estas autoras (MARCONI; PRESOTTO, 2001), a observação participante


implica na disponibilidade do antropólogo em permanecer em campo durante largos
períodos, ou o suficiente, pelo menos, para a compreensão da cultura estudada.

55
Esta prática demandaria do pesquisador argúcia, objetividade e uma atitude
relativista quanto à cultura pesquisada. As técnicas associadas à observação
participante seriam o registro sistemático das atividades e práticas observadas, tanto
por meio do diário de campo do pesquisador, quanto de fichas, fotografias, gravações,
filmes e demais meios disponíveis.

Para Gomes (2013) a observação participante seria o método mais associado


à Antropologia e distinção desta entre as ciências humanas. Para este autor malgrado
o método de observação participante ser difícil de aplicar, seria de grande importância
para nossa disciplina e representaria a própria diferença entre ser ou não antropólogo.

Segundo Gomes (2013, p. 53), observação participante consiste em “o


pesquisador buscar compreender a cultura pela vivência concreta nela, ou seja, morar
com os ‘nativos’, participar de seus cotidianos, comer suas comidas, se alegrar em suas
festas e sentir o drama de ser de outra cultura - tudo isso na medida do possível.”

A ideia por detrás deste método, tão característico da Antropologia, está em


considerar que o estudo de uma determinada cultura é privilegiado (ou em última análise,
somente possível) através da imersão nesta mesma cultura. Assim, não seria suficiente
observar os fenômenos sociais e anotar os comentários dos que deles participam,
tampouco basta conhecer a produção documental e ideológica da cultura pesquisada,
é preciso, antes de tudo, vivenciá-la!

Fundamental para a vivência profícua e empática junto a outro povo é o


relativismo cultural, somente através dele pode o antropólogo pretender se despir de
seus preconceitos e adotar uma atitude objetiva que resulte em dados proveitosos para
a reflexão antropológica.

A observação participante demanda a contínua presença do antropólogo junto a


seus informantes, num contato próximo que exige confiança, reciprocidade e compromisso
por parte do pesquisador e que tem o potencial de gerar compreensão solidariedade e
expectativas entre ele e o povo estudado (GOMES, 2013).

Para a apreensão do sentido de uma cultura para seus membros é necessária a


interação da subjetividade do antropólogo com a de seus informantes, este momento se
dá na observação participante. Esta exige autoconhecimento por parte do antropólogo e
renova o mesmo através da pressão de viver em outra cultura.

Num primeiro momento a observação participante pode implicar um desconforto


em face da cultura observada que é chamado de “choque cultural”, resultado das
diferenças entre a cultura do antropólogo e àquela que ele estuda. Parte da vivência do
campo, esta fase é superada pelo treinamento antropológico e pela postura relativista.

56
Para Gomes (2013) é imprescindível na observação participante o registro dos
fatos observados no cotidiano em um diário de campo, bem como a anotação neste dos
sentimentos suscitados no pesquisador por suas diversas interações sociais junto ao
grupo pesquisado. Junto com esta técnica deve-se também lançar mão da fotografia,
filmagens, gravações etc.

Podemos dizer que a observação participante forja o antropólogo, iniciando-o


em uma prática fundamental da disciplina e capacitando-o para seu exercício, estando
implicada nesta o fazer etnográfico e o olhar próprio da Antropologia.

Para o antropólogo a observação participante fornece a convicção de que não


basta viver com um povo para compreendê-lo, mas é preciso viver como este povo vive.
É preciso estar entregue ao maior número de práticas culturais da população estudada
para poder-se chegar a uma compreensão desta cultura que seja próxima à daqueles
que dela fazem parte.

Através da observação participante que, mais do que se adquirir dados de valor


científico (por estarem livres do etnocentrismo), se estabelecem laços humanos com a
população estudada, laços estes que se mostrarão fundamentais para a compreensão
de sua cultura.

É preciso que o antropólogo esteja consciente de algumas implicações da


observação participante (VALLADARES, 2007), uma delas é o longo período de tempo
que a mesma demanda, uma vez que para se travar conhecimento e ter-se compreensão
do comportamento dos indivíduos e grupos é preciso observá-los por um período
considerável de tempo.

Outro aspecto a ser levado em conta é que geralmente chega-se no grupo sem
um conhecimento prévio deste e de suas relações internas, então parte da observação
participante é gasta somente em mapear-se o território social do grupo pesquisado.

Como a observação participante implica a interação pesquisador/pesquisados


a qualidade da informação recolhida pelo primeiro dependerá de seu comportamento
em relação aos segundos.

Em nenhum momento o antropólogo deve procurar negar sua identidade de


pesquisador durante a observação participante, mas antes assumi-la numa postura
honesta e sincera em face de seus pesquisados, ainda que procurando participar de
todas as formas na sua cultura.

Para facilitar a observação participante é preciso travar relações privilegiadas


com um membro do grupo estudado que tenha um bom trânsito entre este e demonstre
entendimento do trabalho do antropólogo, é o que se chama no jargão da profissão de
“informante-chave”.

57
Para realizar uma observação participante eficaz é preciso estar com os sentidos
aguçados e saber ouvir e escutar o povo pesquisado, aprendendo tanto com os silêncios,
quanto com suas falas.

Manter uma rotina de atividades cotidianas relacionadas com a pesquisa e a


investigação da cultura estudada é fundamental para uma observação participante bem-
sucedida, devendo a mesma estar conciliada com as ações diárias da população observada.

As gafes, enganos e erros cometidos em relação à cultura estudada são


momentos importantes do aprendizado. A reprovação social é extremamente
representativa da cultura que a exerce, desta forma a observação participante deve
também se dar nestes momentos.

As amizades e laços feitos durante a observação participante acompanham o


antropólogo por toda a sua vida e acontecem concomitantemente à cobrança do povo
estudado dos resultados e benefícios resultantes da pesquisa realizada.

Na figura abaixo, o antropólogo Darcy Ribeiro vivendo entre os índios Kadiwéu.

FIGURA 47 – O ANTROPÓLOGO FAZENDO OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE

FONTE: <http://og.infg.com.br/in/2922952-f5b-e64/FT1500A/550/Darcy-Ribeiro-com-indios-
Kadiweu-Mato-Grosso-do-Sul-1947.-Foto-Berta-Ribeiro.jpg>. Acesso em: 6 maio 2015.

58
LEITURA
COMPLEMENTAR
O QUE É ANTROPOLOGIA?

Antropologia é muitas vezes considerada uma coleção de fatos curiosos, que


fala sobre a aparência peculiar de povos exóticos e descreve seus estranhos costumes
e crenças. É encarada como uma divertida aventura, aparentemente sem nenhuma
preocupação com a conduta de vida das comunidades civilizadas.

Esta opinião é falsa. Mais do que isso, espero demonstrar que uma compreensão
clara dos princípios de antropologia ilumina os processos sociais do nosso próprio tempo
e podem mostrar-nos, se estivermos prontos para ouvir seus ensinamentos, o que fazer
e o que evitar.

Para provar minha tese devo explicar resumidamente o que os antropólogos


estão tentando fazer.

Pode parecer que o domínio da antropologia, a "ciência do homem", está preocupada


com uma série de ciências. O antropólogo que estuda a forma corporal é confrontado
pelo anatomista que passou séculos em pesquisas sobre a forma bruta e minuciosa da
estrutura do corpo humano. O fisiologista e o psicólogo dedicam-se a investigações sobre
o funcionamento do corpo e da mente. Existe, portanto, alguma justificativa para que o
antropólogo afirme que ele pode acrescentar algo ao nosso conhecimento?

Existe uma diferença entre o trabalho do antropólogo e aquele do anatomista,


fisiologista e psicólogo. Eles lidam principalmente com a forma e função típica do corpo
humano e da mente. As pequenas diferenças, como aparecem em qualquer conjunto
de indivíduos são negligenciadas ou consideradas como peculiaridades sem significado
particular, embora por vezes sugestivas de sua ascensão a partir de formas inferiores. O
interesse centra-se sempre no indivíduo como um tipo, e no significado de sua aparência
em funções de um ponto de vista morfológico, fisiológico ou psicológico.

Para o antropólogo, ao contrário, o indivíduo aparece apenas como um importante


membro de um grupo racial ou social. A distribuição e a escala das diferenças entre
indivíduos, e as características determinadas pelo grupo a que cada indivíduo pertence
são os fenômenos a serem investigados. A distribuição das características anatômicas,
das funções fisiológicas e das reações mentais são o objeto dos estudos antropológicos.

59
Pode-se dizer que antropologia não é uma única ciência, pois o antropólogo
pressupõe um conhecimento da anatomia, da fisiologia e da psicologia do indivíduo, e
aplica esse conhecimento aos grupos. Cada uma dessas ciências pode ser e está sendo
estudada a partir de um ponto de vista antropológico.

O grupo, e não o indivíduo, é sempre a principal preocupação do antropólogo.


Podemos investigar uma raça ou grupo social no que diz respeito à distribuição do
tamanho do corpo, medido pelo peso e estatura. O indivíduo é importante apenas como
um membro do grupo, pois nós estamos interessados nos fatores que determinam
a distribuição de formas ou funções no grupo. O fisiologista pode estudar o efeito do
exercício extenuante sobre a função do coração. O antropólogo aceita esses dados
e investiga um grupo em que as condições gerais de vida provocam um exercício
extenuante. Ele está interessado no seu efeito sobre a distribuição da forma, função
e comportamento entre os indivíduos que compõem o grupo ou em relação ao grupo
como um todo.

O indivíduo se desenvolve e atua como um membro de uma raça ou um grupo


social. Sua forma física é determinada pela sua ancestralidade e pelas condições em
que ele vive. As funções do corpo, quando controladas pela configuração corporal,
dependem das circunstâncias externas. Se as pessoas vivem por opção ou necessidade,
em uma dieta exclusiva de carne, as suas funções corporais serão diferentes das de
outros grupos com a mesma constituição que vivem com uma dieta puramente vegetal;
ou, inversamente, diferentes grupos raciais que se alimentam da mesma forma pode
mostrar um certo paralelismo no comportamento fisiológico. Muitos exemplos podem
ser dados para demonstrar que as pessoas essencialmente com a mesma descendência
se comportam diferentemente em diferentes tipos de configuração social. As reações
mentais dos indígenas do planalto ocidental, um povo de cultura simples, difere das dos
antigos mexicanos, um povo da mesma raça, mas de organização mais complexa.

Os camponeses europeus diferem dos habitantes de grandes cidades; os norte-


americanos descendentes dos imigrantes diferem de seus antepassados europeus;
os Noruegueses Vikings diferem dos fazendeiros dos estados noruegueses; o romano
republicano de seus degenerados descendentes do período imperial; o camponês russo
antes da revolução do mesmo camponês após a atual revolução.

Os fenômenos da anatomia, da fisiologia e da psicologia são favoráveis a um


tratamento individual não antropológico, pois parece teoricamente possível isolar o
indivíduo e formular os problemas de variação de forma e função, de tal maneira que
o fator social ou racial é aparentemente excluído. Isto é absolutamente impossível
em fenômenos basicamente sociais em seu conjunto, tais como a vida econômica, a
organização social de um grupo, ideias religiosas e artísticas.

60
O psicólogo pode tentar investigar os processos mentais da criação artística.
Embora os processos possam ser fundamentalmente o mesmo em toda a parte, o próprio
ato de criação implica que não estamos a lidar apenas com o artista como um criador,
mas também com a sua reação à cultura na qual ele vive, e de seus companheiros para
os quais o seu trabalho foi criado.

O economista que tenta desvendar os processos econômicos deve analisar o


grupo social, e não os indivíduos. O mesmo se pode dizer do pesquisador da organização
social. É possível tratar a organização social a partir de um ponto de vista puramente
formal, para demonstrar, através de uma análise cuidadosa, os conceitos fundamentais
que lhe são subjacentes. Para o antropólogo é este o ponto de partida para uma reflexão
dos efeitos dinâmicos da organização tal como se manifestam na vida do indivíduo e
do grupo.

O pesquisador em linguística pode investigar a "norma" de expressão linguística


num determinado momento e os processos mecânicos que dão origem a alterações
fonéticas; a atitude psicológica expressada na língua; e as circunstâncias que causam
mudanças de significado. O antropólogo é mais profundamente interessado no aspecto
social do fenômeno linguístico, na linguagem como um meio de comunicação e na
inter-relação entre linguagem e cultura.

Em suma, quando se discutem as reações do indivíduo aos seus companheiros


somos obrigados a concentrar a nossa atenção sobre a sociedade em que vive. Não
podemos tratar o indivíduo como uma unidade isolada. Ele deve ser estudado em seu
ajuste social, e a questão é relevante se as generalizações possíveis através de uma
relação funcional entre dados sociais gerais e os padrões e expressão de vida individual
podem ser descobertas; ou seja, se alguma lei existente geralmente válida governa a
vida da sociedade.

Uma investigação científica deste tipo está preocupada apenas com as inter-
relações entre os fenômenos observados, da mesma forma que a física e a química
estão interessados nas formas de equilíbrio e movimento da matéria, tal como aparecem
aos nossos sentidos. A questão da utilidade do conhecimento adquirido é totalmente
irrelevante. O interesse do físico e do químico centra-se no desenvolvimento de uma
completa compreensão da complexidade do mundo exterior. A descoberta tem valor só
do ponto de vista do lançamento de nova luz sobre os problemas gerais destas ciências.
A aplicabilidade da experiência de problemas técnicos não diz respeito ao físico. O que
pode ser de grande valor em nossa vida prática, não necessita ser interessante para ele,
e o que não tem qualquer valor em nossas ocupações diárias lhe pode ser de grande
valor. A única avaliação das descobertas que podem ser admitidas pela ciência pura é o
seu significado na solução de problemas abstratos gerais.

61
Embora este ponto de vista da ciência pura seja igualmente aplicado aos
fenômenos sociais, é facilmente reconhecido que estes se referem a nós mesmos, pois
quase todos os problemas antropológicos tocam na maioria de nossas intimidades.

O curso do desenvolvimento de um grupo de crianças depende de sua


ascendência racial, da condição econômica dos seus pais e de seu bem-estar geral.
O conhecimento da interação desses fatores pode dar-nos o poder de controlar o
crescimento e garantir as melhores condições de vida para o grupo. Todas as estatísticas
vitais e sociais estão tão intimamente ligadas às políticas a serem adotadas ou a serem
descartados que não é muito difícil perceber por que o interesse em nossos problemas,
quando considerados apenas a partir de um ponto de vista científico, está relacionado
com a prática valores que atribuímos aos resultados.

É objeto de as páginas seguintes discutir problemas da vida moderna à


vista dos resultados dos estudos antropológicos a partir de um mero ponto de vista
puramente analítico. Para isso, será necessário adquirir clareza em relação a dois
conceitos fundamentais: raça e estabilidade da cultura. Estes serão discutidos nos
seus devidos lugares.

FONTE: BOAS, Franz. O que é antropologia? Revista Ensaios: “Extensões”, n. 5, v. 1, 2º semestre


de 2011. Disponível em: <http://www.uff.br/periodicoshumanas/index.php/ensaios/article/
download/318/562>. Acesso em: 28 maio 2015. Texto traduzido por Breno Rodrigo de Oliveira
Alencar e extraído do livro Anthropology and Modern Life de Franz Boas, editado em 1962 pela
W. W. Norton & Company, Inc., Nova York.

62
RESUMO DO TÓPICO 4
• Neste tópico nós aprendemos que o trabalho de campo é um importante aspecto
do ofício do antropólogo, verdadeiro rito de iniciação da profissão, e consiste em
recolher dados empíricos acerca da cultura estudada in loco, isto é, em seu local
de ocorrência.

• Também vimos que uma prática distintiva do fazer antropológico é a observação


participante, que consiste em viver como o povo, e não somente com o povo,
estudado, procurando o antropólogo vivenciar o maior número possível de aspectos
da cultura que estuda, participando junto com a população pesquisada das atividades
desempenhadas por ela.

63
AUTOATIVIDADE
Responda às seguintes perguntas:

1 O trabalho de campo é o momento daquilo que acontece na pesquisa


antropológica?

2 Qual a atitude necessária por parte do antropólogo em relação à cultura que pesquisa
que se mostra fundamental para um bom exercício da observação participante?

64
UNIDADE 2 —

AS ESCOLAS ANTROPOLÓGICAS
E OS GRANDES TEMAS
DA DISCIPLINA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• apresentar as diferentes escolas antropológicas e suas múltiplas abordagens, por


meio de uma perspectiva cronológica;

• destacar os principais representantes das escolas antropológicas e suas principais


contribuições ao caampo de estudo;

• apresentar as principais questões da Antropologia e como elas contribuem para a


compreensão do fenômeno da vida em sociedade.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer dela, você encontrará
autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – ESCOLAS ANTROPOLÓGICAS: EVOLUCIONISMO, DIFUSIONISMO E ESCOLA


DA CULTURA E PERSONALIDADE
TÓPICO 2 – ESCOLAS ANTROPOLÓGICAS: FUNCIONALISMO, ESTRUTURAL-
FUNCIONALISMO, ESTRUTURALISMO, NEOEVOLUCIONISMO E PÓS-MODERNISMO
TÓPICO 3 – GRANDES TEMAS DA ANTROPOLOGIA: UNIÃO, CASAMENTO
E PARENTESCO

CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

65
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 2!

Acesse o
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66
UNIDADE 2 TÓPICO 1 —
ESCOLAS ANTROPOLÓGICAS: EVOLUCIONISMO,
DIFUSIONISMO, E ESCOLA DA CULTURA
E PERSONALIDADE

1 INTRODUÇÃO
Como pudemos verificar na Unidade 1 deste caderno de estudos, a Antropologia
é uma ciência social que estuda o comportamento humano e seu desenvolvimento,
tanto do ponto de vista cultural quanto social e biológico. Ela é uma ciência relativamente
nova, que se institucionalizou somente no século XIX, mas que possui raízes que datam
das primeiras grandes navegações.

Desde as primeiras incursões para as novas terras conquistadas, os viajantes


realizaram registros de seus achados, tanto do ponto de vista dos aspectos físicos e
ambientais, quanto da cultura dos povos. Elementos como a língua, a religião, a cor da
pele, os hábitos alimentares, foram sendo descritos, pelos colonizadores, a partir de um
olhar de estranhamento e comparação com a sua cultura própria, ou seja, a partir de um
olhar etnocêntrico. Esse período é conhecido como Literatura Etnográfica e durou entre
os séculos XVI e XIX.

NOTA
Literatura Etnográfica: Trata-se de relatos de viagens (cartas, diários, relatórios
etc.) feitos por missionários, viajantes, comerciantes, exploradores, militares,
administradores coloniais etc. Descrições das terras (fauna, flora, topografia)
e dos povos “descobertos” (hábitos e crenças). Primeiros relatos sobre a
alteridade. Fonte: Texto adaptado de: Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/
da/vagner/antropo.html>. Acesso em: 20 jul. 2015.

Para compreender o desenvolvimento da Antropologia como disciplina e como


campo de conhecimento, é necessário conhecer a origem histórica destes estudos e
suas diferentes matrizes teóricas. Assim como outras ciências sociais, a Antropologia
possui objetos e métodos próprios que foram sendo construídos ao longo de sua
trajetória. Por este motivo, neste tópico vamos nos concentrar nas principais correntes
teóricas, iniciando pelo Evolucionismo.

67
2 A ESCOLA EVOLUCIONISTA
Você já ouviu falar sobre a Teoria da Evolução das Espécies do naturalista
Charles Darwin? Esta foi uma das teorias que mais influenciou o campo das Ciências
Sociais, no século XIX. Vejamos a seguir:

A Escola Evolucionista é fortemente influenciada pelas descobertas das outras


ciências, como o caso da biologia. As teses de Charles Darwin (1809-1882), por exemplo,
sobre a Evolução das Espécies, a partir de pesquisas efetuadas nas ilhas Galápagos –
Oceano Pacífico –, influenciaram profundamente as ciências sociais no século XIX,
entre elas a antropologia. Darwin concluiu que para sobreviverem as espécies animais
se adaptavam ao meio em que viviam e que os mais fortes seriam aqueles que melhor
se adaptassem, e os mais fracos estariam condenados a se extinguirem. Pesquisando
os animais dessas ilhas, chegou à conclusão de que geneticamente poderiam todos
os seres vivos descender de uma única existência microbiana primária e que na luta
pela sobrevivência se transformariam biologicamente de forma que se passaria essa
herança genética às próximas gerações. Portanto, essas teses agradavam ao homem
europeu, que se enxergava como mais desenvolvido e civilizado, no topo da escala de
uma linha de evolução única que selecionava o mais forte. As comunidades diferentes
dos territórios colonizados eram, nesta escala, inferiores e, portanto, passíveis de serem
dominados e explorados. Na melhor das hipóteses, essas comunidades inferiores nos
mostravam como havíamos evoluído e como poderíamos, se assim desejássemos,
auxiliá-los a se desenvolverem para se equipararem a nosso estágio de evolução.

Evidentemente, desde cedo os antropólogos mais isentos e comprometidos


com o estudo empírico desses povos perceberam que o “diferente” não evidenciava
exatamente “inferioridade”, mas mais uma forma específica de se adaptar ao meio
natural circundante. Ainda assim, por muito tempo, ficou a ideia de que, se tivessem
condições ambientais propícias, esses grupos humanos avançariam na escala de
desenvolvimento técnico e cultural até chegarem ao  status  dos povos europeus
“mais desenvolvidos”. A  Escola Evolucionista  está profundamente envolvida com
esta ideia de que,  em certas condições de convívio com a natureza, os grupos
humanos se desenvolvem mais ou menos rapidamente em uma mesma direção,
do mais simples para o mais complexo, do inferior para o superior, do atrasado para
o desenvolvido, sendo esta direção sempre determinada pelas tecnologias que se
conseguem desenvolver na inexorável luta pela sobrevivência material.

Fonte: Disponível em: <http://www.geocities.ws/unigalera1/AntropologiaEscolasV.html>.


Acesso em: 30 jul. 2015.

68
Na Antropologia, o pensamento evolucionista é inaugurado no final do século XIX,
mas antes disso, alguns estudiosos já discutiam elementos relativos ao desenvolvimento
das culturas, como Platão, Lucrécio, Vico, Hegel e outros. Eles acreditavam que as
culturas se desenvolviam por meio de um processo evolutivo. Essa informação indica
que a semente do pensamento evolucionista é ainda anterior à teoria da evolução das
espécies de Darwin.

GIO
De maneira geral, o conceito de Evolucionismo se refere a uma corrente
de pensamento que compreende a reprodução das sociedades humanas
como resultado de um processo evolutivo, que tem como base mudanças
progressivas que ocorrem lentamente e que são influenciadas pelo meio
ambiente no qual habitam.

Desta maneira, todas as sociedades estariam inseridas em uma única narrativa


histórica e em um único processo de desenvolvimento social. Lembrando que este
desenvolvimento estava baseado no padrão de sociedade europeia. Dessa maneira,
os estágios se dariam sempre de culturas mais atrasadas, consideradas selvagens/
primitivas, para culturas intermediárias e, na sequência, para as sociedades mais
desenvolvidas, como a europeia. Ou seja, esses estágios eram diferenciados a partir da
comparação da sociedade europeia com as “outras”, nas mais diferentes instituições
sociais, como a religiosidade, os sistemas políticos, a economia, a tecnologia e outras.

As instituições sociais e os costumes diferentes do modelo europeu eram


considerados como “sobrevivência” do passado, como atraso na escala evolutiva.

Como exemplo de desenvolvimento evolutivo, podemos pensar a alteração


gradativa de sociedades caçadoras e coletoras para sociedades agricultoras, ou
podemos imaginar o processo de mudanças ocorridas desde os primeiros instrumentos
utilizados para a agricultura, em relação aos instrumentos atuais.

69
FIGURA 1 - REPRESENTAÇÃO DO EVOLUCIONISMO SOCIAL

FONTE: <http://www.materiaincognita.com.br/cooperacao-em-redes-sociais-acelerou-a-
evolucao-humana/#axzz3hIiNGK6Y>. Acesso em: 20 jul. 2015.

3 PRINCIPAIS ANTROPÓLOGOS EVOLUCIONISTAS E


SUAS TEORIAS SOCIAIS

3.1 LEWIS HENRY MORGAN


Um dos mais conhecidos antropólogos evolucionistas era norte-americano e
chamava-se Lewis Henry Morgan. Ele nasceu em uma fazenda no Estado de Nova York
no ano de 1818. Ele se formou em Direito e teve papel ativo na política local. Foi um dos
primeiros defensores dos índios americanos, especialmente os iroqueses, com os quais
conviveu durante algum tempo.

GIO
Os iroqueses foram um grupo  nativo  da América do Norte  que viveu na
região dos Grandes Lagos, ao sul de Ontário, no  Canadá, onde hoje é o
Estado de Nova York, nos Estados Unidos. Eram cinco nações — caiugas,
mohawks, oneidas, onondagas e sênecas — que constituíam a Confederação
Iroquesa. Disponível em: <http://escola.britannica.com.br/article/487811/
iroqu%C3%AAs>. Acesso em: 21 jul. 2015.

Por conhecer a realidade dos índios e também do fluxo de imigração de europeus


para o país, compreendeu que logo a cultura dos nativos poderia ser extinta. Por este
motivo, realizou estudos e registros de boa parte da cultura iroquesa. Atualmente é
considerado um dos fundadores da Antropologia Moderna.
70
FIGURA 2 - LEWIS HENRY MORGAN

FONTE: <http://aventar.eu/2010/06/25/o-comeco-dos-comecos-lewis-morgan/>.
Acesso em: 25 jul. 2015.

A obra que destaca sua tendência evolucionista e também a mais importante se


chama Ancient Society – A Sociedade Primitiva, de 1877. Neste livro, Morgan descreve
detalhadamente a história da humanidade e a evolução da sociedade. A partir da
descoberta de restos humanos junto com ossos de animais extintos, em meados do
século XIX, ele mostrou que a existência da espécie humana era muito anterior ao que
se pensava até então. Nesse livro, Morgan se dispôs a reconstruir a pré-história.

Para levar a cabo a reconstrução da história da humanidade, Morgan partiu de


dois pressupostos:

1- A história poderia ser reconstruída por deduções teóricas, obedecendo a um padrão


lógico de transformação das instituições. Por exemplo, a promiscuidade tinha sido
necessária na história da humanidade para que houvesse o surgimento da família
nuclear e monogâmica, como o resultado de um processo evolutivo.
2- O conhecimento disponível sobre os selvagens contemporâneos representa
evidências do passado das nações civilizadas.

Seu livro organiza o passado cultural da humanidade em três grandes etapas


evolutivas: Selvageria, barbárie e civilização. A estas etapas Morgan acrescenta
subetapas, que utiliza para compreender o processo evolutivo das sociedades, tomando
por base as técnicas de subsistência que eram utilizadas de forma progressiva nas
diferentes culturas. Vejamos a seguir o quadro adaptado do Manual de Antropologia
Cultural, de Barrio (2005).

71
QUADRO 1 - ETAPAS EVOLUTIVAS DE LEWIS HENRY MORGAN.

Flechas

Fonte: Adaptado de Barrio (2005, p. 74).

Morgan ainda divide as duas primeiras fases de desenvolvimento em três, sendo


configurado seu esquema evolutivo da humanidade em sete períodos:

Selvageria

I- Etapa inferior de selvageria: desde a infância da humanidade até o início do próximo


período.
II- Estágio intermediário de selvageria: Refere-se à aquisição de uma base de
subsistência (pesca) e conhecimento do uso do fogo.
III- Estágio superior de selvageria: Refere-se ao período em que ocorre a invenção de
artefatos de caça e pesca, como o arco e a flecha.

Barbárie

IV- Estágio da barbárie, que se refere à invenção da arte da cerâmica.


V- Estágio intermediário da barbárie, que se refere à domesticação de animais no
hemisfério oriental e ocidental, a partir de cultivo de milho e plantas para irrigação,
com o uso de adobe e pedra.
VI- Estágio superior da barbárie, que se refere ao período a partir da invenção de
fundição de minérios de ferro e do uso de instrumentos de ferro.

Civilização

VII- Estágio que ocorre desde a invenção do alfabeto fonético e do uso da escrita, até o
presente momento.

Nesse sentido, Morgan vai demarcando os processos pelos quais as sociedades


menos evoluídas realizam a passagem para estágios mais desenvolvidos.

Além disso, Morgan parte da hipótese de que os seres humanos seriam


inicialmente promíscuos sexualmente e que essa conduta foi sendo alterada
de acordo com o processo evolutivo. Vejamos o que diz Barrio (2005) sobre a
interpretação de Morgan:

72
Se os primatas em grande parte são promíscuos, e o homem civilizado
é estritamente monogâmico, a evolução não pôde ser mais que uma
progressiva limitação das possibilidades de escolha sexual humana.
O tabu do incesto é crucial neste desenvolvimento e se irá opondo
e ampliando devido a que, segundo Morgan, as sociedades se foram
dando conta das vantagens genéticas de não realizar matrimônios
consanguíneos e por isso foram desprezando e proibindo. (BARRIO,
2005, p. 75).

Morgan compreende que houve alteração nas relações de matrimônio, passando


de relações poligâmicas para relações monogâmicas. Nesse sentido, a interpretação dos
sociólogos clássicos, Karl Marx e Friedrich Engels, nos ajuda a compreender o fenômeno,
quando eles afirmam que a introdução do pastoreio e da propriedade privada contribuiu
para a afirmação das relações monogâmicas, uma vez que a poligamia geraria divisão
de propriedades, com as demais famílias.

Morgan exerceu influência considerável sobre a antropologia posterior,


especialmente sobre os estudos relacionados com o parentesco,
mas também sobre os materialistas culturais americanos e outros
antropólogos evolucionistas no século XX. Sociólogos também o liam,
porém, quando Marx, quase no fim de sua vida, descobriu Morgan,
ele e seu companheiro Friedrich Engels tentaram integrar as ideias
de Morgan em sua própria teoria revolucionária, pós-hegeliana. Os
resultados incompletos desta tentativa foram publicados por Engels
em The Origin of the Family, Private Property, and the State, em 1884,
o ano seguinte à morte de Marx. (ERIKSEN, 2012, p. 31).

Ao mesmo tempo em que Morgan realizava seus estudos em antropologia, outros


autores também estavam concentrados em compreender as diferentes sociedades
humanas e seu desenvolvimento. Alguns trabalhos eram muito similares ao que Morgan
desenvolvia e outros eram completamente diferentes. Na Europa, os países que se
destacaram nos estudos antropológicos neste período foram Alemanha e Inglaterra.
Vejamos a seguir os estudos de Tylor, um dos grandes teóricos do evolucionismo inglês.

3.2 EDWARD BURNET TYLOR


Um dos grandes antropólogos deste período foi Edward Burnet Tylor. Ele era
britânico, nascido em Londres, em uma família abastada de comerciantes. Tylor não
concluiu os estudos devido às suas convicções religiosas (Educação Quaker). Trabalhou
no comércio com seu pai e irmão durante algum tempo, mas logo, acometido de uma
doença, viajou para recuperação em Cuba. Lá conheceu o etnólogo Henry Christy e com
ele viajou por Cuba e México por alguns anos, realizando observações e estudos.

Mais tarde, quando retornou à Inglaterra, em 1896, foi nomeado o primeiro


professor britânico de Antropologia na Universidade de Oxford.

73
FIGURA 3 - EDWARD BURNET TYLOR

FONTE: <http://www.biografiasyvidas.com/biografia/t/tylor.htm>. Acesso em: 26 jul. 2015.

Tylor definiu a antropologia como a ciência da cultura e desenvolveu uma


teoria para compreender como ocorre o processo de desenvolvimento dela. Para o
autor, a cultura evolui num processo linear e uniforme, sendo que algumas culturas
não conseguem acompanhar esse processo e permanecem paradas. Enquanto outras
estariam em pleno auge do progresso, como a sociedade europeia.

A partir da ideia de linearidade e uniformidade, de acordo com Barrio (2005),


Tylor procura explicar o desenvolvimento cultural religioso, analisando o processo de
crença e religiosidade dos povos.

Tylor acreditava que todas as religiões ou crenças, das sociedades ditas


civilizadas (fossem do passado ou do presente), possuíam seu equivalente nos grupos
humanos considerados primitivos ou arcaicos. Para Tylor, na prática, isso significava
que as sociedades civilizadas não haviam inventado nada novo nas religiões, mas sim
apenas realizado pequenas adaptações em crenças já existentes de seus antepassados,
de tempos remotos.

Um exemplo disso diz respeito à ideia de reencarnação da alma. Para Tylor,


de acordo com Rosa (2010), “a metempsicose, ou seja, a transmigração da alma,
era uma crença que se encontrava tanto em povos selvagens, da África, como em
populações civilizadas da Ásia meridional, por exemplo”. Tylor reconhecia e enfatizava
esses fundamentos como a pré-história da fé. O que se pode perceber é que não havia
a alteração/substituição de uma crença por outra, mas a permanência de mesmas
crenças, com pequenas adaptações, éticas, morais etc.

Para compreender a gênese da religião, ou seja, a ideia que fundamentou a


religião primitiva, Tylor se baseou em um conceito chamado animismo.

74
Para Tylor, o animismo nasceu como culto aos antepassados mortos
para passar depois a ser culto a todo o tipo de alma ou espírito
abstrato. Da experiência do sonho em que o corpo permanece imóvel
e inerte, mas em que se dão experiências às vezes muito vívidas,
o primitivo “devia” inferir que depois da morte, embora o corpo
fosse destruído, poderia continuar a existir sob alguma forma. Esta
crença na existência de espíritos imateriais é a base do animismo
que, segundo Taylor, foi se generalizando cada vez mais até que se
foram associando os espíritos a algum fenômeno da natureza. O
culto à natureza, rios, fontes, raios, vento, fogo, etc., é outro estágio
dentro da evolução das crenças que deu origem, por progressiva
antropomorfização, ao politeísmo característico de sociedades
como a egípcia, grega e romana. Do politeísmo passa, finalmente, ao
monoteísmo por depuração e progressiva racionalização da ideia de
divindade. (BARRIO, 2005, p. 79).

O termo animismo vem da palavra latina “ânima”, que significa “alma”. Esse
termo remete à ideia de que todas as crenças, religiões e demais expressões espirituais
possuem uma característica fundamental comum, que é a presença da “alma”. Dito de
outra forma, Rosa (2010) relata que Tylor acreditava que, entre todos os artigos de fé, o
elemento “alma” tinha constituído na pré-história uma espécie de protótipo a partir do
qual tinham sido forjadas todas as outras crenças.

Por meio de suas inúmeras pesquisas etnográficas, Tylor fez o levantamento


das ideias relativas ao termo alma, entre as variadas tribos e grupos sociais com os
quais teve contato, conforme descreve Rosa (2010, p. 300):

Alma é uma imagem humana, imaterial, uma espécie de vapor, uma


nuvem, uma sombra. É a causa da vida e do pensamento no indivíduo
que ela anima. É dona da consciência e da vontade do seu possuidor
corporal, presente ou passado. Pode deixar o corpo junto de si e
viajar rapidamente. É geralmente impalpável e invisível, mas também
suscetível de manifestar alguma propriedade física. Aparece aos
homens durante o sono, como um fantasma separado do corpo, mas
conservando a sua aparência. Após a morte do corpo, ela continua
a existir e a aparecer e tem a faculdade de entrar, dominar e agir no
corpo de outros homens, animais e mesmo em objetos inanimados.

Havia duas concepções básicas para a construção da ideia de alma, na visão de Tylor:

1- A personificação da natureza, na medida em que se atribui alma aos elementos


externos, como animais, plantas, montanhas, terra etc.
2- Noção de espírito/alma separado do corpo.

De maneira geral, em sua obra mais importante, Primitive Culture – Cultura


Primitiva (1871), ele propôs uma síntese da sua teoria evolucionista, que em muitos
pontos se aproximava dos pensamentos de Morgan, uma vez que os dois se apoiavam
na explicação material para compreender o processo evolutivo das diferentes culturas.
Uma das contribuições mais importantes de Taylor para os antropólogos atuais é o
conceito de cultura, que permanece coerente ainda hoje.

75
CULTURA, ou civilização, tomada em seu sentido amplo, etnográfico,
é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte,
moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos
adquiridos pelo homem como membro da sociedade. (ERIKSEN;
NIELSEN, 2012, p. 35).

Outros autores evolucionistas poderiam ser discutidos neste tópico,


mas acreditamos que as perspectivas de Morgan e Tylor foram suficientes para
compreender o sentido e as principais características da Antropologia Evolucionista
ou Evolucionismo Social.

4 A ESCOLA DIFUSIONISTA
O Difusionismo teve início no início do século XIX e refere-se a um conjunto
de teorias que criticou a teoria evolucionista e opôs-se ao entendimento de que as
culturas se desenvolvem de forma linear para todas as sociedades. Os antropólogos
difusionistas acreditavam que a cultura se constrói de forma multidimensional e provém
de outras culturas.

Difusão é um processo, na dinâmica cultural, em que os elementos


ou complexos culturais se difundem de uma sociedade para outra.
As culturas, quando vigorosas, tendem a se estender a outras, sob a
forma de empréstimo mais ou menos consistente. A difusão de um
elemento da cultura pode realizar-se por imitação ou por estímulo,
dependendo das condições sociais, favoráveis ou não, à difusão. O
tipo mais significativo de difusão é o das relações pacíficas entre os
povos, numa troca contínua de pensamentos e invenções. (MARCONI,
2001, p. 64).

Para reconhecer a escola difusionista é necessário levar em conta três


postulados básicos. São eles:

a) Método Histórico: A antropologia difusionista trabalha com o método de reconstituição


histórica, que observa o passado e o presente.
b) Pesquisa de Campo: Ocorre de forma extensiva e é altamente aplicada, por meio de
coleta de dados, principalmente de dados primários.
c) Formulação de Conceitos: Enriquecimento da teoria e surgimento de vários termos/
conceitos, utilizados ainda hoje na antropologia.

O difusionismo predominou entre os anos 1900 a 1930, sendo que na década de


20 teve expressivo reconhecimento. Essa escola antropológica pode ser dividida em três
correntes de pesquisa: A escola hiperdifusionista inglesa, que possui como expoentes
os autores G. E Smith e W. J. Perry; a escola histórico-cultural alemã-austríaca, que tem
como defensores os autores F. Grabner e W. Schmidt; e a escola histórico-cultural norte-
americana, que possui como referência o importantíssimo antropólogo Franz Boas.

76
4.1 O DIFUSIONISMO INGLÊS: A ESCOLA HIPERDIFUSIONISTA
Os primeiros a criticar a corrente evolucionista e também os mais importantes
autores da escola hiperdifusionista, ou heliocêntrica, foram: J. Perry e Elliot Smith. Esta
escola é considerada hiperdifusionista, porque muitos de seus integrantes defendiam
que havia um só foco cultural para todas as culturas avançadas da Terra, a egípcia.

Essa premissa baseava a atividade de pesquisa de J. Perry, pois, de acordo com


Barrio (2005), “ele concebeu uma teoria segundo a qual há 4000 mil anos todas as
culturas do planeta possuíam uma mesma cultura, pouco desenvolvida”. Para o autor, à
beira do rio Nilo, devido a condições climáticas propícias, a agricultura, foi possível uma
revolução cultural, que aos poucos se espalhou para outras culturas, por meio de um
processo de difusão.

Esses autores foram influenciados pelas descobertas arqueológicas no Egito,


que demonstravam uma cultura bastante desenvolvida. Além disso, por compreender
que os egípcios viajavam grandes distâncias à procura de ouro e pedras preciosas,
presumiram que os egípcios também difundiam aspectos de sua cultura e suas
invenções a outros locais do planeta, alcançando lugares como a América Central e
ilhas do Oceano Pacífico. Por fim, sem um critério rigoroso de avaliação, concluíram que
os costumes egípcios foram amplamente difundidos por todo o mundo.

Muito embora os autores tenham aprofundado seus estudos da difusão cultural,


o mesmo não fizeram com relação ao contexto histórico, do ponto de vista da cronologia
dos eventos ocorridos. Por este motivo, talvez, não tiveram tantos adeptos.

Vejamos a seguir os dogmas que fundamentam a teoria de Elliot Smith, de


acordo com Barrio (2005):

1- A cultura surge só sob circunstâncias exepcionalmente favoráveis, já que o


homem é pouco criativo. É quase impossível que haja culturas distintas de
modo independente.
2- As circunstâncias descritas se deram no antigo Egito, por isso a cultura de outras
regiões, excetuando aspectos singelos, deve-se ao resultado da difusão desta
superior civilização.
3- A civilização se vai diluindo ao propagar-se a zonas marginais. A decadência é
uma fase importante na história humana.

77
A teoria difusinista da cultura, de Elliot Smith, foi criticada principalmente pelo
dogmatismo de seus pressupostos e também por ser pouco empírica. Por outro lado,
pode-se depreender que o hiperdifusionismo foi uma teoria alternativa importante ao
modelo evolucionista de interpretar a constituição das diferentes sociedades. Para o
hiperdifusionismo, a cultura era interpretada como o resultado da difusão de elementos
culturais provenientes de um centro único, o Egito.

4.2 DIFUSIONISMO ALEMÃO-AUSTRÍACO


A escola difusionista alemã-austríaca também pode ser chamada de histórico-
cultural, histórico-geográfica e alemã. Seus principais representantes são: Friedrich
Ratzel, Willi Foy, Fritz Graebner e Pe. Wilhelm Schmidt. Para este estudo vamos nos ater
às contribuições de Grabner e Schmidt.

A principal caracterítica desta escola é a compreensão de que a difusão da


cultura ocorre partindo de diversos focos culturais e não apenas de um foco, como
preconizou a escola hiperdifusionista. Conforme destacam Marconi e Presotto (2001), a
característica principal do difusionismo alemão-austríaco é a visão pluralista da origem
da cultura, aceitando vários locais de evolução, que deram origem à sua totalidade.

Vejamos o que diz Fritz Graebner, importante representante desta escola, sobre
a difusão da cultura: “Nesses limitados centros primários, isolados uns dos outros, e
desenvolvendo-se independentemente, aparece uma série de complexos culturais que
denomina “círculos”. Por difusão estes “círculos” começam a expandir-se, sobrepor-se
e, inclusive, destruir-se”. (BARRIO, 2005, p. 88).

Graebner defendia que a cultura humana se desenvolveu por meio das


determinações históricas e geográficas das combinações de elementos básicos chamados
Kulturkreise (círculos culturais). Para ele, a cultura se desenvolveu em alguma parte do
interior da Ásia, o que chamou de Urkultur (centro da cultura). Esse desenvolvimento
ocorreu por um processo de difusão do centro, para as sociedades mais distantes, por
meio de círculos, cada vez mais amplos, através do processo de imigração.

Schmitdt, em seus estudos, também descreveu a cultura atual como o resultado


de uma difusão bastante complexa, que, em sentido contrário, poderia reconstruir os
círculos originais primários. O esquema de Schmidt apresenta três fases distintas,
subdivididas em nove. Este esquema apresenta certa semelhança com o esquema
trazido pelo evolucionista Lewis Henry Morgan. Vejamos o quadro a seguir, adaptado de
Marconi e Presotto (2001, p. 260).

78
QUADRO 2 – TEORIA SOBRE A DIFUSÃO DA CULTURA DE SCHMIDT

Fases Representantes
Três fases primitivas ou arcaicas Povos pigmeus, esquimós e aborígenes australianos
Três fases primeiras Povos coletores e nômades pastoris
Três fases secundárias Povos agricultores

FONTE: Adaptado de Marconi e Presotto (2001, p. 260)

A principal contribuição desta corrente de pensamento difusionista foi o


desenvolvimento da noção de “circulos culturais”, compreendidos como “um conjunto
de traços associados com um sentido”, podendo ser isolados e identificados na história
cultural, difundidos por meio das trocas.

Por outro lado, houve muitas críticas em relação a essa perspectiva teórica.
Alguns autores enfatizam que os “círculos de cultura” tratavam-se de generalizações
e que, na maioria das vezes, não foram devidamente comprovados. De acordo com os
críticos, os autores difusionistas não demonstraram qual a origem dos círculos culturais,
quando e onde existiram e como puderam ser difundidos por áreas tão distantes.

4.3 DIFUSIONISMO NORTE-AMERICANO: FRANZ BOAS E O


HISTORICISMO OU PARTICULARISMO HISTÓRICO
O Difusionismo norte-americano também recebeu o nome de historicismo
ou Particularismo Histórico. Essa corrente difusionista concentrou seus estudos
antropológicos na história da cultura e defendeu a história da cultura como elemento
de compreensão dela mesma. Dito de outra forma, Particularismo Histórico refere-se
ao entendimento de que toda a cultura possui sua própria história, que é única, e que
somente pode ser compreendida a partir do estudo de sua própria organização.

Alguns conceitos importantes, como traço cultural, complexo cultural, padrão


cultural e área cultural, que são utilizados até hoje pela antropologia, foram formulados
pelo difusionismo norte-americano.

Os principais representantes desta corrente científica são Franz Boas, Clark


Wissler e Alfred L. Kroeber. Neste caderno de estudos vamos tratar especialmente de
Franz Boas, que foi, sem dúvida, o principal representante dessa escola.

Franz Boas ainda é considerado um antropólogo muito importante na escola


da Antropologia Cultural nos Estados Unidos e na Antropologia de modo geral. Filho de
comerciantes abastados, ele nasceu na Alemanha, de onde saiu para passar anos em
expedições pelo norte e oeste do Canadá. Após suas incursões por estes países, ao
invés de voltar à Alemanha, Boas decidiu permancer na América, provavelmente porque
ficaria mais perto das comunidades estudadas por ele.
79
FIGURA 4 - FRANZ URI BOAS

FONTE: <http://www.biografiasyvidas.com/biografia/b/boas.htm> . Acesso em: 4 jul. 2015.

Em 1899, depois de ter trabalhado como editor de uma revista e, na sequência, em


uma pequena universidade, Franz Boas tornou-se professor de antropologia na importante
Universidade de Colúmbia, em Nova York. Boas, assim como muitos antropólogos de sua
época, via com desconfiança as teorias evolucionistas, e, como havia trabalhado com
professores alemães, tinha certa simpatia pelo difusionismo alemão.

Assim como outros estudiosos alemães, Boas defendia que para compreender
o processo de desenvolvimento cultural era necessário parar de fazer suposições
e generalizações, como no modelo evolucionista, mas observar empiricamente
a realidade. Para ele, a tarefa do antropólogo era observar, coletar e sistematizar
detalhadamente as culturas de forma individual. Somente após este extensivo
trabalho de campo e análise seria possível fazer alguma generalização teórica.

Ao contrário da Antropologia inglesa, que substituiu o conceito de cultura pelo


de sociedade, Franz Boas permanceu com a ideia de cultura desenvolvida por Tylor.
Para Boas, cultura é um conceito muito mais amplo do que o de sociedade. Vejamos o
que diz Eriksen (2012) sobre a opinião de Boas.

Se a sociedade é constituída de normas sociais, instituições e relações,


a cultura consiste em tudo o que os seres humanos criaram,
inclusive a sociedade – fenômenos materiais (um campo, um
arado, uma pintura...) condições sociais (casamento, famílias, o
Estado...) e significado simbólico (lingua, ritual, crença...). (grifo
da autora) A antropologia – a ciência da humanidade – dizia respeito,
bem literalmente, a tudo o que fosse humano (ERIKSEN, 2012, p. 53)

Por este motivo, Boas dividia a abordagem antropológica em quatro campos


distintos, sendo eles:

Linguística, antropologia física, arqueologia e antropologia cultural. Seus alunos


estudavam os quatro campos da antropologia e depois podiam escolher a área na
qual aprofundariam seus estudos. Obviamente que os estudos do próprio Boas eram
proeminentes, principalmente na área da antropologia cultural. 

80
GIO
Antropologia cultural: Abrange o estudo dos homens/mulheres como
seres culturais. Investiga a cultura dos povos, considerando tempo, espaço,
origem e desenvolvimento. Compara e analisa suas diferenças e semelhanças.
Se preocupa com a maneira como o comportamento humano é reproduzido
e os processos de aprendizagem.

Franz Boas era um professor atento e generoso. Ao contrário da maioria


dos antropólogos, não realizava suas pesquisas de campo de modo individual, mas
coletivamente com seus alunos e parceiros. Normalmente não permaneciam muito
tempo no campo, como alguns antropólogos faziam, uma “imersão” prolongada na
cultura de alguma sociedade. Franz Boas preferia retornar muitas vezes ao longo dos
anos, nas comunidades estudadas. Trabalhou por muitos anos com pesquisas de campo
com os inuítes e os kwakiutls da costa noroeste americana.

4.3.1 As duas principais comunidades estudadas


por Franz Boas
a) SOCIEDADE INUÍTE

Os inuítes, também chamados pelos visitantes de esquimós, são povos que


habitam a Ilha Baffin, localizada em território canadense, no Ártico. A origem deste grupo
data de 4.000 anos. As relações que desenvolveram com o ambiente inóspito resultaram
em uma cultura enraizada, que os fez desenvolver conhecimentos, habilidades e
tecnologias próprias, adaptadas ao ambiente em que vivem. No período em que foram
pesquisados por Boas, ainda viviam exclusivamente da caça, da pesca e do comércio
de peles com alguns europeus. Até 1940 ainda tinham pouco contato com o restante
do Canadá, mas atualmente recebem apoio em todas as esferas institucionais, como
escolas, saúde e governo. Sua atividade econômica está mais variada, trabalham em
vários setores, incluindo o setor de construção, as mineradoras, as empresas de extração
de petróleo e gás. Além disso, possuem atividades administrativas e no governo. No
entanto, muitos inuítes continuam a realizar a caça e pesca como incremento na renda.

81
FIGURA 5 - SOCIEDADE INUÍTE

FONTE: <http://www.nunatsiaqonline.ca/pub/photos/Qaernermiut_Inuit_on_Era_570.jpg>.
Acesso em: 20 jul. 2015.

b) SOCIEDADE KWAKIUTL OU KWAKWAKA'WAKW

Os kwakiutl são índios norte-americanos, que vivem no Canadá, ao longo das


margens dos cursos de água entre a Ilha de Vancouver e o continente. O nome kwakiutl
foi difundido por Franz Boas, e é normalmente utilizado por pessoas de fora da sociedade.
As 15 tribos que a compõem se denominam Kwakwaka'wakw (aqueles que falam a língua
Kwak’wala) - Tradicionalmente os Kwakiutls subsistiram principalmente pela pesca, caça
e coleta. Além disso, eles possuem uma tecnologia baseada em madeira, como o entalhe
de canoas, de totens e das fachadas das casas, ornadas com elementos de sua cultura.
Sua sociedade foi estratificada por categoria, que foi determinada, principalmente, pela
herança de nomes e privilégios. Os indivíduos hierarquicamente superiores possuem o
direito de cantar certas canções, usar determinadas cristas e máscaras cerimoniais. Em
2014, as 15 nações e faixas que compõem o Kwakwaka'wakw contavam com cerca de
7.700 pessoas.

FIGURA 6 - TRIBO KWAKIUTLS

FONTE: <https://www.ago.net/screening-in-the-land-of-the-head-hunters>. Acesso em: 4 ago. 2015.

82
Franz Boas via valor intrínseco na pluralidade das práticas culturais no mundo
e era profundamente cético com relação a qualquer tentativa política ou acadêmica de
interferir nessa diversidade. Ao escrever sobre a dança kwakiutl, por exemplo, ele diz que:

A dança é um exemplo da relação da cultura com o ritmo, e por isso


ela não deve ser reduzida a uma mera “função” da sociedade (como
pareciam preferir os antropólogos sociais ingleses). Em vez disso, é
preciso perguntar o que esse ritmo é para a pessoa que dança, e a
resposta só pode ser encontrada examinando os estados emocionais
que geram a são gerados pelo ritmo. (ERIKSEN, 2012, p. 54).

Por compreender as culturas como fenômenos autônomos, Franz Boas


abandonou as perspectivas deterministas sobre as influências biológicas na
composição da cultura. Nesse sentido, o autor contribuiu de forma significativa à
causa multiculturalista, uma vez que escreveu artigos sobre a questão do negro nos
EUA. Além disso, em suas pesquisas influenciou estudiosos de boa parte do mundo a
desenvolverem trabalhos com a perspectiva relativista, na perspectiva de que o que
diferencia os grupos humanos são os determinantes culturais e não biológicos.

DICAS
Para aprofundamento desta temática,
sugerimos o documentário “Estranhos
no Exterior: as correntes da tradição”,
que trata sobre a vida e o trabalho de
Franz Boas com a sociedade inuíte.
Disponível em: <https://www.youtube.
com/watch?v=zK5lYPeAbDM>. Acesso
em: 20 jun. 2015.

Franz Boas deixou um legado muito importante para os acadêmicos que


trabalharam com ele. Muitos continuaram seus estudos e outros fundaram novas
escolas de pensamentos. Ruth Benedict, por exemplo, foi sua sucessora na Universidade
de Colúmbia e organizadora da “Escola da Cultura e Personalidade”. Além dela, uma
importante antropóloga, conhecida como Margaret Mead, continuou a obra de Benedict
e se tornou a figura pública mais influente da história da antropologia americana.
Vejamos a seguir um pouco mais sobre a Escola de Cultura e Personalidade.

83
5 A ESCOLA DA CULTURA E PERSONALIDADE OU
CONFIGURACIONISMO CULTURAL
A Escola da Cultura e Personalidade, ou Configuracionismo Cultural, é a quarta
escola de orientação antropológica em sequência histórica. Ela recebe forte influência
do Particularismo Histórico de Franz Boas, sendo considerada um prolongamento
do difusionismo norte-americano, porque também representa uma abordagem de
culturas particulares, conforme Boas defendia (uma unidade singular e individual de
estudos). Seus principais representantes foram alunos de Franz Boas. São eles Edward
Sapir, Ruth Benedict e Margareth Mead. Além da influência de Boas, essa corrente
antropológica também sofreu influências de Sigmund Freud (considerado o pai da
psicanálise) e do filósofo Friedrich Nietzsche.

A corrente historicista, sobre a qual foi fundada a Escola da Cultura e Sociedade,


se diferencia das escolas funcionalista e estruturalista, como poderemos verificar ao
longo deste tópico, porque ela julga importante reconstruir a história das culturas, para
poder analisá-la e compreendê-la, o que não ocorre nas escolas citadas, que acreditam
que observando o presente em uma sociedade é possível compreendê-la. Já a Escola
da Cultura e Personalidade procurou explicações para a individualidade das culturas
particulares. Chamou a atenção para os autores desta corrente antropológica o fato de
que, mesmo que duas culturas diferentes tomem de empréstimo um padrão cultural,
em cada uma delas ele sofrerá transformações, ou seja, o padrão cultural adquirirá
traços específicos de cada cultura, o que pode ser compreendido como um processo de
personalização do padrão cultural. Vejamos o que diz Mello (2013, p. 237):

De certo modo, os configuracionistas não desprezam a cultura.


Apenas reconhecem os indivíduos como sujeitos e objetos da
cultura. Dessa forma, as características dos indivíduos deveriam
ser idênticas às características da cultura a que pertencem. Assim
como, no indivíduo, não existem separadamente princípios religiosos,
econômicos, políticos, jurídicos, etc., mas uma resultante, uma
configuração, um “gênio”, um estilo de ser que dirige e conforma o
comportamento de todos os membros desta cultura.

A Escola da Cultura e Personalidade busca a integração e a singularidade do


todo, tendo como tema básico a INTEGRAÇÃO DA CULTURA.

Para a Escola da Cultura e Personalidade, a CULTURA seria um conjunto


integrado de elementos culturais encontrados em determinado tempo e espaço,
cujas partes devem estar de tal modo entrelaçadas que formem um todo coeso e
uniforme, pois se uma das partes for afetada, automaticamente afetará as demais.

84
Seus principais representantes desta escola tentaram interpretar as culturas
em termos psicológicos de personalidade básica. O seu paradigma central é que uma
personalidade básica é partilhada por todos os membros de uma cultura. Os autores
estabelecem uma tipologia cultural, na qual haveria culturas com padrões diferenciados.
Ruth Benedict compreende que haveria dois padrões típicos de culturas: dionisíacas
(centradas no êxtase) e apolíneas (estruturadas no desejo de moderação). Já a antropóloga
Margaret Mead identifica três tipos de cultura. São elas: pré-figurativas, pós-figurativas e
cofigurativas. Sobre essas diferentes noções de cultura, veremos a seguir.

5.1 PRINCIPAIS REPRESENTANTES DA ESCOLA DE


CULTURA E PERSONALIDADE

5.1.1 Edward Sapir (1884-1939)

Este autor foi o primeiro representante desta Escola a defender a ideia


de que todo comportamento cultural tem uma configuração inconsciente, que
nem sempre é comunicada à mente, mas que dá à cultura um feitio próprio.
Acrescentou, também, que todo comportamento é simbólico, ou seja, tem como
base os sentidos, que são compreendidos e comunicados entre os diferentes
elementos de uma sociedade.

Para Sapir, as culturas não são entidades verdadeiramente objetivas,


mas configurações abstratas de ideias e padrões de ação, que têm significados
infinitamente diferentes para os vários indivíduos do grupo em questão. Os
comportamentos culturais são simbólicos; a cultura, como a linguagem, baseia-se
em significações partilhadas por todos os membros de uma determinada sociedade.

O autor leva em consideração a linguagem dos povos, propondo, em 1921,


uma nova perspectiva para a linguagem, ao sugerir que ela influencia a forma como
os indivíduos pensam. Essa ideia foi adotada e desenvolvida durante a década de
1940 por seu ex-aluno Benjamin Lee Whorf (1897-1941), dando origem à hipótese de
Sapir-Whorf.

Para Sapir, a percepção de um observador sobre o mundo ao seu redor é


controlada de alguma forma fundamental pela linguagem que ele usa. Por exemplo,
o conceito de tempo nos tempos verbais (presente, passado, futuro). Na língua
hopi não há tempos verbais, mas marcas de diferenciação sobre relato de fatos,

85
expectativas e verdades gerais. Também para Benjamin Lee Whorf, a linguagem pode
restringir o pensamento, ou seja, a linguagem funda a realidade. Nomes de cores, por
exemplo, podem variar enormemente. Em navajo, cinza e azul têm uma só palavra;
em hebraico, há uma palavra para azul do céu e outra para azul do mar.

Texto adaptado da fonte: <home.utad.pt/...sociocultural.../TEMA%204%20%20


ANTROPOLOGIA...>. Acesso em: 10 ago. 2015.

5.1.2 Ruth Benedict (1887-1948)


A estadunidense nascida em Nova York, Ruth Benedict, foi a principal
representante da Escola da Cultura e Personalidade. Inicialmente formou-se em
Literatura Inglesa e chegou a escrever alguns livros de poemas. No entanto, ao se
dedicar aos estudos antropológicos, conheceu Franz Boas e interessou-se pelos seus
estudos. Desta forma, começou a trabalhar também com os índios norte-americanos.
A obra que melhor representa suas convicções acadêmicas chama-se “Esquemas de
Cultura”, publicada em 1934. Além dessa, outras obras podem ser destacadas, incluindo
“O Crisântemo e a Espada”, que será tratada na leitura complementar sugerida ao final
deste tópico.

FIGURA 7 – RUTH BENEDICT

FONTE: <http://www.colegioweb.com.br/biografias/ruth-benedict.html>. Acesso em: 24 jul. 2015.

Para Benedict, o todo não é apenas a soma das partes. Cada cultura possui
propósitos próprios ou molas mestras emocionais e intelectuais que entranham o
comportamento e as instituições de uma sociedade. Uma região, por exemplo, deve
ser observada como uma configuração cultural de instituições, costumes, tradições,
meios de transporte etc., dentro de certa área geográfica, com caráter próprio.

86
Benedict consagrou a expressão padrão cultural (cultural pattern),
empregando-a num sentido muito mais global do que Sapir. Para a autora, a unidade
significativa que a Antropologia deve estudar é a configuração cultural. Cada
cultura é caracterizada por configurações particulares, que se infiltram em todas
as instituições, toda a vida social, todos os comportamentos individuais. Mas um
indivíduo numa cultura domina somente o que lhe é necessário para desempenhar
papéis definidos, ocupar posições determinadas.

Em seu estudo com os índios norte-americanos Kwakiutl (o mesmo grupo


estudado por Franz Boas), Ruth Benedict (1971; 1977), seguindo ao filósofo Nietszche,
distinguiu dois tipos de culturas:

CULTURAS DE TIPO “APOLÍNEO” CULTURAS DE TIPO “DIONISÍACO”


• Ex.: Índios “pueblo” os zuni.
• Ex.: Índios das planícies, os kwakiutl.
• Conformistas.
• Ambiciosos.
• Pacíficos.
• Individualistas.
• Solidários.
• Agressivos e violentos em ocasiões.
• Respeitadores de outrem.
• Desmesura em termos afetivos.
• Comedidos na expressão dos seus
• Símbolos da emoção, a apreciação dos
sentimentos.
excessos e o prazer.
• Símbolo da lógica, a razão e a ordem.
• Destacam o êxtase.
• Destacam-se pelo seu equilíbrio.

5.1.3 Margaret Mead (1901-1978)

A antropóloga Margaret Mead graduou-se (1923-1929) na Universidade


de Colúmbia, em Nova York, onde estudou com o antropólogo Franz Boas (1858-
1942) e trabalhou no Museu Americano de História Natural (1926-1969). Além de
uma pesquisa de campo (1925) sobre a adolescência em Samoa, estudou os povos
ágrafos da Oceania e complexas sociedades contemporâneas e foi pioneira na
utilização da fotografia para documentação de pesquisa etnográfica.

Seu interesse concentrou-se em vários aspectos da psicologia e da cultura,


inclusive a infância e a adolescência, o condicionamento cultural do comportamento
sexual, o caráter nacional e a mudança cultural. Publicou importantes obras,
tais como O caráter balinês (Balinese Character, 1940), um marco na história da
antropologia, da antropologia visual em especial, Adolescência, sexo e cultura em
Samoa (1928), Crescendo na Nova Guiné (1930), Sexo e temperamento em três
sociedades primitivas (1935), e Masculino e feminino (1949). Em seus estudos,
Margaret Mead identificou três tipos de culturas:
87
a) Culturas pós-figurativas: onde os filhos aprendem, em primeiro lugar, com os pais.
O novo é uma continuação e repetição do velho, negando-se a mudança. Os velhos
e os avôs têm muita importância. A mobilidade social é reduzida e o passado forma
um continuum com o presente e o futuro. Cultura da família extensa.
b) Culturas cofigurativas: quebram o sistema pós-figurativo. Os jovens rejeitam o
modelo dos adultos e aprendem formas culturais inovadoras. Os adultos acabam
por verificar que os seus métodos são insuficientes ou pouco adequados à
formação do jovem e à sua integração na vida adulta. Os jovens conseguem a
mobilidade social por si desejada; ignoram os padrões dos adultos ou são-lhes
indiferentes. Cultura da família nuclear. Os velhos e os seus conhecimentos
deixam de ser pensados como necessários.
c) Culturas pré-figurativas: os adultos aprendem com os seus filhos. Nesta nova
sociedade, só os jovens estão à vontade, pois dominam os progressos científicos.
Em extremo, os adultos não têm descendentes e os filhos não têm antepassados.
O futuro é agora e produz-se uma quebra entre uns e outros. O que interessava
aos adultos já não interessa aos jovens.

Texto adaptado da fonte: <home.utad.pt/...sociocultural.../TEMA%204%20%20


ANTROPOLOGIA...>. Acesso em: 10 ago. 2015.

88
LEITURA
COMPLEMENTAR
CONTRIBUIÇÕES DE RUTH BENEDICT EM SEU ESTUDO:
"O CRISÂNTEMO E A ESPADA"

Neste livro, Ruth Benedict realiza um estudo antropológico sobre o Japão e


seus costumes. Alguns autores acreditam que este estudo foi encomendado pelo
governo dos Estados Unidos no período da II Guerra Mundial, para que fosse possível
compreender o povo contra o qual estavam combatendo.

Além disso, o livro explora o trabalho do antropólogo cultural e suas pesquisas.


Sabe-se que, por conta da guerra, Ruth Benedict ficou impossibilitada de trabalhar
diretamente no Japão, por isso a autora desenvolveu um método de trabalho à
distância. Ao escrever sobre ele ela defende que existem outras opções eficazes para
fazer a pesquisa antropológica, além do trabalho de campo. Esta obra, publicada em
1946, descreve como compreender uma cultura diferente, por meio de sua literatura,
recortes de jornais, filmes e arquivos, entrevistas com imigrantes etc.

Num momento em que a II Guerra Mundial estava ocorrendo, muitos antropólogos


impossibilitados de visitar países como a Alemanha nazista ou o Japão de Hirohito,
valeram-se de tais materiais culturais e puderam produzir estudos à distância. Eles
tentavam entender os padrões culturais que deveriam orientar seu ataque e esperavam
encontrar pontos fracos ou maneiras de persuadi-los de que haviam perdido.

O Japão, assim como outros países, tem as suas particularidades, e Benedict


explica que para entendê-los é preciso caminhar por todas as áreas, e ela completa
que “teria que observar a maneira como conduziam a guerra, e considerá-la, por ora,
não como um problema militar, e sim como um problema cultural” (BENEDICT, p. 12),
a partir desse ponto se poderia encontrar as respostas procuradas. Sobre o trabalho
do antropólogo nesse caso, ela explica que “o antropólogo cultural dispõe de certas
habilitações, resultantes de sua formação, que o motivam a acrescentar a sua própria
contribuição num campo rico em estudiosos e observadores”. São abordadas as
diferenças e como o antropólogo vai se acostumando com essas diferenças entre sua
cultura e a do outro, para que se use essa diferença como base do estudo.

A princípio, os  americanos  consideravam muito natural os  prisioneiros de


guerra  quererem que suas famílias soubessem que estavam vivos, e ficarem calados
quando inquiridos sobre o movimento das tropas etc. Enquanto isso, prisioneiros de
guerra japoneses, aparentemente, davam informações desse tipo facilmente e não
tentavam contatar suas famílias. Por que isso? Por que, além disso, os asiáticos não
tratavam os japoneses como libertadores do colonialismo ocidental, nem aceitavam seu
suposto óbvio lugar numa hierarquia na qual o Japão ocupava o topo?

89
Benedict desempenhou um papel fundamental na compreensão do lugar
do Imperador do Japão na cultura popular japonesa, e formulou ao presidente Franklin
D. Roosevelt uma recomendação segundo a qual, “permitir a perpetuação do governo
imperial seria imprescindível para uma eventual rendição”.

Desse texto pode-se ver uma nova maneira de se fazer a pesquisa antropológica
com eficácia, mesmo sem conseguir ir a campo buscar informações. Benedict nos
mostra como às vezes entrevistas com pessoas que já tiveram a experiência ou leituras
de outros autores podem ser suficientes para o estudo. Outro ponto refere-se a saber
o que faz do outro diferente e saber como lidar com essas diferenças. Quais são as
características (sejam elas culturais, físicas) que nos fazem distintos de outros e o que
faz um país realmente pertencer a aquele povo. “Sua finalidade é um mundo assegurado
para as diferenças, onde os Estados Unidos possam ser inteiramente americanos sem
ameaçar a paz do mundo, a França possa ser França e o Japão possa ser Japão nessas
mesmas condições”. (BENEDICT, p. 20).

Quando o livro foi publicado, um crítico escreveu que “O Crisântemo e a Espada”


“não tem credenciais, já que Benedict não teve qualquer experiência direta no Japão”, e
descreveu o livro como  “considerado superficial e claramente racista". No entanto, o
embaixador japonês fez a seguinte declaração em público:  "Em 1946, Ruth Benedict,
reconhecida antropóloga cultural americana, publicou um livro sobre o Japão intitulado
“O Crisântemo e a Espada”, que tem sido leitura obrigatória para muitos estudiosos de
temas japoneses."

Esse livro nos faz pensar as possibilidades do trabalho antropológico,


especialmente diferentes perspectivas do trabalho de campo.

Texto adaptado - Fonte: <http://cafedefita.blogspot.com.br/2012/02/literatura-ruth-benedict-e-o-


crisantemo_22.html>. Acesso: 9 ago. 2015.

90
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• Quatro das principais escolas de pensamento que fundamentam a Antropologia. São


elas: a escola Evolucionista, Difusionista, o Particularismo Histórico e a Escola da
Cultura e Personalidade.

• A escola Evolucionista teve início no final do século XIX e se refere a uma corrente
de pensamento que compreende a reprodução das sociedades humanas como
resultado de um processo evolutivo. Seus principais expoentes foram: Lewis Henry
Morgan e Edward Burnet Tylor.

• O Difusionismo teve início do início do século XIX e refere-se a um processo, na


dinâmica cultural, em que os elementos ou complexos culturais se difundem de uma
sociedade para outra.

• O Difusionismo pode ser dividido em três escolas: O Difusionismo Inglês, ou escola


hiperdifusionista/heliocêntrica; a Escola alemã-austríaca ou histórico-cultural ou
histórico-geográfica; e a Escola Norte-americana, também chamada de historicismo
ou Particularismo Histórico.

• O principal representante da Escola Norte-americana foi Franz Boas, que trabalhou


por muitos anos com os inuítes e os kwakiutls.

• A Escola da Cultura e Personalidade, ou Configuracionismo Cultural, recebe influência


de Franz Boas, pois seus principais representantes (Edward Sapir, Ruth Benedict e
Margaret Mead) foram seus alunos. Além disso, também sofreram influências de
Sigmund Freud e do filósofo Friedrich Nietzsche.

• Esta escola concebe a cultura como detentora de uma “Personalidade de base”,


partilhada por todos os membros. Os autores estabelecem uma tipologia cultural, na
qual haveria culturas com padrões diferenciados.

91
AUTOATIVIDADE
1 Do ponto de vista das escolas antropológicas, o Evolucionismo foi a primeira corrente
de pensamento a teorizar sobre o desenvolvimento das sociedades humanas,
enfatizando a cultura como um elemento impulsionador das mudanças dos padrões
culturais. Nesse sentido, Morgan foi um importante colaborador ao desenvolver a
teoria do processo evolutivo das sociedades, que consiste em organizar as fases
do desenvolvimento da cultura em três períodos: Selvageria, Barbárie e Civilização.
Com base nessas informações, analise as sentenças a seguir e classifique V para as
sentenças verdadeiras e F para as falsas.

( ) O estágio da civilização ocorre desde a invenção do alfabeto fonético e do uso da


escrita, até o presente momento.
( ) A selvageria é uma etapa que ocorre desde a infância da humanidade até a
invenção de artefatos de caça e pesca, como o arco e a flecha.
( ) O estágio da barbárie ocorre a partir do surgimento da linguagem, dos símbolos e
da escrita até a idade moderna.
( ) A selvageria se refere ao período que vai da invenção da arte da cerâmica até a
fundição de minérios e instrumentos de ferro.

Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA.


a) ( ) V – F – V – F.
b) ( ) V – V – F – V.
c) ( ) F – V – V – F.
d) ( ) V – F – F – F.

2 O difusionismo é uma escola de pensamento antropológico que surgiu no século


XIX e que se refere a um conjunto de teorias críticas ao evolucionismo, corrente
antropológica anterior a ela. De maneira geral, pode-se afirmar que os estudiosos da
escola difusionista opõem-se à ideia de que as culturas se desenvolvem de forma
linear para todas as sociedades, e defendem a noção de difusão das características
culturais. Com base nesses argumentos e de sua interpretação nesta unidade,
conceitue o termo Difusão.

92
UNIDADE 2 TÓPICO 2 -
ESCOLAS ANTROPOLÓGICAS: FUNCIONALISMO,
ESTRUTURAL-FUNCIONALISMO, ESTRUTURALISMO,
NEOEVOLUCIONISMO E PÓS-MODERNISMO

1 INTRODUÇÃO
Neste segundo tópico daremos continuidade à apresentação das diferentes
escolas antropológicas que ajudaram a construir o campo de estudos da disciplina de
Antropologia. Devemos lembrar que o desenvolvimento das ciências, de maneira geral,
sofreu alterações ao longo da história e os estudos antropológicos também refletem
estas mudanças, conforme poderemos verificar ao longo deste tópico.

2 AS ESCOLAS FUNCIONALISTA E
ESTRUTURAL-FUNCIONALISTA
O desenvolvimento da perspectiva Funcionalista e Estrutural-Funcionalista
na Antropologia foi profundamente marcado pela influência dos sociólogos franceses
Émile Durkheim e Marcel Mauss, que adotavam uma postura sincronicista em seus
estudos. Logo, esta postura também foi se impondo nos estudos de vários antropólogos,
principalmente de Malinowski e Radcliffe-Brown, os principais representantes das
Escolas Funcionalista e Estrutural-Funcionalista. Esses autores compreendiam a cultura
como sistemas sociais inter-relacionados, compondo um todo funcional.

Para os autores, o estudo da sociedade deveria ser pensado como um


organismo, observando como ocorrem os processos de interação e interdependência,
como suas partes desempenham suas funções e mantêm o organismo (sociedade)
em contínua existência.

Para o funcionalismo, a permanência de hábitos culturais ao longo do tempo


só ocorre, e só pode ser explicada, pela função que eles realizam na sociedade como
um todo. Ou seja, diferentemente do evolucionismo, o funcionalismo não acredita que
alguns traços sociais resistam por conta de um atraso na “escala social evolutiva”, mas
que essa resistência é resultado da importância da sua função para a organização social.

93
Para os seguidores da Escola Funcionalista e Estrutural-Funcionalista,
cada costume é socialmente significativo, uma vez que integra uma ESTRUTURA,
participando de um sistema organizado de atividades. Uma cultura não é
simplesmente um organismo, mas um SISTEMA. Suas partes não podem ser
plenamente compreendidas separadamente do todo, e o todo deve ser compreendido
em termos de suas partes, suas relações umas com as outras e com o sistema
sociocultural em conjunto. Qualquer traço cultural ou costume, qualquer objeto
material ou qualquer ideia, como o fogo, uma peça de cerâmica, a noção de deus
ou deuses etc., que existem no interior das sociedades, têm funções específicas e
mantêm relações com cada um dos outros aspectos da cultura para a manutenção
do seu modo de vida total. Cada costume é socialmente significativo, já que integra
uma estrutura, participando de um sistema organizado de atividades.

Fonte: <http://twixar.me/FShm>. Acesso em: 20 jul. 2015.

2.1 A ESCOLA SOCIOLÓGICA FRANCESA –


OS PRECURSORES DO FUNCIONALISMO E
ESTRUTURAL-FUNCIONALISMO
Émile Durkheim não possui trabalhos de cunho etnográfico, exceto sua
monografia sobre o totemismo australiano, mas influenciou muitos antropólogos de
sua época. Ele entendia a cultura como um organismo coletivo, cujos órgãos seriam as
instituições sociais.

Na sua área acadêmica, Durkheim escreveu, entre outros, os textos “Da


divisão do Trabalho Social” (1983) e “As regras do método sociológico” (1895). Estas
obras representaram um verdadeiro choque teórico para a comunidade das Ciências
Sociais, pois Durkheim compreendia que os fatos sociais deviam ser explicados
em termos de variáveis sociais e não por meio da psicologia ou da biologia. Para
ele, o fato social expressa um interesse verdadeiramente social, mesmo que esteja
relacionado a elementos afetivos, fisiológicos ou comportamentais.

Marcel Mauss, que era sobrinho e parceiro de trabalho de Durkheim, também


partilhava desta mesma concepção teórica. Marcel Mauss compreendia o fato social
como um fato total, que só pode ter significado a partir de outros. Este autor refere-
se à sociologia como uma ciência que estuda os comportamentos das sociedades
humanas. Em seu artigo “Ensaio sobre o dom” (1924), ele escreve sobre o que seria um
“princípio-chave” para compreender as relações sociais, que ele chama de princípio da
reciprocidade. Esse conceito será retomado mais tarde por outro antropólogo bastante
conhecido: Lévi-Strauss.

94
2.2 A ESCOLA FUNCIONALISTA E SEU PRINCIPAL
REPRESENTANTE: BRONISLAW MALINOWSKI
O antropólogo Bronislaw Malinowski era natural de Cracóvia, uma cidade
polonesa, com cerca de 853 mil habitantes. Seu pai era filólogo, motivo pelo qual se
interessou pela literatura desde cedo. Doutorou-se em Física e ficou por algum tempo
no famoso laboratório de Leipzig, na Alemanha. Mais tarde, Malinowski se apaixonou
pela antropologia, principalmente devido ao seu contato com a temática do parentesco.

Logo ele começa a realizar expedições às ilhas Trobriand, na Nova Guiné, e


de lá extrai importantes dados etnográficos. Em 1916 ele publicou, pela primeira vez,
um estudo intitulado: “Baloma, os espíritos da morte nas ilhas Trobriand”. Neste livro
ele descreve as relações existentes entre os espíritos dos defuntos (Baloma) e a vida
simbólica e festiva do povo trobriandês.

FIGURA 8 - BRONISLAW MALINOWSKI NAS ILHAS TROBRIAND, NA MELANÉSIA

Fonte: <http://twixar.me/4Shm>. Acesso em: 20 jul. 2015.

Na definição de Malinowski, conforme destaca BARRIO (2005, p. 115), “cultura


refere-se ao conjunto de tradições e objetos materiais a partir dos quais o grupo social
se mantém coeso e organizado e a partir do qual o indivíduo é moldado”. De acordo
com o autor, a cultura possui uma série de princípios organizativos que ele compreende
como conceito de “função”. De acordo com Barrio (2005, p. 116), este conceito atua em
três âmbitos principais: “a) No âmbito das relações dos costumes e instituições entre
si; b) No âmbito dos efeitos teleológicos de um costume ou prática e c) No âmbito da
conjunção de todas as práticas em favor da preservação do sistema social”.

Malinowski definiu o conceito de Função em dois níveis fundamentais: por um


lado, o conceito de função refere-se às respostas que a cultura oferece para solucionar
as necessidades básicas das pessoas, e por outro lado, as respostas que fornece para as
necessidades sociais do grupo, como, por exemplo, as relações maritais, a maternidade e
a paternidade e todas as outras relações sociais que ocorrem no grupo. Para Malinowski,
a cultura humana é o alicerce das sociedades.

95
Outra de suas importantes obras foi escrita em Londres em 1922, com o título
“Os Argonautas do Pacífico Ocidental”. Nessa obra, o autor explica o funcionamento da
economia das ilhas melanésias por meio do estudo de uma instituição fundamental,
chamada o anel “Kula”.

2.2.1 Mas o que é Kula?


De acordo com Barrio (2005), o Kula consiste em um intercâmbio circular de
objetos simbolicamente valiosos que propicia contatos entre as tribos das ilhas da
Nova Guiné. No sentido horário circulam os colares de conchas vermelhas, que os
nativos chamam de soulava, e no sentido anti-horário circulam braceletes de conchas
brancas chamados de mwali. As canoas nas quais navegam esses objetos valiosos são
delicadamente decoradas, assim como os tripulantes que levam os presentes.

FIGURA 9 – A CERIMÔNIA KULA

FONTE: <https://www.flickr.com/photos/pedro-saura/5121692352>. Acesso em: 20 ago. 2015.

Malinowski entendia que por meio deste intercâmbio estaria organizada uma rede
de relações e rituais complicados que conformariam a cultura dos povos novaguineanos.
Para Malinowski, a cultura destas sociedades compunha um mosaico, que, por qualquer
parte que se iniciasse a compreender, se chegava à compreensão do todo.

Malinowski representou para a Antropologia um marco de passagem na


qualificação e rigor da pesquisa de campo, pois até o momento a etnografia não estava
completamente consolidada. Foram vários os caminhos propostos para a pesquisa
etnográfica, desenvolvidos por Malinowski.

96
O primeiro refere-se à busca pela organização da tribo e pela anatomia de sua
cultura, que devem ser delineadas através do método da documentação concreta e
estatística, já que o objetivo fundamental da pesquisa de campo é delinear o esquema
básico da vida tribal. Por isso, torna-se importante observar todos os aspectos da
cultura nativa e anotar o maior número possível de manifestações concretas do que
é observado em um diário de campo.

O segundo caminho completa o primeiro, ao tratar dos imponderáveis da


vida real, referido aos fenômenos cotidianos que devem ser observados por meio do
acompanhamento contínuo da tribo. Assim, os diversos tipos de comportamentos
podem ser coletados através de observações detalhadas e minuciosas, possibilitadas
apenas pelo contato íntimo com a vida nativa.

O terceiro passo é denominado de corpus inscriptionum, referido à coleta de


narrativas típicas, palavras e expressões características da mentalidade nativa que
contribuem para a compreensão da sua visão de mundo. Assim, para além do esqueleto
da vida nativa, composto pelo corpo e sangue da tribo, ou melhor, pelas descrições das
manifestações, comportamentos e costumes habituais, o antropólogo deve ser capaz de
apreender o seu espírito, ou seja, o ponto de vista nativo. Procurando descobrir os modos
de pensar e sentir típicos à cultura estudada.

A partir da aplicação prática destes princípios, Malinowski rompe com uma


“antropologia de gabinete” e inaugura um novo estilo de pesquisa, pautado em um
constante diálogo entre a observação participante e as descrições etnográficas. O
método proposto por Malinowski compreende uma investigação aprofundada da
vida nativa, de modo que o etnógrafo possa compreender a organização social da
vida tribal, sintetizada através da compreensão do ponto de vista nativo.

Disponível em: <http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/


view/7104/4134>. Acesso em: 15 ago. 2015.

Malinowski passou anos com as comunidades pesquisadas e realizou suas


observações de forma a interferir minimamente em suas atividades. Ele não se
preocupou tanto com a compreensão dos fenômenos observados, quanto com a
própria observação, sistematizada e descritiva. Mesmo sem compreender as atividades
do grupo, seu objetivo foi realizar o registro, para somente depois interpretá-las.

97
2.3 TEORIA DAS NECESSIDADES HUMANAS DE MALINOWSKI
Na concepção de Malinowski, os seres humanos fazem parte de uma mesma
espécie animal, e, portanto, somente sobrevivem porque suas necessidades biológicas
são satisfeitas por meio da cultura em que vivem. Nesse sentido, as ideias de cultura
e natureza humana estão imbricadas, na medida em que, por meio das culturas, se
desenvolvem instrumentos e estratégias em busca da sobrevivência humana e social.
Por isso Malinowski elaborou uma teoria universal das necessidades humanas, segundo
a qual teríamos três categorias de necessidades fundamentais. São elas:

QUADRO 3 – NECESSIDADES HUMANAS - MALINOWSKI

Categorias de Necessidades Humanas Tipos de Necessidades Humanas


Primárias ou biológicas Nutrição, defesa, excreção etc.
Derivadas ou instrumentais Organização Econômica, educação etc.
Integrativas ou sintéticas Magia, religião, arte e outras
FONTE: Adaptado de Marconi e Presotto (2001, p. 264)

Para Malinowski, a cultura se desenvolve por meio das instituições sociais para
dar resposta às diferentes necessidades psicológicas das pessoas. Por este motivo
é que as instituições emergem na cultura, como elementos coletivos voltados às
necessidades individuais (Necessidades Humanas).

Para Malinowski, são as instituições, precisamente, os elementos reais da


cultura, e não apenas as relações ou os traços culturais, porque eles só ocorrem devido
à sua relação com as instituições à qual pertencem.

Por fim, com Malinowski, a Antropologia se torna uma ciência que adquire um
caráter de respeito aos diferentes. As perspectivas etnocêntricas tão presentes na
teoria antropológica evolucionista chegam ao fim com a introdução do pensamento de
Malinowski, que considera toda a cultura como um sistema perfeitamente organizado
em si mesmo. Para ele, as diferentes sociedades possuíam o mesmo status, descartando
a ideia de sociedades atrasadas ou primitivas, mas enfatizando as diferenças como
elementos importantes para a constituição da organização social de cada grupo.

98
FIGURA 10 - BRONISLAW MALINOWSKI NAS ILHAS TROBRIAND, NA MELANÉSIA

FONTE: <http://www.robertarnold.co.uk/seb-and-lucy/Seb%20and%20Lucy.html>.
Acesso em: 20 ago. 2015.

DICAS
Para aprofundamento desta temática, sugerimos o documentário “Estranhos
no exterior: fora da varanda”, que trata sobre a vida e o trabalho de
Bronislaw Malinowski com os habitantes de uma ilha ao leste da Nova Guiné,
chamados trobriandeses. Fonte: Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=Qn_gLroH3bQ>. Acesso em: 19 ago. 2015.

2.4 A ESCOLA ESTRUTURAL-FUNCIONALISTA:


RADCLIFFE-BROWN
O antropólogo Alfred Reginald Radcliffe-Brown nasceu em Birmingham, na
Inglaterra (1881-1955). Filho de família operária, com esforço formou-se antropólogo na
Universidade de Oxford, e teve como referência os antropólogos da época, especialmente
Rivers, importante antropólogo difusionista. Realizou seu primeiro estudo nas Ilhas
Andaman, no Golfo de Bengala, Índia, com forte influência da escola difusionista. No
entanto, com o passar do tempo, a influência dos trabalhos de Durkheim, como veremos
adiante, fez com que Radcliffe-Brown abandonasse o difusionismo, fundando no
decorrer de sua vida acadêmica a Escola Estrutural-Funcionalista.

99
FIGURA 11 – ALFRED REGINALD RADCLIFFE-BROWN

FONTE: <https://hantuem2011.wordpress.com/2013/07/25/5-aula/>. Acesso em: 3 set. 2015.

Da mesma forma como Malinowski, Radcliffe-Brown compreende a sociedade


como um sistema, no qual as relações sociais ocorrem de forma interdependente.
No entanto, a posição deste antropólogo pode ser entendida como intermediária
entre o funcionalismo e o estruturalismo. A perspectiva teórica de Radcliffe-Brown se
diferencia parcialmente da perspectiva de Malinowski porque ele considera, além da
função, a estrutura social como elemento fundamental para a manutenção do equilíbrio
social. Além disso, de acordo com Mello (2015, p. 254), “o pensamento de Radcliffe-
Brown oferece uma perspectiva mais sociológica, enquanto Malinowski apresenta uma
perspectiva mais eclética, considerando especialmente os aspectos psicológicos (teoria
das necessidades) na compreensão da realidade social”.

Os conceitos básicos da teoria de Radcliffe-Brown são “estrutura” e “função”


e sua perspectiva teórica é muito semelhante à de Émile Durkheim, especialmente
quando se refere a estes dois conceitos. Na sua compreensão sobre estrutura e função,
o autor realiza uma analogia com organismos vivos. Vejamos a seguir o que diz Mello
(2013, p. 255).

Para maior elucidação do conceito (função) é conveniente


empregarmos a analogia entre vida social e vida orgânica. Como todas
as analogias, isto deve ser feito com cautela. O organismo animal é
uma aglomeração de células e fluidos intersticiais dispostos uns em
relação com os outros, não como um todo integrado [...]. O sistema
de relações pelo qual essas unidades se relacionam é a estrutura
orgânica. Tal como os termos são empregados aqui, o organismo não
é em si a estrutura; é um acúmulo de unidades (células e moléculas)
dispostas numa estrutura, isto é, numa série de relações; o organismo
tem uma estrutura [...]. A estrutura deve, pois, ser definida como uma
série de relações entre entidades. (A estrutura de uma célula é, no
mesmo sentido, uma série de relações entre elétrons e prótons).
Na medida em que vive, o organismo mantém certa identidade de

100
suas partes constituintes. Perde algumas moléculas, ganha outras,
mas a disposição estrutural das unidades continua a mesma [...].
O conceito de “função” tal como é aqui definido implica, pois, a
noção de uma estrutura constituída de uma série de relações entre
entidades unidades, sendo mantida a continuidade da estrutura por
um processo vital constituído das atividades integrantes [...].

De acordo com Mello (2013), portanto, o que se pode depreender a respeito do


conceito de “função” é que se refere às contribuições que uma atividade do sistema
proporciona à atividade total da qual faz parte.

Dito de outra forma, a estrutura social representa as maneiras como os grupos


e indivíduos estão organizados e relacionados entre si na entidade funcional, que é a
sociedade. No centro da teoria sistêmica de Radcliffe-Brown está o conceito de sociedade,
por meio do qual, segundo Marconi e Presotto (2001), “a função de um elemento é o papel
que ele representa em toda a vida social, razão mesma da manutenção da estrutura e da
integração social. Sobre o conceito de Estrutura Social, vejamos a seguir o que nos informa
Cassiano (2012, p. 1):

Brown define  Estrutura social  como sendo a rede de relações


complexa que cria laços entre os seres humanos. Essas relações se
dão em um todo integrado, o qual ele chamou de organismo social,
fazendo uma analogia ao organismo dos seres vivos, estudado
nas ciências naturais. Em outras palavras, a estrutura social é
estabelecida por uma série de relações sociais entre os indivíduos,
em um todo integrado  de maneira organizada, com a finalidade de
garantir a estabilidade e a sobrevivência  de um determinado grupo
ou de uma determinada sociedade. Ele considera dois aspectos
relevantes para se caracterizar o termo “estrutura social”. São eles:
(a)  As relações sociais de pessoa a pessoa, como, por exemplo, a
relação de parentesco, estudada pelo próprio Radcliffe-Brown’; (b)
A diferenciação de indivíduos e de classes  e seu papel social. Na
concepção browniana  nos estudos de estrutura social, a realidade
concreta que se deve apreender é o conjunto de relações existentes
sincronicamente  que cria laços entre  os seres humanos, formando
assim uma rede complexa de relacionamento integrado dentro de
um organismo social.

Para demonstrar suas análises sobre função e estrutura social, Radcliffe-Brown


escreveu um dos seus mais importantes estudos, intitulado: “Estrutura e Função na
Sociedade Primitiva”. Nesse estudo a tendência sincronicista se acentua, assim como
a perspectiva sociológica baseada em Durkheim. Radcliffe-Brown procurou verificar
as relações básicas entre as sociedades, procurando interpretar o significado dos
mitos, religiões, rituais, e suas influências na manutenção da sociedade.

Para compreender o objetivo de um determinado ritual, é importante buscar seu


significado, ou seja, verificar com o grupo pesquisado os motivos pelos quais revivem
os rituais, quais suas motivações e sentimentos, para posteriormente identificar sua
função social.

101
As concepções de Radcliffe-Brown sobre os sistemas de sentimento, em
seu trabalho “Estrutura e Função na Sociedade Primitiva”, assemelham-se à ideia de
“representações coletivas” de Émile Durkheim, conforme destacado no texto a seguir.

Para Radcliffe-Brown, os sistemas de sentimentos regulam a atuação dos


indivíduos de acordo com as necessidades da sociedade; tais sentimentos, que
não são inatos, são desenvolvidos e expressos no indivíduo pela ação da sociedade
sobre eles. A sociedade mantém-se coesa por força de uma estrutura de normas
morais e regras civis regulatórias do comportamento que são independentes dos
indivíduos que as reproduzem. Estas normas e regras atuam então como uma
espécie de ‘consciência coletiva’. Desse modo, o indivíduo submete-se aos desígnios
da sociedade e é o seu produto.

Assim, para Radcliffe-Brown, os indivíduos são apenas a expressão da


estrutura social. Aí reside a grande diferença que o separa de Malinowski, apesar
de comungarem princípios funcionalistas (ou pelo menos compartilharem a rubrica
de ‘funcionalista’). Enquanto considera de mais relevante os princípios da estrutura
social e os mecanismos de integração social, Malinowski detém-se nas motivações
humanas e define a função dos elementos culturais segundo  as necessidades
biológicas do indivíduo.

FONTE: <http://ant1mcc.blogspot.com.br/2009/05/o-funcionalismo-de-radcliffe-brown.html>.
Acesso em: 15 ago. 2015.

2.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE A ESCOLA


FUNCIONISTA E ESTRUTURAL-FUNCIONALISTA
Como forma de demonstrar sinteticamente a contribuição das Escolas
Funcionalista e Estrutural-Funcionalista, podemos levantar algumas características
principais, a partir da adaptação da leitura de Marconi e Presotto (2001, p. 266). São elas:

a) O entendimento de que a cultura é um todo sistêmico e que deve ser


observado no tempo presente.
b) Compreensão de que a cultura se constitui de partes interdependentes
que se integram, formando um sistema sociocultural.
c) Criação de uma teoria das necessidades humanas.
d) Reconhecimento e valorização da função dos elementos da cultura
como mantenedores da estrutura social.
e) Para Malinowski, a unidade de análise são as instituições sociais, e
para Radcliffe-Brown, é a estrutura-funcional.

102
De maneira geral, pode-se dizer que as Escolas Funcionalista e Estrutural-
Funcionalista foram importantes para a Antropologia, principalmente porque valorizaram a
pesquisa de campo, como um elemento fundamental do fazer antropológico, valorizando
a aproximação entre pesquisador e pesquisado. Estas escolas descontruíram a ideia
de culturas superiores e inferiores e, por meio do relativismo cultural, interpretaram as
culturas estudadas a partir dos parâmetros desenvolvidos por elas próprias, sem os
valores e pré-noções dos observadores.

Neste tópico foram trabalhadas juntas, porque, apesar de terem alguns embates
acadêmicos, os pensamentos de Radcliffe-Brown e Malinowski são similares.

3 A ESCOLA ESTRUTURALISTA: CLAUDE LÉVI-STRAUSS


Na segunda metade do século XX inicia-se uma nova corrente científica, o
“Estruturalismo”, que acabou influenciando muito fortemente as Ciências Sociais, e,
portanto, também a Antropologia. Esta é a Escola Antropológica mais recente, que se
desenvolveu paralelamente ao funcionalismo, tendo seu apogeu entre as décadas de
1940 e 1950. O estruturalismo adotou uma posição teórica própria, levando em conta
principalmente os elementos subjetivos do estudo das culturas. Mesmo tendo adquirido
uma postura autêntica em relação à compreensão do fenômeno cultural, não deixou
de dialogar com as outras perspectivas antropológicas, especialmente com a corrente
funcionalista. Na compreensão de alguns autores, conforme destacam Marconi e
Presotto (2001), o estruturalismo chegaria a ser uma “espécie de refinamento do
funcionalismo”.

Que pontos poderiam ser considerados convergentes entre o Estruturalismo e o


Funcionalismo? Vejamos a seguir:

1- A ideia de que a cultura se desenvolve de forma sincrônica.


2- A ideia de que o fenômeno cultural possuiu propriedades sincrônicas.
3- A dimensão globalizante do fenômeno da cultura.
4- A adoção do termo estrutura (ainda que tenha sido utilizado com perspectivas
distintas).
5- Influência da Escola Antropológica Francesa.

De maneira geral, pode-se dizer que o Estruturalismo possui duas dimensões


distintas quanto ao seu conceito. Ele pode ser compreendido como um conjunto de
teorias sobre a cultura, mas também pode ser tomado como um método de análise,
conforme poderemos verificar mais adiante.

103
3.1 PRINCIPAL REPRESENTANTE DA ESCOLA
ESTRUTURALISTA: CLAUDE LÉVI-STRAUSS
O antropólogo Claude Lévi-Strauss foi o mais importante representante da
escola estruturalista do século XX e ainda é muito respeitado no meio acadêmico.

Este antropólogo nasceu na Bélgica e mais tarde mudou-se para a França,


formando-se em Filosofia e Direito. Depois de ter realizado trabalhos em muitos países,
incluindo EUA e Brasil, foi condecorado com a medalha de ouro do “Centre National de
la Recherche Scientifique”, na França.

O autor recebeu influências de pelo menos quatro áreas de conhecimento


distintas, como a corrente antropossociológica (inglesa e francesa), o campo linguístico, a
corrente sociológica marxista e a psicanálise de Freud.

Com relação aos autores antropossociológicos, podemos identificar o


pensamento de Morgan, Malinowski e Radcliffe-Brown. No entanto, para Lévi-Strauss é
a sociologia francesa com a qual melhor se conecta o desenvolvimento de seu trabalho,
tendo Marcel Mauss e Émile Durkheim como suas principais referências. É, inclusive,
a partir da concepção de Marcel Mauss sobre o “inconsciente social e a regra do dom”
que Lévi-Strauss vai desenvolver uma de suas principais obras, chamada “As estruturas
Elementares do Parentesco”. Além das influências sociológicas e antropológicas, a
linguística, especialmente o trabalho do linguista Saussure, foi importante para o
desenvolvimento do pensamento de Lévi-Strauss. Outras referências ainda podem ser
identificadas como a psicanálise, o marxismo e o existencialismo de Sartre.

De maneira geral, Lévi-Strauss é considerado um antropólogo brilhante. Sua


extensa obra é considerada bastante complexa e de difícil interpretação para aqueles
que não estão envolvidos com as suas posições conceituais.

“Estruturas Elementares do Parentesco”, de 1949, é considerada uma das suas


mais importantes obras. Este título refere-se aos sistemas de parentesco, que ele
estuda profundamente durante suas atividades de pesquisa, como uma organização
social que ocorre a partir do casamento.

Outras obras também foram importantes em sua carreira de pesquisador, uma


delas, bem conhecida e considerada uma de suas obras-primas, é a chamada “Tristes
Trópicos”, escrita a partir de seus estudos realizados no Brasil, no período em que
Lévi-Strauss lecionou na Universidade de São Paulo (USP), a convite de uma missão
universitária francesa.

No Brasil, ele ficou de 1935 até 1939 e nesse período estudou algumas
comunidades indígenas do interior do país. Os registros apreendidos a partir dos
encontros resultaram no seu livro “Tristes Trópicos”.

104
FIGURA 12 – CLAUDE LÉVI-STRAUSS E A CAPA DE SEU LIVRO “TRISTES TRÓPICOS”

FONTE: Disponível em: <http://www.sociologia.seed.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.


php?conteudo=1276>. Acesso em: 19 jul. 2015.

Em seus escritos, Lévi-Strauss demonstrava claramente o repúdio à ideia de


que haveria uma superioridade inata de algumas sociedades em relação a outras. Na sua
concepção de humanidade, ele defendia que a mente dos “selvagens” era equivalente à
mente de qualquer pessoa de sociedades mais complexas.

3.2 RELAÇÕES SOCIAIS, ESTRUTURA E MODELOS


A partir do modelo estrutural desenvolvido por Ferdinand de Saussure, para a
área de linguística, Lévi-Strauss adaptou para a área de antropologia e passou a utilizá-
lo. Ele utilizou as ideias de Saussure para desenvolver o sentido do termo “estrutura”.
Para Lévi-Strauss, a estrutura social não se confunde com a realidade empírica. A
estrutura seria um modelo de análise construído a partir da observação da realidade
social. Ou seja, não se pode confundir estrutura social com relações sociais, porque,
conforme destacam Marconi e Presotto (2001), “as relações sociais são a matéria-prima
empregada para a construção dos modelos que tornam manifesta a própria estrutura
social”. Nesse sentido, compreende-se que o objeto de estudo do estruturalismo são
as relações sociais. Vejamos a seguir o conceito de estrutura, descrito por Marconi e
Presotto (2001, p. 271):

O conceito de estrutura se refere a um sistema que reflete a realidade


social ou cultural, seu funcionamento, as alterações regulares a que
está sujeita, o rumo das transformações provocadas por fatores
externos à cultura e as previsões de reação quando alguma de suas
partes for afetada.

105
Para receber a denominação de estrutura, na concepção de Lévi-Strauss, os
modelos estruturais devem satisfazer a quatro condições básicas. São elas:

1- A ideia de estrutura deve estar vinculada à ideia de sistema. A estrutura de caráter


sistêmico indica que qualquer elemento que eventualmente for modificado implicará
a modificação de todos os outros (aqui se sobressai a noção de interdependência).
2- Todo modelo pertence a um grupo de transformações, cada uma das quais
corresponde a um modelo da mesma família, de modo que o conjunto destas
transformações constitui um grupo de modelos.
3- As propriedades indicadas acima permitem prever de que modo reagirá o modelo, em
caso de modificação de um de seus elementos.
4- O modelo deve ser construído de tal modo que seu funcionamento possa explicar
todos os fatos observados.

O pensamento de Lévi-Strauss é bastante complexo, no entanto, Lévi-Strauss


consegue adaptar as diferentes perspectivas teóricas para a compreensão do fenômeno
cultural, procurando compreender uma realidade mais profunda no comportamento e
nos condicionantes culturais. Conforme destacam Marconi e Presotto (2001), “o que
importa não é a maneira como os homens veem a realidade, mas sim o modo como
podemos explicar a sua maneira de ver e agir”.

Nesse sentido, Lévi-Strauss nos permite conhecer uma realidade muito mais
profunda, que diz respeito mesmo aos condicionamentos inconscientes dos grupos/
indivíduos pesquisados.

3.2.1 Natureza e história


Com relação a este tema, as contribuições de Marx foram, sem dúvida, muito
importantes. De toda forma, deve-se deixar claro a distinção entre os pensamentos
de Lévi-Strauss e Marx. Embora ambos considerassem a estrutura consciente de
uma cultura, ou seja, considerassem que na cultura ocorrem regras e padrões como
elementos de reprodução da vida social, ou seja, de preservação da sua realidade
objetiva, Lévi-Strauss privilegia a natureza e a ordem natural ao avaliar as culturas.
Para ele, a história é produto da natureza. Marx, por sua vez, considera a história como
elemento de construção e aperfeiçoamento das condições humanas.

106
3.2.2 Culturas simples e complexas
Para melhor compreender e apresentar as estruturas mentais inconscientes
básicas de uma sociedade/cultura humana, Lévi-Strauss organizou as culturas em dois
tipos, que ele chamou de culturas quentes e culturas frias.

a) Culturas frias: Por sociedades frias, Lévi-Strauss convencionou chamar as sociedades


que estão mais próximas do estado de natureza, ou seja, aquelas que apresentam
estruturas simples, que são pequenas, que aparentemente vivem em harmonia e que
dificilmente se abrem a novos elementos culturais. Estas sociedades, de acordo com
o autor, oferecem melhores condições de observação das suas estruturas mentais
inconscientes.
b) Culturas quentes: Por sociedades quentes o autor convencionou chamar as
sociedades mais complexas, mais antigas e industrializadas. São sociedades que
estão em transformação constante e que aparentam um estado de desorganização
e falta de harmonia. Para Lévi-Strauss, as sociedades quentes apresentam maior
desafio para a compreensão de suas estruturas mentais inconscientes.

3.2.3 O que seriam os modelos consciente e inconsciente


que Lévi-Strauss utiliza?
A partir de modelos anteriores, Lévi-Strauss procura desenvolver um
método capaz de captar os modelos inconscientes que condicionam e explicam os
modelos conscientes.

a) Por modelo consciente ele denomina as normas/padrões de comportamento que


existem em uma determinada sociedade/cultura. De acordo com Lévi-Strauss,
o modelo consciente é um dos mais simples que existe, porque sua função é
perpetuar as crenças, os usos e os costumes, mas não explicar os motivos de sua
existência. Por este motivo ele afirma que o modelo consciente é a parte da cultura
facilmente observada.
b) Já o modelo inconsciente é o que Lévi-Strauss chama de “Estrutura Profunda”, ou
seja, é precisamente aquilo que explica as causas das representações conscientes,
concretas de um grupo humano. Dito de outra maneira, o modelo inconsciente é
aquilo que não se pode verificar de forma objetiva, mas sim o que é possível verificar
por trás de uma atitude/comportamento/norma social, aquilo que está camuflado.

Para interpretar a realidade objetiva, podemos dizer que, enquanto método de


análise, o estruturalismo possui alguns elementos básicos fundamentais para a sua
caracterização. São eles:

107
1- Visão sincrônica e sistêmica da cultura.
2- Visão globalizante do fenômeno cultural, ou seja, o conhecimento do todo leva à
compreensão das partes.
3- Adoção dos conceitos de Estrutura Social e Relações Sociais.
4- Utilização de modelos na análise cultural.
5- Unidades de análise: estruturas mentais inconscientes.
6- Compreensão ampla da realidade cultural.

Por fim, para concluir a discussão sobre estruturalismo, destacamos que a


fragilidade do estruturalismo de Lévi-Strauss está justamente na preocupação de que,
ao querer observar as características subjetivas dos padrões culturais de um grupo
social, o pesquisador faça uso de sua subjetividade.

4 A ESCOLA NEOEVOLUCIONISTA
Após a Segunda Guerra Mundial e a descolonização de muitos países do
Terceiro Mundo, a antropologia tomou um novo rumo, procurando interessar-se pelas
próprias culturas e não somente pelas sociedades tribais, distantes e pouco conhecidas.
Nesse bojo, assim como outras escolas, o neoevolucionismo vai em busca de rever as
interpretações clássicas do evolucionismo.

Para os teóricos neoevolucionistas, a evolução social está relacionada ao


processo de evolução tecnológica. Seus teóricos descrevem o desenvolvimento da
cultura por meio de estágios, muito semelhantes aos estágios evolutivos de Morgan,
como vimos no Tópico 1 desta unidade.

Os principais representantes desta escola são Lesli A. White, V. Gordon Childe e


Julian Steward. Trataremos brevemente dos trabalhos de White.

4.1 LESLIE A. WHITE


O antropólogo Lesli A. White retornou nos métodos da antropologia desenvolvida
por Morgan, na qual consistia em elaborar generalizações relativas à evolução cultural.
Ele seguiu o esquema de Morgan, mas estabeleceu outros critérios para a compreensão
da evolução cultural.

Para White, o nível de desenvolvimento cultural deve ser medido pela


quantidade de energia de que uma sociedade dispõe. Desse modo, os que obtêm
progresso seriam definidos levando em consideração o domínio sempre maior de
fontes de energia cada vez mais abundantes e diversificadas. Dito de outra forma,
conforme Barrio (2005, p. 146):

108
Para White, o nível de uma cultura e sua complexidade dependem
basicamente do poder mecânico de que ela dispõe para controlar o
mundo e para produzir meios de vida mediante técnicas particulares
(força animal, aproveitamento das correntes fluviais, máquinas a
vapor etc.). Por isso, “concentrações maiores de energia e formas
elevadas de organização produzem níveis mais altos de cultura”. A
quantidade de energia de que se dispõe per capita nos dá o nível de
desenvolvimento de uma cultura, que se concretiza em: quantidade
de alimento, moradia, transportes, comunicações, meios de defesa e
domínio sobre as enfermidades.

Depreende-se, portanto, que para perpetuar sua espécie e satisfazer


suas necessidades básicas, os humanos, por meio da utilização de ferramentas e
tecnologias, produzem/reproduzem sua própria cultura (organização social, sistemas
de parentesco, instituições sociais, crenças, e outras). Conclui-se, portanto, que quanto
mais desenvolvimento/tecnologias, maior a evolução das sociedades humanas.

A exemplo de Morgan, vejamos a seguir o esquema de White, das três principais


etapas da evolução, no qual ele levou em conta a energia dos homens como elemento
de delimitação dos estágios evolutivos.

QUADRO 4 – ESQUEMA DE WHITE

Períodos Estágios
Energia do próprio corpo, salvo exceções no emprego do
Selvageria (Baixo)
fogo, do vento e da água.
Energia na domesticação dos animais e cultivo das plantas; na
Barbárie (Médio) fabricação e uso de instrumentos e de ferramentas; na invenção do
calendário e da escrita.
Energia na descoberta e aplicação da máquina a vapor (Revolução
Civilizado (Alto)
Industrial).

FONTE: Adaptado de Marconi e Presotto (2001, p. 257)

Observando este quadro de White, pode-se perceber grande semelhança com


o quadro evolutivo de Morgan. Portanto, é correto interpretar que ambos pretenderam
estabelecer os mecanismos evolutivos para compreender o desenvolvimento das
sociedades de forma geral. Por este motivo é que muitos autores destacam que White
representa a permanência dos estudos de Morgan em nossa época.

No entanto, White sabe que as culturas/sociedades não de desenvolvem de


maneira idêntica, como pensavam os primeiros evolucionistas. White defende que
existe uma série de tendências gerais na sucessão das formas culturais.

109
5 ANTROPOLOGIA PÓS-MODERNA
De maneira geral, o pensamento pós-moderno é um movimento que ocorre em
todas as ciências, especialmente nas ciências sociais. Na antropologia, este movimento
manifesta-se por meio de uma postura crítica em relação aos discursos etnográficos
clássicos. Ou seja, coloca-se em xeque os discursos antropológicos produzidos sobre
os “outros”. Mas, para compreender melhor o debate da antropologia pós-moderna, é
necessário compreender o conceito de pós-modernidade. Vejamos a seguir o que diz
Eriksen (2012, p. 169) sobre o conceito de Pós-modernidade:

O termo pós-moderno foi definido primeiramente na filosofia


pelo filósofo francês Jean-François Lyotard em sua La Condition
postmoderne (1979; The Post-modern Condition, 1984). Para Lyotard,
a condição pós-moderna era uma situação em que não havia mais
nenhuma “grande narrativa” abrangente que pudesse ser invocada
para dar sentido ao mundo como um todo. Diferentes vozes
competiriam por atenção, mas nunca se integrariam... Ele descrevia
uma situação histórica específica no Ocidente (a que outros se
referiram de formas variadas como “sociedade da informação”,
“sociedade de consumo” ou mesmo “sociedade pós-industrial”), em
que o domínio era exercido por novas tecnologias, por novas relações
de poder e por ideologias. Mas o pós-modernismo era ele próprio uma
ideologia, uma perspectiva analítica e uma estética que descrevia o
mundo como descontínuo e fragmentado.

Essa noção de mundo, enquanto um ambiente de fragmentação, de


descontinuidade e fluidez, vai assumir na antropologia, especialmente na antropologia
norte-americana, uma posição de relativismo cultural, levada ao extremo. Os antropólogos
desta escola defendem que todas as culturas/sociedades são iguais, desde que não
tentem dominar umas às outras. Essa postura fez com que muitos autores colocassem
em questão o próprio fazer antropológico até o momento, e muitos estudos passaram a
ser realizados sobre os clássicos anteriores, como os trabalhos de Franz Boas e outros.

Além das influências dos autores pós-modernos, a antropologia sofreu outras


influências. Uma delas foi o movimento pós-colonial, nas artes e nas ciências humanas,
que questionou o direito dos intelectuais da metrópole de definir quem eram e como
eram “os nativos”, questionando os discursos e julgamentos metropolitanos. Alguns
autores questionaram as pesquisas desenvolvidas sobre os negros, outros autores
desqualificaram as narrativas sobre a vida dos indígenas norte-americanos, outros
ainda denunciaram os estereótipos das culturas orientais. Muitos desses autores
eram provenientes destes grupos minoritários, que finalmente tinham espaço nas
academias para falar em primeira pessoa sobre a própria cultura. Vejamos um exemplo
destacado por Eriksen e Nielsen (2012, p. 173):

Vine Deloria, um nativo Sioux dacota, é professor de Estudos Nativos


Americanos, teólogo, advogado e ativista. Seu livro Custer Died for
Your Sins (1970), muito debatido, foi um ataque apaixonado a todos
os tipos de autoridades que falavam sobre os norte-americanos

110
nativos e em nome deles, impedindo-os assim de efetivamente
falarem por si mesmos. Deloria estava especialmente furioso com
os antropólogos boasianos, cujo relativismo condenava os nativos
americanos ao eterno exotismo e os impedia de chegar à igualdade
com os brancos.

Esses e outros argumentos instigaram ainda mais a perspectiva pós-moderna


da antropologia e a autocrítica em relação ao campo de estudos. A antropologia se
voltou para o conhecimento e interpretação de sua prática até então. Tanto que muitos
dos artigos e monografias desenvolvidos nesta época (década de 1980) tratavam
exclusivamente da revisão crítica de estudos clássicos.

5.1 PRINCIPAIS AUTORES


A safra de autores que enveredaram para o movimento pós-moderno não era
tão grande e nem todos eram antropólogos. Os principais foram James Clifford, que era
historiador, Stephen Tyler, George Marcus, Michael Fischer, Renato Rosaldo e Paul Rabinow.

Apesar das diferenças, eles possuíam algumas características comuns,


em relação à antropologia. A principal delas era o sentimento de vergonha frente
ao posicionamento da antropologia em relação às culturas pesquisadas, que
desconsiderava a “voz do outro”. Por este motivo, alguns autores, como Clifford e
Marcus, desta escola, desenvolveram estudos experimentais procurando envolver as
comunidades pesquisadas como agentes da pesquisa, na qual alguns informantes
participavam, contribuindo na construção do conhecimento.

Além disso, os autores pós-modernos criticavam a antropologia boasiana,


construída por um conceito de cultura integrada, com raízes antigas e profundas. Ao invés
disso, chamavam-lhes a atenção os estudos de Foucault, Marx e Gramsci e as possibilidades
de interpretação das representações e de poder nos diferentes textos etnográficos.

Em 1986 foram publicados dois livros fundamentais para o movimento. O


primeiro foi Anthropology as Cultural Critique, de George Marcus e Michael Fischer.
Esse livro destacou que a antropologia sofria uma grave crise de representação, por
todos os motivos já citados acima. Por conta disso, o livro propunha um processo
de reflexão sobre os fundamentos do trabalho do antropólogo. O livro recomendava
que os trabalhos etnográficos deveriam possuir uma perspectiva crítica em relação
à própria “casa”, isso é, as pesquisas deveriam ser realizadas no ambiente cultural
do próprio pesquisador, focando as questões históricas e econômicas da sociedade.
Para que este objetivo fosse alcançado, os autores sugeriam que os pesquisadores
passassem por um processo de “desfamiliarização” de sua cultura. Por outro lado,
pediam que na comparação da cultura dos outros com a sua houvesse uma ação de
estranhamento de seus próprios parâmetros culturais.

111
No mesmo ano foi editado o volume Writing Culture, dos autores Clifford e
Marcus, um livro com 12 capítulos, desenvolvidos por autores de diferentes posições da
escola pós-moderna, mas que de forma unânime desconstruiu o conceito de cultura
como um todo integrado, visão predominante na antropologia até então. Dois anos
após, Clifford publicou The Predicament of Culture, que pode ser resumido como ”um
longo argumento contra o essencialismo”.

Todas estas posturas críticas frente ao trabalho do antropólogo contribuíram


para o aprofundamento do relativismo cultural, que só foi possível compreender levando
em conta o contexto social dos norte-americanos naquele momento histórico. Um país
que acabava de sair de um processo de escravidão, que tinha passado por uma história
de genocídio das suas comunidades indígenas e que foi construído por imigrantes de
vários países. Isso tudo somado à desestruturação da estabilidade mundial na década
de 80, da perda do sentido das grandes teorias sociais explicativas, do movimento
pós-colonial, representou um caldeirão de mudanças sociais que a antropologia tentou
explicar por meio das etnografias experimentais.

112
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• A Escola Funcionalista teve como principal representante o antropólogo Bronislaw


Malinowski. Esta escola compreende a sociedade como um organismo, como um
todo complexo e interdependente, que desempenha suas funções e mantém vivo o
organismo (sociedade).

• O Estrutural-Funcionalismo tem como principal representante o antropólogo


Radcliffe-Brown. O pensamento deste autor é bastante semelhante ao de Malinowski,
no entanto, ele é um dos primeiros pesquisadores a trazer à discussão o conceito de
estrutura social.

• A Escola Estruturalista é uma das mais importantes do nosso tempo. Ela tem como
principal representante o antropólogo Claude Lévi-Strauss. Esse autor ampliou o
campo de discussão na antropologia, construindo ao mesmo tempo um conjunto de
teorias sobre a cultura e também um método de análise utilizado até os dias atuais.

• A Escola Neoevolucionista buscou fazer uma revisão dos estudos clássicos


evolucionistas. Para os neoevolucionistas, o desenvolvimento das sociedades ocorre
por meio da evolução das tecnologias. Seus teóricos procuram explicar esse processo
por meio de estágios evolutivos, semelhante à teoria de Morgan.

• A Escola Antropológica Pós-moderna refere-se a uma postura crítica dos antropólogos


atuais em relação ao fazer antropológico dos antropólogos clássicos. A principal crítica
refere-se ao excesso de “autoridade” que tiveram alguns antropólogos clássicos, ao
falar sobre a cultura dos “outros”, idealizando e essencializando essas culturas, sem
permitir que seus representantes (os nativos) falassem por si mesmos.

113
AUTOATIVIDADE
1 Ao estudarmos as Escolas Antropológicas, verificamos que cada uma delas possui
seus principais expoentes, ou seja, aquelas que melhor representaram sua perspectiva
teórica. Diante disso, levando em conta as escolas descritas a seguir: Funcionalista,
Estrutural-Funcionalista e Estruturalista, assinale a alternativa que apresenta os
principais representantes de cada uma delas, respectivamente.

a) ( ) Radcliffe-Brown – Bronislaw Malinowski – Claude Lévi-Strauss.


b) ( ) Bronislaw Malinowski – Radcliffe-Brown – Claude Lévi-Strauss.
c) ( ) Claude Lévi-Strauss – Radcliffe-Brown – Bronislaw Malinowski.

2 Na leitura realizada até o momento, podemos verificar que a Antropologia, assim


como a ciência em geral, passou por mudanças e adaptações com o objetivo de
compreender as transformações históricas e sociais. São as chamadas Escolas
Antropológicas. Caracterize duas delas, a Neoevolucionista e Pós-Moderna.

114
UNIDADE 2 TÓPICO 3 -
GRANDES TEMAS DA ANTROPOLOGIA:
UNIÃO, CASAMENTO E PARENTESCO

1 INTRODUÇÃO
A antropologia é um campo de pesquisa que se ocupa da organização e do
desenvolvimento das sociedades humanas. Por este motivo, ao longo do tempo tem
discutido várias dimensões da vida humana, como as instituições sociais, os modelos
políticos e de governo, a economia, a religião, enfim, a cultura de uma forma geral.
Mas para compreender essas dimensões, as escolas antropológicas, por meio de seus
estudos, ao longo do tempo foram construindo conceitos que utilizam instrumentos
analíticos para interpretar as sociedades pesquisadas.

Neste tópico, por necessidade de limitar os conhecimentos trabalhados,


optamos por apresentar os temas: União, Casamento e Parentesco.

2 UNIÃO
Todas as sociedades humanas, em menor ou maior grau, sofrem cerceamento
de seus impulsos sexuais. Por meio da cultura se estabelecem limitações na conduta
das relações sexuais, no sentido de direcioná-la para um caminho preestabelecido, que
demarca como, quando e com quem o sexo é permitido. Por esse motivo, o fato de ser
humano, ou seja, viver em sociedade e pertencer a uma cultura, é estar sujeito a algum
tipo de inibição sexual.

De acordo com Hoebel e Frost (2006), “a união é o ajuntamento de indivíduos


de sexo oposto sob a influência do impulso sexual”.

Pode-se dizer que atualmente o conceito de união inclui outras possibilidades


de relacionamento, que não apenas de indivíduos de sexo oposto. Mas vamos tomar,
por enquanto, o conceito de união dos autores citados. E complementam afirmando
que a união sexual é um fenômeno de natureza basicamente instintiva, mas que é
profundamente marcado pelos padrões e normas sociais.

115
A união dos seres humanos pode ocorrer apenas no plano biológico, como
ocorre com os animais, sem implicar em casamento. Mas, na maioria das vezes, a
união (relação sexual) acaba implicando um certo grau de permanência do par. O que
não quer dizer que pode ser confundido com o casamento, pois pode haver casamento
sem união.

3 CASAMENTO
O casamento é uma instituição social que serve para organizar a relação de um
par, em uma determinada sociedade. Vejamos o que dizem Hoebel e Frost (2006, p. 176):

O casamento é o complexo das normas sociais que definem e


controlam as relações de um par unido um com o outro, com seus
parentes, com sua prole e com a sociedade em geral. Ele define
todos os direitos institucionais, deveres, privilégios e imunidades do
par como marido e mulher. Ele determina a forma e atividades da
associação conhecida como a família.

Para seguirmos com as discussões sobre o casamento, é necessário conhecer


alguns termos importantes que utilizaremos como ferramentas analíticas para
compreender como ocorrem as diferentes modalidades de casamento. São eles:
Exogamia e Endogamia.

3.1 EXOGAMIA
O Termo exogamia refere-se à regra social que determina que os casamentos
ocorram fora da família, ou seja, com pessoas de outros grupos familiares. Existem dois
tipos distintos de exogamia, a simples e a restrita. Vejamos como podem ser definidas:

a- Exogamia Simples: Ocorre quando a proibição do casamento se dá para todos os


membros genéticos da família, sem exceção.
b- Exogamia Restrita: Ocorre quando o casamento é restrito a certas categorias de
parentes e a outras categorias é permitido e até mesmo incentivado. Na maioria
das vezes, mesmo possuindo laços consanguíneos, culturalmente, o parente não é
definido como parente. Podendo ocorrer o casamento com o filho do irmão da mãe,
ou com o filho da irmã do pai.

116
3.2 Endogamia
Ocorre de maneira contrária à exogamia. A endogamia refere-se a uma regra
social que determina que os casamentos ocorram dentro da própria organização familiar,
ou grupo social, considerado de pertencimento.

A endogamia ocorre muito menos frequente do que a exogamia, mas muitos


países do Oriente Médio e África orientam os matrimônios por meio dessa regra social.
Além disso, algumas sociedades indígenas da América do Sul e América do Norte
também têm suas relações definidas pela endogamia. Um sistema bem conhecido é
o que ocorre na Índia. Uma organização antiquíssima, com mais de duas mil castas e
subcastas, que não permite que casem entre si, com a justificativa de que a união com
castas inferiores denigre os membros das castas superiores.

GIO
Castas são sistemas tradicionais, hereditários ou sociais de estratificação, ao
abrigo da lei ou da prática comum, com base em classificações tais como
a raça, a cultura, a ocupação profissional etc. Disponível em: <http://www.
dicionarioinformal.com.br/castas/ >. Acesso em: 10 set. 2015.

De maneira geral, os casamentos que ocorrem dentro de grupos fechados, ou


dentro das famílias, possuem o objetivo de nivelar seus membros dentro de uma mesma
cultura, protegendo suas características e regras sociais, incluindo o sentido de raça.
Normalmente isso ocorre quando um determinado grupo considera que o seu modo de
vida, seus valores e sua raça são importantes demais para expô-los a outras culturas.

4 MODALIDADES DE CASAMENTOS
Neste subtópico vamos focar nas modalidades de casamento, levantadas pelos
antropólogos com base nas diferentes sociedades pesquisadas. Ainda que atualmente,
nas sociedades ocidentais, muitos casamentos ocorram de forma que os pares
escolhem por si próprios seus cônjuges, isso não funciona desta maneira em muitas
sociedades, nas quais os casamentos são arranjados ou dependem de prévio exame e
consentimento das famílias.

Por este motivo, para entender como funciona essa instituição social,
especialmente os casamentos primitivos, é necessário entender o seu conceito. Vejamos
o que dizem Hoebel e Frost (2006, p. 193) sobre os princípios básicos de um casamento:
117
O casamento constitui uma aliança entre dois grupos de parentesco,
nos quais o casal interessado é meramente o vínculo mais
importante. Todo homem aprende, mais cedo ou mais tarde, que
quando ele se casa com uma “única pessoa”, casa-se não somente
com ela, mas com seus parentes. As noivas, naturalmente, têm a
mesma experiência.

Por este motivo, quando nos referimos ao casamento, estamos nos referindo
não só aos interesses do casal, mas também aos interesses sociais relativos ao evento.
A sociedade em geral e os parentes, em particular, têm uma participação bastante direta
no matrimônio. Por este motivo, veremos a seguir algumas modalidades formalizadas
do processo de casamento.

Das sete modalidades para se “conseguir” uma mulher, apenas duas delas não
possuem participação direta da família. São elas: o casamento por captura e o casamento
por fuga, as demais envolvem participação direta da família. De acordo com Hoebel e
Frost (2006), as sete modalidades são: preço por progênie, ou riqueza da noiva; pelo
serviço do pretendente; por troca de presentes; por captura; por afinidade, substituição
ou continuação; por fuga; por adoção.

4.1 PREÇO POR PROGÊNIE OU RIQUEZA DA NOIVA


A troca de bens/presentes por esposas é uma prática comum nas sociedades
primitivas, especialmente em grande parte do território africano. Os presentes são
sempre oferecidos pela família do noivo, à família da noiva e normalmente o pagamento
é feito em cabeças de gado.

Não se pode pensar que a noiva é mero objeto de negociação entre as famílias, mas,
ao contrário, pagar pela mulher significa que a posição da mulher em termos de prestígio e
poder é valorizada, além do que, e principalmente, a mulher, como progenitora, tem muito
valor como um membro de um grupo de parentesco.

Significa dizer que a mulher casada, dependendo do valor pago, suponhamos, 20


vacas, possui mais poder que uma mulher a quem se tenha pago 10 vacas. Na sociedade
indígena Yurok, na Califórnia, essa regra era tão comum que o valor social de um homem era
determinado pelo preço da progênie pago à sua mãe.

Vejamos o que dizem Hoebel e Frost (2006, p. 194) sobre os nativos Vezos Sakalavas,
de Madagascar, onde o preço da progênie é regulado na dimensão das leis.

Em caso de divórcio não é socialmente permissível nem a devolução do


gado pago, nem a substituição por outra mulher. A mulher divorciada
pode casar-se novamente, mas só com a permissão de seu antigo
marido. Esta permissão era concedida sob juramento, por parte da
mulher e seu futuro marido, que os primeiros filhos deles (até o limite
de três) seriam transferidos por escritura ao primeiro marido, que foi

118
quem pagou o preço da progênie à sua família. A mulher cria e toma
conta das crianças até a desmama, quando eles serão entregues ao
seu primeiro marido e se tornam seus legítimos herdeiros, sem as
formalidades de adoção... entre os primitivos, a paternidade legal é,
geralmente, de maior significado do que a paternidade biológica.

Além da sociedade Vezos Sakalavas, existem outras que desenvolvem


estratégias de organização e controle sobre os preços e pagamentos de progênie,
como os bavendas da África do Sul: entre eles, se os preços da progênie são pagos em
prestações, as crianças não passam para o grupo de parentesco do marido enquanto a
dívida não for quitada.

4.2 PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DO PRETENDENTE À FAMÍLIA


Refere-se à possibilidade de casamento na qual o noivo coloca-se à disposição
para trabalhar para a família da noiva. Pode ser considerada uma forma mais barata
de conseguir uma esposa, sem pagar de uma vez só o preço da progênie. Essa prática
foi encontrada em diversas tribos espalhadas pelo mundo todo. Para ter direito a uma
esposa e ter filhos com ela, o noivo se submete a trabalhar para os familiares da noiva,
sendo que muitas vezes esse trabalho pode ocorrer por um longo tempo, até que se
tenha considerado quitado o débito.

4.3 TROCA DE PRESENTES


Em algumas sociedades, ao invés do pagamento da progênie, o que se faz é
a troca equivalente entre as famílias dos noivos. Essa não é prática tão comum nas
sociedades pesquisadas, mas é uma possibilidade de negociação para o casamento.

Uma comunidade em que esse tipo de matrimônio pode ser identificado é na


sociedade dos índios Cheyennes, da grande região de Minnesota. Conforme destacam
Hoebel e Frost (2006, p. 195):

Um menino que se apaixonava por uma determinada menina


conversava sobre o assunto com a sua família. Se a família achava
que a escolha era boa, depois de levar em consideração não somente
as qualidades da menina, mas também o caráter de sua família, exibia
os seus bens mais valiosos transferíveis para colocá-los à disposição
da jovem namorada. Eles eram cuidadosamente carregados num
lindo cavalo. Em seguida, chamavam uma respeitada mulher de
idade para levar o cavalo ao tipi do irmão mais velho da moça. Ali
ela ficava parada para que todo o acampamento visse, enquanto
entrava na cabana para expor a pretensão do seu afilhado. O irmão
mais velho convocava seus primos para uma reunião de família. Se
decidissem que a proposta era aceitável, descarregavam o cavalo e
distribuíam os presentes entre si, ficando o cavalo com o irmão. Então
todos se dispersavam para suas cabanas para discutir o que cada

119
um ia oferecer em troca. Esperava-se que cada um deles levasse no
dia seguinte, ou, no máximo, dentro de dois dias, alguma coisa de
valor igual ao que tinham recebido.... Assim, com referência ao valor
econômico, os presentes eram exatamente iguais.

O objetivo das trocas para os Cheyennes não era o valor das coisas, mas
sim a possibilidade de reafirmar e reforçar os laços de amizade e, principalmente, de
demonstrar o apreço pelo compromisso entre os noivos confirmado.

4.4 CAPTURA
A ideia de capturar uma noiva parece ser um pouco duvidosa e nos lembra algumas
histórias em quadrinhos ou desenhos animados sobre os casamentos dos “homens das
cavernas”, nos quais o homem captura a mulher com uma paulada na cabeça e a arrasta
para a sua casa. Na verdade, o casamento por captura foi uma das primeiras maneiras de
compreender o princípio da evolução social, pelos antropólogos clássicos, mas hoje ganhou
nova interpretação, o que não quer dizer que não tenha existido. Além disso, não se pode
dizer que foi uma técnica dominante, em tempos mais remotos.

O fato é que o casamento por captura, do ponto de vista da sobrevivência social,


possui muitas desvantagens, sem contar o risco de ser morto por membros da família da
moça. Além disso, como o casamento é uma instituição social que promove a aliança entre
grupos, capturar uma esposa não traz vantagem alguma para o noivo, que não terá o apoio
da família da noiva, sob nenhum aspecto. Não compartilhará a propriedade da família, seus
filhos não terão o status da família, porque não serão reconhecidos por ela.

Por esse motivo, o casamento por captura só ocorria em ocasiões em que não
se podia recorrer a outros meios. De maneira geral, mesmo sem recursos, um homem
procurava casar primeiro pelos meios tradicionais de sua sociedade.

4.5 MATRIMÔNIO POR AFINIDADE, SUBSTITUIÇÃO OU


CONTINUAÇÃO: O LEVIRATO E O SORORATO
Em algumas sociedades é comum encontrarmos matrimônios que ocorrem
devido à morte de um dos cônjuges. Esse tipo de casamento é chamado de matrimônio
por afinidade, substituição ou continuação e pode ocorrer em duas modalidades, o
Levirato e o Sororato. A função deste tipo de casamento é proporcionar a continuação
dos laços de parentesco entre as famílias dos cônjuges originais, e garantir que os filhos
do matrimônio original permaneçam na família.

a) Levirato: Esse termo é utilizado para identificar os casamentos que ocorrem entre uma
mulher e seu cunhado. É o casamento por afinidade mais conhecido no mundo. No caso
do levirato simples, ocorre quando o irmão do marido falecido se casa com a mulher
viúva. No caso do levirato júnior, somente o irmão mais novo do falecido pode herdar sua
esposa. Essa prática ocorre em todas as partes do mundo, em diferentes sociedades.

120
b) Sororato: Da mesma forma que o levirato, o sororato serve para dar continuidade aos
laços familiares, mas neste caso, ao invés do irmão tomar o lugar do irmão falecido, é
a mulher que assume o posto da irmã falecida, ou seja, casa-se com o cunhado.

De igual forma, tanto o sororato quanto o levirato possuem um objetivo comum,


que é o de perpetuar o casamento realizado entre o par, mas essencialmente dar
continuidade ao vínculo de parentesco entre as duas famílias que se aproximaram por
meio do casamento original. O compromisso da esposa, ou do esposo, que assumiram o
casamento, não é somente com os viúvos, mas sim com todos os parentes deles.

4.6 FUGA COM O AMADO


Como vimos, a maior parte dos casamentos das sociedades primitivas é
mediada, em maior ou menor grau, pelas regras sociais e pelas famílias dos noivos. No
entanto, pode-se verificar, em quase todas as sociedades conhecidas, que muitos pares
escapam às regras e fogem para ficarem juntos.

Com o advento do amor romântico isso aconteceu com as sociedades


ocidentais, mas, mesmo quando não estão sob o efeito do amor romântico, a fuga para
casar ocorre em várias sociedades. Isso porque, embora muitas sociedades primitivas
não se orientem pelo ideal de amor romântico, o fato é que todos os primitivos têm suas
preferências amorosas e as suas aversões.

Nesse sentido, a fuga ocorre quando há uma reprovação familiar em relação


ao pretendente que se deseja muito, restando a fuga como elemento de salvação.

4.7 ADOÇÃO
A adoção é uma estratégia de casamento utilizada por países como a Indonésia
e o Japão. O homem pode obter uma esposa, sendo adotado pela família dela,
especialmente quando o sogro não possui filhos homens. Neste caso, o genro adotado
passa a ser filho.

Essa medida é tomada porque possui uma necessidade social importante para
justificá-la. Uma família patrilinear que adota o genro pode manter sua linhagem, mesmo
quando não há filhos homens biológicos.

Tornando-se filho na família de sua esposa, os filhos de sua relação com ela
pertencerão automaticamente à família dela. Um aspecto que chama a atenção é que,
tornando-se filho de seu sogro, sua esposa será ao mesmo tempo sua irmã.

121
5 SISTEMA DE PARENTESCO
Apesar do sistema de parentesco ter adquirido maior destaque no final do século
XX, como um dos elementos centrais das análises antropológicas, ele tem sua origem
na história da antropologia. Os primeiros antropólogos já percebiam que as relações
biológicas tinham um papel importante na compreensão da organização social, porque
permitiam distinguir as relações entre uma pessoa e o seu grupo de origem. Podemos
tomar como exemplo a relação entre mãe e filho, pai e mãe, irmão e irmão, entre outras.
Essas relações biológicas são transferidas para o plano cultural e adquirem significados
diferentes para cada cultura, o que para os antropólogos possibilita compreender a
posição social de cada um em relação ao coletivo, e também lhes permite compreender/
demonstrar o que denominam o “sistema de parentesco” de cada grupo social.

Os primeiros estudos sobre o parentesco surgiram no início do século passado,


quando os antropólogos, ao estudar as sociedades tribais, perceberam diferentes
maneiras de classificar os parentes. Essas diferenças na classificação também indicavam
o estabelecimento de um complexo de relações entre eles.

Para os antropólogos, desenvolver um sistema de parentesco seria a


possibilidade de efetuar comparações, verificar diferenças e semelhanças entre as
diversas tribos/comunidades pesquisadas. O parentesco foi uma ferramenta de análise
antropológica fundamental para o desenvolvimento da antropologia.

Edward Tylor foi um dos primeiros a perceber as relações de parentesco como


um elemento importante para os estudos antropológicos. Ele chamou estas relações de
“adesões”. Morgan também influenciou na concepção do termo. Ele estudou o processo
evolutivo das diferentes configurações de parentesco, compreendendo que os tipos
de casamento é que os determinam. Rivers também foi um nome importante para a
ampliação desta discussão, ele aperfeiçoou a metodologia etnográfica, coletou arranjos
de parentesco e elaborou os sistemas ideais, que Morgan havia iniciado. Além desses,
outros antropólogos, como Lowie, Lévi-Strauss, Malinowski, Radcliffe-Brown e outros
contribuíram com estas discussões.

5.1 CONCEITUANDO SISTEMA DE PARENTESCO


Como o Sistema de Parentesco é um dos temas mais complexos trabalhados
pela antropologia, também sobre ele foram descritos vários conceitos explicativos, que
vamos tentar explicitar aqui. No entanto, o que é mais importante dizer é que, de forma
geral, os diferentes conceitos convergem para um sentido mais ou menos homogêneo,
como se pode perceber nas palavras de Marconi e Presotto (2001, p. 116):

122
O sistema de parentesco, segundo Murdock, refere-se a um sistema
estrutural de relações, no qual os indivíduos encontram-se unidos
entre si por um complexo interligado de laços ramificados. Para
Rivers, sistema de parentesco consiste no “reconhecimento social de
laços biológicos”. As relações de parentesco consistem em “funções
interagentes, atribuídas, segundo o costume, por um povo, aos
diferentes status de relacionamento”, afirmam Hoebel e Frost.

A partir da citação anterior, podemos compreender que o sistema de parentesco,


de maneira geral, é compreendido como a organização social das relações familiares
nas sociedades estudadas pelos antropólogos.

5.2 ELEMENTOS QUE COMPÕEM O PARENTESCO


Os diferentes tipos de sistema de parentesco, assim como sua composição,
são variados e complexos, o que impossibilita uma ampla exposição neste caderno de
estudos. Por este motivo, nosso objetivo, ao trabalhar o parentesco, é aproximá-los
desta temática de forma introdutória, procurando familiarizá-los com o assunto.

De toda maneira, podemos dizer que o elemento que dá origem à análise do


parentesco é a família nuclear, composta por pai, mãe e filhos. Ela pode ser constituída
de três maneiras:

1- Famílias por afinidade (Marital ou Legal) – Laço criado pelo casamento. Por meio
dele o homem contrai laços de afinidade com a esposa e seus familiares: pai,
irmãos, irmãs etc.
2- Consanguinidade (Biológico) – Relação entre pais e filhos.
3- Fictício ou Pseudoparentes (Adotivos) – Muitas sociedades aceitam uma terceira
categoria de relações, denominada fictícia, incluindo-se crianças adotadas,
escravos, compadrio e parentesco ritual (irmãos de sangue).

Nas diferentes sociedades é possível verificar que cada familiar assume um


papel diferente em tempos distintos. Por exemplo, a mulher desempenha o papel de
filha, mãe e esposa, assim como o homem assume papéis masculinos equivalentes.
Para cada papel também são estabelecidos diferentes tipos de relações familiares, ou
seja, de parentesco.

123
Quadro 5 – Representação de Parentesco

FONTE: <http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.
html?pagina=espaco%2Fvisualizar_aula&aula=56012&secao=espaco&request_locale=es>.
Acesso em: 10 set. 2015.

A origem do sistema de parentesco refere-se ao fato de que um sujeito, por


meio do matrimônio, faz parte de duas famílias nucleares ao mesmo tempo. De acordo
com Marconi e Presotto (2001), ele participa da família de Orientação e de Procriação.
A família de Orientação é aquela na qual ele nasceu e a família de Procriação é aquela
que ele adquire, por meio do casamento. Ao fazer parte de dois núcleos familiares
distintos, o sujeito promove a interação entre eles. Ao fazer isso, a ramificação desses
elos familiares vai unindo uma família à outra, por meio dos laços de parentesco.

124
LEITURA
COMPLEMENTAR
AS ESTRUTURAS ELEMENTARES DO PARENTESCO, DE CLAUDE
LÉVI-STRAUSS, POR SIMONE DE BEAUVOIR

Há bastante tempo estava a sociologia francesa adormecida. É necessário


saudar o livro de Lévi-Strauss como um evento que marca um brilhante despertar. Os
esforços da escola durkheimiana para organizar de uma maneira inteligível os fatos
sociais revelaram-se decepcionantes, pois se baseavam em hipóteses metafísicas
contestáveis e em postulados históricos não menos duvidosos; como reação, a escola
americana pretendeu abster-se de toda especulação: ela se limitou a acumular fatos,
sem elucidá-los. Herdeiro da tradição francesa, porém formado de acordo com os
métodos americanos, Lévi-Strauss desejou retomar a tentativa de seus mestres,
evitando seus defeitos; ele também supôs que as instituições humanas são dotadas de
significação; mas procurará a chave desta na humanidade própria daquelas; ele conjura
os espectros da metafísica, mas não aceita, por outro lado, que este mundo seja apenas
contingência, desordem, absurdo; seu segredo será tentar pensar o dado sem a
intervenção de um pensamento que seja estrangeiro a este: no coração da realidade ele
descobrirá o espírito que a habita. Assim ele nos reconstitui a imagem de um universo
que não tem a necessidade de refletir o céu para ser um universo humano. Não me
pertence a tarefa de criticar – e sim a de apreciar – esta obra especializada: mas não é
somente aos especialistas que ela se dirige. Que o leitor que abra o volume por acaso
não se deixe intimidar pela misteriosa complexidade dos diagramas e gráficos; na
verdade, quando o autor discute minuciosamente o sistema matrimonial dos Murngin
ou dos Katchin, é o mistério da sociedade como um todo, o mistério do homem, que ele
se esforça por descobrir. O problema ao qual ele se dedica é o mais fascinante e o mais
desconcertante de todos os que têm mobilizado etnógrafos e sociólogos: trata-se do
enigma colocado pela proibição do incesto. A importância deste fato e sua obscuridade
resultam da situação única que ele ocupa no conjunto dos fatos humanos. Estes se
dividem em duas categorias: os fatos da natureza e os fatos da cultura; certamente
nenhuma análise permite descobrir entre eles o ponto de passagem. Mas eles se
distinguem sob um critério seguro: os primeiros são universais; os segundos obedecem
a normas. A proibição do incesto é o único fenômeno que escapa dessa classificação:
pois ela aparece em todas as sociedades, sem exceção, e ao mesmo tempo é uma regra.
As diferentes interpretações tentadas até então se esforçaram todas para mascarar
essa ambiguidade. Alguns pensadores evocaram os dois aspectos – natural e cultural
– da lei; mas eles apenas estabeleceram entre eles uma relação intrínseca; supuseram
que um interesse biológico teria engendrado a interdição social; outros viram na
exogamia um fato puramente natural: ela seria ditada por um instinto; outros, enfim,
dentre os quais Durkheim, consideraram-na exclusivamente um fenômeno cultural.

125
Esses três tipos de explicação têm conduzido a impossibilidades e contradições. Na
verdade, se a proibição do incesto é de tão grande interesse, é porque ela representa o
momento mesmo da passagem da natureza para a cultura. “É o processo pelo qual a
natureza ultrapassa a ela mesma”. Essa singularidade decorre do caráter particular da
sexualidade mesma: é normal que a dobradiça entre natureza e cultura se encontre no
terreno da vida sexual, pois esta, extraída da biologia, coloca imediatamente outrem em
jogo; no fenômeno da aliança se desenvolve essa dualidade: pois enquanto o parentesco
é dado, a natureza impõe a aliança, mas não a determina. Podemos extrair daqui a
maneira pela qual o homem, assumindo sua condição natural, define sua humanidade.
Pela proibição do incesto se expressam e se realizam as estruturas fundamentais sobre
as quais se funda a sociedade humana como tal. Primeiramente a exogamia manifesta
que não haveria sociedade sem o reconhecimento de uma Regra. Contrariamente aos
mitos e às inverdades liberais, a intervenção não está somente relacionada a alguns
regimes econômicos: ela é tão original quanto a humanidade mesma. A distribuição dos
valores entre os membros da coletividade sempre foi e será um fenômeno cultural;
porém – como o alimento ao qual ela é estreitamente associada –, a mulher é um
produto escasso e essencial à vida do grupo: em muitas civilizações primitivas, o solteiro
é econômica e socialmente um pária; o primeiro cuidado da coletividade será assim
impedir que se estabeleça um monopólio de mulheres. Este é o sentido profundo da
proibição do incesto; afirma-se que não é sobre a base de sua repartição natural que as
mulheres devem receber um uso social; se ao homem se impede escolher seus aliados
entre os seus parentes, se “congelamos” as mulheres no seio da família, é porque a
distribuição se faz sobre o controle do grupo e não em regime privado. A despeito de seu
aspecto negativo, a Regra tem na verdade um sentido positivo; a interdição implica
imediatamente uma organização: pois para renunciar a seus parentes, é necessário que
o indivíduo seja assegurado de que a renúncia simétrica de outro lhe conceda aliados;
ou seja, a regra é a afirmação de uma reciprocidade; a reciprocidade é a maneira imediata
de integrar a oposição entre mim e outrem: sem uma tal integração, a sociedade não
existiria. Porém, tal relação não existiria se permanecesse abstrata; sua tradução
concreta é a troca: a transferência de valores de um indivíduo a outro os transforma em
parceiros; somente sob essa condição pode se estabelecer um “mitsein” humano. A
característica fundamental destas estruturas se revela claramente no estudo da
psicologia infantil: a criança faz o aprendizado de si mesma e do mundo aprendendo a
aceitar a arbitragem de um outro, quer dizer, a Regra, que a faz descobrir a reciprocidade,
descoberta à qual ela reage imediatamente pelo dom e pela exigência. Essa noção de
troca – cuja importância Mauss já havia estabelecido no seu ensaio sobre o dom, e que
envolve as noções de regra e de reciprocidade – nos fornece a chave do mistério da
exogamia: proibir uma mulher aos membros de um dado grupo é colocá-la imediatamente
à disposição de outro homem; a proibição se duplica em obrigação: aquela de dar sua
filha, sua mulher, a outro homem; a parenta que se rejeita, se oferece; o fato sexual, ao
invés de fechar-se sobre si, abre um vasto sistema de comunicação. A proibição do
incesto se confunde com a instauração da ordem humana. Os homens em toda parte
procuraram estabelecer um regime matrimonial tal que a mulher faça parte dos dons
pelos quais se expressa a relação de cada um ao outro e se afirma a existência social.

126
Uma observação extremamente importante impõe-se aqui: não é entre os homens e as
mulheres que aparecem as relações de reciprocidade e de troca; elas se estabelecem
por meio das mulheres, entre os homens; existe e sempre existiu entre os sexos uma
profunda assimetria e o “Reino das mulheres” é um mito superado; qualquer que seja o
modo de descendência, quer os filhos sejam incluídos no grupo do pai ou naquele da
mãe, as mulheres pertencem aos machos e fazem parte do conjunto de prestações que
eles se consentem. Todos os sistemas matrimoniais implicam que as mulheres sejam
dadas por certos machos a outros machos. Há um caso onde a relação entre o casamento
e a troca aparece claramente: é o das organizações dualistas; estas apresentam
analogias tão fortes entre si que se tentou às vezes lhes dar uma origem única: segundo
Lévi-Strauss, sua convergência se explica pela identidade de seu caráter funcional. Não
é o sistema dualista que faz nascer a reciprocidade: ele antes a exprime de uma forma
concreta. É esta mesma perspectiva que permitirá explicar as formas de sociedade mais
complexas: elas não são o resultado de acasos históricos e geográficos; todas elas
manifestam uma mesma e profunda intenção: a de impedir o grupo de se fechar em si
mesmo e de mantê-lo diante de outros grupos com os quais a troca seja possível. O
autor buscará a confirmação dessas ideias em uma minuciosa análise de realidades
sociais dadas; é esse estudo que constitui a parte mais importante de seu trabalho. Não
seria questão aqui de repassar os complicados meandros; tentarei somente indicar o
método, já que é na sua aplicação metódica que uma hipótese manifesta sua
fecundidade. A forma do casamento que fornece o verdadeiro experimentum crucis do
estudo das proibições matrimoniais é o casamento entre primos cruzados. Em um
grande número de sociedades primitivas o casamento é proibido entre primos paralelos
– aqueles provenientes de dois irmãos ou duas irmãs – e recomendado entre primos
cruzados – isto é, advindos de um irmão e uma irmã; o extremo interesse desse costume
provém do fato de que graus de parentesco biologicamente equivalentes são
considerados de um ponto de vista social como radicalmente dessemelhantes: torna-se
patente que não é a natureza quem dita suas leis à sociedade; compreendendo-se a
origem dessa assimetria tem-se a explicação da proibição do incesto. O casamento
entre primos cruzados implica uma organização dualista da coletividade: eles distribuem-
se de fato como se pertencessem a duas metades diferentes; mas não se deve crer que
seja esta a divisão que define as regras de exogamia; os primitivos não começam
estabelecendo classes: a classe é um elemento analítico, como o conceito; o homem
pensa antes que o lógico apreenda o pensamento enquanto forma; assim a sociedade
se organiza antes de definir os elementos separados que essa organização trará à tona;
lá onde são encontradas as classes – e isso não é por toda parte –, elas são menos um
grupo de indivíduos concebidos em extensão que um sistema de posição, no qual
somente a estrutura é constante e onde os indivíduos podem se deslocar, desde que as
relações sejam respeitadas. O princípio da reciprocidade age de duas maneiras
complementares: constituindo classes que delimitam em extensão os cônjuges ou
determinando uma relação que permita dizer se um indivíduo é ou não um cônjuge
possível: no caso dos primos cruzados, esses dois aspectos do princípio se recobrem;
mas não é seu pertencimento a dois grupos diferentes que os destina a se aliar entre si;
ao contrário, a razão de ser do sistema que os opõe é a possibilidade de uma troca. As

127
mulheres aparecem imediatamente como destinadas a serem trocadas e esta
perspectiva cria imediatamente uma oposição entre dois tipos de mulheres: a irmã e a
filha que devem ser cedidas e a esposa que é adquirida, ou seja, a parente e a aliada. Não
se trata aqui, como pensava Frazer, da solução de um problema econômico: os processos
econômicos não são isoláveis; é um ato de consciência primitivo e indivisível que faz
apreender a filha e a irmã como um valor ofertável e a filha e a irmã de outrem como um
valor exigível. Antes mesmo que a coisa a trocar se apresente, a relação de troca já está
dada: antes do nascimento de sua filha, o pai sabe que deverá entregá-la ao homem –
ou ao filho do homem – de quem recebeu a irmã em casamento. Os primos cruzados são
provenientes de famílias que se encontram em posições antagônicas, em um
desequilíbrio dinâmico que somente a aliança pode resolver; ao contrário, duas irmãs ou
dois irmãos, pertencentes ao mesmo grupo, têm entre eles uma relação estática e seus
filhos serão considerados como fazendo parte de um mesmo conjunto; eles não portam
um em relação ao outro o sinal da alteridade, necessário ao estabelecimento das
alianças. Porém, se nos limitarmos a considerar a troca sob essa forma restrita – ou seja,
na medida em que ela estabelece uma reciprocidade entre um certo número de pares
de unidades trocadoras, classes, seções ou subseções –, percebemos que ela não
permite dar conta da integralidade dos fatos. É o que se evidencia, por exemplo, na
análise dos fatos australianos. É sob sua forma generalizada que a ideia de troca pode
servir de chave para o estudo de todas as sociedades. A troca generalizada é aquela que
estabelece relações de reciprocidade entre um número qualquer de parceiros: assim, se
um homem do grupo A esposa necessariamente uma mulher B, ao passo que um
homem B esposa uma mulher C, o homem C uma mulher D, e o homem D uma mulher
A, está-se diante de um sistema de troca generalizada; é o que se produz, entre outros,
no caso em que o casamento é matrilateral, ou seja, o homem deve desposar a filha de
seu tio materno. Essa regra estabelece o desenvolvimento de um ciclo aberto no qual
cada indivíduo deve ter confiança: quando o grupo A cede uma mulher ao B, trata-se de
uma especulação de longo prazo, pois ele deve contar que B cederá uma mulher a C, e
deste a D, e este a A; tal cálculo comporta riscos e é por isso que à troca generalizada
frequentemente se superpõem novas fórmulas de aliança, como o matrimônio por
compra, que permite integrar fatores irracionais, sem destruir o sistema. A aplicação
desses princípios diretores permite a Lévi-Strauss depreender a significação de regimes
matrimoniais que pareciam até então contingentes e ininteligíveis. A conclusão destas
análises que nos transportam à Austrália, à China, às Índias e às Américas é que existem
dois tipos essenciais de exogamia. À troca direta corresponde o casamento bilateral, o
indivíduo podendo desposar a filha de seu tio materno ou de sua tia paterna; à troca
indireta (ou generalizada) corresponde o casamento matrilateral que autoriza a aliança
exclusivamente com a filha do tio materno [a autora não considera que Lévi-Strauss
também toma o casamento com a prima cruzada patrilateral como um modo de troca
generalizada]. O primeiro sistema só é possível nos regimes desarmônicos, ou seja, onde
a residência e a filiação seguem uma linha paterna e o outro a linha materna; o segundo
aparece nos regimes harmônicos, onde residência e filiação seguem a mesma linha; o
primeiro possui uma grande fecundidade em relação ao número de sistemas que é
capaz de fundar, mas sua fecundidade funcional é relativamente fraca; o segundo é, ao

128
contrário, um princípio regulador fecundo que conduz a uma maior solidariedade
orgânica no seio do grupo; no caso da troca restrita, é a inclusão ou a exclusão dentro
ou fora da classe que faz o papel principal; no caso da troca indireta, o grau de parentesco,
ou seja, a natureza da relação, tem uma importância preponderante; os sistemas
desarmônicos têm assim evoluído na direção de organizações de classes matrimoniais,
enquanto o contrário é produzido nos sistemas harmônicos. Estes constituem um ciclo
aberto, longo, aqueles um ciclo curto; o casamento bilateral é uma operação mais
segura; mas o casamento matrilateral oferece virtualidades inesgotáveis, a extensão do
ciclo estando na razão inversa de sua segurança. É por isso que um fator alógeno se
sobrepõe quase sempre às formas simples da troca generalizada; entre grupos que se
lançam nessa grande aventura sociológica, nenhum é liberado inteiramente da
inquietude engendrada pelos riscos do sistema, e eles mantêm um certo coeficiente ou
mesmo um símbolo de patrilateralidade. Nenhum sistema é puro: ele é simultaneamente
simples e coerente, porém cercado por outros sistemas. Resta acrescentar que a
estrutura de troca não é solidária da prescrição de um cônjuge preferencial; entre outras,
a substituição do direito sobre a prima pela compra da mulher permite à troca se
desembaraçar de suas formas elementares. Mas quer seja indireta ou direta, global ou
específica, concreta ou simbólica, é sempre a troca que nós encontramos na base das
instituições matrimoniais. Vê-se então se confirmar a ideia de que a exogamia visa
assegurar a circulação total e contínua das mulheres e das filhas; seu valor não é
negativo, mas positivo: não é que haja um perigo biológico no casamento consanguíneo,
mas um benefício social resulta do casamento exogâmico. A proibição do incesto é por
excelência a lei do dom: é a instauração da cultura no seio da natureza. “Todo casamento
é um encontro dramático entre a natureza e a cultura, entre a aliança e o parentesco...
Já que se deve ceder à natureza para que a espécie se perpetue e com ela a aliança
social, é necessário ao menos negá-la ao mesmo tempo em que acedemos a ela”. Em
um sentido, todo casamento é um incesto social, já que o marido absorve em si algum
bem ao invés de desviá-lo na direção de outrem [no original, s’échapper vers autrui]; ao
menos a sociedade exige que no centro desse ato egoísta a comunicação com o grupo
seja mantida: é por isso que, ainda que mulher seja outra coisa além de um signo, ela é,
todavia, como a palavra, uma coisa que se troca. A relação do homem com a mulher é
também fundamentalmente uma relação com outros homens – com outras mulheres.
Os enamorados nunca estão sozinhos no mundo. O evento mais íntimo para cada um, o
ato sexual é também um evento público: ele coloca em questão, ao mesmo tempo, o
indivíduo e a sociedade inteira; é daí que vem seu caráter dramático; aqueles que se
escandalizam com o ardente interesse que lhe dão os homens hoje em dia demonstram
grande ignorância: a extrema importância conferida aos tabus sexuais nos mostra que
esta preocupação é velha como o mundo; e ela está longe de ser supérflua, já que, pela
maneira como assume sua sexualidade, o homem define sua humanidade. Certamente
essa escolha que ele faz não é fruto de uma deliberação refletida. Mas o primeiro mérito
do estudo de Lévi-Strauss é precisamente o de recusar o velho dilema: ou os fatos
humanos são intencionais ou não possuem significação. O autor os define como
estruturas nas quais o todo precede as partes e cujo princípio regulador possui um valor
racional mesmo quando não seja racionalmente concebido. De onde provêm estrutura

129
e princípio? Lévi-Strauss não se permite aventurar sobre o terreno filosófico, não se
separa jamais de uma rigorosa objetividade científica; mas seu pensamento se inscreve
evidentemente na grande corrente humanista que considera a existência humana
como contendo em si sua própria razão. Não se poderia ler suas conclusões sem se
lembrar das palavras do jovem Marx: “A relação do homem com a mulher...” Entretanto o
livro não desperta apenas ressonâncias marxistas; ele me pareceu muitas vezes
reconciliar de modo feliz Engels e Hegel: pois o homem nos aparece originalmente como
uma antiphysis; e o que realiza sua intervenção é a posição concreta de um eu face a
um outro eu, sem o qual o primeiro não saberia se definir. Também fui singularmente
surpreendida pela concordância de algumas descrições com as teses sustentadas pelo
existencialismo: a existência, ao se colocar, coloca suas leis, em um único movimento;
ela não obedece a nenhuma necessidade interior, entretanto escapa à contingência por
assumir as condições de seu brotar. Se a proibição do incesto é universal e normativa ao
mesmo tempo, é porque ela traduz uma atitude original do existente: ser homem é se
escolher como homem, definindo suas possibilidades sobre a base de uma relação
recíproca com o outro; a presença do outro nada tem de acidental: a exogamia, bem
longe de se limitar a registrá- la, ao contrário, a constitui; através dela se expressa e se
realiza a transcendência do homem; ela é a recusa da imanência, a exigência de
ultrapassá-la; aquilo que os regimes matrimoniais asseguram ao homem, pela
comunicação e pela troca, é um horizonte em direção ao qual ele possa se projetar; sob
sua aparência barroca, eles lhe asseguram um além-humano. Mas seria trair um livro
tão imparcial pretender fechá-lo dentro de um sistema de interpretação: sua fecundidade
está precisamente em convidar cada um a repensá-lo à sua maneira. É por isso também
que nenhuma resenha lhe faria justiça; uma obra que nos apresenta os fatos, que
instaura um método, e que sugere especulações, merece que cada um renove a
descoberta: é preciso lê-la.

Tradução: Marcos P. D. Lanna (UFSCar) e Aline Fonseca Iubel (PPGAS/UFPR). As Estruturas


Elementares do Parentesco, de Claude Lévi-Strauss. Texto original: Simone de Beauvoir. 1949. “Les
Structures Élémentaires de la Parenté, par Claude Lévi-Strauss”. Les Temps Modernes 7(49): 943-9
(October). Disponível em: <http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/campos/article/view/9547/6621>.

130
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• Vários são os temas estudados pela Antropologia, mas para o terceiro tópico foram
selecionados: união, casamento e parentesco.

• O conceito de união refere-se às possibilidades de relacionamento sexual entre


pessoas do sexo oposto, que tem como base o instinto, mas que normalmente é
cerceado por normas e padrões culturais. É comum seguir para o casamento.

• O casamento é um dos mais antigos complexos de normas sociais, que tem por
objetivo organizar a relação de um par. É o que possibilita e normatiza a constituição
da família.

• A exogamia refere-se à regra que determina que os casamentos ocorram fora da


família. Pode ser dividida em exogamia simples e restrita. É uma regra encontrada em
muitas sociedades.

• A endogamia é uma regra social encontrada em poucas sociedades e refere-se a


uma regra social que obriga que os casamentos ocorram dentro do círculo familiar,
ou do grupo a que se considera de pertencimento.

• Existem sete tipos de modalidades de casamento. São eles: preço por progênie, ou
riqueza da noiva; pelo serviço do pretendente; por troca de presentes; por captura;
por afinidade, substituição ou continuação; por fuga e por adoção.

• Por Sistema de Parentesco podemos denominar a organização social das relações


familiares em uma determinada cultura.

• O que dá origem ao sistema de parentesco é a família nuclear, que pode ser constituída
de três maneiras: por afinidade, consanguinidade e por pseudoparentes (adotivos).

131
AUTOATIVIDADE
1 A antropologia discute vários temas relacionados à existência humana em sociedade.
Um dos elementos é a união. Caracterize este termo.

2 Conforme pudemos verificar neste Caderno de Estudos, para compreendermos


como ocorrem as diferentes modalidades de casamento é necessário conhecer os
conceitos de exogamia e endogamia. Conceitue-os:

132
UNIDADE 3 —

FUNDAMENTOS DA
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender as principais concepções de homem na história da filosofia;

• refletir sobre a perspectiva histórica da antropologia filosófica no ocidente;

• compreender os diferentes conceitos formulados pelos filósofos ao longo da história,


desde os gregos antigos até os pensadores modernos;

• analisar criticamente as diferentes concepções sobre o homem no decorrer da


história da filosofia;

• ampliar a visão sobre o homem, sobre o mundo e o transcendente.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer dela, você encontrará
autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – A CONCEPÇÃO DE HOMEM NA CULTURA GREGA


TÓPICO 2 – A CONCEPÇÃO DE HOMEM NO PERÍODO CRISTÃO-MEDIEVAL
TÓPICO 3 – A CONCEPÇÃO DE HOMEM NA MODERNIDADE

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133
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A TRILHA DA
UNIDADE 3!

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134
UNIDADE 3 TÓPICO 1 —
A CONCEPÇÃO DE HOMEM NA
CULTURA GREGA

1 INTRODUÇÃO
A história da nossa civilização se inicia com a história da civilização dos gregos.
Os filósofos gregos foram os primeiros seres humanos a indagar sobre si e Sobre o mundo
(cosmos) de maneira lógica-racional. Desde os pré-socráticos até a modernidade,
a pergunta: o que é o homem? Não se exauriu. Ao contrário, ela tomou força na
modernidade, e continua fazendo parte das discussões filosóficas contemporâneas. A
antropologia filosófica é o ramo da filosofia que busca investigar a estrutura essencial
do homem, isto é, o que faz do homem, homem. Quais são as propriedades essenciais
que permitem diferenciar o homem de outros animais? A sua razão? A alma (psyché)? A
linguagem? O corpo? Ao longo da história da filosofia, diversos filósofos formularam sua
compreensão do que é o homem. Isso nos mostra que a nossa compreensão de homem
ocidental nasce na civilização Grega Antiga, há mais de 2 mil anos.

A civilização grega é o berço do humanismo. Os filósofos gregos tinham, por


obsessão, caracterizar, definir uma ideia de homem. Para Jaeger (1994), esse ímpeto
não se deu a partir do eu subjetivo, mas de uma ideia universal e normativa. O homem
é o centro do pensamento grego. Isso pode ser evidenciado nas produções artísticas,
nas esculturas antigas e nas reflexões filosóficas. Desde o problema do cosmo, da
busca da arché (princípio primeiro), até a constituição do Estado grego, os antigos se
preocupavam com a ideia de homem.

Apresentaremos, neste tópico, as principais ideias sobre a concepção clássica


de homem, dada pelos primeiros filósofos do ocidente, há mais de 2 mil anos. Trataremos,
num primeiro momento, da cultura grega arcaica, na qual se situam os filósofos pré-
socráticos (antes de Sócrates) do século VIII e VII a.C. Atravessando pelo período de
ouro da antiguidade grega, denominado de clássico, encontramos Sócrates, Platão e
Aristóteles, a partir do século V e IV a.C.

Bons estudos!

135
2 O HOMEM NA FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA
Inicialmente, os primeiros filósofos gregos, conhecidos como “cosmólogos”,
“naturalistas” ou “físicos”, se ocupavam com o problema filosófico de ordem do cosmos
(universo, astros). A totalidade do real era compreendida como physis (natureza) e cosmos.
Os filósofos pré-socráticos se questionavam: como surgiu o cosmos? Quais são as forças que
geram e movem o cosmos? Portanto, para pensar a individualidade do homem, segundo os
primeiros filósofos, era necessário primeiro compreender a physis e a ordem do mundo.

O primeiro filósofo a abordar um pensamento antropológico definido é Diógenes


de Apolônia (440 a.C.). Influenciado diretamente pela escola jônica, o filósofo grego
propõe uma visão finalista do mundo. Para Diógenes, o homem é superior aos outros
animais. Isso se verifica na própria constituição física do homem, pois segundo o
filósofo, a condição vertical, a sua marcha e o seu olhar para o alto, corresponde à
aptidão humana para a contemplação dos astros. Portanto, ao contemplar os astros, a
ordem cósmica, há uma profunda correspondência, e, desta correspondência, nasce o
sentimento religioso diante do cosmos.

Nesse sentido, para Diógenes, as mãos também ocupam um papel fundamental


na constituição humana, pois as habilidades das mãos produzem, são dotadas de téchne¸
são obreiras, e, por sua vez, são manifestação da linguagem e do pensamento (logos).
Desse modo, o filósofo pré-socrático constrói, pela primeira vez, uma ideia de homem como
estrutura corporal-espiritual, na qual a sua natureza se manifesta na cultura por meio das
suas obras, seus feitos. Assim, o homem é visto como ordenado finalisticamente em si
mesmo e para o qual se ordena a própria ordem do cosmos (VAZ, 1991).

DICA
Você sabia que um dos primeiros filósofos jônicos independentes foi Heráclito
de Éfeso (500 a.C.). Heráclito foi um dos principais filósofos da Antiguidade
pré-socrática. A obra do filósofo caracterizou-se por iniciar um movimento de
ruptura na filosofia pré-socrática que, com as ideias dos eleatas, desembocaria
nas filosofias socrática, platônica e aristotélica. Heráclito defende que não há
unidade natural no mundo, mas duelos e dualidade constante. “O mundo
é um eterno devir”, afirma o filósofo, querendo dizer que há uma constante
mudança, imprevisível, que caracteriza a natureza. O pensador despreza a
noção de essência e defende que existe uma mutabilidade, surgida de vários
processos contínuos, que resulta no que é o mundo. Essa relação é composta
pelo duelo entre os contrários, o qual gera novas características. Por pensar
assim, Heráclito é considerado o “pai” da dialética. Disponível em: https://
brasilescola.uol.com.br/filosofia/heraclito.htm.

136
FIGURA 1 – DIÓGENES DE APOLÔNIA (440-423 A.C.)

FONTE: <http://3.bp.blogspot.com/-RC25OE10-xI/UWs_TkixJ5I/AAAAAAAAnE4/DJ-i0ku_MoM/s320/
Diogenes.jpg>. Acesso em: 24 jun. 2020.

Diógenes é considerado o filósofo que marca uma linha de transição com a


primeira filosofia pré-socrática do século VI, a.C., conhecida pelo problema da physis e
pela busca do princípio primeiro (arché). Sua teorização gira em torno da necessidade
de resgatar o monismo do princípio, pois, para o filósofo, os princípios da natureza não
poderiam ser diferentes entre si, e agir uns sobre os outros. Nesse sentido, o filósofo
naturalista constata que o ar infinito é o primeiro princípio, cuja todas as coisas derivam
e se transformam. Com isso, Diógenes sustenta que a nossa alma é ar-pensamento,
pois é dotada de inteligência. A inteligência como princípio-ar move todas as coisas, e,
portanto, exala-se com o último suspiro, quando não há mais vida.

Diógenes influenciou diretamente o pensamento de Sócrates com sua visão


finalística de mundo e homem como estrutura corporal-espiritual. A noção de homem
indissociável do cosmo se prolongou na teoria do conhecimento de Empédocles e de
Demócrito, e mais tarde, na filosofia de Aristóteles.

No desenrolar do século V a.C., o problema antropológico aparece com maior


evidência, sobrepondo-se ao problema do cosmos. O período em que o interesse
filosófico grego se volta para o problema do homem, é chamado de humanismo. Esse
novo horizonte de pensamento coincide com a última fase da filosofia naturalista
e sua consequente dissolução. Os responsáveis por essa virada de pensamento são
os sofistas e, sobretudo Sócrates, que, pela primeira vez na história do pensamento
ocidental, busca determinar a essência do homem.

137
3 OS SOFISTAS E A ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA
Os sofistas aparecem na história da filosofia ocidental, como um grupo de
intelectuais itinerantes, considerados “sábios”, especialistas do saber. A acepção do
termo sofista (sophistês), engloba o saber teórico e as habilidades práticas, revelando
um deslocamento, um novo campo de problematização, que tem como perspectiva
o homem e suas capacidades. As práticas utilizadas pelos sofistas se baseavam nas
sutilezas da retórica, com objetivos de obter lucro e vantagens. Sem o interesse pela
verdade (alethéia), os sofistas ensinavam aos seus estudantes a arte da persuasão,
técnicas de discurso que explorava o sentimentalismo, essencial para quem aspirasse o
campinho da vida pública (política).

FIGURA 2 – OS SOFISTAS

FONTE: <https://3.bp.blogspot.com/-UYJjNKryftE/WYDyx1e8xZI/AAAAAAAAFUg/
xZEURjMvKqcnMctow0SD311-B5nakZXqQCLcBGAs/s1600/sofistas.jpg>. Acesso em: 24 jun. 2020.

O método e o objetivos das técnicas dos sofistas foram duramente criticados


por filósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles. Contudo, historiadores como Werner
Jaeger, Reale e Antiseri consideram que os sofistas são tão necessários quanto Sócrates
e Platão. Segundo Reale e Antiseri (1990, p. 73), “os sofistas operaram uma verdadeira
revolução espiritual, deslocando o eixo da reflexão filosófica da physis e do cosmos para
o homem e aquilo que concerne a vida do homem como membro de uma sociedade”.
Nesse sentido, é correto afirmar que, com os sofistas, inicia-se uma discussão sobre
temas fundamentais, como a ética, a política, a arte, a retórica, a educação, cuja
preocupação central é a cultura do homem.

Para Vaz (1991), algumas ideias que constituíram o arcabouço na concepção


do homem ocidental são formuladas pela primeira vez no contexto do pensamento
dos sofistas em Atenas. Algumas ideias-chave para se pensar essa revolução cultural
protagonizada pelos sofistas, segundo Vaz (1991, p. 33), são:

138
a) o conceito de uma natureza humana (anthropinê physis) com seus
predicados próprios e com as exigências que lhe são essenciais;
b) o conceito de narração histórica pela investigação, seriação
e julgamento dos fatos, na qual emergem a consciência do
pluralismo das culturas (Heródoto) e se revelam as constantes
e fins que sustentam e movem o agir humano em situações
consideradas típicas (Tucídides);
c) a oposição entre a convenção (nómos) e a natureza (physis) na
organização da cidade e nas normas do agir individual, dando
origem às primeiras teorias do convencionalismo jurídico;
d) individualismo relativistas, acompanhado das primeiras
formulações céticas do conceito de verdade;
e) a concepção de um desenvolvimento progressivo da cultura,
exposta, sobretudo, no famoso mito de Protágoras que Platão nos
transmitiu no diálogo homônimo (Prot. 320 c-322d);
f) a análise do homem como ser de necessidade e carência, ao qual
compete suprir com a cultura o que lhe é negado pela natureza,
tema esse que alimentará o pensamento antropológico ao longo
de toda a sua história;
g) finalmente, a ideia fundamental do homem como ser dotado de
logos (zôon logikón), ou seja, da palavra e do discurso capaz de
demonstrar e persuadir.

Com a dissolução do pensamento “físico” sobre a physis e as intensas


manifestações sociais, econômicas e culturais na Grécia Antiga, os sofistas encontram
um terreno fértil para o exercício de suas atividades. Podemos destacar como elementos
de mudanças na Grécia, no século V a.C., a crise da aristocracia e o consequente
crescimento do poder do demos (povo); a entrada de estrangeiros às cidades, sobretudo
em Atenas, ampliando as zonas de comércio e de navegação; a difusão de conhecimentos
e experiências dos viajantes que compartilhavam saberes de outras culturas, costumes
e leis helênicos. Todos esses elementos contribuíram de modo efetivo para o emergir da
problemática sofística.

A crise da aristocracia implicou também na crise da antiga areté, os


valores tradicionais, que eram precisamente os valores apreciados
pela aristocracia. A crescente afirmação do poder do demos e a
ampliação da possibilidade de aceder ao poder, a círculos mais
vastos, fizeram cair a convicção de que a areté estivesse ligada à
nascença, isto é, que se nascia virtuoso e não se tornava, colocando
em primeiro plano a questão de como se adquire a “virtude política”
(REALE; ANTISERI, 1990, p. 74).

Os sofistas se destacaram no mundo grego, sobretudo porque souberam


compreender as mudanças nas pólis gregas. Os valores tradicionais transmitidos pela
velha geração de pensadores não satisfaziam mais os interesses da juventude. Os
sofistas aparecem como guias, como pensadores esclarecidos, conhecidos também
como os “iluministas gregos”. Dentre os sofistas, podemos destacar alguns, como
Protágoras, Górgias, Pródico, Hípias, Élida e Antifonte.

139
O sofista mais destacado e que teve maior visibilidade no mundo grego
foi Protágoras. Nascido em Abdera (491 a.C.), o pensador viajou por toda a Grécia,
alcançando um enorme sucesso. Era bem visto por políticos, como Péricles que lhe
deu a missão de fazer a legislação para a nova colônia de Turi, em 444 a.C. Sua principal
obra, As Antilogias, foi conhecida apenas por testemunhos (REALE; ANTISERI, 1990).

FIGURA 3 – PROTÁGORAS

FONTE: <https://revjorgeaquino.files.wordpress.com/2016/07/protagoras.jpg?w=640>.
Acesso em: 25 jun. 2020.

Segundo o pensamento de Protágoras, “o homem é a medida de todas as coisas,


daquelas que são por aquilo que são e daquelas que não são por aquilo que não são”
(REALE; ANTISERI, 1990, p. 76). Para o filósofo, “medida”, diz respeito à “norma de juízo”,
enquanto “todas as coisas” refere-se a todos os fatos e experiências em geral.

Protágoras é considerado o fundador do relativismo ocidental. Haja vista que


com sua teoria, ele busca negar a existência de um critério absoluto que discrimine ser
e não ser, verdadeiro e falso, sendo apenas o homem individual, o critério que deve ser
seguido. Assim, segundo a teoria de Protágoras: para quem está com frio, é frio; para
quem não está, não é; não existe uma verdade absoluta a respeito do frio, mas cada
homem possui a sua verdade, logo, ninguém está errado (REALE; ANTISSERI, 1990).

Deste modo, podemos dizer que com os sofistas aparecem as raízes da


concepção de homem como animal racional, que será desenvolvida com maior
profundidade no período clássico da filosofia ocidental.

140
4 A ANTROPOLOGIA SOCRÁTICA-PLATÔNICA
A figura de Sócrates representa a inflexão decisiva que orienta até hoje
o pensamento antropológico. A sua contribuição no campo da filosofia, da ética,
da política, da moral, do direito, é sentida até hoje. O filósofo nasceu em Atenas em
470/469 a.C. e morreu em 399 a.C., em decorrência de uma condenação de “impiedade”,
coordenada por membros políticos de Atenas. Acusado de corromper os jovens e de
não crer nos deuses da cidade, havia também por trás das acusações, ressentimentos e
manobras políticas. Sócrates tinha origem humilde, filho de um escultor e uma obstetriz
(parteira). Seu legado é conhecido por outros filósofos, pois não deixou nada escrito,
e, também, não fundou nenhuma escola filosófica como fizeram seus sucessores. Os
seus ensinamentos se deram em espaços públicos, como ginásios e praças, no qual
chamava a atenção e causava fascínio de jovens até pessoas de mais idade, o que lhe
custou muitas inimizades (REALE; ANTISSERI, 1990).

FIGURA 4 – SÓCRATES

FONTE: <https://www.mundociencia.com.br/wp-content/uploads/2016/07/socrates.jpg>.
Acesso em: 24 jun. 2020.

Sócrates é considerado o fundador da Antropologia Filosófica, bem como da


filosofia moral. A visão de homem, segundo o pensamento de Sócrates, só tem sentido
ou explicação se olharmos para o seu interior, ou seja, a sua dimensão de interioridade
presente em cada homem, pois é nessa dimensão que encontramos a “alma” (psyché).
Para o filósofo ateniense, a alma é uma espécie de lugar, de morada para a areté
(excelência ou virtude), que possibilita medir o homem, segundo a dimensão interior na
qual reside a verdadeira grandeza humana. Nesse sentido, é na alma que se encontra a
opção profunda que orienta a vida humana, que faz do homem justo ou injusto, bom ou
mau, honesto ou desonesto, virtuoso ou corrompido pelos vícios. É na alma, portanto,
que se “constitui a verdadeira essência do homem, sede de sua verdadeira areté” (VAZ,
1991, p. 34).

141
Segundo Vaz (1991 p. 34-35), as ideias centrais da antropologia filosófica de
Sócrates são:

a) A teologia do bem e do melhor como via de acesso para a


compreensão do mundo e do homem, e sobre a qual se funda
a natureza ética da psyqué. As páginas célebres da suposta
autobiografia de Sócrates transmitida por Platão são o melhor
testemunho, não obstante os elementos propriamente
platônicos da narração, dessa transposição socrática do
finalismo de Anaxágoras.
b) A valorização ética do indivíduo que encontrou sua expressão mais
conhecida na interpretação socrática do preceito délfico “conhece-
te a ti mesmo” (gnôthi soutón) do qual resulta da necessidade da
Cura e do cuidado com a “vida interior”, noção que faz sua primeira
aparição na história da antropologia e da espiritualidade. Segundo
a interpretação socrática, o preceito délfico ordena a investigação
(zêtesis) conduzida metodicamente (donde os três momentos
do método socrático, a ironia, a indução e a maiêutica), que deve
levar a sabedoria e com ela, necessariamente, à verdadeira areté
(teoria da virtude-ciência).
c) A primazia da faculdade intelectual no homem donde procede
o chamado intelectualismo socrático inspirando a doutrina da
virtude-ciência: ao exaltar o homem como portador do logos e ao
fazer da relação dialógica a relação humana fundamental, Sócrates
é provavelmente a fonte principal da definição do homem como
zôon logikón; enfim, os traços do homem socrático se completam
com a transposição do utilitarismo sofístico ao plano do finalismo
moral, quando a noção de bem, inerente à nova concepção de
areté, é apresentada sob a luz da utilidade que resulta da prática
do bem (é mais útil e melhor ser justo que injusto).

Enquanto para Sócrates o homem teria como missão moral suprema o cuidado
com a alma, ou seja, o sujeito deveria realizar essa arte do cuidado sobre si, buscando
sempre a verdadeira areté, Platão insere um elemento místico, o cuidado da alma,
segundo ele, significa “purificação da alma”. Nesse sentido o filósofo grego, discípulo
de Sócrates, estabeleceu uma síntese entre a “tradição pré-socrática da relação do
homem com o cosmos, a tradição sofística do homem como ser de cultura (paideía)
destinado à vida política e à herança dominante de Sócrates do “homem interior” e da
“alma” (psyqué)” (VAZ, 1991, p. 36).

Platão, considerado o fundador da metafísica ocidental, nasceu em Atenas por


volta de 428/427 a.C., cujo nome verdadeiro era Aristócles. Alguns estudiosos suspeitam
que o seu apelido derivou do seu vigor físico ou a amplitude de seu estilo ou, ainda, o
tamanho da sua testa (em grego, platos refere-se a amplitude, largueza ou extensão).
Não há dúvidas que desde a juventude, Platão era dotado de muita inteligência e
aptidões pessoais, o que o levou a se interessar desde cedo pela política. Algumas obras
importantes deixadas por Platão foram: Apologia a Sócrates, Fédon, Teeteto, A Política,
O Banquete, Fedro, Menon, Criton, A República etc.

142
FIGURA 5 – PLATÃO

FONTE: <https://s.ebiografia.com/assets/img/authors/pl/at/platao-l.jpg>. Acesso em: 24 jun. 2020.

O pensamento antropológico de Platão deriva de sua teoria do mundo das


ideias, no qual concebe uma separação radical entre corpo e alma (psyché). Segundo
a perspectiva metafísica de Platão, essa oposição entre alma e corpo existe porque
o corpo é entendido como uma “tumba” da alma, uma espécie de “cárcere", no qual o
homem está condenado a pagar as suas penas. Essa visão negativa do corpo é derivada
do elemento religioso presente do Orfismo, que tem grande influência no pensamento
de Platão.

DICA
Segundo Abbagnano (2007), o Orfismo consistiu numa seita filosófico-religiosa
difundida na Grécia, a partir do século VI a.C., e que se julgava fundada por
Orfeu. Segundo a crença fundamental dessa seita, a vida terrena era uma
simples preparação para uma vida mais elevada, que podia ser merecida por
meio de cerimônias e de ritos purificadores, que constituíam o arcabouço
secreto da seita. Essa crença passou para várias escolas filosóficas da Grécia
Antiga (Pitágoras, Empédocles, Platão), mas a importância que alguns filólogos e
filósofos dos primeiros decênios do século XX atribuíram ao O., na determinação
das características da filosofia grega, já não é reconhecida por ninguém.

Segundo o dualismo antropológico de Platão, o corpo pertence ao mundo sensível,


marcado pela materialidade, corruptibilidade, relações efêmeras, paixões desordenadas,
ignorância, discórdias, inimizades, loucuras, ou seja, o corpo não é visto como parte da
essência humana, mas como raiz de todo o mal. Já a alma (psyché) pertence ao mundo a
ser buscado constantemente, o mundo suprassensível ou inteligível, no qual se encontra as
ideias perfeitas, caracterizado pela imutabilidade e eternidade.

143
Reale e Antiseri (1990) apresentam dois paradoxos presentes no pensamento
antropológico de Platão.

O primeiro refere-se ao paradoxo do corpo – encontrado especialmente na


obra Fédon de Platão –, no qual a alma deve procurar fugir do corpo sempre que
possível. Nesse sentido, o verdadeiro filósofo é aquele que deseja a morte, e a
verdadeira filosofia é o exercício de morte. A morte está ligada ontologicamente ao
corpo, isso quer dizer que apenas o corpo é afetado pela morte, a alma (psyché), por
outro lado, é imortal e incorruptível. Segundo esse paradoxo, a morte não representa
dano à alma, mas é fonte de benefícios, pois permite ao homem (filósofo) viver uma
vida voltada para si mesmo, uma vida unida ao inteligível, sem os limites do corpo.
Em outras palavras, “isso significa que a morte do corpo representa a abertura para a
verdadeira vida da alma” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 155).

O segundo paradoxo, diz respeito à fuga do mundo, ou seja, o homem deve tornar-
se virtuoso e se assemelhar a Deus. Para isso, deve-se buscar sempre fugir das ilusões e
malefícios que o mundo sensível produz, pois o mal é o oposto e contrário do bem, e sempre
estará presente na terra junto a natureza mortal do homem. Já no mundo inteligível o mal
não existe, pois não habita entre os deuses. Logo, fugir do mundo representa fugir de todo
o mal que o mundo representa, realizando essa fuga através da virtude e do conhecimento
para cada vez mais se assemelhar a Deus (REALE; ANTISERI, 1990).

Assim, a antropologia platônica baseia-se no seu dualismo metafísico, no qual


a alma é apresentada como movendo-se a si mesma (autokínêton) e como princípio de
movimento (arché kinêseôs), provocando uma ruptura da noção da antropologia como
“alma mundo” e princípio do movimento cósmico (VAZ, 1991). O pensamento platônico é,
sem dúvidas, a mais poderosa influência na concepção clássica de homem, inspirando
uma geração de filósofos e pensadores que se apoiaram nas formulações metafísicas
do seu pensamento. Até hoje os traços de suas ideias estão presentes, sobretudo
no pensamento religioso, do qual serve-se da inspiração do neoplatonismo de Santo
Agostinho de Hipona (354 d.C.) para embasar sua doutrina.

5 A ANTROPOLOGIA ARISTOTÉLICA
O filósofo grego Aristóteles, discípulo de Platão, nasceu em 384/383 a.C.
em Estagira, na fronteira da macedônica. Com 18 anos, o jovem que já havia ficado
órfão, viajou para Atenas e ingressou na Academia de Platão. Na Academia, Aristóteles
consolidou sua visão filosófica de mundo, conheceu grandes cientistas da época, como
o célebre Eudóxio, permanecendo durante vinte anos, até a morte de Platão em 347 a.C.
Após a morte de Platão, Aristóteles não ficou satisfeito com os rumos que a Academia

144
platônica tinha tomado sob a direção de Espêusipo e decidiu viajar para Ásia Menor. Na
companhia de seu célebre colega Xenócrates, o filósofo fundou uma escola em conjunto
com os platônicos Erasto e Corisco. Por volta de 342 a.C. Aristóteles passou a integrar a
corte de Felipe da Macedônia, com o objetivo de cuidar da educação do filho do rei, cujo
nome era Alexandre (REALE; ANTISERI, 1990).

FIGURA 6 – ARISTÓTELES

FONTE: <https://static.todamateria.com.br/upload/ar/is/aristoteles-cke.jpg>. Acesso em: 24 jun. 2020.

INTERESSANTE
Você sabia que o filósofo Aristóteles foi contratado para cuidar da educação de
Alexandre, o Grande? Recentemente, a escritora Annabel Lyon lançou um livro
que recria a relação entre O Filósofo e o Imperador, colocando o foco na vida
de Aristóteles, reconhecido como um dos fundadores da filosofia ocidental. A
narrativa tem início quando Aristóteles se vê forçado a adiar o sonho de suceder
Platão como o líder da Academia em Atenas, para atender ao pedido de Filipe,
da Macedônia, tornando-se tutor de seu filho, Alexandre. No início, o filósofo fica
horrorizado com a perspectiva de ficar preso naquele lugar distante e atrasado
de sua infância, mas logo se sente atraído pelo potencial intelectual do menino
e por sua capacidade de surpreender. O que não sabe é se suas ideias seriam
páreo para a cultura guerreira incutida em Alexandre desde menino. O Filósofo
e o Imperador investiga como o gênio de Aristóteles afetou o garoto que iria
conquistar o mundo conhecido. Que tal aprofundar sua leitura nesse romance?
Acesse o site: https://www.bonde.com.br/entretenimento/literatura/livro-recria-
relacao-entre-aristoteles-e-alexandre-158061.html.

145
Aristóteles é considerado um dos fundadores da antropologia como ciência,
sendo o primeiro a realizar uma síntese científico-filosófica em sua concepção de
homem. Em termos gerais, pode-se dizer que a concepção de homem em Aristóteles,
caminhou desde um platonismo da psyché até um monismo hilemórfico (alma como
forma do corpo).

Embora o termo “antropologia” seja cunhado somente na modernidade,


Aristóteles também é o responsável por uma antropologia no sentido estrito, ou seja,
uma filosofia das coisas humanas. Portanto, o objeto de estudo de Aristóteles também é
o homem, que só pode ser compreendido no horizonte da physis. Deste modo, a noção
antropológica Aristóteles considera que o homem tem o seu lugar definido na hierarquia
da natureza (physis), ao contrário da concepção finalista de seu mestre Platão, que
situara o homem no plano do inteligível (mundo ideal).

Entretanto, Aristóteles não deixa de lado sua inspiração platônica, no que diz
respeito à capacidade do homem de se elevar, através da theoría, à contemplação
das realidades transcendentes e eternas (VAZ, 1991). Segundo Vaz (1991), Aristóteles
define sua antropologia filosófica a partir de quatro aspectos fundamentais: a estrutura
biopsíquica do homem ou teoria da psyché; homem como zôon logikón; homem como
ser ético-político; e, por fim, homem como ser de paixão e de desejo.

NOTA
Você sabia que o termo "teoria" provém do verbo grego theorein? O substantivo
correspondente é theoria. Essas palavras têm, de próprio, uma significação
superior e misteriosa. Os gregos pensavam, isto é, recebiam da própria língua
grega e, de uma maneira única, seu modo de estar e ser no ser. Por isso,
junto ao lugar mais alto atribuído à theoria pelo ser vivente (bios) grego, eles
costumavam escutar ainda uma outra coisa na palavra. É que os dois étimos
thea e horaw podem ter outra acentuação: theá e ora. Theá é a deusa. Foi como
deusa que a aletheia apareceu ao pensador originário Parmênides. Traduzimos
aletheia pelo latim veritas, verdade, e pelo alemão wahrheit. A palavra grega
ora significa o respeito que temos, diz a honra e a consideração que damos.
Se pensarmos na palavra theoria a partir das últimas significações, a theoria se
torna a consideração respeitosa da revelação do vigente. Em sentido antigo,
originário, mas de forma alguma antiquado, a teoria é a visão protetora da
verdade (HEIDEGGER, 2002).

No que diz respeito ao homem, pensado a partir de sua estrutura biopsíquica, o


homem é um ser composto de psyché e de sôma, sendo a psyché o princípio vital, o ato
ou a perfeição do corpo organizado. Nesse sentido, Aristóteles compreende que há uma
hierarquia na natureza (physis), que é gradativa, e caminha de acordo com a função
comum a todos os seres vivos. A nutrição é a função primária e comum a todos os seres
vivos; a sensação é uma função próprias dos seres superiores; e a função intelectiva é
a função exclusiva do homem (VAZ, 1991).

146
O segundo aspecto da antropologia aristotélica, refere-se ao homem como zôon
logikón, ou seja, o homem é um animal racional. A racionalidade distingue o homem
de todos os seres encontrados na natureza. Esse é o aspecto específico e peculiar do
homem, ser racional. Portanto, segundo Vaz (1991, p. 40), “enquanto ser dotado de logos
(da fala e do discurso), o homem transcende de alguma maneira a natureza e não pode
ser considerado um simples ser natural”. Aristóteles estuda intensamente o aspecto
racional do homem, especialmente nos tratados: De Anima, De Sensu et Sensibili, De
Memoria et Reminiscentia, De Vita et Morte, em seus livros sob o título de Órganon.

O terceiro ponto constitutivo da antropologia aristotélica, o homem é pensado


como ser ético-político. Aristóteles é o primeiro filósofo a realizar uma sistematização da
Ética e da Política como dimensões fundamentais do saber do homem sobre si mesmo.
Essa unidade revela-se, segundo Aristóteles, no fato de que o homem, na sua expressão
acabada, ou seja, o homem helênico, é essencialmente destinado à vida em comum na
pólis. Somente na pólis o homem se realiza enquanto ser racional. Pode-se dizer então,
que o homem é um zôon politikón (animal político) porque é, também, zôon logikón,
sendo a vida ética e a vida política artes de viver segundo a razão (VAZ, 1991).

O último aspecto da antropologia aristotélica, o homem é compreendido como


ser de paixão e de desejo. Essa dimensão está presente na estrutura da psyché, que
é a sede, da paixão (pathê) e do desejo (órexis) e, faz parte da vertente irracional da
psyché, na qual interfere diretamente no agir ético, como também, no agir político do
homem. Portanto, a dimensão do desejo e da paixão também são partes constitutiva
da atividade humana, sendo um tema muito discutido entre os gregos, especialmente
nas escolas filosóficas que se desenvolveram na idade helênica, como a do epicurismo
e do hedonismo.

A antropologia de Aristóteles influenciou diretamente a concepção de homem


ocidental, contribuindo diretamente para a fundação e o desenvolvimento de diversas
áreas do conhecimento, por exemplo, a lógica formal e a zoologia. Segundo Russell (1957,
p. 185), “desde o princípio do século XVII, quase todo o progresso intelectual importante
tinha de começar com um ataque a alguma doutrina de Aristóteles; na lógica, isso ocorre
ainda em nossos dias”. Embora a maioria dos escritos do filósofo tenham se perdido, os
seus tratados filosóficos técnicos ficaram conservados e foram compilados no Corpus
Aristotelicum. As aporias levantadas por Aristóteles entorno da pergunta sobre o que é
o homem e as categorias utilizadas para resolvê-las são objeto de estudo até hoje.

147
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• Inicialmente, os primeiros filósofos gregos, conhecidos como “cosmólogos”,


“naturalistas” ou “físicos”, ocupavam-se com o problema filosófico de ordem do
cosmos (universo, astros).

• Para os primeiros filósofos, a totalidade do real era compreendida como physis


(natureza) e cosmos.

• O primeiro filósofo a abordar um pensamento antropológico definido foi Diógenes de


Apolônia (440 a.C.).

• Para Diógenes, o homem é superior aos outros animais. Isso se verifica na própria
constituição física do homem.

• Diógenes constrói, pela primeira vez, uma ideia de homem como estrutura corporal-
espiritual, na qual a sua natureza se manifesta na cultura por meio das suas obras,
seus feitos.

• Diógenes é considerado o filósofo que marca uma linha de transição com a primeira
filosofia pré-socrática do século VI, a.C., conhecida pelo problema da physis e pela
busca do princípio primeiro (arché).

• Os sofistas aparecem na história da filosofia ocidental, como um grupo de intelectuais


itinerantes, considerados “sábios”, especialistas do saber.

• As práticas utilizadas pelos sofistas se baseavam nas sutilezas da retórica, com


objetivos de obter lucro e vantagens.

• Os sofistas não tinham interesse pela verdade (alethéia), eles ensinavam aos seus
estudantes a arte da persuasão, técnicas de discurso que explorava o sentimentalismo.

• Para Protágoras, “o homem é a medida de todas as coisas, daquelas que são por
aquilo que são e daquelas de não são por aquilo que não são”.

• Sócrates é considerado o fundador da Antropologia Filosófica, bem como da


filosofia moral.

• Para Sócrates, a alma é uma espécie de lugar, de morada para a areté (excelência ou
virtude), que possibilita medir o homem, segundo a dimensão interior na qual reside
a verdadeira grandeza humana.

148
• O pensamento antropológico de Platão deriva de sua teoria do mundo das ideias, no
qual concebe uma separação radical entre corpo e alma (psyché).

• Na perspectiva metafísica de Platão, a oposição entre alma e corpo existe porque o


corpo é entendido como uma “tumba” da alma, uma espécie de “cárcere", no qual o
homem está condenado a pagar as suas penas.

• No dualismo antropológico de Platão, o corpo pertence ao mundo sensível, marcado


pela materialidade, corruptibilidade, relações efêmeras, paixões desordenadas,
ignorância, discórdias etc.

• A alma (psyché), no dualismo antropológico de Platão, pertence ao mundo a ser


buscado constantemente, o mundo suprassensível ou inteligível, no qual se encontra
as ideias perfeitas, caracterizado pela imutabilidade e eternidade.

• Aristóteles é considerado um dos fundadores da antropologia como ciência, sendo o


primeiro a realizar uma síntese científico-filosófica em sua concepção de homem.

• A concepção antropológica Aristóteles considera que o homem tem o seu lugar


definido na hierarquia da natureza (physis), ao contrário da concepção finalista de
seu mestre Platão, que situara o homem no plano do inteligível (mundo ideal).

• Na visão de Aristóteles, o homem é um ser composto de psyché e de sôma, sendo a


psyché o princípio vital, o ato ou a perfeição do corpo organizado.

• Para Aristóteles, o homem é zôon logikón, ou seja, o homem é um animal racional.

149
AUTOATIVIDADE
1 A civilização grega é o berço do humanismo. Nesse sentido, os filósofos gregos
buscavam definir e caracterizar uma ideia de Homem. O Homem era o centro do
pensamento grego. Isso se evidenciava nas produções artísticas, nas esculturas
antigas e nas reflexões filosóficas. Sobre o primeiro filósofo a abordar um pensamento
antropológico, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) O primeiro filósofo pré-socrático a elaborar um pensamento antropológico foi


Protágoras. Para ele, “o homem é a medida de todas as coisas, daquelas que são
por aquilo que são e daquelas que não são por aquilo que não são”.
b) ( ) O primeiro filósofo a abordar um pensamento antropológico definido foi
Aristóteles.
c) ( ) O primeiro filósofo pré-socrático a abordar um pensamento antropológico
definido foi Diógenes de Apolônia (440 a.C.). Para o filósofo, o homem é visto
como estrutura corporal-espiritual, na qual a sua natureza se manifesta na
cultura por meio das suas obras e seus feitos.
d) ( ) O primeiro filósofo a abordar um pensamento antropológico definido foi Platão.

2 Os sofistas foram um grupo de intelectuais itinerantes, considerados “sábios”,


especialistas do saber. As práticas utilizadas pelos sofistas se baseavam nas sutilezas
da retórica, com objetivos de obter lucro e vantagens. Os sofistas não demonstravam
interesse pela busca da verdade (alethéia), mas ensinavam aos seus alunos a arte da
persuasão, técnicas de discurso que explorava o sentimentalismo. Sobre os sofistas,
analise as seguintes sentenças:

I- Dentre os sofistas podemos destacar alguns como: Protágoras, Górgias, Pródico,


Hípias, Élida e Antifonte.
II- O sofista mais destacado e que teve maior visibilidade no mundo grego foi Protágoras.
III- O método e o objetivos das técnicas dos sofistas foram duramente criticados por
filósofos como: Sócrates, Platão e Aristóteles.
IV- Com os sofistas inicia-se uma discussão sobre temas fundamentais, como a ética, a
política, a arte, a retórica, a educação, cuja preocupação central é a cultura do homem.

Agora, assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As afirmativas I, II e III estão corretas.
b) ( ) As afirmativas I e III estão corretas.
c) ( ) As afirmativas II e IV estão corretas.
d) ( ) Todas as afirmativas estão corretas.

150
3 Sócrates foi um filósofo nascido em Atenas, em 469/470 a.C. e morreu em 399 a.C., em
decorrência de uma condenação de “impiedade” coordenada por membros políticos de
Atenas. Além disso, Sócrates sofreu acusações de corromper os jovens e de não crer nos
deuses da cidade, havia também por trás das acusações, ressentimentos e manobras
políticas. O filósofo grego não deixou nada escrito e não fundou nenhuma escola filosófica.
Sobre a antropologia filosófica socrática, analise as sentenças a seguir:

I- Na visão de Sócrates o homem teria como missão moral suprema a busca pelos
prazeres e a ausência da dor.
II- Sócrates é considerado o fundador da antropologia filosófica, bem como da filosofia
moral.
III- Para Sócrates, a alma é uma espécie de lugar, de morada para a areté (excelência ou
virtude), que possibilita medir o homem segundo a dimensão interior na qual reside
a verdadeira grandeza humana.
IV- Segundo a antropologia filosófica de Sócrates, é na alma que se constitui a verdadeira
essência do homem, sede de sua verdadeira areté.

Agora, assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As afirmativas I, II e III estão corretas.
b) ( ) As afirmativas II, III e IV estão corretas.
c) ( ) As afirmativas II e IV estão corretas.
d) ( ) Todas as afirmativas estão corretas.

4 O filósofo grego Aristóteles, discípulo de Platão, nasceu em 384/383 a.C. em Estagira.


Aristóteles é considerado um dos fundadores da antropologia como ciência, sendo
o primeiro filósofo a realizar uma síntese científico-filosófica em sua concepção de
homem. Sobre a antropologia aristotélica, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) A antropologia platônica se fundamenta no dualismo metafísico, no qual a alma


é apresentada como movendo-se a si mesma (autokínêton) e como princípio de
movimento (arché kinêseôs).
b) ( ) A noção antropológica de Aristóteles considera que a alma (psyché) pertence ao
mundo a ser buscado constantemente, o mundo suprassensível ou inteligível, no
qual se encontra as Ideias perfeitas.
c) ( ) A noção antropológica de Aristóteles considera que o homem tem o seu lugar
definido na hierarquia da natureza (physis), ao contrário da concepção finalista
de seu mestre Platão, que situara o homem no plano do inteligível (mundo ideal).
d) ( ) A noção antropológica de Aristóteles deriva de sua teoria do mundo das ideias,
no qual concebe uma separação radical entre corpo e alma (psyché).

151
152
UNIDADE 3 TÓPICO 2 -
A CONCEPÇÃO DE HOMEM NO PERÍODO
CRISTÃO-MEDIEVAL

1 INTRODUÇÃO
A concepção de homem no período cristão-medieval se situa no século VI ao
século XV, desdobrando-se em duas principais vertentes: a tradição bíblica e a tradição
filosófica grega. Nesse período, a noção de homem está estritamente vinculada ao
pensamento teológico cristão. O pensamento teológico cristão é aprofundado por dois
principais filósofos-teólogos da igreja, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino.

Para compreender a concepção de homem no período medieval, é necessário


entender que, nesse período, o homem é olhado como criatura de Deus, como um ser
definido na relação com o transcendente. O homem é pensando sob a perspectiva
teológica-cristã, e, portanto, toda a cultura se estrutura em torno de uma racionalidade
bíblica, no qual a atividade filosófica deveria estar submetida aos desígnios da fé.

Nesse contexto, veremos as principais correntes teológicas que influenciaram


a visão de homem neste período e os principais desdobramentos que contribuíram
para a dissolução desse pensamento até o emergir da renascença. Vamos embarcar
nessa jornada?

2 A CULTURA MEDIEVAL: O HOMEM SEGUNDO A


TRADIÇÃO BÍBLICA
O sistema social vigente das sociedades medievais era o feudalismo, ou seja,
um sistema baseado na servidão e na obediência aos senhores feudais (grandes
proprietários de terras, donos dos feudos). Nesse sentido, o Estado medieval era
constituído por uma rede hierárquica, representado pela seguinte estrutura: os nobres
(senhores feudais), o clero (religiosos) e os servos (mão de obra, camponeses). Esse
sistema social, político e econômico perdurou até o fim da Idade Média, atingindo o seu
apogeu no século XIII. No final do século XIII, o feudalismo começa a desaparecer em
alguns países da Europa, como na França, nos Países Baixos e na Itália. Com a expansão
dos mercadores, contribuindo para o surgimento de uma nova atividade econômica, o
comércio, ascende uma nova classe política, a burguesia, que será determinante para a
desintegração do feudalismo no século XV.

153
Nas sociedades medievais o feudalismo estava integrado ao cristianismo, sendo
que a Europa inteira se considerava cristã e se organizava entorno de dois chefes: o
chefe espiritual – o papa –, e o chefe temporal – o imperador. Na Idade Média, o papa
não apenas ocupava um cargo religioso importante, mas era também uma autoridade
política suprema na Europa. A busca pela unidade cristã europeia, através do imperador
e o papado não se consolidou efetivamente ao longo da Idade Média, havendo inúmeras
disputas e divergências políticas entre essas duas figuras importantes na dinâmica das
sociedades medievais.

A influência da Igreja medieval na cultura europeia era incontestável. A Igreja


detinha o monopólio da cultura, através das atividades intelectuais e da imposição
dos seus dogmas, não havia abertura para um pensamento que contestasse a visão
de mundo construída através da narrativa bíblica. Nas universidades do século XIII,
estudava-se: filosofia, teologia, direito, medicina e letras. Não havia ainda as ciências
empíricas, ou seja, as ciências que necessitam de um método científico para comprovar
uma determinada teoria. Todos os conhecimentos estudados, eram guiados pelo
método filosófico. A filosofia servia para explicar as causas, os princípios das coisas, mas
esbarrava nas verdades supremas, nas quais era impossível conhecer através da razão,
somente pela revelação divina.

Nesse sentido, a noção de homem no mundo medieval estava associada à


revelação divina. A cultura medieval aceitava a supremacia da revelação e da fé sobre
a razão. A verdade, portanto, era Deus, e o homem deveria se voltar para Ele para melhor
viver em sociedade. A religião cristã, e somente esta, era o norte da moralidade e da
cultura medieval. A cultura na Idade Média era, por excelência, teocêntrica, ou seja,
Deus era a centralidade de todas as ações, o valor supremo e o motor da história.

Deste modo, constituiu-se, na cultura da Idade Média, um discurso sobre o homem


cuja origem se situa numa fonte transcendente. Pode-se dizer que na Idade Média há uma
teologia bíblica do homem que busca delinear os traços fundamentais da antropologia bíblica.
Vaz (1991) apresenta alguns traços fundamentais da antropologia bíblica:

• A unidade radical do ser do homem numa perspectiva soteriológica. Portanto, essa


unidade do homem se desdobra em três momentos que se articulam como um
itinerário salvífico. O primeiro momento refere-se à unidade de origem, representada
pelos temas da criação, da queda e da promessa, que se encontram no livro de Gênesis;
o segundo momento, diz respeito à unidade de vocação, representada pelo tema da
Aliança que atravessa todo o Antigo Testamento e se consuma no acontecimento do
Verbo feito carne no Novo Testamento; o último momento é a unidade de fim, que se
expressa no tema da vida na presença de Deus (AT) e da vida em Deus (NT). Portanto,
na concepção bíblica, o homem é “carne”, na medida em que se revela a fragilidade e
a transitoriedade da existência humana; o homem é “alma”, na medida em que essa

154
fragilidade inerente é recompensada nele pelo vigor de sua vitalidade; é “espírito”,
isto é, manifestação superior da vida e do conhecimento que permite estabelecer a
relação com Deus; é “coração”, ou seja, o interior do homem, sede dos afetos e das
paixões, em que se enraízam inteligência e vontade, sendo o lugar do pecado, mas
também da conversão a Deus.

NOTA
Afinal, o que é Soteriologia? Soteriologia é basicamente a doutrina da salvação.
Isto significa que a soteriologia é a área da teologia que estuda a salvação
em todos os seus aspectos. A palavra “soteriologia” vem dos termos gregos
soteria, “salvação” ou “livramento”; e logos, “palavra”. Há subdivisões dentro
da soteriologia que abordam a salvação em seus diferentes aspectos, tais
como: um plano eterno e obra remidora de Deus; a expiação no sangue de
Cristo; a operação da graça divina; o estado do homem em relação ao pecado;
a obra do Espírito Santo; e o destino final do homem. Disponível em: https://
estiloadoracao.com/o-que-e-soteriologia-a-doutrina-da-salvacao/.

• A manifestação progressiva do ser e do destino do homem através do próprio


desenrolar da história da salvação. Nesse sentido, a concepção bíblica de homem
não é uma teoria que se expressa num discurso organizado conceitualmente,
como acontece na filosofia. A concepção bíblica de homem acontece por meio da
narração de uma história da revelação e dos sinais salvíficos de Deus, que revela
progressivamente a unidade profunda do seu ser-para-Deus. A antropologia do Novo
Testamento apresenta uma visão das situações existenciais elementares do homem,
resgatando os temas da carne, da alma, do espírito e do coração presentes no Antigo
Testamento, mas sob uma perspectiva cristológica. Os livros do Novo Testamento
recebem a influência direta da cultura grega, seja através da koiné filosófica grega,
como da presença de termos e sistemas da filosofia platônica, como é o caso da
tricotomia: sôma, psiqué, pneûma. O Novo Testamento é a fonte primeira da
compreensão bíblico-cristã do homem que influenciará o pensamento cristão sobre
o homem durante longos séculos.

INTERESSANTE
Você sabia que o Novo Testamento foi escrito orinariamente em grego? Todos os livros
do Novo Testamento (Evangelhos, Atos dos Apóstolos, Epístolas, e Apocalipse), à exceção
do Evangelho de S. Mateus, foram redigidos primeiramente em grego. O grego bíblico,
porém, difere em muitas particularidades do grego clássico. Com a expansão da civilização
helênica pelo mundo oriental, a língua grega se difundiu tão universalmente, através dos
povos conquistados, que veio a se chamar língua comum ou koiné (dialeto). A koiné era
um idioma eclético (vinda de várias fontes), proveniente da fusão dos vários dialetos.

155
Predominava, contudo, o dialeto Ático. Os livros do
Novo Testamento foram escritos não na koiné erudita
usada pelos escritores aticistas, como Plutarco e
Luciano, mas na koiné popular, diferente da primeira.
Distingue-se, no uso e seleção das palavras, S. Lucas
e S. Paulo. As obras de maior perfeição estilística são
a “Epístola aos Hebreus” e a “Epístola de S. Tiago;
as que mais se afastam da pureza de linguagem
são o Evangelho de S. Marcos e as obras de S. João,
sobretudo, o Apocalipse.

FONTE: <https://www.abiblia.org/ver.php?id=4323>.
Acesso em: 25 jun. 2020.

3 ANTROPOLOGIA PATRÍSTICA
A antropologia patrística desenvolve-se nos dois primeiros séculos da civilização
ocidental em oposição a algumas correntes filosóficas que tinham como base o
Gnosticismo. O Gnosticismo representava um desafio para a antropologia patrística, pois
pregava um dualismo que implicava na condenação da matéria, como um princípio do
mal. Além disso, colocava em xeque a tradicional visão cristã do mistério da Encarnação,
que tinha como fundamento o tema da “imagem e semelhança”. Nesse sentido, o
primeiro teólogo a combater as heresias preconizadas pelas correntes gnósticas, foi
Santo Irineu de Lião (século II), no qual expõe em sua obra Adversus Haereses (Contra
Heresias) o tema do homem como reflexo da glória de Deus (VAZ, 1991).

IMPORTANTE
O termo Gnosticismo consistiu em algumas correntes filosóficas que
se difundiram nos primeiros séculos depois de Cristo no Oriente e
no Ocidente. O G. é uma primeira tentativa de filosofia cristã, feita
sem rigor sistemático, com a mistura de elementos cristãos míticos,
neoplatônicos e orientais. Em geral, para os gnósticos, o conhecimento
era condição para a salvação. Esse nome foi adotado pela primeira vez
pelos Ofitas ou Sociedade da Serpente, que, mais tarde, dividiram-se
em numerosas seitas. Os principais gnósticos dos quais temos notícia
são: Basílides, Carpócrates, Valentim e Bardesane, cujas doutrinas
são conhecidas pelas refutações feitas por Clemente de Alexandria,
Irineu e Hipólito. Uma das teorias mais típicas do G. é o dualismo dos
princípios supremos (admitido, por exemplo, por Basílides), ligado a
concepções orientais. A tentativa de união entre os dois princípios,
bem e mal, tem como resultado o mundo, no qual as trevas e a luz se
unem, mas com predomínio das trevas (ABBAGNANO, 2007).

156
O pensamento patrístico se desdobra em duas principais vertentes: a patrística
grega e a patrística latina. Trataremos em especial da patrística latina, na qual se situa
a obra de Santo Agostinho (354-430), cuja concepção cristã do homem tornou-se
um marco decisivo na história da cultura ocidental. Agostinho foi o maior filósofo da
época patrística, sua contribuição se estendeu para o campo da filosofia, teologia,
dogmática, teologia moral e mística, do direito político e da política eclesiástica. Mas
quem foi Santo Agostinho?

Aurélio Agostinho, nasceu em 354 em Tagaste (hoje Argélia), cidade de


Numídia, norte da África. Seu pai, Patrício, era um pequeno proprietário de terras ligado
ao paganismo. Já sua mãe, Mônica, era uma cristã fervorosa. A formação cultural de
Agostinho se deu inteiramente na língua e autores latinos, nos quais Cícero era uma
referência. Agostinho ocupou o ofício de professor, lecionando em Tagaste (374),
Cartago, Roma e em Milão, assumindo o cargo de professor oficial de retórica da cidade.
Nos anos de 384 e 386 em Milão, o jovem professor amadureceu a sua conversão ao
cristianismo e abandonou o ofício de professor para se dedicar a fé cristã. Em 387,
Agostinho foi batizado pelo bispo Ambrósio, sendo que no ano seguinte, voltou para
Tagaste para fundar uma comunidade religiosa (REALE; ANTISERI, 1990).

Rapidamente Agostinho adquiriu notoriedade pela santidade de sua vida,


sendo ordenado sacerdote em Hipona, na África, no ano de 391. Em 395, Agostinho
foi consagrado bispo da cidade de Hipona. Neste período, ele desenvolveu suas mais
importantes obras, travando batalhas importantes contra heréticos e cismáticos.
Com sua produção intensa e sua atuação à frente da Igreja, Agostinho provocou uma
reviravolta decisiva na história da Igreja e da filosofia ocidental. Suas principais obras
foram: Contra os acadêmicos, A vida feliz, A ordem, A imortalidade da alma, A Trindade,
Confissões, A Cidade de Deus, O Mestre, Sobre o Livre Arbítrio, A verdadeira religião,
entre outras. O filósofo, teólogo e bispo da Igreja morreu em 430.

FIGURA 7 – SANTO AGOSTINHO DE HIPONA

FONTE: <https://img.cancaonova.com/cnimages/canais/uploads/sites/6/2006/08/formacao_
confira-algumas-frases-marcantes-de-santo-agostinho-768x576.jpg>. Acesso em: 24 jun. 2020.

157
A antropologia, ou seja, a visão de homem formulada por Santo Agostinho pode
ser sintetizada em três fontes principais: o neoplatonismo, a antropologia paulina e a
antropologia da narração bíblica da criação. Essas três fontes constituem a antropologia
agostiniana. O neoplatonismo, Agostinho teve acesso especialmente através de textos
de Plotino, Porfírio e do neoplatônico latino Mário Vitorino. A influência neoplatônica,
encontra-se em especial no livro VII das Confissões, e constitui a elaboração do tema da
estrutura do homem interior, no qual Deus está presente no “interior do homem”, mas,
também, como ser superior (interior intimo et superior summo, Conf. III, 6) (VAZ, 1991).

A antropologia paulina, ou seja, a visão de homem do Apóstolo Paulo, fornece


a Agostinho a perspectiva de homem soteriológica, a partir do qual o teólogo elabora
a doutrina do pecado original, da graça e o problema da liberdade e do livre arbítrio. A
antropologia da narração bíblica da criação, constitui um dos temas mais querido das
meditações de Agostinho. Na fonte, Agostinho aborda o tema do homem enquanto
imagem de Deus, que servirá de base para a antropologia patrística sobre o homem.
Também, é a partir do tema da imagem que o teólogo fará as análises psicológicas a
respeito do mistério trinitário (VAZ, 1991).

O que destaca Agostinho de todos os outros pensadores antigos, é que para


ele, a busca da verdade nasce no íntimo de uma experiência pessoal que aparece
atrelada à própria expressão teórica da verdade, ou seja, é o primeiro pensador a afirmar
que o pensamento do ser é inseparável da descoberta do Eu. Segundo Vaz (1991), a
antropologia de Agostinho, entende o homem como ser uno; na criação do homem
e de todo o universo segundo a narração do Gêneses, implica a superação radical do
dualismo maniqueísta; a encarnação do Verbo, a partir do qual todas as coisas foram
criadas, resultando na assunção do corpo na unidade da natureza humana na qual
o Verbo se encarnou; e por fim, a ressureição de Cristo, que implica a restituição
escatológica da unidade do homem.

NOTA
Você já ouviu falar em Maniqueísmo? O Maniqueísmo consistiu em uma
doutrina do sacerdote persa Mani, que viveu no século III e proclamou-se
o Paracleto, aquele que devia conduzir a doutrina cristã a perfeição. O M. é
uma mistura imaginosa de elementos gnósticos, cristãos e orientais, sobre
as bases do dualismo da religião de Zoroastro. Admite dois princípios: um do
bem, ou princípio da luz, e outro do mal, ou princípio das trevas. No homem,
esses dois princípios são representados por duas almas: a corpórea, que é
a do mal, e a luminosa, que é a do bem. Pode-se chegar ao predomínio da
alma luminosa através de uma ascese particular, que consiste em três selos:
abstenção de alimentar-se de carne e de manter conversas impuras; abstenção
da propriedade e do trabalho; abster-se do casamento e do concubinato. O M.
foi muito difundido no Oriente e no Ocidente; aqui durou até o século VII. O
grande adversário do M. foi S. Agostinho, que dedicou grande número de obras
a sua refutação (ABBAGNANO, 2007).

158
A antropologia agostiniana compreende o homem como ser itinerante,
cuja visão está associada à concepção de tempo como caminho para a eternidade. A
concepção de homem como ser itinerante é essencial na antropologia de Agostinho,
pois é a representação do itinerário da humanidade simbolizado na figura das duas
cidades, da obra A Cidade de Deus (De Civitate Dei). Para Vaz (1991, p. 66), “a leitura
teológica da história humana apoia-se aí numa visão linear do tempo, não como mera
sucessão cronológica, mas segundo o modelo da vida humana, como crescimento
para a consumação final da segunda e definitiva manifestação do Cristo”. Logo, para
Agostinho, a concepção de história está orientada radicalmente para Deus.

O terceiro tópico essencial da antropologia de Agostinho, concebe o homem


enquanto ser-para-Deus, ou seja, o homem é pensado como ser-para-Deus em
razão do caráter dinâmico de sua estrutura de imagem, em que a ordenação para
Deus aparece como linha fundamental da atividade do homem interior, segundo o
ritmo triádico de sua vida (memória, inteligência, vontade). Deste modo, a antropologia
de Agostinho representa uma transposição da tradição platônica para a tradição
bíblica e a tradição cristã da patrística primitiva. O pensamento acerca do homem de
Agostinho impactou fortemente a cultura medieval, sua influência se estende até os
dias de hoje, constituindo uma referência fundamental no pensamento antropológico
ocidental (VAZ, 1991).

4 ESCOLÁSTICA E A CONCEPÇÃO TOMISTA DE PESSOA


A antropologia medieval se alicerça em três fontes principais: as Sagradas
Escrituras; os Padres da Igreja, nos quais se destaca Sto. Agostinho de Hipona; e os
filósofos e escritores gregos e latinos. A filosofia de Aristóteles teve forte influência na
concepção de homem da civilização medieval, sobretudo no século XIII, com os escritos
do filósofo e teólogo Sto. Tomás de Aquino. Para Vaz (1991), em Aquino, encontra-se
a síntese mais bem-sucedida da antropologia medieval. Quem foi? Quais são suas
contribuições para a concepção de homem no período medieval?

159
FIGURA 8 – SÃO TOMÁS DE AQUINO

FONTE: <https://www.a12.com/source/files/originals/tomas_de_aquino.jpg>. Acesso em: 24 jun. 2020.

São Tomás de Aquino, conhecido como ‘O Doutor da Igreja’, ou simplesmente ‘O


Aquinate’, foi um expoente da escolástica, considerado gênio dos metafísicos, sua obra
ainda hoje é muito estudada, sendo referência para os candidatos ao sacerdócio que
aspiram as ordens sagradas. Tomás nasceu em 1221 em Roccasecca, no sul de Lácio,
na Itália. Era discípulo do frade dominicano alemão Alberto Magno, que, desde cedo,
enxergava em Aquino um grande talento especulativo. Em uma ocasião, convidado
por Alberto para expor sua opinião sobre uma questão, Aquino, que era chamado de
“boi mudo”, pois era muito reservado, expôs o problema com tanta maestria, que levou
Alberto a exclamar: “este moço, que nós chamamos de ‘boi mudo’, mugirá tão forte que
se fará ouvir no mundo inteiro!” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 553).

Em 1252, sob a indicação de Alberto Magno, Tomás de Aquino inicia sua carreira
acadêmica na Universidade de Paris. Após a sua experiência em Paris, Aquino passou
por diversas universidades da Europa (Colônia, Bolonha, Roma, Nápoles). Foi em Roma
que o Doutor da Igreja começou o seu maior empreendimento, a Summa Theologiae
(Suma Teológica). A maior obra de Aquino, que não foi terminada devido ao seu estado
de saúde. Tomás de Aquino morreu aos cinquenta e três anos, em 7 de março de 1274,
num mosteiro em Fossanova, quando viajava para Lião, para participar do Concílio de
Lião (REALE; ANTISSERI, 1990).

160
IMPORTANTE
O que é a Suma Teológica? Suma Teológica é o título da obra básica
de São Tomás de Aquino, frade, teólogo e santo da Igreja Católica,
um corpo de doutrina que se constitui numa das bases da dogmática
do catolicismo e considerada uma das principais obras filosóficas da
escolástica. Foi escrita entre os anos de 1265 a 1273. Na obra, Aquino
trata da natureza de Deus, das questões morais e da natureza de
Jesus. Disponível em: https://pt.aleteia.org/2017/04/17/sim-a-suma-
teologica-inteira-de-graca/.

Vale ressaltar que a filosofia tomista, no início de sua elaboração, teve forte
oposição da Igreja e das Universidades medievais, justamente porque se apresentava
como novidade em se opor à tradição agostiniana (filosofia de Sto. Agostinho), que era
marcada pelo platonismo. O maior aspecto da rejeição e, também, do espanto referente
à filosofia de Tomás de Aquino deriva do fato da dificuldade de conciliar as conclusões
da filosofia aristotélica com os dogmas revelados da tradição bíblica cristã. Entretanto,
isso não impediu que a filosofia tomista se tornasse, mais tarde, a filosofia oficial da
Igreja Católica, e a Suma Teológica fosse considerada a expressão máxima e acabada
da possível conciliação entre Fé e Razão (REZENDE, 1986).

Duas correntes de ideais influenciaram radicalmente a antropologia tomista: o


agostianismo (doutrina da Sto. Agostinho) e o aristotelismo. Nesse sentido, a antropologia
apresentada por Tomás de Aquino pode ser situada em três aspectos importantes:

1- a concepção clássica de homem como animal rationale (animal racional);


2- a concepção neoplatônica do homem na hierarquia dos seres, como ser fronteiriço
entre o espiritual e o corporal;
3- a concepção bíblica do homem como criatura, imagem e semelhança de Deus.

Sobre a perspectiva clássica de homem (animal racional), Tomás de Aquino se


defronta com o problema da unidade do homem ou da relação da alma racional com
o corpo, que por conseguinte é um dos temas mais polêmicos da filosofia medieval. A
tese mais adequada, defendida na época, era a da pluralidade das formas substanciais
hierarquizadas no mesmo composto. Contudo, Tomás de Aquino discorda dessa tese,
concordando com Aristóteles, quando afirma a unidade da forma substancial e, portanto,
a unidade hilemórfica do homem.

161
NOTA
O hilemorfismo é a doutrina que Aristóteles concebeu para opor-se,
simultaneamente, ao idealismo platônico (notadamente em sua doutrina
das Ideias) e ao materialismo adotado por filósofos pré-socráticos, entre
os quais figuram, de modo proeminente, Demócrito e Leucipo, fundadores
do Atomismo, Empédocles e Anaxágoras.

Na perspectiva hilemorfista, a forma é um dos constituintes metafísicos


primários de toda substância individual (ou composto de matéria e forma:
τὸ σύνολον ou τὸ ἐξ ἀμφοῖν), que governa e determina o outro constituinte
metafísico básico, a matéria (em grego: ὕλη). Aristóteles se distingue do
platonismo, que postulava, ao contrário, a existência separada das ideias
relativamente aos objetos sensíveis que delas participam. O hilemorfismo
aristotélico se demarca de todas as tentativas de explicação puramente
material dos objetos que nos circunda. Disponível em: http://filosofia.fflch.
usp.br/node/1070.

Além disso, Tomás de Aquino defende a espiritualidade da alma. Nesse


sentido, ele concebe a essência transcendente da alma sobre a matéria e sua criação
imediata por Deus. Sendo que a anima (alma) intelectiva é a única forma substancial do
composto humano, “a diferença específica rationale da definição clássica determina
todo o homem, assegurando a unidade antropológica exigida pela tradição bíblico-
cristã” (VAZ, 1991, p. 69).

Na antropologia tomista, a alma intelectiva é o ato que integra o corpo na perfeição


essencial do ser-homem. Nesse sentido, ela é a plena realização da perfeição humana.
Da sua unicidade deriva a unidade do agir e do fazer do homem. Esse aspecto é muito
importante para ética de Tomás de Aquino. Da unidade profunda do homem, brota suas
faculdades de agir e fazer, que para Aquino são distintas da alma, sendo a alma sempre
o princípio primeiro da unidade e da perfeição do homem, o ato puro. “O rationale, como
diferença específica do homem, designa primeiramente a razão discursiva (ratio), forma
do conhecimento intelectual inferior à inteligência propriamente dita (intellectus) que é
própria dos espíritos puros, mas da qual também o homem participa” (VAZ, 1991, p. 69).

Pode-se dizer que na antropologia de Tomás de Aquino o homem se situa na


hierarquia dos seres, justamente por sua característica específica que é a sua natureza
racional. É por possuir essa natureza racional, que o homem se diferencia dos outros
seres e ocupa uma posição privilegiada na hierarquia de todos os seres. Deste modo, é
através da racionalidade que o homem encontra seu espaço na natureza e se propõe
a buscar sua finalidade. A conclusão de Tomás de que a Eudaimonia do homem deve
ser proporcionada a sua razão, entra em conflito com a revelação cristã da finalidade
sobrenatural do homem.

162
NOTA
Você sabia que a palavra Eudaimonia se refere a uma doutrina que prega
a felicidade como a finalidade da vida humana? Segundo Aristóteles, a
felicidade é uma finalidade (telos) maior e comum a todos os seres racionais.

Nessa concepção teleológica (que busca apontar finalidades para as


ações práticas), todas as ações humanas ocorrem visando alcançar
algum estágio de felicidade. Essa busca, porém, não dá, ao ser humano,
a plena liberdade de ação, pois essa deve estar em conformidade com a
felicidade dos outros. Disponível em: https://mundoeducacao.bol.uol.com.
br/filosofia/eudaimonia.htm.

Na visão de Vaz (1991), na perspectiva da antropologia tomista, o homem


está situado na fronteira do espiritual e do corporal, do tempo e da eternidade. Nesse
sentido, o homem é horizon et confinium (horizonte e fronteira), sendo que essa sua
posição mediadora permite definir sua relação com a ordem do cosmos, com o tempo
e com a história.

Assim, pode-se dizer que Tomás de Aquino realizou uma importante e profunda
síntese da tradição clássica e da tradição cristã no campo da antropologia. Os séculos
que se seguiram até o fim da Idade Média, foram marcados por novas tendências
do pensamento filosófico e teológico. Essas tendências se colocaram em oposição à
síntese antropológica de Tomás de Aquino, como o voluntarismo de Duns Escoto no
século XIV, o nominalismo que perdurou no século XV que buscou dissolver a síntese
medieval entre filosofia e teologia, preparando o terreno para a chegada da filosofia
moderna que irá elaborar uma nova concepção de homem.

NOTA
Você sabia que Duns Escoto foi beatificado, em 1993, pelo Papa João Paulo
II? Foi um filósofo e teólogo escocês, membro da Ordem Franciscana e
professor da Universidade de Paris. Formou-se na Universidade de Oxford
e, no desenvolvimento da sua obra, ergueu importantes contrapontos
ao pensamento de Santo Tomás de Aquino. É um dos mais importantes
pensadores de toda a escolástica, tendo sido mentor de Guilherme de
Ockham e precursor de uma longeva tradição filosófica chamada
de escotismo. Disponível em: https://ecclesiae.com.br/index.
php?route=product/author&author_id=1483.

163
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• Nas sociedades medievais, o feudalismo estava integrado ao cristianismo, sendo que


a Europa inteira se considerava cristã e se organizava entorno de dois chefes: o chefe
espiritual – o papa –, e o chefe temporal – o imperador.

• Na Idade Média, o papa não apenas ocupava um cargo religioso importante, mas era
uma autoridade política suprema na Europa.

• A noção de homem no mundo medieval estava associada à revelação divina.

• A cultura medieval aceitava a supremacia da revelação e da fé sobre a razão.

• A cultura, na Idade Média, era, por excelência, teocêntrica, ou seja, Deus era a
centralidade de todas as ações, o valor supremo e o motor da história.

• A antropologia patrística se desenvolve nos dois primeiros séculos da civilização ocidental


em oposição a algumas correntes filosóficas que tinham como base o Gnosticismo.

• A visão de homem formulada por Santo Agostinho pode ser sintetizada em três fontes
principais: o neoplatonismo, a antropologia paulina e a antropologia da narração
bíblica da criação.

• A antropologia de Agostinho entende o homem como ser uno e como ser itinerante.

• A antropologia de Agostinho concebe o homem enquanto ser-para-Deus.

• A antropologia de Agostinho representa uma transposição da tradição platônica para


a tradição bíblica e a tradição cristã da patrística primitiva.

• Em Tomás de Aquino, encontra-se a síntese mais bem-sucedida da antropologia medieval.

• São Tomás de Aquino, conhecido como ‘O Doutor da Igreja’ ou simplesmente ‘O


Aquinate’, foi um expoente da escolástica, considerado gênio dos metafísicos.

• Tomás de Aquino defende a espiritualidade da alma. Ele concebe a essência


transcendente da alma sobre a matéria e sua criação imediata por Deus.
• Na antropologia de Tomás de Aquino, o homem se situa na hierarquia dos seres
justamente por sua característica específica que é a sua natureza racional.

• Na perspectiva da antropologia tomista, o homem está situado na fronteira do


espiritual e do corporal, do tempo e da eternidade.

• Tomás de Aquino realizou uma importante e profunda síntese da tradição clássica e


da tradição cristã no campo da antropologia.

164
AUTOATIVIDADE
1 A concepção de homem no período cristão-medieval se situa no século VI ao século
XV, desdobrando-se em duas principais vertentes: a tradição bíblica e a tradição
filosófica grega. Nesta época, a concepção de homem está ligada ao pensamento
teológico cristão. Diante do exposto, assinale a alternativa que apresenta os dois
principais filósofos-teólogos da igreja deste período:

a) ( ) Aristóteles e São Tomás de Aquino.


b) ( ) Platão e Agostinho.
c) ( ) Santo Agostinho e São Tomás de Aquino.
d) ( ) Agostinho e Duns Escoto.

2 O pensamento patrístico desdobra-se em duas principais vertentes: a patrística


grega e a patrística latina. Dentro da patrística latina, encontramos o pensamento
de Santo Agostinho (354–430). Sobre a vida e obra de Santo Agostinho, analise as
sentenças a seguir:

I- A antropologia de Santo Agostinho pode ser sintetizada em três fontes principais:


o neoplatonismo, a antropologia paulina e a antropologia da narração bíblica da
criação.
II- Agostinho nasceu em 354 em Tagaste (hoje Argélia), cidade de Numídia, norte da
África.
III- A antropologia agostiniana compreende o homem como ser itinerante.
IV- A antropologia de Agostinho representa uma transposição da tradição platônica
para a tradição bíblica e a tradição cristã da patrística primitiva.

Agora, assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As afirmativas I, II e III estão corretas.
b) ( ) As afirmativas I e III estão corretas.
c) ( ) As afirmativas II e IV estão corretas.
d) ( ) Todas as afirmativas estão corretas.

165
3 São Tomás de Aquino (1221–1274), conhecido como ‘O Doutor da Igreja’ ou
simplesmente ‘O Aquinate’, foi um expoente da escolástica, considerado gênio
dos metafísicos, sua obra ainda hoje é muito estudada, sendo referência para os
candidatos ao sacerdócio que aspiram às ordens sagradas. Sobre a duas correntes de
pensamento que influenciou significativamente a antropologia tomista, assinale a
alternativa CORRETA:

a) ( ) Duas correntes de ideias influenciaram a antropologia tomista: o neoplatonismo


e o agostianismo.
b) ( ) Duas correntes de ideais influenciaram radicalmente a antropologia tomista: o
agostianismo (doutrina da Sto. Agostinho) e o aristotelismo.
c) ( ) As correntes de pensamento que influenciaram significativamente a antropologia
de Tomás de Aquino foram: o epicurismo e o aristotelismo.
d) ( ) A antropologia tomista é influenciada apenas pelas Escrituras sagradas, e sua
produção está associada à inspiração divina.

166
UNIDADE 3 TÓPICO 3 -
A CONCEPÇÃO DE HOMEM NA
MODERNIDADE

1 INTRODUÇÃO
No fim do século XVII, vemos duas correntes moderna de pensamento
consolidadas: o racionalismo e o empirismo. Também, evidencia-se a superação da
cultura medieval, ainda que muitos filósofos modernos cultivam interesses em questões
da Idade Média. O mais evidente dessa ruptura com a cultura medieval, refere-se à
secularização da cultura, isto é, os filósofos racionalistas, como Descartes, Leibniz,
Malebranche não falam mais do Deus da revelação judaico-cristã, mas do Deus da
Razão. No caso dos filósofos empiristas, como em Locke ou em Hume, a distância
cultural com relação ao período medieval é ainda mais evidente.

O racionalismo e o empirismo estabeleceram as bases para o desenvolvimento


do pensamento idealista de Immanuel Kant e de outros pensadores alemães. A partir
desses pressupostos iniciais, pode-se situar aspectos do pensamento de Kant (1724-
1804), que como Copérnico (1473–1543) instaurou uma perspectiva revolucionária
no que concerne as concepções de universo, advindas do sistema ptolomaico do
mundo antigo, associado à perspectiva criacionista judaico-cristã medieval. Assim,
como Copérnico propõe o heliocentrismo, Kant instaura a revolução no campo do
conhecimento, modificando os rumos da filosofia ocidental.

Nesse contexto, o homem é visto como sujeito e objeto do conhecimento.


O homem moderno ocupa o centro da cena da história e passa a ser a matriz das
concepções contemporâneas que se formularão nos séculos XIX e XX. Veremos as
principais concepções de homem na sua expressão filosófica que predominaram o
discurso filosófico moderno.

Bons estudos!

167
2 O HOMEM NO RACIONALISMO DE DESCARTES
A Renascença foi o período que se estendeu do século XIV ao século XVI,
caracterizando-se como uma época do Humanismo. A valorização do homem através da
literatura clássica, sobretudo latina, e a defesa do valor da razão humana para descobrir
a verdade, bem como a exaltação da natureza física e a vida terrena. A antropologia na
Renascença também se caracteriza como uma antropologia de ruptura e de transição.
Ruptura com a imagem de homem judaico-cristã do período medieval e transição para
a imagem racionalista que predominará os séculos XVII e XVIII.

A partir do século XVI, tem-se o fim da Renascença e o início de uma nova forma
de pensar e sentir que será expressado em diversas formas de criação cultural. Segundo
Vaz (1991), esse novo modo de pensar e sentir é herdeiro e devedor do humanismo
renascentista e dele receberá influência direta através de importantes pensadores
moralistas da França do século XVI, por exemplo, o filósofo e humanista Michel de
Montaigne (1553–1592).

NOTA
Michel de Montaigne (1553–1592) era humanista e defendia um certo
número de teses sobre as quais sempre retoma em seus Ensaios. Tendo
uma vida dividida entre uma carreira jurídica e administrativa (foi prefeito
de Bordeaux, França), aproveitava-se dos retiros em seu castelo para se
isolar e escrever. O tema: a sabedoria. Ensaios é sua obra-prima, que
floresceu após 20 anos de reflexão. Consiste em um modo de pensar
crítico à sociedade do século XVI, embora aborde temas variados. Algumas
de suas teses são: 1- Toda ideia nova é perigosa; 2- Todos os homens
devem ser respeitados (humanismo); 3- No domínio da educação, deve-se
respeitar a personalidade da criança. Montaigne adotou o princípio grego
“conhece-te a ti mesmo”. Portanto, segundo ele, a escrita é um meio de
chegar a esse conhecimento de si. Disponível em: https://brasilescola.uol.
com.br/filosofia/as-ideias-michel-montaigne.htm.

Com o filósofo René Descartes (1596–1650), a antropologia racionalista


moderna encontrará sua expressão paradigmática, de modo que poderá falar do
homem racionalista ou do homem cartesiano. O filósofo descendia de família nobre
e, aos oito anos de idade, órfão de mãe, é enviado para o Colégio Real da la Flèche na
cidade de Pais, onde se revela um excelente aluno. Foi nessa escola que Descartes
recebeu uma sólida formação filosófica e científica, de acordo com a Ratio Studiorum
da época, que pedagogicamente orientava para o estudo matemático e humanístico,
inspirado nos princípios da filosofia escolástica.

168
Esse ambiente formativo, de orientação jesuítica e de abertura para as ciências
e a matemática, causou insatisfação e confusão em Descartes. Em pouco tempo, o
estudante francês já visualizava o abismo que existia entre aquela orientação cultural
da época e as novidades científicas e filosóficas que estavam brotando em toda Europa.
Descartes, logo percebeu “a ausência de uma séria metodologia, capaz de instituir,
controlar e ordenar as ideias existentes e guiar a buscar da verdade” (REALE; ANTESERI,
1990, p. 354).

FIGURA 9 – RENÉ DESCARTES

FONTE: <https://cdn.universoracionalista.org/wp-content/uploads/2017/07/renc3a9_descartes-
filc3b3sofo-francc3aas-696x517.jpg>. Acesso em: 24 jun. 2020.

O filósofo, matemático e físico francês, propôs através da sua filosofia uma


fundamentação para uma ordem racional, sócio-política que não desembocasse no
ateísmo ou no materialismo. Essa fundamentação, portanto, não se encontrava a luz
da fé, mas através da razão. Deste modo, Descartes, tentou provar racionalmente a
existência de Deus e a existência da alma enquanto princípio diverso do corpo. Com
sua obra intitulada, Discurso do Método, publicada em 1637, Descartes provocou uma
revolução no pensamento ocidental. Além disso, Descartes escreveu outras duas obras
muito importantes, Meditações sobre a Filosofia Primeira (1641), e Regras para a direção
do Espírito, publicada após a sua morte, em 1701.

A principal preocupação de Descartes é encontrar uma maneira do homem


chegar à verdade. Por isso, o filósofo francês sugere que o primeiro passo é fazer
um trabalho prévio de limpeza do terreno, ou seja, duvidar de tudo aquilo em que
acreditamos. Somente após essa limpeza, o homem começará a procurar, através do
método da dúvida (dúvida metódica), a verdade primeira ou as verdades primeiras, que
são evidentes por si e das quais não se pode duvidar. Elas serão o fundamento pelo qual
se pode construir todo o edifício do conhecimento.

169
Segundo o método de Descartes, é por meio da busca pelo conhecimento
verdadeiro, que o homem se voltar para si mesmo. Para ele, a única maneira clara
e distinta do eu pensar a alma é como princípio de pensamento, ou seja, como res
cogitans; e a única maneira de se pensar o corpo é concebê-lo como extensão, isto é,
como res extensa. Assim, procedendo, Descartes concebe a realidade como dualista:
pois de um lado há a substância pensante (res cogitans) – mente ou espírito –, e de
outro há a substância – corpo ou matéria.

Esse dualismo característico da ideia racionalista do homem se apresenta de


maneira diversa do dualismo clássico, pensado por Platão (mundo das ideias versus
mundo sensível). No dualismo de Descartes, o espírito (res cogitans) separa-se do corpo
como res extensa, não para elevar-se à contemplação do mundo das ideais (como na
teoria platônica), mas melhor conhecer e dominar o mundo. Deste modo, a antropologia
de Descartes se apresenta como uma metafísica do espírito e uma física do corpo: a
ideia adequada, isto é, clara e distinta das duas substâncias, mostra-se como “naturezas
completas” que podem subsistir uma sem a outra. Segundo Vaz (1991, p. 83):

A formação da antropologia cartesiana parece acompanhar, assim,


os estágios da formação de uma nova ideia de razão que presidirá
ao desenvolvimento da filosofia moderna até Kant e mostrará sua
fecundidade na construção da ciência de Galileu Galilei. O núcleo
gerador dessa nova ideia de razão é justamente a ideia de método
sobre o qual Descartes fundará toda a sua filosofia.

NOTA
Galileu Galilei (1564–1642) foi um físico, matemático, astrônomo e
filósofo italiano. Foi uma personalidade fundamental na revolução
científica. Desenvolveu os primeiros estudos sistemáticos do movimento
uniformemente acelerado e do movimento do pêndulo. Descobriu a lei
dos corpos e enunciou o princípio da inércia e o conceito de referencial
inercial, ideias precursoras da mecânica newtoniana. Galileu melhorou
significativamente o telescópio refrator e, com ele, descobriu as manchas
solares, as montanhas da Lua, as fases de Vénus, quatro dos satélites de
Júpiter, os anéis de Saturno, as estrelas da Via Láctea. Essas descobertas
contribuíram decisivamente na defesa do heliocentrismo. Contudo, a
principal contribuição de Galileu foi para o método científico, pois a ciência
assentava numa metodologia aristotélica. O método empírico, defendido
por Galileu, constitui um corte com o método aristotélico mais abstrato
utilizado nessa época, devido a ele, Galileu é considerado como o "pai
da ciência moderna". Disponível em: http://www.filosofia.seed.pr.gov.br/
modules/galeria/detalhe.php?foto=532&evento=6.

170
Na obra Discurso do método (1637), Descartes explicita a estrutura fundamental
da antropologia racionalista. Nela, segundo o filósofo, há de um lado o “espírito”, cujo
existir se manifesta na existência do Cogito, e de outro, tem-se o corpo obedecendo
aos movimentos e às leis que impelem à máquina no mundo. Na ideia do Cogito,
está implicado uma nova relação do “espírito” com o mundo que define uma nova
concepção de homem: a concepção moderna de homem. Deste modo, o mundo não é
mais identificado com a physis (natureza) antiga dotada de um princípio imanente de
movimento, mas é (na modernidade) uma grande máquina capaz de ser analisada pela
razão e por ela reproduzida na forma de um modelo matemático. Na visão de Vaz (1991,
p. 84-85), “uma consequência importante da antropologia racionalista é o progressivo
atenuar-se da distinção entre “natural” e “artificial (entre physis e a téchne) que era um
dos fundamentos da visão aristotélica do mundo”.

No âmbito da antropologia racionalista, o corpo humano passa a ser integrado no


conjunto dos artefatos e das máquinas, sendo que a presença do espírito, manifestado,
sobretudo através da linguagem, constitui o elemento essencial que separa o homem
do “animal-máquina”. Além disso, no tratado: As paixões da alma (1649), Descartes
evidencia de modo profundo e original, uma ruptura com a concepção clássica de
homem, sistematizada por Tomás de Aquino.

3 A ANTROPOLOGIA NA IDADE CARTESIANA


A revolução cartesiana no campo da filosofia e a revolução promovida pelos
estudos de Galileu Galilei no campo da ciência dão origem a uma nova ideia de razão
que transforma radicalmente a autocompreensão do homem, abrindo o espaço
epistemológico no qual irão se constituir as ciências do homem. Nesse sentido, o
século XVII é o palco do Classicismo, definido segundo os cânones da razão cartesiana,
dando forma a um verdadeiro estilo de civilização. Segundo Vaz (1991), o homem da
idade cartesiana será marcado por dois traços fundamentais: o moralismo, advindo da
tradição do filósofo e humanista Montaigne, continuada pelos importantes moralistas
do século XVII como: La Bruyère e La Rochefoucauld; e, o humanismo devoto, que
expressará uma nova sensibilidade religiosa em virtude da razão cartesiana e da divisão
religiosa da Europa.

Uma das obras que melhor representa as transformações na maneira de


conceber o homem no limiar da idade moderna é a de Blaise Pascal (1623–1662). A obra
de Pascal é atravessada pela tensão entre o estudo da matemática e da ciência física
consagrada em sua juventude, e o “estudo do homem”, no qual passa a se ocupar após
sua “conversão”, dentro do seu importante projeto de redigir uma apologia da religião
cristã. Em suas obras, entre elas Pensées (1670), Pascal coloca em oposição o estudo
das “ciências abstratas” e o estudo do homem. “A dramática experiência de Pascal
torna-se, assim, uma antecipação e como que um paradigma da experiência do homem
moderno” (VAZ, 1991, p. 84).

171
DICA
Em 1654, depois de quase morrer em um acidente de carruagem e
passar por uma experiência mística, Pascal decidiu se consagrar a Deus
e à religião. Elegeu, como seu guia espiritual, o padre jansenista Singlin
e, em 1665, recolheu-se à abadia de Port-Royal des Champs, centro
do jansenismo. Nesse período, elaborou os princípios de sua doutrina
filosófica, centrada na contraposição dos dois elementos básicos e não
excludentes do conhecimento: de um lado, a razão com suas mediações
que tendem ao exato, ao lógico e discursivo (espírito geométrico). Do outro
lado, a emoção ou o coração, que transcende o mundo exterior, intuitiva,
capaz de aprender o inefável, o religioso e o moral (espírito de finura).
Pascal resumiu sua doutrina filosófica na frase que a humanidade repete
há séculos, na qual nomeia os dois elementos do conhecimento – a razão
e a emoção. Disponível em: https://www.ebiografia.com/blaise_pascal/>.

FIGURA 10 – BLAISE PASCAL “O CORAÇÃO TEM RAZÕES QUE A PRÓPRIA RAZÃO DESCONHECE"

FONTE: <https://s.ebiografia.com/assets/img/authors/bl/ai/blaise-pascal-l.jpg>. Acesso em: 24 jun. 2020.

Na concepção antropologia de Pascal, o homem tem diante de si a ordem eterna


da natureza e contempla os dois abismos do infinitamente grande e do infinitamente
pequeno. Por outro lado, o homem é chamado a conhecer a sua miséria que se
manifesta através da corrupção da sua natureza e na operação, fonte de engano das
suas faculdades. Nesta dialética existencial, Pascal demonstra a situação dramática do
homem da idade cartesiana no limiar dos tempos modernos: “recolhida à intimidade do
Cogito, sua subjetividade deve enfrentar um universo despojado de suas qualidades
sensíveis e reduzido a um modelo matemático de figuras, movimentos e forças” (VAZ,
1991, p. 85).

Nesse sentido, o Cogito na concepção de Pascal é a marca da “grandeza do


homem”. Assim, tanto para Pascal como para Descartes, a dignidade do homem reside no
pensamento. Entretanto, o Cogito pascaliano não se volta para a dominação do mundo,

172
mas sim na busca pelas descobertas das regras do bien peser (bem pensar): descobrindo
sua dimensão moral. Diferentemente de Descartes, a proposta antropológica de Pascal,
constrói-se tendo em vista a situação do homem e não a verdade na ciência.

“Entre os dois infinitos espaciais, o lugar do homem na natureza é ínfimo e


quase imperceptível; mas, pelo pensamento ele se eleva sobre os abismos espaciais da
grandeza e da pequenez, e compreende esse mesmo universo que o engole como um
ponto” (VAZ, 1991, p. 85).

Com isso, Pascal anuncia a grande aporia que acompanhará à antropologia


racionalista: a oposição entre a Natureza e o Espírito. A antropologia racionalista
cartesiana é guiada por um otimismo com relação ao respeito à natureza humana,
bem como pela capacidade humana de conhecer e agir. Neste âmbito, a concepção
de homem de Pascal, insere-se numa situação à luz do trágico, isto é, o homem não
está mais subordinado à ordem cósmico-teológica da visão judaico-cristã medieval do
mundo, nem voltado, como o homem cartesiano, para o senhorio e posse da natureza
(VAZ, 1991).

Outro filósofo importante, contemporâneo de Pascal, cujo pensamento se situa


na esteira do racionalismo é Thomas Hobbes (1588–1679). Hobbes postula a aplicação
do racionalismo mecanicista à compreensão do homem e da sociedade. A obra de
Hobbes gira em torno do problema de se encontrar uma expressão racional rigorosa e
obediente aos cânones do mecanismo para a ideia de corpo, que se apresenta como
uma categoria essencial para pensar a natureza, o homem e a sociedade. Assim, em seu
projeto filosófico, Hobbes propõe desenvolver as aplicações da noção de corpo para as
grandes ordens da realidade.

DICA
A filosofia de Hobbes foi muito influenciada pelas ideias de Francis
Bacon (1561–1626), de quem foi secretário pessoal durante alguns
anos, e Galileu Galilei (1564–1642). Como estes, abandonou as grandes
pretensões metafísicas (a busca pela essência do ser) e buscou investigar
as causas e propriedades das coisas. A filosofia, para ele, seria a “ciência
dos corpos”, isto é, tudo aquilo que tem existência material. Os corpos se
dividem em “corpos naturais” (filosofia da natureza) e “corpo artificial” ou
“Estado” (filosofia política). Assim, tudo o que não é corpóreo seria excluído
da filosofia como não filosofia. Hobbes é considerado como o primeiro
materialista moderno. Para o filósofo inglês, toda a realidade poderia ser
explicada a partir de dois elementos: do “corpo”, entendido como elemento
material que existe, independentemente do nosso pensamento, e do
“movimento”, que pode ser determinado matemática e geometricamente.
Assim, a qualidade das coisas seriam “fantasmas do sensível”, ou seja,
efeitos dos corpos e de seus movimentos. As principais características do
empirismo hobbesiano são, portanto, o “materialismo” e o “mecanicismo”.
Disponível em: https://conhecerepensar.wordpress.com/2016/11/07/
thomas-hobbes-materialismo-natureza-humana-e-politica/.

173
FIGURA 11 – THOMAS HOBBES

FONTE: <https://lapiedradesisifo.com/wp-content/uploads/2017/09/Thomas-Hobbes-300x194.
jpg>. Acesso em: 24 jun. 2020.

O racionalismo de Hobbes é tão rigoroso quanto o racionalismo de Descartes,


entretanto uma diferença fundamental separa os dois projetos filosóficos, uma vez
que Hobbes não atribui ao Cogito a dignidade ontológica primordial. Nesse sentido, o
materialismo de Hobbes é radical e integral. Para ele apenas o corpo, ocupando o lugar
no espaço existe como tal. Deste modo, Hobbes não admite qualquer prova da existência
de Deus, além de recusar-se a atribuir-lhe qualquer função política ou epistemológica.
Na filosofia hobbesiana, Deus é objeto de crença e não de ciência.

Assim, Hobbes se recusa a aceitar os predicados que a tradição filosófica


reconhece no homem, por exemplo, a imortalidade da alma, o livre arbítrio, a reta razão
etc. Com isso, o filósofo inglês busca a peculiaridade do homem na própria imposição
de sua natureza, isto é, a tarefa de ser o artífice da sua própria humanidade. Tal tarefa
exige que, num primeiro momento, o homem saia do seu “estado de natureza” para
encaminhar-se para o “estado civil”, fazendo da sociedade e do Estado o terreno e o
horizonte da sua realização humana (VAZ, 1991).

A partir da obra de Hobbes, desenvolver-se-á uma importante versão do


racionalismo, sobretudo na Inglaterra, exercendo uma forte influência na ética e na política
moderna. Trata-se do empirismo inglês, que influenciado pela ênfase antropológica de
Hobbes, caracterizou-se como uma filosofia do homem em sua capacidade cognoscitiva,
em seu agir moral e em sua vida política. Nesse sentido, a concepção empirista do
pensamento antropológico que se desenvolveu na Inglaterra no século XVII, contrapõe-
se fortemente à metafísica racionalista dominante no continente.

A obra que expõe os fundamentos do empirismo racionalista inglês é a do


filósofo John Locke (1632–1704). Locke foi o teórico da Revolução Inglesa, tornando-
se o pensador que traçou com maior exatidão a imagem do homem que prevaleceria
na cultura europeia durante os séculos XVIII e XIX: a imagem do “homem liberal” ou
do “burguês”. Sua tese, sustentava-se em seu otimismo naturalista (que postulava a
bondade natural do homem) e na afirmação da sociedade natural (contrário a tese de
Hobbes), isto é, a tendência da convivência harmônica e pacífica dos indivíduos no
“estado de natureza”.

174
DICA
John Locke (1632–1704) foi um dos principais empiristas britânicos com
Thomas Hobbes, George Berkeley e David Hume. Sua filosofia reconhece
a experiência como a única fonte válida de conhecimento. Segundo ele, a
sensação ou a experiência externa, e a reflexão ou a experiência interna,
constituem duas fontes de conhecimento, originando-se ideias simples,
produtos da sensação, e ideias complexas, provenientes da reflexão. John
Locke negava radicalmente que existiam ideias inatas, tese defendida por
Descartes. Argumentava ele, que quando se nasce, a mente é uma página
em branco que a experiência vai preenchendo. Sua teoria do conhecimento
foi exposta em sua obra fundamental: Ensaio Sobre o Conhecimento
Humano. Disponível em: https://www.ebiografia.com/john_locke/.

FIGURA 12 – JOHN LOCKE

FONTE: <https://s.ebiografia.com/assets/img/authors/jo/hn/john-locke-l.jpg>. Acesso em: 24 jun. 2020.

John Locke tece sua crítica a teoria cartesiana das ideias inatas que afirma
existirem no homem todas as disposições naturais para, usando de suas próprias
capacidades, chegar ao conhecimento de Deus, da natureza e de si mesmo como
ser moral. Entretanto, o naturalismo de Locke não se manifesta em confronto ao
cristianismo. Ao contrário, Locke se mostra um propagador da tolerância religiosa e se
esforçará para evidenciar o caráter razoável do cristianismo, preparando o caminho
para o desenvolvimento do deísmo no século XVIII. A antropologia de John Locke se
fundamenta, portanto, através de sua teoria empirista do conhecimento. Segundo Vaz
(1991), a rejeição das ideias inatas tem como consequência direta a crítica do Cogito
cartesiano e uma concepção de consciência de si como manifestação da identidade
pessoal que põe em destaque a sua estrutura psicológica em âmbitos muito mais
amplos do que os limites apodíticos do Eu penso.

175
Desse modo, o empirismo de Locke, com a primazia conferida ao indivíduo,
também é o fundamento de sua teoria política, na qual influenciará fortemente o
pensamento liberal moderno. Há um paradoxo presente no pensamento político de
Locke: por um lado, há o indivíduo que na sua condição de soberano deve renunciar a
sua absoluta soberania, pois alguns de seus direitos serão transferidos para o Estado
ou serão limitados pela soberania da lei. Nesse sentido, para Locke, a sociedade política
que garante o bem de todos, aparece como um liame nocivo para cada indivíduo, em
contraste à sociedade harmônica e pacífica do “estado de natureza”. Nessas condições,
não restará ao indivíduo outra opção para reencontrar sua autonomia, senão recolher-
se ao isolamento de sua vida privada (VAZ, 1991).

4 A ÉPOCA DA ILUSTRAÇÃO: KANT E A


ANTROPOLOGIA PRAGMÁTICA
A Ilustração ou Iluminismo compreende o movimento de ideias que predominou
na Europa do século XVIII e que se estendeu ao campo político, religioso, filosófico,
científico, literário e artístico, definindo um espírito (Geist) que marcou toda uma época
e conferiu uma identidade própria a toda uma civilização, designada de civilização da
Ilustração. Nesse sentido, a Ilustração abarca vários aspetos, mas o centro que unifica
todos esses aspectos é uma concepção do homem, como da história humana e de seu
sentido, que se afasta radicalmente da concepção dominante nos séculos cristãos.

A época da Ilustração (Iluminismo) se caracterizou não como um consistente


sistema doutrinário, mas como um movimento, cujo fundamento era a confiança na
razão humana, em que o desenvolvimento representava o progresso da humanidade
e, por consequência, a libertação dos vínculos da tradição judaico-cristã medieval,
que na visão dos iluministas, caracterizava-se pela ignorância, pela manifestação de
superstições, de visões míticas e opressivas em relação a novas ideias e concepções de
mundo e do ser humano (REALE; ANTISERI, 1990).

Portanto, a Razão para os pensadores iluministas representava a defesa do


conhecimento científico, da técnica, enquanto instrumentos de transformação do
mundo e de melhoria progressiva das condições espirituais e materiais da humanidade.
Sob tais pressupostos, o iluminismo pode ser considerado uma aposta na potência da
Razão humana, com o objetivo de superar os problemas sociais, pedagógicos e políticos
da sociedade. Assim, os iluministas situam na base desse projeto de progresso espiritual,
material e político, o uso crítico e construtivo da razão.

Na visão do filósofo alemão Immanuel Kant, o uso da razão iluminista é o uso


público. Segundo ele, o uso público da razão deve ser livre em qualquer tempo e só ele
pode concretizar o iluminismo entre os homens. Deste modo, a razão na perspectiva
iluminista não desconsidera nenhum campo de investigação, ela é uma razão que diz

176
respeito à natureza e, ao mesmo tempo, ao homem. “[...] O homem não se reduz à razão,
mas tudo aquilo que lhe diz respeito pode ser indagado através da razão: princípios
do conhecimento, comportamentos éticos, estruturas e instituições políticas, sistemas
filosóficos e crenças religiosas” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 674).

FIGURA 13 – IMMANUEL KANT

FONTE: <http://twixar.me/QFhm>. Acesso em: 24 jun. 2020.

Immanuel Kant nasceu em Königsberg, na Prússia Oriental, (hoje, a cidade se


chama Kaliningrado e pertence a um território que se encontra sob a soberania russa)
no ano de 1724 e morreu na mesma cidade, em 1804. O filósofo prussiano jamais saiu dos
limites de sua cidade. Descendia de uma família humilde de artesões, provavelmente
de origem escocesa. O seu pai era seleiro e sua mãe dona de casa. Era de uma família
numerosa, que foi duramente provada, pois seis filhos morreram em tenra idade. Kant
menciona que seus pais lhe deram uma excelente educação e eram exemplo de
honestidade e probidade.

Kant estudou na Universidade de sua cidade natal, foi professor particular,


participando de atividades universitárias; mas somente no ano de 1770 foi nomeado
professor ordinário de Lógica e Metafísica. Até 1797, permaneceu na condição de
professor em sua cátedra, que abandonou por debilidade seis anos antes de morrer.
O filósofo sempre teve saúde delicada, e apesar disso, era muito metódico, tranquilo e
extremamente bondoso. A sua vida inteira constitui-se por uma paixão pela verdade.

A obra de Kant representa uma das importantes correntes da Ilustração


(Iluminismo). É também na obra de Kant que se encontra os prenúncios de uma
nova época que será dominada pelo Romantismo, do qual o Idealismo alemão será a
vertente filosófica. Lima Vaz (1991), traça duas linhas de pensamento da concepção
kantiana de homem:

177
1- A linha propriamente antropológica, que está inserida no curso de Metafísica
professado por Kant. Nesta linha, Kant introduz, a partir de 1762, uma modificação
decisiva no melhor estilo da Ilustração, colocando no início o estudo empírico do
homem do qual fornece o título de Antropologia.
2- A linha crítica que segue o desenvolvimento da reflexão crítica a partir da Dissertação
de 1770; essa tarefa crítica abrange três atividades superiores do homem: a razão
teórica, a razão prática e a faculdade de julga. Essas três atividades constituem uma
nova imagem do homem transmitida pelo racionalismo clássico.

Desse modo, a relação entre essas duas linhas de pensamento, expõe a


subordinação da Antropologia, cuja base é empírica, à Metafísica dos Costumes, que
procede a priori e permite definir a essência verdadeira do homem. Nesse sentido,
na visão de Vaz (1991), os dois planos epistemológicos sobre os quais se constrói a
concepção kantiana de homem são: o plano de uma ciência de observação que utiliza
o procedimento analítico para unificar os dados da observação por meio de uma teoria
das faculdades, cujo núcleo conceitual é a representação do Eu exprimindo-se em
consciência de si; e o plano de uma ciência a priori que se encontra no campo da Ética
ou da Metafísica dos Costumes a possibilidade de determinação da essência do homem.

No último texto antropológico de Kant: Antropologia desde o ponto de vista


pragmático (1798), delineia-se melhor a ideia kantiana de antropologia. Para Kant, a
antropologia é a ciência cuja finalidade é preparar o homem para o conhecimento do
“mundo”. Nesse sentido, o conhecimento do homem se funda no senso comum e tem
em vista as relações que se estabelecem entre os homens. Desse modo, a Antropologia
se insere no âmbito da “filosofia popular” no sentido dado a essa expressão no século
XVIII: é destinada ao uso das pessoas do mundo, sendo sua característica fundamental
é ser pragmática.

Em Kant, o conceito de Antropologia ganha uma amplitude e tende a ocupar


o centro do sistema filosófico. Desta forma, a Antropologia desde do ponto de vista
pragmático refere-se a uma intenção típica da Ilustração alemã: tornar a filosofia útil
para a vida, e ela constitui um dos aspectos fundamentais da concepção kantiana do
homem, aquele pelo qual ele participa do movimento pedagógico Iluminista.

Nesse sentido, no que se refere à concepção do homem, o pensamento crítico


de Kant se sustenta na tradição dualista própria da antropologia racionalista. Vaz (1991)
estabelece os principais traços da ideia de homem kantiano:

1- Linha da estrutura sensitivo-racional, que acompanha o homem com ser cognoscente.


2- Linha da estrutura físico-pragmática, que acompanha o homem como ser natural ou
mundano, físico designando o que a Natureza opera no homem e pragmático o que
o homem faz de si mesmo e da estrutura prática que acompanha o homem como ser
livre e capaz de responder.

178
3- Linha da estrutura histórica ou do destino do homem, que o acompanha em duas
direções fundamentais: religiosa, que aponta para o fim último do homem; e a
pedagógica-política que Kant desenvolveu em seus numerosos opúsculos sobre
Filosofia da história, política e pedagogia.

Assim, para o filósofo alemão, o homem, que na Razão pura revela-se


fenomênico (objeto do conhecimento), finito, mas dotado (como razão) de estrutural
abertura para o infinito (as ideias) e de uma necessidade incontrolável de infinito, na
Razão prática, o homem revela-se também destinado ao infinito. Portanto, o destino
do homem é o infinito. Essas posições, constituíram o horizonte da época da Ilustração
(iluminismo), desembocando no Romantismo, que em sua poesia e filosofia, estará
voltado precisamente para o infinito.

179
LEITURA
COMPLEMENTAR
RESPOSTA À PERGUNTA: “O QUE É O ILUMINISMO?”

Apresentação

O opúsculo de I. Kant Resposta à pergunta: Que é o iluminismo? (1784) é, como


se sabe, um texto clássico. Por razões várias.

É um dos manifestos mais ‘interessantes’ da Ilustração europeia. Como tal,


figura não só como um dos mais contundentes apelos ao exercício autônomo da razão,
à liberdade de pensamento, mas constitui, ainda, uma expressão sintomática de um
momento fundamental na estruturação da consciência moderna, com o seu afã de
novidade, de expansão e conquista do mundo e da natureza, de destruição da ordem
estática das sociedades, mas também com o seu desprezo da tradição, com a vertigem
do solipsismo.

É, por outro lado, um texto-alvo no recente debate sobre o projeto da


modernidade e a reação pós-moderna (assim na obra de M. Foucault e de J. Habermas,
entre outros).

Propõe, ainda, de certo modo, um ideal imperativo e inatingível – precisamente


a consecução da genuína e plena ilustração intelectual – e disso Kant parece dar-se
conta no final do ensaio, embora permaneça, contra o que promove, enredado nos
preconceitos da sua época, a saber, uma versão algo abstrata da razão arrancada ao
húmus da história, encarada sem os nexos relacionais que ligam os seres humanos no
seu destino; a inatenção ao papel quase transcendental da linguagem na estruturação
do pensamento; a falta de consideração do vínculo entre razão e autoridade (nas suas
múltiplas formas), além da pedante convicção de que as idades anteriores aos tempos
modernos mergulhavam na ‘menoridade culpada’.

Estas observações, e muitas outras que se poderiam aduzir, não serão um


obstáculo para apreciar a luminosidade deste opúsculo, merecidamente famoso;
mesmo apesar dos seus limites, encerra ainda uma exigência moral de autoiluminação,
que nunca é bastante.

RESPOSTA À PERGUNTA: “QUE É O ILUMINISMO?” (1784)


(3 dez., 1783, p. 516)

Immanuel Kant

lluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é


culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação
de outrem. Tal menoridade é por culpa própria, se a sua causa não residir na carência de
entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo, sem a
guia de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento!
Eis a palavra de ordem do Iluminismo.

180
A preguiça e a cobardia são as causas de os homens em tão grande parte, após
a natureza os ter há muito libertado do controlo alheio (naturaliter maiorennes), [482]
continuarem, todavia, de bom grado menores durante toda a vida; e também de a outros
se tornar tão fácil assumir-se como seus tutores. É tão cômodo ser menor. Se eu tiver
um livro que tem entendimento por mim, um diretor espiritual que, em vez de mim, tem
consciência moral, um médico que, por mim, decide da dieta etc., então, não preciso de
eu próprio me esforçar. Não me é forçoso pensar, quando posso simplesmente pagar;
outros empreenderão por mim essa tarefa aborrecida. Porque a imensa maioria dos
homens (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem à maioridade difícil e também
muito perigosa, é que os tutores de bom grado tomaram a seu cargo a superintendência
deles. Depois de terem, primeiro, embrutecido os seus animais domésticos e evitado
cuidadosamente que estas criaturas pacíficas ousassem dar um passo para fora da
carroça em que as encerraram, mostram-lhes, em seguida, o perigo que as ameaça se
tentarem andar sozinhas. Ora, este perigo não é assim tão grande, pois acabariam por
aprender muito bem a andar. Só que um tal exemplo intimida e, em geral, gera pavor
perante todas as tentativas ulteriores.

É, pois, difícil a cada homem desprender-se da menoridade que para ele


se tomou [483] quase uma natureza. Até lhe ganhou amor e é por agora realmente
incapaz de se servir do seu próprio entendimento, porque nunca se lhe permitiu fazer
semelhante tentativa. Preceitos e fórmulas, instrumentos mecânicos do uso racional ou
antes do mau uso dos seus dons naturais são os grilhões de uma menoridade perpétua.
Mesmo quem deles se soltasse só daria um salto inseguro sobre o mais pequeno fosso,
porque não está habituado ao movimento livre. São, pois, muito poucos, apenas os que
conseguiram mediante a transformação do seu espírito, arrancar-se a menoridade e
encetar então um andamento seguro.

É perfeitamente possível que um público a si mesmo se esclareça. Mais ainda,


é quase inevitável, se para tal lhe for concedida a liberdade. Sempre haverá, de fato,
alguns que pensam por si, mesmo entre os tutores estabelecidos da grande massa que,
após terem arrojado de si o jugo da menoridade, espalharão a sua volta o espírito de
uma estimativa racional do próprio valor e da vocação de cada homem para pensar por
si mesmo. Importante aqui é que o público, antes por eles sujeito a este jugo, os obriga
doravante a permanecer sob ele quando por alguns dos seus tutores, pessoalmente
incapazes de qualquer ilustração, é a isso [484] incitado. Semear preconceitos é muito
danoso, porque acabam por se vingar dos que pessoalmente ou os seus predecessores,
foram os seus autores. Por conseguinte, um público só muito lentamente consegue
chegar à ilustração. Por meio de uma revolução talvez se possa levar a cabo a queda
do despotismo pessoal e da opressão gananciosa ou dominadora, mas nunca uma
verdadeira reforma do modo de pensar. Novos preconceitos, justamente como os
antigos, servirão de rédeas à grande massa destituída de pensamento.

181
Para essa ilustração, nada mais se exige do que a liberdade; e, claro está, a
mais inofensiva entre tudo o que se pode chamar liberdade, a saber, a de fazer um uso
público da sua razão em todos os elementos. Agora, porém, de todos os lados ouço
gritar: não raciocines! Diz o oficial: não raciocines, mas faz exercícios! Diz o funcionário
de Finanças: não raciocines, paga! E o clérigo: não raciocines, acredita! (apenas um único
senhor no mundo diz: raciocinai tanto quanto quiserdes e sobre o que quiserdes, mas
obedecei!). Por toda a parte se depara com a restrição da liberdade. Qual é a restrição
que se opõe ao Iluminismo? Qual a restrição que o não impede, antes o fomenta?
Respondo: — o uso público da própria razão deve sempre ser livre e só ele pode, entre
os homens, levar a cabo a ilustração [485]; mas o uso privado da razão pode, muitas
vezes, coarctar-se fortemente sem que, no entanto, se entrave assim notavelmente o
progresso da ilustração. Por uso público da própria razão entendo aquele que qualquer
um, enquanto erudito, dela faz perante o grande público do mundo letrado. Chamo uso
privado aquele que alguém pode fazer da sua razão num certo cargo público ou função
a ele confiado. Ora, em muitos assuntos que têm a ver com o interesse da comunidade,
é necessário um certo mecanismo em virtude do qual alguns membros da comunidade
se comportarão de um modo puramente passivo com o propósito de, mediante uma
unanimidade artificial, serem orientados pelo governo para fins públicos ou de, pelo
menos, serem impedidos de destruir tais fins.

No caso, não é decerto permitido raciocinar, mas tem de se obedecer. Na


medida, porém, em que esta parte da máquina se considera também como elemento
de uma comunidade total, e até da sociedade civil mundial, portanto, na qualidade de
um erudito que se dirige por escrito a um público em entendimento genuíno, pode,
certamente, raciocinar sem que assim sofram qualquer dano os negócios a que, em
parte, como membro passivo, encontra-se sujeito. Seria, pois, muito pernicioso se um
oficial, a quem o seu superior ordenou algo, quisesse em serviço sofismar em voz alta
[486] acerca da inconveniência ou utilidade dessa ordem; tem de obedecer, mas não se
lhe pode impedir de um modo justo, enquanto perito, fazer observações sobre os erros
do serviço militar e expô-las ao seu público para que as julgue.

O cidadão não pode recusar-se a pagar os impostos que lhe são exigidos; e
uma censura impertinente de tais obrigações, se por ele devem ser cumpridas, pode
mesmo punir-se como um escândalo (que poderia causar uma insubordinação geral).
Apesar disso, não age contra o dever de um cidadão se, como erudito, ele expuser
as suas ideias contra a inconveniência ou também a injustiça de tais prescrições. Do
mesmo modo, um clérigo está obrigado a ensinar os instruindo de catecismo e a sua
comunidade em conformidade com o símbolo da Igreja, a cujo serviço se encontra, pois
ele foi admitido com esta condição. Como erudito, tem plena liberdade e até a missão
de participar ao público todos os seus pensamentos cuidadosamente examinados e
bem-intencionados sobre o que de errôneo há naquele símbolo, e as propostas para
uma melhor regulamentação das matérias que respeitam à religião e à igreja. Nada aqui
existe que possa constituir um peso na consciência. Com efeito, o que ele ensina em

182
virtude da sua função, como ministro da Igreja, expõe-no como algo em relação [487] ao
qual não tem o livre poder de ensinar segundo a sua opinião própria, mas está obrigado
a expor segundo a prescrição e em nome de outrem. Dirá: a nossa Igreja ensina isto ou
aquilo; são estes os argumentos comprovativos de que ela se serve.

Em seguida, ele extrai toda a utilidade prática para a sua comunidade de


preceitos que ele próprio não subscreveria com plena convicção, mas a cuja exposição
se pode, no entanto, comprometer, porque não é de todo impossível que neles resida
alguma verdade oculta. De qualquer modo, porém, não deve neles haver coisa alguma
que se oponha à religião interior, pois se julgasse encontrar aí semelhante contradição,
então não poderia em consciência desempenhar o seu ministério; teria de renunciar.
Por conseguinte, o uso que um professor contratado faz da sua razão perante a sua
comunidade é apenas um uso privado, porque ela, por maior que seja, é sempre apenas
uma assembleia doméstica; e no tocante a tal uso, ele como sacerdote não é livre e
também o não pode ser, porque exerce uma incumbência alheia. Em contrapartida,
como erudito que, mediante escritos, fala a um público genuíno, a saber, ao mundo, por
conseguinte, o clérigo, no uso público da sua razão, goza de uma liberdade ilimitada de
se servir da própria razão e de falar em seu nome próprio. É, de facto, um absurdo, que
leva à perpetuação dos absurdos, que os tutores do povo [488] (em coisas espirituais)
tenham de ser, por sua vez, menores.

Não deveria uma sociedade de clérigos, por exemplo, uma assembleia


eclesiástica ou uma venerável classis (como a si mesma se denomina entre os
Holandeses) estar autorizada sob juramento a comprometer-se entre si com um certo
símbolo imutável para assim se instituir uma interminável supertutela sobre cada um
dos seus membros e, por meio deles, sobre o povo, e deste modo a eternizar? Digo:
isso é de todo impossível. Semelhante contrato, que decidiria excluir para sempre toda
a ulterior ilustração do gênero humano, é absolutamente nulo e sem validade, mesmo
que fosse confirmado pela autoridade suprema por parlamentos e pelos mais solenes
tratados de paz. Uma época não se pode coligar e conjurar para colocar a seguinte num
estado em que se tornará impossível a ampliação dos seus conhecimentos (sobretudo
os mais urgentes), a purificação dos erros e, em geral, o avanço progressivo na ilustração.
Isso seria um crime contra a natureza humana, cuja determinação original consiste
justamente neste avanço. E os vindouros têm toda a legitimidade para recusar essas
resoluções decretadas de um modo incompetente e criminoso. A pedra de toque [489]
de tudo o que se pode decretar como lei sobre um povo reside na pergunta: poderia um
povo impor a si próprio essa lei?

Seria decerto possível, na expectativa, por assim dizer, de uma lei melhor, por
um determinado e curto prazo, para introduzir uma certa ordem. Ao mesmo tempo,
facultar-se-ia a cada cidadão, em especial ao clérigo, na qualidade de erudito, fazer
publicamente, isto é, por escritos, as suas observações sobre o que há de errôneo nas
instituições anteriores; entretanto, a ordem introduzida continuaria em vigência até que
o discernimento da natureza de tais coisas se tivesse de tal modo difundido e testado

183
publicamente que os cidadãos, unindo as suas vozes (embora não todas), poderiam
apresentar a sua proposta diante do trono a fim de protegerem as comunidades que,
de acordo com o seu conceito do melhor discernimento, se teriam coadunado numa
organização religiosa modificada, sem todavia impedir os que quisessem ater-se à
antiga. É de todo interdito coadunar-se numa constituição religiosa pertinaz, por
ninguém posta publicamente em dúvida, mesmo só durante o tempo de vida de um
homem e deste modo aniquilar, por assim dizer, um período de tempo no progresso da
humanidade para o melhor e torná-lo infecundo e prejudicial para a posteridade. Um
homem, para a sua pessoa, [490] e mesmo então só por algum tempo, pode, no que lhe
incumbe saber, adiar a ilustração, mas renunciar a ela, quer seja para si, quer ainda mais
para a descendência, significa lesar e calcar aos pés o sagrado direito da humanidade.

O que não é lícito a um povo decidir em relação a si mesmo menos o pode ainda
um monarca decidir sobre o povo, pois a sua autoridade legislativa assenta precisamente
no fato de a sua vontade unificar a vontade conjunta do povo. Quando ele vê que toda
a melhoria verdadeira ou presumida coincide com a ordem civil, pode então permitir
que em tudo o mais os seus súbditos façam por si mesmos o que julguem necessário
fazer para a salvação da sua alma. Não é isso que lhe importa, mas compete-lhe obstar
a que alguém impeça à força outrem de trabalhar segundo toda a sua capacidade
na determinação e fomento da mesma. Constitui até um dano para a sua majestade
imiscuir-se em tais assuntos, ao honrar com a inspeção do seu governo os escritos em
os seus súbditos procuram clarificar as suas ideias, quer quando ele faz isso a partir
do seu discernimento superior, pelo que se sujeita à censura ‘Caesar non est supra
grammaticos’ quer também, e ainda mais, quando rebaixa o seu poder supremo a ponto
de, no seu Estado, apoiar o despotismo espiritual de alguns tiranos [491] contra os
demais súbditos.

Se, pois, se fizer a pergunta – Vivemos nós agora numa época esclarecida? – a
resposta é: não, mas vivemos numa época do Iluminismo. Falta ainda muito para que os
homens tomados em conjunto, da maneira como as coisas agora estão, se encontrem
já numa situação ou nela se possam apenas vir a pôr de, em matéria de religião, se
servirem bem e com segurança do seu próprio entendimento, sem a orientação de
outrem. Temos apenas claros indícios de que se lhes abre agora o campo em que podem
atuar livremente, e diminuem pouco a pouco os obstáculos à ilustração geral ou à saída
dos homens da menoridade de que são culpados. Assim considerada, esta época é a
época do Iluminismo, ou o século de Frederico.

Um príncipe que não acha indigno de si dizer que tem por dever nada prescrever
aos homens em matéria de religião, mas deixar-lhes aí a plena liberdade, que, por
conseguinte, recusa o arrogante nome de tolerância, é efetivamente esclarecido e
merece ser encomiado pelo mundo grato e pela posteridade como aquele que, pela
primeira vez, libertou o género humano da menoridade, pelo menos por parte do governo,
e concedeu a cada qual a liberdade de se [492] servir da própria razão em tudo o que é
assunto da consciência. Sob o seu auspício, clérigos veneráveis podem, sem prejuízo do

184
seu dever ministerial e na qualidade de eruditos, expor livre e publicamente ao mundo
para que este examine os seus juízos e as suas ideias que, aqui ou além, afastam-se do
símbolo admitido; mas, mais permitido é ainda a quem não está limitado por nenhum
dever de ofício. Este espírito de liberdade difunde-se também no exterior, mesmo
onde entra em conflito com obstáculos externos de um governo que a si mesmo se
compreende mal. Com efeito, perante tal governo brilha um exemplo de que, no seio da
liberdade, não há o mínimo a recear pela ordem pública e pela unidade da comunidade.
Os homens libertam-se pouco a pouco da brutalidade, quando de nenhum modo se
procura, de propósito, conservá-los nela.

Apresentei o ponto central do Iluminismo, a saída do homem da sua menoridade


culpada, sobretudo nas coisas de religião, porque em relação às artes e às ciências
os nossos governantes não têm interesse algum em exercer a tutela sobre os seus
súbditos; por outro lado, a tutela religiosa, além de ser mais prejudicial, é também a
mais desonrosa de todas. O modo de pensar de um chefe de Estado, que favorece a
primeira, vai ainda mais além e discerne que mesmo no tocante a sua legislação [493]
não há perigo em permitir aos seus súbditos fazer uso público da sua própria razão e
expor publicamente ao mundo as suas ideias sobre a sua melhor formulação, inclusive
por meio de uma ousada crítica da legislação que já existe; um exemplo brilhante que
temos é que nenhum monarca superou aquele que admiramos.

Também só aquele que, já esclarecido, não receia as sombras e que, ao mesmo


tempo, dispõe de um exército bem disciplinado e numeroso para garantir a ordem pública
– pode dizer o que a um Estado livre não é permitido ousar: raciocinai tanto quanto
quiserdes e sobre o que quiserdes; mas obedecei! Revela-se aqui um estranho e não
esperado curso das coisas humanas; como, aliás, quando ele se considera em conjunto,
quase tudo nele é paradoxal. Um grau maior da liberdade civil afigura-se vantajosa para
a liberdade do espírito do povo e, no entanto, estabelece-lhe limites intransponíveis;
um grau menor cria-lhe, pelo contrário, o espaço para ela se alargar segundo toda a
sua capacidade. Se a natureza, sob este duro invólucro, desenvolveu o germe de que
delicadamente cuida, a saber, a tendência e a vocação para o pensamento livre, então
ela atua também gradualmente sobre o modo do sentir do povo (pelo que este se tornará
cada vez mais [494] capaz de agir segundo a liberdade) e, por fim, até mesmo sobre os
princípios do governo que acha salutar para si próprio tratar o homem, que agora é mais
do que uma máquina, segundo a sua dignidade.

FONTE: Adaptado de KANT, I. Resposta à pergunta: “O que é o Iluminismo?”. Tradução de


Artur Morão. 2020. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/kant_o_iluminismo_1784.pdf.
Acesso em: 15 abr. 2020.

185
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• A Renascença foi o período que se estendeu do século XIV ao século XVI,


caracterizando-se como uma época do humanismo.

• Com o filósofo René Descartes (1596–1650), a antropologia racionalista moderna


encontrará sua expressão paradigmática, de modo que poderá falar do homem
racionalista ou do homem cartesiano.

• A principal preocupação de Descartes é encontrar uma maneira do homem chegar


à verdade.

• A única maneira clara e distinta do eu pensar a alma é como princípio de pensamento


(res cogitans) e a única maneira de se pensar o corpo é concebê-lo como extensão
(res extensa).

• A realidade para Descartes é dualista: de um lado tem-se a substância pensante


(res cogitans) – mente ou espírito –, e de outro lato tem-se a substância – corpo ou
matéria. Desta forma, se constitui o dualismo cartesiano.

• A antropologia de Descartes se apresenta como uma metafísica do espírito e uma


física do corpo: a ideia adequada, isto é, clara e distinta das duas substâncias,
mostra-se como “naturezas completas” que podem subsistir uma sem a outra.

• Segundo Descartes, há, de um lado, o “espírito”, cujo existir se manifesta na existência


do Cogito, e de outro, tem-se o corpo obedecendo aos movimentos e às leis que
impelem à máquina no mundo.

• Para Descartes, na ideia do Cogito, está implicada uma nova relação do “espírito”
com o mundo, que define uma nova concepção de homem: a concepção moderna
de homem.

• Na antropologia racionalista, o corpo humano passa a ser integrado no conjunto


dos artefatos e das máquinas, sendo que a presença do espírito, manifestado
sobretudo através da linguagem constitui o elemento essencial que separa o
homem do “animal-máquina”.

• O homem da idade cartesiana será marcado por dois traços fundamentais: o


moralismo e o humanismo devoto.

186
• Uma das obras que representa fortemente o espírito da transformação da ideia do homem
ocidental no limiar da idade moderna é a de Blaise Pascal (1623–1662).

• Na concepção de Pascal, o Cogito é a marca da “grandeza do homem”.

• Tanto para Pascal como para Descartes, a dignidade do homem reside no pensamento.

• O Cogito, na visão de Pascal, não se volta para a dominação do mundo, mas sim na
busca pelas descobertas das regras do bien peser (bem pensar): descobrindo sua
dimensão moral.

• Na antropologia de Pascal, o homem não está mais subordinado a ordem cósmico-


teológica da visão judaico-cristã medieval do mundo, nem voltado, como o homem
cartesiano, para o senhorio e posse da natureza.

• Hobbes postula a aplicação do racionalismo mecanicista à compreensão do homem


e da sociedade.

• Para Hobbes, a filosofia seria a “ciência dos corpos”, isto é, tudo aquilo que tem
existência material. Os corpos se dividem em “corpos naturais” (filosofia da natureza)
e “corpo artificial” ou “Estado” (filosofia política).

• Hobbes não atribui, ao Cogito, a dignidade ontológica primordial. O materialismo de


Hobbes é radical e integral.

• A obra que expõe os fundamentos do empirismo racionalista inglês é a do filósofo


John Locke (1632–1704).

• John Locke tece sua crítica diante da teoria cartesiana das ideias inatas, que afirma
existirem no homem todas as disposições naturais para, usando de suas próprias
capacidades, chegar ao conhecimento de Deus, da natureza, e de si mesmo como
ser moral.

• A antropologia de John Locke se fundamenta através de sua teoria empirista do


conhecimento.

• A razão, para os pensadores iluministas, representava a defesa do conhecimento


científico, da técnica, enquanto instrumentos de transformação do mundo e de
melhoria progressiva das condições espirituais e materiais da humanidade.

• Na visão do filósofo alemão Immanuel Kant, o uso da razão iluminista é o uso público.

• A razão, na perspectiva iluminista, não desconsidera nenhum campo de investigação,


ela é uma razão que diz respeito à natureza, e ao mesmo tempo, ao homem.

187
• Os dois planos epistemológicos sobre os quais se constrói a concepção kantiana de
homem são: o plano de uma ciência de observação e o plano de uma ciência a priori.

• Para Kant, a Antropologia é a ciência cuja finalidade é preparar o homem para o


conhecimento do “mundo”.

• Para Kant, a característica fundamental da Antropologia é ser pragmática.

• Em Kant, o conceito de Antropologia ganha uma amplitude e tende a ocupar o centro


do sistema filosófico.

188
AUTOATIVIDADE
1 O racionalismo e o empirismo estabeleceram as bases para o desenvolvimento do
pensamento idealista de Immanuel Kant. A filosofia kantiana instaura a revolução no
campo do conhecimento, modificando os rumos da filosofia ocidental. Nesse sentido,
a obra de Kant representa uma das importantes correntes da Ilustração (Iluminismo).
Sobre a ideia kantiana de antropologia, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Para Kant, a Antropologia é a ciência que estuda as propriedades do ser.


b) ( ) Para Kant, a Antropologia é a ciência cuja finalidade é preparar o homem para o
conhecimento do “mundo”.
c) ( ) Na visão de Kant, a Antropologia se insere no âmbito da filosofia erudita, sendo
destinada apenas aos homens privilegiados.
d) ( ) Para Kant a Antropologia não é útil para filosofia.

2 A filosofia de Thomas Hobbes (1588-1679) foi muito influenciada pelas ideias de


Francis Bacon (1561–1626) e de Galileu Galilei (1564–1642). Hobbes postula a aplicação
do racionalismo mecanicista à compreensão do homem e da sociedade. Sobre a
concepção do homem em Hobbes, analise as seguintes sentenças:

I- O racionalismo de Hobbes é semelhante ao de Descartes, pois ambos atribuem ao


Cogito a dignidade ontológica primordial.
II- Hobbes abandonou as grandes pretensões metafísicas (a busca pela essência do
ser) e buscou investigar as causas e propriedades das coisas.
III- Para Hobbes a filosofia seria a “ciência dos corpos”, isto é, tudo aquilo que tem
existência material.
IV- Hobbes se recusa a aceitar os predicados que a tradição filosófica reconhece no
homem, como por exemplo, a imortalidade da alma, o livre arbítrio, a reta razão etc.

Agora, assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As afirmativas I, II e III estão corretas.
b) ( ) As afirmativas I e III estão corretas.
c) ( ) As afirmativas II, III e IV estão corretas.
d) ( ) Todas as afirmativas estão corretas.

189
3 Com o filósofo René Descartes (1596–1650), a antropologia racionalista moderna
encontrará sua expressão paradigmática, de modo que poderá falar do homem
racionalista ou do homem cartesiano. Na obra Discurso do método (1637), Descartes
explicita a estrutura fundamental da antropologia racionalista. Sobre a antropologia
racionalista de Descartes, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Na visão de Descartes, o mundo é como a physis (natureza) antiga dotada de um


princípio imanente de movimento.
b) ( ) Segundo Descartes, o homem é apenas “animal-máquina”.
c) ( ) A antropologia de Descartes se apresenta como uma metafísica do espírito e uma
física do corpo: a ideia adequada, isto é, clara e distinta das duas substâncias,
mostra-se como “naturezas completas” que podem subsistir uma sem a outra.
d) ( ) Segundo Descartes, o corpo humano é integrado no conjunto mente-espírito.

190
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