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Cristiane Paulin Simon

Lucy Leal Melo-Silva


Manoel Antônio dos Santos e cols.

FORMAÇÃO EM
P SICOLOGIA
Desafios da diversidade na pesquisa
e na prática
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Simon, Cristiane Paulin


Formação em psicologia : desafios da
diversidade na pesquisa e na prática / Cristiane
Paulin Simon, Lucy Leal Melo-Silva, Manoel Antônio
dos Santos. — 1. ed. — São Paulo : Vetor, 2005.

Vários colaboradores.

1. Pesquisa psicológica 2. Psicologia - Estudo


e ensino 3. Psicologia - Prática I. Melo-Silva,
Lucy Leal. II. Santos, Manoel Antônio dos. III. Título.
[Suporte em CD-Rom]

05-6996 CDD- 150

Índices para catálogo sistemático:


1. Psicologia 150

ISBN: 85-7585-130-6

Projeto gráfico e diagramação: Tânia Menini


Capa: Marcelo Moscheta
Revisão: Cristiane Paulin Simon, Lucy Leal Melo-Silva
e Manoel Antônio dos Santos

© 2005 – Vetor Editora Psico-Pedagógica Ltda.


É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação, por qualquer meio
existente e para qualquer finalidade, sem autorização por escrito dos editores.
SUMÁRIO

Formação e diversidade: desafios e questionamentos que


constroem novas práticas psicológicas ......................................... 7

Parte I – Psicologia e processos de investigação científica ... 13

1. Ganhos terapêuticos com psicoterapia breve em serviço de


psico-oncologia hospitalar ............................................................ 15
Carmen Maria Bueno Neme

2. Avaliação de programas educativos para prevenção


das DST/AIDS: Algumas reflexões a partir de um
programa de intervenção com adolescentes em uma
escola pública ............................................................................... 43
Rosalina Carvalho da Silva, Cristiane Paulin Simon

3. Obesidade Grau III: Levantamento da produção científica .... 77


Jena Hanay Araujo de Oliveira

4. Sobre a elaboração e utilização de estudos de caso na


pesquisa científica e na prática profissional em Psicologia ......... 93
Rodrigo Sanches Peres, Manoel Antônio dos Santos

5. Desospitalização em psiquiatria: O desejo de permanecer


internado – Um estudo de caso .................................................. 107
Vanessa Cristina Machado, Regina Helena Lima Caldana

6. As desordens temporomandibulares e o psicólogo:


Da etiologia à terapêutica .......................................................... 129
Regina Helena Lima Caldana, Ana Maria Bettoni
Rodrigues da Silva

7. Qualidade de vida de mães de crianças com autismo ............ 157


Maria Ângela Bravo Fávero, Manoel Antônio dos Santos
8. Terapia grupal e individual: Um estudo comparativo ........... 181
Érika Aparecida Moreira Mendes, Marília Aparecida Muylaert

Parte II – Psicologia e processos educativos,


psicoeducativos e sociais ....................................................... 207

9. Intervenção de ajuda a crianças e adolescentes considerados


em situação de risco psicossocial: O modelo da psicoeducação ..... 209
Marina Rezende Bazon, Roberta Noronha Azevedo,
Paulo Fernando Facioli Pestana

10. O trabalho com grupos minoritários na perspectiva da


Psicologia Social ......................................................................... 239
Jaqueline Brigagão I. Machado, Adriana Oliveira de Souza,
Rosemeire Barbosa da Silva

11. A influência familiar na escolha profissional dos filhos,


na perspectiva de mães de clientes em processo de orientação
profissional ................................................................................. 261
Camila Vianna Duarte, Lucy Leal Melo-Silva,
Manoel Antônio dos Santos, Talma Alzira Bonfim

12. Cartas que dizem muito: Pais e filhos na orientação


profissional ................................................................................. 283
Luciana Maria da Silva, Fabíola Perri Venturini,
Lucy Leal Melo-Silva

Parte III – Serviços psicológicos: interfaces e interações


com a comunidade .................................................................. 297

13. Reflexões e decorrências da participação das clínicas-escola


no projeto de prevenção ao suicídio da Prefeitura Municipal
de São Paulo ............................................................................... 299
Rita Aparecida Romaro, Eliana Herzberg, Felícia Knobloch,
Rosélia Bezerra Paparelli, Suely Aparecida Ferreira Garcia,
Rita Helena Cucê Nobre Gabriades, Andréa Paes Favalli
14. Serviços psicológicos e comunidade: Necessidade de
diálogo constante ....................................................................... 317
Gohara Yvette Yehia

15. Experiência de implantação de um serviço de atendimento


psicológico interdisciplinar ........................................................ 327
Ana Beatriz Guerra Mello, Ana Maria Zuwick,
Caroline Tozzi Reppold, Marianne M. Stolzmann Mendes Ribeiro,
Sandra Laura Frischenbruder, Rita de Cássia Petrarca Teixeira

16. Implementação de um estágio em Psicologia Hospitalar:


em busca de um trabalho interdisciplinar na assistência ao
câncer hematológico ................................................................... 345
Érika Arantes de Oliveira, Manoel Antônio dos Santos,
Ana Paula Mastropietro

17. Atuação em psico-oncologia: Atenção interdisciplinar


a mulheres mastectomizadas ..................................................... 355
Manoel Antônio dos Santos, Murilo dos Santos Moscheta,
Rodrigo Sanches Peres, Fernanda Pessolo Rocha

18. Grupo educativo como modalidade assistencial inserida


no contexto de um programa interdisciplinar de atenção ao
paciente diabético ....................................................................... 371
Manoel Antônio dos Santos, Denise Siqueira Péres,
Maria Lúcia Zanetti, Lívia Padula Gerbasi,
Antônio Augusto Ferronato, Liudmila Myar Otero

Parte IV – Práticas psicológicas na atenção à saúde ........ 395

19. Construindo biografias: Uma atividade psicoeducativa


com pacientes psiquiátricos e o desenvolvimento da identidade
profissional do estagiário em Psicologia ................................... 397
Murilo dos Santos Moscheta, Sandra Akemi Okajima,
Juliana Araújo Ferreira, Sérgio Luiz Alécio Filho,
Marina Rezende Bazon, Carmen Lúcia Cardoso, Sergio Ishara
20. A construção de grupos de promoção de saúde: Repensando
a prática profissional do psicólogo ............................................ 421
Viviane Milan Pupin, Carmen Lúcia Cardoso,
Trude Ribeiro da Costa Franceschini

21. A possibilidade de fazer diferente: A experiência


compartilhada favorecendo a ressignificação de crenças e
desejos a partir do encontro com candidatos à adoção ............. 437
Manoel Antônio dos Santos, Letícia Pereira da Silva,
Renata Loureiro Raspantini, Fernanda Aguiar Pizeta,
Letícia Araújo Moreira da Silva

22. Oficinas terapêuticas: Uma possibilidade de intervenção


em saúde mental ......................................................................... 451
Ana Paula Mastropietro, Érika Arantes de Oliveira,
Manoel Antônio dos Santos, Adriana Sparenberg de Oliveira

Assessores e consultores AD HOC ............................................ 466


FORMAÇÃO E DIVERSIDADE: DESAFIOS
E QUESTIONAMENTOS QUE CONSTROEM
NOVAS PRÁTICAS PSICOLÓGICAS

Entre as décadas de 70 e 80 do século passado houve um


processo de intenso questionamento na Psicologia em rela-
ção aos seus pressupostos epistemológicos, filosóficos e éti-
cos, às suas práticas e aos seus modos de produção científica.
Questionava-se, ainda, os tipos de inserção da Psicologia em
nossas realidades sociais. Foram diversas as críticas à pos-
tura, até aquele momento, elitista, que concebia o indivíduo
como um ser abstrato, a-histórico, passivo e totalmente des-
vinculado de seu contexto social.
Neste contexto se fazia necessário repensar o conjunto
de práticas psicológicas que respondiam a demandas espe-
cíficas de algumas camadas sociais da população e estigma-
tizavam outras, com a justificativa de que essas não se
“enquadravam” nos tipos de clientelas idealizadas pelos psi-
cólogos para atendimento no modelo clínico tradicional.
Apesar disso, o próprio clima político e econômico do país
nas décadas de 60 e 70 contribuiu para que os psicólogos
buscassem alternativas de atuação para além dos consultó-
rios. Alguns destes encontravam-se engajados em movimen-
tos sociais e políticos com o objetivo de mobilização e
transformação sociais e se aproximaram de outros contex-
tos e demandas, como, por exemplo, a comunidade. Nas pala-
vras de Freitas (1996, p. 60):
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

A partir de meados da década de 60, em alguns locais dá-se


a inserção do psicólogo, com o objetivo de somar esforços e de
colaborar para tornar a psicologia mais próxima à popula-
ção, em geral, e mais comprometida com a vida dos setores
menos privilegiados; buscando com isso uma deselitização
da profissão, e as práticas vão ganhando uma significação
política de mobilização e de transformação sociais.

O termo comunidade começa a fazer parte do campo de


atuação do psicólogo e nesse contexto se vê o início, no Bra-
sil, do uso do termo Psicologia na comunidade. Esta deno-
minação sofre alterações ao longo de sua história, como
Psicologia da Comunidade, Psicologia Comunitária e Psi-
cologia Social Comunitária. Mais do que a criação de uma
área de atuação, estes psicólogos, ao delimitarem novos es-
paços de atuação, passaram a advogar o claro envolvimen-
to profissional nas questões sociais e políticas das camadas
populares.
Também na saúde, na década de 80, houve a abertura de
novos postos de trabalho para o psicólogo na saúde pública
devido às propostas de mudanças no modelo assistencial
até então vigente, pautado no modelo hospitalocêntrico e
numa assistência privada. Estas transformações ocorriam
como parte das reivindicações que se iniciaram a partir do
Movimento Sanitário na década de 70. Neste movimento,
formado basicamente por intelectuais progressistas, pro-
punham-se reformas nas políticas públicas de saúde com o
objetivo de garantir saúde para todos.
Segundo Bock (1999, p. 320-321):

A década de 80 trouxe novos desafios aos psicólogos. A pe-


quena, mas significativa, abertura do mercado de trabalho
no serviço público de saúde colocou aos psicólogos e às suas
entidades desafios muito grandes. Era preciso ‘reinventar’
uma Psicologia que permitisse contribuir e responder às

8
Formação e diversidade: desafios e questionamentos que constroem...

necessidades daquela população, com a qual não estávamos


habituados a trabalhar. [...] Estava dada a largada para um
período em que os psicólogos iriam se perguntar e refletir
sobre a relação de seu trabalho e do próprio fenômeno psico-
lógico com a realidade social. A realidade social entrava na
Psicologia para remexer tudo o que, durante tantos anos,
ficou naturalizado e cristalizado.

Imersos em contextos e necessidades tão distantes das


práticas psicológicas tradicionais, cabe aos psicólogos inda-
gações sobre o modelo hegemônico até então adotado e seus
referenciais. Era fundamental questionar a quem a Psicolo-
gia deveria servir: a si mesma, aos interesses das classes
dominantes ou às necessidades e desafios das camadas popu-
lares frente a uma realidade em constante transformação?
Nesse contexto o psicólogo é chamado não apenas a fa-
zer parte de novos cenários de atuação, mas a assumir um
posicionamento crítico que deve ser incorporado por meio
de uma prática também reflexiva que envolve

“[...] reconhecer que a situação do conhecimento e da prática


serve para redefinir o modelo técnico do cientista prático,
desarticulado e objetivo para um em que seja ator social
engajado e comprometido” (BOLAM; CHAMBERLAIN,
2003, p. 216).

Como pode ser acompanhado nesta breve exposição sobre


alguns dos percursos da Psicologia na construção de suas prá-
ticas e saberes na área da saúde e da Psicologia Social Comu-
nitária, o psicólogo tem lidado com os desafios que a diversidade
impõe, buscando mais do que ampliar seus espaços de traba-
lho, assumir um posicionamento ético e reflexivo.
Neste livro FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA: DESAFIOS
DA DIVERSIDADE NA PESQUISA E NA PRÁTICA, apre-
sentamos trabalhos que representam parte destes questio-

9
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

namentos e reflexões em diferentes contextos de atuação e


perspectivas teóricas e metodológicas, mas que têm em co-
mum a reflexão a partir do lugar do ensino dos serviços-esco-
la. Sendo assim, são produções de conhecimento construídas
a partir dos processos de investigação e sistematização de
experiências de psicólogos e alunos de cursos de graduação
e pós-graduação em Psicologia que iniciam sua trajetória
na ciência e na profissão, que tem buscado a emancipação
social das pessoas aliada à transformação da realidade, seja
ela objetiva ou subjetiva.
Na Parte 1 – Psicologia e processos de investigação cien-
tífica – estão incluídos os trabalhos de sistematização dos
conhecimentos produzidos a partir dos desafios colocados:
pelas mudanças no perfil epidemiológico das doenças in-
fecciosas para as crônicas; em outras modalidades de aten-
dimento que atendam a demanda dos serviços públicos em
hospitais, por exemplo; nas contribuições da Psicologia na
compreensão dos transtornos temporomandibulares na
área da Odontologia; nas necessidades advindas da Refor-
ma Psiquiátrica com o processo de “desospitalização”; e
pelos novos olhares sobre estratégias tradicionais de pes-
quisa e prática.
Os trabalhos elencados na Parte II – Psicologia e proces-
sos educativos, psicoeducativos e sociais – delineiam pro-
postas de intervenções em situações decorrentes de novas
configurações sociais que se constituem em parte pelo im-
pacto do processo de globalização nas condições sociais,
econômicas e culturais, que necessitam de rearranjos tam-
bém afetivos e emocionais. No primeiro trabalho, é apre-
sentada uma proposta de intervenção com crianças e
adolescentes em situação de risco psicossocial, a partir do
modelo da psicoeducação. O segundo trabalho aborda a
questão ainda pouco explorada sobre os moradores de rua.
As autoras propõem, a partir de uma experiência de está-

10
Formação e diversidade: desafios e questionamentos que constroem...

gio profissionalizante, uma prática pautada na Psicologia


Social sob a perspectiva das relações de poder. Os dois tra-
balhos seguintes dizem respeito ao papel da família no pro-
cesso de Orientação Profissional sob a perspectiva dos
diferentes atores envolvidos.
Os quatro trabalhos sobre articulações entre clínicas-
escola, programas governamentais e comunitários, e sobre
interdisciplinaridade foram agrupados na Parte III – Servi-
ços Psicológicos: interfaces e interações com a comunidade.
Constituem trabalhos relevantes, pois colocam o psicólogo
diretamente em programas comunitários e interdisciplina-
res em condições de desenvolver ainda mais as competências
em: atenção à saúde, comunicação e liderança, mas princi-
palmente para atuar inter e multiprofissionalmente na com-
preensão dos fenômenos psicossociais.
No conjunto de trabalhos que compõem a Parte IV – Prá-
ticas psicológicas na atenção à saúde encontram-se refle-
xões sobre modelos de intervenção baseados em propostas
que promovam o bem-estar e a saúde, de grupos específicos
a partir de espaços grupais. Os contextos, bem como os ní-
veis de atenção à saúde são distintos, entretanto, os relatos
críticos das intervenções compartilham entre si pressupos-
tos que enfocam estratégias potencializadoras dos recur-
sos individuais na busca pela atenção integral à saúde.
Sendo assim, este livro oferece, através da diversidade de
prpostas dos trabalhos reunidos, a possibilidade de entrar
em contato com a pluralidade de formas de se fazer e cons-
truir as práticas psicológicas. Representa algumas respos-
tas possíveis aos questionamentos dos psicólogos, sobretudo
aqueles que persistem no caminho da construção de uma
profissão solidária desde as décadas de 70 e 80 e a outros
mais recentes. Temos aprendido e buscado incessantemente
assumir nosso compromisso ético e social.

11
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

A utopia está no horizonte:


quando caminho dois passos
ela se afasta dez passos
Eu caminho dez passos e
Ela está dez passos mais longe:
Para que serve a utopia?
Serve para isso:
Para caminhar
(Eduardo Galeano)

Cristiane Paulin Simon


Manoel Antonio dos Santos
Lucy Leal Melo-Silva
Organizadores

Referências

BOCK, A. M. B. A Psicologia a caminho do novo século: identidade


profissional e compromisso social. Estudos de Psicologia, v.4, n.
2, p.315-329,1999.
FREITAS, M. F. Q. Psicologia na comunidade, psicologia da comunidade
e psicologia (social) comunitária: Práticas da psicologia nas décadas
de 60 a 90, no Brasil. In: CAMPOS, R. H. F. (org.) Psicologia Social
Comunitária: da solidariedade à autonomia. Rio de Janeiro: Vozes,
1996.
BOLAM, B.; CHAMBERLAIN, K. Professionalization and reflexivity
in critical health psychology practice. Journal of Health Psychology,
v. 9, p. 215-218, 2003.

12
PARTE I

PSICOLOGIA E PROCESSOS
DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA
1. GANHOS TERAPÊUTICOS COM
PSICOTERAPIA BREVE EM SERVIÇO DE
PSICO-ONCOLOGIA HOSPITALAR

Carmen Maria Bueno Neme

A aplicação de técnicas psicoterápicas a novos segmentos


da população e a novas realidades deve ser acompanhada por
estudos que procedam à sua descrição e avaliação quanto à
adequação e efetividade, evitando-se a simples transferência
de práticas consistentes e efetivas em um contexto determi-
nado, a outros, portadores de diferentes demandas. Esta ne-
cessidade tem sido indicada por pesquisadores como Fiorini
(1987), Azevedo (1988), e Neme (1991a; 1991b).
O atendimento psicológico e a prática da psicoterapia
em ambiente hospitalar exigem adequações e reformulações
que respondam às necessidades e limitações intrínsecas ao
doente, às características de sua doença, às contingências
familiares e sociais envolvidas, ao setting terapêutico, às
necessidades específicas da equipe de saúde e às possibili-
dades pessoais, teóricas e técnicas do profissional. Diferen-
temente do protegido consultório, o ambiente hospitalar
com suas rotinas, dinâmica ágil e necessidades sempre
emergenciais, exige respostas rápidas do profissional, cu-
jas práticas devem ser submetidas à constante avaliação e
validação.
A necessidade de se compreender o processo terapêutico
e as complexas variáveis que operam neste processo, moti-
vou o desenvolvimento de um vasto campo de pesquisas,
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

desde a década de 40 do século XX, sendo grande parte de-


las dirigidas à verificação da efetividade ou resultados das
psicoterapias. A análise destas produções indica a dificul-
dade de se eleger instrumentos adequados para verificar se
um processo terapêutico foi ou não efetivo, tendo em vista
a variabilidade conceitual e técnica quanto ao que pode ou
não ser considerado um “bom” resultado terapêutico.
Revisão realizada por Neme (1991a) indicou que as pes-
quisas mais consistentes nesta área são as que restringem
seus objetivos à verificação de “ganhos terapêuticos”, con-
siderando simultaneamente, critérios clínicos de avaliação
(dos psicoterapeutas) e avaliações subjetivas dos próprios
pacientes. Segundo resultados encontrados, as avaliações
de “benefícios” ou “ganhos terapêuticos” obedecem a cri-
térios bastante mais rígidos e exigentes quando realizadas
pelos psicoterapeutas do que quando avaliadas pelos pró-
prios pacientes (Phillips, 1988; Neme, 1991a).
Pesquisas sobre psicoterapia e as inúmeras variáveis que
interferem em seus resultados são ainda mais complexas,
quando se considera a rápida expansão do campo e seu con-
tínuo desenvolvimento a partir de Freud e dos primeiros e
grandes teóricos da personalidade. O desenvolvimento ace-
lerado de técnicas e recursos terapêuticos ampliou suas
possibilidades de aplicação, ao mesmo tempo em que acar-
retou questões teórico-científicas fundamentais ao desen-
volvimento consistente do campo e outras questões
pertinentes à formação de futuros psicoterapeutas.
Tanto a rigidez teórico-técnica quanto o “ecletismo”
descompromissado, geram dificuldades para que as psico-
terapias, eficientemente realizadas, possam ser aplicadas
a um número cada vez maior de pessoas que necessitam
ou podem ser beneficiadas por este tratamento, especial-
mente em situações diferentes das tradicionais em Saúde
Mental.

16
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

AS PSICOTERAPIAS E INTERVENÇÕES BREVES:


HISTÓRICO E APLICAÇÕES

Um dos mais fortes impulsos ao desenvolvimento de for-


mas breves e grupais de tratamento psicológico foi a cres-
cente necessidade de se oferecer alternativas de atendimento
em saúde mental a populações tradicionalmente sem aces-
so às psicoterapias, especialmente em serviços públicos.
Paralelamente, a crescente entrada de psicólogos e psiquia-
tras em hospitais gerais, trouxe o desafio de se responder
às novas demandas, oferecendo modalidades de tratamento
cada vez mais focalizados e abreviados, sem perder em qua-
lidade e resolutividade.
As técnicas breves representam um dos avanços mais
importantes no campo das psicoterapias, creditando-se a
elas, grande parte das possibilidades de ação e colaboração
dos profissionais de “saúde mental” em enfermarias e am-
bulatórios de hospitais gerais ou especializados, nas dife-
rentes interfaces entre a Psicologia e outras especialidades
em saúde.
Alexander (1950), um dos principais mentores da Psico-
terapia Breve, enfatizou que a enorme variedade de pacien-
tes que necessitavam deste tipo de tratamento, demonstrava
a necessidade de variações na abordagem psicanalítica,
principalmente pela demonstração da falta de correlação
entre o tempo do tratamento e os resultados terapêuticos
obtidos.
Após anos de estudos e de experiência clínica, Alexander
e French (1965), constataram que podiam aplicar os mes-
mos princípios psicodinâmicos da Psicanálise em tratamen-
tos mais breves e flexíveis, sem prejuízos em seus efeitos.
Antes deles, Ferenczi e Rank - discípulos de Freud – assim
como o próprio Freud, já haviam experimentado modos mais
ativos e breves de tratamento, voltados para a necessidade

17
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

de criar um método mais ágil e adequado a novas necessi-


dades e demandas (Azevedo, 1988).
A partir da década de 60, além de Alexander e French,
vários autores dedicaram-se ao estudo e difusão da Psicote-
rapia Breve, aprimorando sua metodologia. Azevedo (1980;
1988) apresentou ampla revisão dos posicionamentos técni-
cos dos principais autores em Psicoterapia Dinâmica Breve,
evidenciando as divergências e concordâncias entre os mes-
mos. Para Neme (1999), embora apresentem divergências
quanto a alguns aspectos técnicos, os principais estudiosos
no campo da Psicoterapia Breve adotam uma concepção con-
cordante quanto à sua definição, entendida como uma técni-
ca de tratamento psicológico, na qual os objetivos são
limitados e dirigidos à melhora ou remoção de sintomas, à
reversão das dificuldades e ansiedades atuais e à prevenção
de problemas futuros dos pacientes.
Com bases na Psicanálise, sem ser com ela confundida, a
Psicoterapia Dinâmica Breve enfatiza as ricas contribui-
ções teóricas da Psicologia do Ego, imprimindo uma pers-
pectiva menos “psicopatológica” e muito mais voltada à
focalização dos recursos saudáveis dos indivíduos, apro-
ximando-se amplamente de uma concepção “humanista”
e “holística”, tanto na realização de diagnósticos quanto
na execução da técnica psicoterápica (BURTON, 1978;
KNOBEL, 1986; FIORINI, 1987; AZEVEDO, 1988; CORDIOLI,
1993).
A partir da Psicoterapia Dinâmica Breve, houve rápida
expansão das técnicas breves com base em outros referen-
ciais teóricos, tais como as psicoterapias breves de orien-
tação Cognitiva; Comportamental; Psicodramática;
Junguiana; de Indução de Papéis; Reeducativas; Sugesti-
vas: Familiares e outras (AZEVEDO, 1988; FERREIRA-
SANTOS, 1997; CORDIOLI, 1993). Segundo Knobel (1986)
e Neder (1972), a popularizada denominação “Psicoterapia

18
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

Breve” surgiu inicialmente apenas para diferenciá-la das


psicoterapias tradicionais de longa duração.
Para Knobel (1986, p. 48-49), a Psicoterapia Breve “... cha-
ma-se ‘breve’ por oposição ou contraste com outro tipo de
psicoterapia de ação prolongada, que às vezes resulta su-
mamente prolongada.”; e, ainda “... esta psicoterapia breve
é uma psicoterapia de tempo e objetivos limitados”.
De acordo com Malan (1963, 1976), a Psicoterapia Breve
opõe-se de forma consciente à prolongação do tempo do tra-
tamento pelo papel essencialmente ativo do terapeuta e pela
“focalização seletiva”, considerada a essência desta técni-
ca e a condição mais importante para seu êxito ou fracasso.
O aspecto da Psicoterapia Breve geralmente destacado
por diferentes autores, é a sua flexibilidade técnica, que
permite individualizações e adequações a cada tipo de pa-
ciente, além da utilização de ampla variedade de recursos
terapêuticos.
Ao abordar as questões de flexibilidade em Psicoterapia
Breve, Wolberg (1979b) e Knobel (1986), enfatizam que esta
psicoterapia exige grande flexibilidade pessoal e técnica do
terapeuta, o que, segundo Fiorini (1987), requer que o pro-
fissional conheça, estude e pratique mais de uma teoria e
técnica de psicoterapias.
A Psicoterapia Breve com enfoque Psicanalítico ou Di-
nâmico, acrescido de enfoques complementares (Comuni-
cacional, da Teoria da Aprendizagem, da Psicologia
Cognitiva e outras influências), também pode ser classifi-
cada por meio de um critério de coerência entre seus objeti-
vos, estratégias e instrumentos particulares, podendo ser
classificada como de “Apoio” ou de “Esclarecimento” (Fio-
rini, 1987); “Preventiva” (Small, 1974); de “Emergência”
ou de “Crise” (Small, 1974) e de acordo com seus objetivos,
estratégias, instrumentos e necessidades e/ou possibilida-
des do paciente e da situação.

19
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Em qualquer uma destas dimensões, a Psicoterapia Breve


visa conduzir o paciente a menores níveis de sofrimento psí-
quico, seja pela melhora de sintomas, pela aprendizagem de
novas possibilidades existenciais, pelo fortalecimento de defe-
sas úteis ou recuperação do equilíbrio e alívio da ansiedade.
Dadas as profundas diferenças entre o método Psicana-
lítico e a Psicoterapia Dinâmica Breve, Azevedo (1988) as-
sinala que nesta psicoterapia, o terapeuta pode utilizar
procedimentos e recursos de vários campos (dependendo de
seu estilo pessoal e de sua utilidade no tratamento), de modo
compreensivo e combinado, fundamentando-se nos concei-
tos psicodinâmicos.
A Psicoterapia Dinâmica Breve é definida por Cordioli
(1993) como um modelo que utiliza conceitos teóricos de
diferentes escolas de forma integrada, tais como os concei-
tos psicanalíticos de conflito psíquico inconsciente e de in-
sight; os conceitos de reforço do Ego, da Psicologia do Ego;
o conceito de ‘crises vitais’ e ‘crises acidentais’ de Erikson
e Caplan e as teorias de aprendizagem (incluindo a compor-
tamental).
Para Wolberg (1979a), os objetivos da Psicoterapia Bre-
ve podem ser relacionados ao alívio de sintomas, à restau-
ração do nível de funcionamento que existia antes da doença,
à compreensão das forças que conduziram ao distúrbio, ao
reconhecimento de alguns dos problemas da personalidade
que interferem no melhor ajustamento à vida, à compreen-
são parcial da origem das questões atuais nas experiências
passadas, a algum nível de conscientização sobre o relacio-
namento entre os problemas predominantes da personali-
dade e o conflito em questão e à compreensão das medidas
que podem ser utilizadas na correção de dificuldades ambien-
tais e/ou distorções da personalidade.
Ao apontar os principais alicerces teórico-técnicos da
Psicoterapia Breve, Knobel (1986) identifica quatro prin-

20
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

cípios básicos: que seja não-transferencial; que seja não-


regressiva; que promova elaborações cognitivas (mais que
afetivas); que opere por meio da permissão de experiências
de mudanças, de informações e de vivências, onde o pacien-
te passe a ser “sujeito ativo de sua própria história”.
De modo concordante, Neder (1961, p. 4) enfatiza que a
Psicoterapia Breve visa a promoção de insigths mais cogni-
tivos que afetivos, sendo que seu caráter focal permite a
realização de “...um trabalho de seleção, exclusão e concen-
tração, para atender à sua outra condição, a de tempo limi-
tado, ou mais curto prazo possível.”
Considerando suas respectivas experiências no atendi-
mento de pacientes em hospitais gerais, Neder e Knobel apro-
fundaram a discussão acerca da dimensão temporal, tendo
em vista as freqüentes dificuldades e variações encontradas
em seu equacionamento, tanto pela dinâmica e agilidade co-
muns à instituição hospitalar, como pela subjetividade do
tempo vivido pelos pacientes internados, dependendo das
condições de hospitalização e da própria doença. Buscando
aprofundar a compreensão desta dimensão, Knobel (1986),
assinala a ambigüidade e relatividade do conceito de tempo,
apontando três tipos básicos de tempo: o existencial (o tempo
em si, como fenômeno do transcorrer e do ser), o vivencial ou
experiencial (a vivência do tempo individual, relativisado pe-
las necessidades, expectativas e circunstâncias de cada um)
e o conceitual (cronológico e objetivo).
Comparativamente a outros autores como Sífneos (1989)
e Small (1974), as proposições de Knobel e de Neder apre-
sentam maior flexibilidade com relação ao tempo do trata-
mento ou ao número de sessões, bem como à indicação de
critérios de seleção de pacientes para esta psicoterapia.
Para Sífneos (1989), é essencial a observação de critérios
definidos para a seleção de pacientes para a Psicoterapia
Breve. Para Knobel (1986), a aceitação de um paciente para
este tipo de tratamento não deve funcionar como uma sele-

21
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

ção, mas como um processo de adaptação mútua, no qual o


terapeuta busca ajudar e modificar o que for possível para que
o paciente sinta-se melhor e com maiores possibilidades.
Considerando o enquadre ou setting terapêutico em Psi-
coterapia Breve, Knobel (1986, p. 64) menciona que em ge-
ral, estes não devem ser diferentes do estabelecido para
quaisquer outros métodos psicoterápicos. Entretanto, en-
fatiza que o terapeuta “...não deve ficar preso a seus pre-
conceitos teóricos, nem tampouco às ‘técnicas’”, se houver
“disposição terapêutica’ e o terapeuta tiver clareza e puder
explicitar o que deve e pode ser feito para o alívio daqueles
que necessitam da ajuda.
Criticando a rigidez impeditiva da realização de adapta-
ções necessárias à colaboração em situações de emergên-
cia, crises ou necessidades de apoio, Knobel (1986, p. 64)
sintetiza muitas das vivências que são comuns aos psicote-
rapeutas hospitalares:

[...] Nestas circunstâncias, a ‘privacidade’ é dada pela dor e


pelo sofrimento de cada um e pela capacidade do terapeuta
em compartilhar a angústia com os que sofrem, para aliviá-
la e ajudar, e ao mesmo tempo aliviar a dos outros que assis-
tem, para sentirem-se mais calmos e também mais apoiados.

Do mesmo modo, o trabalho de Neder (1961; 1972), que


na década de 50 já iniciava pesquisa e prática desta técnica
no Departamento de Ortopedia e Traumatologia do Insti-
tuto de Reabilitação da Faculdade de Medicina da USP, re-
presenta um forte apoio para a utilização da Psicoterapia
Breve adaptada às condições hospitalares possíveis. Para
Neder, um dos aspectos principais da Psicoterapia Breve é
permitir ao terapeuta preparado, a capacidade de enfocar
os pontos centrais das áreas de conflito do paciente, sem
prolongar o tratamento. Considera que o tratamento breve
pode se realizar por meio de “unidades terapêuticas” em
22
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

que uma, duas ou mais sessões podem ser vistas como um


processo. Essas unidades podem ocorrer em séries, de forma
a se aprofundar o trabalho focal com o paciente, se neces-
sário e possível. Esta concepção clarifica as possibilidades
da prática das psicoterapias na realidade das enfermarias e
ambulatórios hospitalares, cujas necessidades são muito
específicas e extremamente mutantes.
Na realidade hospitalar, o terapeuta deve manter um
papel definido em meio à diversidade das demandas, lan-
çando mão de recursos ativos multidimensionais para abar-
car a pessoa doente como um todo e também intervir junto
à família, dependendo da natureza individual de cada caso
e dos distintos níveis de aprofundamento terapêutico dese-
jáveis ou possíveis, em função das condições do doente e
dos objetivos eleitos e atualizados.
Compreendida como “ciência e arte” (WOLBERG, 1959
apud LIPP; KNOBEL, 1985) e como uma prática que se
“aprende fazendo’” (KNOBEL, 1986) a psicoterapia, em
qualquer uma de suas orientações e formas, deve ser estu-
dada e avaliada nos diferentes e novos contextos concretos
em que esteja sendo praticada, buscando-se verificar sua
efetividade e sua afinação à realidade biopsicossocial dos
atendidos, bem como sua adequação à realidade brasileira,
em nível nacional e regional (Neme, 1991a; 1999).
As condições e limites das instituições hospitalares e as
variadas necessidades dos diferentes tipos de doentes aten-
didos, impõem a realização de ajustes nas técnicas empre-
gadas, de modo que seja possível tratar os aspectos mais
importantes da problemática central do paciente, no real
tempo possível. A flexibilidade técnica aliada à possibilidade
de se realizar intervenções verbais e não verbais, agregan-
do-se contribuições teóricas e instrumentais de diferentes
abordagens psicológicas, tornou a psicoterapia breve o ins-
trumento de escolha para este trabalho.

23
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

A atuação no campo da psico-oncologia hospitalar duran-


te os últimos treze anos, conduziu à necessidade de operacio-
nalização das entrevistas clínicas, triagens diagnósticas e
intervenções e processos psicoterápicos utilizados com pa-
cientes oncológicos e familiares, bem como à necessidade
de avaliar os resultados obtidos neste trabalho, conside-
rando o caráter tridimensional da atividade desenvolvida,
com objetivos de ensino e formação de psicólogos, de exten-
são e prestação de serviços à comunidade e de pesquisa
(NEME, 1996a; 1996b; NEME et al., 2004).

OBJETIVOS

Investigar o modelo de psicoterapia breve utilizado num


serviço de Psico-oncologia em hospital geral e os ganhos
terapêuticos obtidos pelos pacientes atendidos, segundo
critérios de avaliação de pacientes e familiares e da equipe
terapêutica.

MÉTODO

Foram realizados 130 Estudos de Casos de pacientes adul-


tos, na faixa etária de 19 a 82 anos, de ambos os sexos, com
diferentes tipos de diagnóstico de câncer e estadiamentos
da doença (níveis de gravidade do menor ao maior: estadios
de I a IV). Os pacientes encontravam-se internados ou em
tratamento ambulatorial de quimioterapia e/ou radiotera-
pia em hospital geral e foram atendidos pela equipe do Ser-
viço de Psicologia, composta por estagiários do Curso de
Psicologia da Faculdade de Ciências da UNESP de Bauru e
uma docente-supervisora e pesquisadora, coordenadora do
projeto, que também realizou atendimentos. De um total de
cerca de 210 casos atendidos no período, foram excluídos
da amostra do estudo os pacientes menores de 19 anos, os

24
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

que receberam atendimentos pontuais emergenciais ou que


tiveram menos de 4 sessões de intervenção, além de casos
com hipóteses diagnósticas de comprometimentos psíqui-
cos mais graves. A equipe hospitalar do Hospital Manoel
de Abreu e Centro Regional de Oncologia (Associação
Hospitalar de Bauru) era composta por três médicos, en-
fermeiros e auxiliares de enfermagem, nutricionista e far-
macêutica.

COLETA E ANÁLISE DOS DADOS


Os dados foram obtidos nos registros e relatórios de en-
trevistas clínicas de pacientes e familiares e de sessões de
intervenções e de psicoterapia breve realizadas de 1996 a
1998, cujos dados foram atualizados por Neme et al. (2004) e
contém dados observacionais (observações diretas realiza-
das pelos terapeutas); informacionais (fichas de internação,
prontuários e comunicações médicas) e relatados (obtidos
por comunicação espontânea ou por questionamentos e in-
tervenções terapêuticas), além de avaliações de seguimento
dos casos. Para a análise dos dados, os relatórios de atendi-
mento e informes de prontuários foram cuidadosamente li-
dos pela pesquisadora e dois auxiliares de pesquisa, sendo a
seguir categorizados, relidos e reorganizados, quantificados
e submetidos à análise estatística (Teste Qui-Quadrado, de
Pearson), analisados de acordo com Barbetta (1994), consi-
derando-se diferenças estatisticamente significativas, as que
resultaram em p < 0,10.
O Estudo de Caso configura-se como o conjunto de in-
formações sobre o paciente, buscando retratar sua realida-
de o mais completa e profundamente possível, considerando
a totalidade de dimensões presentes na situação (LÜDKE;
ANDRÉ, 1986; FACCHINI; NEME, 2004). De acordo com
Turato (2003), o Estudo de Caso é um método de pesquisa
clínico-qualitativa que visa descrever e compreender as rela-

25
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

ções de sentidos e significados nos fenômenos humanos, es-


pecialmente úteis e aplicáveis em contextos da saúde, abar-
cando um conjunto de técnicas e procedimentos adequados
para a descrição e compreensão pretendidos.

O PACIENTE ONCOLÓGICO, CONDIÇÕES DE


ATENDIMENTO PSICOLÓGICO E O MODELO DE
PSICOTERAPIA UTILIZADO
A maioria dos pacientes desta amostra foi atendida nas
enfermarias e em seu próprio leito. Embora as condições
para o atendimento psicológico de pacientes e familiares
sejam mais favoráveis no ambulatório do que nas enferma-
rias – dadas as características ambientais, espaciais e or-
ganizacionais – em ambos os ambientes, a maioria dos
pacientes apresentava limitações físicas, dores e/ou descon-
fortos psicofisiológicos de diferentes níveis, mais ou me-
nos agravados em diferentes momentos. As condições
orgânicas e/ou relacionadas às medicações ministradas,
além de outras ocorrências, muitas vezes dificultaram ou
inviabilizaram a realização de sessões psicoterápicas com
horários determinados e em tempo, número e freqüência
consideradas ideais.
A imprevisibilidade do andamento do tratamento dos
cânceres em cada caso (inclusive quanto ao período de in-
ternação do paciente e suas possibilidades de melhora ou
recuperação), tornou difícil a delimitação prévia segura do
número de sessões a serem realizadas, bem como a fixação
de periodicidade regular para a realização das mesmas.
Pacientes com câncer ou com outros tipos de sofrimento
físico nem sempre apresentam as condições psicológicas
consideradas ideais para uma clássica indicação de psico-
terapia breve, de acordo com alguns autores desta área
(MALAN, 1976; AZEVEDO, 1988). Embora Carvalho (1999)
mencione que a dor do câncer pode ser considerada como

26
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

“dor total”, abarcando o conjunto de todas as dores físicas


e psíquicas, nem sempre há o reconhecimento explícito do
sofrimento psíquico, o que pode comprometer a motivação
para a psicoterapia e a identificação de expectativas positi-
vas quanto a seus resultados.
Concomitantemente, há um conjunto de condições orgâ-
nicas e psicológicas debilitadas, levando à necessidade de
cuidados mais rigorosos quanto à identificação do foco e
objetivos a serem trabalhados, bem como à escolha criterio-
sa de intervenções e recursos terapêuticos, buscando aten-
der a diferentes níveis e possibilidades de ajuda.
Com base numa concepção psicossomática de saúde e
adoecimento e nas principais e concretas necessidades
dos pacientes oncológicos em processo de enfrentamento
do câncer, construiu-se o modelo de atendimento avalia-
do, buscando intervir em nível mais cognitivo do que afe-
tivo, visando auxiliar pacientes e familiares no difícil
processo de enfrentamento da doença e dos tratamentos
oncológicos.
A psicoterapia e as intervenções breves foram aqui defi-
nidas como uma proposta de tratamento psicológico de pa-
cientes oncológicos (e familiares), com objetivos limitados,
realizada em tempo breve, brevíssimo ou possível, em que o
foco terapêutico foi, em parte, definido pela condição atual
de “ser-doente” dos pacientes, e em parte, foi configurado
pela problemática central apresentada, em sua realidade e
circunstância.
A relação terapêutica baseou-se no contato empático,
permissivo à abertura e confiabilidade, caloroso, discreto
e cuidadosamente não invasivo. Foi enfatizada uma aten-
ção terapêutica voltada ao momento vivencial atual do
paciente, sem negligenciar todos os demais aspectos que
se atualizavam e emergiam na relação terapêutica. Foram
introduzidos e utilizados elementos técnicos de outras

27
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

abordagens psicoterápicas sempre que necessário, tais


como as técnicas de Relaxamento e Visualização – basea-
das em Sandor, Ferreira e Bonilha. (1982); Erickson, Hersh-
man, Secter (1994); Zeig (1985, 1995) e Epstein (1986) –
outros recursos, como os apresentados por Simonton,
Matthews-Simonton e Creighton (1987); Simonton e Hen-
son (1994); e LeShan, (1992); além do enfoque cognitivo
para o trabalho com crenças, expectativas e estabeleci-
mento de metas (CORDIOLLI,1993; NEME; KATO, 2003),
conferindo um cunho ativo e eclético quanto aos recursos
terapêuticos utilizados.
A ação terapêutica fundamentou-se nas contribuições da
Psicologia Cognitiva, especialmente na Teoria de Estresse
e Enfrentamento Psicológicos sumarizadas por Holland e
Rowland (1990) e Lazarus e Folkman (1986) e nas concep-
ções psicodinâmicas que auxiliaram a leitura e compreen-
são clínica dos casos estudados (BURTON, 1978; FIORINI,
1987; KNOBEL, 1986; 1998; CORDIOLI, 1993).
A meta geral estabelecida para a Psicoterapia Breve ofe-
recida foi a de melhorar a qualidade de vida dos pacientes e
familiares por meio do tratamento, do apoio e orientação
psicológicos, auxiliando-os no enfrentamento adaptativo da
doença, desde o diagnóstico aos tratamentos específicos do
câncer, à recuperação ou à fase do morrer.

Resultados
Os resultados foram organizados em grandes categorias
de dados, conforme descrições a seguir.

DADOS DEMOGRÁFICOS
A maioria dos pacientes pertencia ao sexo feminino
(64,4%), com idades distribuídas nas faixas de 19 a 33 anos
(9,2%); 34 a 49 anos (25,4%); 50 a 65 anos (35,4%) e 66 a 82

28
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

anos (30%), verificando-se maioria de pacientes com idade


superior a 50 anos (65,4%), em que aumenta a incidência de
câncer. Quanto ao estado civil, 50,8% definiu-se como casa-
do; 37,7% como viúvo ou separado e 11,5% como solteiro. A
maioria possuía escolarização de até primeiro grau com-
pleto (66,4%), com 13,1% semi-escolarizado (realização de
um a dois anos escolares); 12,1% com segundo grau com-
pleto e 8,4% com terceiro grau completo, encontrando-se
maioria significativa de pacientes com baixo nível de esco-
laridade (79,5%). A maioria (54,5%) possuía atividades pro-
fissionais sem qualificações específicas (dona de casa,
serviços gerais, etc), com apenas 6,2% exercendo ativida-
des profissionais compatíveis com formação universitária.
Apenas 11,5% dos pacientes encontrava-se exercendo a
mesma atividade profissional que exercia antes da doença,
encontrando-se 26,9% de aposentados; 11,5% de desempre-
gados e 42,3% em licença-saúde, indicando a ocorrência de
perdas financeiras e sociais devido à doença. A maioria de-
clarou pertencer à religião católica (58,5%); 17,7% decla-
rou pertencer a religiões evangélicas; 2,3% à religião espírita
e 2,3% sem nenhuma religião.

DADOS CLÍNICO-MÉDICOS
A maioria dos pacientes atendidos encontrava-se em re-
gime de internação hospitalar (78,5%), encontrando-se a
seguinte distribuição quanto ao órgão afetado pela doença:
mama (20%); útero/ovários (19,2%); cabeça/pescoço/face
(17,7%); aparelho gastro-intestinal (16,2%); pulmão (9,2%);
ossos (5,4%); rins/bexiga/próstata/testículos (6,9%); leuce-
mia (3,8%) e doença de Hodking (1,5%). Verificou-se cerca
de 40% de incidência de cânceres femininos (mama, útero e
ovários), com apenas dois casos de cânceres de mama em
homens, confirmando ser esta doença ainda uma das prin-
cipais causadoras de mortes de mulheres. Quanto à gravi-

29
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

dade da doença, encontrou-se maioria significativa (70,7%)


com níveis de maior gravidade (estadiamentos III e IV: lo-
calmente avançado ou com metástases) e 29,2% com níveis
I e II de estadiamento da doença (tumor confinado ao órgão
e ao órgão e gânglios vizinhos). Seis dos pacientes atendi-
dos (4,6%) encontrava-se “Fora de Possibilidades Terapêu-
ticas” e dezoito (13,8%) realizava tratamentos paliativos.
A maioria estava realizando quimioterapia (34,6%) e 6,9%
realizava radioterapia. Apenas 2,3% dos pacientes havia
abandonado o tratamento médico anteriormente e retor-
nado ao tratamento. A maioria significativa dos pacientes
(78,5%) tinha recebido o diagnóstico de câncer no período
de 1 a 24 meses antes do atendimento psicológico, encon-
trando-se 22,2% do total de pacientes da amostra no segun-
do diagnóstico de câncer. Foram encontradas relações
estatisticamente significativas entre baixos níveis de esco-
laridade e maior gravidade da doença, indicando possível
realização tardia do diagnóstico por falta de informação ou
outras dificuldades.

DADOS PSICOLÓGICOS E DE ENFRENTAMENTO


A maioria significativa dos pacientes relatou problemas
e conflitos anteriores à doença na área das relações fami-
liares, na área das relações sociais e de trabalho e de saúde,
sendo que a maioria significativa dos problemas e conflitos
relatados inseriu-se na área familiar e a minoria inseriu-
se na área da saúde. A área familiar também foi significati-
vamente mais apontada (75%) como fonte de estresse nos
cinco últimos anos anteriores ao adoecimento. Estes re-
sultados foram posteriormente confirmados por Neme; So-
liva; Ribeiro (2003), em pesquisa com mulheres com cânceres
de mama, útero e ovários. Com relação à forma de ver e
encarar suas vidas antes da doença, a maioria dos pacien-
tes (63,8%) apresentou avaliações mais negativas do que

30
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

positivas, percebendo sua história pregressa como “uma


vida difícil, com trabalho duro e muitas responsabilidades”
(19,2%); “uma vida com muitas perdas, tristeza e sofrimen-
to” (30%); “uma vida solitária e com muito isolamento fa-
miliar e social” (6,9%); ou “uma vida com doenças e
problemas de saúde” (7,7%). Com relação ao enfrentamen-
to inicial do diagnóstico de câncer (sentimentos, emoções e
atitudes frente à notícia do diagnóstico), a maioria (60%)
revelou ter reagido com “medo, temores, susto e pânico”
(35,4%) ou com “tristeza, depressão e desânimo” (24,6%),
encontrando-se 14,6% com relatos de reações de raiva e re-
volta e 25,4% que relatou ter reagido com “calma, fé, espe-
rança e pensamentos positivos”. Quanto aos modos e
processos de enfrentamento da doença e tratamentos, a
maioria significativa dos pacientes (78,6%) referiu ter pro-
curado apoio de outras pessoas (parentes, amigos e profis-
sionais) e/ou em seus próprios recursos (manter-se ativo,
manter pensamentos positivos, pensar mais nas melhoras
do que nas coisas ruins, procurar não ficar pensando na
doença, procurar manter-se forte e controlado, manter fé e
esperança, etc.), sendo que 8,5% referiu não ter procurado
apoio ou ter desejos de morrer. Dentre os que, de algum modo
procuraram algum tipo de apoio externo e/ou interno, 6,9%
relatou ou demonstrou atitudes de grande preocupação com
outros pacientes ou com familiares, aparentemente como
forma de defesa contra seu próprio sofrimento ou auto-preo-
cupação. Quanto às condições psicofisiológicas dos pacien-
tes, por eles relatadas ou observadas por seus terapeutas
no início do atendimento psicológico, encontrou-se apenas
13,1% (17/130) em boas condições aparentes ou sem quei-
xas e 17,7% (23/130) com queixas de queda de cabelo ou
manchas na pele devido aos efeitos da quimioterapia e/ou
da radioterapia. Os demais (69,3%), apresentavam dores,
desconfortos generalizados, anorexia, tosse, fraqueza, des-

31
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

nutrição, cansaço, cólicas, estavam colostomizados ou tra-


queostomizados ou tinham hemorragias, dentre outras
queixas de mal-estar. Encontrou-se maioria significativa
(90%) com condições mentais-cognitivas preservadas e
mantidas constantes durante todo o processo de tratamen-
to psicológico e 10% que passou a apresentar instabilidade
e prejuízos atencionais e outras dificuldades decorrentes
de medicações mais potentes para dor ou pelo agravamento
da doença (estado confusional de terminalidade). Pouco
mais da metade dos atendidos (50,8%) apresentava limita-
ções leves ou moderadas quanto às condições motoras ge-
rais e possibilidades de locomoção.

DADOS SOBRE OS ATENDIMENTOS PSICOLÓGICOS


PSICOTERÁPICOS
Os pacientes contatados diretamente em seus leitos ou
os agendados para atendimento após encaminhamento mé-
dico, solicitação do paciente e/ou familiar, foram informa-
dos sobre o serviço de psicologia do hospital e suas rotinas,
realizando-se contrato terapêutico de acordo com os
procedimentos tradicionais em psicoterapia, considerando-
se também as possibilidades gerais de cada caso e incluin-
do-se a informação de que os dados referentes aos
atendimentos seriam anotados e utilizados para fins de estu-
do, conforme determinações éticas em pesquisa. Os objeti-
vos psicoterápicos foram limitados e circunscritos às
possibilidades e necessidades concretas de cada caso, in-
clusive pelas limitações temporais e referentes ao estadia-
mento do câncer. Em geral: objetivos de apoio (auxiliando
no fortalecimento dos recursos psicológicos saudáveis e
prevenindo conflitos e complicações possíveis); de emergên-
cia (tratando sintomas ou conflitos que exigem melhora ou
alívio mais rápido); de orientação e esclarecimento (pro-
porcionando informações e insights cognitivos sobre as-
pectos da problemática total do paciente) e de resolução de

32
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

conflitos psíquicos (em maior ou menor grau relacionados


à condição de ‘doente com câncer’). Os focos terapêuti-
cos foram parcial e previamente determinados pela condi-
ção de “paciente oncológico” vivendo uma determinada fase
do tratamento e enfrentamento do câncer, combinado ao
diagnóstico compreensivo dos recursos e conflitos de cada
paciente. A freqüência das sessões variou de 1 a 2 vezes
ou mais por semana, ocorrendo casos em que o atendimen-
to foi quinzenal (pacientes de outras localidades, dependen-
do de ambulância ou outros meios de transporte), variando
também o tempo de cada sessão (de 30 a 60 minutos ou
mais), dependendo das condições e necessidades do pacien-
te no momento do atendimento. Quanto ao número de
sessões realizadas, a maioria significativa dos pacientes
(86,2%) realizou de 4 a 12 sessões de atendimento; 7,7% dos
casos realizou de 13 a 20 sessões e 6,2% realizou de 21 a 30
sessões de psicoterapia. Com relação à receptividade ini-
cial para realizar o tratamento psicológico, a maioria sig-
nificativa (83,9%) aceitou o tratamento oferecido pelo
serviço de psicologia com grande/boa receptividade inicial
ou relativa receptividade inicial. Dezesseis pacientes (12,3%)
aceitaram realizar o tratamento psicológico, porém apre-
sentaram resistências e evasivas iniciais para falar direta-
mente sobre si e sobre sua doença, enquanto que 3,8% (5/
130) não recusou diretamente, mas apresentava evasivas e
evitações para comparecer ou realizar as sessões. O acom-
panhamento e a avaliação dos terapeutas sobre a evolu-
ção da receptividade dos pacientes no decorrer do tratamento
psicológico indicaram evolução positiva (maior motivação e
abertura) em 32,3% dos casos; inexistência de alterações
significativas quanto à receptividade inicial e posterior em
59,2% dos casos e evolução negativa (diminuição da moti-
vação e resistências) em 8,5% dos casos. A maioria dos pa-
cientes (66,9%) recebeu atendimento nas enfermarias (leito),
encontrando-se 3,1% destes casos que passaram a ser pos-

33
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

teriormente atendidos no ambulatório e 2,3% que passou a


receber atendimento domiciliar até o óbito, após agrava-
mento de suas condições de saúde.
Quanto aos recursos terapêuticos e tipos de inter-
venção mais utilizados nas sessões de psicoterapia, encon-
trou-se um predomínio de intervenções verbais (exclusivamente)
(61,5%), seguido de alta freqüência de técnicas de relaxa-
mento e visualização em situações de dor e desconfortos
psicofisiológicos (37,7%) e de recursos arte-terápicos gráfi-
cos auxiliares (0,8%) em casos de dificuldades de fala dos
pacientes atendidos (devido aos tumores ou a procedimen-
tos cirúrgicos). A avaliação acerca dos temas mais emer-
gentes nas sessões de psicoterapia indicou predomínio
de temas ligados à história da doença/adoecimento (42,3%);
seguido de 25,4% referente aos recursos de enfrentamento
da doença e tratamentos; 21,5% de temas relacionados a
sentimentos e emoções ligados à doença e aos tratamentos
médicos; 5,4% de temas sobre a morte (medo de morrer, signi-
ficado da morte, etc.); 4,6% referentes à história da doença
e aos sentimentos e emoções no momento vivencial atual e
0,8% referente a questões de relacionamento e desempenho
sexuais e estéticas ligadas à auto-imagem.
Quanto aos focos terapêuticos mais trabalhados, en-
controu-se a seguinte distribuição: história de vida e adoe-
cimento (46,2%); conflitos psicológicos, conflitos familiares
e de vida (26,2%); dificuldades e conflitos não relacionados
à doença (23,8%) e dificuldades atuais e adaptativas relacio-
nadas à doença e aos tratamentos (3,8%).
Os objetivos gerais dos processos psicoterápicos fo-
ram categorizados da seguinte forma: melhorar condições
emocionais e afetivas ligadas ao enfrentamento da doença,
dos tratamentos e realidade atual (71,5%); reorganização
mais ampla de personalidade e vida (27,7%) e temores frente
ao agravamento da doença e possibilidade de morte (0,8%).

34
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

AVALIAÇÃO DE GANHOS TERAPÊUTICOS COM A


PSICOTERAPIA
A partir de critérios clínicos, definidos pelos terapeutas e
equipe de psicologia e de relatos de pacientes, familiares e
equipe de saúde, os resultados parciais ou finais obtidos nos
processos de atendimento dos pacientes desta amostra fo-
ram avaliados em termos de “melhora” ou evolução positi-
va, com relação a: comportamentos, crenças e cognições
frente à doença e tratamentos do câncer; sentimentos e emo-
ções frente à condição atual; sentimentos, emoções e cogni-
ções com relação a conflitos psicológicos trabalhados na
psicoterapia e/ou estabelecimento de metas de vida pelo pa-
ciente; comportamentos e resolução de dificuldades relacio-
nadas à família e a questões práticas da vida atual; condições
psicofisiológicas, cognitivas e afetivas gerais indicativas de
“bem-estar”, com minimização de sintomas e desconfortos;
redução de angustia e ansiedade; participação mais efetiva
no tratamento e outras, referentes ao relacionamento tera-
pêutico; envolvimento com suas questões existenciais, com
a psicoterapia e à busca de auto-conhecimento.
Os ganhos terapêuticos avaliados foram organizados em
categorias de ganhos e sub-categorias em cada uma destas
categorias, conforme Tabelas 1 a 5 a seguir.
Tabela 1. Ganhos terapêuticos quanto a comportamentos
e sintomas psicofisiológicos
Sub-categorias de ganhos terapêuticos Percentuais
Evolução positiva: comportamentos e sintomas
30,8%
psicofisiológicos.
Evolução positiva quanto a mudanças em
hábitos e rotinas negativas em função do 43,1%
tratamento e qualidade de vida.
Melhora quanto a lidar com dor e desconfortos
psicofisiológicos e em enfrentar a quimioterapia 21,5%
e seus efeitos.
Nenhum dos ganhos anteriores. 4,6%

35
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Tabela 2. Ganhos terapêuticos quanto a sentimentos e


emoções frente à doença
Sub-categorias de ganhos terapêuticos Percentuais
Melhora quanto a sentimentos de culpa; revolta e
raiva; medos e pânico; reações depressivas 36,9%
frente à doença e tratamentos.
Evolução positiva quanto a mudanças em
hábitos e rotinas negativas em função do 17,7%
tratamento e qualidade de vida.
Melhoras quanto à auto-estima e auto-confiança/
3,1%
participação mais ativa no tratamento
Nenhum dos ganhos anteriores. 42,3%

Tabela 3. Ganhos quanto à resolução de conflitos e metas


de vida (objetivos da psicoterapia)
Sub-categorias de ganhos terapêuticos Percentuais
Resolução de conflitos anteriores interferentes no
17,7%
momento presente.
Retomada de metas, reestruturação de valores,
10,8%
crenças e comportamentos.
Resolução de conflitos anteriores e
estabelecimento de metas e reestruturações 5,4%
psicológicas.
Nenhum dos ganhos anteriores. 66,2%

Tabela 4. Ganhos quanto à resolução de conflitos fami-


liares atuais e dificuldades práticas de vida

Sub-categorias de ganhos terapêuticos Percentuais


Melhora nos relacionamentos familiares. 7,7%
Resolução de problemas da vida prática atual e
4,6%
busca de novos recursos.
Melhora nas relações familiares/ resolução de
4,6%
problemas práticos e busca de novos recursos.
Nenhum dos ganhos anteriores. 83,1%

36
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

Tabela 5. Ganhos gerais ou inespecíficos


Sub-categorias de ganhos terapêuticos Percentuais
Obtenção de benefícios gerais: mais calmo,
menos tensão, menos revolta, mais receptivo,
46,9%
melhores condições e abertura para falar de si,
da doença, etc.
Ganhos instáveis (obtenção de melhoras e
algumas recaídas durante o processo): melhora
do humor, menos pensamentos negativos, menor 16,2%
ansiedade e mais envolvimento com o
tratamento, maiores esforços para cuidar-se, etc.
Ganhos quanto ao bem-estar geral e
relacionados a sensações, sintomas
30,8%
psicofisiológicos, alimentação, sono, maior
aceitação da doença, etc.
Nenhum ganho do tipo anterior. 6,2%

Os resultados obtidos quanto à avaliação de ganhos tera-


pêuticos com o modelo de psicoterapia oferecido indicam que
a maioria significativa de pacientes desta amostra obteve
algum tipo ou nível de benefício terapêutico, mesmo quando
não foi possível especificá-los ou relaciona-los diretamente
aos objetivos terapêuticos e/ou nos casos em que o paciente
encontrava-se inicialmente bastante apático.
Quanto ao seguimento dos casos, verificou-se a distri-
buição apresentada na Tabela 6 da página seguinte.
Comparando-se os resultados quanto aos ganhos tera-
pêuticos e o número de sessões realizadas, verificou-se que
100% dos que realizaram de 13 a 15 sessões, receberam alta
da psicoterapia. Dentre os que realizaram de 21 a 25 ses-
sões, 50% veio a óbito e 50% recebeu alta da psicoterapia. O
menor índice de altas da psicoterapia (17,9%) foi encontra-
do entre os pacientes que realizaram de 4 a 6 sessões, en-
contrando-se 16,7% de altas entre os que realizaram de 16
a 20 sessões de psicoterapia. A análise estatística revelou
relações significativas (p < 0,007) entre maior número de

37
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

sessões e número de altas ou de óbitos (pacientes em fase


terminal), bem como entre número de sessões e tipos de
ganhos obtidos, encontrando-se maior percentual de gan-
hos terapêuticos em todas as categorias avaliadas entre os
pacientes que realizaram de 16 a 30 sessões (p < 0,05). O
cruzamento de dados tipo de psicoterapia breve X ganhos
terapêuticos obtidos indicou que os ganhos específicos fo-
ram significativamente relacionados à psicoterapia de es-
clarecimento e os inespecíficos, à psicoterapia de apoio,
conforme classificação de Fiorini (1987).

Tabela 6. Seguimento dos casos atendidos


Freqüência Freqüência Freqüência
Categorias
simples rel. (% ) acum.
Recebeu alta médica 53 40,8 40,8
Morreu 26 20,0 60,8
Interrompeu tratamento
1 0,8 61,5
médico
Interrompeu tratamento
8 6,2 67,7
psicológico
Transferido para outro
14 10,8 78,5
hospital
Encaminhado para
psicoterapia na 4 3,1 81,5
comunidade
Recebeu alta da
24 18,5 100,0
psicoterapia
Total 130 100,0

Considerações finais
Os resultados indicaram que a maioria dos pacientes
oncológicos da amostra obteve algum tipo de ganho tera-
pêutico com o atendimento recebido, mesmo nos casos em
que estes benefícios foram considerados “gerais” ou “ines-

38
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

pecíficos”, independentemente do número de sessões de psi-


coterapia realizadas. Maior incidência de altas da psicote-
rapia e de benefícios terapêuticos foi encontrada entre os
pacientes que realizaram maior número de sessões de psi-
coterapia. Pode-se concluir que o tratamento psicológico
disponibilizado representou importante recurso auxiliar e
complementar aos pacientes e familiares, mesmo quando a
gravidade da doença, as defesas psicológicas iniciais ou a
aparente apatia e falta de interesse inicial frente ao trata-
mento pareciam indicar poucas possibilidades de que pu-
dessem ser auxiliados pela psicoterapia ou intervenções
breves realizadas. Quanto aos pacientes que morreram, as
avaliações realizadas pela equipe e familiares, indicaram a
obtenção de “ganhos”, tanto para os pacientes acompanha-
dos, como pela equipe de atendentes, pela possibilidade de
enfrentarem este difícil momento, identificando e elaborando
perdas, limites pessoais, frustrações e impotências, fortale-
cendo-os pessoal e tecnicamente. Os resultados confirmam
necessidade de pesquisas que descrevam e avaliem as práti-
cas psicológicas e psicoterápicas utilizadas, contribuindo
para avanços no campo.

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Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

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42
2. AVALIAÇÃO
DE PROGRAMAS
EDUCATIVOS PARA PREVENÇÃO DAS DST/
AIDS: ALGUMAS REFLEXÕES A PARTIR DE
UM PROGRAMA DE INTERVENÇÃO COM
ADOLESCENTES EM UMA ESCOLA PÚBLICA*

Rosalina Carvalho da Silva


Cristiane Paulin Simon

A avaliação começou a ser introduzida como uma das


atividades nos programas de prevenção à aids com o propó-
sito de verificar a eficácia das intervenções na redução das
infecções e, principalmente, tendo como objetivo central a
adoção, por parte dos participantes, de comportamentos
preventivos – nesse caso, o uso do preservativo nas rela-
ções sexuais. Além disso, a avaliação tinha também a fun-
ção de demonstrar a necessidade de continuidade ou não de
um projeto ser financiado, ou seja, respondia a uma neces-
sidade das agências e órgãos financiadores de avaliar se os
investimentos num determinado projeto valiam a pena.
Trata-se de uma necessidade frente à magnitude da epide-
mia de aids e seu crescimento exponencial.
Inicialmente, o principal tipo de avaliação utilizado foi
o de impacto, devido à crença de sua eficiência em demons-
trar, em termos quantitativos, a eficácia de uma interven-
ção. Com o desenvolvimento das avaliações e os resultados

* Projeto financiado pela FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

quase sempre negativos, começou-se a perceber que esta não


era talvez a única e a melhor estratégia de avaliação, pois o
foco das avaliações (adoção do preservativo) não podia ser
medido a partir de parâmetros apenas quantitativos, já que
envolvia um processo de tomada de decisões. Com isso, a
avaliação de impacto tem recebido duras críticas que enfa-
tizam apenas o seu caráter negativo e aquilo que essa es-
tratégia metodológica não pode oferecer.
No presente trabalho, no entanto, nosso objetivo é pro-
blematizar o uso da avaliação de impacto mediante refle-
xões realizadas a partir de um estudo de caso. Para isso,
discutiremos algumas questões relativas às avaliações de
programas de intervenção que tenham como objetivo a pre-
venção de problemas ligados às doenças sexualmente trans-
missíveis e aids (DST/aids), saúde sexual e reprodutiva e
temas semelhantes. Apresentaremos parte de um processo
da avaliação do impacto de um programa desse tipo. O obje-
tivo do estudo em questão foi o de avaliar um programa de
intervenção educativa que visava à melhoria dos níveis de
informação e alterações das concepções e percepções que
dificultam a adoção, por adolescentes e jovens, de medidas
ligadas ao planejamento de vida sexual ativa e à prevenção
das doenças sexualmente transmissíveis/aids.

Descrição do Programa
O programa foi implementado junto a uma escola públi-
ca do município de Ribeirão Preto, São Paulo, durante seis
meses. Neste, buscamos trabalhar os seguintes conteúdos:
DST/aids; sexualidade: mitos, tabus; gravidez e saúde re-
produtiva; relações entre gêneros; dificuldades de expres-
são e assertividade; drogas.
Para avaliação de impacto foram empregados instrumen-
tos para comparação de dados obtidos antes e depois do pro-

44
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

grama de intervenção. Neste trabalho serão apresentados


os principais resultados referentes à análise do impacto do
programa com o objetivo de discutir alguns problemas exis-
tentes nesse tipo de avaliação.

POPULAÇÃO ALVO DO ESTUDO


A população estudada foi composta por estudantes de 5ª
a 8ª série e colegial, com idades entre 13 e 25 anos.

PROCEDIMENTO DO ESTUDO
Para análise de impacto do programa, empregamos ques-
tionários, elaborados a partir de 21 entrevistas realizadas
com jovens com características semelhantes aos da popu-
lação alvo da pesquisa. Para a elaboração do que seriam as
temáticas do programa e, portanto, itens a serem aborda-
dos no questionário, levamos em conta os principais aspectos
apontados, pela literatura (BUCHER, 1996; CASAL; RIOS;
GIMENEZ, 1997; DiCLEMENTE; ZORN; TEMOSHOK,
1986; MORGANETT, 1997; PAIVA, 1994; SAYÃO, 1997;
SCHALL; STRUCHINER, 1995; WEREBE, 1998) como pro-
blemáticos para que as camadas jovens adotassem medidas
de proteção em relação às DST/aids.
Assim, foram trabalhados: níveis de informação e de
crenças errôneas sobre os fatores de risco para a infecção
pelas DST/aids; e outros aspectos ligados à vida sexual ati-
va, eleitos a partir da experiência do grupo na implementa-
ção de programas de intervenção semelhantes ao avaliado,
ao longo dos últimos anos.
Os temas foram alvo de entrevistas preliminares para a
composição dos questionários. As entrevistas foram reali-
zadas a partir de roteiro semi-estruturado. Os questioná-
rios construídos com os cuidados recomendados por autores
como Cea D’Ancona (1996) e Kidder (1987) foram testados
junto à população semelhante à estudada e reformulados

45
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

com base nessa aplicação piloto. Os questionários foram


aplicados coletivamente e concomitantemente em todas as
salas de aula da escola alvo, para que não houvesse comu-
nicação sobre seus conteúdos entre os estudantes, nos dois
períodos de funcionamento da escola, diurno e noturno. Os
aplicadores, estudantes de psicologia, receberam treinamen-
to para que a aplicação pudesse ser feita de maneira padro-
nizada. Os aplicadores: explicaram os objetivos da pesquisa
e o caráter voluntário do preenchimento do questionário;
garantiram o anonimato das informações; realizaram uma
demonstração de como responder a cada tipo de construção
de questão, sendo que os exemplos apresentados trataram
de temas diferentes dos contidos no questionário; esclare-
ceram que todos poderiam encontrar questões que não sa-
beriam como responder e que isto não deveria preocupá-los,
uma vez que, o instrumento havia sido construído para pes-
soas de diferentes faixas etárias, séries escolares e tipos de
vivências; esclareceram que se os espaços para as respos-
tas às perguntas abertas não fossem suficientes eles pode-
riam utilizar os versos das folhas; e por último, após o
convite para que respondessem ao questionário, os aplica-
dores solicitaram que a última página do instrumento fos-
se destacada, do mesmo, e que ao final da aplicação essas
folhas fossem colocadas em uma urna lacrada, preenchidas
ou não, conforme o interesse em participar do programa
que seria implementado com base nas respostas dadas ao
questionário
Em cada sala, ficaram dois aplicadores que levaram duas
caixas (urnas) lacradas com fendas. Uma maior para que
fossem colocados os questionários, preenchidos ou em bran-
co e outra menor para a colocação das folhas de manifesta-
ção de interesse em participação do programa, que deveriam
ser depositadas em branco em caso de não haver interesse
em participar do programa ou com identificação do aluno,
em caso contrário.

46
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

PROGRAMA DE INTERVENÇÃO
O trabalho desenvolvido partiu dos pressupostos de que
programas de intervenção que tenham por objetivo desen-
volver ou fomentar a adoção de medidas preventivas em
relação à saúde devem ser desenvolvidos: 1) a partir dos
interesses e universos de significação de seus participan-
tes; 2) como processos educacionais nos quais se propor-
cione o acesso às informações adequadas ao público-alvo; e
que, 3) nesses processos sejam empregadas metodologias
participativas de trabalhos em grupo, através das quais se
facilite à emergência de discussões, “ressignificações” de
informações e dos aspectos cognitivos, afetivos e culturais
ligados aos temas abordados. Em suma, o pressuposto ge-
ral, que engloba os acima expostos, é que as informações e
os aspectos cognitivos, emocionais e culturais podem e de-
vem ser trabalhados, modificados dentro de um processo
de construção grupal socialmente compartilhado. Ainda no
que diz respeito à população alvo do programa, considera-
mos que os trabalhos grupais dentro da escola aproveita-
riam o gregarismo e a influência do grupo de pares, próprio
a todos os grupos humanos, mas que são mais acentuados
na adolescência, para estimular a formação de uma cultu-
ra de proteção em saúde.

A IMPLEMENTAÇÃO DO PROGRAMA
O Programa foi implementado por 22 estagiários do cur-
so de graduação de psicologia; preparados através de um
curso com 84 horas de duração, no qual: trabalhou-se todo
o conteúdo teórico informativo sobre os temas; realizaram-
se discussões sobre metodologias participativas de traba-
lho em grupos; e vivenciaram todas as oficinas de trabalho
previstas para o programa. Além disso, durante toda a im-
plementação do programa os coordenadores dos grupos ti-
veram continuidade do processo de formação através de

47
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

encontros semanais para discussões sobre o programa, atua-


lização de conteúdos além de duas horas de supervisão dos
trabalhos realizados a cargo da coordenadora do programa
e de três psicólogas supervisoras.
Após a aplicação coletiva e padronizada dos questioná-
rios, com base nas manifestações de interesse em partici-
par do programa, foram formados 11 grupos, todos tendo
como componentes estudantes do período noturno.
Os encontros tiveram freqüência semanal e foram reali-
zados nos próprios horários de aulas, uma vez que a grande
maioria dos estudantes do noturno trabalhava durante o dia.
A orientação dada aos coordenadores era a de seguir a
ordem proposta nos módulos temáticos. Porém, cada dupla
de coordenadores estudou as respostas dadas aos questio-
nários das pessoas da faixa etária que comporiam seu gru-
po e, com base nos contatos que estavam sendo estabelecidos
com os jovens, as atividades mais adequadas aos mesmos
foram sendo programadas durante as supervisões. O pro-
grama teve doze encontros, sendo que no último deles os
alunos participantes fizeram parte de sessões de grupos
focais para avaliação qualitativa do programa.
Na semana seguinte uma nova sessão de aplicação de
questionário foi realizada com participantes e não partici-
pantes do programa do período diurno e noturno da escola
alvo da pesquisa, e com alunos com características sociode-
mográficas semelhantes, oriundos de outra escola.

Resultados
Embora se tenham dados para avaliação de impacto do
programa, partimos do pressuposto de que estamos frente
a um estudo de caso e não a um delineamento quase-experi-
mental. Isto, porque é praticamente impossível controlar,
em um trabalho de intervenção de seis meses de duração com
um número de 517 sujeitos, todas as variáveis intervenien-

48
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

tes para que um procedimento quase-experimental fosse


levado a efeito. Ou seja, temos que assumir que, ao longo
dos seis meses, o trabalho esteve sob a influência de fatores
tais como: evasão escolar; efeitos de “contaminação” das
comunicações estabelecidas entre participantes e não par-
ticipantes do programa; e os efeitos do “clima” de trabalho
assumido pelos professores que se engajaram em discus-
sões, nas vivências de oficinas de trabalho e que levaram
conteúdos do programa para suas aulas, inclusive do perí-
odo diurno. Além disso, temos que levar em conta a intensa
divulgação de informações veiculadas pela mídia. Assumi-
mos, portanto, que o trabalho restringiu-se a um “estudo
de caso”, cujas apreciações são fundamentalmente qualita-
tivas, e que os dados colhidos não se prestam a provas de
hipóteses estatísticas mais rigorosas. Nesse tipo de deline-
amento de pesquisa-intervenção não há, portanto, preten-
são de generalização dos resultados.

CARACTERÍSTICAS DA POPULAÇÃO
Os questionários, cujos dados formam esta caracteriza-
ção, foram respondidos pelos alunos do período noturno e
do diurno provenientes da mesma escola, antes da imple-
mentação do programa de intervenção.
Dos 409 alunos presentes no dia da aplicação no período
noturno; foram devolvidos em branco 18 questionários
(4,4%). Do total de 391 questionários respondidos foram
considerados válidos para análise 383. Ou seja, 93,6% do
total de questionários entregues foram preenchidos e con-
siderados passíveis de análise.
No período diurno foram distribuídos 141 questioná-
rios, para o total dos presentes no dia da aplicação. Destes,
somente 7 foram devolvidos em branco. Os 134 questioná-
rios devolvidos, perfazendo 95,0% do total, foram conside-
rados preenchidos adequadamente e passíveis de análise. É
importante salientar que neste grupo as manifestações de

49
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

interesse em participar do programa não ocorreram em


número suficiente para a composição de grupos. Um dos
possíveis motivos para isso talvez tenha sido a proposição
das reuniões grupais em datas e horários diferentes aos dos
dias letivos, ou ainda, a não percepção das temáticas como
prioritárias para suas vidas por serem bem jovens e, em sua
grande maioria, segundo seus relatos, não terem iniciado
sua vida sexual.
As principais características sócio-demográficas dos 517
jovens pertencentes à escola onde se desenvolveu a pesqui-
sa são apresentadas no Quadro 1.
Quadro 1. Distribuição percentual das características
sociodemográficas dos estudantes segundo
o período de estudo antes do programa de
intervenção.
Noturno (n-=383) Diurno (n=134)
% f % f
Sexo
Masculino 57,2 (219) 41,8(56)
Feminino 42,8 (164) 58,2(78)
Faixa etária
13-14 7,0(27) 84,3(113)
15-16 30,5(117) 14,9(20)
17-18 34,0(130) 0,8(1)
19-20 18,3(70) -
21-25 10,2(39) -
Trabalha 69,5(266) 6,7(9)
Si m 29,0(111) 93,3(125)
Não 2,5(6) -
Em branco
Faixa salarial (S.M.)
< 1 S.M. 10,1(27) 4,4(6)
1 a 2 S.M. 51,1(136) -
2,1 a 5 S.M. 30,0(80) 2,2(3)
> 5,1 S.M. 5,4(14) -
Em branco 3,4(9) -

50
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

Levando-se em conta a escolaridade dos pais ou responsá-


veis pelos alunos, suas ocupações profissionais, ou ainda a
ocupação e renda dos próprios sujeitos que exerciam alguma
atividade remunerada, e considerados os critérios adotados
pela ABA/ABIPEME, podemos considerar que: os alunos do
período noturno concentram-se nas camadas de nível socio-
econômico (NSE) baixo e os do diurno nas de NSE médio-
baixo. Observamos ainda, de acordo com as características
sócio-demográficas apuradas, que os estudantes do período
diurno possuíam condições socioeconômicas mais favoráveis
do que os do período noturno. Contribuíram também para esta
interpretação as informações fornecidas pela equipe diretiva
da escola. Segundo a mesma, os alunos do noturno residem
em vários bairros periféricos da cidade, onde se concentra uma
população de baixa renda. A grande maioria dos estudantes
do período diurno residia nas proximidades da escola, que cor-
respondem a bairros de classe média e média baixa.
Para as comparações pretendidas, os sujeitos que respon-
deram aos questionários antes da implementação do progra-
ma foram divididos em participantes e não participantes nas
respostas dadas aos mesmos instrumentos seis meses depois.
Quadro 2. Distribuição percentual das características
sociodemográficas dos quatro grupos de
sujeitos de 13 a 18 anos que responderam o
questionário pós-intervenção.

Grupo 1 Grupo 2 Grupo 3 Grupo 4


Part Não Part. Não Part. Não Part.
Noturno Noturno Diurno Escola 2
(n=169) (n=61) (n=112) (n=210)
%f %f % f %f
Mas. 54,1 (92) 57,4 (35) 37,7 (42) 55,2 (116)
Sexo
Fem. 45,9 (78) 42,6 (26) 62,3 (70) 44,8 (94)
Trabalha Si m 69,4 (118) 65,5 (40) 12,5 (14) 67,7 (142)

51
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Quadro 3. Distribuição percentual das características


sociodemográficas dos dois grupos de sujei-
tos de 19 a 25 anos que responderam o ques-
tionário pós-intervenção.
Grupo 1 Grupo 2
Part. Não Part.
Noturno Noturno
(n=61) (n=39)
%f %f
Mas. 50,8 (31) 59,0 (23)
Sexo
Fem. 49,2 (30) 41,0 (16)
Trabalha Si m 70,4 (43) 76,9 (30)
Nos quadros 2 e 3 são mostradas as características só-
cio-demográficas da população subdividida em grupos, as-
sinalada nos questionários respondidos após a intervenção.
No quadro 2 estão também incluídos os alunos de uma ou-
tra escola pública do município, com características seme-
lhantes as da escola pesquisada.
Os dados dos quadros 1 e 2 foram comparados para verifica-
ção da manutenção das característica iniciais da população.
Para termos segurança de que os grupos da escola alvo
da intervenção mantinham-se praticamente os mesmos,
após seis meses todas as características sócio-demográfi-
cas obtidas na primeira aplicação dos questionários foram
comparadas com as da última. Aplicando-se a prova do qui-
quadrado, não foram encontradas diferenças estatistica-
mente significativas nas características sociodemográficas
nos grupos de alunos que responderam aos questionários
antes e depois do programa. Além disso, outras caracterís-
ticas, tais como composição de moradia e religião dos su-
jeitos, mantiveram-se sem alterações significativas. A
partir dessas constatações pode-se trabalhar com os dados
obtidos anteriormente com a primeira aplicação do questi-
onário e os obtidos posteriormente ao programa de inter-

52
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

venção com segunda aplicação, considerando-os como per-


tencentes à mesma população.

ATIVIDADE SEXUAL
No que diz respeito à atividade sexual, observamos que
entre os jovens que estudam no período noturno, 65,5 por
cento (251) relataram já ter tido relações sexuais, enquan-
to somente 11,9 por cento (16) dos que estudam no diurno
relataram já ter tido a mesma experiência. Os dados anali-
sados nos mostravam que nos dois períodos mais homens
do que mulheres relataram já terem tido seu primeiro in-
tercurso sexual: 26,8 por cento (15) do diurno (entre 13 a 18
anos); 70,2 por cento (113) do noturno (entre 13 a 18 anos);
e 87,9 por cento (51) do noturno (de 19 a 25 anos). No que
diz respeito à faixa de iniciação sexual, os dados são mos-
trados na Tabela 1.

FAIXA ETÁRIA DA INICIAÇÃO SEXUAL


Tabela 1. Distribuição percentual da faixa etária em
que os sujeitos iniciaram a vida sexual, se-
gundo sexo e faixa etária*
Com que idade você teve sua
13 - 18anos 19 - 25anos
primeira relação sexual?
Faixas etárias de iniciação
Masc. Fem. Masc. Fem.
sexual
9 - 11 anos 11,0 (14) - 4,0 (2) 2,7 (1)
12 - 14 anos 50,7 (65) 35,3 (18) 27,4 (12) 8,1(3)
15 - 17 anos 32,7 (42) 41,2 (21) 43,1 (22) 18,9 (7)
18 - 20 anos 1,6 (1) 4,0 (2) 25,5 (13) 64,9 (24)
> 21 anos - - - 5,4 (2)
Em branco 4,0 (5) - - -
100,0 100,0 100,0 100,0
TOTAIS
(n=128) (n=51) (n=51) (n=37)
* Esta tabela não está subdividida em períodos de estudo dos sujeitos porque a população do Diurno
que já teve relações sexuais é constituída de 15 jovens, razão pela qual apresentamos conjuntamente
os dados do período Noturno e Diurno.

53
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

No que diz respeito aos rapazes observamos que, entre


os de 13-18 anos, a grande maioria deles (61,7%) relatou ter
tido sua primeira relação antes ou até 14 anos, enquanto
que 74,5 por cento dos mais velhos relataram ter tido sua
primeira relação até 17 anos. É interessante observar a
grande diferença existente quanto à faixa etária da primei-
ra relação sexual entre as meninas até 18 anos e as de até
25 anos. Enquanto que 76,5 por cento (39) das mais novas
relatam ter tido sua primeira relação sexual até os 17 anos,
64,9 por cento (24) das mais velhas relataram ter tido essa
experiência entre 18 e 20 anos.

Avaliação do impacto do programa de


intervenção
Para a análise da comparação dos resultados obtidos nos
questionários antes e depois da intervenção, completando
um intervalo de seis meses entre uma medida e outra, fo-
ram calculadas as porcentagens de acertos das respostas
consideradas positivas, no caso das questões relativas a
crenças e opiniões. Depois disto, os itens foram agrupados
por similaridade de conteúdos, para a verificação de modi-
ficações significativas nos níveis de informação nas cren-
ças e atitudes relativas às DST/aids.
Os grupos analisados foram divididos da seguinte for-
ma: a) escola alvo da pesquisa, divididos por período de es-
tudo, noturno e diurno; b) por faixas etárias (13-18; 19-25
anos), c) pela época das respostas (antes e depois do pro-
grama) e d) os que responderam ao questionário após o
programa foram subdivididos em participantes (part) e não
participantes do programa (não part). Tem-se ainda, para
efeito de comparação, um outro grupo (escola II) não parti-
cipante do programa que respondeu ao questionário na

54
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

mesma época em que os alunos da escola-pesquisa o res-


ponderam pela segunda vez. Essa aplicação na escola II
subsidiou outro programa de intervenção após a pesquisa
na escola alvo.
Para verificar se os resultados obtidos após a interven-
ção apresentavam diferenças estatisticamente significan-
tes, empregamos a prova do qui-quadrado. Considerada
adequada para analisar se existem diferenças significati-
vas entre respostas observadas em uma dada categoria, e o
respectivo número esperado (hipótese de nulidade). As pro-
porções foram sempre comparadas duas a duas, com um
grau de liberdade (gl =1 e alpha risk 5%). As porcentagens
de acertos ou de assinalamento nas alternativas apresen-
tadas foram submetidas às provas de qui-quadrado, atra-
vés do programa Compare Proportion do Banco
Correlacional de Dados Epi-Info6 (CDC, 1994).
Para conhecer os níveis de informação, crenças e atitu-
des que os estudantes apresentavam em relação às DST/
Aids tratamos os dados de 34 afirmações sobre os temas,
perante as quais os sujeitos podiam assinalar falso, verda-
deiro ou não sei.
Para o tratamento dos dados as informações foram sub-
divididas e agrupadas por similaridades temáticas de inte-
resses da investigação: Visibilidade da doença ou do seu
vírus causador; Etiologia; Tratamento e cura; Formas de
transmissão I (reais); e Formas de transmissão II (polêmi-
cas/fantasiosas).
As próximas tabelas têm as afirmativas que foram apre-
sentadas, sendo que o número que as precede indica a or-
dem em que foram apresentadas no questionário.
Nas tabelas 2a, 2b e 2c são mostrados os resultados rela-
tivos às questões sobre a Visibilidade da doença e ou do
vírus HIV em seus portadores.

55
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Tabela 2a. Distribuição percentual de acertos antes e


depois de seis meses de Programa Educativo,
em relação à Visibilidade da Aids/HIV.

Antes Participante
Estudantes de 13 a 18 anos do Não Part.
(n=274) (n= 169)
período noturno (n=61)
% %
21. Existem pessoas que não têm
80,5 82,8 83,6
sintomas, mas são portadoras do vírus.
28. Só de olhar para a pessoa percebe-
69,0 76,3 68,9
se que ela tem o vírus da Aids.
33. Pessoas com o vírus da Aids
podem ter aparência completamente 68,7 79,3 73,8
normal.
Média percentual dos acertos 72,7 79,5 75,4

Tabela 2b. Distribuição percentual de acertos antes e


depois de seis meses de Programa Educativo,
em relação a Visibilidade da Aids/HIV.

Estudantes de 13 a 18 anos do Diurno Diurno


Escola II
período diurno e do período noturno de Antes D epoi s
(n=210)
outra escola Não participantes do (n=134) (n= 112)
%
Programa Educativo % %
21. Existem pessoas que não têm
78,8 74,1 64,3
sintomas, mas são portadoras do vírus.
28. Só de olhar para a pessoa percebe-
70,3 70,5 54,4
se que ela tem o vírus da Aids.
33. Pessoas com o vírus da Aids
podem ter aparências completamente 73,6 65,2 53,1
normal.
Média percentual dos acertos 74,2 70,0 57,2

56
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

Tabela 2c. Distribuição percentual de acertos antes e


depois de seis meses de Programa Educativo
em relação a Visibilidade da Aids/HIV.

Antes Participante Não Part.


Estudantes de 19 a 25 anos do
(n=109) (n= 61) (n=39)
período noturno
% % %
21. Existem pessoas que não têm
80,3 87,8 84,6
sintomas, mas são portadoras do vírus.
28. Só de olhar para a pessoa percebe-
72,8 73,8 76,9
se que ela tem o vírus da Aids.
33. Pessoas com o vírus da Aids
podem ter aparência completamente 75,0 77,0 74,4
normal.
Média percentual dos acertos 76,0 79,5 78,6

As tabelas 3a, 3b e 3c apresentam os resultados relati-


vos as proporções de acertos dos sujeitos frente às questões
sobre o vírus causador da aids.

Tabela 3a. Distribuições percentuais das proporções de


acertos sobre o agente causador da Aids por
faixa etária, e condição frente ao programa
de intervenção

Antes Participante
Estudantes de 13 a 18 anos do Não Part.
(n=274) (n= 169)
período noturno (n=61)
% %
1. A AIDS é causada por um vírus. 90,5 95,5 91,8
2. O vírus da AIDS é o Azt. 71,6 68,3 76,7
9. O vírus da AIDS é o HIV. 90,5 91,1 90,2
Média percentual dos acertos 84,2 85,8 86,2

57
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Tabela 3b. Distribuições percentuais das proporções


de acertos sobre o agente causador da Aids
por faixa etária, e condição frente ao progra-
ma de intervenção
Estudantes de 13 a 18 anos do Diurno Diurno
Escola II
período diurno e do período noturno de Antes D epoi s
(n=210)
outra escola Não participantes do (n=134) (n= 112)
%
Programa Educativo % %
1. A AIDS é causada por um vírus 93,4 94,6 91,0
2. O vírus da AIDS é o Azt 73,6 72,3 42,6
9. O vírus da AIDS é o HIV 88,3 90,2 75,8
Média percentual dos acertos 85,1 85,7 69,8
Tabela 3c. Distribuições percentuais das proporções de
acertos sobre o agente causador da Aids por
faixa etária, e condição frente ao programa
de intervenção
Antes Participante Não Part.
Estudantes de 19 a 25 anos do
(n=109) (n= 61) (n=39)
período noturno
% % %
1. A AIDS é causada por um vírus 83,9 98,0 92,3
2. O vírus da AIDS é o Azt 60,7 66,9 76,9
9. O vírus da AIDS é o HIV 85,2 89,8 89,7
Média percentual dos acertos 77,6 84,9 86,3
Nas tabelas 4a, 4b e 4c apresentamos os resultados refe-
rentes aos acertos relativos ao Tratamento, cura e vacina.
Tabela 4a. Distribuições percentuais das proporções de
acertos sobre o tratamento, cura e vacina por
faixa etária, e condição frente ao programa
de intervenção.
Antes Participante Não
Estudantes de 13 a 18 anos do período
(n=274) (n= 169) Part.
noturno
% % (n=61)
7. AIDS não tem cura 79,0 81,5 83,6
16. Foi descoberta, há pouco tempo, uma
30,2 36,1 32,8
vacina para o tratamento da AIDS
18. Existem remédios que podem curar a AIDS 74,6 79,7 65,6
Média percentual dos acertos 63,3 63,8 60,6

58
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

Tabela 4b. Distribuições percentuais das proporções


de acertos sobre o tratamento, cura e vacina
por faixa etária, e condição frente ao progra-
ma de intervenção.
Diurno Diurno
Estudantes de 13 a 18 anos do período Escola II
Antes Depois
diurno e do período noturno de outra escola (n=210)
(n=134) (n= 112)
Não participantes do Programa Educativo %
% %
7. AIDS não tem cura 70,3 78,6 43,3
16. Foi descoberta, há pouco tempo, uma
32,1 29,5 16,4
vacina para o tratamento da AIDS
18. Existem remédios que podem curar a AIDS 69,2 74,1 60,7
Média percentual dos acertos 57,2 60,7 40,1

Tabela 4c. Distribuições percentuais das proporções de


acertos sobre o tratamento, cura e vacina por
faixa etária, e condição frente ao programa
de intervenção.
Não
Antes Participante
Estudantes de 19 a 25 anos do período Part.
(n=109) (n= 61)
noturno (n=39)
% %
%
7. AIDS não tem cura 79,6 84,6 72,1
Foi descoberta, há pouco tempo, uma
21,7 46,2** 29,5
vacina para o tratamento da AIDS
18. Existem remédios que podem curar a
78,0 87,2 68,9
AIDS
Média percentual dos acertos 59,7 72,6 56,8
Prova de qui-quadrado com um grau de liberdade ∝ risk 5% Diferenças de
**p ≤ 0,001 * p ≤ 0,01

Nas tabelas 5 e 6 (a, b e c) apresentamos os resultados


relativos aos acertos acerca das principais vias de trans-
missão da Aids. Sendo que na tabela 5 são colocadas as for-
mas cientificamente comprovadas de transmissão (Formas
de Transmissão I) e nas 6 as formas fantasiosas ou polêmi-
cas, que fazem parte do imaginário popular (Formas de
Transmissão II).

59
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Tabela 5a. Distribuições percentuais das proporções de


acertos antes e depois de seis meses de pro-
grama educativo ligados à formas de trans-
missão da Aids I comprovadas
cientificamente.

Antes Participante Não Part.


Estudantes de 13 a 18 anos do período
(n=274) (n= 169) (n=61)
noturno
% % %
10. Se uma mulher grávida tem o vírus da
80,0 83,8 82,0
AIDS seu bebê também terá.
13. Pode-se pegar Aids ao usar seringas
e agulhas utilizadas por uma pessoa que 89,3 92,0 95,1
tem o vírus.
19. Homens podem transmitir AIDS para
87,6 92,8 90,2
mulheres
20. Mulheres podem transmitir AIDS
89,9 91,9 91,8
para homens
Média percentual dos acertos 86,7 90,1 89,7

Tabela 5b. Distribuições percentuais das proporções


de acertos antes e depois de seis meses de
programa educativo ligados às formas de
transmissão da Aids I comprovadas cientifi-
camente.
Estudantes de 13 a 18 anos do período Diurno Diurno
Escola II
diurno e do período noturno de outra Ante D epoi s
(n=210)
escola Não participantes do Programa (n=134) (n= 112)
%
Educativo % %
10. Se uma mulher grávida tem o vírus da
75,8 77,7 74,7
AIDS seu bebê também terá.
13. Pode-se pegar Aids ao usar seringas
e agulhas utilizadas por uma pessoa que 90,9 92,9 88,6
tem o vírus.
19. Homens podem transmitir AIDS para
93,9 87,5 89,6
mulheres
20. Mulheres podem transmitir AIDS
83,3 90,2 88,8
para homens
Média percentual dos acertos 85,9 87,0 85,4

60
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

Tabela 5c. Distribuições percentuais das proporções de


acertos antes e depois de seis meses de pro-
grama educativo ligados à formas de trans-
missão da Aids I comprovadas
cientificamente.

Antes Participante Não Part.


Estudantes de 19 a 25 anos do período
(n=109) (n= 61) (n=39)
noturno
% % %
10. Se uma mulher grávida tem o vírus da
81,4 82,1 73,8
Aids seu bebê também terá.
13. Pode-se pegar Aids ao usar seringas
e agulhas utilizadas por uma pessoa que 91,6 94,9 85,2
tem o vírus.
19. Homens podem transmitir Aids para
94,6 97,4 86,9
mulheres
20. Mulheres podem transmitir Aids para
94,4 94,9 85,2
homens
Média percentual dos acertos 90,5 92,3 82,7

Tabela 6a. Distribuições percentuais das proporções de


acertos antes e depois de seis meses de pro-
grama educativo ligados à Formas de Trans-
missão da Aids II polêmicas ou errôneas.
Antes Participante Não Part.
Estudantes de 13 a 18 anos do período
(n=274) (n= 169) (n=61)
noturno
% % %
3. Se um mosquito picar quem tem AIDS,
48,1 68,0** 45,9
pode contaminar outras pessoas
4. Se eu beijar alguém que tem AIDS,
72,9 84,0* 67,2
posso pegar a doença
5. Se eu tocar alguém que tem AIDS,
89,7 89,3 86,9
posso pegar a doença.
8. Pode-se pegar AIDS usando pentes,
escovas de cabelo, copos ou talheres de 71,6 82,2* 78,7
pessoas que tenham o vírus
Média percentual dos acertos 67,2 78,4* 68,8
Prova de qui-quadrado com um grau de liberdade ∝ risk 5% Diferenças de
**p ≤ 0,001 * p ≤ 0,01

61
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Tabela 6 b. Distribuições percentuais das proporções de


acertos antes e depois de seis meses de pro-
grama educativo ligados às Formas de Trans-
missão da Aids II polêmicas ou errôneas.
Diurno Diurno
Estudantes de 13 a 18 anos do período Escola II
diurno e do período noturno de outra escola Antes Depois (n=210)
Não participantes do Programa Educativo (n=134) (n= 112) %
% %
3. Se um mosquito picar quem tem AIDS,
pode contaminar outras pessoas 48,8 49,1 30,1
4. Se eu beijar alguém que tem AIDS, posso 69,3 71,4 54,4
pegar a doença
5. Se eu tocar alguém que tem AIDS, posso 93,0 95,5 78,8
pegar a doença.
8. Pode-se pegar AIDS usando pentes,
escovas de cabelo, copos ou talheres de 71,1 73,2 56,1
pessoas que tenham o vírus
27. Se eu usar o mesmo banheiro usado
por uma pessoa que tem AIDS, posso 51,4 74,1* 40,9
pegar a doença
Média percentual dos acertos 66,7 72,6 52,0
Prova de qui-quadrado com um grau de liberdade ∝ risk 5% Diferenças de
**p ≤ 0,001 * p ≤ 0,01
Tabela 6c. Distribuições percentuais das proporções de
acertos antes e depois de seis meses de pro-
grama educativo ligados à Formas de Trans-
missão da Aids II polêmicas ou errôneas
Antes Participante Não Part.
Estudantes de 19 a 25 anos do período
noturno (n=109) (n= 61) (n=39)
% % %
3. Se um mosquito picar quem tem AIDS, 54,4 77,0* 64,1
pode contaminar outras pessoas
4. Se eu beijar alguém que tem AIDS,
posso pegar a doença 61,8 80,3* 64,1
5. Se eu tocar alguém que tem AIDS, 91,8 85,2 92,3
posso pegar a doença.
8. Pode-se pegar AIDS usando pentes,
escovas de cabelo, copos ou talheres de 75,0 77,0 76,9
pessoas que tenham o vírus
27. Se eu usar o mesmo banheiro usado
por uma pessoa que tem AIDS, posso 56,0 75,4* 64,1
pegar a doença
Média percentual dos acertos 67,8 78,9 72,3
Prova de qui-quadrado com um grau de liberdade ∝ risk 5% Diferenças de
**p ≤ 0,001 * p ≤ 0,01

62
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

Os resultados, comparados sempre dois a dois, antes e


depois em cada subgrupo, mostram que, no que diz respeito
aos níveis de informação relativos à: Visibilidade do
HIV; Etiologia da AIDS; e, Tratamento e cura, os resulta-
dos obtidos anteriormente ao programa implementado: 1º)
podem ser considerados elevados, quando se compara os
grupos de 13 a 18 anos aos da mesma faixa etária de outra
escola; e 2º) a comparação dos resultados dos participantes
e não participantes com os resultados obtidos antes do pro-
grama não mostram nenhuma diferença estatisticamente
significante.
Quanto aos resultados relativos às formas de transmis-
são I, as consideradas como cientificamente já estabele-
cidas, observamos que os resultados: 1º) representam
proporções elevadas de acertos em todos grupos, já antes
do programa, inclusive o grupo da escola dois; e 2º) não se
observa nenhuma diferença significativa estatisticamente
entre os resultados obtidos antes e depois do programa por
participantes e por não participantes do mesmo.
Já no que diz respeito às formas de transmissão II, que
são as mais polêmicas observamos que: 1º) as proporções
de acertos da escola II são significativamente menores do
que as do grupo de jovens da mesma faixa etária antes do
programa; 2º) com exceção do item relativo à possibilidade
de transmissão do vírus da AIDS através do toque, que já
apresenta bons índices de acertos antes do programa, to-
dos os demais itens mudam significativamente para mais
elevados em relação aos participantes do programa, das duas
faixas etárias; e, 3º) o mesmo não ocorre com os não parti-
cipantes do programa de todas as faixas etárias, com exce-
ção do item referente à possibilidade de contaminação pelo
uso do banheiro que entre os estudantes do período diurno
(não participantes), muda significativamente para melhor
nível de acerto seis meses após as primeiras respostas.

63
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

A comparação dos resultados obtidos antes e depois do


programa mostra que os participantes do programa apre-
sentam ganhos principalmente no que diz respeito as for-
mas polêmicas ou errôneas de transmissão da Aids. Ou seja,
os resultados melhoram justamente em relação às formas
mais envoltas em crenças errôneas ou mesmo em proces-
sos estigmatizantes da Aids. Muito provavelmente como
efeito do Programa Educativo que centrava seus esforços
nas discussões desses aspectos.
Outro resultado interessante diz respeito ao fato de não
observarmos incrementos nas proporções de iniciações se-
xuais durante a implementação do programa. A população
foco dessa intervenção, grupo de alunos do noturno, tem
65,5 por cento de jovens que já tinham iniciado suas rela-
ções sexuais antes do Programa Educativo e este percen-
tual não muda significantemente nos seis meses seguintes,
durante os trabalhos.
No que diz respeito ao uso do preservativo, analisando
os resultados da mesma forma anterior, observamos que
não houve em nenhum dos subgrupos incrementos estatis-
ticamente significantes no relato do uso. Ou seja, tanto
participantes quanto não participantes do programa de
ambos os sexos, das duas faixas etárias estudadas não rela-
taram mudar significativamente a freqüência de adoção do
preservativo durante o tempo em que o programa ocorreu.
Entre os jovens, de ambos os sexos e nas duas faixas etá-
rias, têm-se os seguintes motivos, mais freqüentemente
apontados, para a não adoção do preservativo, expostos na
Tabela 7 da página ao lado.
Como podemos observar, aumentam significativamente,
as justificativas relativas ao fato de não ter condom no
momento das relações, conhecer bem a pessoa e estar junto
com ela há um “tempo”, entre os participantes do progra-
ma, sendo que esta última justificativa também tem um
aumento significativo entre os não participantes.

64
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

Tabela 7. Distribuição percentual dos motivos para o


não uso do condom nas relações sexuais nos
últimos seis meses entre participantes e não
participantes do Programa
Participantes Não
Antes
D epoi s Participantes
Motivos (n=176)
(n=125) (n=58)
%
% %
Confiava na pessoa 48,8 52,8 48,2
Não tinha (camisinha) na hora 43,7 66,4** 29,3
Conhecia bem a pessoa 39,2 66,4** 55,1
Já estamos juntos faz tempo 41,5 63,2** 68,9**
Prova de qui-quadrado com um grau de liberdade ∝ risk 5%. Diferenças de
**p ≤ 0,001 * p ≤ 0,01.
Paralelamente, é interessante observar que entre os par-
ticipantes do programa há um aumento, embora não esta-
tisticamente significante, da proporção dos que assinalam
só estarem na atualidade tendo relações com parceiros re-
gulares. Antes do programa entre os 251 respondentes 49,8
por cento assinalaram esta alternativa e depois do mesmo
entre 125 participantes que responderam à questão 66,2 por
cento assinalaram essa alternativa.
O incremento esperado na utilização do condom pode não
ter sido observado, pelo tipo de grau adotado na prova em-
pregada qui-quadrado (alfa risk 5%). Ou talvez, seja neces-
sário mais tempo para a averiguação de incrementos nas
outras respostas consideradas positivas. Além dos proble-
mas relativos às medidas utilizadas para análise de incre-
mentos, pode-se estar enfrentando um viés “imediatista”
em relação à mudança de comportamento. Em outras pala-
vras, sabemos que a adoção do preservativo, em todas ou
na maior parte das relações sexuais mantidas, não é algo
que ocorra somente por decisão racional ou mesmo após as
discussões das dificuldades psicossociais envolvidas no uso
do condom. Provavelmente, as decisões e mudanças este-

65
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

jam em processo, não sendo, portanto, um único índice de


avaliação de um programa educativo.
É interessante observar que entre os que relataram não
ter usado o condom em todas as relações os motivos para a
não utilização foram: “não tinha (camisinha) na hora; co-
nhecia bem a pessoa; e já estamos juntos faz tempo aumen-
tam significativamente entre os participantes do programa.
Sendo que, esta última justificativa aumenta também signi-
ficativamente entre os não participantes do programa.
Observamos, paralelamente a esse dado anterior, um
aumento no relato de engajamento em parcerias regulares
entre os participantes do programa. Ou seja, parece que ao
longo dos seis meses a opção dos jovens participantes do
programa foi pela parceria fixa ao invés do uso mais fre-
qüente do condom independentemente do tipo de parceria.
Se nos fixarmos a essa primeira avaliação, a apenas es-
tes tipos de resultados que implicam na centralidade do
comportamento, na mudança do nível de informação e no
aumento de adoção do preservativo nas relações sexuais,
ficaremos profundamente frustrados pelos resultados apa-
rentemente negativos. Resultados que demonstram a pou-
ca efetividade do programa de intervenção.
Entretanto, ao analisarmos as respostas às perguntas
abertas, apresentadas no final do questionário, estas nos
permitiram pensar que a intervenção educativa havia cum-
prido seus objetivos. Ou seja, processos de mudanças em
relação aos temas tinham sido desencadeados de modo des-
contraído e até mesmo lúdico pelas metodologias emprega-
das nas conduções dos grupos. Numa das perguntas abertas
do questionário, na qual se perguntou o que os participan-
tes achavam mais importante no programa, somente 11,5
por cento deles respondeu que havia sido o contato com as
informações. A maior parte dos participantes (50,7 por cen-

66
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

to) indicou, como o mais importante aspecto do programa,


a possibilidade de espaços para discussão dos temas, facili-
tado pelas metodologias empregadas, que segundo os rela-
tos, permitiam, de modo descontraído, tratar de temas
delicados. Além disso, 17,2 por cento deles apontaram como
ponto principal a postura dos coordenadores de grupos du-
rante a implementação do programa e os demais 20,6 por
cento indicaram que o mesmo foi positivo por várias ou-
tros aspectos gerais ligados aos temas discutidos.
Em outra questão aberta: Este trabalho na escola mu-
dou alguma coisa na sua maneira de pensar ou agir? O que?
Observamos as seguintes respostas agrupadas nas catego-
rias a seguir .

1. Trabalhou preconceitos e/ou facilidade em falar


dos temas
Nesta categoria estão incluídas as respostas que se refe-
riram ao programa como tendo provocado as mudanças
positivas no modo de pensar e agir frente a questões sobre
as quais se tinham dificuldades ou preconceitos. Como exem-
plo dessas respostas tem-se: “Sim, tinha muito preconceito
do homossexualismo, agora mudou, não tenho muito”;
“Sim, me fez tirar o preconceito/ que eu tenho sempre em
mão uma camisinha”;“Sim, mudou muito. Descobri que eu
tinha conceitos errados e muito preconceito. Hoje, acho que
penso diferente em relação a Aids e ao sexo” As respostas
nesta categoria foram apresentadas por 25,3 por cento dos
participantes.

2. Reflexão e/ou intenção de prevenção


Nesta categoria, as respostas se referiram ao programa
como tendo oferecido possibilidades de pensar e refletir
antes de agir, ou respostas que manifestam a intenção de

67
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

prevenir-se em relação aos temas discutidos pelo progra-


ma. Temos como exemplos, as seguintes respostas: “Sim
em pensar, que a vida não é só fazer mas sim pensar antes
de fazer”; “Sim! Na maneira de pensar, mas também como
fazer na hora de agir. Havia alguns assuntos que eu tirava
conclusões adiantadas e erradas, como por exemplo a Aids,
Camisinha, Sexo”; “Sim comecei a pensar mais nas coisas”;
“Sim! De pensar e agir com algumas coisas”; “Sim, de modo
de agir com os drogados, aidéticos e a sexualidade”; “Sim.
O meu modo de pensar sobre os problemas da vida”; “Sim,
de pensar antes de agir”; “Sim. Agora penso como agir”;
“Mudou. Sei o que pensar bem antes de fazer” As respostas
nesta categoria foram apresentadas por 32,5 por cento dos
participantes.

3. Aprendizado
As respostas nessa categoria se referiram ao programa
como tendo possibilitado a aprendizagem sobre os assun-
tos discutidos em grupo como tendo facilitado as discus-
sões com os colegas e amigos. Como exemplo dessas
respostas tem-se:“Sim, muitas coisas que não sabia e pen-
sava errado, mas que agora já sei”; Sim, aprendi muita
coisa”;“Sim uma boa instrução sobre sexo, etc”;“Sim, eu
aprendi mais sobre as doenças”;“Sim, eu não sabia muitas
coisas que acabei aprendendo a discutir com os outros”. As
respostas nesta categoria foram apresentadas por 15,6 por
cento dos participantes.

4. Prevenção
Nesta categoria as respostas se referiram ao programa
como tendo possibilitado a adoção de medidas preventivas
em relação aos temas abordados. Como exemplo dessas res-
postas tem-se: “Sim faz você si prevenir direito”; “Sim, prin-
cipalmente o uso de camisinha”; “Sim! Na maneira de

68
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

pensar, mas também como fazer na hora de agir. Havia al-


guns assuntos que eu tirava conclusões adiantados e erra-
das, como por exemplo a Aids, Camisinha, Sexo”; Mudou,
várias coisas, como dizer “não”, sobre as drogas, a preven-
ção e etc”; “Sim, mudou. Estou me prevenindo melhor”. As
respostas nesta categoria foram apresentadas por 13,8 por
cento dos participantes.

5. Facilidade de expressão
Nesta categoria as respostas se referiram ao programa
como tendo propiciado maior facilidade de expressão ou de-
sinibição em relação à abordagens dos temas trabalhados.
Como exemplo destas respostas tem-se: “Oh como mudou.
Eu não sou mais aquela pessoa tímida, mudou bastante”;
“Sim, fez com que eu pensasse mais extrovertidamente”. As
respostas nesta categoria foram apresentadas por 9,1 por
cento dos participantes.
Foram ainda agrupadas como avaliação positivamente
sucinta ao programa 3,7 por cento das respostas.
Observamos assim que os participantes do programa apre-
sentaram, de modo geral, avaliações positivas sobre o pro-
grama. O Programa é fundamentalmente visto como um
espaço para reflexões, discussões e aprendizagem. A refle-
xão e adoção ou mesmo intenção de mudanças em termos de
prevenção, a possibilidade de discutir e de aprendizado e até
a desinibição na expressão de seus pensamentos ou idéias
são mudanças relatadas pelos participantes.
A alta adesão ao programa e a permanência, no mesmo,
da maioria dos participantes, aliada aos relatos do que eles
consideram mudanças positivas ocorridas em decorrência
do programa, parecem constituir elementos que contribuem
para uma avaliação positiva desse processo de intervenção
educativa.

69
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Discussão
AVALIAÇÃO DE IMPACTO
Os resultados esperados nas avaliações de impacto no
contexto de programas de prevenção de Aids, são as mu-
danças de comportamento, geralmente, restritas ao com-
portamento de adoção do preservativo nas relações sexuais.
Este comportamento se torna o centro da avaliação e o
principal indicador da eficácia da intervenção.
Porém, se nos determos apenas neste único indicador de
eficácia de um programa, a grande maioria dos programas
não atingiria seu objetivo: aumentar os índices de adoção
do preservativo nas relações sexuais.
Cada vez mais, estamos convencidos de que a mudança
de comportamento não acontece apenas através de proces-
sos cognitivos. Sabemos que a adoção do preservativo, em
todas ou na maior parte das relações sexuais mantidas, não
é algo que ocorra somente por decisão racional ou mesmo
após as discussões das dificuldades psicossociais envolvi-
das no uso do preservativo. Provavelmente, as decisões e
mudanças estejam em processo, não sendo, portanto, um
único índice de avaliação de um programa educativo. Pode-
mos supor que, de modo geral, o jovem começa, durante um
programa, como o proposto, a entrar em contato com as
suas “vulnerabilidades” ligadas à sexualidade. Esses con-
tatos os colocam em processo de ressignificação de crenças
e atitudes frente aos problemas evocados nas discussões.
Esses estágios, no entanto, podem não significar necessa-
riamente mudanças em um único sentido ou direção.
Entretanto, a avaliação de impacto não significa, neste
contexto da prevenção, obrigatoriamente analisar a eficá-
cia das estratégias de intervenção com objetivo único de
aumentar o número de indivíduos que adotam o uso do pre-
servativo em suas relações sexuais. Mesmo porque, adotar

70
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

o preservativo implica em diferentes questões e aspectos a


serem abordados que estão além das estratégias de trans-
missão de informação.
Talvez estejamos cometendo um equívoco ao esperar deste
tipo de avaliação e dos indicadores que utilizamos obter
resultados que não são quantificáveis pela sua própria na-
tureza, como diz Minayo (1994). Em se tratando de com-
portamento humano, não podemos nos esquecer de sua
natureza que está além do racional, mas tem o emocional e
social envolvidos.
Talvez, se tivermos muito claro, para que serve necessa-
riamente a avaliação de impacto, possamos então, utilizar
de seus resultados de uma forma que contribua e seja posi-
tiva para repensar e construir novos conhecimentos no con-
texto da prevenção.
Isto porque compartilhamos da concepção de avaliação
apresentada por Lins (2001) que considera a avaliação como
um processo que nos possibilita a construção de novos co-
nhecimentos e não meramente a aplicação de conhecimen-
tos já existentes numa dada pesquisa. Assim acontece na
avaliação de impacto.
Ao observamos os resultados obtidos em relação aos ní-
veis de informação, eles nos trazem vários subsídios para
repensar a intervenção e as direções a serem adotadas, quais
aspectos devem ser mais explorados, quais não são tão im-
portantes como planejamos inicialmente.
Desta forma, podemos dizer que a avaliação de impacto
tem seu valor desde que saibamos e compreendamos suas
limitações e potencialidades. De como podemos aproveitar
e utilizar os conhecimentos produzidos através deste tipo
de avaliação.
No trecho da pesquisa destacado para esta apresentação
este fenômeno é facilmente identificado. Depende do que
estamos esperando da avaliação de impacto, quais são nos-

71
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

sas expectativas do que esta avaliação pode nos oferecer.


Esta como tantas outras têm suas limitações e se prestam
a avaliar determinados aspectos implicados na prevenção.
Por exemplo, se continuarmos insistindo que através
deste tipo de avaliação é possível verificar a mudança de
comportamento, continuaremos a persistir na inviabilida-
de de resultados, em continuarmos frustrados com nossas
intervenções.
Entretanto, se concebermos a avaliação de impacto como
uma forma de diagnóstico em relação aos aspectos cogniti-
vos e mesmo emocionais, em relação aos principais aspectos
que precisamos investir mais, e então discutir sobre quais
seriam as melhores estratégias metodológicas para traba-
lhar com estas questões, esta pode ser uma grande contri-
buição deste tipo de avaliação.
Neste recorte que apresentamos neste trabalho fica níti-
da esta possibilidade de contribuição, quando nos depara-
mos com nenhuma mudança ou mudança nos grupos entre
participantes e não participantes em relação ao tipo de in-
formação científica, a qual não está associada a valores, mi-
tos, tabus que deformam ou prejudicam seu entendimento.
Por outro lado, a partir dos resultados apresentados pode-
mos identificar que o trecho da pesquisa destacado para esta
apresentação nos permite problematizar a adequação de mo-
delos de avaliação de projetos de intervenção. Seguindo os
modelos que se apresentavam na literatura, nos propusemos
a verificar a eficácia de um programa através, fundamental-
mente, da verificação dos incrementos nas médias de acertos
ou mudanças positivas nas respostas. Porém, essa forma não
se mostrou sensível por si só. Este tipo de avaliação pode for-
necer indicadores, mas não pode ser considerada separada-
mente de análises do processo de intervenção.
Avaliação, como nos lembra Spink (2001), é julgar, atri-
buir valor e nesse ponto, salienta o autor, é necessário pen-

72
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

sar que valor é esse que está sendo atribuído. Isso nos faz
refletir sobre a importância da circulação de idéias na lite-
ratura técnico científica, numa dada época sobre uma de-
terminada área. Na literatura da área, ainda são bastante
freqüentes, as proposições de avaliações de resultados com
comparações de índices obtidos antes e depois de progra-
mas educativos para considerar a sua possível eficácia.
Ao iniciarmos o planejamento da pesquisa, já tínhamos
muitas experiências com intervenções junto a jovens na
comunidade. Reconhecíamos o valor dos processos cotidia-
nos de discussão dos temas que emergiam nos grupos. Per-
cebíamos que eram nesses encontros cotidianos e contínuos,
em grupo, que emergiam sempre muitos interesses pelos
temas tratados. As verbalizações e expressões, dos partici-
pantes, nos mostram os pontos de interesse, os entraves e
saídas encontrados, em discussão, em direção às constru-
ções de cultura de proteção em relação à saúde. Ou seja,
percebíamos que nesses encontros, nas falas cotidianas é
que são encontradas as dicas de que algo está mudando, no
entanto, ao nos propormos avaliar um programa educativo
optamos pelo que era priorizado na literatura internacio-
nal. Como nos alerta Ayres (1996, p.10) “[...] a racionali-
dade de qualquer avaliação guarda uma relação diretamente
proporcional ao grau de sua adequação, à experiência real
que se quer avaliar [...]”.
Ayres (1996, p. 10-11) comparando formas de avaliação
diz que, as que se parecem a uma prova final, são muitas
vezes pouco fecundas e afirma

[...] E por que ele é tão “infecundo”, para não dizer estéril?
Porque é deformador: em geral elucida mais a informação
obtida que a formação construída: desta informação, por
sua vez. freqüentemente não se pode discriminar o que é
uma apropriação circunstancial daquilo que ficou consolida-
do como bagagem intelectual; as estruturas lógico-argumen-

73
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

tativas encontradas também não permitem distinguir, via


de regra, seu grau de consistência e coerência com o conjunto
de valores e referências do aluno, e assim por diante. Quan-
do temos oportunidade de viver um processo pedagógico em
que a intensidade e extensão do convívio professor-aluno
permite a avaliação continuada da participação em sala, sa-
bemos o quanto as perguntas dos alunos são muito mais
expressivas de seu crescimento humano e intelectual que
suas respostas [...]

Nesse sentido, instrumentos que nos permitam registrar


os diferentes tipos de participação dos jovens, nos progra-
mas, podem prover uma avaliação muito mais fecunda por
documentar o processo que ainda segundo o mesmo autor
(Ayres, 1996, p. 10):

[...] Uma avaliação fecunda pode ser descrita, assim, como


aquela que consegue, em meio às mais diversas condições
objetivas, identificar e promover estratégias progressiva-
mente favoráveis ao sucesso do trabalho avaliado [...]

Ao adotarmos somente a avaliação de impacto, podemos


estar adotando um viés “imediatista” em relação a mudan-
ça de comportamento. Em outras palavras, esperar unica-
mente como principal e praticamente maior indicador de
sucesso de um programa educativo, a “adoção do preservati-
vo” em todas as relações sexuais, talvez além de utópico,
seja um modo equivocado de avaliar as possíveis contribui-
ções de um processo educativo. Se levarmos em conta que
mudanças desse tipo fazem parte de um processo mais am-
plo na vida das pessoas, não deveríamos unicamente esperar
aumentos estatisticamente significantes na adoção do pre-
servativo. Talvez somente as análises mais aprofundadas,
qualitativas possam alcançar respostas mais satisfatórias.
Parker (2000), fazendo uma análise das tendências das
pesquisas relativas à Aids nas duas últimas décadas, afir-

74
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

ma que estamos no momento de nos preocupar muito mais


com a compreensão: dos contextos sociais e culturais nos
quais as atividades sexuais são constituídas; e das cons-
truções de significados nas culturas sexuais. Isto significa
que é o momento de investir mais na compreensão de pro-
cessos do que de produtos. E, para finalizar, parece interes-
sante ressaltar o que Ayres (2002) apresenta em sua análise
sobre as lições aprendidas com as práticas de intervenção
de prevenção à Aids. Diz o autor (Ayres, 2000, p. 264):

Perdemos muito tempo e energia pensando que iríamos en-


sinar às pessoas o que era o HIV e Aids, as formas de prote-
ger-se do problema. Frustrados, víamos freqüentemente,
através de nossas provas de pré e pós-intervenção, que, com
nossas estratégias educativas e métodos de avaliação, está-
vamos, simplesmente, lançando pedras em poços escuros.
Produzíamos um tremor superficial, medíamos as efêmeras
ondulações provocadas e perdíamos de vista onde aquela
pedra ia parar, e o que se passava com ela. Com toda segu-
rança, ao inter-atuar com nossas “populações em foco” pro-
duzíamos algum tipo de aprendizagem. Ao mesmo tempo,
como torpes buscadores de ouro, nos preocupávamos muito
com a areia e deixávamos escapar as pedras preciosas... A
verdade é que não devemos esperar, nem desejar, que a sim-
ples transmissão de uma informação modele a aprendiza-
gem seguindo nossa vontade. O que devemos fazer é
estabelecer uma relação entre educadores e educandos que
permita a estes entrar efetivamente em contato com a ques-
tão que nos preocupa, para que juntos possamos aprender de
que se trata de fato, e o que devemos fazer a respeito.

Referências

AYRES, J. R. C. M. HIV/Aids, DST e abuso de drogas entre


adolescentes: Vulnerabilidade e avaliação de ações preventivas.
São Paulo: Casa da Edição, 1996.

75
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

AYRES, J. R. C. M (2002). Al alcance de los ojos, lejos de lãs manos:


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Janeiro: ABIA, 2001. (Série Coleção ABIA- Fundamentos da
Avaliação, 3).
WEREBE, M.J.G. Sexualidade, política e educação. Campinas:
Editora Autores Associados, 1998.

76
3. OBESIDADE GRAU III:
LEVANTAMENTO DA PRODUÇÃO
CIENTÍFICA

Jena Hanay Araujo de Oliveira

A obesidade é uma patologia complexa que apresenta


graves dimensões sociais e psicológicas, e afeta praticamen-
te todas as faixas etárias e grupos socioeconômicos (OR-
GANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2003).
Em se tratando de avaliar a presença de obesidade clíni-
ca em adultos e para estudos epidemiológicos, a World He-
alth Organization (1997) utiliza o método chamado de IMC
(Índice de Massa Corpórea de Quetelet), que relaciona o peso
com a altura ao quadrado, igual ou maior que 30 kg/m². A
classificação quanto ao IMC e grau de obesidade pode ser
vista a seguir:
IMC < 18,5: Magreza – Grau 0
IMC 18,5 – 24,9: Normal – Grau 0
IMC 25 – 29,9: Sobrepeso – Grau I
IMC 30 – 39,9: Obesidade – Grau II
IMC ³ 40,0: Obesidade Grave – Grau III
Em crianças e adolescentes, como o peso varia conforme
a altura e idade, o uso simples do IMC não é satisfatório.
Utiliza-se o IMC percentual (%IMC), que se apóia em tabe-
las de percentis de peso e altura (MANCINI; HALPERN,
2000). Existem uma diversidade de critérios propostos na
literatura para identificar sobrepeso e obesidade na infân-
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

cia e adolescência, principalmente relacionados aos “pon-


tos de corte” ou limites para sua identificação.
A obesidade é de causa multifatorial, sendo um desafio
para os profissionais e pesquisadores com relação ao trata-
mento. Dentre as causas fundamentais estão: o estilo de
vida sedentário, o alto consumo calórico e o pouco gasto
energético, os estilos alimentares, os fatores genéticos, os
problemas psicológicos, entre outras (WORLD HEALTH
ORGANIZATION, 1997).
No que se refere à literatura científica atual, o estudo da
obesidade tem sido mais intenso em três grandes áreas: a
Medicina, que durante muito tempo dominou o que se es-
crevia e o que se falava sobre obesidade; a Nutrição, com
uma história mais recente neste campo, mas muito mar-
cante nos dias de hoje; e a Psicologia que além de abordar
os transtornos alimentares sob enfoque dos sintomas e da
patologia, busca aprofundar questões relacionadas à cultu-
ra e aos fenômenos psicossociais associados a estas patolo-
gias. Além destas três grandes áreas, de caráter científico,
a obesidade também é retratada na escrita popular, na mí-
dia, nas pinturas e na arte em geral. Ou seja, está presente
no cotidiano das pessoas (STENZEL, 2003).
Nesse trabalho o enfoque será dado à obesidade grau III,
definida pelo IMC ≥ 40kg/m², que também tem sido alvo de
preocupação pela associação à piora de qualidade de vida, à
alta freqüência de comorbidades (doenças cardiovascula-
res, diabetes tipo 2, síndrome de apnéia do sono, alguns ti-
pos de cânceres, entre outras), à redução da expectativa de
vida e à grande probabilidade de fracasso dos tratamentos
menos invasivos (SEGAL; FANDIÑO, 2002).
Outro fator que agrega o interesse por esse tipo de obe-
sidade é que há alguns anos a medicina avançou em termos
do tratamento desses pacientes contando entre os seus re-
cursos com a chamada cirurgia bariátrica, que reduz con-

78
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

sideravelmente o peso dos pacientes em pouco tempo e di-


minui as comorbidades advindas dessa enfermidade. É im-
portante reconhecer o quanto essa forma de tratamento tem
trazido melhoras à qualidade de vida desses indivíduos. Mas
sabe-se que além disso, outras variáveis devem ser consi-
deradas como por exemplo: o aumento de problemas psico-
lógicos e psicopatológicos associados à obesidade tais como
depressão, ansiedade, transtorno do comer compulsivo e
baixa auto-estima.
Fandiño et al. (2004) destaca que a cirurgia bariátrica é
a única intervenção eficaz, a longo prazo, no tratamento da
obesidade grau III. No entanto, há que se levar em conta
que pacientes com obesidade grave podem apresentar um
aumento da psicopatologia associada e precisam de uma
avaliação clínica e psiquiátrica detalhada, visando a redu-
ção de possíveis complicações pós-operatórias.
Segundo Romaro e Itokazu (2002), na última década,
houve um aumento nos casos de transtornos alimentares
como obesidade, bulimia e anorexia, resultando na criação
de ambulatórios específicos para o tratamento médico e
psicológico.
A obesidade é uma doença epidêmica, que se propaga ra-
pidamente no mundo moderno, um tema que ganha espaço
na mídia, na sociedade, no meio médico, psicológico e nu-
tricional, e é natural, e procedente, que profissionais de
várias áreas procurem se debruçar sobre este problema para
buscar novas soluções (MELO, 2001).
Envolve a análise da prevalência e da tendência secular
da doença em regiões e países distintos, como também a
distribuição em diferentes estratos populacionais (por ida-
de, sexo, faixa econômica ou cultural, entre outros) (MAN-
CINI, 2003).
No mundo atual há mais de um bilhão de adultos com
excesso de peso e pelo menos 300 milhões deles sofrem de

79
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

obesidade clínica. Também é possível observar o aumento


crescente da obesidade na infância e na adolescência. Como
é caso dos Estados Unidos onde o número de crianças obe-
sas dobrou e o de adolescentes obesos triplicou desde 1980
(ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2003).
No Brasil, a obesidade em crianças e adolescentes tripli-
cou nos últimos 30 anos. Os dados mais recentes apontam
para 14,8% de obesidade infantil entre as crianças da re-
gião sudeste e 9,8% entre as do Nordeste (VIUNISKI, 2003).
Na América Latina a obesidade tem aumentado conside-
ravelmente tornando-se um problema de saúde pública em
quase todos os países (KAIN; VIO; ALBALA, 2003).
No Brasil, a prevalência dessa enfermidade aumentou
em 70% entre 1975 e 1989, indicando que o excesso alimen-
tar está rapidamente se tornando um problema mais proe-
minente do que o déficit (DOBROW; KAMENETZ; DEVLIN,
2002).
A segunda parte da Pesquisa de Orçamentos Familiares
(POF) 2002-2003, feita pelo Instituto Brasileiro de Geogra-
fia e Estatística – IBGE (2004) em conjunto com o Ministé-
rio da Saúde, revela que o país tem cerca de 38,6 milhões de
pessoas com excesso de peso, o que equivale a 40% de sua
população adulta. Deste total, 10,5 milhões são obesos.
A obesidade grau III tem aumentado nos Estados Uni-
dos. O percentual de mulheres obesas negras tem dobrado
em menos de uma década para 15%. Na Europa a cada 40
indivíduos, um é obeso grau III (JAMIESON,2003).
A obesidade é responsável por 2 a 6 % do custo total de
atenção à saúde; em vários países em desenvolvimento; algu-
mas estimativas apontam para até 7% (ORGANIZAÇÃO
PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2003).
Em se tratando da produção científica, um estudo anali-
sou e comparou um grupo de 31 nações, incluindo o Brasil,
para medir a participação relativa na produção científica

80
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

mundial. O critério utilizado na pesquisa levou em conta o


número de artigos publicados em periódicos indexados e
número de citações. Os Estados Unidos tem a maior parti-
cipação, totalizando 62, 76% dos artigos mais citados. Com-
pletam os dez primeiros da lista, Reino Unido, Alemanha,
Japão, França, Itália, Suíça, Holanda e Austrália. O Brasil
ocupa a 23º posição, atrás da China (19º), Coréia do Sul
(20º), Polônia (21º) e Índia (22º) (KING, 2004).
No Brasil, alguns estudos sobre produção científica em
periódicos têm mostrado carências de publicações sistema-
tizadas na área de Psicologia (YAMAMOTO; SOUZA; YA-
MAMOTO, 1999).
Nesse contexto, é relevante investigar a produção de co-
nhecimento sobre obesidade grau III a fim de servir como
parâmetro para o desenvolvimento de novas pesquisas e
como possibilidade de intercâmbio científico entre diferen-
tes áreas e localidades.

Objetivo
Revisar a produção científica referente à obesidade grau
III, de 1998 a 2002, a fim de levantar as pesquisas publica-
das sobre o tema através de algumas dimensões de análise.

Método
A pesquisa de levantamento compreendeu uma amostra
de 60 abstracts de periódicos indexados nas bases de dados
LILACS (46 resumos) e PsycINFO (14 resumos), entre 1998
e 2002, utilizando o descritor obesidade mórbida. Ou seja, o
procedimento de coleta de dados foi feito a partir do levan-
tamento dos resumos contidos nessas duas bases de dados
utilizando como palavra de busca obesidade mórbida, ele-
gendo o período de 1998 a 2002. A análise dos dados foi fei-

81
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

ta a partir de duas dimensões: a primeira relacionada às


publicações destacando ano, país, número de autores, área
de publicação e periódicos de indexação. A segunda abran-
geu as pesquisas descritas nos resumos levando em conta a
população descrita, o tipo de delineamento de pesquisa, os
instrumentos de avaliação utilizados e o tipo de método
estatístico. Os dados foram inseridos numa planilha do
Microsoft Excel de acordo com as dimensões estabelecidas
a princípio. Posteriormente, os dados foram analisados por
meio das freqüências percentuais.
Foram excluídos da pesquisa de levantamento os resu-
mos que não se enquadravam nas duas dimensões de análi-
se e outros que apresentavam repetição nas bases de dados.

Resultados e Discussão

Quanto ao ano de publicação, os artigos concentram-se


a maior parte em 2002, perfazendo 36,6% da produção. As
publicações de 1998 a 2002 seguiram uma ordem crescente.
Esse aspecto é discutido no artigo que trata das caracte-
rísticas dos periódicos científicos brasileiros indexados in-
ternacionalmente. Segundo os autores, durante o período
de 1981 a 1989 houve uma oscilação na relação entre a par-
ticipação brasileira e latino americana. De 1989 a 1992 ocor-
reu um discreto crescimento, permanecendo inalterado
entre 1992 a 1997. A partir de 1998, voltou a crescer a par-
ticipação do Brasil, em relação à América Latina (SAM-
PAIO; SABADINI; LINGUAGOTTO, 2002). A figura 1
descreve a distribuição por ano.
Dentre os países com maior número de publicações des-
taca-se o Brasil com 30%, seguido do Chile 15%, Espanha
8,3% e Argentina 5%. Percebe-se que a produção concentra-
se nos países da América do Sul, liderada pelo Brasil.

82
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

Figura 1: Distribuição por ano

Esse aspecto parece estar relacionado a base de dados


pesquisada, LILACS (Literatura Latino Americana e do
Caribe em Ciências da Saúde), que concentrou o maior nú-
mero de resumos. Outro fator que apóia esse resultado é
que a partir de 1998, a participação brasileira apresentou
um forte crescimento em relação à América Latina e ao
mundo (SAMPAIO; SABADINI; LINGUAGOTTO, 2002).
A tabela 1 descreve a distribuição por país.
Tabela 1. Distribuição por País

País f %
Brasil 18 30,0
USA 4 6,6
Chile 9 15,0
Alemanha 1 1,6
Espanha 5 8,3
Canadá 1 1,6
Austrália 1 1,6
Israel 1 1,6
Netherlands 1 1,6
Guatemala 2 3,3
Cuba 1 1,6
Argentina 3 5,0
Colômbia 1 1,6
Índia 1 1,6
México 2 3,3
Peru 1 1,6
Não especificado 8 13,3
Total 60 100

83
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Na figura 2 encontram-se os resultados de acordo com o


número de autores por publicação. Dos 60 resumos anali-
sados, merece destaque as publicações com 3 autores, o que
corresponde a 33,3%. Em 16,6% estão os resumos com 2
autores e 15% autoria única.

Figura 2: Distribuição por número de autores

É importante ressaltar o crescente número de publica-


ções com mais de quatro autores, chegando a 11 autores
por publicação.
Quanto a área em que o periódico é publicado, a tabela 2
mostra que as publicações estão concentradas em três áre-
as do conhecimento: medicina, nutrição e psicologia. Sen-
do que 45% da produção corresponde a medicina sem
mencionar alguma sub-área específica. Mas se incluir to-
das as sete especialidades da medicina descritas nos resu-
mos, esse resultado aumenta para 70 % de todas as
publicações. A Psicologia corresponde a 8,3% dos resumos,
um número pouco expressivo quando comparado à medici-
na. Esse resultado encontra sustentação no artigo de Sten-
zel (2003), na qual a autora menciona a Nutrição, a Medicina
e a Psicologia como as três áreas que mais se destacam no
estudo da obesidade de acordo com a literatura científica
atual.

84
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

Tabela 2. Distribuição por área/periódico

Área f %
Medicina 27 45
Endocrinologia 4 6,6
Pediatria 1 1,6
Nutrição 4 6,6
Anestesiologia 3 5
Ginecologia e Obstetrícia 1 1,6
Gastroenterologia 1 1,6
Psiquiatria 5 8,3
Psicologia 5 8,3
Não especificado 9 15
Total 60 100

Os 60 resumos de artigos foram publicados em 38 perió-


dicos diferentes, sendo que em 76,3% desses encontra-se com
uma publicação sobre o tema. O levantamento mostra que
o Brasil foi o país com o maior número de periódicos inde-
xados, totalizando sete, sendo um na área de Psicologia e
os demais na área médica. Em seguida, está o Chile com
três periódicos.
O maior número de publicações sobre obesidade grau III
está no periódico do Arquivo Latino-Americano de Nutri-
ção que indica um total de 13,3%. Com quatro publicações
está o International Journal of Eating Desorders e a Re-
vista Chilena Circular Médica com 6,6% cada um. O Brasil
aparece com três publicações na Revista Brasileira de Anes-
tesiologia, correspondendo a 5%. Também aparece com duas
publicações na revista da Associação Médica Brasileira e
com duas publicações no Jornal Brasileiro de Medicina,
conforme tabela 3 da página seguinte.
A segunda dimensão de análise compreendeu a popula-
ção inserida no estudo, o tipo de pesquisa, o uso de instru-
mentos de avaliação e o método estatístico utilizado.

85
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Tabela 3. Distribuição por periódicos indexados


Periódicos f %
New England Journal of Medicine 1 1,6
Verhaltenstherapie 1 1,6
German Journal of Psychiatry 1 1,6
Revista de Psiquiatria de La Facultad de Medicina de Barcelona 2 3,3
Psycothema 1 1,6
Journal of Psychosomatic Research 1 1,6
Epilepsy and Behavior 1 1,6
International Journal of Eating Disorders 4 6,6
Tijdschrift voor Psychologie and Gezondheid 1 1,6
Journal of Consultation Liasion Psychiatry 2 3,3
Rev Guatemalteca Cir 1 1,6
Rev. Cuba. Endocrinol 1 1,6
Arch. Argentina Pediatria 1 1,6
Rev. Colomb. Cir 1 1,6
West Indian Med Journal 1 1,6
Arch. Latinoam. Nutr 8 13,3
Psicologia: Reflexão e Crítica 1 1,6
Rev. Chil. Cir. Med 4 6,6
Rev. Psiquiatr. Salud. Ment 2 3,3
Arquivo Brasileiro Endocrinologia. Metabólica 1 1,6
Rev. Bras. Nutr. Clínica 1 1,6
Diagn. Tratamento 1 1,6
RBM. ver.bras. med 1 1,6
Rev. Chil. Obs 1 1,6
Rev. Fac. Med UNAM 1 1,6
Rev. Bras. Anestesiologia 3 5,0
Acta Fisiátrica 1 1,6
Rev. Assoc. Med. Bras. 2 3,3
Evidência Aten. Primária 1 1,6
Jornal Bras. Med 2 3,3
Revista Chil. Nutr 1 1,6
Revista Argentina Cir 1 1,6
Metro Cienc 1 1,6
Gac. Méd. México 1 1,6
Ginecol. Obstetr. México 1 1,6
Cuand. Cir 1 1,6
Acta Gastroenterol. Latinoam 1 1,6
Boletim Soc. Peru Med. Interna 1 1,6
Não especificado 2 3,3
Total 60 100

86
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

Percebe-se que em 40% dos resumos não há população


especificada. Em 36,6% dos resumos a população descrita
são adultos (homens e mulheres) e 16,6% apenas mulheres.
Poucas são publicações com crianças e/ou adolescentes,
perfazendo 5%, conforme pode ser visto na tabela 4.

Tabela 4. Distribuição por população

População f %
Adultos (mulheres) 10 16,6
Adultos (mulheres e homens) 22 36,6
Crianças, adolescentes 3 5,0
Animal (cão) 1 1,6
Outros (não especificados e
24 40
ausentes)
Total 60 100

Um estudo sobre a prevalência de sobrepeso e obesidade


em crianças, adolescentes, adultos e idosos brasileiros das
regiões nordeste e sudeste do Brasil, mostraram que a pre-
valência de sobrepeso e obesidade é maior no sexo feminino
sendo que mais da metade das mulheres das regiões nor-
deste e sudeste do Brasil, com idade entre 50 e 69 anos, têm
sobrepeso e/ou obesidade. A comparação de estudos de pre-
valência de sobrepeso e obesidade na infância e adolescên-
cia é dificultada pela escassez de estudos populacionais
nacionais e diversidade de critérios utilizados na avalia-
ção nutricional (ABRANTES; LAMOUNIER; COLOSIMO,
2003).
Magalhães e Mendonça (2003) verificaram a prevalên-
cia de sobrepeso e obesidade em adolescentes de 15 a 19
anos das regiões Nordeste e Sudeste. Concluíram que há
sobrepeso e obesidade em 8,45% na região Nordeste e 11,53%
no Sudeste. Na América Latina, tem sido verificado um
aumento de obesidade em adolescentes quando compara-
dos a crianças (KAIN; VIO; ALBALA, 2003).

87
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Tabela 5. Tipo de delineamento de pesquisa

TP f %
Empírico 36 60
Trabalho teórico 20 33,3
Não especificado 4 6,6
Total 60 100

Na tabela 5 estão os delineamentos empregados nas pes-


quisas. O empírico compreende os trabalhos que apresen-
tam procedimento empírico de coleta de dados, podendo ser
por meio de comparação de grupos, estudo prospectivo, es-
tudo de caso ou relato de experiência clínica. O trabalho
teórico envolve revisão da literatura e estudos de meta-aná-
lise. Nos trabalhos analisados 60% empregaram delinea-
mento empírico e 33,3% representam trabalhos teóricos.
Esses resultados podem ser relacionados a concentração
de estudos na área médica, conforme já foi mostrado ante-
riormente, no qual os autores discutem métodos, procedi-
mentos, técnicas cirúrgicas, bem como avaliam o emprego
e atestam a eficácia de tratamentos para pacientes que so-
frem de obesidade grau III.
Dos resumos analisados, apareceram cinco instrumen-
tos de avaliação. Isso indica a carência de medidas que ava-
liem o aspecto psicológico desses pacientes, o que pode ser
visto na tabela 6.

Tabela 6. Distribuição por instrumentos

Instrumentos f %
Short-form Health Questionnaire 1 1,6
Dutch Eating Behavior Questionnaire 1 1,6
Desenho da Figura Humana 1 1,6
Millon Clinical Multiaxial Inventory II 1 1,6
Dutch Personality Questionnaire 1 1,6
Ausentes 54 90
Total 60 100

88
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

Com relação ao método estatístico, percebe-se os estu-


dos de correlação em 10% da produção. O destaque é o não
emprego de método estatístico, correspondendo a 85%. Tam-
bém apareceram outros métodos de análise estatística com
o percentual de 1,6% cada um, conforme tabela 7.
Tabela 7. Método estatístico

Métodos f %
Correlação 6 10,0
Teste de Mann-Whitney 1 1,6
Confiança 1 1,6
Regressão 1 1,6
Nenhum método 51 85,0
Total 60 100

Considerações finais
De acordo com o levantamento da produção científica
sobre este tema específico, percebe-se a crescente preocu-
pação com o tratamento da obesidade e os problemas que
podem advir para a piora na saúde.
De acordo com os resultados obtidos, o número de pro-
duções que em 1998 era de apenas 8,3% aumentou para
36,6% em 2002. Destaque para publicações com três auto-
res (33,3%) e predominância de publicações brasileiras
(30%), mostrando o avanço em termos de discussão e em-
prego das cirurgias bariátricas. Também foi observado uma
maior concentração de periódicos da área médica (70%), de
estudos empíricos (60%) e de faixa etária adulta (36,6%).
A proporção de publicações na área médica é prova-
velmente verificada pelo crescente emprego da cirurgia
bariátrica como tratamento eficaz para redução de peso
e para melhorar a qualidade de vida de indivíduos obesos
mórbidos. Tal fato ocorre porque o que tem se verificado é
a ineficácia de outras formas de tratamento como dietas
hipocalóricas associadas a exercícios físicos, ou mesmo o

89
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

uso de medicamentos. Com isso, há um investimento e uma


preocupação constante de melhorar os procedimentos clí-
nicos, encontrar novas formas de aperfeiçoar as técnicas
cirúrgicas ou o estudo de outros procedimentos menos in-
vasivos de tratamento desses pacientes.
Por outro lado, foi observada a carência de estudos que
avaliam os aspectos psicológicos presentes na obesidade
mórbida bem como, instrumentos de avaliação psicológica.
Sabe-se que esses pacientes apresentam problemáticas emo-
cionais e às vezes psicopatológicas que não são eliminadas
apenas com a possibilidade de perda de peso proporcionada
pela cirurgia. Um outro ponto que também merece atenção
está relacionado à escassez de estudos sobre obesidade in-
fantil e/ou juvenil, que têm crescido significativamente.
Também não foram encontradas pesquisas que associam
os aspectos de prevenção da obesidade e promoção da saú-
de, que é necessário pois trata-se de um problema de saúde
pública
Este levantamento possibilitou inferir apenas sobre re-
sultados parciais, permitindo reflexões sobre o que se está
produzindo nessa área nos últimos cincos anos. Talvez fos-
se necessário complementar e/ou cruzar com outras bases
de dados.

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92
4. SOBRE A ELABORAÇÃO E UTILIZAÇÃO
DE ESTUDOS DE CASO NA PESQUISA
CIENTÍFICA E NA PRÁTICA PROFISSIONAL
EM PSICOLOGIA

Rodrigo Sanches Peres


Manoel Antônio dos Santos

ESTUDOS DE CASO: HISTÓRICO, ATUALIDADE E


CARACTERÍSTICAS

O termo “estudos de caso” usualmente é utilizado para


fazer referência a um tipo de estratégia metodológica ado-
tada tanto em pesquisas científicas quanto em práticas pro-
fissionais que, como será discutido adiante, apresenta
características consideravelmente peculiares. Nos últimos
anos os estudos de caso têm sido cada vez mais emprega-
dos, de modo que, como assinala Stake (2000), atualmente
podem ser apontados como uma das estratégias de investi-
gação mais comuns em diversas áreas do conhecimento.
Cumpre assinalar, no entanto, que a utilização de estudos
de caso em trabalhos voltados à produção do conhecimento
não é um fenômeno recente, mas sim uma antiga tradição,
uma vez que, como aponta Boulanger-Balleyguier (1971),
as reflexões desenvolvidas pelos pensadores do período clás-
sico seguiam basicamente os mesmos parâmetros que nor-
teiam a execução das investigações que adotam a estratégia
metodológica em questão na atualidade.
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

A Medicina pode ser considerada, de acordo com Becker


(1993), a primeira área do conhecimento a utilizar estudos
de caso em larga escala na produção do conhecimento. Des-
sa forma, inicialmente os estudos de caso possuíam um
enfoque prioritariamente diagnóstico e visavam basicamen-
te à análise de um sujeito específico ou de determinados
grupos clínicos. Nas últimas décadas, contudo, as ciências
humanas e sociais passaram a adotar os estudos de caso
como estratégia metodológica de pesquisas e práticas pro-
fissionais com maior freqüência. Conseqüentemente, tanto
o objeto quanto o enfoque das investigações que empregam
estudos de caso têm se modificado. Nos dias de hoje, por-
tanto, os estudos de caso abrangem uma ampla gama de
objetos e possuem os mais diversificados enfoques.
As pesquisas médicas pioneiras na utilização de estudos
de caso usualmente visavam à identificação e à compreen-
são dos fatores associados à gênese e à evolução das doen-
ças. Essas pesquisas, portanto, privilegiavam, na maioria
das vezes, a análise qualitativa dos dados coligidos. Como
ressalta Triviños (1992), possivelmente por isso alguns au-
tores consideram que os estudos de caso se prestam essen-
cialmente a trabalhos qualitativos. Em contrapartida, outros
autores apontam que os estudos de caso também podem ser
empregados em pesquisas quantitativas, uma vez que em
determinadas áreas do conhecimento a quantificação de in-
formações é imprescindível para a análise em profundidade
do objeto de investigação (LÜDKE; ANDRÉ, 1986; BRUYNE;
HERMAN; SCHOUTHEETE, 1991; STAKE, 2000).
Mas o que caracteriza um estudo de caso? Antes de abor-
dar diretamente essa questão, faz-se necessário discutir o
que caracteriza um caso a ser estudado cientificamente. De
acordo com Stake (2000), somente pode ser considerado um
caso passível de investigação científica um sistema inte-
grado, unitário e multifacetado, ou seja, o resultado da com-
binação de diversas variáveis, sejam elas sociais, biológicas,

94
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

psicológicas, culturais, econômicas ou de qualquer outro


tipo. Levando-se em consideração tal pressuposto, nota-se
que nem todos os objetos de pesquisas podem ser estudados
cientificamente mediante o emprego da estratégia metodo-
lógica em questão. Em contrapartida, evidencia-se também
que, ao contrário do que se poderia pensar a princípio, um
caso pode ser um grupo de pacientes portadores de deter-
minada psicopatologia, uma comunidade, um hospital, uma
empresa, uma sala de aula ou uma greve de operários, por
exemplo, e não apenas um único indivíduo.
Tendo em vista o que precede, pode-se definir o que
caracteriza um estudo de caso. Em linhas gerais, a maio-
ria dos autores especializados defende que a análise em
profundidade do objeto de investigação em questão e a
preocupação com o aspecto unitário do mesmo são as ca-
racterísticas principais de um estudo de caso (GOODE;
HATT, 1979; LÜDKE; ANDRÉ, 1986; TRIVIÑOS, 1992;
YIN, 1994; CHIZOTTI, 2000; STAKE, 2000). Essa defini-
ção sugere que os estudos de caso se destacam como um
valioso recurso não apenas para a execução de pesquisas
científicas, mas também para o desenvolvimento de práti-
cas – sejam elas clínicas, organizacionais, educacionais ou
de qualquer outro tipo – em Psicologia. Não obstante, mui-
tos psicólogos encontram dificuldades para utilizar adequa-
damente a estratégia metodológica em questão ou para
divulgar os resultados obtidos mediante sua utilização.
Assim sendo, o presente trabalho foi elaborado com o
objetivo de delinear algumas orientações práticas para o
planejamento, a execução e a divulgação de estudos de caso
em Psicologia. Para tanto, executou-se uma breve revisão
da literatura especializada mediante a consulta de diver-
sos manuais de metodologia científica nacionais e interna-
cionais disponíveis nas principais bibliotecas universitárias
do país. Ademais, cumpre assinalar que, antes de se dedi-
car diretamente ao exame da referida questão, considerou-

95
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

se pertinente apresentar algumas considerações gerais acer-


ca das finalidades norteadoras da execução de estudos e dos
principais pressupostos epistemológicos aos quais a referi-
da estratégia metodológica se encontra associada.

FINALIDADES NORTEADORAS DA EXECUÇÃO DE


ESTUDOS DE CASO

O que deve nortear a utilização de um estudo de caso: a


preocupação com a elaboração de “leis universais” ou o in-
teresse na compreensão de um objeto específico? À primei-
ra vista, poder-se-ia cogitar que, quando utilizados no
contexto do desenvolvimento de práticas psicológicas, os
estudos de caso devem ter como meta básica a compreen-
são de um objeto específico, ao passo que, quando emprega-
dos na execução de pesquisas científicas, devem visar
essencialmente a formulação de hipóteses generalizáveis
capazes de favorecer o entendimento de outros objetos. To-
davia, a pergunta em pauta não admite respostas reducio-
nistas como essa, uma vez que a finalidade norteadora da
utilização de estudos de caso em pesquisas científicas não é
definida de forma consensual pelos teóricos especializados.
Diversos autores – dentre os quais se destacam Campbell
e Stanley (1970), Kerlinger (1980) e Almeida e Freire (1997),
por exemplo – assinalam que, quando visam exclusivamente
à análise aprofundada das características de um objeto
em particular, os estudos de caso não podem, em última
análise, ser considerados cientificamente adequados, pois
não possibilitam generalizações capazes de subsidiar a
compreensão de objetos de outras pesquisas. Em contra-
partida, outros autores acreditam que estudos voltados
exclusivamente à compreensão de casos específicos são
tão válidos do ponto de vista científico quanto pesquisas
que visam essencialmente a obtenção de resultados ge-
neralizáveis.

96
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

Nesse sentido, Selltiz et al. (1965) afirmam que o estudo


de certos objetos em particular é perfeitamente justificável
em pesquisas científicas, uma vez que fornece – ainda que
indiretamente – subsídios para investigações posteriores,
contribuindo, assim, para a compreensão de objetos mais
comuns. Lüdke e André (1986) também defendem a inves-
tigação de objetos “atípicos”, mas adotam uma postura ain-
da mais flexível, pois acreditam que os pesquisadores
interessados em executar estudos de caso devem visar pri-
mordialmente à análise das características particulares do
objeto em investigação e delegar à identificação de “leis
universais” um papel secundário.
Stake e Trumbull (1982), por sua vez, propõem uma re-
solução a esse impasse teórico. Para tanto, apóiam-se no
conceito de “generalização naturalística”. Segundo os au-
tores em questão, o relato de qualquer estudo de caso, inde-
pendentemente de focalizar a compreensão de um objeto
específico ou a formulação de “leis universais”, oferece ao
leitor a possibilidade de estabelecer generalizações natura-
lísticas, ou seja, associar dados oriundos de suas experiên-
cias pessoais prévias com as análises elaboradas pelo
pesquisador acerca do objeto investigado. Essas generali-
zações permitem ao leitor identificar quais das interpreta-
ções formuladas pelo autor do relato do estudo de caso são
efetivamente pertinentes e aplicáveis a seu objeto de inves-
tigação.
Nos últimos anos outros autores também têm proble-
matizado essa questão e proposto, assim como Valles (1997),
que, quando utilizados em pesquisas científicas, os estudos
de caso se prestam, na realidade, tanto à compreensão de
certos objetos específicos quanto à formulação de generali-
zações. Não obstante, os pesquisadores interessados em
executar estudos de caso adequados do ponto de vista cien-
tífico devem, como ressaltam Bogdan e Biklen (1997), defi-
nir com clareza o objetivo principal da investigação e adotar

97
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

os procedimentos metodológicos apropriados para atingi-


lo. Se a finalidade básica do estudo for estabelecer “leis
universais” para um determinado fenômeno, o pesquisa-
dor deverá analisar casos considerados “típicos”. Por ou-
tro lado, se o pesquisador estiver mais interessado em
compreender a fundo certo objeto em particular, deverá op-
tar por investigar casos “atípicos”.
Além disso, faz-se necessário destacar que os estudos de
caso utilizados no contexto do desenvolvimento de práti-
cas profissionais não necessariamente devem visar apenas
à compreensão do objeto de investigação. Em muitas situa-
ções, a elaboração de hipóteses generalizáveis mostra-se de
enorme relevância, pois pode fornecer subsídios para o pla-
nejamento e a execução de intervenções a serem desenvol-
vidas junto a outros objetos. Nota-se, conseqüentemente,
que o profissional deve saber com clareza quais questões
pretende responder ao optar pela execução de um estudo de
caso em sua prática profissional para que não se enverede
por percursos metodológicos equivocados.

PRESSUPOSTOS EPISTEMOLÓGICOS INERENTES À


EXECUÇÃO DE ESTUDOS DE CASO

A literatura especializada aponta que devem ser levados


em consideração três pressupostos epistemológicos bási-
cos para que se possa executar adequadamente um estudo
de caso. Em primeiro lugar, faz-se necessário partir do prin-
cípio de que o conhecimento se afigura como algo inacabado
e em constante (re)construção. Desse modo, o profissional
interessado em utilizar a estratégia metodológica em ques-
tão deverá empregar seu referencial teórico não como um
conjunto de proposições inquestionáveis, mas sim como o
ponto de partida para a busca de novas questões – e, conse-

98
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

qüentemente, de novas respostas – durante o desenvolvi-


mento de suas pesquisas ou práticas. Ademais, é impres-
cindível se manter constantemente atento a novos elementos
que poderão ser posteriormente incluídos no estudo e a di-
mensões adicionais do objeto sob investigação que eventu-
almente mostrar-se-ão relevantes para a análise do caso
no decorrer do trabalho (LÜDKE; ANDRÉ, 1986).
Em segundo lugar, é preciso ter em mente que o objeto de
estudo representa um todo complexo e multifacetado, e não
a mera soma de suas partes constituintes. Deve-se anali-
sar, assim, uma multiplicidade de aspectos do objeto sob
investigação para que seja possível compreender seu cará-
ter unitário. Em função disso, o profissional não raro ver-
se-á frente à necessidade de integrar aos dados psicológicos
do objeto sob investigação informações de diferentes tipos
– sejam elas sociais, biológicas, culturais, econômicas ou
de qualquer outro caráter – para que a reunião de elemen-
tos capazes de subsidiar o cruzamento de informações e a
refutação ou confirmação de suas hipóteses se torne viável
(GOODE; HATT, 1979).
Em terceiro lugar, para que se possa executar adequada-
mente um estudo de caso se deve levar em consideração que
a realidade pode ser compreendida a partir de diversas óti-
cas. Assim sendo, é importante analisar o objeto sob inves-
tigação em função do emprego de distintos olhares. Ao
executar um estudo de caso o profissional deve, portanto,
privilegiar uma perspectiva de análise, mas não acreditar
que a mesma se afigura como a única possível. Em contra-
partida, também não deve ser negligente no que se refere à
formulação de hipóteses capazes de favorecer a compreen-
são do objeto sob investigação, mas sim elaborar modelos
explicativos claros e objetivos (BRUYNE; HERMAN;
SCHOUTHEETE, 1991).

99
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

ORIENTAÇÕES PRÁTICAS PARA O PLANEJAMENTO E


EXECUÇÃO DE ESTUDOS DE CASO

Segundo Yin (1994), cinco componentes são especialmen-


te importantes para o planejamento e desenvolvimento de
um estudo de caso, a saber: 1) uma questão de estudo perti-
nente e bem definida; 2) um objetivo preciso; 3) uma unida-
de de análise – isto é, um caso – relevante; 4) uma vinculação
lógica entre os dados apresentados e o propósito do estudo
e 5) critérios claros para interpretar os dados coletados. O
referido autor destaca ainda que a definição dos três pri-
meiros componentes exige do profissional reflexões acerca
do objeto a ser estudado e das estratégias de coleta dos da-
dos a serem empregadas, ao passo que a definição dos dois
últimos componentes depende de considerações acerca dos
procedimentos de análise dos dados a serem adotados. Se-
guindo esse raciocínio, nota-se que, a despeito de serem di-
daticamente distintos uns dos outros, os cinco componentes
básicos de um estudo de caso devem ser vistos pelo profis-
sional como partes indissociáveis de um todo para que seja
possível a compreensão das múltiplas facetas do objeto de
investigação.
Partindo do pressuposto de que os estudos de caso – se-
jam eles empregados no contexto do desenvolvimento de
pesquisas ou de práticas – possuem como principal meta a
produção do conhecimento, o profissional deve tomar como
ponto de partida uma questão inicial pouco específica e de-
linear seu objetivo com mais clareza mediante a evolução
do próprio trabalho. Essa questão pode ser definida em fun-
ção de consultas à literatura especializada, experiências ou
observações do próprio profissional, depoimentos de espe-
cialistas no tema, conhecimento prévio do objeto de inves-
tigação propriamente dito ou de diversas outras formas.

100
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

Com efeito, a questão inicial do estudo pode, de acordo com


Lüdke e André (1986), ser aprofundada, reformulada ou até
mesmo abandonada na medida em que se mostra de maior
ou menor relevância para a compreensão do caso em pauta.
Mesmo após ter delimitado a questão inicial do estudo
de caso, o profissional deve se manter constantemente atento
a novos elementos capazes de favorecer a compreensão do
objeto sob investigação. Uma estratégia profícua para tan-
to é avaliar seqüencialmente os dados, ao invés de concen-
trar as análises após o término da coleta (Becker, 1993).
Esse procedimento pode ajudar o profissional a visualizar
o objeto de investigação como ele realmente é, e não como
seria desejável que ele fosse. Além disso, o profissional pode-
rá, a partir da análise seqüencial das informações, identifi-
car e corrigir eventuais falhas metodológicas do procedimento
de coleta de dados, o que indubitavelmente fornecerá subsí-
dios para a obtenção de uma compreensão mais abrangente
do caso em pauta.
Yin (1994) salienta que o profissional interessado em exe-
cutar estudos de caso deve ser capaz de: a) elaborar boas per-
guntas; b) ouvir com atenção o que os participantes da
investigação têm a dizer; c) não se deixar influenciar por seus
próprios preconceitos e ideologias; d) se adaptar às situa-
ções que não estavam previstas no plano inicial da investi-
gação; e) confrontar dados supostamente incompatíveis e f)
contornar viéses que podem contaminar a investigação. Cum-
pre assinalar, entretanto, que essas características podem
ser adquiridas ou aperfeiçoadas à medida que o profissional
evolui tecnicamente, de modo que a ausência de uma ou mais
delas não deve ser vista como um empecilho intransponível
para a execução de um estudo de caso.
Como salientado anteriormente, os estudos de caso de-
vem possibilitar a compreensão da totalidade do objeto de
investigação. Em contrapartida, o caso deve ser bem deli-

101
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

mitado e possuir contornos precisos, uma vez que analisar


todos os aspectos de um objeto é uma tarefa inexeqüível do
ponto de vista prático, uma vez que as possibilidades de aná-
lise são inesgotáveis. Para superar tal paradoxo se faz ne-
cessário levar em conta que a totalidade de qualquer objeto
de estudo é uma construção essencialmente intelectual, pois
todas as suas variáveis constituintes se encontram, em últi-
ma instância, relacionadas entre si (GOODE; HATT, 1979).
Assim sendo, o profissional deve executar recortes e focali-
zar determinados aspectos que considera de maior relevân-
cia para que não se perca em um emaranhado de informações
e interpretações.
A coleta dos dados necessários à realização de um estudo
de caso exige alguns cuidados fundamentais, pois o profissio-
nal deve reunir informações detalhadas a ponto de possibili-
tar a compreensão da totalidade do objeto de análise.
Conseqüentemente, muitas vezes se faz necessário executar a
chamada “triangulação de métodos” (ALVES-MAZZOTTI;
GEWANDSNADJER, 2000), ou seja, a utilização de diferentes
métodos de coleta – tais como análise documental, entrevis-
tas, observações, gravações em áudio ou vídeo, por exemplo –
e técnicas de análise de dados – sejam elas qualitativas, quan-
titativas ou quanti-qualitativas (CHIZZOTTI, 2000). Além
disso, o profissional deve executar também a “triangulação
de fontes”, isto é, consultar mais de uma base de informações
– o sujeito pesquisado, seus amigos e familiares, por exemplo.
Tendo em vista o que precede, evidencia-se que, como
postula Stake (2000), o pesquisador interessado em execu-
tar um estudo de caso possui seis “responsabilidades bási-
cas”, a saber: 1) definir o caso mediante a conceitualização
do objeto do estudo; 2) selecionar e delimitar a questão ou o
fenômeno a ser focalizado no estudo; 3) buscar referenciais
teóricos capazes de auxiliar na compreensão do objeto –
tomando o cuidado de não se deixar limitar pelos mesmos;

102
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

4) executar a triangulação de fontes e de métodos – e se


possível também a triangulação de investigadores e de teo-
rias; 5) buscar interpretações alternativas para os dados
coletados e 6) elaborar asserções – e generalizações, quan-
do possível – sobre o caso.

ORIENTAÇÕES PRÁTICAS PARA A APRESENTAÇÃO DE


ESTUDOS DE CASO

Vale destacar também que a divulgação dos resultados


obtidos mediante o emprego de um estudo de caso – seja ela
direcionada à comunidade científica ou à equipe multidis-
ciplinar na qual o profissional se encontra inserido – tam-
bém deve ser norteada em função de alguns parâmetros
básicos. Ao analisar um relato de estudo de caso muitas
vezes se tem a impressão de que as interpretações propos-
tas pelo profissional não são devidamente compatíveis com
as informações apresentadas pelo mesmo acerca do objeto
de investigação. Na maioria das situações isso ocorre por-
que o profissional não articulou de forma sistematizada os
dados coletados e as análises apresentadas no relato do
caso. Solicitar a colaboração de outros profissionais na
execução da análise dos dados indubitavelmente se afigu-
ra, segundo Goode e Hatt (1979), como o procedimento mais
recomendável para que tais dificuldades possam ser supe-
radas. Ademais, o profissional deve ser criterioso ao execu-
tar recortes, articular informações e privilegiar certas
interpretações em detrimento de outras possíveis.
Lüdke e André (1986) afirmam que se deve empregar em
um relato de estudo de caso uma linguagem mais acessível
do que aquela que geralmente se utiliza em relatos de pes-
quisa de outros tipos, uma vez que a comunicação direta e
objetiva pode facilitar o trabalho do profissional de reunir
de forma coerente um grande volume de informações. Além

103
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

disso, os relatos de estudos de caso apresentados com cla-


reza podem “aproximar” o interlocutor do caso analisado,
o que indubitavelmente favorecerá a compreensão do tra-
balho desenvolvido. Não obstante, o profissional não deve
deixar de abordar os múltiplos aspectos de seu objeto de
análise e de explicitar os dados que fundamentam as hipó-
teses apresentadas.
Muitos profissionais sentem-se demasiadamente seguros
das análises que elaboraram acerca do caso que foi objeto de
seu estudo. Possivelmente isso ocorre porque o profissio-
nal que executa um estudo de caso usualmente coleta uma
grande quantidade de dados e se dedica tão a fundo ao obje-
to de investigação que se sente emocional e inconsciente-
mente envolvido com suas próprias análises a ponto de
muitas vezes considerá-las inquestionáveis. Em função dis-
so, tende a superestimar o conhecimento que construiu acer-
ca do caso analisado e a negligenciar no relato do estudo
suas eventuais incertezas em relação a determinados as-
pectos que não foram devidamente elucidados. De acordo
com Goode e Hatt (1979), solicitar a outros profissionais a
leitura analítica do relato do estudo de caso se destaca como
o melhor meio de evitar que esse sentimento de onipotên-
cia comprometa a confiabilidade do trabalho.
Após coletar uma série de informações a respeito de seu
objeto de análise, o pesquisador que executa um estudo de
caso possivelmente terá em mãos elementos suficientes para
propor algumas sugestões para a resolução de eventuais
problemas identificados a partir de sua investigação. A apre-
sentação de tais sugestões se destaca como um procedimen-
to de extrema relevância. Cumpre assinalar, no entanto, que
o pesquisador deve priorizar, como destaca Becker (1993),
sugestões viáveis e exeqüíveis, isto é, que estejam efeti-
vamente ao alcance dos envolvidos no caso e que possam
subsidiar futuras intervenções. Além disso, deve se preo-
cupar em propor tanto ações remediativas para o objeto de

104
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

análise em questão quanto medidas preventivas que pos-


sam ser aplicáveis a casos semelhantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tanto as considerações gerais acerca da utilização de


estudos de caso quanto as orientações delineadas ao longo
deste trabalho podem contribuir para que outros profissio-
nais venham a executar investigações científicas e conduzir
práticas mediante a utilização da estratégia metodológica
em pauta com maior segurança.
Ademais, desde que as devidas especificidades sejam
observadas, algumas das orientações apresentadas também
podem ser úteis para profissionais de outras áreas do co-
nhecimento interessados em conduzir estudos de caso.
Por fim, vale destacar que se fazem necessários novos
trabalhos de caráter teórico-metodológico para que as ques-
tões que foram introduzidas no presente estudo possam ser
discutidas de forma mais pormenorizada.

Referências

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Psicologia e Educação. Coimbra: Associação de Psicólogos
Portugueses, 1997.
ALVES-MAZZOTTI, A.J.; GEWANDSNADJER, F. O método nas
ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e
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educação. Porto: Editora Porto, 1997.
BOULANGER-BALLEYGUIER, G. La investigación en ciencias
humanas. Buenos Aires: Amorrortu, 1971.

105
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

BRUYNE, P.; HERMAN, J.; SCHOUTHEETE, M. Dinâmica da


pesquisa em ciências sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1991.
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GOODE, W.J.; HATT, P.K. Métodos em pesquisa social. São
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VALLES, M.S. Técnicas cualitativas de investigación social:
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YIN, R.K. Case study research: design and methods. Thousand
Oaks: Sage, 1994.

106
5. DESOSPITALIZAÇÃO EM
PSIQUIATRIA: o DESEJO DE PERMANECER
INTERNADO – UM ESTUDO DE CASO

Vanessa Cristina Machado


Regina Helena Lima Caldana

A hospitalização psiquiátrica e suas transformações ao


longo do tempo marcam, em grande parte, a história da
loucura. No Brasil, o movimento antimanicomial teve in-
fluência do modelo italiano desenvolvido principalmente
por Basaglia (1991), que buscou uma nova compreensão do
indivíduo em sofrimento mental, nas relações sociais, bus-
cando romper com mecanismos responsáveis pela exclusão
do doente. Os reflexos desse modelo se fizeram sentir numa
política que prioriza a redução progressiva dos leitos em
hospitais psiquiátricos, e sua substituição por leito em hospi-
tais gerais ou por serviços alternativos à institucionaliza-
ção psiquiátrica; concomitantemente, a atenção voltada
para a população de pacientes crônicos passou a priorizar
a criação dos serviços que visassem a reabilitação psicos-
social, permitindo preparação para viver fora do hospital,
e programas de residências terapêuticas alocadas fora das
instituições.
O processo de reabilitação psicossocial, independente-
mente do grau de incapacidade apresentado pelo doente
mental, tem por objetivo oferecer-lhe melhor qualidade de
vida, através de um conjunto de práticas sociais que pro-
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

movam sua inclusão. Não se trata de negar a doença e seus


sintomas, mas de possibilitar que o sujeito faça uso de sua
individualidade e que mantenha marcas pessoais do seu
modo de adoecer, características de sua singularidade. As-
sim, o que se propõe é que se abram espaços para a inclu-
são, o acolhimento e a escuta, numa estratégia de não
invalidação do sujeito, recuperando sua capacidade de ge-
rar sentido e valor social, restabelecendo-se seu valor de
cidadão. Como cidadão, o indivíduo deve recuperar sua au-
tonomia, o que inclui a capacidade de gerar recursos para a
conquista da própria subsistência, do lazer e do habitar,
instâncias que devem ser consideradas para se atingir os
objetivos da reabilitação no sentido de promover trocas so-
ciais e produções próprias (SARACENO, 1999; SCATENA,
2000; SILVA, 2000).
Porém, ainda que o processo de desinstitucionalização
se encontre no auge do seu desenvolvimento, não há como
ignorar o grande número de pessoas atualmente asiladas,
cujas condições refletem a institucionalização e cronifica-
ção de suas patologias, produto da segregação e dos longos
anos de internação.
Considerando o enfoque basagliano de desinstituciona-
lização, ou seja, a desconstrução do aparato manicomial e
a criação de novas formas de tratamento, Morgado e Lima
(1994) lembra que a desinstitucionalização só é possível
quando o contexto maior do setor da saúde já estiver de-
senvolvido, apontando alguns efeitos colaterais da desos-
pitalização quando não há esta infra-estrutura anterior:
desamparo quanto à assistência dos pacientes, reinterna-
ções posteriores produzindo uma “mercadoria-crônica-ro-
tativa”, problemas com a polícia e justiça, e a politização
do movimento de desinstitucionalização como mercadoria
de propaganda partidária.
Goffmann (1974) identifica como características funcio-
nais das instituições asilares a perda de contato com a reali-

108
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

dade externa, o ócio forçado, a perda de familiares e propri-


edades, a medicação indiscriminada e a perda da perspecti-
va de vida fora da instituição; mais do que isso, o autor
chama de “instituição total” um quadro a que se somam
ainda a coletivização de planos e ações que fazem com que
todos os aspectos da vida dos sujeitos sejam tratados como
estruturados e massificados, levando a uma vida fechada e
formalmente administrada.
Nesse mesmo sentido, Bleger (1980) aponta que as orga-
nizações psiquiátricas têm a mesma estrutura do fenôme-
no tratado, e conseqüentemente uma função iatrogênica e
de confirmação da doença; isto, segundo Delgado (1991),
causaria a “neurose institucional”, compondo-se o conjun-
to de fatores do processo de cronificação. Como afirma Basa-
glia (1991), o doente não passa de um corpo institucionalizado
que vive como um objeto. E essa característica provocada
pela instituição é ainda reforçada quando se trata de uma
população cuja estrutura psíquica (psicótica) é marcada pela
posição de objeto que ocupa diante do outro.
Dois aspectos, portanto, o caráter iatrogênico da insti-
tuição e a peculiaridade da estrutura psíquica dessa popu-
lação, fazem do trabalho de ressocialização algo ainda mais
complexo, exigindo um conhecimento em profundidade da
situação, para que não seja vivido pelo morador de um hos-
pital psiquiátrico como um ato de violência, já que, muitas
vezes, a própria posição de “paciente” constitui sua subje-
tividade.
Diante da herança dos modelos de assistência psiquiá-
trica, Campos (1992, p.60) pontua o desafio enfrentado pela
reforma psiquiátrica: “como recuperar pessoas adoecidas
que vivem há anos no cemitério dos vivos?”. Sem dúvida,
para tanto, é preciso que se conheça a fundo a história de
vida do paciente, incluindo-se todo seu processo de inter-
nação e cronificação, além de sua psicopatologia. Esse co-

109
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

nhecimento parece crucial na compreensão dos mecanis-


mos que dificultam ou impedem um morador de hospital
psiquiátrico de romper com essa condição, em situações em
que somente seria necessário seu consentimento; e é essa a
situação com que não raro se deparam aqueles que atuam
em instituições psiquiátricas.
Assim, o objetivo desse trabalho é, através de um estudo
de caso, auxiliar na compreensão de como fatores externos
(institucionais e sociais) e internos (estrutura e dinamis-
mo psíquico) podem influenciar na cronificação e no dese-
jo, por parte do paciente, de permanecer em internação,
quando existem condições de alta do ponto de vista da au-
tonomia no desenvolvimento das atividades necessárias à
manutenção cotidiana, e conseqüentemente apontar as-
pectos importantes para a intervenção nestes casos.

Método
Considerando que vários são os fatores envolvidos na
recusa à desospitalização, o estudo de caso de abordagem
qualitativa pareceu ser o meio de trabalho que melhor abor-
dava a complexidade e a multifatoriedade da problemática
(LÜDKE; ANDRÉ, 1986; BRUYNE, 1991; COSTA, 2000).
Dado o caráter exploratório do estudo, considerou-se im-
portante a obtenção de dados predominantemente descriti-
vos e provenientes de várias fontes, abordando a situação
de todos ângulos possíveis. Além disso, considerou-se o
ponto de vista dos participantes e atribuições de significa-
dos feitas por eles como de extrema importância, por per-
mitirem uma busca de maior clareza do dinamismo interno
da situação. De acordo com Grinder (1987) e Biasoli-Alves e
Dias da Silva (1992), nas abordagens qualitativas o pesqui-
sador tenta interpretar as circunstâncias do ponto de vista
do sujeito estudado, dentro do contexto social e integral.

110
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

Definiu-se como foco para o estudo de caso um paciente


crônico morador de uma instituição psiquiátrica que, na
avaliação da equipe, reunisse condições de alta, conside-
rando-se a dimensão dos recursos externos do ponto de vis-
ta financeiro, social e pessoal (recebimento de benefício pela
deficiência, recursos à vida fora do hospital, condições fa-
miliares), mas que se recusasse a prosseguir nas etapas
previstas no processo de desospitalização, e que consentis-
se em participar da pesquisa.

PROCEDIMENTOS
A partir de contato profissional já estabelecido pelas pes-
quisadoras, foi definido como local para a localização do
participante deste estudo uma instituição psiquiátrica do
interior do estado de São Paulo. Mediante o aval da Insti-
tuição para o desenvolvimento do projeto e sua aprovação
pelo Comitê de Ética da FFCLRP/USP, o paciente foi esco-
lhido, sendo apresentados a ele os objetivos e processos pre-
vistos na pesquisa, que somente teve seu início após a
assinatura do consentimento livre e esclarecido (Anexo 1)1.
Dentro da proposta de conhecer a problemática em fun-
ção de suas diferentes vertentes, foram incluídas, como fon-
tes de coleta de dados, entrevistas realizadas com o próprio
paciente, com funcionários da instituição, e com um fami-
liar, e análise das informações contidas dos prontuários
arquivados no hospital, que registram observações sobre o
paciente e o tratamento recebido durante a internação2. O
paciente foi entrevistado segundo uma modalidade especial
de entrevista, a história de vida temática, que consiste em

1
Considerou-se pertinente, dadas as características da situação, que o termo de consentimento fosse
assinado também pelo próprio paciente, além de pelo seu representante legal.
2
Lüdke e André (1986) apontam que os documentos são fontes de informação contextualizadas,
surgidas no contexto e dando informações deste contexto. Além disso, a análise documental permi-
te complementar e ratificar informações obtidas por outras técnicas e ainda desvelar aspectos
novos sobre a questão estudada, possibilitando maior validade da pesquisa.

111
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

um relato livre da história de vida seguido de uma entrevis-


ta semi-estruturada (QUEIROZ, 1987; CALDANA, 1998). As
entrevistas com os funcionários e o familiar, também semi-
estruturadas, seguiram roteiros específicos3. As entrevistas
foram gravadas e transcritas integralmente, e as informa-
ções do prontuário foram registradas por escrito.
Os dados foram analisados qualitativamente, buscando-
se sua sistematização em pontos discordantes e regulares,
através de análise intensiva e gradativa dos dados, elaboran-
do-se a redação final baseada nas próprias verbalizações dos
entrevistados e termos dos registros escritos, apoiada na li-
teratura e norteada pelos objetivos do trabalho (BIASOLI-
ALVES; DIAS DA SILVA, 1992, CALDANA, 1998).

A PESSOA EM QUESTÃO
João, o nome pelo qual trataremos o paciente4 que é o
foco deste trabalho, tem 78 anos. Foi internado em 1944,
com a idade de 21 anos. Em 1982 houve uma alta médica
hospitalar, porém João se recusou a ir embora. Hoje vive
em um setor que abriga pacientes com melhores condições
de cuidados pessoais e preservação psíquica, em pequeno
número, e que tem como objetivo o trabalho de reabilitação
preparatório para as próximas etapas em que ocorreriam
transferências que o levariam a pensões protegidas. João
se recusa a seguir neste percurso, preferindo permanecer
na ala onde se encontra; mesmo tendo sido encaminhado à
Psicologia para se trabalhar a possibilidade de desospitali-
zação, mostrou-se irredutível.

OS OUTROS DEPOENTES
Foram entrevistados dois funcionários; um trabalha há
25 anos no hospital como auxiliar de enfermagem, e está
3
Os roteiros de todas as entrevistas estão apresentados no Anexo 2.
4
Nome este, como todos os outros que aparecerem, fictício.

112
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

no setor em que João se encontra desde sua criação; o outro


é um profissional de nível superior, trabalha no hospital há
pouco mais de um ano também no setor, e é profissional de
referência de João.
Tereza, uma irmã de João, foi a pessoa da família entre-
vistada. Com 76 anos, Teresa mora em uma casa própria,
com dois quartos, sala, cozinha e banheiro, na mesma cida-
de onde se localiza a instituição em que João encontra-se
internado. Teresa divide a casa com uma outra irmã que
fica a seus cuidados por viver acamada em função de pro-
blemas de saúde. Cada uma recebe aposentadoria no valor
de um salário mínimo.

OS DOCUMENTOS
A análise documental voltou-se para as informações con-
tidas nos prontuários arquivados no hospital. O prontuá-
rio é extenso, parte dele se encontra no setor onde vive João
e parte na área administrativa do hospital. Não segue uma
ordem cronológica, as páginas são desorganizadas e faltam
algumas delas. Vários são os profissionais que fazem ano-
tações: psiquiatras, psicólogos, assistente social, terapeu-
ta ocupacional, profissionais do corpo da enfermagem e
clínico. As anotações em geral são breves e vagas, sendo
que até 1970 contém poucas informações, e desta data até o
momento de realização da pesquisa contém principalmente
a evolução psiquiátrica.

Resultados
O QUADRO TRAÇADO
Para entendermos a condição atual de João, partiremos
de sua história, montada a partir das fontes utilizadas na
coleta dos dados.
Até os 13 anos João morou na fazenda com seus pais e
oito irmãos, e segundo sua irmã “era muito calado”. Desde

113
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

cedo trabalhou, e por isso “nunca namorou”: “tinha que


trabalhar muito e ganhava muito pouco”. Estudou até quar-
ta série, e diz que foi um aluno mediano.
Conta que apanhava muito do pai, que “em casa eu acha-
va que era mais desprezado que os outros”, e que “toda sua
família tinha ódio” dele. Na mocidade tornou-se violento al-
gumas vezes, como quando agrediu seus colegas de futebol.
Diz que se sentia incompreendido e contrariado, mas que
mesmo assim era o “líder da turma”, uma posição que so-
mente perde quando acaba por “apanhar dos colegas”, pos-
sibilidade para a qual já havia sido alertado pela sua mãe.
Resolveu então seguir os conselhos da mãe e procurar a
religião (no caso, católica). Estava nessa época com 21 anos
de idade e já morava em Ribeirão Preto. Passou a freqüen-
tar a igreja e leu o livro “Luz Perpétua”; refere-se a essa
leitura como um marco, pois, a partir dela, “passou a se
comportar como os santos de que falava o livro”. Conta que
se “excedia na igreja” gritando, mas que depois ficou mudo:
“fiquei que nem uma criança”.
Em janeiro de 1944, “para impedir que fosse à igreja”,
foi levado pelos padres, “provisoriamente”, ao hospital psi-
quiátrico da cidade, sendo encaminhado ao Juqueri três dias
depois. Por razões de “conveniência de serviços” como se
refere a ficha que o acompanha, após três meses foi trans-
ferido para o macro hospital psiquiátrico da sua cidade, que
estava sendo inaugurado e recebendo pacientes excedentes
de outros hospitais.
Comentado a atitude dos padres na primeira internação,
João diz que “eles acham que meu lugar é aqui”; ele ainda
considera que o retorno ao hospital de sua cidade foi uma
boa “mudança, pois agora ficaria perto da família”.
Recebeu alta em agosto de 1944, mas em casa houve ou-
tra crise, descrita por João: “deitei na cama, veio uma es-
pécie de anja, eu gritava ‘OOHHH’ e subiu uma luz do céu

114
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

e um mau cheiro de baixo da cama, cheiro de carniça”; aca-


bou sendo reinternado. Em outubro deste ano fugiu do hos-
pital e foi até a casa da família, onde ficou por apenas uma
noite: foram buscá-lo novamente, na, segundo João “pior
viagem”.
Após detalhado exame e relatório psiquiátrico em 1946,
chegou-se ao primeiro diagnóstico referido no prontuário:
“esquizofrenia sintomática”, e recomendou-se como melhor
tratamento para o caso a convulsoterapia elétrica. Além
desse tratamento foram realizados a insulinoterapia e ra-
diazol endovenoso, e utilizadas medicações psicotrópicas.
Segundo evoluções psiquiátricas que se iniciaram a
partir da década de setenta, em geral João apresentou
um quadro compensado, com alguns períodos de produções
psicóticas (delírios e alucinações) de cunho místico e para-
nóico, e agitação psicomotora, geralmente após tentativas
de retirada da medicação.
João sempre teve, nos setores por onde passou, algumas
funções como limpeza de refeitório e organização dos quar-
tos, sendo que as liderava à frente de outros pacientes que
o ajudavam. Foi transferido para um primeiro pavilhão de
ressocialização em 1985. Nova transferência veio em 1997,
para um setor que abriga um número menor de pacientes
(26) e que tem por objetivo um trabalho de reabilitação.
Segundo um dos funcionários entrevistados, com esta
última mudança João se distanciou ainda mais dos outros
pacientes e dos próprios funcionários, mas manteve a con-
dição de líder, chegando a ser agressivo verbalmente quan-
do contrariado. Além de líder nas atividades concretas,
também é o representante dos moradores quando há neces-
sidade de posicionamento e sugestões, ainda que essa con-
dição lhe seja ao mesmo tempo cara e difícil: recusando um
convite de participar da reunião de equipe como represen-
tante dos moradores, justificou-se “aqui sou o mais escla-

115
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

recido, lá vou ser o menor”. Para o outro funcionário en-


trevistado, “João é o melhor morador que temos”, conside-
rando-se sua capacidade de auto gestão, sua participação
em atividades extra hospitalares (passeios), no hospital
(grupos, assembléias), e sua capacidade de manifestar-se
tanto em questões práticas quanto pessoais.
Para a equipe, representada pelos dois funcionários en-
trevistados, alguns pontos são considerados importantes
tendo em vista uma possível desospitalização: João faz um
bom trabalho de limpeza no setor, tem boa condição de cui-
dados pessoais e de seus pertences, e um quadro psiquiátri-
co compensado. Porém, lembram que não lhe pode faltar
medicação, pois quando isso acontece geralmente tem uma
crise. E haveria outros pontos que apontam no sentido des-
favorável: sua idade avançada que dificultaria o aprendiza-
do de alguns aspectos de cuidados pessoais que ele ainda
não domina (como por exemplo o preparo de alimentação),
e a possibilidade de o retorno ao ambiente familiar desen-
cadear uma crise, visto sua recusa a tanto e sua fala no
sentido de não haver funcionário presente para “cuidar dele
caso algo lhe aconteça”.
Nos contatos superficiais parecem inexistir os delírios,
já que João normalmente não os verbaliza. Mas falando de
si, depois de um certo tempo de entrevista e de contato com
a pesquisadora, João ainda revela grande envolvimento com
a questão da religião, contando delírios místicos e persecu-
tórios. E é interessante que João comenta a forma como
lida com sua doença com a seguinte expressão: “...muitos
anos de vida, a gente vai tendo experiência, tenho uma vida
longa aqui”.
São interessantes também suas palavras a respeito de
sua situação na instituição e do impasse quanto à possível
desospitalização, em geral permeadas pela questão religio-
sa e de forma paranóica: “vivo de acordo com o que fizeram

116
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

pra mim... foi como a igreja quis”; “aqui [no hospital] sou
obrigado a ficar”, “não tem outro recurso, tem que viver
aqui”: “as pessoas me percebem muito, meu pensamento...
não tenho segredos, qualquer querendo descobre meu se-
gredo... por isso que eu fico aqui”, “meu pensamento, a
transmissão de pensamento, porque o que eu penso o outro
tá sabendo, até hoje sofro influência dos mais conscientes...
ainda, sempre... não dá, não dá pra conviver”, “aqui não
sou observado, lá eu sou... minha vida é pública... por isso
que eu fico aqui, não quero ir pra fora”. A dificuldade de
convivência fora do hospital é apontada por João ainda da
perspectiva da diferença: “é mais fácil conviver aqui, todos
sofrem também, cada um tem sua sentença, um não pode
falar do outro... todo mundo é louco, tudo igual”, com a
ressalva de que “é o louco consciente, nunca perdi o juízo
puxa vida!”.
Como que confirmando essa última ressalva, João colo-
ca pontos concretos que dificultam sua desospitalização: o
perigo e os riscos da vida que acabam deixando as pessoas
“prisioneiras mesmo que livres”, e a falta de recursos fi-
nanceiros e médicos, oferecidos no hospital.
Além destes aspectos, a volta de João à casa da família
parece problemática do ponto de vista da irmã e dele mes-
mo. A irmã coloca impedimentos: são só mulheres na sua
casa, que é pequena, além de seus problemas de saúde, de
sua idade, e dos cuidados que tem que oferecer à irmã aca-
mada: “de jeito nenhum ele pode ficar aqui... é possível ele
ficar no hospital”. Considera difícil mesmo as visitas a João
no hospital, pois por conta da idade e da saúde diz que tem
que ir de taxi, com cujo custo não pode arcar. Fala que pre-
fere que João vá visitá-las, porém não telefona para fazer
esse convite. E as visitas acabam por acontecer duas ou
três vezes no ano, por iniciativa de João; na última delas,
por exemplo, foi sozinho, sem funcionário que o acompa-

117
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

nhasse, usando táxi que pagou com seu próprio dinheiro.


João diz “achar bom ver as irmãs”, mas segundo a irmã as
visitas são rápidas, e “ele não vê a hora de ir embora”.
Quanto a atual assistência do hospital, João aponta seus
aspectos positivos, a melhora ao longo do tempo: “antes
dava choque, agora é remédio”, “agora nóis que é o chefe,
se tem algum problema reclama” e “antes era louco, agora
morador”; além disso, como desde 1997 está aposentado pelo
Benefício do INSS, “agora tem aposentadoria, tem liberda-
de”. Assim, João tem planos “ficar no hospital, passear, tocar
a vida... minha vida agora é boa, ficar aqui, agora tem apo-
sentadoria, tem liberdade”. Afinal, ele faz seu balanço, “ven-
ci na vida... foi um heroísmo”.

Discussão
O objetivo desse trabalho, como apontado anteriormen-
te, é compreender os fatores externos e os fatores internos
que levam um paciente a que, mesmo com condições de ser
desospitalizado, se negue a tal. O material reunido tornou
possível apontar aspectos da relação existente entre os fa-
tores externos e internos, e o significado dado a eles pelo
próprio paciente. Em outras palavras, permitiu que se com-
preendesse a relação particular estabelecida com a insti-
tuição, e seu significado interno, cuja referência é a própria
doença e a forma como lida com ela.
Temos traçado um quadro fruto de 57 anos de interna-
ção, marcado por grande parte da história da psiquiatria.
Assim, após o que parece ter sido inicialmente um tentati-
va de resistência, numa fuga e a volta na “pior viagem”, ao
final de um árduo processo de cronificação, vemos que João
passou a se tornar definitivamente um morador do hospi-
tal, situação que parece definir sua identidade atual.

118
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

A instituição lhe serve de abrigo: João diz que não quer


sair do hospital porque as pessoas o percebem, porque sua
vida é pública, porque lá fora é observado enquanto dentro
do hospital isso não acontece; como coloca Quinet (1997),
esconder-se atrás de barreira de concreto é uma tentativa
de domar o olhar do outro, como se os muros funcionassem
como uma barreira de contenção, como se pudessem barrar
sua “transmissão de pensamento”. Por essa razão é comum
que um sujeito procure abrigo, sendo trancando-se dentro
de casa ou asilando-se em hospitais psiquiátricos.
De fato, um aspecto a ser destacado neste processo é a
aceitação da instituição pelo que é sentido como possibili-
dade de “proteção” oferecida: “aqui todos são iguais, todos
louco”; por mais que exista singularidade dentro do hospi-
tal psiquiátrico, todos estão na mesma condição no que se
refere à loucura. Nesse sentido, coloca Kaes (1991) que a
instituição tem como função a estruturação e o receptácu-
lo do indiferenciado, onde o sujeito é sujeito da instituição,
produzindo a ilusão da coincidência e manutenção da rela-
ção isomórfica entre o indivíduo e o seu grupo. Estar ali
como os outros é uma forma conveniente de não se respon-
sabilizar pela sua real e certa diferença.
Porém, e de forma complementar, João pôde, ao lado des-
ta conveniente “igualdade”, diferenciar-se como superior
aos demais pacientes – “ele é o melhor morador”, e um lí-
der. Assim, o hospital pode ser sentido como “sua casa”,
diferentemente de outros pacientes, como aponta a pesqui-
sa de Scatena (1991), que querem sair do hospital ainda que
saibam de suas remotas possibilidades para tanto. No caso
de João, parece que as três instâncias apontadas por Sara-
ceno (1999) como importantes para a conquista da cidada-
nia puderam ser, ainda que de uma forma particular,
alcançadas: casa, trabalho e lazer. Quanto à casa, João se
apropriou do espaço do hospital, deixando suas marcas nes-

119
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

se local: sua cama, seu armário, suas roupas e objetos pes-


soais. Quanto ao trabalho, apesar de não remunerado, João
tem funções dentro do setor sendo responsável por elas, e
tem ainda seu benefício: “agora tem aposentadoria, tem li-
berdade”. E quanto ao lazer, João é o paciente mais partici-
pativo nos passeios, e ainda tem o hábito de leitura. Portanto,
no hospital João parece ter encontrado uma forma de se
colocar como diferenciado, único, sendo aceito e mesmo
reconhecido por isto. Conquistou sua singularidade não se
perdendo no coletivo, agora “é o chefe”. Tem aquilo que
considera sua “liberdade”, e que, paradoxalmente, perde-
ria, caso de lá saísse.
O hospital, aqui, tem dupla função, alimentando o – con-
siderado por nós, mas não pelo próprio paciente – seu apri-
sionamento, caracterizando-se o impasse. Ao assegurar ao
paciente sua possibilidade de se diferenciar dos outros pa-
cientes, que se encontram mais debilitados – é ele reconhe-
cido pelos outros como “líder”, “o melhor” e por ele próprio
como “o mais esclarecido” - cria-se a condição reforçadora
da cronificação e institucionalização.
Nota-se, de acordo com a informação do funcionário, que
quando o espaço físico fica menor e consequentemente a
possibilidade de contato é maior, João se isola ainda mais,
sugerindo que essa aproximação representa um risco. Há
aqui duas hipóteses: risco de cair na massificação ou a pró-
pria dificuldade de estabelecer relação. Não podemos nos
esquecer dos aspectos paranóides de sua psicose, que faz
sempre presente o risco de aproximação com o outro, per-
cebido como ameaçador, perseguidor e poderoso (podem ler
seus pensamentos, observá-lo e portanto fazê-lo de objeto).
Essa dificuldade em se relacionar, vale a pena apontar,
remonta à sua juventude; de acordo com sua história, João
lidera ou agride, se isola e se destaca dos demais, fora ou
dentro do hospital. Quinet (1997) aponta como o psicótico

120
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

percebe o outro: com medo, agressão e rivalidade. Resta,


assim, o isolamento como uma forma de alívio para esse
sofrimento. Nesse sentido, Brunello (1998) coloca que esse
isolamento é uma tentativa de não sentir, não falar, não
desejar, não reivindicar. Isolar para não incomodar. Assim,
ao mudar de ala rumo à ressocialização, João precisa se
reacomodar, para poder continuar “isolado” entre “iguais”.
E o consegue.
Ao contrário, quando se trata da possibilidade de morar
com as irmãs essa parece ser uma preocupação: “ia atrapa-
lhar”. E aqui, nova realimentação: segundo fala das pró-
prias irmãs, João seria realmente um incômodo. Não há
vínculo entre as irmãs e João que torne desejável sua pre-
sença, há o medo de tê-lo em casa. A irmã teria que “cuidar
dele”, não o percebe como capaz de se cuidar sozinho. Como
ambos, João e sua irmã, apontam, são anos no hospital,
anos de distância entre eles, anos que apagaram os víncu-
los positivos que poderiam uní-los.
Neste quadro, em que aspectos familiares se somam à
sua recusa em sair do hospital, mais um ponto pode ser
apontado: o significado da mãe. Esta já havia o alertado
quanto ao risco de suas brigas, e como “vidente” – onis-
ciente e onipotente – prevê a surra que levaria. É “para
não contrariá-la” que João procura a igreja, que por sua
vez o leva ao hospital. Hoje, João diz: “foi como a igreja
quis”. João parece assim ter articulado sua vida de modo a
selar o destino traçado pela mãe/igreja. Ficou no hospital,
não lhe restou outra escolha, seguiu a ordem quanto ao seu
caminho; relembrando suas palavras: “eles acham que meu
lugar é aqui”, “aqui sou obrigado a ficar” e “cada um tem
sua sentença”.
João nos mostra que, surpreendentemente, e talvez por
isso diga “venci na vida... foi um heroísmo”, mesmo sem
escuta e tendo recebido todo tratamento manicomial, ele

121
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

pôde preservar sua subjetividade e manter-se singular. Sua


dificuldade é o se relacionar com as pessoas, oscilando en-
tre ser “o melhor” e “o menor”. Talvez aí esteja o ponto
que se deva levar em conta no processo de reabilitação, ao
menos nesse caso em especial.
Nesse sentido é importante lembrar que esse estudo,
embora trate de um caso particular e de sua relação, tam-
bém particular, com a instituição, aponta para questões que
podem ser pensadas no trabalho com pacientes crônicos em
geral. E o que ele permite apontar é a importância da escu-
ta no tratamento, assim como a percepção de que cada caso
é único e carrega consigo uma história com significações
singulares que marcam toda sua posição em relação a sua
condição.
Como colocam Vertzman, Serpa Jr. e Cavalcanti (1992),
uma instituição psiquiátrica, desde que adquira uma dis-
posição capaz de acolher e escutar esse indivíduo com or-
ganização psíquica particular, pode ser um legítimo lugar
de tratamento; o trabalho de reabilitação que aqui cabe,
como fala Silva (2000), é o que não se contente em readaptar
o doente mental a uma condição conforme à mediocridade
prescrita, mas ajudá-lo a melhor estabelecer ou compreen-
der seu sistema de valores.
Às vezes, como mostra Furtado (1998), a demanda é pou-
co evidente ou mesmo latente; é necessário, então, uma
maior aproximação com o paciente, possibilitando identifi-
car e fazer emergir seus desejos e suas necessidades, con-
templando-os na proposta terapêutica. Para tanto, propõe
um modelo de tratamento que se baseia na particulariza-
ção da atenção, em intervenções centradas nas demandas
individuais do paciente e no estímulo no vínculo entre pa-
cientes e membros da equipe. Ou seja, a intervenção mais
apropriada deve levar em conta e se fundamentar no parti-
cular de cada caso. Dito de outra forma, se a cronificação

122
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

tem a característica de reduzir os indivíduos a objetos, o


processo de descronificação deve caminhar em direção ao
individual, ao pessoal e particular de cada sujeito, necessi-
tando de um acompanhamento próximo, sustentado por um
projeto válido a um só sujeito.
Para isso é necessário reconhecer, como diz Corbisier
(1992), que enlouquecer é diferente para cada um, e que o
que iguala é o calar. Em vez de ser contido, é mister que o
paciente seja ouvido e acolhido. Portanto, é importante a
escuta a cada um dos sujeitos, permitindo-lhes a constru-
ção de sua singularidade, e através dessa elaborar inter-
venções que correspondam à demanda particular. E assim
retoma-se a proposta da clínica antimanicomial, que não
nega a diferença e singularidade do paciente psicótico, e,
como coloca Losboque (1997), busca dar possibilidades ao
sujeito de sustentar sua diferença, sem para tanto, excluir-
se socialmente: sua perspectiva é a de criar oportunidades
para que a pessoa possa encontrar formas de estar dentro,
estando fora.

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125
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

ANEXO 1

Termo de consentimento livre e esclarecido.


Eu,________________________, sei que, Vanessa Cristina Ma-
chado, psicóloga que faz aprimoramento no Hospital Santa Tere-
za, tem um projeto de pesquisa (“Desospitalização em psiquiatria:
o desejo de permanecer internado - um estudo de caso”) para
fazer nesse hospital, com a orientação de Regina Caldana.Vindo
me procurar, Vanessa esclareceu que precisa de um morador do
hospital para fazer essa pesquisa, convidando-me para isso. Sei
que com sua pesquisa ela quer compreender o que leva um
paciente em boas condições a não querer sair do hospital, o que
pode ajudar os profissionais a pensar na melhor forma de atender
os pacientes.
Sei que sou livre para aceitar ou não, e que se eu não aceitar
nada mudará no tratamento que recebo no hospital. Minha iden-
tidade será mantida em sigilo, ou seja, ninguém vai saber que eu
participei dessa pesquisa. Sei que não terei gastos e nem ganhos
imediatos.
Sei ainda que para fazer esse estudo, Vanessa precisará que eu
fale de minha vida, precisará fazer entrevista com alguém da
minha família e com um funcionário do hospital, e que todas
essas conversas serão gravadas e depois escritas no papel; além
disso, ela olhará e anotará informações do meu prontuário.
Depois desta explicação, aceitei participar dessa pesquisa. Sa-
bendo ainda, que meu representante legal também deverá estar
de acordo com isso.

Vanessa Cristina Machado Paciente


R. Olinda, 55, apto 16

Representante Legal

126
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

ANEXO 2

Roteiro Entrevista - Paciente


Quanto ao período anterior à internação atual:
• descrição da vida em termos de:
- pessoas com quem morava e se relacionava (amizade, vida
conjugal/sexual)
-trabalho.
-lazer.
• descrição da maneira de ser, de pensar e de comportar-se.
• situações que incomodavam e reações a ela.

Quanto ao período de internação.


• internações anteriores, motivo, descrição destas e da mu-
dança de hospital.
• internação atual: motivo, reações (percepções, sentimen-
tos, pensamentos).
• recepção pelos funcionários e pacientes.
• tratamentos recebidos (medicamentosos e outros); avali-
ação destes.
• motivo de permanência no hospital
• avaliação da necessidade atual de internação.
• avaliação da história de internação.
• visitas recebidas no hospital.
• saídas (alta-licença) do hospital durante a internação.

Quanto à possibilidade de desospitalização.


• passeios fora do hospital
• avaliação da vida fora do hospital.
• desejo de viver fora do hospital.
• impedimentos para a saída.
• planos para o futuro.

Roteiro de Entrevista - Funcionário do Hospital


Quanto ao período de internação.
• tempo de contato com o paciente.
• descrição acerca de:
- estado do paciente nos primeiros contatos.
- relação com outros pacientes e funcionários.

127
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

- tratamentos (medicamentos e outros) recebidos pelo pa-


ciente.
- visitas.
- alterações humor/comportamento, situações associadas
as alterações.
- diferenças entre como chegou no hospital e atualmente.
• avaliação sobre a necessidade de internação.
• saídas (alta-licença) do hospital.

Quanto à possibilidade de desospitalização.


• condições de alta.
• trabalho de ressocialização (atividade vida diária, pas-
seios) com esse paciente.

Roteiro Entrevista - Membro da Família


Quanto ao período anterior à internação.
• descrição da vida do paciente em termos de:.
- pessoas com quem morava e se relacionava (amizade, vida
conjugal/sexual)
- trabalho.
- lazer.
• descrição da maneira de ser, de pensar e comportar do
paciente.
• situações que incomodavam, reações a elas.
• motivo da internação atual e reações a ela.

Quanto ao período de internação.


• descrição dos contatos no início da internação e atual-
mente.
• motivo de permanência no hospital.
• avaliação da necessidade atual de internação
• descrição geral de outras internações (motivo, reações
do paciente, evolução, alta).

Quanto à possibilidade de desospitalização.


• condição de alta.
• percepções acerca dessa possibilidade, e das formas pelas
quais isso se daria.

128
6. AS DESORDENS
TEMPOROMANDIBULARES E O PSICÓLOGO:
DA ETIOLOGIA À TERAPÊUTICA

Regina Helena Lima Caldana


Ana Maria Bettoni R. da Silva

Embora a Psicologia venha ocupando um espaço cada


vez maior nas equipes de saúde, em algumas áreas sua par-
ticipação é ainda muito incipiente. Ao partir para atuar em
qualquer área, é importante que o Psicólogo tenha conhe-
cimento a seu respeito, e se possível, contato com a expe-
riência de quem nela já atua. Nas áreas que ainda contam
com menor presença do Psicólogo, consideramos essa ne-
cessidade particularmente maior, e paradoxal, mas compre-
ensivamente, mais difícil de ser atendida.
Nossa experiência de docência junto à Faculdade de
Odontologia de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
(FORP/USP) nos permite, sem sombra de dúvida, conside-
rar a Odontologia como uma destas áreas, e, dentro dela,
um campo significativo aquele ligado ao atendimento ofe-
recido às desordens temporomandibulares.
Dez anos de atuação junto à equipe do Serviço de Oclusão
e Desordens da Articulação Temporomandibular (SODAT),
também da FORP/USP, nos colocaram em contato com uma
literatura e uma prática na área que aqui procuramos sis-
tematizar, e compartilhando-as com outros colegas que nela
possam vir a atuar.
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Inicialmente apresentamos a perspectiva através da qual


a Psicologia está presente na literatura ligada às desor-
dens temporomandibulares, sendo que o contato com os
casos atendidos foi o pano de fundo que nos guiou na sele-
ção do material e organização dos temas. Em seguida, foca-
lizamos as possibilidades de atuação para o Psicólogo, com
ênfase na colaboração que pode trazer ao atuar junto à equi-
pe que atende os pacientes. É particularmente aqui, no teor
do diálogo com profissionais de outras áreas de formação
(em especial da Odontologia), que consideramos importan-
te partilhar a experiência acumulada, dado que se trata de
algo pouco presente nas publicações da área.

Psicologia e desordens
temporomandibulares (DTMs)
O quadro que hoje conhecemos como desordens temporo-
mandibulares compreende um conjunto de sinais e sintomas
de grande diversidade, e caracteriza-se pela complexidade de
sua etiologia; assim sendo, o campo de investigação vem se
tornando cada vez mais amplo, e nele a inclusão de dimen-
sões relacionadas à Psicologia tem papel significativo
(ALENCAR JR., 1997; ASH; RAMJFORD; SCHNIDSEDER,
1998; OKESON, 1992).
No entanto, a assimilação da Psicologia na compreensão
das DTMs não tem uma aceitação irrestrita, nem se dá de
forma unívoca na dimensão teórica ou na prática. Em ter-
mos teóricos há muita variedade nos pontos de vista acerca
das possibilidades de sua contribuição; em termos práticos,
embora o esforço de um trabalho interdisciplinar seja sobre-
maneiramente valorizado, constata-se uma dificuldade em
conseguir efetivá-lo de tal forma que os diferentes profissio-
nais trabalhem num esforço conjunto de compreensão de cada
caso, e não somente através de atuações paralelas.

130
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

Para podermos fazer algumas reflexões sobre estas ques-


tões, é interessante, em primeiro lugar, observar como são
focalizadas as DTMs em termos de sua descrição e etiolo-
gia. Assim, considera-se que as DTMs compreendem um
conjunto de sinais e sintomas que incluem limitações ou
desvios nos movimentos mandibulares, sensações tais como
zumbidos, dores e pressões, dores faciais e cefálicas, ruídos
na articulação temporomandibular durante a função man-
dibular, e ainda relação oclusal estática e dinâmica anormal
(FELÍCIO, 1994; ALENCAR JR., 1997). Em termos da etio-
logia, a abordagem mais recente aponta para a multifatoria-
lidade, sendo os principais fatores envolvidos os anatômicos
(incluindo oclusão e articulação temporomandibular), os
neuromusculares e os psicológicos. Estariam incluídos aqui
aspectos mais estritamente odontológicos, tais como perda
da dimensão vertical, prematuridades oclusais, ou, de uma
maneira mais geral, desequilíbríos do ajuste oclusal; tam-
bém os hábitos orais parafuncionais (apertamento, bru-
xismo, e também mascar chicletes, ou morder objetos)
entendidos ou não como indicadores de ansiedade, vícios
posturais (envolvendo não só pescoço e ombros, mas o cor-
po como um todo), distúrbios fonaudiológicos (de fonação,
deglutição atípica, alteração na postura de repouso), todos
relacionados às disfunções neuromusculares. E como fator
psicológico, o mais comumente apontado é a tensão emo-
cional relacionada ao estresse (FELÍCIO, 1994; ALENCAR
JR., 1997; MONGINI, 1998; ASH; RAMJFORD; SCHNID-
SEDER, 1998). Para completar um pouco mais o quadro,
deveríamos apontar para a possibilidade de processos in-
fecciosos e inflamatórios, degenerativos, neoplásicos, e trau-
matismos. Vale a pena salientarmos ainda que a maior
parcela das pessoas que procuram atendimento são movi-
das por sintomas “ruidosos” como a dor ou zumbidos, mas
não se pode dizer que a dor ou outras sensações estejam
sempre presente mesmo quando detectadas alterações físi-

131
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

cas, ou o inverso, que sempre que estiver presente uma quei-


xa sintomáticas serão encontradas alterações morfológi-
cas ou funcionais que a justifiquem (LEANDRO; NUNES,
2000).
Dentro deste amplo leque, e consoante à concepção mul-
tifatorial que aponta para a superposição de fatores num
processo complexo que leva ao surgimento das DTMs, são
muitas as forma através das quais a Psicologia pode estar
presente.
Se lançarmos um olhar para as concepções dentro da
psicossomática, constatamos que a tradição ocidental as-
senta-se na concepção dualista do homem, e de acordo com
ela temos a tendência a procurar uma causa para o adoeci-
mento na dimensão física ou mental; às vezes tentamos até
enxergar essa causalidade em termos físicos e mentais. É
essa visão dualista que deu origem a termos como psicoge-
nia, psicossomática, somatopsíquico, que traduzem, respecti-
vamente, a concepção de que um sintoma pode ser descrito
pelo paciente como físico sem que haja um comprometimento
orgânico detectável, ou de que um estado emocional pode
desencadear um processo orgânico patológico, ou ainda que
uma determinada doença orgânica pode levar ao desenvol-
vimento de estados emocionais particulares, permanecen-
do a visão dual sobre o ser humano (HAYNAL; PASINI,
1983; MELLO FILHO, 1992; PALMA, 2000). A maior parte
dos estudos voltados para as desordens temporomandibu-
lares, que incluem no seu horizonte a dimensão psicológi-
ca, o fazem dentro desta perspectiva dualista. Assim, por
exemplo, algumas teorias colocam o fator psicológico como
“o” determinante do sintoma, e outras o excluem comple-
tamente (ALENCAR JR., 1997); no entanto, no dizer de
Mello (1983), a distinção entre processos físicos/orgânicos
e psicológicos deriva da necessidade de classificação das
formas clínicas das doenças em orgânicas ou mentais, mas

132
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

não possibilita uma visão mais compreensiva da pessoa.


Ela perpetua a perspectiva de que possam existir processos
psíquicos independentemente da dimensão física (ou soma
sem psiquê), e vice e versa.
As abordagens mais recentes em psicossomática, que
partilham de uma concepção unitária, em que mente e cor-
po não são entendidos como dimensões dissociadas, vão
muito além de um raciocínio que opera em termos de rela-
ções de causa e efeito (CHIOZZA, 1987). Procuram enfati-
zar a necessidade de uma perspectiva compreensiva que
focaliza a existência de qualquer processo de adoecimento,
seja ele de que ordem for, dentro do percurso de vida parti-
cular da pessoa. Buscam elementos que permitam compre-
ender o processo de adoecimento como resultante de um
contexto complexo, do qual fazem parte as condições orgâ-
nicas e emocionais da pessoa, entendidas como fruto de sua
história e do contexto atual, nos quais as condições sócio
culturais são um aspecto importante.
Se buscamos obter uma compreensão do quadro que ad-
venha do conhecimento da pessoa com sua história, e não
de uma busca unilateral de causas para as DTMs, é preciso
considerar um amplo leque de muitas possibilidades. É para
elas que nos voltaremos agora.

O estresse
A primeira destas possibilidades, refere-se ao estresse,
um dos fatores mais comumente apontados como tomando
parte na etiologia das desordens temporomandibulares, à
medida em que as respostas fisiológicas desencadeadas por
ele provocam alterações na atividade muscular e vascular
da região facial.
O estado de estresse pode ser compreendido, ainda que
de forma esquemática, como aquele provocado pela reação

133
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

do organismo a uma situação que envolve algum grau de


ameaça (MELLO FILHO, 1983); sua função seria a prepa-
ração para a ação (para a defesa), desencadeando um con-
junto amplo de respostas automáticas entre as quais a
contração dos músculos corporais e, principalmente, da-
queles da face (MOULTON, 1973; SÔ, 1983). Para alguns
autores a contração das músculos orofaciais nessa situa-
ção poderia ter raízes filogenéticas, uma vez que esse pa-
drão guardaria semelhanças com a postura assumida pelos
animais, preparatória para o atacar e morder (SÔ, 1983).
Embora tenha uma função originalmente voltada para a
adaptação do organismo a situações novas e tensas, se o
agente estressante permanece atuando e não há um perío-
do para recuperação do organismo, a reação de estresse
chega a uma fase de “esgotamento” ou “exaustão”, em que
surgem as “doenças de adaptação” (MELLO FILHO, 1983).
Entre elas poderíamos colocar as desordens temporoman-
dibulares que resultam da persistência da hiperatividade
dos músculos orofaciais aliada a outras condições orgâni-
cas, funcionais ou posturais do sistema orofacial.
E quais seriam as condições que levam à manutenção
prolongada da reação de estresse (chamada por alguns au-
tores de distresse)?
É preciso considerar, em primeiro lugar, que são poten-
cialmente estressantes as situações que implicam em ame-
aças físicas e mentais. Entre essas últimas, podemos
apontar as situações que alteram o equilíbrio emocional da
pessoa, e as que a impedem de alcançar seus fins e necessi-
dades, em função de obstáculos externos e/ou internos (ARA-
ÚJO; ARAUJO, 1983; SEGER, 1988); o contato com o novo
e o imprevisível, as situações de expectativa e que cercam a
execução de tarefas de grande responsabilidade são exem-
plos destes tipos de situação.

134
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

O estresse e a dimensão sócio-cultural


É interessante que nos detenhamos em primeiro lugar
na questão dos aspectos sócio-culturais, pois é fato conhe-
cido a maior incidência de doenças ligadas ao estresse nos
centros urbanos industrializados (KHOROL, 1973). Várias
condições inerentes ao estilo de vida nelas desenvolvido
contribuem para isso, a começar pelo grau de ameaça à in-
tegridade física de seus habitantes, oriundo, por exemplo,
da violência no trânsito ou dos problemas sociais.
Em termos emocionais há uma sobrecarga de exigência
que advém da competitividade, do ritmo incessante e do
volume de atividades desenvolvidas, da exacerbação das
necessidades em função dos apelos do consumo, e ainda da
necessidade de se desenvolver constantemente um rol de
novas habilidades em função do aprimoramento tecnológi-
co que altera, num ritmo veloz, as práticas cotidianas.
Dois outros fatores aliam-se a esses, dificultando a obten-
ção de um equilíbrio mental. Por um lado, a solidão: as fa-
mílias nuclearizam-se, fecham-se em si mesmas, e ficam
privadas de uma rede de apoio proveniente da família de
origem ou da comunidade mais próxima. Para as popula-
ções de baixa renda, em especial, estas condições, somadas
às dificuldades de acesso aos serviços de educação e saúde,
e à baixa qualidade dos serviços disponíveis a elas, tornam
o dia a dia uma luta constante.
Por outro lado, num mundo onde os valores constante-
mente se alteram, o homem perde os referenciais tradicio-
nais que ajudam a definir sua identidade pessoal, e cada um
se vê constantemente às voltas com a tarefa de redefinir
sua maneira de ser, num processo sempre acompanhado de
angústia (CALDANA, 1998).
A vida levada constantemente sob esse conjunto de con-
dições torna-se com muita facilidade, fonte permanente de
estresse.

135
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Estresse e situações de crise pessoal


Ao lado destas situações sociais desfavoráveis, comuns
à maioria dos habitantes dos centros urbanos industriali-
zados, podemos encontrar outras, de caráter particular: as
situações de crise pessoal.
Cada ser humano desenvolve, ao longo de sua vida, um
conjunto de respostas que lhe permite enfrentar a vida ob-
tendo satisfação de suas necessidades. Esse estilo tende a
manter-se estável ao longo do tempo, resultando na cons-
trução de uma identidade própria. Entretanto, em situa-
ções de crise, as respostas comumente utilizadas deixam de
ser eficientes, e é preciso que um novo conjunto seja desen-
volvido (Simon, 1983).
Segundo Simon (1983), a crises ocorrem em função de
alterações significativas no universo pessoal que fazem com
que a pessoa se depare com situações desconhecidas que a
levam à necessidade do desenvolvimento de novas adapta-
ções, implicando em mudanças interiores.
Há as chamadas “crises acidentais”, comumente desen-
cadeadas: a) pela perda ou ameaça de perda de pessoas afe-
tivamente valiosas (por morte, doença, abandono, etc.); b)
pela perda ou ameaça de perda de situações importantes
(desemprego, aposentadoria, mudança de casa, bairro ou
cidades); c) pelo aumento ou perspectiva de aumento de
ganhos e responsabilidades (promoções, casamento, nasci-
mento de filhos); e d) por alterações biológicas importantes
(menarca, menopausa, doenças prolongadas, amputações,
transplantes, incapacitações físicas) (SIMON, 1983).
Em outros casos as situações de crise fazem parte do
conjunto daquelas que ocorrem habitualmente dentro do
ciclo vital do ser humano, estando relacionadas a altera-
ções de papéis sociais (FIORI, 1982). São as chamadas “cri-
ses previsíveis”, que nas sociedades ocidentais urbanizadas

136
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

e industrializadas, após a infância são desencadeadas: a)


na adolescência, quando se definem os elementos básicos
da identidade pessoal; b) no início da vida adulta quando se
começa a compartilhar a intimidade num relacionamento
afetivo; c) na maturidade, quando se coloca em ação a capa-
cidade de gerar e transmitir vida e conhecimento (relacio-
nada à própria prole e a gerações mais novas, de forma geral)
e d) na velhice, quando a perspectiva da morte se torna pró-
xima e presente, tanto por sinais físicos quanto pelas fun-
ções e atividades atribuídas ao idoso (SIMON,1983).
Em todas essas situações há um hiato de tempo em que o
padrão antigo de resposta às situações diárias de vida já foi
abandonado, e o novo, adaptado à nova situação, ainda não
foi desenvolvido. Neste período, cuja duração é limitada mas
pode não ser muito breve, a presença do desconhecido e a
ausência de referenciais pessoais estáveis levam ao desen-
volvimento de angústia e tensão, podendo configurar-se uma
situação de estresse.

A atividade tensional dos músculos


orofaciais
No entanto, diante da vivência de uma situação de es-
tresse, as doenças de adaptação poderão ser de natureza
muito diferentes. E então cabe a questão: o que, do ponto de
vista psicológico, estaria ligado ao fato de a pessoa desen-
volver DTMs?
A resposta a essa questão interliga-se e faz referência
ao componente emocional envolvido no bruxismo, já que
os pacientes com desordens temporomandibulares mantém
um nível significativamente maior de atividade tensional
dos músculos faciais (mordendo ou apertando os dentes)
em situações que provocam raiva e frustração (SEGER,
1998).

137
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Para que esse dado seja melhor compreendido é impor-


tante que se discuta o significado que a face e a boca - no
caso particularmente afetadas - têm para o ser humano.
A face é a região do corpo que condensa os elementos que
compõem a auto-imagem (MOULTON,1983), e isto ocorre,
em grande parte, por ser ela a principal via de expressão
das emoções e do estabelecimento da comunicação verbal e
não verbal.
A região oral, mais particularmente, congrega um sig-
nificado emocional profundo: as primeiras trocas que o bebê
efetua com o meio ambiente são estabelecidas através da
boca, que nessa fase inicial da vida se constitui na primeira
e principal fonte de prazer corporal. Mais tarde é também
através da boca que o bebê começa a ser capaz de externali-
zar sua raiva e agressividade, atacando ou defendendo-se
de forma concreta pelo morder. No adulto essas duas fun-
ções não deixam de manter-se em parte preservadas: a boca
permanece como órgão de prazer sensorial (ligado à alimen-
tação ou à sexualidade, como no beijo), e também como via
de expressão da raiva e da agressividade, mas de forma sim-
bólica, através da fala (MOULTON, 1983.).
Uma vertente dos estudos que investigam a relação en-
tre aspectos psicológicos e DTMs, volta-se para a tentativa
de identificar um perfil de personalidade comum aos pa-
cientes portadores de DTMs. Como seria esperado, dada a
complexidade e diversidade de fatores envolvidos no qua-
dro, não há consenso quanto a esse perfil, mas gostaríamos
de destacar as duas características muito comumente apon-
tadas: a dependência do outro nas relações interpessoais e
conseqüente frustração neste nível, e uma personalidade
controladora, exigente e perfeccionista. Estes perfis coin-
cidem também com aqueles dos pacientes bruxistas (MOUL-
TON, 1983; JONES, 1979; WOODS, 1979; BUUR, 1979;
MOSAK, 1985; LORCH, 1986; BELL, 1991; JACOB, 1991).

138
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

O bruxismo é um hábito parafuncional que relaciona-se,


em termos psicológicos, a uma tentativa inadequada de con-
trole da agressividade através de sua contenção, expressa
no “travamento dos dentes” (HAYNAL; PASINI, 1983;
KAPLAN; SADOCK, 1984), o que pode ser compreendido
no primeiro perfil à medida em que a excessiva dependên-
cia nas relações interpessoais leva à uma intensidade de
demandas que dificilmente podem ser satisfeita, resultan-
do em frustração; à frustração sobrevém a raiva que, não
podendo manifestar-se para não colocar em risco os víncu-
los dos quais a pessoa sente-se dependente, leva ao aperta-
mento dos dentes.
Raciocínio análogo pode ser feito em relação às pessoas
perfeccionistas e controladoras: seu alto nível de exigência
as leva a uma sobrecarga de atividades que sentem dever
cumprir com perfeição; o mesmo nível de exigências man-
tém-se em relação às outras pessoas, que desejam manter
sob controle. A frustração torna-se inevitável e a raiva não
pode ser expressa, pois considera-se ideal o comportamento
estóico; cria-se assim, igualmente, uma condição propicía
ao bruxismo (MOULTON,1973; JONES, 1979; WOODS, 1979;
BUUR, 1979; MOSAK, 1985; LORCH, 1986; BELL, 1991;
JACOB, 1991).
Em qualquer um dos casos permanece comum a fantasia
de que a expressão das emoções levará a uma “maré emo-
cional devastadora”, evidenciando-se que o travamento dos
dentes tem função análoga à de “um dique” (JONES, 1979).
Pode-se fazer uma descrição das etapas de desenvolvi-
mento do quadro. Na primeira delas, localizada na infância
ou adolescência, desenvolve-se um conflito precoce (em ge-
ral com o pai do mesmo sexo) e, pela ausência de recursos
mais adequados para enfrentá-lo, surge o apertamento dos
dentes como forma inconsciente de aliviar a frustração e a
tensão, numa resposta oral auto-agressiva. Numa segunda

139
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

etapa o acréscimo das tensões cotidianas aos danos já pro-


duzidos por anos de rangimento desencadeia um sintoma
bucal agudo. Este sintoma, se não aliviado por um atendi-
mento adequado, torna-se um fator de realimentação do
próprio quadro por consistir numa fonte adicional de ten-
são, caracterizando-se assim a terceira etapa (JONES,
1979).
Este esquema deixa evidente, como contribuindo para o
surgimento das DTMs, uma combinação entre obstáculos
externos e conflitos atuais por um lado, e obstáculos inter-
nos e conflitos precoces (ligados ao bruxismo) por outro,
sendo que quanto mais marcantes os segundos, menor se-
ria o papel desempenhado pelos primeiros, e vice e versa.
Alguns estudos, mais específicos, procuram identificar
o perfil de personalidade de pacientes portadores de DTMs
em termos de traços, utilizando-se de testes construídos
para tanto. Como já comentamos, não há um perfil de con-
senso entre os diferentes trabalhos, mas é comum que seja
apontada uma maior incidência de traços depressivos, histé-
ricos, hipocondríacos e introversão (BUUR, 1979; WOODS,
1979; JACOB,1991).
A depressão relaciona-se ao sentimento de inutilidade,
mágoa, tristeza, sofrimento, falta de interesse pelas coisas,
apatia, recusa da felicidade, incapacidade para o trabalho,
tendência à preocupação com eventos de vida, o autocon-
trole excessivo, indecisão, excesso de responsabilidade e
desconfiança das próprias capacidades. A histeria indica a
propensão a buscar a solução de problemas através do de-
senvolvimento de sintomas, havendo irritabilidade com as
moléstias e queixas freqüentes; a manipulação, exigência,
superficialidade, rigidez e defensividade seriam caracterís-
ticas do padrão de relação social. A hipocondria aponta para
a presença de uma grande variedade de queixas corporais
que expressam a existência de conflitos psicológicos e emo-

140
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

cionais; as queixas físicas tem a dupla função de, por um


lado, buscar simpatia, e por outro, canalizar os conflitos
psíquicos para a preocupação persistente com a integrida-
de física, sendo que o mundo e as pessoas à volta tendem a
ser vistos com amargura e pessimismo. E a introversão
sugere o afastamento do contato social em função de difi-
culdades advindas de características tais como timidez, in-
segurança, ausência de ambição e dependência (BUUR,
1979; WOODS,1979; JACOB, 1991).
A despeito dos termos utilizados, as características arro-
ladas acima não indicam necessariamente a existência de
quadros psiquiátricos: são traços de personalidade que po-
dem se acompanhar de distúrbios mais graves ou não. Mas
sinalizam, com certeza, a existência de dificuldades, de or-
dem pessoal, em obter uma qualidade de vida satisfatória.
É fundamental, para o ser humano, ao lado da manuten-
ção de equilíbrio a que já nos referimos, a possibilidade de
um certo grau de satisfação, de prazer, que na vida adulta
centra-se nas relações pessoais e de trabalho. Para obtê-lo,
dependemos de um conjunto de habilidades adquiridas ao
longo de nosso desenvolvimento, que nos permitem ter con-
tato e compreender tanto a realidade que nos rodeia quan-
to o que se passa conosco, e, a partir desta percepção, buscar
ativamente o equilíbrio e a satisfação. Pode-se dizer que
vivemos dentro de uma situação delicada, em que devem
ser conciliados a intensidade de nossos desejos, o conjunto
de valores e normas que internalizamos e as condições que
nos rodeiam; da contraposição e discrepância entre estes
elementos, surgirão os conflitos e o sentimento de angús-
tia que sinaliza a situação de ameaça ao equilíbrio pessoal.
A impossibilidade de lidar com conflitos assim configura-
dos e com a angústia decorrente faz com que acionemos
mecanismos defensivos. As defesas são recursos psíquicos
usados normalmente por todos; no entanto, dependendo da

141
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

intensidade da sua utilização, de seu teor e persistência,


desenvolver-se-ão as características de personalidade aci-
ma apontadas.
Essas considerações são importantes porque matizam
de forma mais complexa a análise da participação dos as-
pectos psicológicos nas DTMs. Em primeiro lugar, mostram
que as situações que se configuram como estressoras não
independem dos recursos pessoais de que se dispõe para
fazer frente a elas. Em segundo, apontam para a possibili-
dade de que, ao utilizar mecanismos defensivos, fique pre-
judicada a percepção de si mesmo, e assim a pessoa seja
incapaz de identificar a vivência da angústia, que pode ser
detectada somente pelos equivalentes somáticos.
Por outro lado, ainda que a tensão emocional levando à
resposta de contração da musculatura temporomandibu-
lar esteja presente em grande parte dos quadros de DTMs,
este tema não esgota a participação dos aspectos psicológi-
cos. Ao chamar a atenção para a condição emocional da
pessoa dentro de uma perspectiva que focaliza seu funcio-
namento psíquico de uma forma dinâmica, abre-se espaço
para uma compreensão à luz de pesquisas recentes na área
de psicossomática, que mostram uma relação íntima, por
exemplo, entre dificuldades emocionais e o desenvolvimen-
to de neoplasias, ou o funcionamento do sistema imunoló-
gico (MELLO, 1983). Neste sentido, para Bell (1991) o
desenvolvimento de artrite reumatóide na articulação tem-
poromandibular poderia ser atribuído a uma reação atípi-
ca dos anticorpos à infecção bacteriana, reação essa
provocada por um intenso choque emocional.
Mas as possibilidades não se esgotam aí. Uma outra ques-
tão levantada pela psicossomática diz respeito ao nível e for-
ma de elaboração da vivências emocionais. De acordo com
esta perspectiva, é extremamente importante, dentro do pro-
cesso de desenvolvimento humano nas suas fases iniciais, a

142
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

aquisição da linguagem, por abrir-se a via de expressão e


elaboração das emoções no plano mental; quanto maiores
forem as possibilidades de uma pessoa neste sentido, menor
seria sua tendência a desenvolver doenças físicas, aqui en-
tendidas como uma expressão de vivências que ficaram sem
possibilidade de tradução no plano mental (SILVA; CALDEI-
RA, 1992; DEBRAY, 1995). Coloca-se aqui a importância de
se olhar para o momento do desenvolvimento de DTMs den-
tro do ciclo de adoecimentos na vida da pessoa.

A dor
Também a dor - matéria prima para o profissional que
lida com as desordens temporomandibulares - é um fenô-
meno que envolve, além dos aspectos neurofisiológicos, com-
ponentes psicológicos que influem na sua percepção e na
reação a ela (CARBONELL, 1983; SEGER, 1988).
A chamada dor psicogênica é, sem dúvida, aquela que
maior dificuldade causa ao profissional que lida com as
desordens temporomandibulares. É relatada pelos pacien-
tes sem que haja lesão física evidente ou causa periférica
que a justifique, e seu padrão não guarda relações com a
anatomia. Descrita como crônica e apagada, persiste assim
por muitos anos; a forma de o paciente referir-se a ela via
de regra acompanha-se de um sentimento não apropriado
ou da atribuição de um significado não racional (MOUL-
TON, 1973). Aparece como parte dos sintomas de quadros
psiquiátricos definidos, envolvendo ou uma reação de con-
versão nas neuroses histéricas, ou uma ilusão nas psicoses
(BELL, 1991; ASH; RAMJFORD; SCHNIDSEDER, 1998).
No caso da neurose histérica, por um mecanismo ainda
pouco conhecido, considera-se que a ansiedade proveniente
de um conflito psíquico (via de regra inconsciente) é “trans-
formada” em um sintoma somático. O sintoma é claramente
143
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

simbólico e representa uma solução (ainda que não satisfa-


tória) para o conflito, o que faz com que o histérico, ao refe-
rir-se a seu sintoma, não demonstre uma verdadeira
preocupação (a “belle indifférence”). Desenvolve-se em ge-
ral em pessoas muito sugestionáveis, nas quais a auto-su-
gestão da doença física está em harmonia com o desejo de
fuga ao sofrimento psíquico (D’ANDREA, 1983).
As psicoses são quadros psiquiátricos mais graves, com
uma alteração tal do funcionamento mental que a pessoa
freqüentemente não consegue responder às demandas da
vida cotidiana, e perde o senso de realidade e a capacidade
de testá-la. Há falhas no desempenho de comunicação, auto
controle, afetividade, senso-percepção, memória, inteligên-
cia e pensamento, em função do que surgem comportamen-
tos bizarros. Elas implicam, em geral, uma maior distorção
na percepção de si, envolvendo a imagem corporal, de tal
forma que algo que pelo senso comum não seria descrito
como dor, pode sê-lo.
As dores de origem inteiramente psicogênica são, no en-
tanto, mais raras, ocorrendo mais freqüentemente a intensi-
ficação psicogênica da dor. Entre os fatores psicológicos que
influenciam na modulação da dor exacerbando-a, são aponta-
dos como mais importantes a atenção voltada para a própria
dor, a expectativa dela, a ansiedade e o medo (INGERSOLL,
1984; BELL, 1991).
Esses fatores podem ser muito freqüentes nos quadros
das desordens temporomandibulares, pois os traços histé-
ricos, depressivos, hipocondríacos e a introversão que ca-
racterizam o grupo favorecem o voltar-se excessivamente
para si próprio aguçando a atenção voltada para a dor. Além
disso, uma dor aguda e constante não diagnosticada corre-
tamente pode levar a um círculo vicioso de realimentação:
a causa desconhecida e a aparição imprevisível da dor dei-
xam a pessoa mais ansiosa, e a ansiedade, por sua vez, di-
minui o limiar à dor, torna-a mais intensa.

144
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

A dor também pode cronificar-se e manter-se, em função


dos significados que adquire, mesmo após o cuidado ade-
quado do aspecto orgânico que a originou. Ela pode ser va-
liosa pelo sentido de expiação, de alívio para culpa; ou a
convivência estóica com ela pode ser considerada como fonte
de amor e admiração. É comum também que represente uma
forma de se obter carinho e atenção, e de se evitar situa-
ções conflituosas e exigências demasiadas, já que a pessoa
com dor é comumente preservada dos problemas pelos que
a rodeiam. Pelo transtornos que traz àqueles que convivem
com pessoa constantemente com dor, ela pode ainda se con-
verter numa forma indireta de expressar mágoa ou agres-
são (MOULTON, 1973; BELL,1991).
Nesses casos a pessoa constrói para si uma forma de vi-
ver na qual a dor ocupa um papel central, servindo de más-
cara aos conflitos emocionais. Em função disso comporta-se
muitas vezes de forma contraditória pois, embora tendo
procurado a ajuda do profissional para curar-se, não con-
segue colaborar efetivamente com o tratamento: acabar com
a doença pode significar, sem que ela mesmo se de conta
disso, uma ameaça ao equilíbrio psíquico conseguido, ape-
sar de nele estar incluída certa dose de sofrimento.

O psicólogo
A participação do psicólogo no atendimento ao paciente
com desordens temporomandibulares pode, e deve, dar-se
tanto no trabalho realizado diretamente com o paciente,
como na participação na equipe multidisciplinar1.
No momento diagnóstico, é fundamental o conhecimen-
to em profundidade da pessoa atendida, com sua história, e
1
No caso das DTMs, é mais comum que a equipe conte com a participação, ao lado do dentista, de
fisioterapeuta e fonaudiólogo. A discussão que se segue tem como referência o profissional com
formação em Odontologia, que em geral é a referência central no tratamento.

145
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

é o profissional da área de Psicologia que tem a formação


para obtê-lo. A ele cabe a realização de uma anamnese em
profundidade, e eventualmente a utilização de testes psi-
cológicos; ambos permitem a elaboração de um perfil do
paciente em termos de seu funcionamento mental. Este per-
fil é um instrumento auxiliar para o diagnóstico do qua-
dro, a ser feito em conjunto com as informações obtidas
pelos outros profissionais da equipe, que nunca podem ser
dispensadas.
Além de participar do momento diagnóstico, a Psicologia
pode comparecer como recurso terapêutico direto ao pacien-
te, oferecido segundo várias modalidades e abordagens. As
mais indicadas nos casos de desordens temporomandibula-
res são: a) as que tem como objetivo auxiliar o paciente a
controlar suas respostas fisiológicas ao estresse (relaxamen-
to e biofeedback); b) as que procuram auxiliá-lo a alterar sua
forma de viver através de um maior autoconhecimento, re-
estruturação de sua personalidade e/ou ou do treino em ha-
bilidades que possibilitem uma adaptação mais adequada
(psicoterapias de longa duração); e c) aquelas que visam au-
xiliá-lo a readquirir equilíbrio emocional em uma situação
de crise (psicoterapia de apoio e breve) (ARAUJO; ARAU-
JO, 1983; BERRY; WILMOT, 1977; CANNISTRACI, 1983;
GROSSMAN, 1979; JACOB, 1991.; RAPPAPORT ET AL.,
1979; READING; RAW, 1976; SCOTT, 1980).
É importante frisar que, assim como no momento diagnós-
tico, o encaminhamento para o atendimento psicológico não
dispensa o cuidado posterior dos outros profissionais, mes-
mo nos quadros onde a necessidade de cuidado aos aspectos
psicológicos é predominante. Nesses casos, ainda que o aten-
dimento psicológico seja central, o contato do paciente com
os outros profissionais deve ser mantido ao menos esporadi-
camente, tanto para reavaliações do quadro, como para evi-
tar que o paciente sinta que não está sendo adequadamente
atendido.

146
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

De acordo com a idéia de que a participação conjunta e


complementar de todos os profissionais leva a maiores be-
nefícios para o paciente, o papel do psicólogo na discussão
de acompanhamento dos casos na equipe multidisciplinar,
paralelamente às atividades de avaliação e atendimento
direto ao paciente, é importantíssima. Ele pode auxiliar a
equipe na compreensão dos aspectos emocionais que com-
põem a etiologia de cada quadro, influem na sua progres-
são, e determinam tanto diferentes respostas ao tratamento,
quanto características e problemas da relação profissional
paciente.

O paciente e sua história


Uma das tarefas do psicólogo é tornar compreensível ao
restante da equipe que, se quisermos oferecer ao paciente
um atendimento que busque a saúde no seu sentido mais
amplo, é absolutamente necessário que se tenha uma visão
integral da pessoa e sua história (EKSTERMAN, 1992).
A história, entendida mais restritamente como uma his-
tória da doença, é reconhecida, ao lado do exame clínico,
como a base para o diagnóstico (VAMVAS, 1979; RAMJFORD;
ASH, 1994). E é importante, é claro, que se trace uma his-
tória cuidadosa, focalizando a instalação, evolução e inten-
sificação - ou amenização, dos sintomas das DTMs, mas
dentro do contexto geral da vida do paciente. É a importân-
cia deste último aspecto que o psicólogo deve ajudar a tra-
zer a tona; a ele cabe mostrar a necessidade: de se obter
informações a respeito do estilo de vida do paciente de for-
ma a se identificar da presença de ansiedade e estresse,
mesmo que não percebidos conscientemente pelo paciente;
de se ter uma avaliação de condições emocionais gerais, dos
conflitos vividos ao longo de sua história, que podem estar
relacionadas às manifestações somáticas e à forma de perce-

147
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

ber e lidar com a dor; e de que se consiga a descrição deta-


lhada da seqüência de profissionais já consultados, a fim de
que sejam evitadas repetições desnecessárias de procedimen-
tos já adotados, cuidado tanto mais útil quanto mais o pa-
ciente tiver feito uma “peregrinação” por diferentes
profissionais em função de suas dificuldades emocionais.
O psicólogo pode ajudar a mostrar que uma entrevista
com este propósito deve ser feita de forma pouco diretiva,
dando ao paciente a chance de demonstrar sua maneira de
pensar; ou mesmo, de expor aspectos que, importantes se-
gundo seu ponto de vista, poderiam não ser assim conside-
rados segundo a perspectiva do profissional, e que costumam
ser importantes para o diagnóstico. Para tanto, é útil a uti-
lização de perguntas abertas, a disponibilidade de tempo, e
uma atitude de compreensão, sem julgamentos de valor, o
mais possivelmente empática, numa modalidade de entre-
vista menos usual na prática odontológica (MOULTON,
1973; SEGER,1988; D’ANDREA, 1994).
Ao mesmo tempo, ao defender essa modalidade de entre-
vista, é preciso também mostrar a necessidade de cuidado
evitar uma atitude invasiva ao se buscar informações da
vida do paciente; nos casos onde há necessidade de uma in-
vestigação mais aprofundada dos aspectos emocionais, esta
deve ser levada a efeito pelo profissional da área de Psico-
logia e/ou Psiquiatria, que dispõe de recursos adequados
para tanto.

A relação profissional paciente


Num atendimento em saúde, um requisito essencial é o
estabelecimento de uma boa relação profissional paciente.
Algumas pesquisas mostram que uma grande parcela da
melhora obtida em qualquer caso deve-se ao efeito placebo,
cujo fundamento é a confiança que o paciente tem no pro-
fissional (BELL,1991).

148
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

Aqui, novamente, é importante a defesa da necessidade


de um conhecimento amplo da pessoa com sua história. Se
para o ser humano obter prazer e equilíbrio são importan-
tes, não há como negar que este prazer seja buscado princi-
palmente nas relações humanas. E o conjunto de condições
internas que permite a cada um obter equilíbrio e satisfa-
ção nas relações humanas depende do tipo de vivências no
contato com os cuidadores mais importantes, do que se
aprendeu com estas experiências ao longo da vida. De uma
maneira particular, as pessoas com quem convivemos mais
estreitamente são modelos de identificação; é através do
contato com elas que construímos um padrão que facilita
ou acrescenta dificuldades aos relacionamentos humanos,
e que tende a repetir-se em todas outras situações, no cha-
mado fenômeno transferencial.
É com esse padrão que o paciente chega para buscar aju-
da, e é importante que o psicólogo possa identificá-lo e com-
preendê-lo, e que ajude a equipe a fazê-lo. Assim, uma série
de fantasias e necessidades do paciente, cuja origem está
na sua história e não na situação presente, dão o tom da
atitude geral do paciente perante o profissional e as condu-
tas por ele adotadas; isto, se não percebido e compreendido
corretamente, poder levar o dentista a reações inadequadas.
Alguns pacientes, por exemplo, em função de suas dificul-
dades emocionais, demandam intervenções “espetaculares
e radicais”. Nesses casos, se o profissional não está suficien-
temente atento, podem ser adotadas condutas desneces-
sárias e mesmo iatrogênicas, que, é claro, deveriam ser
evitadas.
É necessário que o dentista possa para acompanhar a
evolução de cada caso de acordo com limites relacionados
às características psicológicas do paciente. É comum que
pacientes com traços histéricos acentuados tenham recaí-
das inesperadas ou rápidas melhoras, que os mais depres-

149
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

sivos apresentem respostas mais lentas, ou ainda que aque-


les que negam sua dependência através de um comporta-
mento de oposição mais ostensivo resistam ao tratamento
e o questionem em todas as fases (WOODS, 1979). Nesses
casos, a compreensão de que essas respostas têm sua razão
de ser nas características pessoais do paciente, além de fa-
cilitar a adoção das medidas mais adequadas, ajuda a evi-
tar o sentimento de frustração e a irritação que comumente
são despertadas no profissional, e que certamente interfe-
rem no contato estabelecido com o paciente.
Paralelamente é preciso que se compreenda o quão cui-
dadoso deve ser a apresentação do tratamento ao paciente,
esclarecendo-se o porquê das condutas adotadas, do ritmo
do tratamento, das expectativas possíveis (MOULTON,
1973). Para isto o psicólogo também pode contribuir, mos-
trando que deve sempre existir uma atenção especial em
relação à tarefa de informar o paciente. E que esta tarefa
implica na necessidade de que as informações sobre o qua-
dro sejam transmitidas da forma mais completa e correta
possível, mas numa linguagem acessível ao universo do
paciente, certificando-se de que sejam corretamente com-
preendidas. Essas informações, se assimiladas de forma
apropriada, possibilitam uma colaboração mais efetiva por
parte do paciente: entendendo o que ocorre consigo mesmo,
ele pode atuar de forma mais ativa (como sujeito) e não pas-
sivamente (como “paciente”)2.
É importante ainda que as informações sejam transmi-
tidas de uma forma dialogada, e gradual. Nem sempre aquilo
que é trivial para o profissional de saúde faz parte do uni-
verso cognitivo do paciente. Nem sempre a palavra usada
pelo profissional de saúde com um determinado sentido é
compreendida da mesma forma pelo paciente (CARNIEL,
2
Por exemplo, no caso da dor, a informação oferece a percepção de controle sobre a possibilidade de
seu surgimento, o que tem efeitos inibidores na sua modulação (Ingersoll, 1984).

150
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

1997). E a compreensão de uma informação depende inti-


mamente de seu significado emocional. Assim, informar é
algo que se deve fazer o tempo todo, e sempre num processo
de interação; é um processo bidirecional, e como tal deve
ser entendido como uma construção da qual participam o
profissional e o paciente.
Uma preocupação especial diz respeito às expectativas
do paciente em relação ao tratamento. Muitas vezes o den-
tista, por saber que a confiança que o paciente tem no pro-
fissional é importante, e por perceber uma expectativa de
melhora irreal por parte do paciente, tende a responder-lhe
oferecendo uma promessa ilusória de sucesso mediante a
adesão ao tratamento. Essa é uma postura que a longo pra-
zo não traz benefícios para o paciente, pois se é oferecido
como certo um desenlace que não se confirma, o paciente se
sente “traído”, e os progressos obtidos podem ficar perdi-
dos pela quebra da relação de confiança.
A confiança que o paciente tem no profissional deve vir
de uma postura verdadeira de atenção e cuidado, que trans-
parece nos esforços feitos no sentido de obter sua melhora,
mas dentro de uma avaliação prognostica realista que o
deixe preparado para as eventuais dificuldades. É preciso
ainda manter uma atitude de permanente receptividade às
dúvidas e dificuldades do paciente, a serem discutidas com
disponibilidade, pois questionamentos não expressos cos-
tumam estar na origem da quebra da relação de confiança
entre profissional e paciente.
Uma situação delicada que costuma ocorrer é aquela onde
o paciente utiliza-se do momento da consulta para o “desa-
bafo” de seus problemas - e que pode inclusive se tornar o
motivo mais forte para o comparecimento. Nesses casos é
preciso que o dentista saiba ouvir o paciente com simpatia
e interesse, sem no entanto se envolver na discussão dos
problemas relatados, sob o risco de que sejam criadas situa-
ções embaraçosas ou de difícil encaminhamento, que com-

151
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

prometem igualmente a qualidade de relação estabelecida


com o paciente. Colocações do paciente que demonstrem a
necessidade de um auxílio emocional pedem o encaminha-
mento a um profissional com preparo específico, da Psico-
logia ou Psiquiatria.
E chegamos assim ao último ponto que queremos desta-
car quanto às contribuições que o psicólogo pode trazer para
a equipe, referente ao cuidado e a forma de se fazer o enca-
minhamento para um profissional da área de Psicologia.
Para fazê-lo é conveniente que se tome como ponto de
partida: 1) o conhecimento e a imagem prévios que o pacien-
te tem da Psicologia, complementando-os ou corrigindo-os,
e 2) uma exposição acerca da participação dos aspectos psi-
cológicos na etiologia das desordens temporomandibula-
res, enfatizando-se o papel da tensão e do estresse, mais
facilmente admitidos pelo paciente.
Um obstáculo freqüente é o preconceito do paciente -
muitas vez compartilhado por profissionais de outras áre-
as de formação - que pode sentir-se chamado de “louco”
por estar sendo encaminhado ao psicólogo. Para evitar que
isso ocorra, somente após o estabelecimento de uma rela-
ção de confiança entre o dentista e o paciente esta questão
pode ser discutida abertamente, de forma a se poder desfa-
zer possíveis equívocos.
No caso de encaminhamento para avaliação, o objetivo
deve ser colocado em termos da necessidade de que se te-
nha um conhecimento mais completo e geral da maneira
de ser da pessoa, a fim de melhor compreender seu quadro.
Quando o desejado é que a pessoa receba atendimento psi-
cológico, o psicólogo deve ser apresentado como aquele pro-
fissional treinado para auxiliá-la a aprender a agir de forma
que os problemas cotidianos não a deixem muito tensa, tor-
nando possível melhor qualidade de vida.
Apesar de todos os cuidados apontados acima, o paciente
pode recusar-se a procurar o atendimento psicológico. Sob

152
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

uma roupagem diversificada de argumentos, essa resistên-


cia pode ocorrer em função do receio, consciente ou não, de
que seja rompido o equilíbrio estabelecido na forma de vida
atual. Cabe aqui um trabalho de conscientização da necessi-
dade do atendimento, a ser feito aos poucos, e sempre a par-
tir das dificuldades de vida relatadas pelo paciente.

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156
7. QUALIDADE DE VIDA DE MÃES DE
CRIANÇAS COM AUTISMO*

Maria Ângela Bravo Fávero


Manoel Antônio dos Santos

Qualidade de vida é um conceito multidimensional que


abrange aspectos relacionados desde a satisfação do indiví-
duo até sua percepção diante do contexto cultural e siste-
mas de valores. Este construto tem sido tema freqüente nos
estudos sobre doenças crônicas, que abordam tanto os in-
divíduos acometidos quanto seus cuidadores. O objetivo da
presente pesquisa foi avaliar a qualidade de vida em cuida-
dores familiares de crianças portadoras de transtornos in-
vasivos do desenvolvimento.

A família diante da criança portadora


de uma condição especial
Com um novo nascimento, a condição da família, espe-
cialmente do casal parental, altera-se psíquica e dinamica-
mente para receber o bebê. Bradt (1995) afirma que “ser
um progenitor é o resultado psicológico e social e é mais do

* Este estudo foi subvencionado pela FAPESP, mediante a concessão de Bolsa de Mestrado à primeira
autora.
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

que um vínculo entre duas gerações” (p. 206). Além disso, a


transição para a parentalidade modifica o equilíbrio pree-
xistente entre trabalho e relacionamento com amigos, ir-
mãos e pais.
Por outro lado, é preciso considerar que a inclusão de
um novo membro na família cria no imaginário dos pais
um lugar já ocupado simbolicamente pelo filho desde a gra-
videz. Como pontuam Neder e Quayle (1996):

[...] a distância entre o filho idealizado e o filho real acaba por


ser preenchida, geralmente de forma afetiva, e o “terceiro” é
incorporado ao núcleo familiar, passando a ser constitutivo
mesmo deste núcleo, um elemento essencial e mola propul-
sora de muitas das realizações do casal parental (p. 38).

Todavia, ocorrem situações em que se acentua demasia-


damente a distância entre esse filho real e o ideal – enten-
dendo-se por ideal aquela representação mental prefigurada
no imaginário dos pais. Petean (1995) reflete sobre o modo
como o profissional de saúde transmite a notícia aos pais
de uma criança portadora de uma condição especial, aten-
tando para o fato de que, dependendo de como se realiza
essa abordagem, “pode levá-los a ter uma percepção errô-
nea do filho, quase sempre negativa” (p.125) e que esse fe-
nômeno pode também exacerbar ou minimizar o impacto
inicial e os sentimentos manifestados pelos pais.
A situação criada pela emergência de uma doença crôni-
ca, deficiência ou malformação congênita introduz altera-
ções significativas no ciclo de vida familiar (ROLLAND,
1995; KOVÁCS, 1997). A presença de uma deficiência física
e/ou mental no novo membro da família requer que os pais
encarem o luto por um filho perfeito idealizado, culminando
com o impacto psicossocial despertado pela própria convi-
vência e a posterior mobilização de modos de enfrentamen-

158
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

to dos estressores desencadeados pelas necessidades de cui-


dados especiais.
A suscetibilidade dos indivíduos a esse tipo de estresse
varia de acordo com sua habilidade em lidar com os fatores
estressores e com diferentes níveis de tolerância que, se-
gundo Kobasa, Hilkler e Maddi (1979), envolvem a abertu-
ra para mudanças, o envolvimento emocional com o
emprego, a religião ou a própria família, bem como o senti-
mento de ter controle sobre os acontecimentos e circuns-
tâncias de vida.
Diversos estudos indicam que há uma associação entre
o cuidar de pacientes com transtornos mentais graves e a
sobrecarga nos cuidadores (PAI; KAPUR, 1981; MARTINS-
YELLOWE, 1992; SALLEH, 1994; TESSLER; GAMACHE,
1994; VADDADI et al., 1997; BARONET, 1999). Por outro
lado, as pesquisas evidenciam semelhanças com as experiên-
cias de familiares de pessoas que sofrem de doenças crôni-
cas de um modo geral (KOGA; FUREGATO, 1998), que
requerem que os cuidados sejam prestados com certa regu-
laridade, além de implicarem em transformações na rotina
das atividades domésticas (necessidade de supervisão cons-
tante da pessoa acometida, cuidados com medicamentos e
retornos médicos, compromissos interrompidos devido às
responsabilidades assumidas).
Na área infantil, o impacto diante do nascimento, conví-
vio e tratamento de filhos portadores de malformações con-
gênitas também tem sido consistentemente investigado
(DROTAR et al., 1975; CARRETO, 1981; BRADBURY;
HEWISON, 1994; CARVALHO; TAVANO, 2000), incluindo
as reações e atitudes parentais diante das exigências de cui-
dados especiais (problemas de alimentação, treinamento de
hábitos de higiene, problemas de comportamento, tais como
maneirismos, negativismo, retraimento, entre outros).

159
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Características familiares e
sobrecarga emocional
No que concerne às condições gerais da família com um
filho autista, Prado (1999) levanta a hipótese de que há uma
organização autista do aparelho psíquico familiar, que essa
autora denomina de “família autista”, explicitando que pro-
blematizar o autismo infantil implica necessariamente tra-
tar também da questão familiar, uma vez que é “uma
síndrome grave que se manifesta bastante precocemente,
quando é total a dependência da criança de sua família, par-
ticularmente de sua mãe ou substituta, para seu desenvol-
vimento” (p. 4).
A compreensão de como os pais percebem a criança au-
tista tem sido enfocada por diversos estudos psicológicos.
Inicialmente, os estudos tenderam a caracterizar os pais
da criança autista como emocionalmente frios, apresentando
dificuldades no estabelecimento de contato afetivo (ORNITZ;
RITVO; GAUDERER, 1987). A partir de estudos mais re-
centes, progressivamente os pais deixaram de ser vistos
como pessoas desligadas, afetivamente frias e que poderiam
ter alguma característica de personalidade predisponente
ao autismo de seus filhos, para serem concebidos como cui-
dadores que criam e se relacionam de maneira normal com
suas crianças. Ornitz, Ritvo e Gauderer (1987) afirmam que,
atualmente, em linhas gerais, “os trabalhos existentes não
mostram nenhuma diferença significativa entre pais de
autistas e outros” (p. 125), acrescentando que o transtorno
autista pode ocorrer em famílias com qualquer nível sócio-
econômico, intelectual, ocupacional, educacional, racial,
étnico ou religioso.
Cuidadores de crianças que demandam cuidados espe-
ciais de um modo contínuo e constante vivenciam freqüente-
mente sobrecarga emocional. Assim, parece ser justificável a
preocupação com analisar a qualidade de vida desses fa-

160
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

miliares. No presente estudo foi investigada a percepção de


mães de crianças portadoras de autismo acerca de sua qua-
lidade de vida.
A qualidade de vida é um construto avaliado subjetiva-
mente, ou seja, as mães avaliaram sua própria condição de
vida e seu bem-estar em diferentes domínios do cotidiano.
O propósito da investigação é apreender quais são as per-
cepções acerca de um cotidiano peculiar, partindo-se da
perspectiva de que esse modo de perceber as diferentes di-
mensões da realidade exerce influência sobre o processo
adaptativo desses atores sociais. Acredita-se que a siste-
matização desse conhecimento é relevante para subsidiar o
planejamento e a implementação de programas e serviços
de atendimento à criança com autismo que incluam o pon-
to de vista de sua rede familiar.

Material e método
1. DELINEAMENTO DO ESTUDO
O delineamento escolhido foi um estudo descritivo de corte
transversal realizado com participantes cuidadores de crian-
ças que demandam cuidados especiais. Cervo e Bervian (1983)
afirmam que nessa modalidade de estudo o pesquisador preo-
cupa-se em fornecer uma descrição das características, pro-
priedades ou relações existentes na comunidade, grupo ou
realidade pesquisada. Richardson (1999) afirma que, em um
estudo de corte transversal, “os dados são selecionados em
um ponto no tempo, com base em uma amostra selecionada
para descrever uma população nesse determinado momen-
to” (p. 148). Neste caso, o grupo selecionada é composto de
mães de crianças conhecidas como autistas.
Segundo as classificações diagnósticas existentes, tra-
tam-se de crianças portadoras de transtornos invasivos do
desenvolvimento (TID, incluindo transtorno autista) (AS-

161
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

SOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA, 1995) ou


portadoras de transtornos globais do desenvolvimento
(TGD, incluindo autismo infantil) (ORGANIZAÇÃO MUN-
DIAL DA SAÚDE, 2000). Alocamos, então, no presente tra-
balho, mães de crianças diagnosticadas com autismo ou
transtorno de desenvolvimento acompanhado de compor-
tamentos ou traços autistas.

2. PARTICIPANTES
O estudo incluiu 20 participantes, mães de crianças por-
tadoras de autismo, vinculadas a duas instituições de aten-
dimento especializado localizadas em dois municípios do
interior do estado de São Paulo.
Os critérios de inclusão das participantes foram:
• Mães com um filho (sexo masculino) em idade infantil
(até 12 anos) diagnosticado como portador de autismo;
• A participante deveria aceitar voluntariamente partici-
par do estudo, formalizando seu acordo com os objetivos
da pesquisa mediante assinatura de um Termo de Con-
sentimento Livre e Esclarecido.
Pretendia-se que a participação voluntária ocorresse com
um mínimo de vinte sujeitos, sendo dez de cada instituição.
Fixou-se em dez o número de mães em cada instituição em
virtude de ter sido este o número inicialmente levantado de
mães que preencheram os critérios de inclusão na institui-
ção A e que se comprometeram a participar do estudo.

3. INSTRUMENTO
World Health Organization Quality of Life
(WHOQOL-bref)
A Organização Mundial de Saúde (OMS) desenvolveu um
amplo estudo, envolvendo 20 países, com o objetivo de criar
um instrumento de medidas padronizadas para avaliar os
conceitos de bem-estar e qualidade de vida, considerando
assim a importância crescente dessas dimensões. Esse es-

162
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

tudo visou desenvolver instrumentos de medidas válidos e


flexíveis para serem utilizados em diversos contextos, com
diferentes sistemas de saúde e com diferentes tipos de es-
trutura sócio-econômica (BANDEIRA; PITTA; MERCIER,
1999; FLECK et al., 1999).
Elaborado em 1998, esse instrumento tem sido ampla-
mente utilizado no contexto da saúde, em diferentes reali-
dades sócio-culturais (FLECK et al., 1999; POWER; HARPER;
BULLINGER, 1999; SKEVINGTON; BRADSHAW; SAXENA,
1999; BONOMI et al., 2000; DE VRIES; SEEBREGTS;
DRENT, 2000; FLECK et al., 2000; LEPLEGE et al., 2000;
BONICATTO et al., 2001).
Segundo Fleck (2000), o grupo WHOQOL utiliza uma
conceituação para qualidade de vida que tira o foco da ques-
tão sobre dados objetivos do meio ambiente, estado funcio-
nal ou psicológico, e tampouco está centrada na avaliação
de profissionais de saúde ou familiares. A ênfase é sobre a
percepção do respondente/paciente que está sendo avalia-
do. Fleck (2000) afirma que a WHOQOL foi desenvolvida
“partindo do princípio de que o conceito de qualidade de
vida é abrangente e pode ser aplicado a várias doenças e
situações não-médicas” (p. 36).
Fleck et al. (1999; 2000) utilizaram a aplicação da versão
em português do instrumento da OMS. Fizeram um primei-
ro estudo que objetivou testar o instrumento WHOQOL-100
em uma amostra de pacientes da cidade de Porto Alegre.
Foram selecionados para a composição da amostra pacien-
tes provenientes das diferentes especialidades atendidas em
um hospital, bem como os diferentes regimes de atendimen-
to (ambulatorial e internado). O resultado mostrou um bom
desempenho psicométrico. A escala apresentou caracterís-
ticas satisfatórias em termos de consistência interna, vali-
dade discriminante, validade de critério, validade concorrente
e fidedignidade teste-reteste.
O segundo estudo (Fleck et al., 2000) objetivou a apresen-
tação do teste de campo brasileiro do WHOQOL-bref. Esse

163
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

instrumento consta de 26 questões, subdivididas em quatro


domínios: físico, psicológico, relações sociais e meio ambien-
te. No início da escala constam duas questões gerais de quali-
dade de vida e as demais 24 representam cada uma das facetas
que compõem o instrumento original WHOQOL-100, ou seja,
cada faceta é avaliada por uma questão (Quadro 1).
Aplicou-se tal instrumento em 300 indivíduos na cidade
de Porto Alegre. Foram obtidas características satisfatórias
de consistência interna, validade discriminativa, validade de
critério, validade concorrente e fidedignidade teste-reteste,
o que de acordo com os autores coloca esse instrumento como
uma alternativa útil para ser aplicada em estudos que se
propõem a avaliar a qualidade de vida no Brasil.

Quadro 1. Domínios e facetas do WHOQOL-bref.


Domínio Facetas
1. Dor e desconforto
2. Energia e fadiga
3. Sono e repouso
D 1 - Físico 9. Mobilidade
10. Atividades da vida cotidiana
11. Dependência de medicação ou de tratamento
12. Capacidade de trabalho
4. Sentimentos positivos
5. Pensar, aprender, memória, concentração
6. Auto-estima
D 2 - Psicológico
7. Imagem corporal e aparência
8. Sentimentos negativos
24. Espiritualidade/religião/crenças pessoais
13. Relações pessoais
D 3 - Relações
so ci a i s 14. Suporte (apoio) social
15. Atividade sexual
16. Segurança física e proteção
17. Ambiente no lar
18. Recursos financeiros
D 4 - Meio 19. Cuidados de saúde e sociais: disponibilidade e qualidade
ambiente 20. Oportunidades de adquirir novas informações e habilidades
21. Participação em, e oportunidades de recreação/lazer
22. Ambiente físico (poluição/ruído/trânsito/clima)
23. Transporte

164
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

As 26 questões são pontuadas por meio de uma escala do


tipo Likert de cinco pontos, como observado no Quadro 2.
As questões 1 e 2 referem-se à satisfação geral em qualidade
de vida.
Quadro 2. Questões e alternativas do WHOQOL-bref.

Questões Alternativas

Nem ruim nem


1, 15 Muito ruim Ruim B oa Muito boa
boa
Muito Nem satisfeito
2, 16 a 25 Insatisfeito Satisfeito Muito satisfeito
insatisfeito nem insatisfeito
3a9 Nada Muito pouco Mais ou menos Bastante Extremamente
10 a 14 Nada Muito pouco Médio Muito Completamente
Muito
26 Nunca Algumas vezes Freqüentemente Sempre
freqüentemente

Assim, a WHOQOL-bref foi empregada nesse estudo para


a avaliação da qualidade de vida de mães de crianças com
autismo por ser um instrumento de medida da qualidade de
vida genérico, ou seja, que admite sua utilização na popula-
ção em geral para apreciar uma ampla gama de domínios
relacionados a estado de saúde, condições e doenças. É apli-
cável tanto a indivíduos saudáveis como doentes, não espe-
cificando patologias, funções ou situações de vida.

4. PROCEDIMENTO
Coleta de dados
Iniciou-se a coleta de dados mediante o contato com as
instituições de atendimento em que seria realizada a pes-
quisa. Uma vez obtida a anuência das duas instituições es-
pecializadas, foi efetuado um levantamento preliminar das
mães de crianças que as freqüentavam (crianças portado-
ras de autismo infantil ou transtorno autista, transtorno
invasivo do desenvolvimento ou transtorno global do de-

165
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

senvolvimento, de até doze anos de idade). Posteriormente,


foi feito o convite a cada uma das mães elegíveis para a
participação voluntária na investigação, almejando-se obter
um mínimo de vinte participantes dentre aquelas que pre-
enchiam os critérios de inclusão.
No encontro previamente agendado com as entrevistadas
realizou-se a aplicação do instrumento WHOQOL-bref, com-
plementado por um questionário do perfil sócio-demográfi-
co e cultural das participantes. O instrumento foi lido pela
pesquisadora juntamente com a participante, seguindo-se as
instruções de aplicação preconizadas para a técnica.
Análise dos dados
A WHOQOL-bref permite aferir a qualidade de vida em
quatro domínios específicos: físico, psicológico, relações so-
ciais e meio ambiente. Os resultados da escala foram avalia-
dos de acordo com os parâmetros recomendados pela OMS.
Os resultados do questionário de identificação do perfil
sociodemográfico e cultural das participantes foi avaliado
utilizando-se métodos de estatística descritiva, mediante a
tabulação das freqüências e médias.

5. VARIÁVEIS INCLUÍDAS NO ESTUDO


5.1 Qualidade de vida
Para Minayo, Hartz e Buss (2000) a qualidade de vida é
uma noção eminentemente humana “que tem sido aproxi-
mada ao grau de satisfação encontrado na vida familiar,
amorosa, social e ambiental e à própria estética existen-
cial” (p. 8). Nesse contexto, a qualidade de vida está relacio-
nada à satisfação com o bem-estar físico e mental, com as
relações estabelecidas com outras pessoas, com o envolvi-
mento em atividades sociais, comunitárias e cívicas, com o
desenvolvimento e enriquecimento pessoal, bem como com
recreação e independência para a realização de atividades.
O Grupo de Qualidade de Vida (The WHOQOL Group,
1995) criado pela OMS definiu o termo qualidade de vida

166
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

como a percepção do indivíduo de sua posição na vida, no


contexto de cultura e do sistema de valores em que vive e
em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preo-
cupações. Essa definição parece considerar a percepção do
indivíduo em relação à própria qualidade de vida, ou seja,
sua própria avaliação dos domínios físico, psicológico, de
relações sociais e do meio ambiente em que vive. Fleck et
al. (1999) afirmam que fica implícito nessa definição que o
conceito de qualidade de vida é subjetivo e multidimensio-
nal, incluindo elementos de avaliação tanto positivos quanto
negativos.
No presente estudo foi investigada a satisfação em quali-
dade de vida avaliada subjetivamente pelas mães das crian-
ças portadoras de autismo, considerando-se suas percepções
acerca de suas próprias condições de vida cotidiana.

5.2 Características sociodemográficas e culturais


A escolha das variáveis sociodemográficas e culturais que
seriam investigadas foi amparada principalmente em dados
da literatura, mas também foi utilizado o conhecimento clí-
nico dos pesquisadores no julgamento daquelas informações
consideradas relevantes para alcançar os objetivos propos-
tos. Foram selecionadas as seguintes variáveis:
5.2.1 Idade da criança
Para a definição dessa variável as informações relativas
à idade da criança foram obtidas junto às instituições du-
rante o levantamento dos casos atendidos de crianças com
até 12 anos de idade. Esse dado também foi indagado nas
entrevistas com as mães, durante a aplicação do questio-
nário sociodemográfico e cultural. Essa variável foi defini-
da pela idade da criança em anos, confirmada pela mãe.
5.2.2 Idade da mãe
Essa variável foi definida como a idade da mãe em anos,
referida pela própria participante em resposta ao questio-
nário sociodemográfico e cultural.

167
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

5.2.3 Estado civil


Essa variável refere-se ao estado civil da mãe no mo-
mento da aplicação do questionário sociodemográfico e cul-
tural. O estado civil foi avaliado visando diferenciar as mães
que dividiam a responsabilidade pelo cuidado do filho com
um companheiro daquelas que cuidavam sozinhas da crian-
ça. Os dados sobre a participação de outros membros da
família (marido, filhos) ou de outros cuidadores formais
(funcionários) foram também investigados pela entrevista
semi-estruturada.
5.2.4 Escolaridade da mãe
A variável escolaridade da mãe foi definida como o nú-
mero de anos escolares cursados. Durante a aplicação do
questionário sociodemográfico e cultural era perguntado
até que série a mãe havia estudado, considerando-se a série
completa. Assim, o nível de escolaridade foi subdividido em:
sem escolarização, ensino fundamental incompleto e com-
pleto, ensino médio incompleto e completo, ensino superior
incompleto e completo.
5.2.5 Renda per capita
Essa variável foi caracterizada como a soma dos rendi-
mentos auferidos por todos os integrantes da família que
exerciam atividade remunerada, dividida pelo número de
pessoas que moravam na casa. Durante a aplicação do ques-
tionário sociodemográfico e cultural era questionado sobre
um valor aproximado da renda familiar, tendo por base os
proventos obtidos nos últimos seis meses que antecederam à
entrevista. Perguntava-se quem morava na casa, suas res-
pectivas idades e quem mantinha financeiramente a família.
5.2.6 Trabalho da mãe
Duarte (2000) adotou a variável trabalho da mãe, definido
como “o local de trabalho da mãe”, subdividindo as mães que
trabalham em casa e fora do lar com o propósito de “identifi-

168
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

car mães que ficavam mais afastadas do lar e dos filhos devi-
do ao trabalho” (p. 101). Como esse propósito se adequou bem
ao presente estudo, foi assumido esse pressuposto.
Assim, essa variável foi definida de modo a diferenciar
as mães que trabalhavam em casa e aquelas que exerciam
atividades remuneradas inseridas no mercado formal ou
informal de trabalho. Consideraram-se os casos de traba-
lho em meio período do dia como trabalho fora de casa. O
propósito foi identificar mães que se dedicavam integral-
mente à criança e aquelas que dividiam seu tempo com o
trabalho extra-doméstico.
5.2.7 Número de filhos
A variável número de filhos foi definida como o número
de filhos (biológicos e/ou adotivos) da participante que mo-
ravam na casa. Perguntava-se à mãe quantos filhos tinha e
quantos moravam em sua casa.
5.2.8 Religiosidade
A variável religiosidade foi definida como a prática re-
gular ou não de cultos religiosos pela entrevistada.

Resultados
1. PARTICIPANTES
1.1 Procedência das participantes
Para compor o grupo de participantes recorreu-se a duas
instituições especializadas. Foram incluídas 20 mães no es-
tudo, sendo treze oriundas da instituição A e sete da insti-
tuição B. A instituição A é uma entidade sem fins lucrativos,
uma organização não governamental. Já a instituição B é
vinculada à administração municipal.
A Tabela 1 indica a quantidade e a procedência das crian-
ças portadoras de autismo, cujas mães fazem parte desse
estudo. A maior parte das participantes (65%) tem filhos
atendidos pela instituição A.

169
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Tabela 1. Distribuição percentual das mães de crianças


portadoras de autismo, segundo o número de
participantes previstas, incluídas e excluídas
do estudo, conforme a instituição de origem.

Instituições Mães previstas Mães incluídas Mães excluídas

n % n % n %
A 10 50 13 65 – –
B 10 50 7 35 3 15
Total 20 100 20 100 3 15

1. 2. CARACTERÍSTICAS SÓCIO-DEMOGRÁFICAS
Os dados da Tabela 2 revelam que a média de idade das
participantes cujos filhos freqüentavam a instituição A foi
de aproximadamente 39 anos, enquanto que da instituição
B foi de aproximadamente 41 anos, tendo a amostra toda
apresentado a idade mínima de 29 anos e máxima de 56 anos
para as mães de crianças portadoras de autismo.
A idade média das crianças foi de aproximadamente dez
anos nas duas instituições. Em média, as famílias envolvi-
das no estudo eram constituídas de três filhos, em ambas
as instituições.
Um dado que chama a atenção é concernente ao nível de
escolaridade, medido em anos de estudos completos (Tabe-
la 3). A escolaridade média da amostra da instituição A foi
de 10 anos aproximadamente, ao passo que na outra se apro-
ximou dos quinze anos, indicando, portanto, uma quanti-
dade maior de participantes que tiveram acesso ao ensino
médio e superior. Considerando-se a totalidade da amostra,
25% das participantes cursaram o Ensino Fundamental
completo, enquanto outros 25% não chegaram a completar
o Ensino Médio; 25% não concluíram o ensino fundamen-
tal. A Tabela 3 mostra ainda que 85% das mães não esta-
vam inseridas no mercado formal de trabalho, ocupando-se
de atividades domésticas e do cuidado direto ao filho.

170
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

Esse dado é consistente com o indicador referente à ren-


da per capita (Tabela 2), que aponta diferenças entre as famí-
lias assistidas pelas duas instituições. Sua análise permite
inferir que o padrão de vida da clientela da instituição B,
indicado por esse dado, foi quase o dobro do rendimento das
famílias da instituição A.

Tabela 2. Valores médios das variáveis sociodemográfi-


cas nos grupo de mães das instituições A e B.

Características Instituição A Instituição B


sociodemográficas
Média Mín. Máx. Média Mín. Máx.

Idade da mãe (anos) 38,53 29 53 40,71 32 56

Idade da criança (anos) 9,76 3 12 10 5 12

Escolaridade da mãe (anos) 10,30 5 17 14,71 10 17

Renda per capital (reais) 262,56 75,00 666,66 460,11 87,50 1100,00

Número de filhos 2,61 1 6 2,71 1 4

Com relação ao estado civil (Tabela 3), 18 participantes


eram casadas (90%), uma declarou estar amasiada (5%) e
outra separada (5%). Esse dado indica que apenas uma mãe
não contava com a presença de um companheiro em casa.
Foi considerado trabalho da mãe quando a participante
permanecia pelo menos meio período em outro local que
não fosse sua casa. Apenas duas participantes (10%) passa-
vam algum dos períodos fora de casa, por motivo de traba-
lho remunerado. Outras duas participantes (10%), uma
cursando ensino superior e outra pós-graduação, relataram
passar pelo menos um dos períodos ausente de casa. Ape-
nas duas participantes relataram contar com auxílio de uma
babá para o cuidado com a criança portadora de autismo.
171
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Tabela 3. Características gerais da amostra: estado


civil, nível de escolaridade e trabalho da mãe.
N %
Estado civil
Solteira – –
C a sa d a 18 90
Amasiada 1 5
Separada 1 5
Viúva
Nível de escolaridade
Sem escolarização – –
Ensino fundamental incompleto 5 25
Ensino fundamental completo 2 10
Ensino médio incompleto 2 10
Ensino médio completo 5 25
Ensino superior incompleto 1 5
Ensino superior completo 5 25
Trabalho da mãe
E m ca sa 17 85
Fora de casa 3 15

Quanto à religiosidade, dez participantes (50%) relataram


manter prática regular de cultos religiosos. Outras oito de-
clararam possuir religião, mas não freqüentarem cultos (40%),
e outras duas relataram não seguir qualquer religião (10%).
Na amostra desse estudo, seis crianças portadoras de
autismo eram filhos mais velhos (30%), outros seis eram
filhos mais novos (30%). Em quatro casos (20%) as crian-
ças eram filhos únicos, em dois casos a criança portadora
era o segundo filho (10%) e em apenas um caso era o tercei-
ro filho (5%). Houve um caso de gêmeos em que um dos
meninos era portador de autismo (5%).
Apenas duas crianças (10%) estavam participando do
processo de inclusão escolar, ambas matriculadas na segun-
da série do Ensino Fundamental. Nesses casos, freqüenta-
vam a escola em paralelo com as atividades da instituição
especializada.

172
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

2. AVALIAÇÃO DA SATISFAÇÃO EM QUALIDADE DE VIDA


O primeiro aspecto que pode ser avaliado a partir da apli-
cação do instrumento WHOQOL-bref é a verificação da
satisfação geral em qualidade de vida decorrente das ques-
tões 1 (“Como você avaliaria sua qualidade de vida?”) e 2
(“Quão satisfeita você está com a sua saúde?”).
Com relação à primeira questão, 14 participantes (70%)
avaliaram sua qualidade de vida como boa, enquanto seis
participantes (30%) estimaram como muito boa. Quando
questionadas sobre o quão satisfeitas estariam com sua
saúde, três responderam que estavam insatisfeitas (15%),
oito não estavam nem satisfeitas nem insatisfeitas (40%),
outras oito responderam que estavam satisfeitas (40%) e
uma respondeu que estava muito satisfeita com sua saúde.
De todas as participantes, sete entrevistadas (35%) atri-
buíram valores maiores ao domínio físico, quatro ao domí-
nio psicológico (20%), oito ao domínio social (40%) e duas
ao domínio ambiental (10%).
A Tabela 4 mostra o resultado médio da avaliação de
todas as entrevistadas acerca da qualidade de vida nos di-
ferentes domínios. Houve uma melhor apreciação, em or-
dem crescente, dos domínios: físico (Domínio 1), social
(Domínio 3), psicológico (Domínio 2) e ambiental (Domí-
nio 4).

Tabela 4. Valores médios, mínimos e máximos obtidos


nos diferentes domínios da qualidade de
vida, segundo a aplicação do WHOQOL-bref.

Domínios Média Mín. Máx.


Domínio 1 69,40 46 96
Domínio 2 66,85 37 87
Domínio 3 67,50 17 92
Domínio 4 60,80 31 97

173
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

A maioria das participantes da pesquisa avaliou positi-


vamente sua qualidade de vida. Apenas uma entrevistada
apresentou escores divergentes, abaixo das pontuações das
demais participantes. O domínio melhor apreciado refere-se
ao físico, que engloba questões relativas à dor e desconforto,
energia e fadiga, sono e repouso, mobilidade, atividades da
vida cotidiana, dependência de medicação ou tratamento e
capacidade de trabalho.
O domínio meio ambiente foi o menos pontuado. Englo-
ba os seguintes aspectos: segurança física e proteção, am-
biente no lar, recursos financeiros, cuidados de saúde e
sociais (disponibilidade e qualidade), oportunidades de
adquirir novas informações e habilidades, participação e
oportunidades de recreação e lazer, ambiente físico (polui-
ção, ruído, trânsito, clima) e transporte.

Discussão
A maioria das participantes entrevistadas, mães de crian-
ças que demandam cuidados especiais, era cuidadora direta
dos filhos e despendia a maior parte de seu tempo atenden-
do às demandas de cuidados da criança. Assim, toda sua
atenção era dedicada a esse objetivo, dividida apenas com
os afazeres domésticos.
As participantes avaliaram positivamente sua qualida-
de de vida, sendo que em apenas um caso essa apreciação
apareceu prejudicada, se comparada com as demais.
É interessante observar que o domínio físico foi o aspecto
da qualidade de vida melhor apreciado. Esse domínio ava-
lia a presença de dor e desconforto físico, a disposição de-
monstrada no dia-a-dia (energia versus suscetibilidade à
fadiga), funções integrativas (sono e repouso), mobilidade,
desempenho de atividades de vida cotidiana, dependência
de medicação ou de tratamento e capacidade de trabalho. O

174
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

dado encontrado é de certo modo surpreendente, uma vez


que poder-se-ia supor que a devoção materna ao filho com
autismo requer o desempenho recorrente de múltiplas ta-
refas que interferem nas demais atividades da vida cotidia-
na, podendo resultar em estresse físico e suscetibilidade à
fadiga crônica.
Pode-se aventar a hipótese de que essas mães, no afã de
responderem adequadamente às demandas de cuidados in-
tensivos que seus filhos exigem, muitas vezes deixam de
olhar para si mesmas, isto é, para suas próprias necessi-
dades, inclusive no plano físico, decorrentes do desgaste
gerado pela função materna, lembrando que a maioria ti-
nha de cuidar de outros filhos, além da casa. A limitação
do suporte familiar e institucional, referida em comentá-
rios espontâneos durante e após o preenchimento da escla,
parece levá-las a ocupar o centro dos cuidados oferecidos
à criança, sobrecarregando-se com múltiplos afazeres que
monopolizam integralmente sua atenção e moldam seu co-
tidiano.
Desse modo, vêem-se obrigadas a se desdobrarem para
cumprir com suas múltiplas tarefas de cuidadoras.
A avaliação do domínio psicológico, que em termos nu-
méricos encontra-se muito próxima da estimativa do do-
mínio social, parece igualmente sinalizar uma certa
satisfação por parte dessas mães com sua qualidade de vida.
O domínio psicológico da escala de qualidade de vida utili-
zada avalia a presença de sentimentos positivos versus
negativos, atividade cognitiva (pensar, aprender), memória
e concentração, auto-estima, preocupação com a imagem
corporal e a aparência, bem como os aspectos relacionados
à espiritualidade, religião ou crenças pessoais. Novamente
o dado encontrado surpreende, na medida em que é espera-
do que uma sobrecarga emocional possa ocorrer em função
da necessidade de alterações drásticas na rotina familiar
para adequar-se aos cuidados com a criança. Pode-se vis-

175
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

lumbrar a hipótese de que o convívio intenso com uma si-


tuação de enfermidade crônica na família por anos a fio
possivelmente levou essas mães a se adaptarem às suas vi-
cissitudes, incorporando os cuidados especiais à rotina de
vida.
O domínio social da qualidade de vida permitiu aferir a
satisfação das mães com suas relações pessoais, o suporte
(apoio) social que recebem no cotidiano e sua atividade sexu-
al. Já o domínio ambiental, comparativamente o menos apre-
ciado, inclui, entre outros, itens relativos à percepção de
segurança física e proteção, recursos financeiros, cuidados
de saúde e sociais, participação e oportunidades de recrea-
ção e lazer, ambiente físico e meio de transporte. As altera-
ções parecem estar presentes de forma mais evidente no
âmbito financeiro, em termos de gastos com medicações,
eventuais hospitalizações e os encargos econômicos com a
institucionalização da criança (ainda que não remunerada).
Assim, os dados sistematizados permitem concluir que,
na percepção das mães examinadas, é necessário dedicar
maior atenção a aspectos tais como a disponibilidade (acesso
a serviços) e a qualidade dos cuidados de saúde e de aten-
ção/apoio social no manejo da criança acometida, bem como
ampliação das oportunidades de recreação e lazer para os
cuidadores de crianças com transtornos invasivos do de-
senvolvimento.

Referências

ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA. Manual


diagnóstico estatístico de transtornos mentais. 4. ed. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1995. (DSM, 4).
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180
8. TERAPIA GRUPAL E INDIVIDUAL:
UM ESTUDO COMPARATIVO1

Érika Aparecida Moreira Mendes


Marília Aparecida Muylaert

Iniciando o século nos encontramos diante de um mo-


mento de crescente intensificação dos processos de indivi-
dualização das práticas sociais e psíquicas. Esse processo
possui suas coordenadas históricas a princípio no panora-
ma histórico desde os séculos XVI e XVIII de forma disper-
sa, mas obtendo maior visibilidade com o decorrer dos anos.
O indivíduo como dominância da expressão da subjetivida-
de vai sendo composto por linhas diversas:

[...] o liberalismo econômico, o romantismo valorizador das


expressões de cada um, o êxodo de grande parte da popula-
ção do campo para a cidade, a instauração de uma nova utili-
zação do corpo nas relações de trabalho, a mudança das
relações entre o domínio público e privado, a criação de no-
vos equipamentos sociais difusores dos ideais da burguesia
ascendente e etc, passa a se apresentar em diferentes práti-
cas sociais, produzindo objetos e sujeitos conforme este modo
(Barros, 1994:123). [...] Ao ser evocado em seus direitos de
cidadão livre e único, o indivíduo é impelido a perseguir as

1
Pesquisa financiada pela FAPESP, realizada no ano de 1998, da qual constam duas partes: um estudo
exploratório na versão dos usuários e outro na versão dos terapeutas.
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

características da sua identidade auto-centrada. Espaços


como a casa e a família são remetidos a outros sentidos à
medida que se separam do trabalho, uma vez que passa a
concentrar a afetividade e o intimismo em seu interior. Es-
ses procedimentos e técnicas de isolamento e segregação dos
diferentes espaços imprimem no sentido de individualismo
nas práticas sociais e nas formas de estar e, sentir e ver no
mundo. Com isso as práticas psíquicas passam a ser construí-
das baseadas nesse modelo totalizante e estrutural do indi-
víduo (Op cit, 156).

Com base nas considerações acima, a hipótese inicial


desse trabalho parte do princípio de que a terapêutica indi-
vidual ao trabalhar com o sujeito isoladamente legitima a
representação universalista do homem, remetendo este a
uma interioridade dada como natural, apartada dos pro-
cessos históricos que a constituem. Embora clínica grupal
esteja sujeita a mesma representação totalizante e natura-
lização do saber, o grupo, contudo, pela diversidade de mo-
dos de experimentação que este abriga, pode funcionar como
dispositivo, provocando interrogações e confrontos, pertur-
bando toda tentativa de homogeneização das formas de sub-
jetivação, de modo a tornar visível que sujeito e mundo se
implicam mutuamente.
Assim, essa pesquisa teve por objetivo analisar os dife-
rentes sentidos atribuídos por pessoas que procuraram
tratamento clínico individual, daquelas que optam por uma
terapia grupal. Desde o início, ficou evidente que os aspectos
investigados, a saber, as representações que os sujeitos fa-
zem da terapêutica individual e do grupo, também estão
atravessadas pela idéia de que o sujeito traz em si uma in-
terioridade psicológica. Esse viés imaginário no qual os su-
jeitos se vêem como estrutura psíquica, é o ponto que
articula as representações (a representação da clínica como
experienciação da interioridade de si) e do grupo (a repre-

182
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

sentação do grupo como lugar de exposição e prática super-


ficial).
Deste modo, foi utilizada a análise do discurso como
método de pesquisa, pois este nos pareceu uma forma de
relacionar as representações que aparecem nos dados, con-
vergindo-as para um regime discursivo, desvinculado dos
processos históricos que o constituem, permitindo que os
sentidos que atravessam o discurso tomem forma.
Em função disso, esse trabalho foi embasado nas idéias
de teóricos como Foucault, Deleuze, Guattari, Rolnik e
Barros2, cujas pesquisas fundam-se numa perspectiva da
historicidade do discurso. Algumas idéias e considerações
desses teóricos possibilitaram rastrear nos sentidos (repre-
sentações) atribuídos pelos sujeitos aos atendimentos indi-
vidual e grupal, suas marcas de pertencimento ao registro
histórico, ou seja, sinalizar que tipos de sujeitos e seus di-
ferentes pontos de vista acerca dos objetos e do real, são
construídos por processos históricos sociais.
Nesta perspectiva, ao entendimento que os sujeitos fi-
zeram da clínica como lugar de experienciação de sua inte-
rioridade e do grupo como lugar de exposição e prática
superficial, foi discutido conforme as idéias dos pensadores
acima citados.

Método
Foram sujeitos desta pesquisa três pessoas que estão em
atendimento individual e três em atendimento grupal, to-
talizando seis sujeitos.
Com a finalidade de se atingir os objetivos propostos,
utilizamos como instrumento de trabalho a entrevista
semidirigida e de seqüência flexível. Optamos pela entre-

2
Referidos na Bibliografia.

183
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

vista semidirigida para que pudéssemos obter um contato


imediato com as questões relevantes para a pesquisa, pos-
sibilitando o aprofundamento dos significados surgidos.
Esta técnica vem ao encontro dos objetivos da pesquisa,
já que possibilitou o aparecimento do que é invisível às
técnicas estatísticas tradicionais. As questões foram ela-
boradas visando a facilitação da sistematização e análise,
assim como a aproximação das múltiplas possibilidades
de apreensão da terapia.
As questões elaboradas para a entrevista com os sujei-
tos foram:
1. Quais os motivos que levaram a procura de terapia?
2. O que pensa a respeito da terapia individual?
3. O que pensa a respeito da terapia grupal?
4. Percebeu mudanças no decorrer do processo terapêutico?

REALIZAÇÃO DAS ENTREVISTAS COM OS SUJEITOS


SELECIONADOS
Como já dito anteriormente, o objetivo desta pesquisa
foi analisar os diferentes sentidos atribuídos por pessoas
que procuram tratamento clínico individual, das pessoas
que optam por uma terapia grupal. Os sujeitos de ambas as
modalidades de atendimento foram selecionados no CCPA -
Centro de Pesquisa e Psicologia Aplicada da UNESP de
Assis. Convém salientar que a razão determinante para a
seleção dos sujeitos na Unidade mencionada, refere-se à di-
ficuldade de se encontrar pessoas em atendimento grupal
no sistema público de saúde. Os motivos para isso foram
objeto de investigação desse estudo e, portanto serão discu-
tidos no decorrer deste trabalho.
Assim, optamos por realizar a seleção dos sujeitos na
referida instituição, por termos encontrado grupos em aten-
dimento bem como pela menor dificuldade de agendamento
das entrevistas e na disponibilidade de espaço para realiza-
ção das mesmas.

184
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

A aplicação das entrevistas foi realizada em duas eta-


pas: na primeira, foram selecionados - através de sorteio
aleatório - 3 sujeitos de cada modalidade. Na segunda, fo-
ram realizadas as entrevistas - gravadas em fitas cassete
para posterior transcrição a fim de possibilitar o levanta-
mento, sistematização e análise dos dados.
No que diz respeito às dificuldades encontradas no pro-
cesso de realização das entrevistas, a primeira já dita ante-
riormente refere-se a dificuldade na obtenção dos sujeitos
em atendimento grupal. Outra dificuldade encontrada foi a
obtenção de respostas sintéticas e mais objetivas por parte
de alguns sujeitos, o que levou ao acréscimo de algumas
questões além das propostas, objetivando uma maior in-
vestigação e exploração das perguntas não respondidas de
forma satisfatória para tratamento dos dados.
O critério utilizado para a seleção da amostra foi que os
sujeitos tivessem realizado ou estivessem realizando pro-
cesso psicoterápico individual ou grupal. A distinção entre
o paciente ter passado pelo processo de atendimento psico-
terápico em uma das modalidades não pareceu significati-
va, uma vez que, o fato do sujeito haver iniciado um ou outro
modo de atendimento, foi suficiente para que o mesmo fa-
lasse a respeito de sua vivência.
Nesta pesquisa utilizamos como método de trabalho a
Análise do Discurso, por considerarmos o melhor modo de
se verificar o que propusemos como objetivo, ou seja, os
sentidos atribuídos pelos sujeitos ao atendimento indivi-
dual e atendimento grupal.
Para Maingueneau (2004), a chamada escola francesa da
análise do discurso, nasce nos anos 60, ligada à tradição
européia (França), habituada a articular a reflexão do tex-
to com a reflexão sobre história. Rompendo com uma tra-
dição que considera o discurso como um conjunto de signos
e instrumentadores da comunicação e do pensamento, a
Análise do Discurso conceberá a linguagem como discurso

185
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

interativo, determinante do modo de produção das relações


sociais. Assim, a linguagem considerada por esse ângulo,
não é unicamente instrumento de comunicação. Não é uma
prática naturalizada e neutra, ela já está implicada em uma
intencionalidade, isto é, numa produção de sentido que
aponta para as diversas formas com que os agentes sociais
representam e estabelecem relação com o real.
Por isso a palavra, signo ideológico por excelência, é o
lugar de manifestação da historicidade dos sentidos, de sua
plurivalência, assegurando as diversas vozes e o seus em-
bates, diferentes perspectivas daqueles que o empregam.
Desta forma, a linguagem não pode ser encarada como en-
tidade abstrata, mas “[...] o signo deve ser encarado na sua
inscrição nos processos históricos e sociais, ou seja, a rela-
ção necessária entre o dizer e suas condições de produção.”
(Orlandi, 2001,p.33).
A Análise do Discurso foi escolhida como parâmetro de
análise, justamente por sinalizar na fala do sujeito, a his-
toricidade constituinte do sentido comunicado. Portanto,
aquilo que o sujeito diz, já é o dito (discursos construídos
historicamente) que fundam o seu ponto de vista diante do
fenômeno analisado. Assim, os sentidos que os sujeitos atri-
buem às modalidades de atendimento grupal/individual, são
determinados pela inscrição dos sujeitos nos regimes discur-
sivos da atualidade e, neste estudo, identificar por meio da
Análise do Discurso, os planos discursivos nos quais os senti-
dos que o sujeito atribui à terapêutica individual e grupal.
Com a finalidade de identificar tais planos discursivos,
foram utilizadas as seguintes categorias de análise:
1. A procura por terapia: Os processos ou acontecimen-
tos que levaram à terapia individual ou grupal;
2. A representação da terapia individual: O plano dis-
cursivo que o entrevistado usa para falar de seu proces-
so terapêutico;

186
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

3. A representação da terapia grupal ou do grupo:


Como o sujeito vê e fala desse processo;
4. O acontecimento terapêutico: Como o entrevistado
pensa o que é o ato terapêutico, como ele fala desse pro-
cesso em relação a si mesmo.

ANÁLISE DO CORPUS DA PESQUISA


Nesta etapa da pesquisa foram utilizadas categorias de
análise como esquema de trabalho, a fim de facilitar a iden-
tificação dos temas (conjuntos discursivos) nos quais se
fundam as representações que o sujeito atribui a terapia
individual e terapia grupal. Devido à natureza desta publi-
cação, foram suprimidas as análises completas das entre-
vistas. Trechos significativos e exemplares das entrevistas
– tanto de usuários de Terapia Individual (TI) como de Gru-
pal (TG)3 – foram pinçados do texto e, segundo as categorias
de análise estão abaixo expostos:

1. A procura por terapia


Eu acho que se uma pessoa vai procurar terapia, é por-
que ela já passou por todos os meios de ajuda e não conse-
guiu ajuda. Já deve ter conversado com uma amiga e não
ter feito diferença... eu acho que meu problema fazia parte
do meu modo de existir... Então, tipo é uma ponta de espe-
rança que eu ainda tive.4

A terapia é percebida pelo entrevistado como espaço de


ajuda, de acolhimento do sofrimento das questões huma-
nas. Essas inquietações são percebidas como problemas a
serem solucionados, uma vez que o sofrimento produzido

3
As siglas TI e TG referem-se respectivamente a Terapia Individual e Terapia Grupal assim como as
siglas E seguidas de numeração, referem-se aos Entrevistados.
4
Os segmentos de frase grifados nas falas dos Entrevistados salientam os indicadores das análises
e serão sempre meus.

187
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

por essas vivências é compreendido pelo sujeito como algo


que lhe é particular, não pertencente à existência coletiva e
que, portanto, precisa ser tratado. Nesse sentido, as ques-
tões humanas são entendidas como sintomas, ou seja, como
falhas e dificuldades provenientes de um mundo interno pro-
blemático, distinto de uma produção coletiva (social). As-
sim, a clínica individual aparece ao sujeito como um lugar
de experimentação e saber sobre essa suposta interioridade.

2. A representação da terapia individual


Eu sinto que na terapia individual, eu pelo menos tenho
mais necessidade de levar uma queixa, porque no grupo não,
eu vinha do jeito que estava, a gente falava de música, e
banalidades de uma forma mais natural; mas a terapia in-
dividual eu sinto, não, não posso perder tempo falando es-
sas coisas, é muito diferente e eu não sei qualificar qual é
melhor, porque no grupo aprendi muito com as pessoas,
aprendi muito com as diferenças, e a terapia é eu, ela é uma
relação muito diferente

Para o entrevistado a terapia individual impõe a neces-


sidade de o mesmo falar de si como uma interioridade, as
questões existenciais são pensadas como queixa, ou seja,
como sintoma de rupturas que se processam no sujeito en-
quanto estrutura psíquica, destacada da inscrição no cole-
tivo. Já o Grupo se configura como lugar de encontros em
modos diferentes de sentir, pensar e se relacionar com o
mundo e, assim, pela multiplicidade que abriga, produz
aprendizado. O espaço grupal também é percebido como
atravessado por outras formas de expressão, de produção
cultural que descentraliza o sujeito, fazendo-o perceber
outras formas possíveis do humano falar de si e do mundo.
Ao dizer que o grupo se dá de maneira natural, o entrevis-
tado sente no grupo uma leveza que podemos entender como

188
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

fissuras, escapes na forma de subjetividade centrada no in-


divíduo, o que propicia uma abertura ao atravessamento
coletivo. Percebemos uma indefinição sobre a atribuição de
valores a TI ou TG, a propósito do modo como o grupo é
trabalhado, indicando uma outra vivência que não pode mais
ser crivada de ineficaz.

3. A representação da Terapia Grupal


Então lá é um grupo de convivência, a proposta inicial
era essa, depois a gente foi se identificando com propostas
mais terapêuticas, mas lá nunca teve devolutiva, então não
sei como é um grupo terapêutico realmente. Lá era, mais
era porque acabou agora, estou triste até com isso, então eu
acho que gostava de lá, porque lá tinha bate-papo, é um es-
paço aberto para gente estar relaxando, estar discutindo uma
coisa que já estava querendo, desde música até alguma coi-
sa que te incomodou naquela semana... para dar risada...
Não sei, é um espaço assim

O Grupo é relatado pela entrevistada como um lugar de


encontros, um espaço de trocas. Na mesma medida em que
coloca que o Grupo (...) era muito terapêutico para mim (...),
percebe-se que embora este não apresentasse uma proposta
terapêutica convencional (idéia de cura), suscitava bem es-
tar e acolhimento. Além da fala de si, o Grupo possibilita
que o sujeito vivencie outras possibilidades de sentir e pen-
sar a vida, desde música até problemas de seus membros, o
que configura o grupo como um espaço mais flexível do que
a clínica individual.

4. O ato terapêutico
(...) A partir de certo tempo como falei, a terapia foi se
aprofundando mais, depois que me senti mais à vontade.
No começo havia muito silêncio, muitos períodos de silên-

189
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

cio e poucas pessoas falavam, alguns com medo de falar,


com vergonha, ou alguma coisa assim. Aos poucos, assim,...
na medida em que foi caminhando a terapia, parece que foi
deixando de falar de coisas superficiais. Eu sentia assim
para mim, também achei melhor, por que eu comecei a falar
mais assim o que eu estava sentindo, na verdade o que que-
ria dizer realmente e mais profundamente na questão, quer
dizer, uma coisa não tão superficial.
Para o entrevistado o ato terapêutico se efetivou à medi-
da que o Grupo foi ganhando confiança para tornar pública
a experienciação da interioridade de cada um, possibilitan-
do o aprofundamento em suas questões internas. A efetiva-
ção do ato terapêutico foi sendo percebida através dos valores
diferenciais atribuídos à experimentação de lugares que a
TG foi introduzindo.

Análise e discussão dos dados


A partir das análises das entrevistas, identificamos os
temas (planos discursivos produzidos por processos histó-
ricos sociais), que constituem as representações que os su-
jeitos de ambas as modalidades de atendimento atribuíram
à terapia individual e terapia grupal. Observa-se que os te-
mas identificados são comuns aos entrevistados de ambas
formas de atendimento psicoterápica, parecendo, portanto,
não ser significativa ou diferencial o modo de atendimento
ser Grupal ou Individual. A seguir, serão apresentados os
conjuntos discursivos que auxiliaram na investigação da
pesquisa e a discussão sobre os dados colhidos.

1. A representação da terapia individual enquan-


to espaço de leitura para a experimentação da
interioridade do sujeito
O primeiro tema, foi rastreado conforme o sentidos que
os sujeitos atribuíram a terapêutica individual. De acordo
190
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

com o modo com que os sujeitos falaram sobre atendimen-


to individual, tentou-se identificar o tema (conjunto dis-
cursivo) no qual se sustenta o entendimento dado pelo sujeito
em relação à terapia. Esta é vista como um lugar de desco-
brimento e compreensão do eu.
Para os entrevistados de ambas as modalidades, a Clíni-
ca constitui-se como espaço que possibilita a experimenta-
ção de si enquanto interioridade. A Terapia Individual e
Grupal, nesse sentido, é definida pelos entrevistados como
propiciadora desta forma do falar de si e pensar nas suas
relações consigo e com um mundo, conforme este modo in-
timista. Isto pode ser observado nos trechos de alguns re-
latos transcritos:

E1: (...) como já falei que a entrega é maior quando você


vê uma única pessoa na sua frente. E eu acho que no grupo
isso ía... muitas pessoas viam..., trazer um sentimento perse-
cutório, e com razão, pois ia estar expondo o que há de mais
íntimo da existência, e várias pessoas estariam ouvindo.
E2: (...) eu acho que muitas coisas não íam fluir muito,
até individualmente é difícil entrar em contato com certas
coisas da gente...

Assim, a Terapia foi representada pelos entrevistados


como espaço de abertura para experienciar essa interiori-
dade pensada como pertencente ao mundo interno privado,
apartado de um coletivo.
Nesse sentido, a Terapia Individual assegura para os
sujeitos a vivência de si enquanto integridade psíquica, do-
tada de um modo de funcionamento próprio, tido como na-
tural e desvinculado do processo social, as formas de pensar,
sentir e se relacionar. Com isso a Terapia, seja ela Indivi-
dual ou Grupal, é vista como centrada no sujeito, por isto
remeter a idéia de que há um mundo interior que abriga

191
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

um suposto saber de si. Nesta perspectiva, a prática Clíni-


ca só se legitima para os entrevistados, na medida em que
fizer referência a existência de uma interioridade e a possi-
bilidade de vir a conhecê-la. Porém, percebe-se nos relatos
de ambos os entrevistados, que a prática clínica individual
possui uma centralização maior na Ênfase de um suposto
mundo interior, como pode ser visto no trecho abaixo:

E/T: A terapia individual é mais segura, tem mais aber-


tura, no vínculo você passa mais coisas, mais informações.
Acho que individual dá para se aproximar mais de você, é
mais centralizada.

Neste relato fica claro, este mesmo entendimento sobre


existência de uma interioridade, de modo que suas vivências
são entendidas como particulares por serem de natureza
individual. Para este entrevistado, a Terapia Individual é
percebida como mais centrada no sujeito, preservando em
certo sentido uma particularidade de seus sentimentos,
pensamentos e vivências. Para preservar esse sentido de
particularidade das questões humanas, o entrevistado se
sente mais à vontade na Terapia Individual, visto que ou-
tras pessoas não terão acesso a essas questões que são pen-
sadas como privadas.

E3/T: Eu acho que na terapia individual você fica mais à


vontade para falar de você. As atenções são mais voltadas
para você, tudo vai ser em cima daquilo que você está que-
rendo dizer especificamente de você, daquilo que você está
sentindo ali.
E2: Quando comecei a fazer terapia individual, e eu co-
mecei a ver muitas coisas que não sabia, assim, então, sobre
mim mesmo... então que foi trazendo muitas coisas, desco-
bertas minhas, do meu modo de funcionamento mesmo.

192
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

O que se pode notar através das análises das entrevistas


é que entre os entrevistados de ambas as modalidades ao
referir-se à terapêutica individual utilizam-se com freqüên-
cia de termos como centramento, aprofundamento, autoco-
nhecimento. Esses termos remetem à idéia de unidade. Com
isso percebe-se que há entendimento comum entre os en-
trevistados, de ambas as modalidades, do que se entende
por terapia. Logo, a diferença nos modos de atendimento
psicoterápico não constitui por si só um elemento distinto
para modo com que os entrevistados falaram da terapêuti-
ca Individual e Grupal.
Esse entendimento comum que atravessa os entrevista-
dos de ambas as formas de atendimento psicoterápico, é o
tema (conjunto discursivo) onde a representação da terapia
como espaço de abertura para experimentação da interiori-
dade de si perpassa as falas dos sujeitos pesquisados. Contu-
do, esse modo de falar da Clínica e de representá-la por meio
do discurso, não diz de uma verdade sobre a mesma. Para
teóricos como Foucault, Deleuze e Guattari, a linguagem não
revela a essência das coisas. Pois a realidade para esses teó-
ricos não existe como um dado primeiro de forma inalterada
e linear no tempo, posto que em cada formação histórica de-
termina maneiras de sentir, pensar e dizer.
Diante disso, esse plano discursivo no qual o sujeito se
situa na clínica, está implicado de uma intencionalidade
que supõe o seu pertencimento ao registro histórico cons-
truído socialmente. Nesse sentido, as idéias de Foucault nos
auxiliam a sinalizar para o plano discursivo no qual se fun-
da a representação atribuída pelos entrevistados à clínica.
Foucault (1985), denomina de prática de auto-exame o fa-
lar de si enquanto narrativa intimista. O objetivo desta
prática é colocar-se em discurso, falar de tudo que vem ao
espírito a fim de ser conhecido, de obter uma suposta ver-
dade sobre si.

193
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

A concepção atribuída à clínica como lugar onde o sujei-


to conhece sua interioridade, está ligada para Foucault a
construção histórica do dispositivo de poder denominado
tecnologia confessional. A prática da confissão faz parte de
uma longa tradição cristã do Ocidente existente desde o
século XIII. Esta consiste na colocação de si em discurso,
em falar tudo que venha ao espírito, a fim de que se possam
ser conhecidos todos os pecados para obtenção da absolvi-
ção. Nesta época, essa prática já funcionava como disposi-
tivo de controle e moralização das condutas.
Assim, a prática de auto-exame distancia-se da moral
cristã de modo que falar de si não está mais relacionado ao
conhecimento dos desvios e dos pecados, mas a um certo
modo de se obter a verdade sobre si. Essas transformações
inauguram novas relações de poder, entre aqueles que afir-
mam ser capazes de extrair a verdade dessas narrativas
interiores através da posse de chaves de interpretações.
Constitui-se assim uma nova forma de subjetivação ma-
terializada pela interioridade, que se encontra e se opõe a
existência de uma exterioridade. A oposição dentro-fora
regulariza, pois esta outra forma de subjetivação, que pas-
sa conferir à subjetividade uma profundidade (BIRMAN,
2000).
Portanto, todo esse processo de interiorização, vem re-
forçar a concepção naturalista e psicológica do sujeito que
acompanha uma longa tradição da filosofia e das ciências
humanas na modernidade, determinando especialmente o
aprisionamento das práticas psicológicas nesse registro de
um sujeito individualizado.
A partir desse processo histórico, a Clínica passa a
configurar-se dessa forma. E surge no plano discursivo dos
entrevistados como um lugar de narrativas intimistas, em
que o sujeito busca na figura do terapeuta, um suposto sa-
ber sobre si. É possível entender onde se situam então, as

194
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

concepções trazidas acerca da clínica pelos entrevistados


de ambas as modalidades. Embora as concepções de ambos
os grupos sejam parecidas quanto ao modo de se pensar e
sentir a Clínica, a Terapia Grupal apresentou algumas di-
ferenças que serão apresentadas a seguir:

2. A representação do grupo como lugar de exposição


Em ambas as modalidades de atendimento, o grupo foi
representado como lugar de exposição, como se pode obser-
var nos trechos dos relatos abaixo:

E1/TI: Eu não teria coragem de me expor na psicotera-


pia em grupo, eu não ía conseguir falar de todos meus pro-
blemas mais íntimos. Já é difícil você falar para uma pessoa
só, imagina você falar para dez pessoas, oito, cinco, o que
for, não sei se é porque eu sou uma pessoa muito orgulhosa
ou porque não gosto da técnica mesmo, mas acho que eu
não colocaria e não teria como eu me entregar como eu me
entrego numa psicoterapia individual.
E2/TG: Eu não sei dizer como é isso, em relação à tera-
pia em grupo mesmo. Eu não sei como seria estar escutan-
do o que eu escuto na terapia individual diante de um grupo.
E3/TG: Eu acho que a terapia individual parece ser me-
lhor, não sei se melhor, parece que fica mais à vontade para
falar de você.

A idéia do grupo como sendo o espaço em que o sujeito


expõe suas questões entendidas como particulares, articula-
se ao vetor analítico identificado como sendo o plano discur-
sivo que o sujeito traz em si uma interioridade psicológica.
A Clínica nesta perspectiva se legitima para os entrevista-
dos à medida que possibilita a gravitação desse suposto
mundo interno. Deste modo, o grupo se constitui como lu-
gar de exposição para que os sujeitos se reconheçam en-

195
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

quanto estrutura psíquica, pois se há uma verdade a ser


conhecida que diz respeito a cada pessoa individualmente,
o grupo será posto sempre sob suspeita e considerado com
receio, uma vez que o outro terá acesso a esse saber que é
tido como pertencente a cada sujeito em sua particularida-
de. Assim, esse viés imaginário (conjuntos discursivos) no
qual os sujeitos se vêem como estrutura psíquica, atraves-
sa e determina as escolhas pela modalidade individual, na
qual as representações definem o que os sujeitos entendem
por Terapia Individual e Grupal.
Para teóricos como Guattari (1990) e Foucault (1985), a
idéia de um sujeito constituinte, ou seja, dado como separa-
do dos processos históricos-sociais, também incide sobre
as práticas psíquicas. Estas emergem implicadas e susten-
tadas na concepção do sujeito referente e, com isso, seus
conceitos teóricos e práticos são forjados como algo no do-
mínio de uma suposta natureza humana. Segundo Guatta-
ri (1990) e Foucault (1985) essa forma de entendimento do
homem pelas práticas Clínicas, naturaliza a subjetividade,
atribuindo-a de uma profundidade, isto é, como se a mesma
portasse suas próprias leis de constituição e funcionamen-
to desvinculado de uma coletividade constituinte.
No bojo desta compreensão totalizante dos processos de
subjetivação, é estabelecida uma lógica disjuntiva (interno
e externo, indivíduo-grupo). Daí se percebe a insistência em
situar o social como algo externo ao individual, funcionan-
do conforme a lógica espacial, o dentro referindo-se a uma
interioridade psíquica (morada das fantasias do sujeito) e
do fora referindo-se a exterioridade (morada da realidade
em sua materialidade o do conjunto de códigos comparti-
lhados por um coletivo).
Essa lógica disjuntiva entre o mundo interior e mundo
externo, além de levar os entrevistados a um auto-centra-
mento em sua história, pensamentos e sentimentos - estes
tomados como particularidades separadas de um agencia-

196
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

mento coletivo - desconectando os indivíduos de qualquer


possibilidade de mudança.

3. A representação do grupo como prática super-


ficial
Outra forma de compreensão do grupo, também comum
aos entrevistados de ambos os modos de atendimento psi-
coterápico, é a representação da Terapia Grupal como prá-
tica superficial, o que pode ser notado nos relatos abaixo:

E3: Eu acho que a terapia individual parece melhor, não


sei se melhor, parece que fica mais à vontade para falar de
você. As atenções são mais voltadas para você mesmo. Acho
que a devolutiva do psicólogo vai para aquilo que você está
querendo dizer especificamente... em grupo é uma coisa
meio... São várias opiniões, para as questões que são colo-
cadas por várias pessoas... então acho que perde muito in-
dividual, que às vezes dá vontade falar mais de você e tem
que ceder espaço para outras pessoas... você tem que divi-
dir o terapeuta com outras pessoas, eu acho que perde um
pouco de cada um. Parece que trabalhando individualmen-
te é melhor, rende mais para cada um do grupo. Por ter que
dividir espaço você não pode aprofundar tanto no que você
quer às vezes.
E2/TG: (...) É diferente da em grupo, porque a reflexão
da individual é sua sobre mim mesmo, no grupo não, de
repente abre o assunto (no grupo) não é, sobre um aspecto
da vida. E lá na terapia individual estou diretamente im-
plicado em tudo na.
E1/TI: (...) acho que na entrega tem muita diferença, por-
que eu acho que a entrega (ao processo) poderia acontecer
sim psicoterapia em grupo, mas muito vagarosamente.

A representação do grupo como prática superficial é ou-


tro aspecto em relação ao qual os sujeitos de ambas as

197
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

modalidades de atendimento convergem para sustentar a


preferência pelas práticas psicoterápicas individuais em de-
trimento das grupais. É o argumento de que o grupo não
aprofunda as questões internas do sujeito. Justificando as-
sim a preferência dos entrevistados pelas psicoterapias in-
dividuais.
Retomando as discussões anteriores, observamos que o
sentidos dados ao grupo como um lugar de exposição e prá-
tica superficial, converge para conjuntos discursivos que
produzem um sujeito posto como estrutura psíquica, des-
vinculado do coletivo. Novamente se impõe a representa-
ções de um sujeito totalizante, autogerido no seu modo de
funcionamento.
Diante disso, a Clínica só se legitima para o sujeito à me-
dida que possibilita o conhecimento e a experimentação de
seu modo de funcionamento pensado como algo da ordem de
uma suposta psique. Dessa forma, a psicoterapia grupal tor-
na-se insuficiente e superficial para o sujeito por este enten-
dê-la como uma soma de atendimentos individuais.
As preocupações mencionadas pelos entrevistados de
ambas as modalidades em relação à Terapia Grupal como:
escassez de tempo, divisão da atenção do terapeuta com os
demais membros do grupo, articula-se a essa visão do gru-
po como soma de atendimentos individuais, uma vez que
para o sujeito algo só lhe diz respeito quando o que está
sendo discutido referir-se específico a seus conflitos e a sua
história pessoal.

Considerações finais
Esta pesquisa teve por objetivo identificar e comparar
os significados que as pessoas que procuram um determi-
nado tipo de atendimento psicológico (Individual ou Gru-
pal), atribuem a essa escolha e a terapia enquanto tal.
Segundo o que se apresentou nas análises dos dados, não

198
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

foram encontradas diferenças significativas na escolha dos


sujeitos entre uma modalidade e outra de terapia, pois tan-
to os entrevistados em atendimento psicoterápico indivi-
dual quanto grupal, conceberam a Clínica como um lugar
de descobrimento do eu. Contudo, o que diferencia as duas
formas de psicoterapia para os entrevistados é o modo como
acontece a busca e experimentação dessa interioridade.
Encontramos duas correntes de conjuntos discursivos que
sustentam as atribuições de sentido e valor para a Terapia
Individual e Grupal.
Na primeira, o grupo foi apresentado pelos entrevista-
dos como um lugar de exposição, onde essa busca se veria
mais difícil e mais lenta devido ao próprio receio de exposi-
ção. Para os sujeitos, esse suposto autoconhecimento é um
processo que por si mesmo impõe a necessidade do sigilo,
restringindo a experimentação de si à relação dual entre
paciente e terapeuta; por reunir várias pessoas, retarda o
processo por colocar como suscetível de ruptura uma das
condições essenciais para descobrimento de si: o sigilo. Esse
descobrimento de si supõe para entrevistado o preparo e a
suportabilidade em declarar-se com suas inquietações, signi-
ficadas como falhas e fraquezas provenientes desse mundo
interno, uma vez que cada pessoa, nesse sentido, traz em si
suas obscuridades e impurezas interiores, pois individual-
mente se torna difícil entrar em contato com a essas ques-
tões internas e que, portanto, em grupo, essa dificuldade
seria intensificada. O retardamento da possibilidade de vir
a se conhecer está reforçado, pois o atendimento do tera-
peuta é dividido entre várias pessoas, o que diminuiria o
tempo necessário para tal aprofundamento neste saber so-
bre si. Assim, o grupo apresenta-se para os sujeitos como
prática superficial em função da escassez de tempo, que tor-
na lento esse processo de autoconhecimento.
Na terapia individual, essas dificuldades identificadas
pelo sujeito em relação ao grupo não se fazem presentes.

199
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Por ser individual, preserva no entrevistado o mesmo sen-


tido de particularidades que ele atribui às suas vivências.
O saber especializado que o terapeuta detém, o prepara para
lidar com essa obscuridade interior de forma a não se dei-
xar influenciar por elas, posto o terapeuta ser investido
socialmente de um saber que é tido como isento de juízos de
valor sobre as questões trazidas pelo paciente, o que o colo-
caria acima das fraquezas humanas. Outra diferença apon-
tada pelos entrevistados sobre a Terapia Individual em
comparação ao grupo diz respeito às suas possibilidades de
aprofundar este saber de si, uma vez que a existência parti-
cular do entrevistado nesta modalidade é objeto exclusivo
de consideração e conhecimento.
Na Segunda corrente de conjuntos discursivos, encon-
tramos que nos relatos dos sujeitos em atendimento grupal
pode ser notada uma maior flexibilização dessas representa-
ções. Percebe-se a presença de fissuras nessas representa-
ções, o que impede a sua totalização em um único ponto de
vista. Em vista disso, esta pôde também ser aprendida pelos
sujeitos como espaço de percepção do outro, no sentido de
aprender a ouvir, considerar novos pontos de vista sobre o
que se vive, o que se sente e o que se passa no cotidiano.
Ao falar de outras questões - como música, situações
banais do cotidiano e até mesmo filosofia - que não as re-
ferências ao si mesmo, o Grupo se configura como um lu-
gar de experimentação do outro enquanto alteridade. Este
entendimento se passa em torno de dois conjuntos discur-
sivos: o de uma subjetividade psicológica e de uma subje-
tividade mais próxima da idéia de um atravessamento
coletivo.
Convém destacar que a experimentação em Terapia Gru-
pal que os entrevistados tiveram, se situa num outro plano
teórico acerca da análise, cujo entendimento da subjetivi-
dade é o de uma produção coletiva histórica em oposição a

200
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

uma concepção materialista e psicológica da mesma. As


razões para que os entrevistados da modalidade grupal desta
investigação viessem de um atendimento baseado nesta
outra concepção teórica, são as que vêm sendo discutidos
no decorrer desse trabalho, ou seja, as dificuldades de se
encontrar sujeitos na terapia grupal no sistema público de
saúde ou particular, uma vez que essa modalidade é menos
oferecida e menos procurada, quando não inexistente. Obvi-
amente, estas dificuldades não foram de cunho ideológico,
uma vez que isso supõe as exigências e cuidados que se deve
ter no levantamento e tratamento dos dados no trabalho de
investigação científica. Deste modo, os sujeitos foram sele-
cionados na própria universidade, por esta ser a única na
cidade oferecer no momento da pesquisa, um atendimento
(o único) na modalidade grupal. E o grupo enquadrado foi o
grupo em atendimento esquizoanalítico. Neste plano teóri-
co, no qual se situa atendimento grupal do qual vieram os
entrevistados, foram apreendidas flexibilizações da repre-
sentação de um sujeito particular, bem como maiores con-
dições para o colocar em questão.
Estamos atentos para o fato de que, se esses entrevista-
dos viessem de atendimento psicoterápico mais convencio-
nal6, os sentidos atribuídos ao grupo provavelmente teriam
sido outros.
Contudo, não se quer dizer com isso que o plano teórico
no qual se situam essas análises garanta a ruptura com o

6
Representações do grupo como lugar de exposição e prática superficial, hipoteticamente falando,
poderiam não ter aparecido, visto que se essas psicoterapias se constituem a partir de uma trans-
posição do modo intimista da prática individual para a grupal, assim seria de menor intensidade
ou inexistente a idéia de exposição ou superficialidade, uma vez que a exploração de um eu estaria
sendo contemplada. O outro, ressaltamos em hipótese, seria percebido com receio menor, já que esse
outro não seria visto como alteridade, mas enquanto desdobramento da representação do eu, o que
é denominada de processos identificatórios pelo plano teórico psicanalítico. Dessa forma, não
haveria no grupo, ressaltamos novamente em hipótese, o sentimento exposição, por esse tornar-se
“um grande eu”, constituído por uma soma de individualidades totalizantes em si mesmas.

201
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

modo de expressão da subjetividade a forma totalizante e


universalista do indivíduo.
Com isso, o que está em questão, é o compromisso Ético
das práticas Clínicas como os processos de produção da
subjetividade. Para Deleuze e Guattari (1986), essa Visão
Ética não se restringe as práticas Clínicas, define-se como
um ethos, ou seja, como uma certa atitude frente ao mun-
do, em que a ética e a políticas são inseparáveis. De acordo
com esses teóricos, a atitude Ética é ao mesmo tempo Polí-
tica, porque a construção de si mesmo implica igualmente
na construção do tipo de mundo em que queremos viver.
Assim, não há verdades preestabelecidas que nos forneçam
garantias. Desfaz-se a crença em uma estabilidade assegu-
rada no suposto mundo interior, dada como separado das
marcas do coletivo.
Logo, dependendo do modo como se constróem as Práti-
cas Clínicas, ou seja, a quais planos discursivos são ofere-
cidos como condições de problematização, estas podem estar
ou não comprometidas com os processos de desindividuali-
zação da subjetividade. Dessa forma, essa outra visão da
Clínica em que o mundo e a subjetividade são vistas como
produção coletiva, possibilitou que os entrevistados pro-
duzissem no grupo uma abertura para o outro, de modo a
trazer outras coisas e sentidos a serem experimentados,
diferentes daqueles restritos ao registro confessional inti-
mista/sujeito ontológico.

Conclusão
Pelo fato da pesquisa abordar as escolhas pela modalida-
de de Atendimento Grupal e Individual na perspectiva dos
profissionais e pacientes, procuramos estabelecer os pon-
tos comuns que relacionam as duas pesquisas, para uma
efetiva compreensão à respeito das conclusões obtidas.

202
Parte I: Psicologia e processos de investigação científica

No que diz respeito a pesquisa realizada com os pacien-


tes, percebemos a existência de uma construção discursiva
que os atravessa, preconizando a idéia de um sujeito psico-
lógico. Esse atravessamento determina a escolha dos sujei-
tos em relação a uma forma de terapia, seja esta individual
ou grupal, desde que privilegie essa representação intimis-
ta do sujeito de forma a garantir um saber de si, entendido
como algo prévio, que independe de experimentações e
aprendizados construídos no cotidiano da relação com o
outro.
Contudo, em relação aos pacientes em Atendimento Psi-
coterápico Grupal foi possível apreender flexibilizações na
representação de formas totalizantes, aprisionadas por um
regime intimista de um suposto “eu”, pois o grupo situou
sua prática num plano teórico em que os processos de sub-
jetivação assumem o sentido de produção coletiva com mai-
ores condições de problematização, construindo linhas de
fuga capazes de abrirem outras possibilidades de expressão
de si e do mundo através da experimentação.
Na pesquisa desenvolvida com os profissionais apresen-
taram-se duas vertentes prático-teóricas que se diferenciam
a partir da construção de planos de significações humanas
distintas. A primeira vertente prático-teórica diz respeito
à reprodução, por fundar-se em estruturas discursivas se-
dimentadas em saberes previamente concebidos a partir da
imposição de instrumentos pragmáticos que buscam a sis-
tematização e o controle da diversidade dos acontecimen-
tos no Encontro Clínico.
Já a segunda vertente remete-se a um campo de possibi-
lidades de experimentações capazes de promover aberturas
para a problematização dos processos de subjetivação en-
gendrados no plano coletivo a partir de um regime de sen-
sibilidade onde nada é indiferente, colocando as questões
humanas num campo de visibilidade coletivo e, portanto,

203
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

tendo o compromisso com os efeitos que as práticas pos-


sam produzir no cotidiano, pensamos que ela materializa
uma Clínica Ética.
Estas concepções são provenientes do campo de Encon-
tro Clínico. Entretanto, esta proveniência não é exclusiva
deste campo, nem tão pouco do Campo do Conhecimento
Científico, fazendo parte de um processo coletivo mais am-
plo, o da própria produção de modos de subjetivação que,
como não poderia ser de outro modo, tem configurações dis-
cursivas que estão sustentadas pelos coletivos que as cir-
cundam. Assim, ambas as vertentes têm representação nos
discursos, tanto dos profissionais como dos pacientes aten-
didos, com os mesmos efeitos sobre seus campos vitais.
Dependendo do modo como em suas práticas os indiví-
duos encarnam esses valores (representações), isso produz
no campo vital a possibilidade ou não de abertura para a
compreensão da multiplicidade das relações humanas.

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206
PARTE II

PSICOLOGIA E
PROCESSOS EDUCATIVOS,
PSICOEDUCATIVOS E SOCIAIS
9. INTERVENÇÃO DE AJUDA A CRIANÇAS
E ADOLESCENTES CONSIDERADOS EM
SITUAÇÃO DE RISCO PSICOSSOCIAL: O
MODELO DA PSICOEDUCAÇÃO

Marina Rezende Bazon


Roberta Noronha Azevedo
Paulo Fernando Facioli Pestana

Ao considerar determinadas condições socioculturais e


econômicas em que vivem parcelas da população brasilei-
ra, modelos diferenciados de atuação em Psicologia pare-
cem imprescindíveis para atender às demandas de saúde
mental que podem existir nesses contextos, sejam estas no
plano da promoção, prevenção ou tratamento. Sabe-se que
um número significativo de pessoas poderia se beneficiar
de uma atenção/cuidado psicológico, mas que dificilmente
elas têm acesso aos serviços. Em alguns casos, estes sim-
plesmente não estão disponíveis em sua realidade local; em
outros, as pessoas não o procuram espontaneamente, seja
porque desconhecem a existência dos serviços, seja porque
não compreendem seu significado e pertinência. Impõe-se,
assim, um desafio de estabelecer uma prática psicológica
que, sem perder de vista o “objeto” da Psicologia e a siste-
mática que garanta o profissionalismo, possibilite uma
aproximação destes sujeitos de/em seus contextos de vida
(ARENDT, 1997). A tarefa de delinear uma prática de in-
tervenção psicológica, envolvendo elementos do social, tem
sido tradicionalmente encampada pela Psicologia Social-
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Comunitária, cujo foco de interesse e de intervenção é, gros-


so modo, a maneira do homem viver em sociedade. Sua fi-
nalidade última, entretanto, não se diferencia da de qualquer
outra área de atuação em Psicologia, ou seja, é a de promo-
ver o bem-estar psicológico, auxiliando o ser humano em
seu processo de desenvolvimento.
Em termos operacionais, pode-se dizer que o objetivo
geral da prática psicológica no contexto social-comunitá-
rio consiste em auxiliar as pessoas e grupos a refletir sobre
sua identidade, desejos e dificuldades, bem como sobre as
relações de determinação destes, levando em conta a reali-
dade micro e macro social que se lhes apresenta. Dentro
disto, o Psicólogo fará necessariamente face a aspectos con-
cretos da estrutura e do funcionamento social, devendo fre-
qüentemente lidar com a dimensão de direitos e deveres dos
indivíduos, para além dos aspectos subjetivos em jogo.
Dito de outra forma, ao refletir sobre a dimensão subje-
tiva do exercício de viver em sociedade, Sawaia (1994) afir-
ma que:

[...] cidadania é consciência dos direitos iguais, mas esta cons-


ciência não se compõe apenas do conhecimento da legislação
e do acesso à justiça. Ela exige o sentir-se igual aos outros,
com os mesmos direitos iguais. Há uma necessidade subjeti-
va para suscitar a adesão, a mobilização, tanto quanto condi-
ções para agir em defesa destes direitos (p. 152).

Cabe esclarecer que a intervenção psicológica, com esta


perspectiva, não deve equivaler a um trabalho panfletário
de fomentação de revolta ou um trabalho de co-adunação
frente ao instituído, mas sim de auxiliar as pessoas a to-
marem “consciência de si no mundo”, de modo a tornarem-
se sujeitos de sua própria história de vida e desenvolvimento.
Obviamente, tais tomadas de consciência, geralmente, con-
correm para a assunção de uma postura crítica e de trans-
formação frente à realidade.
210
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

No tocante à metodologia, no entanto, frente às peculia-


ridades dos contextos em que, geralmente, se exerce o tra-
balho, o fazer psicológico parece padecer de uma orientação
coesa, ao contrário do relativo consenso em torno de seus
princípios e objetivos. Parafraseando Graciani (1997), pode-
se dizer que se vive uma “crise dos [e de] paradigmas”.
Focando especificamente as ações voltadas para as crian-
ças e adolescentes, propostas têm sido feitas e experimen-
tadas em toda parte, no Brasil (MENDEZ; COSTA, 1994)
esbarrando, contudo, em problemas, não tanto de con-
teúdo, mas em dificuldades de implantação, avaliação e
generalização das proposições (GONÇALVES; COSTA;
MARAZINA, 1992; KAHN-MARIN, 1998; SÊDA, 1993;
SARTI, 1995; TRAVIESO, 1996; VASCONCELOS, 1997;
COSTA, 1998; WEBER, 1999).
Frente a este panorama, seria válido pesquisar como em
outras realidades sócio-culturais tem-se trabalhado nesta
área, bem como o nível de desenvolvimento científico atrela-
do. Alguns modelos teórico-metodológicos são identificados
sendo que, entre estes, destaca-se aqui a Psicoeducação ca-
nadense, ou mais propriamente quebequense, pela pertinên-
cia dos princípios humanistas subjacentes, por sua natureza
eco-sistêmica, portanto, compreensiva para a concepção de
um problema e de suas soluções, pelo grau de sistemática e
base científica conquistadas, decorrentes de uma intensa
prática de pesquisas aplicadas.
As raízes do modelo Psicoeducativo se ligam à “Educa-
ção Especializada”, fundamentalmente desenvolvida na
França, a partir do século XIX, quando já se preconizava a
necessidade de uma ação sistematizada, baseada em con-
ceitos das Ciências Humanas e Sociais, devendo ser imple-
mentada por um “educador” que pudesse efetivamente
acompanhar e orientar jovens vivendo dificuldades psicos-
sociais, num contexto extra-escolar (BISSONNIER, 1978).

211
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Cumpre esclarecer que o campo da “educação especializa-


da”1 foi, genericamente, delimitado pela característica de
propor

[...] um acompanhamento regular individualizado (em grupo


ou não), ao mesmo tempo compreensivo e normativo, de um
sujeito em dificuldade, considerado em sua irredutível singu-
laridade, com a sua história e seu drama particular, mas em
referência a grupos reais, sua família em primeiro lugar, e
uma comunidade estendida (CAPUL; LEMAY, 1996, p.16).

Nesta linha, na década de 40 (século XX), um grupo liga-


do à Psicologia da Universidade de Montreal, organiza-se
para defender o ideal de encontrar uma nova postura para
o atendimento na área social, desenvolvendo instrumentos
pedagógicos adequados para essa situação educativa. Eles
enfatizavam a importância da pesquisa teórico-científica
de conceitos e modelos que pudessem embasar a atuação
pela oposição ao controle e massificação nos atendimentos
e pela exaltação das necessidades de desenvolvimento da
criança e do adolescente, às quais o serviço deveria adaptar-
se no decorrer de experiências compartilhadas no cotidia-
no (CARETTE; PELLETIER, 1991).
Inspirando-se no que vinha sendo defendido sobre a im-
portância pedagógica da vida cotidiana (LEFEBVRE, 19472;
GUILLANT-LEHENAFF, 1954 3, apud CAPUL; LAMAY,
1996), este grupo começa a enfatizar a necessidade de se
adotar uma posição engajada/implicada para a prestação

1
Faz-se necessário destacar a distinção existente entre os conceitos “Educação especial” e “Educação
Especializada” - e seus respectivos interesses e práticas subjacentes. A primeira oficializada em
1975, refere-se à proposição de uma pedagogia de ensino especificamente destinada aos indivíduos
com deficiências (handcaps), ao passo que o termo “educação especializada”, de seus primórdios, foi
utilizada para referir-se a crianças e adolescentes em conflito com as normas sociais, vivendo,
portanto, dificuldades temporárias e relativas ao corpo social mais amplo.
2
LEFEBVRE, H. Introduction. In: ______. Critique de la vie quotidienne. Paris: Grasset, 1947.
3
LE GUILLANT, G. La vie cotidienne. Paris: Ed. Du Scarabée, 1954.

212
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

de serviços psicológicos às crianças e adolescentes em difi-


culdades, através de diversas situações vividas em comum,
porém de modo objetivado, norteado pelas necessidades do
cliente. Dentro desta perspectiva, o trabalho seria “educa-
tivo e psicológico” por levar, concomitantemente, em con-
sideração os aspectos objetivos da vida numa comunidade
concreta, com seus valores e normas, e os subjetivos decor-
rentes das vivências ali geradas.
Assim, seu domínio seria o banal, o ordinário, o habitual
(incluindo o rotineiro), tanto quanto o surpreendente e o
inusitado, da vida cotidiana de um determinado grupo, sendo
o foco da intervenção o aqui e agora, o agir e o fazer, a in-
tersecção – ou inter-estruturação – do individual e do cole-
tivo (CAPUL; LAMAY, 1996).
Segundo Capul e Lamay (1996), este gênero de educação –
especializada, “tem uma ligação direta com o simbólico, vi-
sando a inscrição social de um sujeito para o qual procura-se,
a partir de um mesmo movimento, a autonomia e o desenvol-
vimento ótimo de todas as suas potencialidades” (p. 19).
O papel a ser assumido pelo “educador psicólogo” (ou
“psicólogo educador”), a partir deste modelo, seria o de
mediador das interações/relações entre o(s) indivíduo(s) e
o meio, no sentido de fazer emergir um discurso “sufoca-
do”, de resgatar um diálogo perdido, facilitar o tear sem
fim da trama social. Neste ponto, cumpre dizer que, inevi-
tavelmente, este profissional será testemunha e, conseqüen-
temente, denunciante de graves disfunções sociais, devendo,
portanto, estar preparado para tal.
Para tanto, os pressupostos teóricos seriam, fundamen-
talmente, dois: o primeiro diz respeito à visão de homem
“na qual todo indivíduo é tido como um ser em constante
desenvolvimento, sendo que o seu processo evolutivo ins-
creve-se em uma estreita relação de inter-influência entre
o indivíduo e o ambiente, e processa-se simultaneamente
nos planos afetivo, cognitivo, social, moral e físico-motor”

213
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

(BAZON, 2000, p.105). Este segundo postulado decorre do


paradigma das interações. Ele impõe a necessidade de se
dar muito valor à organização do meio (físico e social), com
a finalidade de proporcionar à clientela os estímulos ade-
quados ao seu desenvolvimento integral.
De forma mais detalhada, Gendreau (1995, p. 17) explica
que a interação educativa seria

[...] o resultado de um conjunto de “rapports” entre o poten-


cial de adaptação do sujeito [ou seja, o grau de desenvolvi-
mento de seus meios/recursos individuais para encontrar
respostas às suas necessidades de desenvolvimento] e o seu
potencial experiencial [sendo estas as possibilidades ofere-
cidas pelo ambiente, pessoas e objetos].

Este autor considera que existam quatro tipos de inte-


rações: as estruturais (entre a pessoa e o ambiente físico, o
temporal, os códigos e procedimentos, as responsabilidades,
os sistemas de avaliações e os meios de estabelecimento das
relações); as relacionais (entre as pessoas propriamente
ditas, os atores das situações); as existenciais (referente a
todo o conteúdo inerente ao fato da pessoa existir: seu pa-
drão genético e seu organismo, sua história cognitivo-afe-
tiva e social, seus valores – oriundos das contínuas
interações estruturais e relacionais ao longo da vida); e as
experienciais (as interações estruturais e relacionais vivi-
das no aqui e agora das situações). Dentro disto, o papel do
Psicoeducador seria qualificar as interações estruturais e
relacionais do aqui e do agora, ou melhor, as interações
experienciais, segundo as necessidades humanas e específi-
cas do(s) sujeito(s) da intervenção de ajuda (GENDREAU,
1995).
O segundo pressuposto decorre do primeiro e refere-se à
necessidade de uma formação consistente e específica para
um trabalho de intervenção cujo foco sejam as interações

214
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

experienciais, considerando a complexidade que estas im-


plicam e que o próprio Psicoeducador é também um per-
sonagem fundamental da trama que se está tecendo, por
meio destas interações, num cotidiano compartilhado. Pos-
tula-se que somente através do estabelecimento de uma re-
lação sólida entre o educador e a clientela, pautada pela
aceitação, segurança, ética e responsabilidade da parte do
profissional, que garantam o estabelecimento da “justa dis-
tância” entre o profissional e o cliente, é que, efetivamente,
se poderá conseguir auxiliar o processo de desenvolvimen-
to humano de uma pessoa, o que compreende uma contínua
e mais profunda compreensão de si e do outro. Essa vivên-
cia necessita ser acolhedora e afetiva, mas objetiva, ou seja,
o educador deve estar atento para não se “fundir” aos e/ou
“invadir” os problemas da clientela.
Assim sendo, a formação do Psicoeducador prevê o in-
vestimento concomitante em três dimensões inerentes à
tarefa de intervir no experiencial: o saber, o saber-ser e o
saber-fazer. O saber está relacionado ao conhecimento cien-
tífico que o educador precisa ter, concernente a diversos
assuntos como, por exemplo, o desenvolvimento humano,
os fenômenos de grupo, questões jurídicas, de Direitos Hu-
manos, contexto social, dentre outras (BAZON, 2002).
O saber-ser diz respeito à postura do educador frente à
clientela, está relacionado às atitudes do educador que permi-
tam uma forma de estabelecimento de contato acolhedora, efi-
caz e ética que estimule a reflexão da criança/adolescente, a
fim de que possa compreender a si e ao mundo de forma
consciente. Estas atitudes são as classicamente estipula-
das como fundamentais a toda relação de ajuda, apresenta-
das e discutidas principalmente nos trabalhos de Carl Rogers,
Robert Carkhuff e Stanley Greenspan: respeito e considera-
ção, confiança, segurança, autenticidade e congruência, dis-
ponibilidade e empatia.

215
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

A terceira dimensão da formação é a do saber-fazer, que


está relacionada à própria atuação do educador, à sua prá-
tica cotidiana na organização e animação de atividades e
na utilização de eventos de vida compartilhados (BAZON,
2002). Este saber-fazer é constituído de oito habilidades:
observação, avaliação, planejamento, organização, anima-
ção, utilização, reavaliação e comunicação.
É imprescindível que as atividades propostas pelo educa-
dor sejam pautadas nas necessidades da clientela na medida
em que se concebe que apenas dessa forma o desenvolvi-
mento pode se efetivar. Por esta razão a clientela deve ser
cuidadosamente observada (metódica, engajada e continua-
mente através do compartilhamento de vivências) e avalia-
da antes da proposição das atividades. Esta avaliação
refere-se à elaboração de hipóteses diagnósticas das neces-
sidades do sujeito, assim como de suas potencialidades, ca-
pacidades, habilidades, competências e também de suas
vulnerabilidades. Em seguida é feito o planejamento das
atividades, pautado na observação e avaliação, envolvendo
a participação do próprio sujeito (caso sua idade permita) e
de sua família (se pertinente). Se a atividade proposta esti-
ver aquém ou além das condições (afetivas, sociais, cogni-
tivas e físicas) do indivíduo, o desenvolvimento não se
efetivará e a atividade terá se tornado um fim em si mesma
(ocupacional) e não um instrumento (meio) de promoção
do desenvolvimento. A organização é a fase de implantação
das condições ambientais (físico e humano/social) necessá-
rias à consecução do planejado, em termos de experiências
a serem vividas pelo sujeito, considerando suas necessida-
des de desenvolvimento. Para organizar “o meio”, verificam-
se as condições de espaço, tempo, códigos e procedimentos,
responsabilidades, sistemas de avaliações e meios de esta-
belecimento das relações, bem como os recursos humanos
que atuarão na intervenção. A animação é o momento da

216
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

vivência, da execução em si do programa que foi organiza-


do. A utilização de um evento consiste em, através de um
elemento do cotidiano vivido, auxiliar o sujeito a torná-lo
mais significativo. Seria, portanto, ajudar o indivíduo a se
conscientizar sobre as significações que aquele evento tem
para si, facilitando em última instância o desenvolvimento
de suas capacidades, habilidades e competências. A reava-
liação ou avaliação pós-situacional é o momento que per-
mite ser feito o reconhecimento dos objetivos que foram ou
não alcançados, dos limites e forças da intervenção. Tam-
bém é o ponto de partida para mais um ciclo de planejamento,
organização, animação e utilização. Enfim, a comunicação
é a atividade de troca, entre os diversos indivíduos envolvi-
dos, das informações diversas oriundas de toda a atividade
psicoeducativa exercida.
O saber-fazer, num modelo psicoeducativo, se atualiza
no contexto do “viver com”. Como já se pontuou anterior-
mente, o estabelecimento de uma relação significativa com
o outro, que possibilite a intervenção nos conteúdos expe-
rienciais, implica num envolvimento e proximidade que o
“fazer coisas juntos” propicia, ou seja, o compartilhar do
cotidiano. Este compartilhar de experiências imprime im-
portância à interação e é em função da importância que o
sujeito vai atribuindo ao educador que este consegue fazer
intervenções que sejam relevantes para o primeiro, que o
ajudem a refletir e a tomar consciência de uma determina-
da realidade social e de suas atitudes e sentimentos corre-
lacionados.
Além disso, o “conviver” favorece que o educador com-
preenda a criança e o adolescente de seus pontos de vistas,
na medida em que possibilita apreender o significado que
dão aos eventos, e avaliar de forma mais apurada os recur-
sos/potencialidades e limites/dificuldades/vulnerabilidades
do sujeito, na medida em que todas as dimensões do de-

217
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

senvolvimento se atualizam no aqui e agora das experiên-


cias compartilhadas. Nesta direção, vale dizer que o mode-
lo Psicoeducativo pressupõe uma intervenção positiva, ou
seja, de maior investimento em potenciais e recursos, em
relação às dificuldades/vulnerabilidades dos sujeitos, con-
siderando que a valorização dos primeiros ajuda na supe-
ração dos segundos.
No presente artigo pretende-se exemplificar a prática de
intervenção desenvolvida sob esta ótica, relatando, em li-
nhas gerais, a proposta de um estágio profissionalizante
oferecido aos estudantes de Psicologia da Faculdade de Fi-
losofia, Ciência e Letras de Ribeirão Preto, descrevendo
intervenções realizadas por estudantes no quadro do refe-
rido estágio.
O modelo Psicoeducativo não será, aqui, apresentado
mais detalhadamente, em termos conceituais, privilegian-
do-se uma descrição de sua aplicação prática, no contexto
social-comunitário. Uma apresentação teórico-metodológi-
ca da Psicoeducação mais minuciosa pode ser encontrada,
em português, na obra de Bazon (2002), que também discu-
te sua aplicação no contexto brasileiro, a partir da avalia-
ção de um projeto de implantação do modelo em um
programa de proteção especial a crianças.

O estágio “Intervenção psicossocial junto a popu-


lações consideradas em situações de risco”
O referido estágio, oferecido aos alunos do 4º e 5º anos
de Psicologia, tem por objetivo geral permitir que o estu-
dante atue profissionalmente, sob supervisão, em contexto
comunitário, implementando intervenções de ajuda, junto
a indivíduos e grupos considerados em situação de risco
psicossocial, de modo a desenvolver sua capacidade para
trabalhar na área Social, com o referencial teórico-meto-
dológico da Psicoeducação.

218
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

O estágio tem a duração mínima de um ano, na razão de


aproximadamente 12 horas semanais, sendo que 8 destas
são de atuação direta, no contexto de programas e equipa-
mentos comunitários, e as outras 4 horas de supervisão e
de estudo/planejamento.
Esta proposta de estágio existe desde 1998; portanto, há
6 anos. Ao longo deste período, os alunos tiveram a oportu-
nidade de estagiar “a partir” de diferentes programas/ser-
viços comunitários da cidade de Ribeirão Preto e também,
na região (Sertãozinho): casas-abrigos, programas de ini-
ciação ao trabalho para adolescentes, núcleos de atenção
comunitários, sendo estes equipamentos, por vezes, de na-
tureza governamental e por outras, não governamental.
Nos últimos dois ou três anos, o relacionamento com
alguns dos Núcleos para crianças e adolescentes, mantidos
pela Prefeitura Municipal, se estreitou transformando-se
num dos locais de estágio privilegiados, dada à abertura
para a realização do trabalho em seus moldes - peculiares
se comparado ao tradicional e mais conhecido modelo de
atendimento psicológico - denotando-se um reconhecimen-
to positivo deste através da demanda pelo envio de estagiá-
rios de “Psico-educação”.
Caracteriza os Núcleos da Criança e do Adolescente da
cidade de Ribeirão Preto, que no total são 14, o fato de se-
rem parte de um programa ligado à Secretaria da Cidada-
nia e Desenvolvimento Social do Município, pertencendo,
portanto, à efetivação de políticas especiais, de assistência
social, destinado a atender jovens - com idades entre 6 e 18
anos - de sua circunscrição territorial, em horário alterna-
tivo à escola regular, para ali “desenvolverem atividades
que promovam o seu desenvolvimento” (sic). O equipamen-
to não tem por objetivos a aprendizagem de conteúdos es-
pecíficos ou o reforço escolar.
Considerado a localização geográfica dos Núcleos em que
se tem trabalhado de forma mais contínua (n=2), pode-se

219
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

afirmar, grosso modo, que as crianças e adolescentes que se


constituem em sua clientela, estão em risco na medida em
que vivem situações que podem ameaçar seu desenvolvi-
mento integral. Todos vivem em condições socioeconômi-
cas precárias, o que já é alarmante uma vez que se reconhece
na privação econômica uma das principais fontes de risco
sócio-cultural para a criança (GARBARINO; KOSTELNY,
1992) e que a pobreza e a miséria são importantes fatores
de risco universal (LUTHAR, 1999), ou seja, associadas a
toda sorte de problemáticas humanas.
Além disso, na região em que residem registra-se um
índice preocupante de violência, e mais particularmente de
criminalidade, acreditando-se, então, que estes jovens se-
jam testemunhas de uma série de problemas e conflitos so-
ciais para os quais as soluções encontradas são
rudimentares, do ponto de vista da preservação do grupo
social (SELMAN; SCHULTZ; YEATES, 1991).
Estima-se ainda que algumas destas crianças e adoles-
centes apresentam dificuldades escolares significativas, con-
siderando a defasagem entre o ano de escolaridade e as idades
o quê, sabidamente, concorre para aumentar o risco de eva-
são escolar (JANOSZ; LE BLANC, 1999; JANOSZ; LE
BLANC; BOULERICE; et al., 2000) e que esta, em seu tur-
no, estreita as possibilidades de desenvolvimento, além de
ser, per si, uma violação do direito fundamental à educação.
Alguns provêm de famílias monoparentais, o quê tam-
bém pode representar um fator de risco: na medida em que
isso implica em ausência de suporte familiar, o estresse vivi-
do por um cuidador único pode ser mais elevado (FORTIN;
BIGRAS, 1996). É sabido que, em boa parte dos casos, estes
pais, além de estarem sozinhos com a responsabilidade de
“educarem” seus filhos, também têm a de “sustentar a
casa”, devendo assim ausentar-se para trabalhar, ficando a
supervisão e cuidados dessas crianças e adolescentes dele-
gados a terceiros, incluindo os agentes dos Núcleos.

220
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

No mais, um pequeno grupo freqüenta os Núcleos em


razão de encaminhamentos realizados por agências ofici-
ais de proteção (Conselho Tutelar e Juizado da Infância e
Adolescência), o que representa a existência de um deter-
minado número de jovens que viveram e/ou vivem situa-
ções sociais reconhecidamente mais complexas, e de impacto
negativo para o desenvolvimento, seja a da vitimização do-
méstica e/ou comportamento infracional.

O modelo Psicoeducativo como referência para a


atuação nos Núcleos da Criança e do Adolescente
Como prevê a Psicoeducação, a atuação, no quadro do
estágio realizado nos programas de Núcleo para a Infância
e Adolescência, começa com a observação do “meio”, que
vai se tornando, com o tempo, cada vez mais engajada (par-
ticipante), devido também à capacidade de o estudante en-
contrar o “seu lugar nas e em meio” às atividades já
existentes no programa. Assim, de início, o estudante as-
siste e participa como co-adjuvante de atividades de rotina
e outras, normalmente coordenadas pelos educadores do
“meio” e, após um certo período, em média um mês, torna-
se capaz de propor atividades que deverá coordenar.
Este procedimento visa coletar dados para melhor co-
nhecer a clientela (avaliação), em termos de característi-
cas e necessidades de natureza psicossocial, bem como a
filosofia e as ações habituais do “meio”, para então plane-
jar e organizar uma atividade que seja adequada – em con-
teúdo e forma –, concebendo-se que a mesma consiste em
estratégia para atingir os objetivos de intervenção, e estes
devem representar as necessidades detectadas na clientela.
As observações realizadas devem descrever interações
pessoa-pessoa e pessoa-situações/objetos. No contexto dos
Núcleos, uma característica predominante destas intera-
ções tem sido o fato delas serem marcadamente físicas, ou
seja, pouco mediadas pela comunicação verbal, e o uso de

221
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

símbolos. A avaliação sugere que as crianças e adolescentes


dispõem de (ou têm à sua disposição) poucos recursos para
negociar suas necessidades e dificuldades com o “meio” e este,
por sua vez, é pouco sensível para captá-las e decodificá-las
adequadamente, de modo que as expressões das necessidades,
da forma e no momento em que se dão, tornam-se inapropria-
das, gerando tensões e conflitos que geralmente são reprova-
dos e reprimidos, tanto pelos adultos como pelos pares.
Alguns comportamentos, a título de exemplo, represen-
tam este padrão de interação: o educador dá uma diretiva e
as crianças/adolescentes, em burburinho, em sua maioria,
agem de outro modo; em jogos tradicionais, com regras co-
nhecidas, estas ora são seguidas, ora não, gerando brigas
freqüentes; frente ao desafio de compartilhar objetos, algu-
mas crianças/adolescentes se negam, outras se submetem;
algumas crianças/adolescentes, quando frustradas em seus
desejos/demandas abandonam a interação (saem do ambien-
te); crianças e adolescentes tornam-se impacientes e, por
vezes agridem verbal e fisicamente, os colegas que conside-
ram não ter bom desempenho nas atividades realizadas em
conjunto; um número elevado de conflitos é resolvido atra-
vés de xingamentos e, em certos casos, agressões físicas.
Assim sendo, as atividades devem ser pensadas enquan-
to experiências que ativem as dificuldades/limites numa
certa medida (“desafio sob medida”) e, concomitantemen-
te, os recursos e potencialidades dos sujeitos; ao Psicoedu-
cador compete intervir em beneficio do desenvolvimento.
Considerando as características acima citadas, com as
crianças, não raro, planejam-se “jogos e brincadeiras”, cu-
jos potenciais experienciais sejam na linha de desafios ine-
rentes à convivência social: formação e funcionamento de
equipe; esclarecimento e negociação de regras; comparti-
lhamento de objetos/materiais; etc.. Dentro deste “espíri-
to”, várias são as possibilidades – do jogar bola, vôlei ou

222
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

determinados jogos de sociedade, ao brincar de ciranda,


desenhar ou assistir a um filme. Do ponto de vista da im-
portância dada pelo modelo ao potencial pedagógico do co-
tidiano, todas as atividades rotineiras dentro do núcleo
poderiam ser foco desse planejamento e base à intervenção,
uma vez que igualmente possuem desafios inerentes, so-
bretudo de convivência social. De fato o estagiário atua
automática e espontaneamente nesses diversos momentos
do programa; no entanto, devido a limitações estruturais/
institucionais, o estagiário necessita criar uma atividade
própria na qual possa aplicar a forma de fazer específica do
modelo, o que não representa prejuízo para a intervenção,
posto que, independentemente do conteúdo da atividade, a
qualidade da intervenção depende do grau de consciência
que o educador e os próprios sujeitos têm das questões psi-
cossociais que estão em jogo e, então, da maneira como a
atividade é vivida e avaliada por todos.
Um apontamento importante: ao propor uma atividade,
o modo como o educador anima a mesma é o de “fazer com”,
ou seja, ele jogará e brincará com os sujeitos. Isto implica
em encontrar uma posição – dentro do grupo - que permita
um envolvimento verdadeiro, subjacente ao “compartilhar”,
sem que se perca a consciência profissional, necessária à
implementação das operações psicoeducativas. Esta posi-
ção demanda um rompimento com uma postura bastante
comum, geralmente observada nos adultos que trabalham
nesta área, a de propor e “vigiar”, quando não, controlar o
andamento da atividade, intervindo a título de instrutor; e
também o contrário, de se envolver a tal ponto que o educa-
dor passa a jogar e a brincar “pra valer”, dando à atividade
a tônica de ser um fim em si mesma, eliminando o distancia-
mento que lhe permitia observar e intervir.
Embora muito simples, alguns procedimentos primam
pela qualidade da atividade, pela transcendência que se pode

223
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

ter do vivido tout court. Estes procedimentos psicoeducati-


vos têm sido denominados “abertura” e “fechamento” da
atividade. Na abertura, geralmente, procede-se ao acolhi-
mento do grupo, com a verificação do “clima emocional”
preponderante e das expectativas em relação à atividade e,
inequivocamente, à explicitação dos objetivos sócio-educa-
tivos inerentes (por exemplo, “colaborar” ou “expressar o
ponto de vista e escutar o do outro”), e à negociação das
regras e os procedimentos que irão vigorar na atividade. A
abertura, constitui-se, assim, numa espécie de “contrato”
entre as partes e, por ser negociado, gera um comprometi-
mento em todos.
O fechamento constitui-se em momento de reflexão sobre
o vivido, buscando pela explicitação da significação atribuí-
da, pelos sujeitos, à experiência vivida. Neste é fundamental
que todos possam expressar suas impressões, sentimentos e
pensamentos sobre o que foi desenvolvido, com vistas aos
objetivos que se tinha e também sob ângulos e eventos não
cogitados antes da ação. O fechamento é, portanto, uma for-
ma de operacionalizar a utilização de uma atividade que
quer ser Psicoeducativa (PRONOVOST; GAGNON; POTVIN,
2000).
Ademais, o fechamento também propicia à criança/ado-
lescente a ocasião de aprender/exercitar suas habilidades
de expressão e escuta frente ao outro/grupo, levando em
conta os desdobramentos que seu comportamento produz.
Para além da dimensão psicológica inerente a esses pro-
cedimentos, a “abertura” e o “fechamento” das atividades
respeitam o direito da criança/adolescente saber o porquê
das ações, participando de forma consciente, portanto, en-
gajada daquilo que é proposto.
Com base na experiência que se tem tido ao implementar
esses procedimentos, cumpre dizer que, ao longo do tempo,
caminha-se para um “fazer” que suscita uma participação

224
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

viva dos jovens que, ao final, já não permitem mais que o


educador falhe em não prever tempo para estes procedimen-
tos. Além disso, o número de conflitos diminui enormemente
uma vez que se estabelece um funcionamento de grupo e
este passa a se auto-regular.
Quando o grupo transforma-se em lugar seguro, temas
importantes começam a ser introduzidos espontaneamen-
te pelos próprios sujeitos, geralmente representando ques-
tões de ordem existencial, como amizade, sexualidade,
violência, amor, família, etc.
As atividades vão, assim, concretizando o pressuposto
de que o desenvolvimento se processa por meio de intera-
ções recíprocas, de influências mútuas entre o sujeito e o
“meio”.
Vale a ressalva de que o critério para avaliar positiva-
mente o trabalho Psicoeducativo não corresponde aos fa-
tos de as atividades transcorrerem sem problemas e ou sem
o aparecimento de conflitos entre as crianças e de a intera-
ção dos jovens / grupo com o educador ser amigável (afe-
tuosa). O critério correlaciona-se ao impacto que a vivência
tem nos sujeitos, individualmente e em grupo, consideran-
do a significação que esta vai adquirindo e os objetivos da
intervenção.
Sendo a intervenção um processo de continuidade, seus
resultados assim são produzidos e, não raro, o desenrolar
de uma seqüência de atividades pode ser tenso e tumultua-
do, sobretudo, devido às constantes investidas que os jo-
vens fazem na direção dos adultos educadores, no sentido
de testar a coerência entre o discurso e suas atitudes e com-
portamentos. Neste ponto, o saber-ser do educador torna-
se imprescindível, representado por uma postura que
transmita ao mesmo tempo a aceitação incondicional da
pessoa – em suas características e dificuldades – e o repú-
dio a atos que contradigam valores humanos e sociais.

225
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Encontrar o justo tom para os gestos e palavras, de modo a


traduzir esta mensagem, é uma tarefa árdua, para a qual o
educador deve-se instrumentalizar continuamente.

As intervenções individualizadas
O trabalho em grupo, de forma tão engajada e próxima,
permite a detecção de crianças e adolescentes vivendo si-
tuações particularmente adversas, desconhecidos ou sem
acompanhamento da parte de outros órgãos. Estes geral-
mente demandam uma intervenção individualizada (do
caso), especializada (em termos de respostas a necessida-
des específicas) e maciça (intensa no sentido de horas de
investimento). Ademais, dentro da perspectiva Psicoedu-
cativa, para os casos em que se detecta uma problemática
instalada, a intervenção necessariamente implica numa
atuação que se estende para outros contextos de vida dos
sujeitos, sobretudo em se tratando de crianças e adolescen-
tes, como por exemplo, a escola, a família, os abrigos, etc.
Embora nos Núcleos tenha-se estabelecido determina-
dos limites à intervenção, com alguma restrição às ações
para além de seus “muros”, o imperativo ético de realizar
determinados acompanhamentos, sempre foi entendido e
acatado pelas unidades em que se trabalhou, após uma re-
flexão conjunta com os seus coordenadores.
Além disso, considera-se que os agentes deste programa,
se comparados aos dos outros serviços existentes na comu-
nidade, encontram-se bastante bem posicionados para a rea-
lização da verificação e da mediação de situações complexas,
com vistas às necessidades/dificuldades das crianças/ado-
lescentes. Independentemente do grau e da qualidade de re-
lacionamento estabelecido entre os Núcleos e a comunidade
circunvizinha, a localização em seu seio é muito propícia ao
contato e ao relacionamento com esta realidade.
Como exemplo das possibilidades de atuação nesta dire-
ção, inúmeras situações podem ser focadas. Contudo, con-

226
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

siderando a freqüência com que se depara com casos de sus-


peita ou de efetiva vitimização doméstica, em que as crian-
ças e os adolescentes são expostos a formas variadas de
violência intrafamiliar, valeria a pena enfatizar a interven-
ção frente a esta problemática específica.
A observação dos sujeitos, ao longo do tempo, em situa-
ções diversificadas, permite identificar no comportamento
ou na apresentação de algumas crianças/adolescentes sinais
indicando que, talvez, vivam problemas maiores: isolamento
social, choros insistentes e/ou repentinos, agressividade he-
tero ou auto dirigida, além de descontextualizada, mar-
cas no corpo, problemas de saúde, vestimenta inadequada
em relação ao fator climático, comportamento erotiza-
do, etc.
É preciso atentar que, por vezes, estes sinais correlacio-
nam-se a problemáticas que não podem ser resolvidas por
ações psicossociais, geralmente porque suas causas são de
ordem estritamente sócio-econômicas (ainda que afetem as
dimensões psico-relacionais, dentro e fora da família). Nes-
tes casos, quase sempre, todos os membros da família apre-
sentam as mesmas características comportamentais ou de
apresentação4.
Todavia, em outros casos, os problemas relacionais exis-
tem, sendo que condições sócio-econômicas adversas só os
agravam. Estes demandam acompanhamento psicossocial,
o que, apoiados na Psicoeducação, implicará em contatos
com a família, por vezes em seu próprio contexto de vida
(casa), num modelo de colaboração Educador-Pais [EÅÆP]
(GENDREAU, 1993).

4
Os casos de “falsa negligência” ou “falso abandono” são exemplos clássicos (BRINGIOTTI, 2000).
Frente a estes casos, cabe ao Psico-educador permanecer sensível, “chocando-se” todas as vezes que
vir alguém ou um grupo vivendo situações materiais que aviltam sua condição humana. Esta espécie
de indignação impulsiona o profissional a realizar ações de encaminhamento a programas/serviços
com competência (portanto, dever) de intervenção nestes casos, e velar para que ações efetivas sejam
realizadas, e que não haja confusão indevida entre miséria e maus-tratos, por exemplo.

227
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Paralelamente a outras orientações teórico-metodológi-


cas, em que se concebe a família (ou mais propriamente os
pais) como sujeito de intervenção – a exemplo de como se
procede com os filhos –, no paradigma em questão, pressu-
põe-se que este contato deva orientar-se pela “busca em co-
mum de interações educativas mais apropriadas a todos [e]
então, a colaboração real pode se instalar com as famílias/
pais”, sendo que “assim surgirão interações que os educado-
res profissionais e os pais saberão organizar, animar, utili-
zar juntos, a propósito do jovem” (GENDREAU, 1993, p.71).
Tal posicionamento concorre para dois outros bastante
importantes: a) a necessidade de superar um modelo de con-
tato e colaboração profissional-família, que apenas visa,
sobretudo, encontrar a gênese/explicação de algumas difi-
culdades detectadas nos jovens; b) a importância de, em
aceitando e respeitando o potencial e esquemas existen-
ciais dos pais, buscar com eles experiências de colaboração
e, através destas, as experiências educativas com os filhos.
Assim, a ação de colaboração centra-se sobre os recur-
sos (e potencialidades) que os pais demonstram ter – em
detrimento de suas dificuldades e vulnerabilidades e pres-
supõe que a intervenção, do mesmo modo que a concernen-
te às crianças/adolescentes, também focalize a experiência.
Servindo-se das palavras de Gendreau (1993):

[...] sem ignorar as interações ligadas ao potencial existen-


cial dos conteúdos da colaboração EÅÆP, é trabalhando com
os educadores naturais (pais) e se centrando nas interações
experienciais deste acompanhamento educativo que eles –
educadores – têm que coordenar e qualificar, que se oferece
um suporte realista e funcional do qual os pais necessitam
para o acompanhamento de seus filhos. Cabe aos pais, assim
como aos profissionais, aliás, tirar das conseqüências ele-
mentos que sirvam seja para clarear/explicitar seu contexto
existencial individual, seja para os re-enquadrar (diriam os
sistêmicos) pela procura de meios propriamente terapêuti-

228
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

cos. No quadro do processo de colaboração, o papel dos pro-


fissionais é trabalhar com os pais para oferecer ao jovem um
melhor acompanhamento, com vistas ao seu desenvolvimen-
to, sem que os conteúdos existenciais passados ou atuais
sejam especificamente o objeto da intervenção [...] não é fá-
cil, na prática, demarcar estes dois tipos de interações (exis-
tenciais e experienciais) [...] e fazê-lo não é a proposta. O que
se quer demonstrar é que a colaboração educadores naturais
e profissionais se situa nas múltiplas interações experien-
ciais que estes adultos têm a ocasião de viver concernente ao
acompanhamento educativo de uma criança/jovem. Que isto
tenha conseqüências sobre as interações relacionais existen-
ciais dos pais, enquanto pessoas, tornando-os mais flexíveis
e senhores de si, não muda a natureza da colaboração que
consiste em trabalhar com e não sobre os pais. (p. 82-83).

Considerando que o norteador da colaboração EÅÆP


são sempre as necessidades da criança/adolescente, sendo
sua finalidade última, inequivocamente, seu desenvolvimen-
to integral, pode-se considerar que o educador profissional
está bem posicionado para apoiar estes adultos nas suas
tarefas de pais, uma vez que ele tem interações análogas,
imbuídas do mesmo mandato, com o mesmo jovem.
As modalidades de colaboração podem ser diversas na
medida em que se deve considerar as especificidades de cada
meio, de cada contexto situacional, de cada um dos atores
(pais e filhos). O objetivo geral, contudo, é o de que eles
consigam expressar-se e fazer escolhas pessoais que irão
mudando sua própria vida, de modo a ir assumindo um
melhor controle de sua existência (GENDREAU, 1993). Isto
é, tornarem-se sujeitos da própria história.
Assim, baseando-se neste referencial, os estagiários têm
tido a oportunidade de realizar o acompanhamento de fa-
mílias, no próprio contexto de vida destas, entrando em
contato com realidades, por vezes, muito complexas, porém,
com possibilidade de transformação.

229
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

A ida às famílias é sempre discutida e negociada com as


crianças e adolescentes que, num primeiro momento geral-
mente temem este intercâmbio, mas, em seguida, como que
avalizando um pedido de ajuda, “autorizam-na”, passando
a demandar pelo acompanhamento.
Os adultos, por sua vez, da experiência destes seis anos,
nunca se opuseram ao contato. Se, de início, parecem sen-
tir-se um pouco constrangidos pela presença de um “pro-
fissional psicólogo” em suas residências, muito rapidamente
passam a um comportamento de acolhimento do educador
e de sua proposta de pensar e refletir juntos o papel paren-
tal, denotando-se uma espécie de alívio frente à possibili-
dade de superar concretamente certas dificuldades e romper
com um sentimento de solidão (falta de apoio) com que vi-
viam as situações.
Dentro disto, parece importante sublinhar esta caracte-
rística, que parece comum a todos os casos em que se reali-
zou o acompanhamento: o isolamento social e afetivo dos
adultos. Embora uma afirmação deste tipo mereça estudos
e investigações sistemáticas e aprofundadas5, a experiên-
cia tem reiterado a apreensão de uma dinâmica comunitá-
ria, para estas famílias, em que apesar da proximidade física
e da freqüência e intensidade de trocas com a vizinhança e
parentes, estes adultos parecem “ilhados” do ponto de vis-
ta de relações humanas íntimas e apoiadoras.
Assim, a ida do educador às casas destas pessoas, ado-
tando uma postura de quem veio para colaborador, por si
só, tem um impacto positivo sobre a dinâmica familiar, ainda
que o foco do contato seja especificamente o da criação (de-
senvolvimento) dos filhos.

5
Algumas investigações científicas têm descrito esta dinâmica, confirmando que o isolamento social
– decorrente de uma percepção negativa que adulto tem da qualidade das relações que mantém com
outros adultos, de seu entorno e/ou de agências de intervenção – é um fator extremamente relevante
correlacionado à situações de violência intra-familiar e quadros de doença mental (ETHIER;
COUTURE; LACHARITÉ, 2004; LAVIGUER, 1989).

230
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

Este desdobramento lança um desafio ético e metodoló-


gico ao programa de intervenção: como interromper o acom-
panhamento, após a consecução dos objetivos relativos às
interações pais-filhos, evitando que o isolamento sócio-afe-
tivo se reinstale?
Nesta linha, tem-se encampado como dimensão do tra-
balho a ser levado a cabo nos Núcleos, pelos estagiários, a
formação de grupos de pais. Além de visar objetivos pre-
ventivos no tocante aos maus-tratos domésticos de crian-
ça/adolescentes, a organização de reuniões com grupos de
pais, propiciando um local de troca e apóio mútuo quanto a
determinadas dificuldades, pode concorrer para o estabele-
cimento de relacionamentos humanos gratificantes, entre
os adultos pertencentes à mesma comunidade, que vivem
problemáticas de vida semelhantes e podem vislumbrar
soluções comuns e coletivas.
A efetivação desta idéia, entretanto, tem se mostrado
árdua. Realizar os encontros, de forma sistemática, é bem
menos fácil do que se gostaria, sendo a baixa adesão ou a
flutuação nos grupos uma marca. Algumas razões que ex-
plicam esta configuração são cogitadas, inclusive, conside-
rando a opinião que alguns pais emitiram. Uma primeira,
de ordem objetiva, relaciona-se à dificuldade de conciliar
seus horários de trabalho e outras atividades domésticas
com o das reuniões que, à priori, devem se enquadrar nos
horários e dias de funcionamento dos Núcleos, portanto,
das oito às dezessete horas, de segunda a sexta-feira.
Um segundo motivo expresso, diz respeito ao medo que
eles têm de que os conteúdos de suas falas sejam veicula-
dos, em seu prejuízo, na comunidade. Falando de modo sim-
ples, denota-se um grande temor de fofocas e intrigas,
envolvendo suas vidas, a despeito do contrato normalmen-
te firmado nos grupos, primando pelo compromisso de to-
dos pelo respeito e sigilo em relação aos conteúdos das

231
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

reuniões. Independentemente de terem tido ou não alguma


experiência deste tipo, vale enfatizar que este dado pode ser
integrado à hipótese do isolamento social e afetivo vivencia-
do por estes adultos/famílias.
Paralelamente, é preciso apontar que a proposta de con-
versar e pensar em conjunto determinadas situações de vida
pode parecer muito desafiadora e/ou desestimulante para
alguns destes adultos, na medida em que poucas são as oca-
siões disponíveis, desta natureza, no mundo contemporâneo.
Talvez seja necessário instalar o hábito, criando uma tradi-
ção neste sentido a partir de dispositivos comunitários.
Para este fim, os Núcleos parecem, novamente, muito
bem colocados. Todavia, é preciso dizer que, seguindo uma
linha predominante na área social, o contato das famílias
com os agentes dos Núcleos, quando acontece, é mais forte-
mente pautado por uma ideologia assistencialista, com a
concessão de benefícios sociais (cesta básica, distribuição
de leite, etc.) a partir de indicadores sócio-econômicos, e de
cunho disciplinar, de controle social de seus comportamen-
tos; assim, é provável que as representações suscitadas em
torno de qualquer atividade ali gerada seja permeada por
sentimentos e crenças marcados por esta tradição. Neste
sentido, para alguns, as representações conduziriam, de
antemão, ao evitamento da atividade dada uma rejeição às
formas de controle; para outros, haveria uma evasão de-
corrente da frustração a expectativas de tipo assistencial.
Esta reflexão implica em, necessariamente, conceber a
instituição, e seu funcionamento, como objeto de interven-
ção. A partir do instrumental Psicoeducativo, esta ação
visando determinadas transformações institucionais ini-
cia-se pela dimensão micro social que, no caso, constituí-se
do grupo de profissionais responsável pelo programa do
Núcleo. Assim, a outra esfera de atuação dentro deste está-

232
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

gio consiste em trabalhar para a instalação, a manutenção


e a qualificação das reuniões de equipe.

Implantação e manutenção de reuniões de equipe


Trabalhar em equipe, com o modelo Psicoeducativo, é uma
redundância. Em outras palavras, empregar a Psicoeduca-
ção como modelo em um programa que se caracteriza pela
“convivência” com o outro, com a finalidade de ajudar-lhe,
seja num nível preventivo ou outro, implica em desenvolver
um trabalho coeso, em coerência com a análise que se fizer
das necessidades dos seus usuários. Assim, o programa na
íntegra deve ser pensado “psiceducativamente”. Isto deman-
da, de forma incontornável, um trabalho de equipe.
Neste plano, a atuação dos estudantes, nos Núcleos, tem
sido orientada no sentido de fomentar e participar ativa-
mente das reuniões de equipe (quando se consegue que se
instalem), buscando fundamentalmente contribuir com as
discussões e as tomadas de decisão – de grupo – sobre o
objetivo último das ações, o papel a ser desempenhado pelos
educadores junto às crianças/adolescentes e às famílias, e os
métodos para o trabalho educativo.
Como em quase todas as instituições, nos Núcleos tam-
bém se observa uma deficiência na comunicação entre seus
agentes, o que dificulta imensamente o trabalho, gerando,
num primeiro plano, contradições e conflitos que poderiam
ser evitados e, num segundo, superficialidade do trabalho,
na medida em que as ações são desarticuladas e pouco re-
fletidas em conjunto, seja por ocasião de seu planejamento,
ou avaliação de resultados.
Considerando o almejado para a formação dos estudan-
tes de Psicologia, para o trabalho na área social-comunitá-
ria, pode-se afirmar que o trabalho com as equipes (e nas
equipes) constitui o seu ponto máximo na medida em que,

233
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

dada a complexidade, neste nível lhes serão requerido a sín-


tese do seu “saber, saber-ser e saber-fazer”.

Considerações finais
Acredita-se que o trabalho Psicológico na área social-
comunitária demande do profissional uma atuação diferente
daquela para a qual tem sido tradicionalmente preparado,
pautando-se na concepção de que a ação implicará em “viver”
com os sujeitos da intervenção suas experiências cotidianas,
tendo que intervir no aqui e agora dos acontecimentos, sem
perder de vista os significados humanos atribuídos às vivên-
cias que desenrolam-se em condições de existência, por ve-
zes, muito adversas. Neste sentido, não há dúvidas que isto
exigirá o desenvolvimento de habilidades bastante específi-
cas, além da aquisição de conhecimentos fundamentais.
Assim, uma formação específica, dentro desta perspecti-
va, parece imprescindível à legitimação de um espaço de
atuação profissional que tem sido, gradativamente, ocupa-
do pelos Psicólogos.
A busca e a experimentação de modelos, tanto para a
formação, quanto para a atuação profissional, são tarefas
inalienáveis das instituições formadoras, de nível univer-
sitário, considerando a missão de produzir conhecimento
científico relevante, de aplicação social.
Dentro deste quadro, pode-se afirmar que o modelo Psicoe-
ducativo se apresenta como uma alternativa interessante.
Embora requerendo ainda investigações científicas que pos-
sam avaliar de forma rigorosa e sistemática o processo de sua
implementação, bem como de seus resultados, a exemplo do
que foi feito no contexto de Casa-Abrigo (BAZON, 1999), a
experiência destes anos aponta para uma avaliação positiva
de sua pertinência também para o contexto dos Núcleos.

234
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

Entretanto, como já se frisou, será preciso enfrentar o


desafio de testar sua aplicação de modo a englobar todo o
programa de um equipamento do tipo Núcleo, transcendendo
ao emprego circunscrito do modelo a determinadas ativi-
dades e grupos. Espera-se que com os anos e com o engaja-
mento de estudantes e profissionais se possa empreender
esta importante tarefa.

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Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

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238
10. O TRABALHO COM GRUPOS
MINORITÁRIOS NA PERSPECTIVA DA
PSICOLOGIA SOCIAL

Jaqueline Brigagão I. Machado


Adriana Oliveira de Souza
Rosemeire Barbosa da Silva

“pero aquí abajo abajo


cada uno en su escondite
hay hombres y mujeres
que saben a qué asirse
aprovechando el sol
y también los eclipses
apartando lo inútil
y usando lo que le sirve
con su fe veterana”
(Mário Benedetti, Antología poética)

Este trabalho tem por objetivo discutir os princípios


teóricos e práticos que orientam algumas das práticas em
psicologia social com grupos minoritários. O texto foi or-
ganizado em duas partes, para melhor ambientar o leitor.
Na primeira vamos centralizar a discussão na caracteriza-
ção da população em situação de rua do centro de São Pau-
lo como grupo minoritário, a partir de uma leitura das
relações de poder (GUILLAUMIN, 1992; OSBORNE, 1997;
FOUCAULT, 1977). Na segunda parte, vamos discutir al-
guns aspectos de uma experiência de trabalho desenvolvi-
do com essa população, o projeto: “Renda na rua: os sentidos
do trabalho e do dinheiro para pessoas em situação de
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

rua”1. Este projeto foi desenvolvido por sete alunos do 10º


semestre e uma professora do curso de Psicologia da Uni-
versidade São Marcos. Trata-se de um dos estágios obriga-
tórios para a formação em Psicologia nesta Universidade e
foi realizado junto a dois programas de atendimento a po-
pulação: a “Associação Minha Rua Minha Casa”, que é uma
casa de convivência 2 e a “A casa acolhe a rua”, uma moradia
provisória3. Os dois espaços atualmente estão instalados no
centro de São Paulo4. A reflexão acerca dessa experiência
visa explicitar as possibilidades de trabalho, os limites e al-
gumas das dificuldades encontradas no percurso. Ao final
buscaremos articular as duas partes de modo a evidenciar
as lições aprendidas e a importância deste tipo de discussão
teórico/prática na formação de psicólogos.

O Poder e as Minorias
A opção de nomear a população em situação de rua de
grupo minoritário está fundamentada em nossa leitura
onde o ‘minoritário’ acaba sendo aquele que tem pouco, ou
1
Gostaríamos de agradecer algumas das discussões suscitadas nesse artigo aos demais estagiários
envolvidos no projeto: Beatriz Orosco, Carlos Ywama, Patrícia Algarve, Maria Lídia Olim e Márcio
Ciriaco.
2
De acordo com o disposto no decreto 40.232 de 02 de janeiro de 2001, que regulamenta a lei 12.316/
97 sobre a população em situação de rua, Casas de Convivências (conforme descrito no artigo 5º,
item V) são espaços que podem ser operadas diretamente pelo município ou em parceria com orga-
nizações e empresas “com ofertas de espaços dotados de recursos humanos e materiais para promo-
ção do trabalho sócio-educativo em regime de atendimento diário desenvolvendo atividades de
convivência, socialização e organização grupal, atividades ocupacionais, educacionais, culturais e
de lazer, assim como oferecendo condições de higiene pessoal, lavagem e secagem de roupas, alimen-
tação, guarda volumes, serviços de documentação e referência na cidade.”
3
A mesma lei supracitada, estabelece no seu item VI o que é o projeto de Moradias provisórias:
“serviço realizado em conjunto por SEHAB e SAS (...) com capacidade de uso por até 15 pessoas
moradoras de rua e em processo de reinserção social, funcionando em regime de co-gestão. A
operacionalização desses serviços envolverá responsabilidades compartilhadas (...) às organiza-
ções sociais caberá garantir padrões adequados de qualidade no atendimento.”
4
De acordo com o último recenseamento da população em situação de rua de São Paulo, o centro
possui, não só a maior quantidade de pessoas em situação de rua, como também congrega o maior
número de serviços voltados para o atendimento desse segmento da população (SÃO PAULO, 2003).

240
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

nenhum poder frente a uma realidade social. Por isso con-


cordamos com Guillaumin C5. (1992, p. 219) “Por minori-
tários entendemos não os que são forçosamente menores
em número, mas sim, os que em uma sociedade estão em
estado de ‘menor poder’ seja este poder econômico, jurídi-
co, político.”
Ou seja, são grupos que ocupam uma posição de subordi-
nação social, política e econômica, que estão impossibilita-
dos do exercício de direitos e de participação em condições
igualitárias e que historicamente têm sido submetidos a
diversos tipos de discriminação. Portanto, esta noção não
está associada a quantidades numéricas. Essa leitura de
minorias tem sido amplamente debatida entre os psicólo-
gos sociais, as feministas e algumas correntes da sociolo-
gia. Osborne (1997, p. 66) retomando a história deste
conceito afirma:

Uma tradição sociológica que se inicia com Simmel e poste-


riormente vincula-se a Escola de Chicago dos anos vinte e
trinta, representada por autores como Robert Park, Louis
Wirth, entre outros, foram eles que começaram a definir as
minorias a partir da inferioridade de status e não por sua
envergadura estatística.

Assim, podemos dizer que nesta perspectiva a população


em situação de rua é um grupo minoritário que tem sofrido
um longo e doloroso processo de exclusão social, seja por-
que está alijada do mercado de trabalho, ou porque não tem
condições dignas de moradia, saúde e educação. Nesse sen-
tido, a discussão de Robert Castel (1997) sobre os proces-
sos de exclusão, de desfiliação e de inclusão negativa,
possibilita-nos ampliar a leitura acerca dos mecanismos
sociais que operam nestes processos. Ele argumenta acer-

5
Todas as traduções de textos de língua estrangeira citados foram realizadas pelos autores.

241
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

ca da necessidade de distinguir entre as populações excluí-


das e as populações que estão sob a ameaça de exclusão:

Afirmar a necessidade de realizar tal distinção não implica


que essas situações de exclusão não sejam graves em si mes-
ma, nem que a exclusão não represente hoje uma ameaça.
São graves nelas mesmas porque, como já disse, alimentam
uma desestabilização geral da sociedade. Observa-se, assim,
uma multiplicação de categorias da população que sofrem
de um déficit de integração com relação ao trabalho, à mora-
dia, à educação, à cultura, etc, e, portanto pode-se dizer que
estão ameaçadas de exclusão. Esses processos de marginali-
zação podem resultar em exclusão propriamente dita, ou
seja, num tratamento explicitamente discriminatório des-
sas populações (CASTEL, 1997, p. 43).

A partir do argumento de Castel que a exclusão procede


de discriminações oficiais podemos dizer que as pessoas em
situação de rua sofrem algumas medidas discriminatórias,
inclusive oficiais, como o fato de não participarem dos cen-
sos populacionais oficiais realizados pelo IBGE6. Além dis-
so, ainda seguindo o raciocínio de Castel (1997) em diversos
momentos da história têm sido criadas políticas públicas
que os relegam a espaços especiais como no caso das cha-
madas “limpezas públicas”. Essas consistem em “remover”
da vista dos transeuntes as pessoas que estão nas ruas e
conduzi-las à albergues e abrigos de inverno (DOMINGUES
JR., 2003).
Essa discussão acerca da relação entre exclusão e a con-
juntura socioeconômica e mais especificamente, do modo

6
O último censo da FIPE (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas) em parceria com a Secre-
tária da Assistência Social de São Paulo - SAS foi realizado em Outubro de 2003. Essa parceria é
responsável pelo levantamento quantitativo da população em situação de rua em São Paulo, pois
diferentemente da maioria dos países do mundo, como Inglaterra e Canadá, onde a população de
rua faz parte do número oficial dos censos estatísticos, a população de rua, no Brasil, não é recenseada
no levantamento oficial, realizado pelo IBGE. (SÃO PAULO, 2000)

242
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

como as desigualdades sociais operam criando grupos mar-


ginalizados e guetos, tem nos ajudado a compreender que o
trabalho do psicólogo não pode se limitar a suprir as ne-
cessidades básicas e funcionar como um pronto socorro so-
cial, mas sim buscar ações que integrem uma visão macro
da sociedade e que em última instância possam colaborar
para a transformação da sociedade.
Por outro lado, apesar de reconhecermos os processos de
exclusão que essa população tem sofrido, e de reconhecer
que são minoritários, no sentido de terem “menos poder”
que outros grupos na sociedade, não nos parece que estes
sejam apenas “vítimas”, dignas de pena e objeto de carida-
de e filantropia. Pelo contrário, acreditamos nas potencia-
lidades desta população e reconhecemos que as relações de
poder permeiam todas as relações sociais. Assim a noção
de subjugado vai depender da posição que olhamos uma dada
relação. Trata-se de uma leitura das relações baseada no
conceito de poder de Foucault (1977, p. 89) . Vejamos:

Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como


a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domí-
nio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o
jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as
transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações
de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou
sistemas, ou ao contrário, as defasagens e contradições que
as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam
cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo
nos aparelhos estatais , na formulação da lei , nas hegemoni-
as sociais. A condição de possibilidade do poder, em todo
caso, o ponto de vista que permite tornar o seu exercício
inteligível até seus efeitos mais “periféricos” e, também ,
enseja empregar seus mecanismos como chave de inteligibi-
lidade social, não deve ser procurada na existência primeira
de um ponto central, num foco único de soberania de onde
partiriam formas derivadas e descendentes; é o suporte

243
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

móvel das correlações de força que, devido a sua desigualda-


de, induzem continuamente estados de poder, mas sempre
localizados e instáveis. Onipresença do poder: não porque
tenha o privilégio de agrupar tudo sob sua invencível unida-
de, mas porque se produz a cada instante, em todos os pon-
tos, ou melhor, em toda a relação entre um ponto e outro. O
poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim
porque provém de todos os lugares.

Assim, em nosso trabalho, partimos da leitura de que os


grupos minoritários também exercem o poder, seja no sen-
tido de resistir às pressões sociais que sofrem no cotidiano,
seja no sentido de buscar alterar as relações de força com o
Estado e a Sociedade. Daí adotarmos uma perspectiva teó-
rica/prática que prioriza o coletivo, os saberes locais e as
formas de auto-organização da comunidade. Ou seja, ao
pensar nas práticas e nas possibilidades concretas de tra-
balho com estes grupos é preciso reconhecer que os huma-
nos são seres sociais que nascem, crescem e vivem em uma
matriz social e portanto são capazes de desenvolver sofisti-
cados modelos de organização quando lhes é permitido.

[...] é necessário reconhecer a validade do pressuposto que


nascemos em comunidade, nas socialidades e materialida-
des do dia a dia cujas linguagens de ação são repletas de
palavras organizativas de uso constante; formando uma re-
ferência contínua a nossa competência coletiva. Há inúme-
ras lutas pela hegemonia sobre estas noções organizativas,
mas elas fazem parte da competência coletiva – não há dúvi-
da. Nascer em comunidade é presumir uma capacidade cole-
tiva de autogestão, que antecede e prescinde um governo ou
um Estado. (SPINK, 2003 p.15).

Parece-nos que a perspectiva liberal e neoliberal que tem


assumido a sociedade Ocidental, não permite que essas for-
mas coletivas de organização se manifestem. A ênfase ex-

244
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

cessiva nos indivíduos (desprendidos de uma realidade com-


partilhada socialmente) e os dispositivos disciplinares das
instituições não só se apresentam nesse cenário, como
mecanismos de resistência a essas possibilidades de or-
ganização coletiva mas também como estratégias de “go-
vernamentalidade”. (FOUCAULT, 1991). A partir desse
entendimento, parece claro para nós que um dos caminhos
adotados no trabalho com os grupos minoritários, que é o
foco da nossa discussão aqui, seria buscar entender e des-
construir essas formas de controle e buscar reconhecer os
modelos organizativos que as pessoas usam no cotidiano.
A partir disso, seria possível trabalhar no sentido de faci-
litar que esses modelos sejam aceitos e reconhecidos como
legítimos tanto pelo próprio grupo como pela sociedade.
Mas, esse processo nem sempre é fácil, já que alguns
desses grupos estão tão enfraquecidos pela luta diária em
busca sobrevivência (SILVA, 1988), que parece não haver
mais vínculos ou possibilidades de atos solidários sem a
ajuda externa. Nestes casos uma das possibilidades seria a
de o psicólogo social atuar como um facilitador e mediador
das relações, para assim auxiliar o grupo a resgatar as pos-
sibilidades de trabalho conjunto e de organização coletiva.
(1992, p. 71), discutindo acerca da pobreza pontua a impor-
tância de agentes externos para auxiliar no empoderamen-
to comunitário.

Os muito pobres, vítimas da fome, trabalhadores rurais sem


terra, mulheres chefes de família nos guetos das grandes
cidades, podem simplesmente não encontrar meios de aju-
dar a si mesmas. Eles necessitam de ajuda de organizações
religiosas, dos sindicatos e do Estado. Mas, mesmo para aque-
les menos destituídos, o empoderamento coletivo é rara-
mente um processo espontâneo da ação comunitária: agentes
externos são criticamente importantes.

245
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Situando o estágio: o público alvo, os


objetivos, a metodologia e limitações
O PÚBLICO ALVO:
A pessoa em situação de rua é historicamente definida
como fazendo parte de um conjunto homogeneizador, que
não respeita a heterogeneidade e a multiplicidade dos fatores
que resultam no morar na rua. A definição não só estigmati-
za, como também ignora a individualidade do sujeito rotu-
lado através da nomenclatura:

[...] Nas três última décadas observa-se uma variada nomen-


clatura em relação à população que vive nas ruas [...] carre-
gada de significados, que, por sua vez, expressa, não apenas
as representações que a sociedade tem sobre ela, mas tam-
bém a articulação com determinadas conjunturas sociais,
econômicas e político-institucionais. Portanto, as denomi-
nações são historicamente construídas e empregadas para
nomear as diferentes situações das pessoas que se utilizam
da rua para morar e sobreviver [...]. Verifica-se uma tendên-
cia de buscar um denominador comum, uma expressão que
abarque a heterogeneidade de situações de rua, tanto no
sentido generalizante, de desqualificar a população que mora
e sobrevive nas ruas e em albergues – mendigos – como uma
outra expressão que funcione como contraponto e que ate-
nue preconceitos ou explicite posições – povo de rua [...]
(ROSA, 1999, p.18).

Essas concepções diversificadas que são expressas sobre a


população de rua, acabam por também direcionar nosso olhar
sobre esse fenômeno, assim quando taxamos uma pessoa de
“mendigo” estamos implicitamente expressando nosso movi-
mento de discriminação e desqualificação, não estamos en-
xergando a pessoa e sim sintetizando na definição nossa
indiferença e não envolvimento com a problemática.

246
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

Oficialmente, hoje consideramos pessoas em situação de


rua, ou então “moradores de rua” como são conhecidos:

[...] os indivíduos que não têm moradia e que pernoitam nos


logradouros da cidade – praças, calçadas, marquises, jardins,
baixos de viaduto – ou em casarões abandonados, mocós,
cemitérios, carcaças de veículos, terrenos baldios ou depósi-
tos de papelão e sucata. [...] aquelas pessoas, ou famílias,
que, também sem moradia, pernoitam em albergues ou abri-
gos, sejam eles mantidos pelo poder público ou privado (SÃO
PAULO, 2003, p.7).

Segundo o último recenseamento da FIPE (SÃO PAULO,


2003) na cidade de São Paulo, estima-se que existam 10.399
pessoas em situação de rua.
A demanda para trabalhar com pessoas em situação de
rua surgiu dos estagiários, duas delas já haviam realizado
trabalhos anteriores com essa população e convenceram os
colegas e a professora que esta população é um dos grupos
minoritários que tem tido pouco espaço, seja nas reflexões
acadêmicas, seja nas atuações da Psicologia. Como eram
sete alunos envolvidos decidimos realizar o estágio com
usuários de dois lugares distintos: a casa de convivência
“Associação Minha Rua Minha Casa” e a moradia provisó-
ria “A casa acolhe a rua”. A primeira é uma organização
não-governamental, que funciona como um Centro de Con-
vivência, localizado num ponto já conhecido e freqüentado
pela ‘população de rua’. Está aberta todos os dias para ser-
viços de banho, lavagem de roupa e para diversos progra-
mas como: Grupo de Arte, Grupo de Manutenção, Trabalhos
em Mutirão, Encontros para debate sobre o uso de álcool,
Atendimento Psicológico e Brechó. Esta instituição acre-
dita que a pessoa em situação de rua é um sujeito que care-
ce de referenciais, sejam eles de sociabilização ou de
representações de ambientes sociais como casa, parque,

247
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

biblioteca etc. A reconstrução desses referenciais que vão


sendo esquecidos ao longo da trajetória desses sujeitos vai
acontecendo pouco a pouco, através da convivência.
A moradia provisória do Glicério é um dos 13 projetos
de moradia existentes em São Paulo. Os projetos de mora-
dias provisórias têm o objetivo de fornecer um espaço dife-
rente dos albergues, onde os moradores possam por meio
do exercício da autonomia obter renda e conseguir uma
moradia. São administrados por ONG’s que têm um histó-
rico no trabalho social desenvolvido junto a esses grupos e
subsidiados pelo orçamento da Prefeitura de São Paulo:

As moradias provisórias são serviços destinados às pessoas


inseridas no mercado formal ou informal de trabalho, aque-
las sem condições de assumir financeiramente os gastos com
moradias e que já são atendidas pela rede de serviços exis-
tentes. São desenvolvidas atividades e vivências, buscando a
co-responsabilidade dos moradores. (http://portal.prefeitura.
sp.gov.br/secretarias/assistencia_social/servicos/populacao_rua/
0004)

OBJETIVOS
O estágio possuiu três objetivos:
• Formar psicólogos comprometidos socialmente;
• Discutir com os estagiários recursos práticos e teóri-
cos acerca dos modos de organização grupal que os auxi-
liem a pensar os grupos como espaços de horizontalidade e
troca.
• Espera-se beneficiar a população ao criar estratégias
para facilitar as interações os processo grupais e possibili-
tar aos participantes dos grupos - pessoas em situação de
rua - o espaço e o ambiente, para que possam reforçar os
laços de solidariedade e reconhecer o potencial auto-orga-
nizativo dos grupos a que pertencem.

248
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

MÉTODO
A partir de um posicionamento construcionista parece-
nos impossível definir metodologias rígidas. Para nós, as
ações são construídas nas relações e dependem das pessoas
envolvidas. Então podemos dizer que a metodologia de tra-
balho utilizada nos grupos visava facilitar o fluir da con-
versação e consistia em abrir a discussão com o objetivo de
que todos falassem, ao final buscava-se realizar uma sínte-
se dos principais aspectos discutidos para tentar organizar
minimamente os próximos encontros. Algumas vezes pro-
pusemos atividades que nos ajudavam a concretizar as idéias
discutidas. Não havia nenhuma regra metodológica muito
rígida a não ser que todos tinham direito a falar e a ouvir.
Acreditamos que os grupos são capazes de se auto-gerir e
que muitas vezes os métodos e os planejamentos excessivos
engessam a criatividade das pessoas e impedem a horizon-
talidade.

AS LIMITAÇÕES
Antes de entrar no relato dos grupos é preciso ressaltar
que este trabalho foi desenvolvido dentro de um estágio
curricular que necessita ser desenvolvido durante um se-
mestre letivo, o que significa dizer quatro meses. Assim, é
muito claro para nós que os calendários acadêmicos limi-
tam as possibilidades de ação e de formação dos alunos e
que nos obrigam a utilizar estratégias artificiais de inter-
venção para que possamos viabilizar o trabalho. Estamos
chamando de artificial o fato de propormos um grupo de
discussão e que este a primeira vista remete a idéia de que
somos especialistas em um determinado tema e iremos en-
siná-lo para os participantes do grupo. Não pensamos as-
sim e durante todo o tempo agimos no sentido de demonstrar
que tínhamos mais a aprender do que a ensinar. Para nós
as pessoas em relação, sejam em grupos ou comunidades,

249
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

produzem saberes que têm de ser ouvidos, respeitados e


valorizados. E, estamos certos de que o trabalho que desen-
volvemos teria tido muito mais chances de sucesso se ti-
véssemos tido tempo para passar muitas horas participando
do cotidiano das pessoas e observando os modos como eles
se relacionam, resolvem os problemas coletivos e se orga-
nizam nas tarefas diárias que têm em comum e nos mo-
mentos de lazer. Se isso fosse possível, não teríamos
necessidade de propor um grupo específico de discussão e
teríamos trabalhado dentro dos grupos que eles desenvol-
vem cotidianamente e estaríamos muito mais próximos de
nossa postura teórica. Deste modo, é preciso deixar claro
que esses grupos foram realizados dentro dos limites de uma
realidade acadêmica, que muitas vezes não leva em conta
as nuances da questão social.

Relato dos Grupos


Vamos contar um pouco, o que aconteceu nos grupos,
para tentar demonstrar como é possível fazer psicologia
social focalizando as relações sociais, mas também para
discutir as resistências que este modo de pensar a realida-
de e de fazer psicologia encontra na prática.
Como os grupos eram autônomos e tiveram caracterís-
ticas muito diferentes, vamos apresentá-los separadamen-
te. Para facilitar a compreensão dos leitores vamos
nomeá-los grupo I e grupo II.

GRUPO I:
Iniciamos o trabalho conversando com a coordenadora
da Associação Minha Casa Minha Rua, acerca do modo de
funcionamento da associação, das demandas das pessoas
que a freqüentam e de nossas habilidades, potencialidades
e posicionamentos ético/políticos. Durante esta conversa

250
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

foi possível perceber que existia a demanda de realizarmos


algum trabalho voltado para a discussão de geração de ren-
da. Devido ao fato de que vários membros da Associação
participam de oficinas profissionalizantes, algumas inclusi-
ve que ocorrem dentro da própria associação, mas a maioria
não tem conseguido transformar o que aprendem em possi-
bilidades concretas de ganhar dinheiro.
Propusemos a criação de um grupo de discussão de gera-
ção de renda, considerando que o tema do grupo seria o pre-
texto para que as reuniões acontecessem, como explicamos
anteriormente estávamos de certa forma “amarrados”
pelas exigências curriculares e do viver. Desta forma a dis-
cussão acerca da geração de renda seria a tarefa concreta
do grupo, e principalmente, estaríamos o tempo todo traba-
lhando no sentido de fortalecer as identificações e os laços
entre seus integrantes, e mais que isto, facilitar a circula-
ção dos saberes coletivos e reforçar os modos organizativos
do grupo.
Assim foram feitos cartazes convidando as pessoas para
participarem dos grupos e um convite verbal na assembléia
semanal que é realizada na Associação. Inicialmente havia
uma certa insegurança nos alunos pelo desafio de realizar
este trabalho seguindo a metodologia, a qual não apresen-
tava nenhum procedimento prévio ao grupo. No decorrer
dos encontros todos puderam perceber que se trabalhásse-
mos a partir de programas e procedimentos estruturados
previamente teria sido impossível suportar o caos que mui-
tas vezes insistia em tomar conta das reuniões.
A proposta de trabalho foi feita para os participantes do
primeiro encontro, e desde o início ficou bem claro para
todos que iríamos participar do grupo de geração de renda
durante o período de dez semanas. É interessante observar
que as delimitações temporais muitas vezes trabalharam
contra nós, mas também a nosso favor em alguns aspectos.

251
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Por exemplo, para os participantes do grupo foi fundamen-


tal esse limite temporal que trouxe para eles um sentido de
urgência, uma necessidade de usarem o espaço que lhes pro-
porcionamos do melhor modo possível. Uma das partici-
pantes do grupo deixa bem claro o entendimento da
importância de se posicionarem, já que diante da proximi-
dade do término das reuniões ela comentou que o grupo
tinha que decidir qual caminho seguir, exigindo assim dos
demais participantes um posicionamento mais ativo. Isto
demonstra o entendimento de alguns participantes de que
o objetivo do grupo era de instrumentaliza-los para ações
posteriores e não ter o acompanhamento contínuo dos es-
tagiários.
Os encontros semanais que realizamos nos permitiu
aprender muito e mais que isso, vimos que é possível traba-
lhar a partir de uma perspectiva coletiva onde o todo é maior
que a soma das partes. O grupo era aberto e muitos partici-
pantes eram flutuantes, ou seja, vinham quando era possí-
vel. Em média participavam oito pessoas das reuniões, mas
um núcleo de quatro participantes foi constante. E a partir
das conversas dentro e fora das reuniões este núcleo desco-
briu idéias, interesses e sonhos comuns e decidiram criar
uma cooperativa de artesanato, considerando o trabalho
que já realizavam individualmente.
Nos últimos encontros o grupo caminhou no sentido de
se organizar para dar continuidade ao trabalho desenvol-
vido, buscando agora mais pontualmente informações so-
bre a criação da cooperativa. Para isto, buscamos o apoio
da Incubadora da Fundação Getúlio Vargas que estava pre-
sente no último encontro para tomar contato com a pro-
posta do grupo e atender a demanda existente.
O que queremos ressaltar dessa experiência é que esse
grupo só se constituiu desse modo porque não fomos até a
Associação com o objetivo de conscientizar ninguém e mui-
to menos ensiná-los como se organizar. Essas pessoas vi-

252
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

vem há anos nas ruas, conhecem a dor da pobreza e da ex-


clusão do lado de dentro e muito antes de nos conhecerem
já tinham formas de organização e laços de solidariedade
que os tem ajudado a sobreviver na rua. As nossas reuniões
apenas possibilitaram um espaço para que estes laços se
fortalecessem e assim encontrassem possibilidades de pen-
sar saídas coletivas para parte de seus problemas.
Parece-nos que para eles que estão acostumados a serem
vistos pela sociedade como “pobre-coitados” ou “fracassa-
dos” serem reconhecidos como pessoas e terem os saberes
ouvidos e valorizados foi um facilitador no processo de as-
sumir outras posições no mundo. Mas isso só é possível se
os profissionais que trabalham com as pessoas em situa-
ção de rua, ou outros grupos minoritários sejam capazes de
sair do lugar de saber e da postura que busca ensinar aos
outros modelos de comportamentos pautados em teorias
disciplinares e descolados da realidade.

GRUPO 2:
Neste grupo, as reuniões foram realizadas com morado-
res de uma das moradias provisórias da cidade de São Pau-
lo. O grupo era aberto para a participação de todos e,
consistiu em 10 reuniões semanais, mas a configuração das
relações foi muito diferente do grupo anterior.
A participação foi pontual e apenas duas pessoas compa-
receram a todas as reuniões. Nas reuniões não consegui-
mos observar nenhum movimento no sentido do coletivo,
pelo contrário os participantes solicitavam ajuda em ques-
tões pessoais e individuais como, por exemplo, o auxílio para
elaboração do currículo, ou “aulas de Psicologia”, havia
por parte de alguns participantes a noção de que psicólogos
podem ensinar como obter sucesso.
Neste período de dez semanas, não nos foi possível iden-
tificar os mecanismos que eles dispõe de organização cole-
tiva e nem os laços de solidariedade entre eles. Desde então,
253
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

estamos nos questionando sobre o que acontece com essas


pessoas e a conclusão provisória é que no contexto da mo-
radia estes mecanismos não podem aparecer – vale lembrar
que as conclusões são sempre parciais e provisórias. O que
queremos dizer é que pelo pouco que observamos e pelas
leituras que fizemos, pareceu-nos que a moradia está orga-
nizada de modo a não permitir que os vínculos entre as pes-
soas se fortaleçam, dificultando desse modo, formas de
organização. São cinco casas com 10 ou 8 pessoas vivendo
em cada uma, e um centro comunitário. Não há atividades
coletivas, eles realizam apenas uma reunião semanal para
discutir aspectos administrativos da moradia. E o centro co-
munitário não é muito freqüentado pelos moradores. Os mo-
radores contribuem mensalmente com uma taxa de R$ 50,00
e cada casa tem um fundo para despesas adicionais.
É preciso lembrar também que iniciamos esse trabalho
porque alguns alunos gostariam de conhecer a realidade da
moradia e porque tínhamos uma leitura romântica da mo-
radia. Estávamos todos, convencidos de que, para pessoas
que estavam vivendo na rua, ter onde viver transformava o
modo de ver o mundo e de se relacionar, e que o fato de ser
uma moradia coletiva aproximaria as pessoas e lhes possi-
bilitaria compartilhar idéias e se organizar enquanto gru-
po. Ao longo do tempo, fomos percebendo o quanto essa idéia
podia ser relativizada a partir da ótica empregada na leitu-
ra desse cotidiano. As normas explícitas e implícitas que
garantiam o funcionamento da moradia, pareciam-nos tra-
balhar no sentido inverso do reconhecimento da autono-
mia e da organização coletiva. Varanda (2003) discutindo
as políticas públicas e programas voltados para as pessoas
em situação de rua afirma que essas políticas podem res-
tringir e limitar a emancipação dessas pessoas:

A persistência do assistencialismo que transforma o abriga-


mento temporário em opção permanente de moradia e ali-

254
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

mentação, que impõe condições como restrições ao exercício


da sexualidade e da autonomia, podem estar cristalizando a
condição de dependência destes sujeitos ao serviço público e
minando sua capacidade reativa de sobrevivência. A rua, neste
caso, pode estar sendo mais saudável do ponto de vista da
integridade e identidade do sujeito. (VARANDA, 2003,
p.108).

Reconhecemos a importância da moradia como espaço


transitório, mas queremos alertar para o fato de que, se as
ações desenvolvidas neste espaço, forem assistencialistas e
tenham por foco somente os indivíduos, esta pode se tornar
apenas uma solução temporária, paliativa e não transfor-
madora da realidade. Parece-nos que este seria um excelen-
te espaço para fortalecer a solidariedade entre as pessoas
em situação de rua e possibilitar a formação de uma rede
na busca por melhores condições de vida. Solidariedade no
sentido apresentado por Spink (2003, p.20):

Solidariedade se refere ao ato de juntar–se aos outros de


maneira ‘sólida.’ Quer dizer lado a lado, dividindo as mes-
mas responsabilidades e conseqüências. É uma referência a
uma relação horizontal e não vertical; ou melhor, de hori-
zontalização enquanto processo social. Não é, portanto, uma
relação de ajuda ou de caridade; ao contrário é uma relação
de ação, de compartilhamento.

As lições aprendidas
A atuação do profissional da Psicologia com grupos mi-
noritários, como as pessoas em situação de rua, têm se apre-
sentado como um desafio para os professores e acadêmicos
envolvidos na formação de psicólogos. Desafio no sentido
de que o trabalho com estes grupos exige uma reflexão para
além da simples aplicação das teorias e implica necessaria-

255
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

mente em um posicionamento crítico e político. Além de


exigir que os profissionais envolvidos façam uma leitura
crítica da realidade que os permita ultrapassar o âmbito
das práticas individualizantes7 em Psicologia.
Gostaríamos de ressaltar que temos muito que aprender
com os grupos com que trabalhamos, mas que isto só é pos-
sível quando abandonamos as concepções individualistas
que muitas vezes, orientam a nossa formação e deixamos
de trabalhar a partir de uma leitura de mundo fundamen-
tada na perspectiva da saúde e da doença. Ou seja, para nós
os grupos minoritários não são um aglomerado de pessoas
que devem ser analisadas e trabalhadas individualmente,
pelo contrário, acreditamos que é através do fortalecimen-
to dos grupos e das ações coletivas que os grupos minoritá-
rios poderão alterar as posições no jogo social de poder. E
ainda, que os critérios de classificação das pessoas em sau-
dáveis ou doentes, estruturados ou desestruturados emo-
cional ou socialmente, são formas de normatização dos
corpos que impossibilitam o reconhecimento do potencial
de cada um dentro do grupo que ele participa, e mais que
isso são ações que desintegram esses grupos, justificadas
por uma concepção alienista de saúde mental e pouco rela-
cionada com o cotidiano do viver destas pessoas.
Há ainda dois aspectos muito importantes e que não po-
demos deixar de mencionar numa discussão acerca da for-
mação em Psicologia, a questão do comprometimento social
e dos modos como nos posicionamos nas diversas relações
que estabelecemos com os outros e com as teorias.
Para pensar o comprometimento social como responsa-
bilidade de todos o argumento de Sen (2000, p. 320) é muito

7
Vale lembrar que historicamente a formação profissional em Psicologia, de um modo geral tem
priorizado as práticas individualizantes e focalizado as subjetividades.Para uma discussão mais
aprofundada veja a tese de doutoramento de Bernardes (2004) “O debate atual sobre a formação em
psicologia no Brasil – permanências, rupturas e cooptações nas políticas educacionais”.

256
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

potente e nos faz refletir acerca de como somos responsá-


veis uns pelos outros:

Como pessoas que vivem – em um sentido amplo – juntas,


não podemos escapar a noção de que os acontecimentos ter-
ríveis que vemos à nossa volta são essencialmente proble-
mas nossos. Eles são responsabilidade nossa -
independentemente de serem ou não de mais alguém.

É neste sentido de assumir responsabilidades pelo mun-


do que vivemos e de participar da construção de um mundo
melhor que pensamos o compromisso social do psicólogo
como um aspecto central da formação. Spink (2003) enfati-
za a importância deste comprometimento no campo da psi-
cologia social:

Precisamos de uma psicologia social capaz de respeitar as


capacidades coletivas expressas em saberes, práticas e ações
organizativas, com a disposição e a competência de entrar
na luta para as utopias, capaz de compreender as redes soli-
dárias , a autogestão e a solidariedade...

Um outro aspecto fundamental da formação refere-se a


questão dos saberes instituídos e dos modos como lidamos
com estes no cotidiano das práticas. Faz se necessário re-
pensar junto com os alunos as relações que nós profissio-
nais do campo da Psicologia estabelecemos com as pessoas
ao realizar qualquer tipo de trabalho ou teorização. É preci-
so reconhecer as relações de poder/saber tanto no cotidiano
das práticas quanto no momento das pesquisas e dos tex-
tos. Partimos do princípio que estamos produzindo um co-
nhecimento situado e parcial, no sentido proposto por
Haraway (1991) .
Essa autora discute a produção de conhecimentos na
epistemologia feminista e faz uma grande contribuição para
pensar a ciência na modernidade tardia. O conhecimento

257
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

situado não se reduz à contextualização das condições his-


tóricas e sociais do conhecimento que estamos produzindo,
como já o fazemos nas pesquisas qualitativas, mas implica
sobretudo em incluir a ‘reflexividade’. Ou seja, a inclusão
do posicionamento do autor como condição para a produ-
ção de um conhecimento objetivo.

O eu que conhece é parcial em todas as suas facetas, nunca


terminado, total, não se encontra simplesmente aí e em esta-
do original. Está sempre construído e remendado de maneira
imperfeita e, portanto, é capaz de unir-se ao outro, de ver
junto ao outro sem pretender ser o outro. Esta é a promessa
de objetividade: um conhecedor científico busca a posição do
sujeito não a da identidade, mas sim a da objetividade é dizer
a da conexão parcial. (HARAWAY, 1991, p. 332/333).

Assim, a reflexividade permite produzir um conhecimen-


to situado e objetivo onde o autor ocupa um lugar e, mais
que isto, assume a responsabilidade pelo que está sendo
produzido e pelos princípios éticos e políticos de nossas
práticas e teorias. Pensar as nossas práticas em psicologia
social nesta perspectiva implica em abandonar qualquer
tentativa de posicionamentos neutros e imparciais e assu-
mir que o nosso fazer é resultado das nossas concepções e
possibilidades de ação em um dado momento. Mas, sem por
isso deixar de produzir um conhecimento objetivo, explici-
tar as nossas posições, ocupar um lugar, situar as nossas
práticas e localizá-los como sendo conhecimentos parciais
e locais é a nossa possibilidade de fazermos uma ciência
comprometida e transformadora.

Referências

BERNARDES, J. O debate atual sobre a formação em


Psicologia no Brasil: permanências, rupturas e cooptações nas

258
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

políticas educacionais. 2004. 207p. Tese (Doutorado) – Programa


de Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo, 2004.
CASTEL, R. As armadilhas da exclusão. In: WANDERLEY, M.B.;
BÓGUS, L.; YAZBEK, M.C. (Orgs.). Desigualdade e a questão
social. São Paulo: EDUC, 2004.
DECRETO DE LEI 40.232 de 02 de janeiro de 2001, São Paulo.
DOMINGUES, JR., P. L. Cooperativa e construção da
cidadania da população de rua. São Paulo: Loyola/
Leopoldianum, 2003.
FOUCAULT, M. História da sexualidade I: A vontade de saber.
Rio de Janeiro: Graal, 1977.
______. Governmentality. In: BURCHELL, G.; GORDON, C.;
MILLER, P. The Foucault Effect. Chicago: The University of
Chicago, 1991.
FRIEDMANN, J. Empowerment: the politics of alternative
development. Cambridge: Blackwell, 1992.
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femmes, 1992.
HARAWAY, D. J. Ciencia, cyborgs y mujeres: la reinvención de
la naturaleza. Madrid: Cátedra, 1991.
OSBORNE, R. Grupos minoritários y acción positiva: las mujeres
y las políticas de igualdad. Papers. Revista de Sociología. n.53
p(65-76) España 1997.
ROSA, C. M. M. Vidas de rua, destino de muitos. 1999. 151 p.
Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Serviço Social, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1999.
SÃO PAULO. Secretaria de Assistência Social. Fundação Instituto
de Pesquisas Econômicas. Censo de Moradores de Rua da
Cidade de São Paulo. São Paulo, 2000.
SÃO PAULO. Secretaria de Assistência Social. Fundação Instituto
de Pesquisas Econômicas. Recenseamento de Moradores de
Rua da Cidade de São Paulo. São Paulo, 2003.
SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
SILVA, J. R. F. A Igreja dos excluídos: vida e morte do povo que
mora na rua. São Paulo: FTD, 1988.

259
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

SPINK, P. K. Redes solidárias, autogestão e solidariedade. In: XII


ENCONTRO NACIONAL DAASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
PSICOLOGIA SOCIAL (ABRAPSO),2003. Rio Grande do Sul.
Anais do XII Encontro Nacional da Associação Brasileira
de Psicologia Social (ABRAPSO), 2003
VARANDA, W. Do direito a vida à vida como direito:
sobrevivência, intervenções e saúde de adultos destituídos de
trabalho e moradia nas ruas da cidade de São Paulo. 2003. 125 p.
Dissertação (Mestrado) - Faculdade Saúde Pública, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2003.

260
11. A INFLUÊNCIA FAMILIAR NA
ESCOLHA PROFISSIONAL DOS FILHOS, NA
PERSPECTIVA DE MÃES DE CLIENTES EM
PROCESSO DE ORIENTAÇÃO PROFISSIONAL

Lucy Leal Melo-Silva


Camila Vianna Duarte
Manoel Antônio dos Santos
Talma Alzira Bonfim

Analisar a visão dos familiares sobre a influência exer-


cida na escolha da carreira dos filhos representa uma con-
tribuição relevante à orientação profissional, já que em
diversos estudos como o conduzido por Trusty (1996), foi
salientada a participação dos pais no desenvolvimento de
carreira de adolescentes dos últimos anos do ensino médio.
O autor destacou que o envolvimento positivo dos pais no
processo de desenvolvimento de carreira de seus filhos pode
favorecer atitudes, percepções e comportamentos positivos
nestes jovens. Por outro lado, uma influência negativa por
parte dos pais pode gerar problemas de comportamento e
uso de drogas. Outro dado revelado foi de que os pais pare-
cem se envolver mais no desenvolvimento educacional e pro-
fissional de suas filhas do que no de seus filhos.
Em um estudo conduzido por Kotrlik e Harrinson (apud
Trusty, 1996) foi constatado que os pais influenciam as de-
cisões de carreira dos adolescentes mais do que professo-
res, conselheiros, grupo de pares ou outros parentes. De
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

forma análoga, Bohoslavsky (1991) aponta que os valores


do grupo familiar constituem bases significativas na orien-
tação dos jovens, de maeira que a família pode atuar tanto
como grupo positivo quanto negativo de referência. Segun-
do este autor

as satisfações ou insatisfações dos pais e de outros familiares


significativos, em função de seus respectivos ideais de ego e
a vivência das mesmas, exercem um papel importante quanto
às influências que, desde criança, recebe o adolescente em
seu lar (BOHOSLAVSKY, 1991, p. 58).

Na medida em que o adolescente faz sua escolha, de-


sestrutura de certa forma o grupo familiar e converte-se
em depositário do papel reparatório do grupo como um
todo. Assim, as expectativas familiares em relação ao
jovem que escolhe têm muita importância já que “toda
família depende da escolha porque inconscientemente
transfere ao adolescente o encargo da reparação de todo
o grupo” (Bohoslavsky, 1991, p. 82).
Andrade (1997) ressalta as dificuldades por que passam
os pais com as vivências de seus filhos adolescentes nesta
complexa fase de transição e escolhas:

[...] diante da adolescência dos filhos, os pais revivem suas


próprias situações edípicas conflitivas, ressentem-se do afas-
tamento dos filhos e também têm que elaborar uma série de
lutos associados ao amadurecimento dos seus próprios fi-
lhos e ao seu próprio envelhecimento (p. 129).

Ao vivenciarem esta reedição de seus sonhos, decisões,


perdas e frustrações passadas, os pais exercem influência
direta no relacionamento com seus filhos. Em decorrência
de todo esse envolvimento familiar, Soares (2002) ressal-

262
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

tou a importância da participação dos pais no processo de


intervenção dos filhos, lembrando que “o trabalho em gru-
po muitas vezes não é suficiente para auxiliar o jovem a
libertar-se desta pressão familiar; logo, incluir os pais no
processo de orientação profissional é importante” (p. 87).
Esta postura traz benefícios tanto aos familiares, fazendo
com que sintam mais segurança e entendimento em rela-
ção ao processo, quanto aos seus filhos. Este fato foi res-
saltado por Gonçalves (1997) ao realizar encontros com os
pais de jovens em processo de orientação profissional. Este
autor constatou “[...] que os alunos cujos pais freqüenta-
ram os encontros mantiveram-se mais calmos, seguros e
menos ansiosos para realizar suas escolhas” (p. 202).
Dias (1995) também cita exemplos de como a participa-
ção dos pais no processo de intervenção pode contribuir para
a elaboração de dúvidas, ansiedades e conflitos familiares,
que são elementos subjacentes e presentes na tomada de
decisão profissional dos clientes. Essa mesma autora tam-
bém chama a atenção para o fato de que a expectativa dos
pais relativa à orientação é sempre ampliada e além do que
realmente pode e deve ser fornecido pelo processo: “É pos-
sível observar que, quando um pai contrata um serviço de
orientação profissional para seu filho, na verdade está mais
contratando algo que lhe está na cabeça do que, de fato, o
que os orientadores se propõem a oferecer” (p. 89).
Cabe aos orientadores a elucidação e dissipação dessas
fantasias construídas pelos familiares. Esse processo só
pode ser realizado por meio de encontros que proporcio-
nem uma boa comunicação entre orientadores e pais para
que estes tomem conhecimento do processo pelo qual estão
passando seus filhos.
Diante de todas essas constatações pode-se considerar
que, além da importância do envolvimento e participação

263
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

dos pais durante o processo de atendimento de seus filhos,


esses familiares devem também ser incluídos no do proces-
so de avaliação da orientação profissional prestada, com-
partilhando suas expectativas, opiniões e impressões acerca
das condições e resultados fornecidos pelo serviço. Nesta
perspectiva o presente estudo foi delineado. Assim sendo, o
objetivo desse capítulo consiste em descrever e analisar a
visão dos familiares sobre a influência exercida pela famí-
lia na escolha da carreira de seus filhos.

Método
PARTICIPANTES
A amostra foi composta por 10 mães que responderam a
um questionário, aplicado durante um encontro realizado com
os pais dos adolescentes atendidos pelo Serviço de Orientação
Profissional oferecido pela FFCLRP/USP. Este encontro foi
realizado nas dependências desse serviço, em abril de 2004. A
escolha das participantes foi aleatória, obedecendo a um cri-
tério qualitativo de conveniência para a composição da amos-
tra, de acordo com os objetivos propostos pelo estudo. Nesses
termos, a preocupação com o número de participantes apre-
senta como cuidado primordial a garantia de uma certa ho-
mogeneidade entre os participantes e o grau de saturação
(repetição) do fenômeno observado entre os sujeitos.
Até o ano de 2001, o contato do familiar com o serviço
restringia-se ao conhecimento e aprovação da participação
do filho(a) (menor de 18 anos) no atendimento, por meio da
assinatura de um impresso-padrão de autorização. Neste,
tanto o familiar quanto seu filho formalizam sua anuência
em participar de um atendimento prestado por psicólogos-
estagiários, sob supervisão, e tomavam ciência de que os
dados da intervenção pertenciam ao Departamento de Psi-
cologia e Educação da FFCLRP-USP, sendo assim possível

264
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

a utilização dos mesmos em aulas e/ou pesquisas, resguar-


dando-se o sigilo quanto à identificação dos clientes. Dian-
te dessa situação de distanciamento entre familiares e o
serviço, foi levantada a hipótese da existência de dificulda-
des em realizar uma avaliação na perspectiva dessa popu-
lação, e de que a visão dos pais estaria muito influenciada
pela opinião dos próprios filhos. Mesmo considerando tais
obstáculos, julgou-se pertinente a realização deste estudo
a fim de investigar a opinião desta população de familiares
para, desta maneira, fornecer subsídios às futuras propos-
tas de inclusão e aproximação dos pais no atendimento.
Tabela 1. Caracterização do perfil sociodemográfico
das mães participantes. (n=10)
Ocupação
Mãe Idade (anos) Escolaridade Profissão
atual
Superior Engenheira
1 45 Professora
completo civil
Superior Enfermeira do
2 40 Enfermeira
completo município
Psicóloga
Superior
3 46 Psicóloga clínica e
completo
professora
Superior Engenheira
4 39 Professora
completo civil
Superior Assistente Assistente
5 48
completo so ci a l so ci a l
Superior Engenheira Engenheira
6 43
completo civil autônoma
Superior Assistente Assistente
7 49
completo so ci a l so ci a l
Superior Assistente Assistente
8 42
completo so ci a l so ci a l
Superior Enfermeira do
9 43 Enfermeira
completo município
Superior Psicóloga e
10 42 Psicóloga
completo professora

265
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

A Tabela 1 mostra que as participantes apresentavam


uma amplitude etária entre 39 e 49 anos. Sete mães com-
pletaram o curso superior em profissões que envolvem re-
lação de ajuda (Seviço Social, Enfermagem, Psicologia) e
apenas uma não exercia uma ocupação que tem como fun-
ção básica auxiliar outras pessoas.
A amostra composta por mulheres deve-se ao fato de se-
rem, em sua maioria, mães que compareceram às reuniões
agendadas pelo serviço e essa ocorrência encontra justifi-
cativa nas expectativas associadas aos papéis sociais vi-
gentes em nossa cultura. Geralmente são as mulheres que
se “responsabilizam” pela educação e saúde da família. As-
sim, educar os filhos, participando de maneira mais próxi-
ma e engajada de seu desenvolvimento psicoafetivo, tem sido
papel das mães ao longo da história, mesmo quando elas
trabalham fora do lar (WHITAKER, 1988; BIASOLI-ALVES,
2000). Embora se observe a presença cada vez mais numero-
sa de pais também envolvidos no processo educacional e até
alguns que assumem tais atividades com significativo com-
prometimento.
O nível de escolaridade superior indica uma homogenei-
dade em termos de instrução formal, além do fato de que,
como a maioria dos adolescentes opta por profissões acadê-
micas, essas mães teriam, supostamente, uma influência
mais marcante na carreira de seus filhos, ao mesmo tempo
em que podem estar reeditando, por meio das atuais esco-
lhas dos filhos, as suas próprias escolhas de outrora.

INSTRUMENTOS
Optou-se pelo uso de um questionário auto-aplicado para
a coleta dos dados. Essa escolha mostrou-se a mais ade-
quada aos objetivos do estudo, pois possibilitou a obtenção
de informações de um número maior de pessoas simultane-
amente, reduzindo o tempo de coleta de dados, além de e
por seu baixo custo (D’ANCONA, 1996).
266
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

O questionário (Anexo 1), continha inicialmente itens


sobre a identificação dos participantes, considerando-se as
variáveis: sexo, idade, escolaridade e dados profissionais
(profissão e ocupação atual) e, em seguida, três questões
abertas, que permitiam a livre expressão dos participantes
sobre os temas propostos. As questões buscavam identifi-
car as expectativas das mães em relação ao processo de
Orientação Profissional, suas expectativas em relação à
escolha da carreira de seus filhos e suas percepções acer-
ca da influência da família na escolha da carreira de seus
filhos.

PROCEDIMENTO DE COLETA DOS DADOS


A fim de explicitar as etapas dos procedimentos de cole-
ta e análise dos dados, cumpre esclarecer sobre o funciona-
mento do SOP. O serviço funciona nas instalações físicas
da clínica-escola que administra as inscrições dos candida-
tos aos atendimentos psicológicos. O usuário é chamado
para uma entrevista de triagem, realizada individualmen-
te pelo estagiário, objetivando investigar os motivos da con-
sulta, as expectativas sobre o atendimento, os dados pessoais,
familiares, escolares, de trabalho e saúde, incluindo antece-
dentes de atendimento psicológico.
Após a inscrição e com base na triagem o candidato é
atendido individualmente, em grupo ou encaminhado para
outras intervenções, conforme a demanda identificada em
cada situação. Alguns podem não ser atendidos por limita-
ção de vagas ou incompatibilidade de horários disponíveis
entre os estagiários e os candidatos a clientes.
De acordo com Melo-Silva (2000), o serviço é procurado
predominantemente por adolescentes na faixa de 16 a 19
anos. Nos últimos anos observa-se um aumento gradativo
na procura por parte de adultos para reorientação profissio-
nal e planejamento de carreira.

267
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

O processo de intervenção, tanto individual quanto em


grupo, é realizado, em média, entre 9 e 12 sessões. O aten-
dimento em grupo ocorre semanalmente, em encontros de
duas horas de duração, com cerca de 10 a 17 integrantes.
Intervenções com um número menor de encontros também
são realizadas para atender demandas específicas de gru-
pos de alunos que trabalham no período diurno e estudam
no noturno. Os encontros de menor duração, denominados
“Vivências em Orientação Profissional”, são planejados de
acordo com a necessidade da população alvo, do número de
participantes e das condições do local.
São cinco os principais eixos temáticos que norteiam todo
o processo da orientação: autoconhecimento, escolha, es-
tudos, mundo do trabalho e informações sobre as carrei-
ras. Os subtemas mais recorrentes têm sido: a ansiedade
frente ao vestibular e ao processo seletivo para entrada na
faculdade, a influência dos pais e amigos, o medo de errar
na escolha, o medo da universidade, o trabalho era da glo-
balização, a necessidade de maiores e melhores informa-
ções sobre as carreiras, as responsabilidades do mundo
adulto, o namoro ou casamento, o hobbies, a diferença en-
tre a escola pública e a privada e como estudar com eficiên-
cia (MELO-SILVA & JACQUEMIN, 2001).
Como já descrito anteriormente, na tentativa de aproxi-
mar a família do momento de escolha dos adolescentes, pe-
ríodo repleto de angústia e indecisões como indícios de
entrada no mundo profissional adulto, o Serviço de Orien-
tação Profissional vem realizando desde 2002 uma reunião
aberta aos pais, com intuito de criar um espaço de diálogo e
aproximação entre jovens e familiares, além de ter a fun-
ção de oferecer-lhes feedback sobre as intervenções reali-
zadas nos encontros. A coleta dos dados ocorreu na reunião
realizada, depois de esclarecidos seus objetivos e solicitar a
colaboração em responder as questões.

268
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

Os questionários foram distribuídos a todos os presen-


tes na reunião, perfazendo um total de 60 pessoas. Primei-
ramente era pedido aos pais que lessem e assinassem o termo
de consentimento (Anexo 2) vinculado ao questionário. Es-
tando de acordo e após responderem todas as perguntas,
devolviam o questionário e o termo à pesquisadora. Qual-
quer dúvida era esclarecida de imediato, antes da entrega.
A aplicação do questionário se deu ao final da reunião.

TRATAMENTO DOS DADOS


A sistematização dos dados e análise subseqüente obe-
deceram ao enfoque qualitativo de pesquisa. Nessa aborda-
gem, a atenção do pesquisador está voltada para a
averigüação dos significados que o próprio sujeito confere
à situação a ser investigada (MARTINS; BICUDO, 1994).
Silva (1998) explicita o referencial qualitativo denominado
de Compreensivista ou Interpretativista, no qual o foco do
estudo concentra-se na ótica do sujeito pesquisado e não so-
bre o pesquisador, buscando sempre atingir a compreensão
de um dado fenômeno e não sua explicação causal. Segundo
Minayo (1999), as pesquisas que têm por objeto de estudo os
fenômenos sociais abarcam um nível de realidade cercado
por valores e crenças de indivíduos e grupos, o que torna sua
mera quantificação inviável.
Para tanto, foram efetivadas as seguintes etapas propos-
tas por Minayo (1999) para a análise dos dados coletados
através dos questionários:
a) Ordenação dos dados: os questionários foram lidos, or-
ganizados e estruturados, mediante leituras sucessivas
e atentivas.
b) Classificação dos dados: efetuou-se uma nova leitura do
material para obtenção de um corpus, do qual se extraí-
ram as unidades de registro por meio de uma leitura
transversal (recorte e colagem das questões do questio-

269
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

nário, de acordo com a similaridade de conteúdo). Dessa


forma foram levantados e classificados os que emergi-
ram do material.
c) Análise final: nessa etapa as falas foram reorganizadas
segundo a convergência de temas.

Resultados e discussão

Como já descrito, o processo de Orientação Profissional


desenvolvido tem como alicerce cinco eixos temáticos: au-
toconhecimento, escolha, estudos, mundo do trabalho e in-
formações sobre as carreiras. Em resposta à primeira
pergunta do questionário, pode-se observar que as mães
enxergam a Orientação Profissional como suporte princi-
palmente a três desses eixos centrais: a informação sobre
as profissões, o autoconhecimento e o auxílio direto na es-
colha da carreira. Percebe-se, assim, que os objetivos do
processo estão condizentes com o que as mães esperavam e
acreditavam que estivesse sendo efetuado.

1. O QUE ESPERA DA ORIENTAÇÃO PROFISSIONAL?

1.1. INFORMAÇÕES SOBRE AS PROFISSÕES

“Espero que minha filha obtenha informações (...)” (mãe 1)


“Que o adolescente tenha uma maior abrangência em
relação às profissões”. (mãe 2)
“Esclarece algumas dúvidas a respeito dos cursos que
as faculdades oferecem”. (mãe 8)
“Oriente o leque de cursos que minha filha deseja cur-
sar”. (mãe 10)
Dentro do eixo informações sobre as profissões, o proce-
dimento de trabalho em Orientação Profissional visa dar

270
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

ao orientando um conhecimento mais abrangente sobre os


cursos, tirando dúvidas e realizando esclarecimentos, isto
é, abre-se o leque de opções. Apenas depois dessa etapa par-
te-se para o “fechar” esse leque, porém de um modo mais
consciente para que possa tomar suas decisões. As falas
estão de acordo com o procedimento utilizado neste eixo,
principalmente em relação à primeira etapa de expansão
da informação.

1.2. AUTOCONHECIMENTO

“Aumento do autoconhecimento para que a escolha seja


adequada às suas habilidades”. (mãe 3)
“Consiga sair mais amadurecida em relação à escolha
que precisa fazer”. (mãe 9)

A mãe 3 e a mãe 9 demonstram uma aproximação mais


desejável do processo de orientação de seus filhos, enten-
dendo que, mesmo ao final do processo, não há a garantia
de uma “solução mágica” ou escolha determinada de uma
profissão, uma vez que o relevante é que o orientando este-
ja mais preparado para tomar uma decisão autônoma e ma-
dura sobre seu processo de escolha, não somente profissional,
mas em relação a qualquer aspecto de sua vida. Entretanto,
percebe-se que o número de mães conscientes dessas questões
(n=2) foi baixo.
A esse respeito, podemos discutir se o fato de não mencio-
narem o autoconhecimento como fator relevante não seria
reflexo de que, apesar da maior experiência dessas mães,
elas ainda atribuem ao outro, no caso à equipe de Orienta-
ção Profissional, o poder de decisão sobre as escolhas de
seu filho, eximindo-se também desse papel de “orientadora
pessoal” do filho, transferindo essa responsabilidade fami-
liar para outras mãos.

271
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

1.3. AUXÍLIO NA ESCOLHA DA CARREIRA

“(...) seja despertada sua aptidão. Espero que ela descu-


bra sua vocação”. (mãe 1)
“Diminuir as dúvidas e inseguranças de minha filha com
relação à escolha da carreira (...)”. (mãe 3)
“Espero que possa ‘clarear’ as idéias de minha filha para
que ela possa escolher uma profissão na qual ela tenha pra-
zer de trabalhar”. (mãe 4)
“Que a minha filha decida-se por uma profissão que a
faça feliz”. (mãe 5)
“Ajuda na escolha correta da profissão, colaborando com
a decisão”. (mãe 6)
“Auxilia na descoberta da profissão”. (mãe 7)

Quando as mães escrevem sobre as escolhas de seus fi-


lhos, trazem expressas em suas respostas um conjunto de
representações implícitas sobre o que vem a ser a escolha e
a orientação profissional. E no conjunto dos discursos, per-
cebe-se que há, além do anseio pela escolha da profissão,
um desejo de maior autoconhecimento por parte de seus
filhos. Essa expectativa reforça a idéia da Orientação Pro-
fissional vinculada à necessidade de um maior conhecimento
de suas próprias habilidades, desejos e interesses como con-
dição essencial para uma escolha profissional mais autô-
noma e responsável, portanto mais integrada e madura.
As mães 1 e 7 demonstram a idéia da orientação como
algo “mágico”, que oferecerá ao orientando uma resposta
pronta. O que é diferente do exposto pelas mães 3 e 6, que
encaram a orientação como uma estratégia de ajuda, uma fer-
ramenta de auxílio no processo de escolha que será feita pelos
filhos e não de uma resposta a ser dada pelo orientador.
A resposta da mãe 4 traz duas conotações quanto ao que
é esperado da Orientação Profissional. A primeira idéia está

272
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

de acordo com o exposto pelas mães 1 e 7, que o processo de


orientação possa, como mágica, clarear as idéias de sua fi-
lha, depositando a resolução dos seus problemas no outro,
em uma possibilidade externa e já pronta. Já a segunda co-
notação, também expressa pela mãe 5, é a de que seus filhos
possam com o apoio da orientação profissional, encontrar
realização em suas escolhas, associando o trabalho com o
prazer e felicidade.

2. QUAIS SUAS EXPECTATIVAS EM RELAÇÃO À ESCOLHA DA


CARREIRA DE SEU/SUA FILHO(A)?
O foco agora deixa de ser a Orientação Profissional para
aproximar-se de seus filhos, o que pode trazer aspectos im-
portantes da relação mães e filhos para a análise. Novamen-
te o universo de idealizações e representações familiares,
expresso pelas mães, demarca sua influência no modo de en-
tender e se relacionar com a escolha de seus filhos.
Foi interessante observar que a expectativa diante da
escolha pôde ser polarizada em dois tipos de satisfação: a
pessoal e a realização profissional, entendida de maneiras
diferentes, como demonstradas a seguir.

2.1. SATISFAÇÃO PESSOAL

“Que ela seja feliz em sua escolha”. (mãe 2)


“A principal é que escolha uma área em que suas habili-
dades, inteligência e personalidade se realizem da forma
mais ampla possível, para que possa se sobressair e obter
satisfação pessoal”. (mãe 3)
“Acho que minhas expectativas dizem respeito à felicida-
de da minha filha. Quero que sua profissão, antes de tudo,
lhe dê prazer, pois, assim, sei que ela terá sucesso”. (mãe 4)
“Que ela escolha uma profissão que lhe dê condições de
sobrevivência e ao mesmo tempo se sinta realizada”. (mãe 5)

273
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

“Sinta-se feliz e realizada”. (mãe 7)


“Seja feliz e que não se arrependa”. (mãe 9)

Nas respostas da categoria satisfação pessoal, apesar de


possuírem esse teor comum, notam-se argumentos bastante
diversos associados a seu significado. As mães 3 e 5 expres-
sam, além do conteúdo principal de satisfação pessoal, uma
associação entre o sucesso profissional e a capacidade de se
“sobressair” e com os aspectos financeiros que asseguram
“condição de sobrevivência”.
A resposta da mãe 9 merece atenção pelo fato de exemplifi-
car uma representação comum em Orientação Profissional.
Trata-se da idéia de que a escolha feita pelos filhos deve ser
definitiva, como um caminho sem volta. As múltiplas possibi-
lidades e o caráter dinâmico e sempre em movimento das es-
colhas e opiniões não é considerado. Os orientandos que
assumem essa postura no processo de orientação trazem con-
sigo uma forte pressão arraigada a suas escolhas, pois a pró-
pria família lhes exige uma posição única, definitiva e sem
erros, para que não se arrependam pelo resto de sua vida.
As demais mães do estudo, (mãe 2, 4 e 7) associam a sa-
tisfação pessoal de seus filhos com a felicidade, prazer e
realização pessoal. Mais uma vez está presente a expectati-
va de realização no trabalho com prazer e felicidade.

2.2. REALIZAÇÃO PROFISSIONAL

“Escolha uma profissão que realmente identifique com


ela para que ela possa exercê-la com muito carinho e gar-
ra”. (mãe 8)
“Seja feliz em sua escolha, se realizando profissional-
mente”. (mãe 10)

Nas duas respostas anteriores, fica claro que o foco da


expectativa das mães não é, ou pelo menos não fica explícito

274
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

que seja no âmbito pessoal, mas principalmente no profissio-


nal. A identificação e a realização pessoalse dão pela profis-
são bem exercida. Ainda que o adjetivo “feliz” tenha sido
mencionado pela mãe 8, ele aparece como conseqüência da
realização profissional e não pessoal.

2.3. SATISFAÇÃO PESSOAL/REALIZAÇÃO PROFIS-


SIONAL

“Se ela escolher aquela profissão que lhe dará prazer


quando da sua atuação, terá o retorno esperado (não só fi-
nanceiro, mas também felicidade). Se for feliz na escolha,
sucesso garantido”. (mãe 1)
“Realize como pessoa, como profissional, tendo no futu-
ro a certeza de ter feito a melhor opção”. (mãe 6)

Essas duas respostas apontam tanto para conteúdos pre-


sentes na satisfação pessoal, no prazer pelo trabalho, quanto
para aspectos da realização profissional, como o retorno
financeiro e sucesso profissional.

3. VOCÊ ACREDITA QUE A SUA FAMÍLIA INFLUENCIA


(INFLUENCIARÁ) NA ESCOLHA DA CARREIRA DE SEUS FILHOS?
Nesta pergunta, a consciência das mães sobre suas in-
fluências na escolha de seus filhos foi trazida à tona. Po-
dem-se dividir suas opiniões afirmativas sobre essa questão
em influências explícitas e implícitas. As respostas negati-
vas não foram justificadas.

3.1. INFLUÊNCIAS FAMILIARES EXPLÍCITAS

“Algumas são explícitas em forma de orientação quanto


ao perfil profissional e o campo de trabalho (...)”. (mãe 3)
“Não sei dizer. Coloco os prós e os contras de cada pro-
fissão, e a escolha fica a critério de minha filha”. (mãe 9)

275
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

“Sim, influencia. Dentro de uma área ampla, conversan-


do sobre as áreas, existem livros, guias de estudantes, etc.”
(mãe 10)

Fica claro que as mães 3 e 10 assumem a sua influência


e da família no nível da informação, colaborando com pes-
quisas sobre o mercado de trabalho em guias de estudan-
tes, por exemplo. Dessa forma, ainda que pese a opinião
subjetiva da família sobre cada área, há uma possibilidade
de julgamento mais “neutra” baseada em livros e outros
meios de divulgação e pesquisa.
Entretanto, é interessante salientar a resposta da mãe
9, que embora não reconheça diretamente sua influência,
tem a possibilidade de exercê-la de modo muito mais subje-
tivodo que as outras mães, pois suas opiniões mostram-se
baseadas em suas próprias concepções sobre as profissões
que conhece, sobre o seu julgamento do que é vantagem ou
desvantagem acerca de cada atividade ocupacional, não le-
vando em conta, a princípio, o montante de outras ques-
tões envolvidas, como as informações disponíveis, opiniões
de outros profissionais ou mesmo a concordância da filha
com seu julgamento de prós e contras de cada profissão.

3.2. INFLUÊNCIAS FAMILIARES IMPLÍCITAS

“(...) Ficam implícitas, tais como influência da minha


profissão (que escolha a mesma) ou outras que não consigo
perceber”. (mãe 3)
“Sim, influencia. Acho que o filho vê nos pais as experiên-
cias já vividas”. (mãe 6)

A influência das profissões dos pais na escolha dos fi-


lhos é um assunto já bastante discutido por vários autores
e não pode ser desconsiderada (SILVA, 1996; GONÇALVES,
1997; SOARES, 2002; BOHOSLAVSKY, 1991). O trabalho

276
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

dos pais repercute no interior da família inevitavelmente.


Cria-se uma relação entre satisfação profissional dos pais
e boa profissão para o filho, ou seu oposto, a insatisfação
cria uma repulsa a vislumbrar aquela atividade como pos-
sível.
Principalmente nas classes média e alta, pode existir a
idéia do seguimento da profissão dos pais como um “tram-
polim” seguro e rápido para o mercado de trabalho. Essa
idéia geralmente é muito tentadora para o orientando nos
dias atuais, devido ao escasso mercado e ao desemprego em
níveis tão altos, mas pode também camuflar uma opção le-
gítima.

3.4. NÃO INFLUENCIA

Seis mães afirmam que não influenciam a escolha de seus


filhos.

Considerações finais
Desde o nascimento e mesmo ainda antes desse evento,
cada pessoa já carrega uma gama de expectativas, projetos
e desejos familiares quanto ao seu futuro. A necessidade de
aceitar ou rechaçar essas expectativas é uma variante de
cada indivíduo e do grupo social ao qual pertence faz parte.
Se o filho não consegue discernir claramente como se dá a
influência dos pais sobre suas escolhas, o mesmo parece
ocorrer com a família. Mas é certo que pais e filhos se in-
fluenciam das mais variadas maneiras, em comportamen-
tos, atitudes, na forma de se expressar, e não poderia ser
diferente quando o assunto envolve um momento tão an-
gustiante para os filhos como a escolha da carreira.
É no contexto da família, inicialmente, que se fazem ouvir
os ecos sobre o que é possível ou não ser e fazer profissio-
277
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

nalmente, utilizando-se do incentivo ou da repreensão de


certas iniciativas que, em parte, determinarão a formação
de seus interesses e hábitos.
De maneira consciente ou inconsciente, as manifesta-
ções familiares e as expectativas parentais em relação ao
futuro profissional de seus filhos podem mobilizar estraté-
gias de reprodução, visando manter ou melhorar, dependen-
do da situação econômica familiar, sua posição na estrutura
de classe.
Além disso, é certo que o processo de escolha profissio-
nal do jovem reativa as escolhas feitas por seus pais. Para
muitos, passa a ser um reviver conflituoso de seu momento
de escolha. Os arrependimentos por escolhas mal sucedi-
das podem vir à tona, e ao ver agora seu filho nesta situa-
ção, os pais podem enxergar nele a possibilidade de refazer
suas próprias opções, tornando-o de depositário de suas an-
gústias. Essa situação possível transforma-se em um ciclo
de cobranças para o jovem, que se vê influenciado por as-
pectos conscientes e inconscientes das escolhas dos pais.
Boa parte das escolhas do jovem é influenciada pelas re-
presentações positivas ou negativas da profissão exercida
por seus pais, refletindo-se, a partir de sua relação com o
trabalho, na maneira com que o filho se identifica com es-
sas profissões. Sendo assim, nota-se que a influência, ex-
plícita ou implícita, é uma realidade que deve ser
considerada não apenas pelos jovens em processo de Orien-
tação Profissional, mas também por seus pais e familiares,
pois como já visto, o núcleo familiar é responsável, em par-
te, pela formação da identidade e das escolhas dos filhos,
que em muitos casos, não tem consciência disso.
Fazer com que pese, nessa influência, muito mais os seus
aspectos positivos, é uma maneira de dar apoio ao jovem
em seu momento de indecisão. Para tanto, esse estudo cum-
pre sua função de instigar nos profissionais que lidam com

278
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

a Orientação Profissional a preocupação não apenas com o


orientando isolado, mas também com a necessiade de apro-
ximar seu núcleo familiar como parte atuante desse pro-
cesso.
Nesses termos, cabe ao profissional orientador um tra-
balho inclusivo, por meio de reuniões com os familiares so-
bre o processo de orientação de seus filhos, enfatizando não
só a questão da decisão profissional, mas também os fato-
res emocionais envolvidos nesse momento. A esse respeito,
o trabalho com os pais deve ter por base o fato de que o
filho, ao deparar-se com o momento de escolha da carreira,
demarca a sua entrada social no mundo adulto. À família,
nesse momento, cabe efetuar um rearranjo e a decisão de
caminhar ao lado de seus filhos, incentivando-os no pro-
cesso de desenvolvimento da carreira.

Referências

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indivíduo. In: LEVENFUS, R. S. (Org.) Psicodinâmica da
escolha profissional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.
BIASOLI-ALVES, Z.M.M. Continuidades e rupturas no papel da
mulher brasileira no século XX. Psicologia: Teoria e Pesquisa,
Brasília, v. 16, n. 3, p. 233-239, set./dez. 2000.
BOHOSLAVSKY, R. Orientação vocacional: a estratégia clínica.
São Paulo: Martins Fontes, 1991.
D’ANCONA, C. Metodologias cuantitativas: Estratégias y
técnicas de investigacion social. Madrid: Sínteses, 1996.
DIAS, M. L. Família e escolha profissional. In: BOCK, A. M. B.
(Org.) A escolha profissional em questão. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 1995.
GONÇALVES, G. Z. Os filhos, os pais e a escolha profissional. In:
SIMPÓSIO BRASILEIRO DE ORIENTAÇÃO VOCACIONAL/
OCUPACIONAL, 3., 1997, Canoas. Anais... Canoas: ULBRA, 1997.

279
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

MARTINS, J.; BICUDO, M.A.V. A pesquisa qualitativa em


Psicologia: fundamentos e recursos básicos. Rio de Janeiro:
Moraes, 1994.
MELO-SILVA, L.L. Intervenção em orientação vocacional/
profissional: avaliando resultados e processos. 2000. 286 p. Tese
(Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão
Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2000.
MELO-SILVA, L. L. & JACQUEMIN, A. Intervenção em orientação
vocacional/profissional: avaliando resultados e processos. São
Paulo: Vetor, 2001.
MINAYO, M.C.S. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e
criatividade. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
SILVA, L.B.C. A escolha da profissão: uma abordagem
psicossocial. São Paulo: Unimarco, 1996.
SILVA, R.C. A falsa dicotomia qualitativo-quantitativo: paradigmas
que informam nossas práticas de pesquisas. In: ROMANELLI, G.
(Org.). Diálogos metodológicos sobre prática de pesquisa.
Ribeirão Preto: Legis Summa, 1998.
SOARES, D.H.P. A influência da família. In: ______. A escolha
profissional: do jovem ao adulto. São Paulo: Summus, 2002.
TRUSTY, J. Relationship of parental involvement in teens’ career
development to teens’ attitudes, perceptions, and behavior. Journal
of Research and Development in Education, Athens, v. 30, n.
1, p. 63-69, 1996.
WHITAKER, D. Mulher e homem: o mito da desigualdade. São
Paulo: Moderna, 1988.

280
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

ANEXO 1

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP)


Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
(FFCLRP)
Departamento de Psicologia e Educação
Centro de Psicologia Aplicada (CPA)
Serviço de Orientação Profissional (SOP)

Reunião com familiares

Data ____/____/____.
Nome do familiar: ______________________________________
Grau de parentesco: ______________________________________
Idade: __________ Escolaridade: __________________________
Profissão: ___________________Ocupação: _________________
Nome do(a) filho(a) inscrito(a) no SOP:___________________

OBJETIVANDO APERFEIÇOAR A QUALIDADE DO ATENDI-


MENTO EM NOSSO SERVIÇO GOSTARÍAMOS DE OBTER AL-
GUMAS INFORMAÇÕES (UTILIZE O VERSO SE NECESSÁRIO):

1) O que espera da Orientação Profissional?

2) Quais suas expectativas em relação à escolha da carreira de seu/


sua filho(a)?

3) Você acredita que a sua família influencia (influenciará) na esco-


lha da carreira de seus filhos?
( ) Sim ( ) Não
Em caso afirmativo, comente se as influências são explícitas (cla-
ras, faladas) ou não.

281
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

ANEXO 2

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Concordo em participar, como voluntário (a) desta pesquisa, que


será realizada com familiares de clientes do Serviço de Orientação
Profissional do Centro de Psicologia Aplicada da Faculdade de Filo-
sofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – USP.
Estou ciente de que minha participação será para avaliar as ex-
pectativas sobre atendimento pelo qual passará meu/minha filho(a)
por meio de respostas a um questionário. Estou ciente de que este
estudo possui a finalidade de pesquisa, sendo que os dados obtidos
serão utilizados em publicações científicas sem que as pessoas par-
ticipantes sejam identificadas.
Declaro ainda que:
1) estou aceitando voluntariamente participar nesse estudo, não
tendo sofrido nenhuma forma de pressão para isso;
2) se desejar, posso deixar de participar do estudo a qualquer mo-
mento;
3) se não concordar em participar deste estudo ou interromper mi-
nha participação, a possibilidade de atendimento a mim, ao meu/
minha filho (a) e a outros membros de minha família, não será
prejudicada.

Ribeirão Preto, ____ de _________ de 2004.

Nome por extenso Assinatura do familiar do cliente

282
12. CARTAS QUE DIZEM MUITO:
PAIS E FILHOS NA ORIENTAÇÃO
PROFISSIONAL

Lucy Leal Melo-Silva


Luciana Maria da Silva
Fabíola Perri Venturini

Algumas considerações sobre a


adolescência
Entende-se a adolescência como um período que se es-
tende desde os 12, 13 anos até a entrada no mundo adulto,
via independência econômica em relação aos pais, como
mencionado por Palacios (1995) e complementado por Fier-
ro (1995b) quando aponta que “a autonomia psicossocial é
transferida e vinculada ao momento da independência eco-
nômica” (p. 302). É de amplo conhecimento que nesta fase
o indivíduo passa por várias ‘crises’, desde as de identidade
pessoal, como a perda do corpo infantil, perda dos pais
‘ideais’(LEVENFUS, 1997), até aquelas de identidade pro-
fissional relacionadas à pergunta: “Quem vou ser quando
crescer?” (LISBOA, 1997).
Tais crises estão interligadas a inúmeras rupturas de
parâmetros e formas de relacionamentos previamente es-
tabelecidos na infância, e que vão sendo reestruturados
durante esta fase. Não se trata de um período de catástrofe,
mas de um momento crucial de crescente vulnerabilidade e
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

potencial de desenvolvimento (ERIKSON, 1976). Contudo,


para que haja uma reestruturação, uma desestruturação a
antecede. Como destaca Bohoslavsky (1991b, p. 61) “todo
adolescente é uma pessoa em crise, na medida em que está
desestruturando e reestruturando, tanto seu mundo inte-
rior como suas relações com o mundo exterior”.
As crises variam de intensidade de um indivíduo para
outro, dependem de características individuais, da relação
do adolescente com os pais, de sua relação com o mundo in-
terno e externo, do meio cultural em que está inserido, de
sua condição socioeconômica, dentre outros fatores que per-
meiam todos os ambientes dos quais o adolescente participa
direta ou indiretamente (BRONFENBRENNER, 1996). A
maneira como cada um reage às dificuldades provenientes
destas mudanças, além do autoconhecimento, propicia o de-
senvolvimento da personalidade do futuro adulto, que terá
que, dentre outras escolhas, decidir-se por uma profissão.
O momento da escolha profissional é vivenciado de di-
versas maneiras; alguns passam por esta etapa do ciclo evo-
lutivo com mais tranqüilidade, já outros se angustiam
demasiadamente, chegando até mesmo a tornar tal momento
algo torturante. Contudo é uma constante a fantasia do jo-
vem de que esta escolha feita em ‘tenra idade’ deve ser a
mais sábia, a mais certa e que valerá pela vida toda. Não há
chances para o erro, na visão do jovem! A ‘autocobrança’ é
um fantasma durante esta fase de escolha, pois parece que
dela depende o resto de suas vidas, idéia muitas vezes re-
forçada pelos adultos em geral e pela sociedade como um
todo. Tal vivência, o sonho de um futuro idealizado, nem
sempre é sustentada por uma realidade acolhedora (SOARES-
LUCCHIARI, 1997a). Além de todas as outras crises en-
frentadas esta, a da escolha profissional, parece vir reforçar
este momento de instabilidade no indivíduo, pois pode ser a
porta de entrada para a independência, para o mundo adulto

284
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

e para a responsabilidade (FIERRO, 1995a; LEVENFUS,


1997).
No processo de escolha profissional podem-se perceber
vários tipos de pressão: dos pais, da sociedade e de si mes-
mo. Além da pressão há que se considerar diversos fatores
que influenciam a “escolha” da carreira: a família (a pro-
fissão dos pais e familiares e identificação com os mesmos);
a situação econômica (individual e global); os possíveis gan-
hos e perdas em cada profissão; as preferências ou rejeições
do indivíduo; a identificação com o grupo de pares, o luto
pelas perdas das profissões preteridas; o ideal de ego da pes-
soa que escolhe; entre outras, tanto conscientes quanto in-
conscientes (LEVENFUS, 1997; SOARES-LUCCHIARI,
1997b).
Em meio a inúmeras variáveis que influenciam a “esco-
lha”, que não é totalmente livre, inúmeros adolescentes
sentem-se confusos e inseguros perante a decisão a ser to-
mada. Contudo, um grande número de adolescentes sequer
procura auxílio de profissionais especializados. Quem pro-
cura ajuda para a tomada de decisão pode encontrá-la entre
membros da família, amigos, professores, orientadores edu-
cacionais e profissionais da escola como educadores e psi-
cólogos. Entretanto, tal ajuda tem sido esporádica e de
maneira informal na maioria das escolas, pois a oferta de
programas de Orientação Profissional como rede articula-
da e integrada no Brasil é escassa. Poucos são os serviços
de atendimento que dispõem de vagas para a elevada de-
manda. Em geral, os cursos de graduação em Psicologia
por meio de suas Clínicas-escola realizam serviços de ex-
tensão especializados à comunidade, objetivando a forma-
ção profissionalizante do psicólogo e entre estes serviços
oferecem atendimentos em Orientação Profissional.
A finalidade deste estudo consiste em descrever uma técni-
ca desenvolvida no Serviço de Orientação Profissional de
uma clínica-escola de Psicologia de uma Universidade pú-

285
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

blica. Trata-se de um relato de experiência que objetiva des-


crever a técnica “Carta aos Pais” e “Carta aos Filhos” e
sua repercussão como instrumento facilitador da comuni-
cação entre pais e filhos em um processo de Orientação
Profissional desenvolvido por duas das autoras e supervi-
sionado pela docente responsável pelo estágio.

O Serviço de Orientação Profissional


A experiência aqui relatada foi desenvolvida no Serviço
de Orientação Profissional (SOP) da Clínica-Escola do curso
de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
de Ribeirão Preto (FFCLRP) da Universidade de São Paulo
(USP). O SOP desenvolve suas atividades no âmbito do
Centro de Pesquisa e Psicologia Aplicada (CPA) objetivan-
do a extensão de serviços à comunidade aliada ao ensino e à
pesquisa. O SOP oferece três modalidades de estágios pro-
fissionalizantes: (1) Grupo de Orientação Profissional: des-
tinado principalmente a adolescentes que aspiram a carreira
universitária; (2) Intervenção Individual em Desenvolvimen-
to de Carreira: para adolescentes e adultos que demandam
por atendimento individualizado; e (3) Re-oreintação de
Carreira (grupo de adultos). A finalidade dos estágios consis-
te em desenvolver competências como: (a) realizar diagnós-
tico psicológico em orientação vocacional e (b) coordenar
grupo em contextos de intervenção psicológica em orienta-
ção profissional, com ênfase na comunicação. A experiên-
cia aqui relatada é a de coordenação de um Grupo de
Orientação Profissional desenvolvido com adolescentes.
Partindo-se do pressuposto que o indivíduo é sujeito ati-
vo de suas escolhas e que o orientador é um mediador do
processo de tomada de decisões (BOHOSLAVSKY, 1991a) o
processo de intervenção desenvolvido pela equipe do SOP
tem por objetivo intervir em um processo dinâmico, o que,
286
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

na maioria das vezes é visto como novidade para os clien-


tes que procuram o serviço na expectativa de encontrar res-
postas “prontas” e “certas” para suas dúvidas e angústias.
Em geral, os clientes se apresentam procurando o “curso
de orientação profissional” ou dizendo “eu vim para fazer
o teste vocacional”. Assim a expectativa, em geral, é de que
o resultado do “teste” informará a carreira na qual cada
pessoa será feliz, terá sucesso e se dará bem financeiramente.
Para atender à demanda a equipe do SOP realiza proce-
dimentos de intervenção individual e em grupo, destinado
a adolescentes e adultos. O processo de Orientação Profis-
sional consiste em um instrumento de apoio para a resolu-
ção de conflitos relativos aos estudos e/ou trabalho. A
intervenção é baseada em eixos norteadores: (1) a promo-
ção do autoconhecimento; (2) a tomada de responsabilida-
de e de atitude com relação a escolha; (3) o desenvolvimento
da capacidade de visualizar o mundo de maneira mais críti-
ca, e as suas relações com ele (no trabalho e na vida familiar,
cotidiana); e (4) a busca da informação profissional, ou seja,
conhecer as carreiras e as universidades. O atendimento
em grupo é realizado com 12 sessões, em média, e com a
duração de duas horas para cada encontro semanal. Este
trabalho aborda uma experiência, no âmbito do SOP, de aten-
dimento em grupo com adolescentes que aspiravam a car-
reira universitária.
Para intervir na modalidade grupal o referencial teóri-
co-metodológico se apoia em Bohoslavsky (1991b), Müller
(1988; 1994) no Esquema Conceitual Referencial Operati-
vo (ECRO) de Pichón-Riviére (PICHON-RIVIÈRE, 1994;
1995; QUIROGA, 1994). Como estratégia de intervenção
clínica-operativa os psicólogos-estagiários são treinados
para identificar problemas e questões emergentes e inter-
vir com base em sólidos pressupostos teóricos que, entre-
tanto, permitam a flexibilidade necessária para acolher a
demanda espontânea de cada grupo. Técnicas expressivas,

287
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

grupos de discussões, dramatizações, colagens e situações


vivenciais podem ser utilizadas dependendo do emergente
grupal. Alguns instrumentos de avaliação psicológica são
utilizados, para diagnosticar a maturidade e os interesses,
como a Escala de Maturidade para a Escolha Profissional
(EMEP) de Neiva (1999) e o Teste de Fotos de Profissões
(BBT-Br) de Achtnich (1991), padronizado para o contexto
brasileiro por Jacquemin (2000). Para tratar das diversas
influências utiliza-se o Livreto “Escolha da carreira: con-
versa na cozinha” (MELO-SILVA; PEREIRA, 2002), uma
publicação em formato de gibi que apresenta diálogos co-
muns a jovens na situação de escolha tendo como anexo
uma “Carta aos pais” e uma “Carta aos filhos”. A “Carta
aos pais”, de autoria de um jovem hipotético, é a síntese de
inúmeras cartas redigidas pelos jovens durante o processo
daquele ano. “A carta aos filhos”, por sua vez, também é
síntese de cartas preparadas pelos pais na reunião desen-
volvida com os familiares. Essa publicação é fruto da in-
tervenção realizada no SOP e foi objeto de aplicação e
análise antes da impressão final. Para lidar com a informa-
ção utilizam-se guias de profissões, manuais de universi-
dades e cursos técnicos, e pesquisas na internet.
A intervenção não se esgota no contexto do setting psi-
cológico, tarefas extras grupo são recomendadas aos parti-
cipantes. Uma das atividades desenvolvidas, fora do contexto
de atendimento, consiste na reunião realizada com pais.
Como já apontado, o papel dos familiares, principalmente
dos pais, é de fundamental importância no momento da es-
colha. Segundo Fierro (1995b, p. 301):

Tampouco é verdade que os pais deixem de influir no ado-


lescente, em suas decisões ou gênero de vida. Nem sequer a
influência de amigos e colegas, que na adolescência se torna
acentuada, é sempre mais intensa do que a dos pais. Estes
continuam tendo uma notável influência, até mesmo decisi-
va nas opções e valores adotados pelos filhos.

288
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

Melo-Silva e Jacquemin (2001), relatam estudos que tam-


bém apontam a influência dos pais no processo de escolha
profissional. Contudo não se pode negar a necessidade do
adolescente redefinir suas posições dentro da família e, nes-
se momento, é praticamente inevitável a existência de um
conflito, o que pode até mesmo gerar um certo afastamento
entre pais e filhos. Neste contexto, considera-se importante
para o processo de Orientação Profissional “resgatar” o diá-
logo entre pais e filhos e até mesmo possibilitar a discussão
a respeito deste momento peculiar da vida do adolescente e
todas as conseqüências decorrentes das suas escolhas. Des-
sa forma o meio utilizado para se atingir tal objetivo, dentro
do processo grupal, consistiu nas atividades denominadas
“Carta aos Pais” e “Carta aos Filhos”, foco deste trabalho.

“Carta aos Pais”


Esta atividade foi realizada durante o quarto encontro
do Grupo de Orientação Profissional. A instrução dada pe-
las psicólogas-estagiárias foi a que os adolescentes escre-
vessem uma carta aos seus pais, dizendo sobre como
estavam se sentindo nesse momento de escolha e de que
forma seus pais poderiam ajudá-los. Num primeiro momento
foi escrita uma carta individual que teve como conteúdo
aspectos relacionados às condutas dos pais perante eles
como, por exemplo, a superproteção em alguns casos ou a
falta de atenção em outros, a cobrança excessiva com rela-
ção aos estudos, e mesmo às escolhas, pedindo um ponto de
‘equilíbrio’ nas atitudes dos pais, além de pontuarem a ne-
cessidade de apoio, reconhecimento das dificuldades, diálo-
go, compreensão e muita paciência com eles. Tal atenção
reclamada vem ao encontro do que Fierro (1995b, p. 301)
destaca: “o adolescente, de qualquer maneira, durante toda
a etapa continua tendo uma enorme demanda de afeto e de
carinho por parte dos pais, em um grau não inferior ao da

289
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

infância”, concluindo que este rechaça apenas as demons-


trações ‘exageradas’ de seus pais, ou seja, as de superprote-
ção e/ou cobrança excessiva.
Num segundo momento foi solicitado que os adolescen-
tes se organizassem em subgrupos para discutir e elaborar
uma carta única do subgrupo, de síntese das idéias, seguin-
do uma discussão acerca das cartas (tanto individuais quan-
to em subgrupos) e dos sentimentos suscitados durante a
realização dessas atividades. Observou-se que a discussão
teve como ponto principal, na visão dos adolescentes, a co-
locação de que a carta teve um caráter de ‘desabafo’ sobre a
dificuldade em tratar sobre tais assuntos pessoalmente com
os pais. A atividade “Carta aos pais” foi percebida como
sendo um caminho facilitador para a comunicação geracio-
nal, possuindo, portanto, um caráter positivo.
Durante esta discussão, as psicólogas-estagiárias comu-
nicaram que levantariam as idéias principais contidas nas
cartas para elaboração de uma carta única dos grupos aten-
didos no SOP e a equipe técnica apresentaria a carta sínte-
se denominada “carta aos pais”, de autoria de um jovem
hipotético, aos pais durante uma reunião com a equipe. O
convite para os pais participarem da reunião foi entregue
com o consentimento dos adolescentes. Nenhuma carta de
algum adolescente foi entregue aos pais. Tal compromisso
ético é fundamental para garantir o sigilo e a relação de
confiança orientador-cliente. A decisão de entregar a carta
aos pais foi delegada a cada cliente, que poderia fazê-lo quan-
do quisesse, como quisesse e se quisesse. Todas as cartas de
próprio punho dos participantes lhes foram devolvidas após
a leitura da equipe técnica.

“Carta aos Filhos”


A reunião de pais foi constituída de duas partes. Na
primeira parte os familiares foram esclarecidos sobre o fun-

290
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

cionamento do Serviço e os temas referentes ao processo de


Orientação Profissional e às questões da adolescência. Dú-
vidas também foram esclarecidas nesta etapa da reunião.
Na segunda parte da reunião os pais foram instruídos a ler
a ‘carta síntese’ de seus filhos, subscrita por um jovem hi-
potético, e, posteriormente a redigir uma carta resposta, a
“Carta aos Filhos”.
No momento da leitura da carta percebeu-se que alguns
pais demonstraram certo espanto quanto ao conteúdo da
mesma. Entre falas de surpresa, espanto e compreensão houve
verbalizações que tentavam justificar as atitudes reclama-
das pelos filhos: de superproteção, de exigência e até de indi-
ferença. Organizados em subgrupos, os pais presentes na
reunião escreveram uma ‘resposta’ à carta síntese a qual
seria, como de fato foi, condensada em uma única carta para
ser entregue aos filhos durante as próximas sessões dos gru-
pos de Orientação Profissional. Estas tinham como conteú-
do palavras de apoio aos filhos, demonstrações de carinho,
amizade e compreensão, justificativas de suas atitudes e as
dificuldades em encontrar o ‘equilíbrio’ com os filhos, con-
selhos, dicas e palavras de encorajamento.
As cartas foram entregues à equipe do SOP que organi-
zou uma carta-resposta, a “carta aos filhos”, que foi lida e
discutida pelos participantes de cada Grupo de Orientação
Profissional, coordenado pelas duplas de psicólogos-esta-
giários. Cada dupla de estagiários planejou o momento ade-
quado para trabalhar a referida atividade.

Repercussão da “Carta aos Filhos”:


a resposta dos pais
Durante a sexta sessão do grupo, objeto deste estudo, foi
proposta a atividade da leitura e posterior discussão da
“Carta aos filhos”. Como ocorrido com os pais, muitos fi-

291
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

lhos também se surpreenderam com a carta lida, fazendo


comentários no sentido de duvidar das palavras dos pais,
de considerar que estavam sendo muito ‘bonzinho’ e com-
preensivo e que isso não era verdadeiro. Por outro lado,
alguns integrantes do grupo foram sensibilizados pela car-
ta e puderam até se colocar no lugar dos pais, tentando en-
tender as atitudes dos mesmos em relação aos filhos.
Reflexões sobre os papéis dos pais ocorreram e puderam
ser compreendidos. Muitos adolescentes puderam ver a
questão de suas escolhas na perspectiva dos pais. Ao longo
da discussão, aqueles que tinham ‘compreendido melhor’
as palavras dos pais acabaram por sensibilizar o restante
do grupo culminando, inclusive, em uma postura de acolhi-
mento e compreensão de que o momento de escolha não é
difícil apenas para os filhos, mas o é também para os pais.
Colocar-se no lugar do outro sinaliza desenvolvimento da
maturidade, um passo a mais a caminho da independência
almejada.
Os integrantes também relataram durante a discussão
que alguns pais tinham mudado suas atitudes para com eles
após a reunião, e isso foi sentido pelos filhos como um maior
interesse em seu processo de decisão e até mesmo tendo
uma postura mais acolhedora e compreensiva neste momen-
to de crise. Os registros das sessões grupais permitem con-
cluir que houve comunicação fluída entre os integrantes
do grupo. Além disso, as falas registradas sinalizam a faci-
litação do diálogo, também, entre pais e familiares. Atinge-
se aqui o objetivo de expandir a intervenção para além do
setting de Orientação Profissional. Os clientes assumem o
protagonismo em suas decisões, em suas vidas, objetivo
maior do processo de Orientação Profissional, aprender a
tomar decisões e assumir as conseqüências decorrentes de
cada e toda decisão ao longo da vida, a colocar-se no lugar
do outro.

292
Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

Assim, considera-se que as atividades “Carta aos pais” e


“Carta aos filhos” foram instrumentais para facilitar a
comunicação, e complementares no treino das psicólogas-
estagiárias no desenvolvimento da competência de coorde-
nador de comunicação grupal.

Considerações finais
As atividades “Carta aos Pais” e “Carta aos filhos” tive-
ram uma grande importância para o desenvolvimento de
cada integrante, e do grupo, durante o processo de Orienta-
ção Profissional, no sentido de ter facilitado a abertura do
canal de diálogo entre pais e filhos acerca do tema tratado
e com aqueles pais que participaram da reunião. Ficou cla-
ro para a equipe, de acordo com as reações percebidas tanto
na conduta dos pais quanto na dos filhos, que existiam al-
gumas lacunas na comunicação entre eles, uma vez que para
ambos os grupos - de familiares e de filhos - foi difícil e, ao
mesmo tempo, surpreendente entrar em contato com o con-
teúdo das cartas.
Visto que a relação com os pais no processo de escolha
profissional dos adolescentes é uma variável de extrema im-
portância e influencia na escolha, faz-se necessário um des-
taque para a qualidade da relação entre pais e filhos, pois
uma boa convivência entre eles pode proporcionar uma maior
tranqüilidade e segurança para os adolescentes enfrentarem
esta crise, bem como as outras que surgem não somente nes-
ta fase, como ao longo de toda a vida. A questão da influen-
cia dos pais na decisão profissional tem sido amplamente
estudada (PINTO; SOARES, 2001). O envolvimento dos pais
no processo de desenvolvimento da carreira de seus filhos
tem sido um previsor de atitudes construtivas e percepções
positivas do futuro para os adolescentes (NILES, 1997;
MELO-SILVA; JACQUEMIN, 2001).

293
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Neste sentido vale ressaltar que o orientador profissio-


nal deve levar também em conta, em sua intervenção, que a
segurança proporcionada pelo apoio e compreensão dos pais
é fundamental neste processo, em complementaridade à aju-
da do profissional especializado, neste caso, o psicólogo/
orientador profissional.

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Parte II: Psicologia e processos educativos, psicoeducativos e sociais

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295
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

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296
PARTE III

SERVIÇOS PSICOLÓGICOS:
INTERFACES E INTERAÇÕES
COM A COMUNIDADE
13. REFLEXÕES E DECORRÊNCIAS DA
PARTICIPAÇÃO DAS CLÍNICAS-ESCOLA NO
PROJETO DE PREVENÇÃO AO SUICÍDIO DA
PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO

Rita Aparecida Romaro


Eliana Herzberg
Felícia Knobloch
Rosélia Bezerra Paparelli
Suely Aparecida Ferreira Garcia
Rita Helena Cucê Nobre Gabriades
Andréa Paes Favalli

Uma preocupação constante com a qual nos deparamos


enquanto supervisores, ou psicólogos atuantes em clínicas-
escola é para onde encaminhar aquele que nos procura, e
que necessita de serviços de que não dispomos, o que se cons-
titui num processo moroso, quase sempre ineficaz no sen-
tido de atender à demanda, em geral em caráter de urgência,
de nosso usuário. O mesmo ocorre quando necessitamos de
uma avaliação ou acompanhamento externo e paralelo, ou
quando precisamos encaminhar o usuário para a rede de
saúde pública.
Trabalhos, articulações, tentativas têm sido empreendi-
dos ao longo dos anos, isoladamente, pelas diversas clíni-
cas-escola, de acordo com os recursos disponibilizados por
cada uma das Instituições de Ensino Superior.
Tal situação gera angústia naquele que presta o serviço
(psicólogo, estagiário), no supervisor e principalmente no
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

usuário que não tem a quem mais recorrer. Por vezes, devi-
do a esse contexto, acabamos improvisando e experimen-
tando formas que aliviam, mas não resolvem o problema,
gerando insatisfação e sentimento de impotência nos pro-
fissionais e estagiários. Algumas situações ainda requerem
um atendimento interdisciplinar, o que nem sempre cor-
responde à condição das clínicas-escola, sendo que algumas
contam apenas com o atendimento psicológico realizado por
estagiários, em supervisão, sem profissionais contratados.
O convite do Conselho Regional de Psicologia de São Pau-
lo (CRP/SP) para conhecermos e participarmos do Plano de
Prevenção ao Comportamento Suicida, com a rede de saúde
pública, foi aceito com expectativa, pois parecia propiciar
tanto a articulação com outras clínicas-escola, como com a
rede, preenchendo lacunas importantes, principalmente ao
tratar de uma situação limite como o suicídio, pois, além
das perdas por suicídio, as co-morbidades relacionadas às
tentativas de suicídio, para os indivíduos e seus familiares,
representam um sério agravo à saúde da população.
Em 1999 a Organização Mundial de Saúde (OMS) lan-
çou o “Suicide Prevent” (SUPRE), um programa que obje-
tiva a mobilização mundial para a prevenção do suicídio.
Atendendo a esta iniciativa, no início de 2003, a Área Te-
mática de Saúde Mental, Álcool e Drogas – Coordenadoria
de Desenvolvimento da Gestão Descentralizada (COGest),
Secretaria Municipal da Saúde (SMS) de São Paulo lançou
o Plano de Prevenção ao Comportamento Suicida e procu-
rou o CRP/SP, que por sua vez convidou todos os represen-
tantes das clínicas-escola das Faculdades de Psicologia do
Município de São Paulo. Desde então representantes des-
tas entidades vêm se reunindo, mensalmente, para desen-
volver, em parceria, uma estratégia de ação que envolva uma
ampla rede de recursos e serviços integrados.

300
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

A apresentação deste trabalho objetiva delinear os pas-


sos dados no sentido de uma articulação entre as clínicas-
escola que se propuseram a participar, e, destas com a rede
de saúde pública do Município de São Paulo, relatando as
formas de engajamento ao projeto, levando-se em conta a
realidade do serviço prestado por cada clínica-escola e sua
articulação com a Instituição de Ensino Superior.

O suicídio
Das várias formas de agressão contra o eu que caracte-
rizam os atos autodestrutivos, o suicídio ao mesmo tempo
que é um pedido de auxílio para encontrar uma outra for-
ma de explorar e utilizar os recursos internos, também pode
ser uma solução definitiva em um momento de desespero e
desesperança.
Os altos índices de suicídio verificados, mundialmente,
têm se constituído num sério problema de saúde pública e
preocupação da OMS, nos dias atuais. Estimativas feitas
pela OMS ditam que o suicídio é uma das três maiores cau-
sas de morte na população entre 15 e 34 anos de idade, que
um milhão de pessoas morreram cometendo suicídio no ano
de 2000 e que, ocorrem de 10 a 20 tentativas para cada mor-
te por suicídio. Acompanhando esta tendência mundial,
estatísticas brasileiras apontam aumento no número de sui-
cídios, principalmente entre a população jovem. (BOTEGA,
2002).
De acordo com o Plano de Prevenção ao Comportamento
Suicida, elaborado pela Área Temática de Saúde Mental,
Álcool e Drogas – COGest - SMS:

No município de São Paulo, considera-se que as estatísticas


oficiais subestimem o número de suicídios ocorridos. Mes-
mo assim, o suicídio foi a quarta causa de morte na popula-
ção entre 10 e 24 anos em 2001 (PRO-AIM, SMS). No período

301
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

de 1996 a 2002, foram registrados 400 a 500 suicídios a


cada ano em São Paulo, 80% na população até 54 anos de
idade. Não são apenas os suicídios que significam um sério
agravo à saúde coletiva, a co-morbidade relacionada às ten-
tativas de suicídio para os indivíduos e seus familiares tam-
bém representam um problema de saúde pública. (SÃO
PAULO, 2003 ,p.1)

Pode-se estimar que todo ano até 10 mil pessoas tentem


suicídio no município de São Paulo, sendo os fatores deter-
minantes do suicídio múltiplos e de interação complexa,
abrangendo fatores emocionais, genéticos, ambientais, fa-
miliares, sociais, políticos como a falta de acesso aos serviços
necessários (psicológico, psiquiátrico, médico) no momen-
to da crise.
No início de 2003, a Prefeitura do Município de São Pau-
lo - SMS - COGest - Área Temática de Saúde Mental, lan-
çou o Plano de Prevenção ao Comportamento Suicida (SÃO
PAULO, 2003), procurando envolver uma ampla rede de
recursos e serviços, buscando desenvolver uma estratégia
para integrá-los, visto a área da saúde envolver a atenção
básica (que deve ser capaz de identificar as situações de ris-
co), os Serviços de Emergência, os Centros de Atenção Psi-
cossocial (CAPs), as Clínicas-Escola de Psicologia, as
Escolas, a Mídia.

Plano de Prevenção ao
Comportamento Suicida
Partindo-se dessas constatações, a SMS vem articulan-
do uma Política de Prevenção do Comportamento Suicida,
com os objetivos de:
• Reduzir o número de suicídios e comportamentos suici-
das no município de São Paulo.

302
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

• Reduzir a morbidade associada ao período pós-tentativa


de suicídio, nos indivíduos e famílias.
• Identificar o perfil e algumas das condições associadas às
tentativas de suicídio na população de São Paulo.
• Rastrear os pontos de maior fragilidade do sistema na
atenção ao comportamento suicida.

Para tal, as seguintes estratégias foram planejadas:


• Implantar um sistema de vigilância ao suicídio, por meio
da formação do Centro de Informática (CEInfo) e do CO-
Gest, de um banco de dados a partir das informações re-
colhidas por um instrumento de entrevista padronizada,
com base no desenvolvido pela OMS e adaptado para a
utilização na rede pública, a ser aplicado por plantonis-
tas em todo atendimento à tentativa de suicídio nos ser-
viços de emergência.
• Implantar um programa de busca ativa dos indivíduos
que tentaram suicídio, mobilizando profissionais de saú-
de mental, Programa de Saúde da Família (PSF) e parcei-
ros da sociedade civil, como as clínicas-escola e o CRP/
SP, para garantir um plano de seguimento dos indivíduos
que tentam suicídio, após sua alta dos serviços de emer-
gência. O plano será adaptado da proposta da OMS que
prevê um calendário mínimo de consultas em 1, 2, 4 e 7
semanas e 4, 6, 12 e 18 meses após a alta. Se necessário,
estão previstos contato telefônico e visita domiciliar ao
paciente.
• Reforçar as ações que previnam ou melhorem as condi-
ções mais associadas ao suicídio: - estimular na atenção
básica, nos CAPS e Centros de Convivência e Cooperati-
vas (CECCOs), o desenvolvimento de atividades que com-
provadamente protejam contra o comportamento suicida,
como melhorar o suporte familiar e aumentar as oportu-
nidades para criação de laços na comunidade; - parceiros

303
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

como escolas, casas de cultura, centros esportivos, asso-


ciações comunitárias podem ser envolvidos; - capacitação
dos profissionais da atenção básica para o reconhecimento
e manejo inicial das situações de risco para o suicídio,
como depressão, alcoolismo, transtorno de personalida-
de (principalmente borderline e anti-social), esquizofre-
nia, transtorno mental orgânico.
• Buscar dispositivos que promovam a filiação dos indiví-
duos a grupos sociais geradores de perspectivas de futuro.

Como parte do Plano de Prevenção ao Comportamento


Suicida, todas as clínicas-escola das Instituições de Ensi-
no Superior do Município de São Paulo, que oferecem curso
de Psicologia, juntamente com a Clínica do Instituto Sedes
Sapientiae, foram convidados pelo CRP/SP, no início de 2003
para discutirem, trocarem suas experiências e proporem
formas efetivas de participação, juntamente com represen-
tantes da Área Temática de Saúde Mental, Álcool e Drogas
– COGest e da SMS de São Paulo. Apesar de inicialmente
várias clínicas-escola terem comparecido ao apelo de parti-
cipação do projeto do CRP/SP, efetivamente as que deram
seguimento no ano de 2004 foram as da: Universidade de
São Paulo (USP), Universidade Camilo Castelo Branco
(UNICASTELO), Universidade Paulista (UNIP), Univer-
sidade São Francisco (USF), a Clínica do Instituto Sedes
Sapientiae e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUCSP). Desde então, representantes destas entidades, que
consideramos como representativas da realidade da cidade
de São Paulo, vêm se encontrando, mensalmente, com o intui-
to de criar uma rede de recursos e serviços, para desenvolver
estratégias de intervenção e prevenção ao comportamento
suicida.
Considerando-se a importância da construção de uma rede
de proteção às situações identificáveis como potencialmente
suicidas pelas diferentes instituições envolvidas neste Pla-
304
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

no, procurou-se delinear as diferentes atribuições e funções


que cada uma dessas instituições deverão ter na implemen-
tação do projeto, ressaltando-se as diferentes competências
e especificidades de cada clínica-escola que manifestasse
interesse de se incluir no projeto.
No início de junho de 2003, foram elaboradas as seguintes
proposições, contemplando as diversas instâncias envolvidas.

Clínicas-Escola
A clínica-escola ao receber pacientes identificados como
apresentando comportamentos de risco de suicídio, tanto
por demandas espontâneas, como encaminhados pelas uni-
dades de saúde do Sistema Unificado de Saúde (SUS), deve-
rá ter condições efetivas de:
• encaminhar o paciente a uma unidade de saúde em seu
distrito, quando necessário;
• articular-se com seu(s) distrito(s) de saúde de referência
para garantir a proposta mínima de atendimento sugeri-
da pela OMS (2000);
• elaborar um projeto clínico singular para cada paciente,
articulado a uma unidade de saúde da região, podendo
incluir: atendimento psicoterápico individual, grupal ou
familiar; visita domiciliar; acompanhamentos terapêuti-
cos; trabalho clínico-institucional junto aos equipamen-
tos de referência do paciente (escola, espaços de lazer e
cultura, convivência comunitária etc).

A clínica-escola também poderá participar:


• fazendo um levantamento de soluções locais, a partir de
cada caso, que vinculem os pacientes a recursos da co-
munidade;
• auxiliando no mapeamento das instituições de saúde e/ou
outras pelas quais essa pessoa transitou e os procedimen-
tos utilizados;

305
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

• produzindo informações a partir de uma ficha padrão de


registro, consensuada e elaborada entre as clínicas-es-
cola;
• funcionando como ponto de articulação, em cada situa-
ção particular, das várias instâncias: Centro de Valoriza-
ção da Vida (CVV), Distrito, Hospital, Igreja, Clube,
Escola, Família, SUS...

Secretaria da Saúde da Prefeitura de


São Paulo
A Secretaria de Saúde de São Paulo por meio de seus
Distritos de Saúde funcionará como pólo de identificação,
referência e facilitação da articulação para a construção e
a manutenção da malha institucional de proteção e aten-
ção necessárias para cada situação de risco acompanhada
no projeto, criando condições para:
• identificar ou criar funções, destacando pessoas de refe-
rência envolvidas com o projeto em cada distrito de saúde;
• garantir mecanismos de acolhimento de pacientes refe-
renciados pelas clínicas-escola;
• colaborar na elaboração de uma ficha padrão de registro
dos atendimentos a serem realizados pelas clínicas-esco-
la, contendo itens necessários para um levantamento epi-
demiológico dessa população;
• possibilitar a participação dos profissionais das clínicas-
escola, envolvidos com o projeto, nos cursos de capacita-
ção oferecidos pela Secretaria, no âmbito do Plano de
Prevenção do Comportamento Suicida;
• participar de uma reunião mensal para a discussão do anda-
mento do projeto com representantes das clínicas-escola.

306
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

Conselho Regional de Psicologia -


CRP/SP
O CRP/SP terá como função promover condições de ofe-
recer suporte clínico-teórico-institucional, à medida que
surjam diferentes demandas que possam advir das clínicas-
escola, na execução do projeto.
Para essa promoção foi sugerida a criação de uma equi-
pe composta por até cinco participantes das diferentes ins-
tituições (CRP, clínicas-escola, SMS) envolvidas no projeto
para reunir-se periodicamente, com as seguintes funções:
articular, integrar, analisar, propor estratégias e dispositi-
vos que alimentem a execução do plano, trabalhando a par-
tir dos problemas concretos detectados no processo de sua
implementação.
Para a efetivação da proposta foi estipulado um prazo de
seis meses para a realização de um piloto, a partir do qual
se faria uma avaliação conjunta para eventuais “correções
de rota”, tanto do ponto de vista clínico (entende-se por
clínico os diferentes dispositivos acionados para a efetivação
dos múltiplos projetos clínicos, como atendimentos psicote-
rápicos, apoio familiar, seguimentos telefônicos, reinserção
na escola, nos grupos de referência...) como do ponto de vis-
ta do levantamento epidemiológico.
A Tabela 1, apresenta o desenvolvimento e as especifi-
cações das atividades de junho de 2003 a novembro de
2004, no Projeto de Intervenção para Prevenção do Com-
portamento Suicida da Área Temática de Saúde Mental
Álcool e Drogas da Secretaria Municipal de Saúde de São
Paulo.

307
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Tabela 1. Atividades desenvolvidas na parceria entre as


clínicas-escola, o Conselho Regional de
Psicologia de São Paulo e Prefeitura de São
Paulo. Regional de Psicologia de São Paulo e
Prefeitura de São Paulo.

Nº de
Atividade Participantes L o ca l
Reuniões
Apresentação e
discussões do Plano de Representantes das Clínicas-
CRP-06 14
Intervenção ao Escola, Prefeitura e CRPSP
Comportamento Suicida
Representantes das Clínicas- Centro de
Capacitação oferecida
Escola e Servidores Formação da 2
pela Prefeitura
Municipais Prefeitura (CEFOR)
Hospital do
Capacitação: Prevenção Representantes das Clínicas-
Servidor Público
do Comportamento Escola e Servidores 6
Municipal de São
Suicida Prefeitura Municipais
Paulo
Reunião regionalizada Representantes das Clínicas-
para integração com a Escola e Servidores diversos 1
rede de saúde Municipais
Servidores da Saúde das
Supervisão mensal para Regionais da Sé e do
Regionais
acompanhamento do Jabaquara; Prefeitura; Equipe 6
Jabaquara e Sé
desenvolvimento do Plano da Psiquiatria da UNICAMP e
Clínicas-Escola

Seminário Prevenção do Servidores da Saúde e


PUC/SP 1
Comportamento Suicida Clínicas-Escola

12º Encontro de Clínicas-


Apresentação de trabalho
Escola de Psicologia do
conjunto por seis Clínicas- USP/RP 1
Estado de São Paulo
Escola
Ribeirão Preto
Dr. Leon S. L. Garcia
1ª Jornada "depressão e
(COGEST-SMS),Sonia M.C. P.
Suicídio na Infância,
Ferreira (Hospital Arthur UNIP 1
Adolescência e Idade
Saboya) e professores da
Adulta"
UNIP
Alunos da disciplina de
Encontro com Dra. Tereza graduação 'Atuação do
Cristina Gonçalves - Psicólogo em Instituição de
responsável técnico da Saúde" do Instituto de USP/SP 1
Prefeitura Municipal de São Psicologia; Equipe Técnica da
Paulo Clínica Psicológica Dr. Durval
B. Marcondes e interessados

Atividades desenvolvidas na parceria entre as clínicas-escola, o Conselho Regio-


nal de Psicologia de São Paulo e Prefeitura de São Paulo.

308
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

A Prefeitura de São Paulo ofereceu uma vaga para cada


clínica-escola na “Capacitação dos Profissionais de Saú-
de”, ocorrido entre 15 de abril e 20 de maio de 2004, num
total de 18 horas. Participaram representantes das clíni-
cas-escola da USP, da USF e da UNIP. Ao término da mes-
ma surgiu a proposta de reuniões mensais de 3 horas, com
as equipes de saúde da prefeitura e os profissionais das clí-
nicas-escola para discussão sistemática de casos clínicos,
até dezembro de 2004.
Cada clínica-escola desenvolveu atividades de uma for-
ma particular, considerando os recursos disponíveis, os
projetos em andamento, as modalidades de serviços presta-
dos em cada Instituição.
A clínica-escola da PUCSP criou, logo no início do proje-
to, o Grupo de Apoio à Prevenção de Suicídio (GAPS), com
seis alunos, psicólogos formados, realizando o aprimora-
mento, com o objetivo de problematizar, a partir da prática,
as solicitações do Programa de Cooperação de Prevenção
da Conduta Suicida, no atendimento de pacientes que pas-
saram pela triagem interna. Para o atendimento desses
pacientes foi necessária uma flexibilização das regras da
clínica, visto que uma das características observada foi o
número acentuado de faltas, gerando a necessidade de uma
busca ativa. Após os 6 meses de experiência concentrada
no GAPS, este foi desfeito e o programa passou a ser arti-
culado com todos os setores de atendimento da clínica.
Na clínica-escola da USP, a preocupação inicial foi articu-
lar o Programa à rotina da clínica, realizando pelo menos as
estratégias de atendimento prescritas pela OMS. Vale res-
saltar que a clínica conta, além dos alunos estagiários, com
uma equipe técnica permanente constituída por três psicó-
logos, um assistente social e um coordenador, sendo que a
equipe “permanente” foi incluída nas etapas do Plano.
Os profissionais encarregados da triagem e do suporte
psiquiátrico da clínica-escola da UNIP, assim como alguns

309
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

alunos, ex-alunos e supervisores, realizaram uma capaci-


tação para o atendimento de pessoas que haviam praticado
o ato suicida, com boa receptividade por parte dos envolvi-
dos. A ênfase está sendo dada à formação de uma rede de
contatos com a prefeitura e ao trabalho de esclarecimento.
Os Centros de Psicologia Aplicada da UNIP, por intermé-
dio de seus coordenadores, alunos e supervisores que parti-
ciparam da capacitação, estão desenvolvendo conteúdos
adquiridos com o projeto nos serviços de triagem interven-
tiva, psicodiagnóstico interventivo, atendimento em psico-
terapia breve adulto, adolescente e infantil e no plantão
psicológico.
O curso de Psicologia da USF e a clínica-escola elabora-
ram um projeto envolvendo alunos a partir do segundo se-
mestre dos cursos de Psicologia e Serviço Social, com ênfase
no mapeamento das instituições de saúde e dos recursos
disponíveis na comunidade (região Pari) que possam servir
como rede de apoio, objetivando montar um catálogo de
endereços e serviços a ser disponibilizado para a comuni-
dade, para a SMS, para as clínicas-escola, auxiliando, as-
sim, na articulação para garantir o mínimo de atendimento
sugerido pela OMS. Na clínica-escola da USF a triagem é
realizada pelos alunos-estagiários, sob supervisão, estan-
do os supervisores inseridos no Programa, possibilitando
a implantação das etapas do Plano de Prevenção e os proce-
dimentos necessários.
A clínica-escola da UNICASTELO vem em decorrência
deste projeto desenvolvendo ações que envolvem as disci-
plinas da graduação e a Equipe Técnica do Centro de For-
mação de Psicólogos. Situada numa região de extrema
carência de recursos em saúde, utiliza-se de um extenso ca-
dastro de instituições públicas e privadas da região, que
oferecem serviços em saúde mental e formam uma rede de
apoio com a qual objetiva-se minimizar as dificuldades que

310
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

envolvem as situações de encaminhamento, emergenciais


ou não. Enquanto agente de formação conta com a inser-
ção do tema através de suas disciplinas da graduação a par-
tir do terceiro semestre do curso, problematizando o tema
a partir da ênfase nos aspectos epidemiológicos e psicosso-
ciais. Com relação ao atendimento prático, os trabalhos são
desenvolvidos através do Serviço de Plantão Psicológico,
que é o serviço responsável pela entrada dos pacientes adul-
tos e posterior acompanhamento terapêutico, pela equipe
técnica do Centro de Formação de Psicólogos (psicólogos
contratados e estagiários), corpo docente e discente. Este
trabalho ocorre em uma das disciplinas da formação, onde
o tema é discutido em sua complexidade multifatorial, per-
mitindo ao aluno a atuação terapêutica com supervisão e
viabilizando o manejo clínico dos casos. Os casos que neces-
sitam de continuidade ou não conferem à demanda de aten-
dimento prestado por esta clínica-escola são encaminhados
para seguimento externo, via rede de apoio formada pela equi-
pe técnica da clínica-escola, Cadastro de Terapeutas da Co-
munidade (alunos egressos) e outros recursos da Saúde. O
público infantil recebido pelo SAC - Serviço de Atendimento
à Comunidade é realizado pela Equipe Técnica que avalia as
condições e necessidades dos casos, e posteriormente dire-
ciona-os à mesma rede de apoio supra citada.
Na Clínica do Instituto Sedes Sapientiae, a recepção,
acolhimento e acompanhamento de usuários, com tentati-
va de suicídio, vêm sendo realizados como rotina. O conta-
to com a rede externa de serviços de saúde mental (Pronto
Socorro (PS), CAPS, Unidade Básica de Saúde (UBS), CEC-
CO etc.) é acionado sempre que se faz necessário. A partici-
pação no Plano de Prevenção ao Comportamento Suicida
está ocorrendo desde o início de 2003, sendo que um profis-
sional contratado da Clínica participa das reuniões no CRP
e capacitações e multiplica as informações na Instituição.

311
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Uma avaliação das atividades desenvolvidas ao longo


desse período apontou que as clínicas-escola enfrentam li-
mitações no atendimento do paciente que praticou recente-
mente o comportamento suicida ou que apresenta risco
suicida, devido: (1) a falta de capacitação específica de alu-
nos-estagiários e dos profissionais; (2) o receio dos super-
visores de encaminhar esses pacientes para o atendimento
de alunos-estagiários cursando o último ano do curso; (3) a
falta de informação dos professores sobre o programa; (4) a
dificuldade de obtenção de contato via telefone; (5) a falta
de vaga para atendimento na rede; e (6) a necessidade de se
pensar em exceções em relação à organização da clínica.
Outro fator de preocupação é a possibilidade e viabilida-
de de articulação rápida com a rede no encaminhamento
dos pacientes que necessitem de atendimento imediato. A
partir desta avaliação e reformulação de rota, prosseguire-
mos com a implementação da segunda parte do plano, para
o ano de 2005.

Reflexões
A partir do convite do CRP/SP ocorreu uma série de reu-
niões na sede do próprio CRP/SP e paralelamente, várias
atividades ligadas a essa proposta, qual seja a da participa-
ção das clínicas-escola no Projeto de Prevenção ao Com-
portamento Suicida da Prefeitura Municipal de São Paulo.
As reuniões e atividades foram discriminadas na Tabela 1.
Gostaríamos neste momento de refletir sobre as decor-
rências da participação das clínicas-escola neste projeto. Além
de procurar dar uma contribuição em termos de um proble-
ma de saúde pública (suicídio e tentativas de suicídio) que
tem assumido proporções cada vez maiores, segundo esta-
tísticas da OMS pudemos constatar até o momento que a

312
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

Prefeitura Municipal de São Paulo, ao buscar as clínicas-


escola de Psicologia como serviços potencialmente capazes
de cooperar em um projeto mais amplo da própria prefeitu-
ra, considerou-as como instituições de saúde da comunida-
de deixando de lado a idéia, por vezes ainda vigente, de se
tratarem (as clínicas-escola) como recursos exclusivamen-
te voltados para a formação clínica do aluno. Às clínicas-
escola foi atribuído o lugar de serviço importante para a
comunidade e como decorrência, aberto a interações com a
mesma.
Por sua vez cada clínica-escola participante do projeto
inseriu-se no mesmo de acordo com as possibilidades e as
características que lhe são peculiares. Porém o que chama
mais atenção e que parece ser uma conquista indiscutível
proveniente da participação nesse projeto foi a integração
e a multiplicidade de relacionamentos que se desenvolve-
ram a partir dessa participação.
Alguns representantes de diferentes clínicas-escola pas-
saram a ter um contato regular possibilitando a troca de
experiências, conhecimento mais detalhado das próprias
clínicas etc. Duas das clínicas-escola participantes organi-
zaram e sediaram em conjunto com a Prefeitura os eventos
“Seminário: Prevenção do Comportamento Suicida”,
PUCSP, em 2003 e – “1ª Jornada: Depressão e Suicídio na
Infância, Adolescência e Idade Adulta” ,UNIP, reunindo
especialistas na área.
Pela primeira vez, desde que se tem notícia, represen-
tantes de cinco clínicas-escola diferentes apresentaram um
trabalho conjunto no 12º Encontro de Clínicas-Escola, se-
diado em Ribeirão Preto, em agosto de 2004, intitulado
“Participação de Clínicas-Escola no Plano de Prevenção ao
Comportamento Suicida da Secretaria Municipal da Saúde
de São Paulo”. (ROMARO et al., 2004)

313
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

O fato de a Prefeitura ter, através de seus representan-


tes da área da saúde, participado ativamente das reuniões
no CRP/SP e de ter aberto a possibilidade de participação
em alguns de seus programas de capacitação, favoreceu a
possibilidade de uma aproximação de serviços de saúde da
Prefeitura com as clínicas-escola e das clínicas-escola en-
tre si.
Essa aproximação com profissionais da saúde em dife-
rentes serviços pode favorecer uma ampliação do leque de
possibilidades tanto de estágio para alunos da graduação
em Psicologia como de interações entre os serviços de aten-
dimento à população. Como exemplo dessa abertura para
alunos estagiários, podemos citar a autorização concedida
pela Coordenação da Área de Saúde Mental da Prefeitura
para que alunos pudessem participar das supervisões men-
sais que estão ocorrendo e que abarcam duas regionais da
prefeitura (Sé e Jabaquara) que participam do projeto pilo-
to de prevenção ao suicídio na cidade São Paulo.
Além de profissionais da prefeitura essas supervisões
contam também com a participação de um psiquiatra do-
cente da Universidade de Campinas especialista na área de
pesquisa e prevenção do suicídio. Trata-se de oportunidade
muito enriquecedora para alunos em formação, pois além
de terem contato com profissionais apresentando atendi-
mentos que realizam em seu dia-a-dia podem presenciar a
discussão supervisionada desse trabalho. Como outra de-
corrência dessa interação podemos citar o fato de profissio-
nais da Prefeitura participantes do projeto terem se disposto
a apresentar e discutir o mesmo para alunos de graduação
na universidade.
Não poderíamos deixar de mencionar o relevante papel
desempenhado pelo CRP/SP em todo o processo, atuando
como elo fundamental nessa possibilidade de interação Pre-

314
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

feitura/Clínicas-Escola, pois sem essa sua atuação congre-


gadora e acolhedora, provavelmente os relacionamentos não
teriam ocorrido da forma fluida como ocorreram.
Temos a convicção de que iniciativas de tal porte e con-
sistência propiciam reações em cadeia onde se torna difícil
depois de um certo tempo precisar qual elo desencadeou qual
conseqüência. A preocupação com o crescente aumento do
número de suicídios na população mundial motivou a Pre-
feitura de São Paulo a procurar de estratégias para lidar
com a questão. No entanto, pudemos perceber até o mo-
mento (pois o projeto continua em andamento) que inde-
pendentemente do tema da preocupação central (no caso,
especificamente suicídio e tentativas de suicídio) houve a
mobilização integradora simultânea, de várias instâncias
ligadas à área da saúde. Acreditamos que esse tipo de mobi-
lização seja a mola propulsora para o desenvolvimento in-
tegrado na área da saúde, integração essa que tanto se faz
necessária na realidade em que vivemos.

Referências

BOTEGA, J.N. Práticas psiquiátricas no hospital geral:


interconsulta e emergência. Porto Alegre: Artmed, 2002.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Prevenção do suicídio:
um manual para profissionais da saúde em atenção primária.
Genebra: OMS, 2000.
ROMARO, R.A.; HERZBERG,E.; KNOBLOCH,F.; FAVALLI,A.;
GABRIADES,R.; PAPARELLI,R.B. Participação de clínicas-escola
no Plano de Prevenção ao Comportamento Suicida da Secretaria
Municipal da Saúde de São Paulo. In: ENCONTRO DE CLÍNICAS-
ESCOLA DE PSICOLOGIA DO ESTADO DE SÃO PAULO, 12.,
2004, São Paulo. Programas e Resumos... São Paulo: Vetor, 2004.
p.43.

315
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

SÃO PAULO (SP). Secretaria Municipal da Saúde. Coordenação


de Desenvolvimento da Gestão Descentralizada – COGest. Área
Temática de Saúde Mental. Plano de Prevenção ao
Comportamento Suicida. São Paulo, 2003.

316
14. SERVIÇOS PSICOLÓGICOS
E COMUNIDADE: NECESSIDADE DE
DIÁLOGO CONSTANTE

Gohara Yvette Yehia

O trabalho com serviços psicológicos, mais especifica-


mente serviços psicológicos oferecidos por clínicas-escola,
ou Centros de Psicologia Aplicada, como passaram a ser
chamados de uns anos para cá, orientaram o investimento
acadêmico e profissional do autor deste trabalho, durante
décadas.
O objetivo deste relato é buscar compreender os movi-
mentos percebidos no que se refere à constituição dos está-
gios realizados nos Centros de Psicologia Aplicada de uma
IES 1.
É a partir deste contexto, à luz de uma compreensão fe-
nomenológico-existencial daquilo que ocorreu com uma
equipe e com os trabalhos por ela desenvolvidos, muitos
deles referentes a estágios em Psicologia, que se desenvol-
ve este texto, procurando mostrar como, na relação dos
CPAs com a comunidade, é de suma importância que os
participantes das ações desenvolvidas nos mesmos não se
deixem absorver pela rotina do cotidiano, e se abram, sem-
pre que possível, a questionamentos que gerem levantamen-
tos e pesquisas, levando a novas possibilidades de atuação.

1
Trata-se dos Centros de Psicologia Aplicada da Universidade Paulista-UNIP
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Em meados da década de 70, um grupo de psicólogos que


trabalhava na clínica-escola de uma faculdade privada co-
meçou a sentir um vago incômodo que ainda não era capaz
de nomear. Até então, os supervisores desenvolviam suas
atividades nas áreas que se configuravam como tradicio-
nais para o atendimento à população que procura este tipo
de instituição: triagem, psicodiagnóstico infantil, psicote-
rapia infantil e de adultos. O trabalho era realizado em uma
atitude “natural”, já que os profissionais estavam respal-
dados por uma formação e por uma prática que indicavam
este caminho quando se trabalha com psicologia clínica.
As extensas filas de espera, os atendimentos, em geral
muito longos e que acabavam resultando em desistências,
a quantidade muito pequena de processos concluídos, fize-
ram com que a diretora da clínica escola se mobilizasse para
examinar o que acontecia nesta instituição e em mais três
da cidade de São Paulo (ANCONA-LOPEZ, 1981).
Aquilo que se constituía em um vago incômodo, pode en-
tão ser nomeado: os atendimentos oferecidos não eram sa-
tisfatórios; não atendiam às necessidades da população que
procura uma instituição para atendimento psicológico.
Parte do grupo mobilizou-se, então, em busca de outras
possibilidades de atendimento; formou-se um grupo de es-
tudos, buscou-se supervisão e realizaram-se workshops com
profissionais que tinham experiência com trabalho em ins-
tituição. A história das negociações intra e inter grupais
está descrita e publicada no livro Psicodiagnóstico Proces-
so de Intervenção (ANCONA-LOPEZ, 1994).
Como conseqüência desta mobilização, começaram a sur-
gir tentativas de atendimento que resultaram nos grupos de
espera, descritos por Larrabure (1982), e os psicodiagnósti-
cos em grupo, estudados por Ancona-Lopez (1987). Também
em função destas novas formas de atendimento, foi necessá-
rio rever o modo de desenvolver a supervisão, o que resultou
na dissertação de mestrado da autora (YEHIA, 1983).

318
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

Esta pequena história, compreendida à luz do referencial


fenomenológico-existencial, permite dizer que aconteceu
com este grupo aquilo que pode acontecer com qualquer ser-
no-mundo, qualquer existente. Os supervisores exerciam
sua profissão, de um modo “natural” até que algo se rom-
peu no cotidiano (em suas rotinas) permitindo o surgimen-
to da angústia. De início, este algo lhes apareceu como um
incômodo, mas não conseguiam dar-lhe um nome, ou seja,
nomeá-lo. Depois que um dos membros da equipe decidiu
debruçar-se sobre o fenômeno do atendimento em clínicas-
escolas, estudando-o, foi possível compreender o que esta-
va acontecendo e, na medida em que o grupo estava
mobilizado para tal, buscar novas alternativas, novas pos-
sibilidades de atuação (novas aberturas).
Este movimento (viver algo de modo natural, ruptura,
possibilidade de nomeação, novas aberturas) está sempre
presente, com maior ou menor intensidade, mas é necessá-
rio que haja disponibilidade para que ele possa ser profí-
cuo, resultando em novas possibilidades.
Uma clínica-escola existe para cumprir duas finalidades
principais: atendimento à comunidade e formação dos es-
tagiários, sem que se possa dizer qual dessas duas finalida-
des deva ser colocada em primeiro lugar. Há opiniões que
sustentam que a formação dos estagiários é prioritária já
que, sem eles, não haveria clínica-escola. O autor deste re-
lato considera que uma clínica-escola deve primeiramente
atender as necessidades da comunidade e que os estagiários
podem e devem, com a ajuda dos supervisores, aproveitar
as experiências disponíveis para a sua aprendizagem. Diga-
se, de passagem, o estágio de formação oferece apenas o início
daquilo que deveria constituir-se em um trabalho constante
que não finda com a graduação.
Sabe-se que algumas necessidades da comunidade per-
manecem inalteradas, entretanto, outras vêm mudando
rapidamente, algumas em conseqüência das característi-

319
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

cas da época que ora vivemos, outras em conseqüência da


realidade socioeconômica do nosso país. Não se pode es-
quecer, também, que os serviços de saúde públicos não con-
seguem abarcar a demanda crescente e que alguns casos
que, alguns anos atrás, não chegavam às clínicas-escola
agora tornaram-se seus clientes. Hoje, estas instituições
são procuradas por casos muito mais graves do que no pas-
sado: a violência, as drogas, os meninos de rua. Além disto,
verifica-se uma demanda por atendimentos que não sejam
muito longos. Assim sendo, a compreensão de que é neces-
sário cada vez mais atender uma demanda complexa, em
menos tempo, a necessidade de ir à comunidade na tentati-
va de desenvolver trabalhos preventivos, enfim, a necessi-
dade do psicólogo desencastelar-se e “ir à rua”, assim como
a abertura de novos campos de trabalho para o psicólogo
(hospitais, judiciário) fazem com que seja necessário, o tem-
po todo, responder aos desafios que se apresentam, buscan-
do novas soluções e reformulando o papel do psicólogo e do
cliente para o desenvolvimento das ações empreendidas,
oferecendo atendimentos curtos e eficazes, alterando o pró-
prio pensar e fazer do psicólogo.
Esta busca deve desenvolver-se tanto no plano prático
como no teórico. O movimento é circular: a teoria orienta
a prática, esta gera pesquisas que levam à produção de co-
nhecimento, nas quais as reflexões transformam-se em co-
nhecimento compartilhável e se refletem na prática.
Pode-se dizer, a partir do referencial fenomenológico-exis-
tencial, que todos, psicólogos e clientes, estão no mundo,
em um sistema de remissões, lidando com os objetos e com
os outros, a partir de uma certa perspectiva (ângulo a par-
tir do qual um sistema de remissão se apresenta para al-
guém) que dá sentido às suas ações, mesmo que este sentido
não seja conscientemente experienciado e requeira reflexão
para ser apreendido. É preciso, portanto, que se procure

320
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

explicitar esta perspectiva, tanto aos clientes, nos atendi-


mentos, como aos alunos, durante os encontros com os
mesmos.
Sabe-se que, freqüentemente, o cliente e o aluno colo-
cam-se em uma disposição passiva, esperando que o profis-
sional ou o professor lhes diga o que está acontecendo e o
que fazer.
Esta disposição pode ser compreendida, no que diz res-
peito aos clientes, lembrando-se que, geralmente, quando
eles vão a uma consulta, esperam do técnico, detentor do
saber, uma resposta às suas perguntas; quanto aos alunos,
ela pode ser compreendida como conseqüência de um pro-
cesso de ensino/aprendizagem no qual os conceitos são
aprendidos sem elaboração, no qual não se exige o desen-
volvimento de um pensar crítico em relação ao que é ensi-
nado, gerando neles a expectativa de que, agora, o supervisor
forneça algumas “receitas” a serem usadas nos casos aten-
didos, aplicando mecanicamente a teoria à prática.
O modo como é apresentada a proposta de trabalho pelo
psicólogo e pelo supervisor, ou seja, a crença explicitada da
necessidade de participação ativa nos processos em anda-
mento, instaura o rompimento da expectativa do outro,
gerando uma estranheza inicial, desalojando o cliente ou o
aluno daquilo que é conhecido e habitual, despertando a
angústia e levando à busca de soluções pessoais. O psicólo-
go-supervisor se coloca como pessoa que possui conheci-
mentos específicos, é certo, mas não parte do pressuposto
de que estes têm um peso maior que os conhecimentos que
os clientes-os alunos têm a respeito de sua vida (de seu fa-
zer como psicólogo). Os conhecimentos teóricos, técnicos e
os provenientes da experiência pessoal do psicólogo-su-
pervisor representam apenas um outro ponto de vista e é
nesta troca, que as mudanças podem ocorrer com o cliente-
o aluno.

321
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Aquilo que deve orientar a atividade do psicólogo duran-


te os contatos com os clientes e os alunos é a focalização da
experiência, da vivência, a valorização do conhecimento que
o outro tem do que está sendo examinado e a explicitação
dos pressupostos que o orientam, relacionando-os com seu
próprio estilo de ser, com suas expectativas. Atentos àque-
les detalhes do cotidiano onde se mostram incongruências,
estranhezas, desvelando-as e não se apressando a tampo-
nar a angústia, voltando para o cotidiano, é que se pode
propiciar alguma possibilidade de abertura.
Nesta perspectiva, alterações nas formas de atuação
em relação aos clientes repercutem sobre o modo como se
realizam as supervisões aos estagiários. Seguem alguns
exemplos.
Em uma grande universidade particular de São Paulo2,
desde 1998 foi introduzida uma área de estágio obrigató-
ria, denominada Atendimento Psicológico Infantil em Ins-
tituição, quando são desenvolvidas pelo supervisor, junto
com os estagiários, atividades de triagem interventiva e de
psicodiagnóstico interventivo em grupo. Esta introdução
foi realizada a partir do pressuposto de que, qualquer ativi-
dade desenvolvida pelo psicólogo se dá a partir do diagnósti-
co da situação a ele apresentada. Entende-se por diagnóstico
a compreensão do que está acontecendo, motivando a bus-
ca de uma intervenção.
No psicodiagnóstico interventivo, espera-se tanto do clien-
te como do psicólogo, uma postura ativa, visando apropriação
da queixa e do trabalho desenvolvido. Os atendimentos aos
clientes são realizados em grupo pelo supervisor e os esta-
giários. Desta maneira, inicialmente, o supervisor funcio-
na como um modelo para o estagiário e garante que um

2
Universidade Paulista – UNIP

322
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

atendimento psicológico, digno deste nome, seja oferecido


aos clientes.
Nesta situação, há uma grande exposição por parte do
supervisor que é questionado em suas ações tanto pelos
clientes como pelos estagiários. É a partir destas trocas
que pode se dar tanto a aprendizagem dos alunos em rela-
ção a um fazer psicológico como a compreensão dos pais
em relação ao que está acontecendo com o filho.
Este tipo de postura está orientado por conhecimentos
que falam da mudança de paradigma no que diz respeito à
atuação do psicólogo. Fischer (1972) diz que este profissio-
nal, na modernidade, buscava a objetividade, a neutralida-
de, mostrava-se detentor do saber e evitava dar devolutivas
ao cliente com a alegação de que este não as agüentaria por
estar fragilizado. A autora discute, no artigo citado, a ques-
tão da fragilidade do cliente mostrando que, talvez, quem
estivesse frágil fosse o psicólogo que precisaria resguar-
dar-se de críticas ao seu trabalho, críticas estas que pode-
riam ocorrer na medida em que ele fosse mais transparente
e democrático.
No quinto ano, os estagiários passam a atender sozinhos
os clientes, sob supervisão. Semanalmente, sua atuação em
áreas, foram se adequando às demandas da comunidade ao
longo dos anos de funcionamento dos Centros de Psicolo-
gia Aplicada. Hoje, são oferecidas:
• áreas de atendimento psicoterápico breve a adultos, ado-
lescentes e crianças. A brevidade dos atendimentos, por
um lado, vem atender as demandas da população que já
não quer atendimentos prolongados, a perder de vista,
assim como as necessidades do CPA que, desta maneira
procura evitar a formação das longas filas de espera;
• plantão psicológico, que visa o atendimento a clientes no
momento da crise. Esta é uma das atividades constantes

323
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

nos CPAs da referida IES, formando, ao longo dos anos,


redes de atendimento à comunidade, já que, na cidade de
São Paulo existem CPAs nas regiões centro, norte, sul,
leste e oeste, podendo, desta maneira atender aos clien-
tes que procuram atendimento em qualquer região da ci-
dade. De forma preventiva, os plantões também são
oferecidos em instituições escolares, hospitalares, etc,
tornando a presença do psicólogo mais familiar e visan-
do a agilidade dos atendimentos;
• área de atendimento em hospitais que se mostraram um
campo de trabalho emergente e importante para a inser-
ção do psicólogo no mercado de trabalho;
• área de mediação familiar no contexto judiciário, visan-
do a assistência a pacientes vítima de violência, uma vez
que os profissionais que realizam o psicodiagnóstico, nes-
tas situações, necessitam de conhecimentos específicos
para diagnosticarem e atuarem junto a casos de violên-
cia familiar;
• acompanhamento terapêutico que tornou-se necessário a
partir do movimento de deshospitalização dos pacientes
psiquiátricos, conseqüência da luta anti-manicomial;
• psicoterapia familiar, forma de atendimento que hoje tem
muitos adeptos. Neste caso, foi criada uma área de aten-
dimentos breves a famílias quando a Universidade aten-
deu à demanda dos estagiários, mais do que a da
comunidade que nem sempre sabe que este tipo de atendi-
mento existe já que no imaginário popular, o psicólogo
ainda é aquela pessoa que atende individualmente. As-
sim sendo, o próprio oferecimento desta forma de traba-
lho mostra que o atendimento psicológico não é
obrigatoriamente individual.
• área para atender as necessidades da comunidade, inse-
rindo os alunos na realidade emergente e no desenvolvi-
mento das atividades do terceiro setor.

324
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

Atualmente, com a publicação das Diretrizes para os


cursos de Psicologia, cada curso deve decidir quais as ên-
fases que se propõe oferecer. Assim sendo, não bastará
mais haver demanda da comunidade ou do mercado para
que áreas de estágio sejam oferecidas aos alunos. As dire-
trizes exigem que o curso tenha coerência e que as habili-
dades para os atendimentos oferecidos, nas áreas de
estágio, tenham sido preparadas ao longo do curso. As-
sim, a filosofia de cada curso deve ser desvelada, de tal
maneira que os serviços psicológicos colocados à disposi-
ção da comunidade não se constituam em algo oportunis-
ta em função de uma moda do mercado, mas sejam
decorrentes da proposta de cada uma das instituições de
ensino. Desta maneira, os gestores dos cursos de Psicolo-
gia deverão debruçar-se sobre as propostas do curso que
pretendem oferecer, explicitar a filosofia do mesmo, estar
atentos às necessidades da comunidade na qual estão in-
seridos, de tal maneira que os estágios oferecidos sejam
coerentes com o curso oferecido.
Ao mesmo tempo, o contato com a comunidade, tanto
externa como interna, deve ser problematizado, sempre que
possível, de tal maneira a evitar engessamentos e enrijeci-
mentos que só iriam empobrecer ambas as comunidades,
propiciando novas formas de atendimento mais adequadas
às demandas.
Concluindo, embora tenha sido apresentado um panora-
ma geral das possibilidades de estágio oferecidas à comuni-
dade, mais do que dizer que o importante é oferecer esta ou
aquela atividade, esta ou aquela área de estágio, propõe-se
que a interface serviços psicológicos X comunidade seja vi-
vida atenta, sensível e criticamente pelos coordenadores dos
CPAs, que devem permanecer vigilantes, evitando, a partir
de questionamentos, levantamentos e pesquisas, que as ati-
vidades de um CPA sejam absorvidas pelo cotidiano.

325
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Referências

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Professional Psychology, Washington, v. 3, n. 4, p. 364-369, 1972.

326
15. EXPERIÊNCIA DE IMPLANTAÇÃO DE
UM SERVIÇO DE ATENDIMENTO
PSICOLÓGICO INTERDISCIPLINAR

Ana Beatriz Guerra Mello


Ana Maria Zuwick
Caroline Tozzi Reppold
Marianne M. Stolzmann Mendes Ribeiro
Sandra Laura Frischenbruder
Rita de Cássia Petrarca Teixeira

O Curso de Psicologia do Centro Universitário FEEVA-


LE instituiu o Serviço de Psicologia com três objetivos bá-
sicos, quais sejam, ensino, pesquisa e extensão, a serem
contemplados a partir das seguintes ações:
• realização de práticas e estágios curriculares dos alunos
do Curso de Psicologia, bem como práticas e estágios cur-
riculares de alunos de cursos de especialização e pós-gra-
duação na referida área ou correlatas;
• desenvolvimento de atividades que visam à qualificação
profissional dos estudantes, tais como seminários e su-
pervisões;
• prestação de serviços à comunidade; e
• produção de conhecimentos relevantes a partir de pes-
quisas, reflexão crítica e continuada sobre os serviços
prestados.

As atividades propostas pelo Serviço de Psicologia estão


organizadas através de núcleos de atendimento relaciona-
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

das aos contextos de atuação do psicólogo que são contem-


plados na estrutura curricular do curso. Os núcleos não
são exclusivos das ênfases profissionalizantes previstas no
curso, podendo a mesma ênfase fazer uso de mais de um
núcleo, a fim de contemplar a formação integral do aluno.
O referencial teórico que orienta o trabalho prestado pelo
Serviço varia conforme a especificidade das situações a se-
rem atendidas e da formação profissional de cada técnico da
equipe. Em linhas gerais, o Curso de Psicologia, bem como o
Serviço, têm como filosofia básica colocar em discussão para
reflexão questões éticas, epistemológicas e deontológicas
sobre diferentes referenciais que fundamentam o trabalho
do psicólogo, oportunizando aos estagiários construir, du-
rante a graduação, um posicionamento crítico que os ajuda
na busca de sua identidade profissional.
É princípio norteador do Serviço de Psicologia oportu-
nizar o conhecimento e a vivência de diversos referenciais
teóricos que embasam a prática, visando com isto propor-
cionar o desenvolvimento e o aprimoramento do espírito
crítico que deve embasar a formação generalista no decor-
rer da formação acadêmica dos alunos de Psicologia. Con-
comitante a tal procedimento, busca-se oportunizar a
interlocução com profissionais de outras instituições tan-
to da Psicologia, quanto de áreas afins.
Assim, para implementar formas de intercâmbio multi-
profissional e interdisciplinar com vistas a um projeto ins-
titucional eficaz, o Serviço de Psicologia desenvolve
atividades profissionais em equipes multidisciplinares. Den-
tre essas propostas, destacam-se o trabalho de consultoria
psiquiátrica, o qual se dispõe para discussão dos casos que
demandam essa intervenção, e também, os projetos de ex-
tensão realizados na comunidade junto a outros cursos
como Psicopedagogia, Enfermagem, Quiropraxia, Educa-
ção Física, Fisioterapia, Fonoaudiologia, entre outros.

328
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

Organização e funcionamento
A organização funcional do Serviço de Psicologia com-
põem-se de coordenação e equipe técnica, esta constituída,
atualmente, por quatro psicólogas e uma psiquiatra. A clien-
tela central do Serviço de Psicologia é composta por pesso-
as da comunidade dos Vale dos Sinos que se encontram em
situação econômica desfavorável, excluindo-se casos clíni-
cos severos que podem acarretar necessidade de interna-
ção. Também não são atendidos os alunos da instituição,
visto que, por razões éticas, até o momento, as profissio-
nais que atendem no Serviço são também docentes desse
centro universitário e, muitas vezes, lecionam disciplinas
em diferentes cursos de graduação.
Quanto ao funcionamento interno do serviço, esse pre-
vê, além do trabalho específico dos núcleos, uma reunião
semanal dividida em reunião administrativa e clínica. Será
implantada no próximo semestre (2005/1), a modalidade de
grupo de estudo, destinada à produção científica, em con-
junto com alunos da Psicologia.

Estrutura dos núcleos


NÚCLEO DE ATENDIMENTO CLÍNICO
O Núcleo clínico visa oferecer um espaço para aplicação
prática dos conteúdos teóricos oferecidos no Curso de Psi-
cologia, desenvolver pesquisas na área da saúde mental e
atender a comunidade do Vale dos Sinos. É enfatizada no
Núcleo a criação de habilidades, desenvolvimento de técni-
cas de manejo dos instrumentos psicológicos, como aplica-
ção de testes psicológicos, psicodiagnóstico, psicoterapia,
congregando teorias, abordagens e técnicas para o exercí-
cio da Psicologia.
Ressalta-se que o Núcleo prioriza o atendimento de pacien-
tes economicamente desfavorecidos, sendo que os diagnósti-
329
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

cos de psicose, paralisia cerebral, deficiência mental pro-


funda, risco de suicídio, quadro neurológico evolutivo de
deteriorização progressiva e irrecuperável, deverão ser en-
caminhados a outros locais.
O atendimento psicológico destinado a crianças, adoles-
centes e adultos faz parte do Projeto do Serviço de Psicolo-
gia que prevê este trabalho em modalidade individual e em
grupo, a partir dos pressupostos técnicos da Psicoterapia
Breve. Busca oferecer um espaço de atendimento psicotera-
pêutico, a sujeitos em sofrimento psíquico, funcionando
como um lugar de suporte e acolhida às questões de cunho
psíquico, sendo um espaço de escuta e encaminhamento às
questões de cada sujeito. Além disso, propicia uma área de
estágio, formação e aprimoramento profissional, através
do atendimento, ensino e pesquisa, contribuindo para o de-
senvolvimento de recursos humanos necessários ao aten-
dimento em Saúde Mental.
O primeiro atendimento no Núcleo se dá através da En-
trevista de Triagem, marcação realizada pela recepção do
Serviço de Psicologia, conforme a demanda explícita e os
horários disponíveis. A entrevista é realizada por algum
dos profissionais do Serviço que avalia a demanda trazida
pelo cliente, a possibilidade de atendimento no Núcleo ou a
necessidade de encaminhamento a um outro Serviço. Caso
o cliente seja elegível ao serviço, ele é encaminhado para o
atendimento compatível com a sua problemática e deman-
da (individual ou grupo) ou é alocado em uma lista de espe-
ra e aguardará ser chamado de acordo com a disponibilidade.
É importante ressaltar que o Núcleo de Atendimento
Psicológico Clínico, de acordo com a sua implementação e
demanda, desenvolve atividades diversas, tendo como obje-
tivo a prática de experiências interdisciplinares, tanto em
nível de assistência quanto ensino. Pode desenvolver proje-
tos conjuntos com outras áreas de atuação (projetos de ex-

330
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

tensão), em busca de uma maior integralidade de ações e de


visão do sujeito (paciente), assim como dos profissionais
envolvidos.
Com a implementação dos estágios, o serviço também ofe-
rece supervisão e seminários teóricos para os estagiários,
assim como a expansão e implementação de projetos e pes-
quisa na área. Interessante ressaltar que as possibilidades
deste trabalho são inúmeras, seja na prevenção, como Gru-
pos para mães gestantes, por exemplo, seja na assistência,
como Grupos de Idosos, Grupos que trabalham questões re-
lacionadas ao uso e consumo de droga, entre outros. Portan-
to, essa proposta visa ser um início da implementação deste
Núcleo dentro do Serviço de Psicologia; com o tempo e a ex-
periência deverá ser redimensionado e ampliado.

NÚCLEO DE PSICOLOGIA ESCOLAR


O Núcleo de Psicologia Escolar, integrado ao Serviço de
Psicologia, visa a atender as demandas apresentadas pela
comunidade escolar da região que sejam relacionadas dire-
tamente ao âmbito da Psicologia Escolar ou envolvam pos-
sibilidades de estudo/intervenção pertinentes a áreas afins
(tais como, Psicologia do Desenvolvimento, Avaliação Psi-
cológica, Psicologia Social e Comunitária) ou articulações
multidisciplinares. A seguir, são listadas as principais ati-
vidades propostas pelo núcleo até o momento:
• oferta de consultoria no campo psicológico às institui-
ções escolares da região;
• atendimento de triagem psicológica;
• avaliação psicológica de alunos encaminhados com indi-
cativos de problemas de aprendizagem, dificuldades emo-
cionais/cognitivas ou alguma forma de necessidade
especial;
• atendimento psicoterápico;
• grupos de pais;
• grupos de professores;

331
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

• realização de atividades de capacitação e formação conti-


nuada (palestras, conferências, curso e simpósio) desti-
nada aos membros da comunidade acadêmica interessados
em estudar os seguintes temas: desenvolvimento sócio-
emocional de crianças e adolescentes; fatores de risco e
proteção no contexto escolar e doméstico; práticas de so-
cialização infanto-juvenil;
• supervisão e seminário teórico para os estagiários;
• organização de pesquisa e grupo de estudo sobre habili-
dades sociais e práticas educativas no contexto da Psico-
logia Escolar;
• organização de palestras com professores pesquisadores
de outras instituições sobre temas relacionados às teorias
de inteligência e ao conceito de inteligência emocional; o
analfabetismo letrado; identidade profissional do psicó-
logo escolar; e
• apresentação de trabalhos científicos em eventos da área.

Dentre essas atividades, destaca-se, para melhor descri-


ção dessa proposta, a organização de grupos de reflexão e
instrumentalização de pais e professores.

OBJETIVOS GERAIS DAS PROPOSTAS


Contribuir com a comunidade escolar, de modo a promo-
ver práticas de intervenção que fomentem discussões refe-
rentes às práticas de socialização infanto-juvenil e seus
efeitos sobre o desenvolvimento em diferentes contextos
(escolar, doméstico e social).

Caracterização do grupo de discussão e reflexão desti-


nado a pais:
Refere-se à elaboração de um grupo de intervenção com
pais de crianças interessados em discutir questões relacio-
nadas ao desenvolvimento psicológico infantil e às intera-
ções entre pais e filhos. O projeto tem como objetivo discutir
332
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

com os pais os efeitos de suas práticas disciplinares (práti-


cas educativas e estilos parentais) sobre diferentes aspectos
do desenvolvimento subseqüente (desenvolvimento emocio-
nal e cognitivo, desenvolvimento de autonomia e de com-
portamentos pró-sociais – empatia, solidariedade, etc.).
Nesse sentido, compreende-se que essa intervenção pode
contribuir para auxiliar os pais a repensar práticas relacio-
nadas à promoção de bem-estar familiar e de estratégias
mais assertivas para a socialização infanto-juvenil no con-
texto escolar.

Caracterização do grupo de discussão e reflexão desti-


nado a professores:
A proposta do grupo é discutir entre os professores inte-
ressados aspectos teóricos sobre o desenvolvimento emocio-
nal e as interações psicossocial de crianças e adolescentes, a
fim de auxiliar a comunidade docente a compreender a dinâ-
mica do comportamento apresentado pelos alunos em situa-
ções da prática escolar. Nesse aspecto, a proposta é que os
temas a serem discutidos no grupo sejam definidos pelo pró-
prio participante e pela psicóloga coordenadora do grupo,
conforme demanda observada. Alguns temas previamente
sugeridos são: 1) característica do desenvolvimento emocio-
nal de crianças e adolescentes; 2) características do desen-
volvimento cognitivo de crianças e adolescentes; 3) como
pode-se diferenciar com maior segurança comportamentos
que sejam típicos do desenvolvimento saudável de compor-
tamentos indicadores de dificuldades emocionais ou cogniti-
vas (Transtorno de Aprendizagem, Transtorno de Déficit de
Atenção e Hiperatividade, Depressão, Ansiedade, etc).
Dessa forma, compreende-se que os professores poderão
atuar com maior segurança como agentes interessados na
saúde emocional dos alunos e instrumentalizados para obser-
var a conduta dos discentes em sala de aula e encaminhar
para acompanhamento multidisciplinar aqueles alunos que

333
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

realmente precisam de atendimento. A partir desse traba-


lho inicial, a segundo proposta a ser trabalhada nesse gru-
po é refletir sobre a implicação dos professores em trabalhos
de intervenção que atendam às demandas observadas nas
discussões iniciais do grupo.

NÚCLEO DE ORIENTAÇÃO PROFISSIONAL


O núcleo de orientação profissional tem como objetivo
facilitar o processo de escolha profissional, auxiliando nas
dificuldades encontradas na tomada de decisão por uma
carreira. Concebemos que escolha profissional compreen-
de um complexo processo psíquico que passa pela elabora-
ção de situações conflitivas desencadeadas pela constituição
de um laço social representado pelo vínculo estabelecido
com a profissão. Tal processo deve necessariamente passar
por uma reformulação nos conceitos que o indivíduo for-
mula sobre si mesmo, sobre as profissões e o mundo do tra-
balho (BOHOSLAVSKY,1984, MÜLLER, 1997). Desta
forma, a questão da escolha implica em um trabalho inter-
disciplinar, no qual os saberes psicológicos e pedagógicos
se articulam, buscando resgatar questões subjetivas e no-
vas (ou velhas) aprendizagens que permitem ao sujeito um
outro olhar sobre as relações estabelecidas entre seu dese-
jo e as possibilidades ou os impasses de sua realização.
Nosso principal objetivo com o trabalho multidisciplinar é
superar a dicotomia entre interior (processos psíquicos)/
exterior (mercado de trabalho), sujeito (que escolhe)/objeto
(profissão), afetivo (psicológico)/cognitivo (pedagógico).
Nossa principal clientela são adolescentes, uma vez que pelo
momento evolutivo em que se encontram, têm como tarefa
definir uma identidade profissional. No entanto, o núcleo
atende a todos os sujeitos que de alguma forma se defron-
tam com a questão da escolha da profissão.
A principal estratégia de trabalho é o atendimento em
grupos, uma vez que nesta modalidade é criado um espaço
334
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

próprio para a discussão e a articulação de diferentes pon-


tos de vista, possibilitando um espaço de escuta, no qual os
sujeitos possam se re-conhecer através do discurso do ou-
tros integrantes do grupo. Desta forma, “a alteridade hu-
mana, que se exercita no contexto dos grupos pressupõe a
aceitação e a convivência com as diferenças” (OSORIO,
2003, p. 136), criando no encontro com o outro um espaço
potencial para o reconhecimento daquilo que é próprio e
inerente a cada sujeito. Do ponto de vista pedagógico e das
aprendizagens necessárias ao exercício de uma profissão, o
trabalho com grupos favorece o processo da escolha, uma
vez que provoca freqüentes desequilíbrios em relação aos
conceitos (sobre si mesmo e os conceitos ocupacionais) já
estabelecidos e fazendo desafios através de informações a
serem exploradas. Esta mudança nos conceitos, fruto da
quebra de estereótipos, é o que a caracteriza aprendizagem
das questões sobre o trabalho e as profissões e que possibi-
lita que a escolha possa acontecer.
Com a finalidade de atender a demanda que aflui ao servi-
ço de Psicologia buscando atendimento à problemática pro-
fissional, o núcleo estruturou várias atividades, sendo que
uma das mais importantes envolve o trabalho com os acadê-
micos da instituição que pretendem a troca de curso univer-
sitário. Preocupado com a formação acadêmica de seus
alunos, o Centro Universitário FEEVALE, através do nú-
cleo de orientação estruturou uma atividade específica de
orientação profissional cujo foco principal é possibilitar um
espaço que favoreça o processo de construção da identidade
profissional. Entendemos que é função do ensino superior
não só desenvolver os conhecimentos e as competências ne-
cessárias ao exercício de uma profissão, mas também possi-
bilitar uma reflexão sobre o lugar que a profissão ocupa
dentro de um projeto de vida de cada indivíduo.
Nestes grupos, reunimos alunos da Instituição que es-
tão implicados na questão específica da troca ou tranca-

335
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

mento de curso, visando auxiliar na redução das taxas de


evasão universitária. Dentro deste mesmo contexto, além
do trabalho de atendimento à comunidade em grupos e in-
dividual, desenvolvemos uma série de atividades que visam
integrar a comunidade com a Feevale, através do atendi-
mento em orientação profissional, bem como através de
palestras desenvolvidas em escolas. Além disto, criamos um
projeto que envolve toda a estrutura da Instituição que se
abre à comunidade, divulgando cursos e atividades profis-
sionais, mostrando a estrutura da instituição, seus servi-
ços e possibilidades de práticas sociais. Nosso objetivo é de
criar um compromisso social com a comunidade, através
de ações efetivas de informação e orientação profissional
que possibilitem a discussão e a reflexão sobre a escolha e a
inserção de nossos alunos no mercado de trabalho.

A clínica-escola: Encontros e desencontros entre a clíni-


ca e a educação
No transcorrer da estruturação deste serviço, uma série
de questões foram movimentando as discussões da equipe
técnica envolvida na implantação do mesmo. Regras de fun-
cionamento, clientela a ser atendida, configuração do espa-
ço de supervisão, referenciais teóricos utilizados para
sustentar as práticas que envolvem o cotidiano do traba-
lho tiveram como eixo norteador uma pergunta que nos
parece importante e que movimenta encontros e discussões
entre profissionais, como os que agora estamos vivendo:
qual o papel da clínica-escola enquanto formador no ensi-
no de graduação em Psicologia e como poderíamos operar
como estas duas palavras que condensam múltiplos signi-
ficados: clínica e escola? O que iremos apresentar é fru-
to de uma série de reflexões. Estamos longe de poder oferecer
uma resposta à altura da complexidade deste tema, porém
tal dificuldade não nos impediu de começar esta reflexão.

336
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

A clínica-escola, como é de conhecimento de todos, ins-


tala um de seus objetos de trabalho (a atividade clínica)
sobre o sujeito e seu sofrimento, sobre o sujeito e seus obje-
tos de (in)satisfação, ou seja, sobre o sujeito e sua busca de
felicidade. Tomemos como ponto de partida, o fato de que
quem procura a clínica (o paciente) sofre, padece por algu-
ma razão que o impede ser “feliz”, imperativo cultural da
sociedade contemporânea. Tal raciocínio vale também para
as instituições que, de alguma forma, buscam nos serviços
de Psicologia, as conhecidas consultorias ou “prestação de
serviço”. De qualquer forma, quem aflui aos serviços de
Psicologia, busca uma intervenção sobre algo que no mo-
mento, falta e que lhe produz incômodo ou sofrimento. Busca
muitas vezes no saber universitário a reposta terapêutica
adequada ao seus impasses. E é sobre esta demanda que o
segundo objeto de trabalho aparece: a escola. Lidamos com o
ensino, desta forma a clínica-escola deve operar, criando con-
dições para que tanto o aluno (da clínica-escola, que deve
aprender) quanto o sujeito (ou a instituição que busca o aten-
dimento) possam formar essa relação, criando um encontro
de diferentes demandas. A demanda do conhecimento (do alu-
no) e a demanda da “felicidade” (do paciente).
Pensemos, também, que o sujeito que nos procura não co-
nhece a melhor terapêutica para aplacar a sua dor, e o aluno
também parece compartilhar desta incerteza: será a terapia
de família, a comportamental, a psicanalítica, humanista a
mais indicada para este ou aquele caso? A intervenção deve-
rá ser feita em grupo ou individual? Será necessário utilizar
medicação e em que dosagem o paciente responderá melhor?
Para estas questões, os pacientes não têm respostas e
por isso nos procuram. E os alunos, se a transmissão do
conhecimento da Psicologia tiver tidos os efeitos espera-
dos, deveriam ter muito cuidado ao tentar construir estas
respostas. Voltemos nosso olhar então para aqueles que de

337
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

alguma forma são os detentores do saber, a equipe técnica.


Para esta, resta a decisão e os riscos da intervenção pro-
posta. Falo de riscos porque todos sabemos que os alunos
em formação não podem ser responsabilizados por uma
“atuação” não desejada. A equipe técnica, então, deve se
perguntar e decidir como será feito o atendimento à deman-
da e também sustentar, com o aluno, um espaço para que
ele possa seguir perguntando-se: quem é este sujeito? de
que dor está falando? qual o lugar do terapeuta, do psicólo-
go, nesta relação? quais os limites e as possibilidades do
trabalho “psi”?
Todos conhecemos, pelo menos teoricamente, que a ciên-
cia “psi” carece como todo o discurso científico de um saber
totalizante. Um saber que dê conta de responder a todas as
perguntas e desta forma ofereça a garantia da idealizada fe-
licidade ao paciente, cliente. Os diferentes paradigmas teó-
ricos que norteiam o exercício da Psicologia não respondem
totalmente a este sujeito que padece do ideal contemporâneo
de normalização e “felicidade”.

O sofrimento psíquico manifesta-se atualmente sob a forma


da depressão. Atingido no corpo e na alma por esta estranha
síndrome em que se misturam a tristeza e a apatia, a busca
da identidade e o culto de si mesmo, o homem deprimido
não acredita mais na validade de nenhuma terapia. No en-
tanto, antes de rejeitar todos os tratamentos, ele busca de-
sesperadamente vencer o vazio de seu desejo. Por isso passa
da psicanálise para a psicofarmacologia e da psicoterapia
para a o homeopatia, sem se dar tempo de refletir sobre a
origem de sua infelicidade (ROUDINESCO, 2000, p. 13).

Muitas vezes, as práticas “psi” se mostram ineficazes


em relação a tamanha demanda de “felicidade” e produção.
Produção de conhecimento para o aluno e de “felicidade”

338
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

para o paciente. Dois sujeitos que polarizam a relação clí-


nica e a escola e que são os integrantes deste cotidiano,
com o qual a equipe técnica (docentes e supervisores) deve
lidar. A clínica-escola, enquanto local de formação deve sus-
tentar, através do difícil e desafiante espaço da supervisão,
este sujeito, também capturado pelo discurso social: o alu-
no da Psicologia (também cliente da clínica-escola?). Mui-
tas vezes, enquanto docentes podemos escutar do aluno, quer
no espaço da sala de aula quer no espaço da supervisão, seu
descontentamento por não poder atender a queixa de insa-
tisfação da comunidade frente às intervenções da Psicolo-
gia. E como se o trabalho do psicólogo, carece de valor uma
vez que não tem como satisfazer totalmente a quem lhe pro-
cura. Resta então, perguntar-nos: como ensinar o aluno a
trabalhar com o sujeito insatisfeito e por isso infeliz se o
próprio aluno muitas vezes queixa-se desta mesma insatis-
fação frentes as intervenções “psi”? Como vencer e ultra-
passar o discurso científico que promete, mesmo que de forma
velada, atender a demanda de satisfação da sociedade?

Na nossa sociedade, a ciência propõe-nos a promessa de que,


mais cedo ou mais tarde, ela será capaz de produzir o objeto
completamente adequado a nossa satisfação (JERUSALINSKY,
2000, p.40).

Neste momento, é que nos parece fundamental o espaço


do trabalho interdisciplinar enquanto equipe de formação
acadêmica nas clínicas-escolas. A interdisciplinaridade
como uma premissa do trabalho desenvolvido no serviço de
Psicologia apresenta-se com uma possibilidade diferencia-
da de intervenção em saúde não pelo fato de apresentar uma
multiplicidade de discursos teóricos apoiados em paradigmas
diferentes e práticas profissionais diferenciadas, mas sim,
como aponta Vargas (2003) “pelas dúvidas, as questões sem

339
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

respostas, os diagnósticos e terapêuticas, muitas vezes, ine-


ficientes, que uma vez colocadas em debate, dão curso e den-
sidade as discussões clínicas”.
Os vários profissionais do ensino da clínica, mesmo quan-
do apresentam a mesma graduação são atravessados por
paradigmas teóricos diferenciados e testemunham algo que
aparece no cotidiano do trabalho “psi”: a inexistência de
uma prática clínica única e de um saber totalizante que
possa desvendar totalmente o sofrimento e desta forma ofe-
recer-lhe “cura” idealizada.
Em uma clínica escola vemos forçosamente impelidos a
trabalhar com a formação de profissionais que vão em al-
gum momento deparar-se com as questões subjacentes a
este movimento que configura o panorama da saúde em
nosso País e com os impasses da clínica frente ao sujeito
contemporâneo. No cotidiano da clinica-escola sofrimento
psíquico, demandas de intervenções terapêuticas diferencia-
das misturam-se com ensino de graduação, supervisão de
trabalho clínico, pesquisa e busca de “novos dispositivos
terapêuticos a serem utilizados em situações limites, onde
as práticas disponíveis não dão conta dos desafios atuais”.
(VARGAS, 2003, p.12).

A questão da interdisciplinaridade
Na construção deste Serviço nos vimos confrontados em
determinado momento com uma questão: como trabalhar em
parceria, dentro dos diversos Núcleos, e das especificidades
de cada um, sem fragmentar o olhar e, por conseqüência, o
sujeito que nos procura? Tentando dar conta dessas inquie-
tações, iniciamos, nas nossas reuniões, uma série de dis-
cussões sobre como poderíamos, na nossa prática,
contemplar uma abordagem interdisciplinar.

340
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

Entendemos a interdisciplinariedade, conforme nos


aponta Almeida Filho (1997),

como estrutural, havendo reciprocidade, enriquecimento


mútuo, com uma tendência à horizontalização das relações
de poder entre os campos implicados. Exige a identificação
de uma problemática comum, com levantamento de uma
axiomática teórica e/ou política básica de uma plataforma
de trabalho conjunto, colocando-se em comum os princípios
e conceitos fundamentais, esforçando-se para uma decodifi-
cação destes conceitos, e desta forma gerando uma fecunda-
ção e aprendizagem mútua, que não se efetua por simples
adição ou mistura, mas por uma recombinação dos elemen-
tos internos (p. 13).

Nesta perspectiva, pudemos começar um trabalho no


qual, apesar de não haver uma homogeneidade de referen-
ciais teóricos, tem sido possível trabalhar a partir de uma
certa horizontalidade, ou seja, onde nenhum saber é hege-
mônico ou totalizante, não dando conta sozinho da comple-
xidade da situação a ser abordada.
No que diz respeito ao atendimento com crianças, esta
questão fica muito evidente, pelo fato de que um adequado
trabalho clínico com estes sujeitos requer um enfoque, no
mínimo, interdisciplinar1, pois no caso da infância fica ain-
da mais evidente a impossibilidade de um único profissio-
nal abarcar todo o conhecimento possível e necessário para
compreender as vicissitudes deste pequeno sujeito em de-
senvolvimento.
Apesar de vivermos em tempos de globalização, os avan-
ços científicos e técnicos não produziram os efeitos espera-
dos no que diz respeito a alguns importantes aspectos,
1
Aqui nos referimos a um outro enfoque possível, o transdisciplinar, neste trabalho não será possível
desenvolver uma discussão sobre a diferença entre as perspectivas interdisciplinar e transdisciplinar,
embora seja uma discussão bastante interessante e atual.

341
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

embora, é verdade, conseguiram prolongar sobremaneira a


vida humana. Entretanto, vimos que, com o incremento das
especialidades houve a tendência a uma fragmentação do
sujeito, o que trouxe algumas conseqüências importantes
para os diversos campos, principalmente no que diz respei-
to a subjetividade humana. Logo, o que mais facilmente se
encontra nos trabalhos desenvolvidos por equipes, são mon-
tagens multiprofissionais que constituem meras justapo-
sições de diferentes especialistas.
Frente a dúvida, à diferença de paradigma teórico e das
abordagens terapêuticas associadas a estes paradigmas, o
trabalho interdisciplinar, coloca para a equipe de profissio-
nais envolvidos, uma questão que diz respeito a forma como,
enquanto equipe, lidamos com a questão do saber de ordem
profissional e com a possibilidade de ir “para além da riva-
lidade imaginária e da realização narcísica” (Rinaldi 1996,
p. 23).
É desta possibilidade de confrontar-se com o limite de seu
próprio saber enquanto profissional que se articula a possi-
bilidade e a condição do trabalho interdisciplinar. Iribarry,
(2002), falando sobre a formação das equipes que preten-
dem um trabalho interdisciplinar aponta para algo que ele
coloca como sendo “a visita ao saber vizinho”. Em suas
próprias palavras, encontramos esta condição do trabalho
interdisciplinar, que ao colocar o reconhecimento de sua
possibilidade enquanto profissional, instala também a li-
mitação da sua intervenção:

“é preciso que estes profissionais, fundamentalmente este-


jam reciprocamente situados em sua área de origem e na
área de cada um dos colegas... é preciso que o psicólogo, por
exemplo, seja introduzido na área de seu colega assistente
social e na área de seu colega psiquiatra e vice-versa. Ade-
mais é preciso que cada problema não solucionado seja leva-

342
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

do para uma área vizinha e, assim submetido à luz de um


novo conhecimento (IRIBARRY, 2002, p. 80)”.

Um trabalho interdisciplinar somente é possível

“quando se gera uma tradição de trabalho conjunto que per-


mita aos profissionais se transmitirem reciprocamente os
conhecimentos de suas respectivas especialidades. Somente
quando se conhecem os fundamentos e o modo de operar da
outra área é que se torna possível um trabalho interdiscipli-
nar” (JERUSALINSKY, 1998, p. 56).

Trabalhar através de uma prática interdisciplinar tor-


nou-se uma premissa em nosso serviço, uma vez que lida-
mos com formação de profissionais que irão atuar no
complexo campo da saúde mental. Panorama de dificulda-
des que vai desde a falta de verbas para a saúde à escassez
de técnicos para o trabalho, a intervenção em saúde mental
se constituiu no cenário necessário para atuação da inter-
disciplinariedade. Eleita como a única possibilidade no tra-
balho da saúde mental, principalmente em saúde pública, a
atuação interdisciplinar constitui-se no espaço de desafio
uma vez que contradiz o espírito sectário, avesso ao livre
debate de idéias necessário ao entendimento do sofrimento
psíquico e de suas vicissitudes (COSTA, 1989). A busca por
um saber hegemônico sobre o sujeito, fruto do discurso cien-
tífico atual, contaminou as teorias “psi” e aprisionou a clí-
nica em conjunto de atividades fechadas em torno de seu
próprio paradigma. Desta forma, a abordagem interdisci-
plinar aparece com ferramenta indispensável ao trabalho
clínico, uma vez que na relativização dos saberes e questio-
namento das abordagens totalitárias, encontramos uma
saída para os impasses que a clínica nos coloca.
Esta é a nossa aposta e o desafio que desejamos trilhar.
Mas, para que isso seja possível, precisamos de um tempo
343
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

de amadurecimento teórico e de trabalho em conjunto, su-


portando que o saber é sempre parcial e que é a falta que
nos convoca a seguir desejando em busca de novas aprendi-
zagens.

Referências

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Ciência e Saúde Coletiva, Abrasco,v. 2, nº. 2, p. 5-20, 1997.
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o trabalho de inclusão In: Autismo e Educação. Porto Alegre:
Artes Médicas, 2002.
JERUSALINSKY, A. Multidisciplina, interdisciplina e transdisciplina
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simbólico do trabalho e o sujeito contemporâneo. Porto
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MULLER, M. Orientacion educativa y tutuoria. Buenos Aires:
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OSORIO, L.C. Psicologia Grupal. Porto Alegre: Artmed, 2003.
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2000.
VARGAS, F. Transdiciplinaridade: para quê? Trabalho de
Conclusão do Curso de Especialização em Atendimento Clínico -
UFRGS, 2003. Mimeografado.

344
16. IMPLEMENTAÇÃO DE UM ESTÁGIO
EM PSICOLOGIA HOSPITALAR: EM BUSCA
DE UM TRABALHO INTERDISCIPLINAR
NA ASSISTÊNCIA AO CÂNCER
HEMATOLÓGICO

Érika Arantes de Oliveira


Manoel Antônio dos Santos
Ana Paula Mastropietro

O Transplante de Medula Óssea (TMO) vem se consti-


tuindo atualmente como uma alternativa eficaz no tratamento
de diversos tipos de neoplasias e doenças hematológicas,
quando as terapêuticas convencionais não oferecem bom
prognóstico (LESKO, 1990).
Essa modalidade terapêutica tem sido realizada na Uni-
dade de Transplante de Medula Óssea, do Hospital das Clí-
nicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, desde
1993, mediante o trabalho de uma equipe multidisciplinar
composta pelos proissionais da enfermagem, pela equipe
médica, por uma assistente social, uma nutricionista, uma
cirurgiã-dentista, uma fisioterapeuta, uma terapeuta ocu-
pacional e uma psicóloga.
A inclusão do psicólogo nas equipes de cuidados oncoló-
gicos está relacionada diretamente com o reconhecimento
da interação existente entre necessidades físicas e psicoló-
gicas, o que acabou por conduzir à estruturação de aborda-
gens multidisciplinares para o manejo das manifestações
sintomatológicas que esses pacientes podem desenvolver
(ROMANO, 1999).
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Trata-se de um fenômeno recente no campo de atuação


profissional do psicólogo. Somente a partir do início da dé-
cada de 1990 é que houve uma significativa expansão dos
profissionais de Psicologia no ambiente hospitalar, sendo
que na atualidade muitos hospitais, espalhados por todo o
Brasil, contam com a colaboração do serviço psicológico,
de acordo com Carvalho (1998).
No caso específico do trabalho em uma Unidade de Trans-
plante de Medula Óssea, segundo Veit e Barros (1998), o
papel do profissional de Psicologia é muito amplo nesse
contexto de dor e sofrimento humano. As possibilidade de
intervenção têm início antes da internação e não se res-
tringem somente ao paciente, estendendo-se ainda aos fa-
miliares, acompanhantes e profissionais da equipe.
Tendo em vista estas necessidades de suporte psicológi-
co, foi implantado em janeiro de 2002 na Unidade de Trans-
plante de Medula Óssea (TMO) um estágio curricular para
alunos do 4º e 5º anos do curso de Psicologia da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-
USP), com o propósito de proporcionar uma experiência de
exercício do papel profissional de psicólogo no contexto de
uma intervenção psicológica junto aos pacientes e seus cui-
dadores familiares, vivenciado no trabalho em equipe mul-
tidisciplinar.

Objetivo
O presente trabalho tem como objetivos descrever a es-
truturação do estágio curricular nos dois primeiros anos
(2002-2004) de sua implementação, bem como o de apresen-
tar resultados oriundos de estudos que objetivaram avaliar
a efetividade de algumas modalidades de intervenção im-
plementadas.

346
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

ESTRUTURAÇÃO DO ESTÁGIO
A estratégia psicoterapêutica adotada é de duração bre-
ve, uma vez que a proposta é tratar aspectos emocionais
associados ao enfrentamento da enfermidade crônica, bus-
cando-se delimitar e circunscrever o foco da intervenção a
problemas relacionados a essa questão, visando auxiliar no
desenvolvimento de estratégias de atendimento psicológi-
co mais eficazes (FIORINI, 1976).
O estágio propõe-se a familiarizar o aluno de Psicologia
com técnicas psicoterápicas numa abordagem psicodinâmi-
ca, fundamentada na compreensão do que está ocorrendo
no “aqui e agora”. Trabalha-se no sentido de expandir o
nível de consciência do paciente acerca de sua problemáti-
ca, conduzindo-o em direção a uma maior compreensão de
sua própria situação emocional (insight).
Vale a pena ressaltar que a psicoterapia não é a única
forma de atenção recebida pelos participantes. Busca-se
promover a integração de abordagens numa perspectiva
multidisciplinar e de integralidade das ações de saúde, em
uma perspectiva de prevenção e promoção de saúde.

ATIVIDADES DESEMPENHADAS
O estágio foi estruturado segundo alguns eixos nortea-
dores: o primeiro semestre é dedicado ao atendimento na
enfermaria e o segundo na Casa de Apoio aos pacientes que
receberam alta hospitalar.

ENFERMARIA
O paciente é internado em quarto exclusivo para ele e
um acompanhante, onde permanecerá em média 40 dias.
Trata-se de um ambiente isolado, sendo que o ar é filtrado
e todos objetos e alimentos devem ser esterilizados, além
do que se faz necessário o uso de paramentação (avental,
máscara e lavagem das mãos) de todos que entrarem no

347
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

quarto. Nesta fase receberá o condicionamento quimiote-


rápico com o objetivo de promover uma imunossupressão
intensa e/ou a eliminação das células malignas. Inúmeros
são os efeitos colaterais desses agentes quimioterápicos:
náuseas, vômito, diarréia, queda de cabelo, dores de cabe-
ça, dentre outros (WELLISH; WOLCOTT, 1994).
A intervenção psicológica durante a internação visa
colaborar para a preservação da integridade psíquica do pa-
ciente. As atividades realizadas neste período são descritos
a seguir.

1) Atendimentos individuais
Na enfermaria o estagiário torna-se responsável pelo
acompanhamento de um caso, intervindo junto ao leito. Os
atendimentos ocorreram no mínimo três vezes por semana
durante todo o período da internação do paciente (de 30 a
40 dias). A importância deste apoio é reconhecida não so-
mente pelo paciente, mas também pelos demais integran-
tes da equipe multiprofissional, para os quais a condição
psíquica do paciente interfere na evolução clínica do mes-
mo (TORRANO-MASSETTI; OLIVEIRA; SANTOS, 2000).

2) Co-coordenação de um grupo de apoio ao familiar


O estagiário de Psicologia atua como co-coordenador de
um grupo de apoio. Esse grupo, composto por no máximo
cinco e no mínimo três familiares, é aberto e coordenado
pela psicóloga e pela terapeuta ocupacional do serviço, com
duração de uma hora e freqüência semanal. Essa estraté-
gia de intervenção grupal é oferecida para os familiares-
acompanhantes durante todo o período de internação do
paciente. Esse grupo tem tido boa receptividade por parte
dos acompanhantes, principalmente pela oportunidade que
encontram de expressarem livremente suas dificuldades, ali-
viando suas tensões, e de compartilharem suas emoções com

348
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

pessoas que vivenciaram a mesma situação, ao mesmo tem-


po em que se sentem compreendidos e amparados por pro-
fissionais da equipe (OLIVEIRA; TORRANO-MASETTI;
SANTOS, 2000).

3) Integração em um grupo semanal de reflexão para os


profissionais da Unidade
O estagiário participa ainda de um grupo de reflexão para
os profissionais da UTMO. Trata-se de um grupo coorde-
nado por um psiquiatra não pertencente à equipe fixa do
TMO, com freqüência semanal e duração de uma hora. Neste
espaço são discutidas as experiências, angústias e conquis-
tas da equipe. De acordo com Contel et al. (2000), o grupo
de reflexão é uma proposta de intervenção altamente efi-
caz, uma vez que pode se constituir como uma possibilidade
de elaboração e crescimento diante da sobrecarga emocional
a que são submetidos os profissionais no cotidiano de uma
clínica de alto estresse.

4) Participação na discussão dos casos durante as visitas


clínicas
Tratam-se de reuniões diárias com a equipe de saúde,
momento em que são discutidos os diferentes aspectos da
assistência ao paciente. Participam destas reuniões todos
os membros da equipe. Neste momento a estagiário discute
o caso que está sob sua responsabilidade com os demais
profissionais. Além do caráter informativo, essencial para a
compreensão do quadro clínico do paciente, o aluno tem a
oportunidade de observar e de aprender a se colocar em uma
reunião clínica que envolve a troca de conhecimentos e opi-
niões de diferentes especialidades, em um exercício de inter-
disciplinaridade, segundo Torrano-Massetti, Oliveira e
Santos (2000).

349
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

5) Participação nas supervisões


As supervisões com a psicóloga responsável pelo estágio
são semanais, com duração de uma hora, sendo que uma
vez por mês ocorre uma discussão dos casos atendidos com
a profissional de terapia ocupacional e suas estagiárias,
visando o intercâmbio de experiências e aprendizagens.

FASE POSTERIOR AO TMO


Depois da saída da enfermaria, a qualidade de vida dos
transplantados sofrerá as implicações do procedimento, obri-
gando-os a enfrentar limitações físicas, dor, sensação de dis-
torção da imagem corporal e as conseqüências dos efeitos
colaterais dos tratamentos: queda de cabelo, escurecimento
da pele, emagrecimento, além das alterações nos seus hábi-
tos de vida, tais como a perda ou prejuízo da capacidade pro-
dutiva (trabalho e escola), das funções sexuais e da fertilidade
(como efeito colateral de algumas quimioterapias ou radio-
terapias), bem como a perda da independência e de alguns
papéis sociais (COOPER; POWELL, 1988).
Em função dessas dificuldades de adaptação fora do con-
texto hospitalar, impõe-se a necessidade de um suporte psico-
lógico após a alta da enfermaria. O apoio e suporte acontecem
nos retornos ambulatoriais e na casa do grupo de apoio ao
paciente transplantado de medula óssea (GATMO), próxima
ao hospital, que oferece abrigo, alimentação e apoio psicos-
social aos pacientes e seus acompanhantes. São realizadas
as seguintes atividades pelo estagiário de psicologia des-
critas a seguir.

1) Atendimentos individuais ambulatoriais


Trata-se da continuidade do atendimento iniciado na
enfermaria, que se estende até serem completados os cem
dias pós-TMO. Esses atendimentos são realizados ambula-
torialmente e sua freqüência varia em função da necessida-

350
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

de de cada paciente. Encerrado o período dos cem dias o


psicólogo decide qual é a conduta mais adequada a ser to-
mada: a alta, o retorno livre (no qual o paciente pode recor-
rer ao atendimento quando sentir necessidade) ou um
encaminhamento para outro serviço que preste assistência
psicológica (TORRANO-MASSETTI; OLIVEIRA; SANTOS,
2000).

2) Oficinas terapêuticas
Tendo em vista a queixa de inatividade dos pacientes após
o TMO, são realizadas oficinas terapêuticas com a finali-
dade primordial de estimular a capacidade produtiva, socia-
lização, expressão e troca de experiências, oferecendo um
espaço de acolhimento e aprendizado. Optou-se pela ofici-
na de mosaico, devido à facilidade do aprendizado da técni-
ca e da possibilidade de venda das peças, além de seu aspecto
lúdico. As oficinas ocorrem duas vezes por semana, com a
duração de duas horas, sendo integrada pelos pacientes,
acompanhantes, estagiários de Terapia Ocupacional e Psi-
cologia, sob a orientação e supervisão da terapeuta ocupa-
cional e da psicóloga da Unidade de TMO. Os produtos ali
produzidos são comercializados e a verba é utilizada para a
manutenção da própria oficina. Estudos de avaliação dos
resultados obtidos até o momento evidenciam que o espaço
terapêutico das oficinas é um recurso importante no resga-
te do potencial produtivo dos pacientes transplantados
(MASTROPIETRO et al., 2004).

Discussão
A psico-oncologia surge da necessidade de se oferecer
apoio emocional ao paciente com câncer, assim como aos
seus familiares e aos profissionais envolvidos no tratamen-
to (ROMANO, 1999).
351
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

De acordo com Carvalho (1998), a união entre a Psicolo-


gia e a Oncologia já tem produzido resultados amplamente
reconhecidos através dos aumentos significativos da sobre-
vida, melhora da qualidade de vida e do fortalecimento psi-
cológico para encarar a terminalidade quando o tratamento
não logra êxito.
O apoio psicológico em uma Unidade de Transplante de
Medula Óssea, se adequadamente estruturado, apresenta-
se como um recurso que amplia os limites de ação da equi-
pe médica no atendimento das necessidades que surgem em
cada momento da trajetória do paciente oncológico, que se
inicia no diagnóstico, percorre o tratamento e pode alcan-
çar as situações posteriores de adaptação do paciente às
seqüelas concretas ou subjetivas com que ele se depara
(VEIT; BARROS, 1998).
Considerando tais afirmações, buscou-se sistematizar
um estágio curricular na Unidade de Transplante de Me-
dula Óssea do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medi-
cina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
(UTMO-HCFMRP-USP) para alunos do 4º e 5º anos do cur-
so de psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Le-
tras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP), no período de 2002
a 2004, respeitando-se os limites e possibilidades concretas
do contexto institucional em que ele se acha instalado.
A estruturação do estágio visou possibilitar que o alu-
no-estagiário atenda os pacientes e seus familiares nas di-
ferentes etapas do transplante, nos diferentes ambientes
de tratamento (enfermaria, ambulatório e casa de apoio),
além de participar das discussões e reflexões da equipe mul-
tidisciplinar.
Esta experiência com o trabalho multi e interdiscipli-
nar foi muito valorizada no desenrolar do estágio e os re-
sultados foram bastante satisfatórios, segundo a percepção
dos estagiários beneficiários e da equipe.

352
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

Referências

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Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

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354
17. ATUAÇÃO EM PSICO-ONCOLOGIA:
ATENÇÃO INTERDISCIPLINAR A MULHERES
MASTECTOMIZADAS

Manoel Antônio dos Santos


Murilo dos Santos Moscheta
Rodrigo Sanches Peres
Fernanda Pessolo Rocha

1. CÂNCER DE MAMA: ETIOLOGIA, DIAGNÓSTICO E


TRATAMENTO
O câncer de mama representa uma das maiores causas
de morte da população feminina no mundo todo e é conside-
rado o tipo de neoplasia mais freqüente em diversos países.
Além disso, o número de novos casos de câncer de mama
aumenta a cada ano, de modo que se tornou uma preocupa-
ção crescente para os serviços de saúde pública. A doença
em questão se caracteriza basicamente pela ocorrência de
tumores malignos que se formam em virtude da reprodu-
ção agressiva e incontrolável de células que passaram por
um complexo processo de transformações desordenadas
(HAAGENSEN, 1989). Assim como ocorre com os demais
tipos de neoplasias, o câncer de mama apresenta diversas
condições associadas, dentre as quais se destacam mais es-
pecificamente o envelhecimento, a existência de anteceden-
tes familiares de casos da doença, a menopausa tardia e a
exposição excessiva à radiação ionizante (LOPES et al.,
1996; BRASIL, 1996a).
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Quando diagnosticado precocemente, o câncer de mama


pode ter seus efeitos atenuados, pois as chances de controle
e eliminação do tumor aumentam significativamente. A
mamografia e o auto-exame da mama se afiguram como os
principais meios de detecção precoce da doença 1996b). No
entanto, a mamografia possui um custo financeiro elevado
e não é disponibilizada adequadamente pelos serviços pú-
blicos de saúde no Brasil, o que dificulta sua utilização por
mulheres com baixo poder aquisitivo. Já o auto-exame da
mama, a despeito de ser econômico, rápido, eficiente e rela-
tivamente simples, ainda é praticado de forma restrita. De
acordo com Gonçalvez e Dias (1999), na realidade nacional
isso ocorre em função de uma série de fatores, dentre os
quais de destacam o sentimento de incapacidade para reali-
zar a palpação, por um lado, e o receio de encontrar nódu-
los na mama, por outro. Assim sendo, muitas vezes as
mulheres acometidas por câncer de mama somente identi-
ficam a ocorrência da doença em estágios tardios de sua
evolução. Conseqüentemente, seu tratamento torna-se con-
sideravelmente mais complexo.
Atualmente, a mastectomia, a quimioterapia e a radio-
terapia são as mais importantes modalidades de tratamen-
to para o câncer de mama. A primeira envolve a retirada
cirúrgica do tumor e da mama (total ou parcialmente), ao
passo que a segunda e a terceira são conduzidas mediante o
emprego de compostos químicos antineoplásicos e de feixes
de radiações ionizantes, respectivamente (BRASIL, 1993).
Tais recursos possuem uma eficácia considerável, uma vez
que são capazes de controlar o tumor primário e suas com-
plicações. Cumpre assinalar, contudo, que geralmente a
combinação de mais de uma modalidade de tratamento
mostra-se a estratégia terapêutica mais indicada, visto que
aumenta a possibilidade de cura, diminui as perdas anatô-
micas e preserva a estética e a função da mama (BRASIL,

356
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

1996b; PINOTTI et al., 2000; SOUZA; HEGG; AGUIAR,


2000).

2. IMPACTO PSICOSSOCIAL DO CÂNCER DE MAMA E DE


SEU TRATAMENTO
Diversos estudos apontam que o câncer de mama se des-
taca como a doença mais temida pelas mulheres, uma vez
que compromete não somente a integridade física, mas tam-
bém a relação que a paciente estabelece com seu corpo e
com sua mente, pois incide sobre o símbolo corpóreo da fe-
minilidade, da beleza, da sexualidade e da maternidade
(SANT´ANNA, 1997; ALMEIDA et al., 2001; ROSSI; SAN-
TOS, 2003). Ademais, o termo “câncer”, a despeito dos no-
táveis avanços técnico-científicos da oncologia, ainda é visto
muitas vezes não apenas como um sinônimo de dor e dete-
rioração física, mas também como uma inapelável senten-
ça de morte (CARVALHO, 2002). Assim sendo, a literatura
científica especializada indica que o diagnóstico do câncer
de mama geralmente é acompanhado do temor da mutila-
ção, do sofrimento e da morte, de modo que não raro engen-
dra a eclosão ou a acentuação de conflitos psicológicos
(NORTHOUSE, 1992; HABER, 1994; DAUNE, 1995; PAYNE;
SULLIVAN; MASSIE, 1996; McBRIDE et al., 2000).
O tratamento do câncer de mama também tende a gerar
como subproduto uma acentuada mobilização afetiva.
Pesquisas recentes indicam que tal mobilização se torna
particularmente marcante quando o tratamento envolve a
mastectomia, pois a mutilação mamária decorrente do em-
prego de tal modalidade terapêutica geralmente é vivencia-
da pela mulher como uma perda irreparável. Segundo
Almeida et al. (2001), isso ocorre porque a mastectomia –
seja ela radical ou conservadora, unilateral ou bilateral –
provoca uma ruptura da mulher com sua identidade femi-
nina e compromete sua imagem corporal. Além disso, pre-

357
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

judica o exercício da sexualidade e gera sentimentos de in-


ferioridade e medo de rejeição por parte do parceiro (MASSIE;
HOLLAND, 1991; ARAN et al., 1996; GIMENEZ; QUEIROZ,
1997).
Vale destacar ainda que a mastectomia não raro se des-
dobra em limitações físicas significativas e restringe a ca-
pacidade de movimentação corporal da mulher (PINOTTI
et al., 2000; SOUZA; HEGG; AGUIAR, 2000). Conseqüen-
temente, dificulta a realização de uma série de atividades
domésticas, tais como cozinhar, varrer e passar roupas. Tal
situação geralmente causa um grande incômodo à mulher,
visto que a mesma, em virtude dos condicionamentos só-
cio-culturais moldados pelas relações de gênero, ainda sen-
te-se a principal responsável pela manutenção da limpeza e
da ordem da casa. Por fim, cumpre assinalar que não raro a
mastectomia impede a mulher de continuar exercendo suas
atividades profissionais. Nesses casos, o impacto do trata-
mento parece ser ainda mais acentuado, pois a perda da
capacidade produtiva parece despertar um doloroso senti-
mento de inutilidade social (JACOBSEN; HOLLAND, 1990;
O´MAHONEY; CARROLL, 1997; DUARTE; ANDRADE,
2003).
Ressalte-se também que, apesar de serem menos agres-
sivas, as demais modalidades terapêuticas utilizadas no
tratamento do câncer de mama também causam uma debi-
lidade física considerável e geram efeitos colaterais diver-
sos, dentre os quais se destacam a queda dos cabelos, o
escurecimento da pele, o emagrecimento, o surgimento de
edemas e a infertilidade (BRASIL, 1996b) Tais efeitos cola-
terais conferem uma maior visibilidade à doença, transfor-
mam o cotidiano da mulher e também afetam sua
feminilidade e sua imagem corporal, de maneira que não
raro resultam em constrangimento nos contatos sociais,
familiares e afetivos. Evidencia-se, assim, que o tratamen-

358
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

to do câncer de mama, mesmo se realizado apenas median-


te a utilização de radioterapia e quimioterapia, tende a cau-
sar um impacto psicossocial considerável.
A chamada Síndrome de Dámocles – isto é, o temor la-
tente e constante de que a doença, a qualquer momento e
por qualquer motivo, se instale novamente – é considerada
pelos autores especializados como uma das principais re-
percussões psicossociais do câncer e de seu tratamento
(KOOCHER; O’MALLEY, 1981; VALLE, 1991). Pode-se
cogitar que a reincidência do câncer, seja ele de mama ou de
qualquer outro tipo, possui um caráter tão temível porque
simbolicamente representa o fracasso dos esforços empe-
nhados em controlar a doença e coloca o portador nova-
mente frente à própria finitude. Para mulheres portadoras
de câncer de mama, a possibilidade da recidiva da enfermi-
dade parece ser especialmente angustiante, pois é vivencia-
da como uma nova ameaça ao corpo já mutilado pelo
tratamento e evidencia de forma contundente a fragilidade
que marca a condição humana (MASSIE; HOLLAND, 1991;
MORALES et al., 1997; ALMEIDA et al., 2001).
Diante do exposto, pode-se propor que o câncer de mama
e seu tratamento representam, como destaca Wanderley
(1994), um trauma psicológico para a maioria das mulhe-
res, pois as mesmas inevitavelmente se vêem frente à ne-
cessidade de enfrentar a perda da vida “normal” que
desfrutavam antes da ocorrência da enfermidade, de convi-
ver com as alterações corporais resultantes das modalida-
des terapêuticas adotadas e de repensar metas, projetos e
sonhos futuros. Conseqüentemente, a assistência psicoló-
gica a pacientes acometidas pelo câncer de mama tem sido
cada vez mais valorizada nas equipes multidisciplinares de
atendimento voltadas a essa população (MASSIE; HOLLAND;
STRAKER, 1990; WALKER; EREMIN, 1996; SPIEGEL et
al., 1999). No entanto, nota-se que, ainda nos dias de hoje,

359
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

os serviços de saúde pública do Brasil privilegiam, na maio-


ria das vezes, os aspectos físicos da doença e de seu trata-
mento e colocam em segundo plano os aspectos psicossociais
das mulheres. Com o intuito de preencher essa lacuna, uma
equipe de Psicologia foi recentemente incorporada a um
serviço público e gratuito voltado à reabilitação de pacien-
tes acometidas pelo câncer de mama.

Objetivo
O presente estudo tem como objetivo descrever a estru-
tura e o funcionamento da referida equipe de Psicologia,
contextualizando o serviço basicamente em termos do am-
biente institucional no qual a mesma encontra-se inserida,
da população-alvo assistida e das modalidades de atendi-
mento oferecidas.

Características gerais do serviço


A referida equipe de Psicologia encontra-se vinculada ao
Núcleo de Ensino, Pesquisa e Assistência na Reabilitação de
Mulheres Mastectomizadas (REMA). Sediado na Escola de
Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Pau-
lo (EERP-USP), o serviço em questão foi criado em 1989 e
funciona às segundas, quartas e sextas-feiras, das 8:00 às
12:00 horas. Uma equipe multiprofissional – composta ori-
ginalmente por enfermeiras, fisioterapeutas e terapeutas ocu-
pacionais – conduz o REMA e assiste pacientes encaminhadas
por profissionais de saúde da cidade e região ou por usuárias
do serviço que se preocupam com o apoio a outras mulheres
que vivenciam situações comuns. Em média o REMA acolhe
100 casos novos por ano e presta assistência a outras 200
pacientes registradas em anos anteriores.

360
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

O objetivo básico do REMA é prestar assistência multi-


disciplinar gratuita a mulheres mastectomizadas e seus fa-
miliares. Não obstante, preocupa-se também em treinar e
capacitar profissionais, alunos de graduação e pós-gradua-
ção em Enfermagem e outra áreas da saúde para a reabilita-
ção de pacientes mastectomizadas, em prestar assessoria
especializada a outras instituições de saúde e em desenvol-
ver programas de prevenção do câncer, sobretudo mamário e
ginecológico. Evidencia-se, portanto, que o REMA parte do
pressuposto de que a assistência em saúde não deve se limi-
tar apenas aos cuidados anátomo-patológicos, mas sim con-
templar, a partir de uma abordagem biopsicossocial, a
integralidade e as especificidades das pacientes (MAMEDE,
1991). Com o intuito de completar a equipe multidisciplinar
original, a direção do REMA convidou alguns profissionais
da área de saúde um plano de atividades e a colocá-lo em
prática junto à clientela do serviço.

Características gerais da população


assistida
As usuárias do REMA são, em sua maioria, de classe
econômica baixa, têm em média 50 anos de idade e são pro-
venientes de Ribeirão Preto e de outras cidades da região.
A despeito de grande parte delas ter sido mastectomizada
em função da ocorrência do câncer de mama, o perfil clínico
da população-alvo do serviço é diversificado, pois parte da
clientela assistida foi recém-submetida à modalidade terapêu-
tica em questão, ao passo que outra parte finalizou o trata-
mento médico da doença há vários anos e freqüenta o serviço
com o intuito de evitar a ocorrência de complicações tardias.
Além disso, levando-se em consideração o tipo de intervenção
cirúrgica a qual as pacientes foram submetidas, nota-se que as
mulheres em questão são consideravelmente heterogêneas:

361
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

o tratamento da maioria delas envolveu a realização de ci-


rurgias radicais, mas o número de casos em que o recurso
terapêutico utilizado foi a cirurgia conservadora tem se ele-
vado consideravelmente nos últimos anos.

Características gerais da equipe de


Psicologia
Atualmente a equipe de Psicologia do REMA é coorde-
nada por um docente do Departamento de Psicologia e Edu-
cação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-
USP) e composta por quatro psicólogos e três estagiárias.
Evidencia-se, portanto, que, assim como o próprio REMA,
a equipe de Psicologia inserida no referido serviço visa
não apenas a prestação de serviços à comunidade, mas
também a formação profissional de alunos do ensino su-
perior – mais especificamente do curso de graduação em
Psicologia. Assim, faz-se necessário caracterizar tanto as
modalidades de atendimento oferecidas pela equipe de Psi-
cologia quanto o estágio profissionalizante desenvolvido
nesse âmbito.

1. CARACTERÍSTICAS GERAIS DAS MODALIDADES DE


ATENDIMENTO OFERECIDAS
Três modalidades de atuação têm sido colocadas em prá-
tica até o momento pela equipe de Psicologia do REMA:
avaliação psicológica, intervenção psicoterapêutica indivi-
dual e grupo de apoio. A avaliação psicológica tem como
objetivo o delineamento do perfil psicológico das pacientes
e focaliza principalmente a identificação dos recursos adapta-
tivos que as mesmas dispõem para enfrentar a doença e seu
tratamento. Conduzida majoritariamente junto a usuárias
recém-inseridas no serviço, a avaliação psicológica fornece

362
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

elementos para o direcionamento da intervenção da equipe


multidisciplinar e é realizada mediante a utilização de di-
ferentes técnicas de exame psicológico, tais como entrevis-
tas semi-estruturadas, escalas, inventários e técnicas
projetivas.
As intervenções psicoterapêuticas individuais têm como
intuito básico expandir o nível de consciência que as pa-
cientes possuem acerca de sua problemática, conduzindo-
as em direção a uma maior compreensão de sua própria
situação física e emocional. A estratégia psicoterapêutica
adotada é de duração breve, uma vez que a proposta é tra-
tar de aspectos emocionais associados ao enfrentamento
da enfermidade e de seu tratamento. Assim sendo, busca-se
delimitar e circunscrever o foco da intervenção problemas
relacionados a essa questão, visando potencializar os recur-
sos adaptativos das pacientes. Os atendimentos são sema-
nais, com cinqüenta minutos de duração e são conduzidos a
partir do emprego de técnicas psicoterapêuticas de orien-
tação psicanalítica.
O grupo de apoio, implementado desde os primórdios do
REMA, possuía originalmente um enfoque essencialmente
educativo e informativo. A partir da inserção da equipe de
Psicologia, entretanto, procurou-se ampliar tal enfoque,
valorizando os aspectos emocionais, visando favorecer, a
partir da troca de informações e experiências entre as usuá-
rias do serviço, a aquisição de insights capazes de contribuir
para o desenvolvimento de recursos adaptativos latentes e
para a adoção de estratégias de enfrentamento mais efica-
zes frente à doença e seu tratamento. Na atual composição,
uma enfermeira do serviço exerce as funções de coordena-
dora do grupo e um dos psicólogos atua como co-coordena-
dor. Tem-se adotado a combinação de diferentes técnicas e
estratégias para a condução do grupo, que é aberto, inin-
terrupto, tem duração de uma hora e ocorre três vezes por
semana, às segundas, quartas e sextas-feiras.

363
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

2. CARACTERÍSTICAS GERAIS DO ESTÁGIO


Voltado a alunos regularmente matriculados no 4º ou 5º
ano do curso de graduação em Psicologia da FFCLRP-USP,
com interesse pela área clínica e da saúde e com disponibi-
lidade de cerca de oito horas semanais, o estágio oferecido
pela equipe de Psicologia do REMA tem como objetivos bá-
sicos: a) possibilitar ao estagiário a oportunidade de en-
trar em contato com a atuação profissional em intervenção
psicológica no âmbito de um programa de caráter multi-
disciplinar voltado ao atendimento de mulheres portado-
ras de câncer de mama em processo de reabilitação
pós-mastectomia e b) fornecer subsídios para o desenvolvi-
mento da identidade do psicólogo que irá atuar em psico-
oncologia e saúde mental.
Já os objetivos específicos do estágio são: (a) oferecer ao
aluno uma oportunidade de aplicação prática de técnicas
de avaliação psicológica, de manejo de grupos e de psicote-
rapia individual de orientação psicanalítica, (b) contribuir
para uma melhor compreensão dinâmica e clínica dos as-
pectos emocionais de pacientes portadoras de câncer de
mama; (c) estimular uma reflexão crítica sobre a natureza
da tarefa, o papel e as funções do psicólogo que atua em
equipe multiprofissional; (d) evidenciar as aplicações, as
potencialidades e o alcance do trabalho psicológico no con-
texto da saúde pública e (e) estimular a discussão dos prin-
cípios éticos envolvidos no atendimento psicológico – tais
como as noções de sigilo profissional, intimidade psíquica
e respeito às diferenças ao se lidar com a subjetividade
alheia.
O estagiário torna-se desde o início do trabalho um mem-
bro da equipe do REMA. Assim sendo, participa das reuni-
ões multiprofissionais, que são realizadas a cada três
semanas, às quintas-feiras à tarde. Além disso, gradativa-
mente passa a exercer as atividades que competem à equipe
de Psicologia. Dessa forma, inicialmente o estagiário atua
364
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

como observador do grupo de apoio e realiza avaliações psi-


cológicas. Posteriormente, tem sob sua responsabilidade a
condução do atendimento individual de alguns casos clíni-
cos. Por fim, poderá atuar também como co-coordenador
do grupo de apoio. Para tanto, recebe supervisões semanais
de três horas de duração dos psicólogos da equipe e suporte
teórico específico, destacando-se leituras em psico-oncolo-
gia e aspectos biopsicossociais do câncer de mama. Vale
destacar ainda que, ao iniciar o trabalho junto à equipe de
Psicologia, o estagiário deve estar fazendo sua psicotera-
pia pessoal ou pelo menos demonstrar interesse e disponi-
bilidade para tanto.

Reflexões sobre o trabalho


desenvolvido até o momento
Inicialmente a equipe de Psicologia encontrou certas difi-
culdades para se adaptar ao funcionamento do grupo de apoio
que já existia desde a criação do serviço. Isso ocorreu porque
o grupo de apoio possuía um enfoque primordialmente in-
formativo e a equipe de Psicologia considerou pertinente
privilegiar um enfoque de caráter psicoterapêutico. Notou-
se, contudo, que tal mudança foi implementada de forma pre-
cipitada, o que gerou o estranhamento das pacientes e um
certo mal-estar entre alguns integrantes equipe multidisci-
plinar. Desse modo, tem-se procurado atualmente conciliar
a organização original do grupo com a proposta psicotera-
pêutica da equipe de Psicologia. Assim sendo, o grupo de
apoio em sua atual configuração ainda possui um enfoque
essencialmente educativo e informativo, mas possibilita a
veiculação de conteúdos psicológicos que demandam uma es-
cuta psicoterapêutica.
As avaliações psicológicas foram bem aceitas de início
tanto pelas usuárias do serviço quanto pela equipe multi-

365
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

disciplinar e têm se mostrado relevantes no sentido de pos-


sibilitar a compreensão da individualidade de cada uma
delas. Ademais, têm fornecido elementos profícuos para o
direcionamento das intervenções colocadas em prática não
apenas pela equipe de Psicologia, mas pela equipe multi-
disciplinar como um todo. Cumpre assinalar, porém, que
a proposta inicial era executar uma avaliação psicológica
detalhada de cada uma das usuárias do serviço. Porém, tal
proposta mostrou-se inviável na prática, de modo que atual-
mente as avaliações psicológicas são desenvolvidas, na maio-
ria dos casos, apenas junto a pacientes recém-inseridas no
serviço.
As intervenções psicoterapêuticas individuais também
têm sido bem aceitas tanto pelas pacientes quanto pela equi-
pe multidisciplinar. Cumpre assinalar, contudo, que inicial-
mente poucas pacientes buscavam espontaneamente a
intervenção psicoterapêutica. Na maior parte dos casos, as
usuárias eram “encaminhadas” pela equipe multidiscipli-
nar, pelos médicos do hospital de referência ou até mesmo
por outras pacientes. Em função disso, as sessões iniciais
geralmente exigiam dos responsáveis pela psicoterapia uma
atitude ativa, empática e pouco interpretativa, uma vez que
a adoção de tais estratégias tende a favorecer o estabeleci-
mento do vínculo terapêutico. Ademais, o delineamento do
setting era enfatizado para que as usuárias pudessem com-
preender com clareza as possibilidades e limitações das in-
tervenções psicoterapêuticas individuais e, dessa forma, não
tivessem uma expectativa inadequada em relação a tal in-
tervenção.

Considerações finais
A experiência até o momento indica que o trabalho da equi-
pe de Psicologia, a despeito de ser recente e encontra-se ain-

366
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

da em processo de construção, tem sido profícuo para a equi-


pe multidisciplinar do serviço, pois tem fornecido subsídi-
os para o direcionamento das intervenções desenvolvidas
junto à população assistida. Na avaliação dos alunos, o es-
tágio tem cumprido seu objetivo de propiciar um contato
inicial com a prática psicológica no âmbito de um progra-
ma de caráter interdisciplinar voltado ao atendimento de
mulheres em processo de reabilitação pós-mastectomia.
Ademais, o trabalho da equipe de Psicologia vem sendo bem
aceito pela clientela do serviço, uma vez que o número de
pacientes que solicita espontaneamente atendimento psi-
coterapêutico individual tem aumentado consideravelmente.
Não obstante, as estratégias de intervenção adotadas per-
manecem constantemente abertas a reformulações com o
intuito de possibilitar o aprimoramento dos serviços pres-
tados.

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370
18. GRUPO EDUCATIVO COMO
MODALIDADE ASSISTENCIAL INSERIDA NO
CONTEXTO DE UM PROGRAMA
INTERDISCIPLINAR DE ATENÇÃO AO
PACIENTE DIABÉTICO

Manoel Antônio dos Santos


Denise Siqueira Péres
Maria Lúcia Zanetti
Lívia Padula Gerbasi
Antônio Augusto Ferronato
Liudmila Otero Miyar

O diabetes mellitus (DM) é considerado um dos mais gra-


ves problemas de saúde pública devido às suas profundas
repercussões pessoais, sociais e econômicas, em função de
sua alta prevalência na população. Trata-se de uma doença
crônica incurável, mas que, sob controle, pode ser perfeita-
mente manejável.
O propósito do presente capítulo é relatar uma experiên-
cia de grupo operativo, na modalidade de apoio psicológico,
com pacientes diabéticos adultos.

Diabetes mellitus: prevalência,


dificuldades no tratamento e modelo
assistencial
Hoje em dia o diabetes mellitus (DM) constitui uma das
principais doenças crônicas que afetam a humanidade,
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

envolvendo todos os estratos socioeconômicos (FRANCO,


1998). No Brasil, estima-se que existam cinco milhões de
pessoas portadoras de diabetes (LERÁRIO, 1998) e as pro-
jeções indicavam que, em 2005, haveria 11 milhões de por-
tadores da doença (KING et al., 1998). Em Ribeirão Preto-SP,
na população urbana com idade entre 30 a 69 anos, a preva-
lência de diabetes foi estimada em 12,2% (TORQUATO et
al., 2001). Esses dados evidenciam que o diabetes represen-
ta um grave problema de saúde pública por sua alta preva-
lência na população e as possíveis complicações e seqüelas
decorrentes da enfermidade, que segundo a Sociedade Bra-
sileira de Diabetes são responsáveis por um elevado índice
de mortalidade e pelos altos custos financeiros envolvidos
no tratamento (SBD, 2000).
Um dos maiores problemas com que se defrontam os pro-
fissionais da saúde no atendimento a pacientes diabéticos é
a baixa adesão ao tratamento. Muitas pessoas com diabe-
tes não conseguem alcançar um controle satisfatório dos
níveis glicêmicos. Estimular a adesão ao tratamento é de
extrema importância e a educação em saúde pode ser consi-
derada uma das formas que possibilitam alcançar esse ob-
jetivo (RABELO; PADILHA, 1999; LIMA et al., 2004).
O modelo tradicional de assistência em saúde freqüente-
mente deixa escapar aspectos culturais, sociais e subjeti-
vos que permeiam o processo saúde-doença (TEIXEIRA;
DAHER, 1999; LIMA et al., 2004; SANTOS; ZANETTI;
OTERO; SANTOS, 2005).
Nesse sentido, muitos programas de educação em saúde
fracassam, pois negligenciam os aspectos psicológicos, cul-
turais, sociais, interpessoais e as reais necessidades dos
pacientes (ZANETTI; MENDES, 1993; ZANETTI et al.,
2005).
Os sentimentos e as emoções fazem parte da vida e a
afetam indiscutivelmente. Ser saudável não depende apenas
da manutenção do corpo físico, mas também dos aspectos

372
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

emocionais, que devem ser levados em consideração quando


se trata do binômio saúde-doença. É evidente que as contri-
buições dos saberes biológicos na área da saúde são de extre-
ma importância, mas são insuficientes quando esses
conhecimentos são tomados de forma exclusiva (BIRMAN,
1991). Desse modo, é preciso considerar os aspetos psíquicos,
culturais e sociais envolvidos no processo saúde-doença.
De acordo com Heleno (1991), os aspectos emocionais
influem de maneira significativa no desencadeamento de
muitas doenças e também no seu curso. Apesar dos avan-
ços extraordinários da medicina nas últimas décadas, nem
sempre observamos nos portadores de diabetes o controle
de sua doença, sendo o fator emocional uma variável de
extrema importância que seguramente interfere na adapta-
ção dos pacientes a uma enfermidade que não tem cura, mas
que pode ser controlada.

Pressupostos da educação em saúde


Trabalhar com educação em saúde significa muito mais
do que transmitir conteúdos e conhecimentos (“passar in-
formação”). Para que o processo educativo seja efetivo, é
necessário um trabalho articulado entre os diversos pro-
fissionais envolvidos na assistência ao paciente. Atualmen-
te, muitos autores têm relatado a importância do trabalho
multiprofissional, com a participação do psicólogo na as-
sistência a pacientes portadores de diabetes (VARGAS, 1993;
SANTOS, 1999; FERRAZ et al., 2000; HELENO, 2001). Esse
modelo preconiza a importância da conjugação de saberes de
diferentes disciplinas, entendendo que um novo conhecimento
é produzido a partir do entrelaçamento de saberes e práticas
oriundas de diversas especialidades da área de saúde.
Estudos recentes têm reforçado a convicção de que o tra-
balho do psicólogo pode contribuir para uma melhor ade-

373
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

são dos pacientes ao tratamento. Acreditando na relevân-


cia de um trabalho fundamentado sob um enfoque grupal,
os psicólogos do Centro Educativo de Enfermagem para
Adultos e Idosos da Escola de Enfermagem de Ribeirão
Preto - USP sistematizaram um Grupo de Apoio Psicológi-
co para os pacientes que participavam de um programa de
assistência interdisciplinar.
É importante esclarecer o contexto mais amplo em que
esse grupo se insere. No referido Centro foi implementado,
em setembro de 2003, um Atendimento Sistematizado em
Diabetes, que desde então ocorre semanalmente, às terças-
feiras, das 14 às 17 horas, com o objetivo de instrumentali-
zar as pessoas diabéticas para o auto-gerenciamento em
diabetes, utilizando-se um protocolo de pesquisa denomi-
nado Staged Diabetes Management. Esse atendimento é
realizado por equipe multidisciplinar constituída por en-
fermeiros, médicos, psicólogos, nutricionistas, educador
físico e alunos de iniciação científica.
Dentre as atividades desenvolvidas destacamos: reuniões
clínicas da equipe multidisciplinar, palestras educativas,
verificação de parâmetros clínicos – peso corporal, glicemia
capilar pós-prandial, pressão arterial, circunferência abdo-
minal, ajuste da terapêutica, orientação individual de enfer-
magem e nutricional, atendimento psicológico individual e
em grupo, monitorização da atividade física realizada no
domicílio, exame dos pés e comemoração de datas festivas.

Abordagem grupal
A abordagem grupal com pacientes somáticos tem sido
muito valorizada e o enfoque teórico-metodológico utiliza-
do para fundamentar as intervenções são extremamente
variáveis, de acordo com a abordagem eleita pelo coordena-
dor, o tipo de problemática em questão, os objetivos a se-
rem alcançados e a instituição em que se reúne o grupo. De

374
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

uma maneira geral já não se pretende trabalhar com gru-


pos de pacientes somáticos aplicando o método psicanalíti-
co clássico, oferecendo interpretações transferenciais dos
conflitos intrapsíquicos que são projetados inconsciente-
mente na figura do coordenador. Essas interpretações po-
dem não ser eficazes em pacientes com ego vulnerável e
sobrecarregado com uma doença somática, com auto-esti-
ma baixa e sentimentos de desamparo e culpa, e que muitas
vezes encontram-se regredidos do ponto de vista emocional
e propensos à depressão. É necessário oferecer a esses pacien-
tes um clima de acolhimento, suporte e apoio que lhes per-
mita pensar sobre a enfermidade, expressar sentimentos e
conscientizar-se da correlação entre sua doença e seu esti-
lo de vida (CAMPOS, 1992; MELLO FILHO, 1997).
Em relação ao trabalho grupal, Democker e Zimpter
(1981), após selecionarem 15 estudos sobre grupos realiza-
dos com pacientes somáticos, concluíram que o coordena-
dor de grupo deve facilitar a expressão dos sentimentos,
oferecer apoio e atenção, promover adaptação às novas con-
dições geradas pela doença, veicular informações adequadas,
promover reforço da auto-imagem, estimular a recupera-
ção física e emocional, bem como facilitar a comunicação
profissional-paciente.
Os referenciais que fundamentaram as intervenções de
que trata o presente relato de experiência foram inspirados
na teoria de grupo de Enrique Pichon-Rivière, que focali-
zaremos a seguir.

Abordagem de grupo operativo de


Pichon-Riviére
Apresentaremos algumas premissas básicas da aborda-
gem de Grupo Operativo (GO). Essa abordagem foi intro-
duzida por Enrique Pichon-Rivière na década de 40 na
Argentina e o conceito de grupo operativo foi definido como

375
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

um “conjunto restrito de pessoas que, ligadas por constan-


tes de tempo e espaço e articuladas por sua mútua represen-
tação interna, propõe-se, em forma explícita ou implícita, a
uma tarefa que constitui sua finalidade, interatuando atra-
vés de complexos mecanismos de assunção e adjudicação de
papéis” (PICHON-RIVIÉRE, 2000, p. 169). Ou seja, a abor-
dagem de grupo operativo é centrada na tarefa e no vínculo
(a representação interna que um integrante elabora sobre
o outro).
Segundo Gayotto et al. (1992), Gayotto (2002) e Pichon-
Rivière (2000), o trabalho grupal se desenvolve principal-
mente em dois momentos:
Pré-tarefa: há uma resistência à mudança e um predo-
mínio de ansiedades e medos básicos não elaborados (medo
da perda e do ataque), que obstaculizam a entrada na tare-
fa. Há uma dissociação entre o agir, o sentir e o pensar.
Quando o grupo está em pré-tarefa, é necessária a inter-
venção do coordenador para que os participantes possam
tomar consciência – no sentido da compreensão interna,
ou seja, do insight – de suas resistências, de modo a elabo-
rar as ansiedades emergentes, superar a dissociação e as
condutas estereotipadas. Assim, resolvidos os processos
obstrutivos que emperram a evolução do processo grupal,
o grupo pode finalmente penetrar no objeto de conhecimen-
to, engajando-se na realização da tarefa.
Tarefa: quando o grupo consegue elaborar as principais
ansiedades e medos que o paralisam, há um rompimento
com as estereotipias, um contato ativo com a realidade e
uma integração entre o pensar, o sentir e o agir. A noção de
tarefa implica dois níveis:
Tarefa explícita: está relacionada aos objetivos explíci-
tos do grupo, a como as pessoas começam a produzir a bus-
ca de seus objetivos.
Tarefa implícita: refere-se à elaboração dos obstáculos e
ansiedades para poder cumprir a tarefa explícita. O grupo

376
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

está em tarefa implícita quando está dedicado a elaborar as


ansiedades emergentes, a visualizar e superar os obstácu-
los e a resolver as contradições que inevitavelmente sur-
gem no transcorrer do processo grupal.
Pichon-Rivière elaborou uma escala de avaliação do fun-
cionamento grupal que permite uma leitura da dinâmica
grupal e norteia as intervenções (PICHON-RIVIÈRE, 2000;
GAYOTTO, 2001; GAYOTTO, 2002). Para a apreciação do
processo grupal, consideram-se as seguintes constantes de
grupo:
• Afiliação: refere-se a um nível mais superficial de identi-
ficação com a tarefa e os demais integrantes. O integran-
te não se inclui totalmente no grupo, não se envolve de
corpo inteiro.
• Pertença: há uma maior identificação e integração com o
grupo, o que permite a realização da tarefa. Os integran-
tes sentem que fazem parte do grupo.
• Pertinência: refere-se a uma capacidade de concentração
e criatividade para executar a tarefa e ao esforço grupal
de explorar a pré-tarefa e superar as dificuldades.
• Cooperação: está ligada à capacidade de ajuda mútua, de
complementaridade; refere-se à contribuição que cada
integrante oferece para a realização da tarefa.
• Comunicação: uma das mais poderosas ferramentas do
trabalho grupal é a interação, que acontece por meio da
comunicação, que pode ser verbal ou não verbal. O que é
falado, quem fala e como fala são aspectos que precisam
ser considerados.
• Aprendizagem: implica em criatividade, em elaboração
das ansiedades e em uma adaptação ativa à realidade. Re-
fere-se a uma capacidade do grupo de se adaptar às novas
situações, de inovar e de desenvolver condutas alternati-
vas diante dos obstáculos. A aprendizagem ocorre quan-
do se alcança uma comunicação clara.

377
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

• Tele: refere-se ao clima grupal, aos sentimentos de atra-


ção ou rejeição que os integrantes possuem em relação
aos outros integrantes, ao coordenador e à tarefa.

A abordagem de grupo operativo visa estimular a inde-


pendência dos seus integrantes, permitindo uma adapta-
ção ativa e criativa à realidade (FERNANDES, 2003),
possibilitando fazer escolhas mais maduras e livres, ao
mesmo tempo em que se assume maior responsabilidade
por essas escolhas. Nesse sentido, tal abordagem pode con-
tribuir para uma maior adesão das pessoas diabéticas ao
tratamento recomendado e para fortalecer a responsabili-
dade em relação à condução do tratamento e da própria
vida.
O grupo operativo, na medida em que permite aprender
a pensar com o outro, possibilita superar as dificuldades
através do potencial das trocas simbólicas, enriquecen-
do o conhecimento de si e do outro (PICHON-RIVIÈRE,
2000).

Objetivo
O propósito do presente capítulo é descrever uma expe-
riência de grupo operativo, na modalidade de apoio psicoló-
gico, com pacientes diabéticos adultos.

Método
DELINEAMENTO METODOLÓGICO
Estudo descritivo e exploratório, do tipo relato de expe-
riência, acerca da sistematização de uma intervenção psi-
cológica inserida em um programa assistencial mais amplo,
desenvolvido ao longo de 12 meses.

378
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

PARTICIPANTES
O grupo foi constituído por pacientes adultos e idosos de
ambos os sexos, que freqüentaram o Centro Educativo no
período de um ano.

PROCEDIMENTO
O objetivo geral do Atendimento Sistematizado em Dia-
betes era oferecer um contexto de convivência entre iguais,
com aporte maciço de informações relativas à enfermidade e
ao seu tratamento, ênfase na necessidade de mudanças no
estilo de vida e adoção de hábitos saudáveis. O Grupo de Apoio
Psicológico, em especial, era oferecido semanalmente, no
contexto do atendimento interdisciplinar mais amplo.
O Grupo de Apoio Psicológico acontecia semanalmente e
tinha uma hora de duração. O grupo era fechado e o número
de participantes em cada encontro foi pré-estabelecido em
14. Para abranger os 56 participantes, foram realizados qua-
tro grupos mensais, sendo que cada grupo se reúnia uma vez
ao mês. Os grupos eram heterogêneos quanto à idade e sexo
e homogêneos quanto à patologia (ou seja, todos eram porta-
dores de diabetes do tipo 1 ou 2).
A coordenação dos grupos esteve a cargo da equipe de
Psicologia, que era composta por três profissionais com
especialização em coordenação de grupos e uma estagiária
de Psicologia.
As intervenções seguiram uma estratégia de atendimen-
to suportivo e focal, no qual se buscava favorecer a troca de
experiências e a construção de significados compartilha-
dos no enfrentamento da doença e das vicissitudes do tra-
tamento. O foco do trabalho estava voltado para os aspectos
emocionais associados ao diabetes e nesse sentido, tenta-
va-se evitar abordar conteúdos psíquicos mais profundos
que não tivessem estritamente ligados à enfermidade. Por
isso evitava-se o uso de interpretações.

379
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Desse modo, os objetivos do grupo de apoio psicológico


foram definidos da seguinte maneira:
• Identificar e elaborar as dificuldades relacionadas à enfer-
midade e que podem interferir na adesão ao tratamento;
• Contribuir para melhorar os níveis de estresse e reduzir
as manifestações de ansiedade e depressão, contribuindo
para uma melhor qualidade de vida;
• Ajudar o paciente a elaborar suas vivências afetivas, a
conviver com sua doença e a desenvolver seu repertório
de recursos de enfrentamento, reconhecendo e/ou amplian-
do suas próprias potencialidades;
• Promover uma maior capacidade de elaboração dos sen-
timentos envolvidos no processo de adoecimento;
• Ampliar a responsabilidade de cada paciente com relação
ao seu próprio tratamento, estimulando sua independên-
cia e autonomia na tomada de decisões que digam respei-
to ao seu auto-cuidado em saúde;
• Contribuir para o fortalecimento da auto-estima e o de-
senvolvimento de uma auto-imagem positiva;
• Ampliar o autoconhecimento, o contato com os próprios
sentimentos e a conscientização sobre práticas de pre-
venção com relação às possíveis complicações da doença;
• Promover uma maior aceitação da enfermidade, refor-
çando uma atitude positiva e uma perspectiva esperan-
çosa diante do futuro;
• Trabalhar os aspectos emocionais que dificultam a in-
corporação de hábitos saudáveis de vida;
• Incentivar a busca ativa de informações e orientações sobre
a enfermidade e o tratamento, estimulando a criação de um
espaço de reflexão e co-construção de conhecimento.

Como referido anteriormente, os pacientes foram subdi-


vididos em quatro grupos de 14 participantes. No período
de abril de 2004 a abril de 2005 foram realizados doze en-
contros com cada grupo.

380
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

Vale ressaltar que não foi seguido um programa previa-


mente estabelecido pelos coordenadores. Os objetivos e es-
tratégias utilizadas em cada encontro foram definidos no
decorrer do caminhar do processo grupal, ou seja, os coor-
denadores selecionavam qual seria a temática do próximo
encontro levando em consideração as necessidades, dúvidas
e inquietações que emergiam a cada momento, buscando res-
peitar o andamento dos grupos. Frente aos conteúdos e ne-
cessidades que emergiam nos próprios encontros grupais,
detectava-se um elemento em comum que perpassava os qua-
tro grupos e concebia-se uma estratégia para operacionali-
zar a questão a ser proposta como disparador temático.
Os objetivos e as estratégias utilizadas na intervenção
serão descritos resumidamente a seguir.

1º ENCONTRO:
Objetivos
Promover a integração grupal e trabalhar as expectati-
vas relacionadas ao grupo.
Desenvolvimento
Iniciou-se o encontro confeccionando-se os crachás com
os nomes de cada participante. Depois estabeleceu-se o en-
quadre, ou seja, foram oferecidas algumas informações e
regras referentes a número de sessões, horário de início e
término do grupo, atividades a serem desenvolvidas, papéis
dos coordenadores e participantes, a importância de todos
estarem presentes do início ao final e serem pontuais.
Em seguida, realizou-se um exercício de apresentação
em duplas. Foi pedido para formarem espontaneamente
duplas para conversarem entre si e, após aproximadamen-
te cinco minutos, cada participante apresentou seu parcei-
ro para o grupo.
Finalizando o encontro, aplicou-se um questionário de
identificação de expectativas com relação ao tratamento,
elaborado especialmente para essa finalidade. Após o pre-

381
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

enchimento desse instrumento, abriu-se o grupo para a so-


cialização das expectativas e, assim, foi possível elaborar o
que cada um esperava do grupo.

2º ENCONTRO:
Objetivos
Favorecer a união e a integração grupal e trabalhar os
sentimentos envolvidos no processo de adoecimento.
Desenvolvimento
Foi realizada uma atividade de aquecimento denomina-
da “dinâmica dos crachás”. Os crachás foram embaralhados
e sorteados aleatoriamente, de modo que cada participan-
te manteve um crachá que não era o seu. Foi pedido para
cada integrante afixar o crachá no(a) “companheiro(a)”
e verbalizar uma característica daquela pessoa que apren-
deu no primeiro encontro e que ficou marcada em sua
memória.
Em seguida foi realizado um exercício denominado “via-
gem ao passado”. Os integrantes foram instruídos a fazer
uma volta ao passado, fixando-se no momento imediata-
mente após a descoberta do diabetes. Quais os sentimentos
que emergiram naquele momento? Como estava a vida no
momento?
Após o trabalho de reflexão individual, os coordenado-
res espalharam uma série de cartões no centro do grupo,
nos quais estavam escritos sentimentos diversos (alegria,
raiva, medo, satisfação, pânico, culpa, etc.). Foi solicitado
a cada integrante que escolhesse cartões com sentimentos
que vivenciaram após o diagnóstico. Os sentimentos se re-
petiam em vários cartões, de modo que todos os participan-
tes poderiam escolher os mesmo sentimentos, se assim
desejassem. Em seguida, solicitou-se que os participantes
separassem o seu bloco de cartões em sentimentos positi-
vos e negativos, colocando sobre uma cartolina verde os
positivos e sobre uma cartolina vermelha os negativos.

382
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

Concluída essa etapa da tarefa, iniciou-se uma discus-


são sobre a produção coletiva, estimulada por questiona-
mentos dos coordenadores: onde tivemos um número maior
de sentimentos, no lado verde ou vermelho? O que isso signi-
fica? Esse sentimento foi colocado por alguns no lado ver-
de, mas houve alguém que achou que ele fica melhor no
lado vermelho; o que teria levado a vê-lo como negativo?
Depois foi realizada a mesma atividade com os sentimen-
tos relativos ao fato de ser portador de diabetes no presen-
te. No final, abriu-se o grupo para essa discussão: o que
mudou desde o momento do diagnóstico no nível do senti-
mentos relacionados ao diabetes? Por quê? O que teria le-
vado a essa mudança?

3º ENCONTRO:
Objetivos
Favorecer a troca de experiências e a construção de novos
significados a partir dos sentidos elaborados no processo de
adoecimento.
Desenvolvimento
Foi pedido aos integrantes que se subdividissem em grupos
de três ou quatro participantes, para construírem um cartaz,
a partir de recorte e colagem de revistas, sobre o tema: “o que
o diabetes representa na sua vida?” Os materiais utilizados
foram: revistas, tesoura, canetinhas, cola e cartolina.
Pediu-se para cada grupo apresentar o cartaz realizado
ao restante do grupo e, em seguida, abriu-se para a discus-
são da temática e os sentimentos e pensamentos que emer-
giram durante a realização da tarefa.

4º ENCONTRO:
Objetivos
Ajudar os integrantes a identificar suas principais difi-
culdades relacionadas ao comportamento alimentar e en-
contrar recursos para superá-las. Estimular a construção
de novos sentidos para a conduta alimentar.

383
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Desenvolvimento
O grupo foi subdividido em dois. Foi distribuída uma fra-
se para cada sub grupo conversar e completar. As frases
foram as seguintes:
Grupo 1: Eu não consigo seguir a dieta recomendada
quando...
Grupo 2: Eu consigo realizar a dieta recomendada quan-
do...
Após aproximadamente dez minutos o coordenador deu
a seguinte instrução: Os integrantes do grupo 1 vão colo-
car suas cadeiras de modo a formar um círculo pequeno
que será circunscrito pelo círculo formado pelas cadeiras
dos colegas do grupo 2, que os ouvirão relatar o que con-
versaram entre si a respeito da consigna negativa (Eu não
consigo seguir a dieta recomendada quando...)
Em seguida, fez-se uma inversão e os integrantes do gru-
po 2 foram para dentro do círculo (no lugar dos integrantes
do grupo 1) para conversarem sobre o que haviam escutado
a respeito das conversas do grupo 1.
Posteriormente, o Grupo 2 pôs-se a conversar sobre o
que haviam discutido sobre a frase a completar. Posterior-
mente, trocaram-se novamente as posições e o grupo 1 vol-
tou a ocupar o centro das cadeiras para conversar sobre o
que pensaram ao ouvir a discussão dos colegas do grupo 2
com a consigna positiva (Eu consigo realizar a dieta reco-
mendada quando...).
Propôs-se, então, fazer um único círculo para discuti-
rem a temática. Foi pedido para trocarem as experiências
no sentido de dar dicas e ajudar quem estava com dificulda-
des em seguir a dieta. Os emergentes foram trabalhados no
sentido de auxiliar os participantes a identificarem (em si
e no outro) o que facilitava e o que dificultava o seguir a
dieta, bem como as diferenças observadas quando assumi-
ram uma posição de fala e uma posição de escuta.

384
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

5º ENCONTRO
Objetivos
Estimular a troca de experiências e trabalhar as dificul-
dades e facilidades na realização da dieta recomendada pe-
los profissionais, retomando as questões levantadas no
encontro anterior para consolidar a aprendizagem.
Desenvolvimento
Foi pedido que os integrantes tentassem lembrar o que
haviam conversado no grupo anterior, o que puderam pen-
sar e refletir desde o último encontro e se notaram alguma
mudança no comportamento alimentar desde então.
Em seguida, a tarefa recomendada foi discutir o seguin-
te tema: “o que dificulta e o que facilita na realização da
dieta?”. Para facilitar a discussão, um membro da equipe
de coordenação anotou as falas dos integrantes em dois
cartazes. Um cartaz abrigava as dificuldades e o outro as
facilidades.
Ao final da atividade, os participantes foram estimula-
dos a comparar os conteúdos dos dois cartazes.

6º ENCONTRO
Objetivos
Trabalhar as dificuldades, as crenças, os mitos, os sen-
timentos e as fantasias relacionadas ao uso da insulina e
dos antidiabéticos orais.
Desenvolvimento
O grupo foi instruído sobre o tema do encontro: o uso
dos medicamentos para o controle do diabetes. Inicialmen-
te foi pedido para cada integrante relatar se faz uso de al-
gum medicamento para o diabetes, qual medicação, com que
freqüência e há quanto tempo.
Em seguida, a tarefa proposta foi discutir sobre as difi-
culdades e facilidades encontradas no uso dos medicamen-
tos. Os coordenadores estimularam os participantes a
expressarem livremente pensamentos, crenças e sentimen-
tos que permeavam o uso da insulina e do antidiabético oral.
385
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

7º ENCONTRO
Objetivos
Promover e estimular a mudança de significados e re-
presentações atribuídas ao uso dos medicamentos para o
controle do diabetes.
Desenvolvimento
O grupo foi subdividido em três: o primeiro grupo foi re-
presentado por quem não faz uso de medicamentos, o segun-
do por quem utiliza apenas antidiabéticos orais e o terceiro
por quem toma insulina. Foi pedido para esses três grupos
construírem cartazes, utilizando-se de recortes de revistas e
canetinhas para representar o significado e os sentimentos
envolvidos no uso contínuo dos medicamentos.
Em seguida, abriu-se o grupo para que os participantes
pudessem discutir entre si o conteúdo dos cartazes produ-
zidos e os sentimentos mobilizados no decorrer da tarefa.

8º ENCONTRO
Objetivos
Promover e estimular a troca de experiências, significados
e representações atribuídos à realização de exercícios físicos.
Desenvolvimento
Nesse encontro não foi proposta uma atividade estrutu-
rada. Os coordenadores abriram o grupo dizendo aos inte-
grantes que a tarefa era discutirem o que significava
realizar exercícios, qual era a finalidade e quais os senti-
mentos envolvidos no fazer ou não fazer atividade física.

9º ENCONTRO
Objetivos
Avaliar o processo vivenciado no Grupo de Apoio Psico-
lógico nos oito primeiros meses do Programa.
Desenvolvimento
Nesse encontro também não houve atividade prévia e os
coordenadores abriram o grupo dizendo aos integrantes que

386
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

a tarefa era discutirem o que estavam achando do Grupo de


Apoio da Psicologia – pontos positivos e pontos negativos
– e como se sentiam nesse grupo. Também foram estimula-
dos a dar sugestões para reforçar o interesse e melhorar o
aproveitamento dos encontros (que temas gostariam de dis-
cutir nos próximos encontros, que estratégias permitiriam
melhor alcançar os objetivos).

10º ENCONTRO
Objetivos
Estimular a troca de experiências e propiciar uma refle-
xão sobre a qualidade de vida.
Desenvolvimento
Primeiramente o coordenador propôs uma atividade de
relaxamento com os integrantes. Ao som de uma música
suave, os integrantes foram encorajados a caminharem pela
sala em silêncio e a prestarem atenção ao próprio corpo,
tentando identificar suas sensações, pontos de tensão, se
alguma parte do corpo estava dolorida. Assim, foram esti-
mulados a procurar posições corporais em que se sentis-
sem confortáveis e relaxados. Só não podiam falar. Em
seguida pediu-se para prestarem atenção em cada detalhe
da sala, do ambiente, incluindo os demais participantes,
deixando a música penetrar em seus ouvidos. Depois foi
pedido para olharem os companheiros do grupo, trocarem
olhares, se quisessem um sorriso, e escolherem um(a)
parceiro(a) para continuarem caminhando pela sala. Pos-
teriormente foi pedido para cada dupla sentar e conversar
sobre o seguinte tema: “O que é ter qualidade de vida para
mim?” “É possível ter qualidade de vida convivendo com o
diabetes?”
Após aproximadamente 10 minutos abriu-se o grupo para
relatarem o que conversaram com o(a) colega e discutirem
entre si a temática da qualidade de vida.

387
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

11º ENCONTRO
Objetivos
Estimular uma reflexão sobre as perdas e ganhos decor-
rentes do diabetes.
Desenvolvimento
Ao som de uma música alegre (por exemplo, marchas de
carnaval), cada participante teria de passar para o colega à
sua direita (sentido horário) dois cartões (um verde e outro
vermelho). A música seria interrompida abruptamente. Quan-
do a música parasse, quem estivesse com o cartão verde iria
contar para todos um ganho que teve com o diabetes e quem
estivesse com o cartão vermelho iria relatar uma perda.
Após aproximadamente 30 minutos de jogo, abriu-se o
grupo para discutirem o que essa atividade e esse tema ha-
viam suscitado. Os coordenadores exploravam os emergen-
tes grupais, por exemplo: aquilo que alguns conotavam como
perda parecia ter um significado diferente para um outro
integrante do grupo.

12º ENCONTRO
Objetivos
Realizar uma avaliação final dos encontros grupais ocor-
ridos no período de um ano de implantação do Programa.
Desenvolvimento
O coordenador ofereceu uma pequena bola de borracha e
instruiu o grupo no sentido de que, quem recebesse a bola
do colega, iria dizer o que esperava inicialmente do grupo
da Psicologia, como foi seu primeiro dia no grupo e se o
grupo ajudou a mudar o modo de olhar o diabetes.
Em seguida, abriu-se o grupo para discutirem o tema em
questão.

388
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

Resultados e discussão
O presente estudo teve por objetivo oferecer uma visão
panorâmica das intervenções psicológicas realizadas, me-
diante um relato dessa experiência de construção de uma
praxis junto ao grupo. Por essa razão – e considerando-se
também que as avaliações de processo e resultados ainda
não foram concluídas, serão apresentadas apenas algumas
considerações preliminares.
No período avaliado estavam cadastrados no Centro
Educativo 58 pacientes diabéticos tipo 1 e tipo 2, que acei-
taram participar do estudo mediante assinatura de um ter-
mo de consentimento livre e esclarecido.
Em relação aos dados demográficos e ao perfil diagnós-
tico, os resultados apontam que 34 (58,7%) pacientes en-
contravam-se na faixa etária de 59-78 anos, 41 (70,6%) eram
do sexo feminino, 38 (65,5%) eram casados, 36 (62,1%) ti-
nham o ensino fundamental incompleto, 24 (41,4%) tinham
como ocupação atividades do lar (donas de casa). Dos 58
pacientes, três (5,1%) eram diabéticos tipo 1, 53 (94,9%)
diabéticos tipo 2. Em dois pacientes (3,4%) não foi confir-
mado diagnóstico de diabetes mellitus. Em relação ao tem-
po de diagnóstico, 36 (62,1%) tinham seis anos ou mais de
conhecimento do diagnóstico de diabetes.
Quanto ao índice de massa corpórea, 35 (60,3%) eram
obesos. No que se refere ao tratamento, 36 (62,1%) dos pa-
cientes faziam uso de algum tipo de antidiabético oral, 19
(32,7%) usavam insulina, sendo que desses pacientes, 17
(29,3%) utilizavam insulina de ação intermediária e dois
(3,4%) de ação rápida.
A avaliação da experiência foi conduzida por meio de
métodos qualitativos e quantitativos de investigação. A

389
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

avaliação qualitativa foi realizada mediante a aplicação de


entrevistas e a coleta de depoimentos obtidos durante o
acontecer dos grupos, ao passo que a avaliação quantitati-
va compreendeu a aplicação de inventários e escalas padro-
nizadas com o objetivo de verificar o nível de estresse,
ansiedade, depressão e a satisfação com a qualidade de vida.
A coesão grupal e o clima de intimidade psicológica que
se instaurou a partir dos primeiros encontros facilitou a
discussão de crenças e sentimentos relacionados à doença
e ao tratamento. Esse contexto acolhedor propiciou a troca
de experiências e o apoio mútuo, maximizando alguns fato-
res terapêuticos comuns aos grupos, tais como a universa-
lidade, o altruísmo, a auto-revelação, a aprendizagem por
intermédio do outro e a instilação de esperança. Quando
alguém percebia que uma determinada dificuldade não era
uma exclusividade sua, imediatamente se observava uma
sensação de alívio, o que serviu para amenizar sentimen-
tos de culpa e ansiedade, ampliando a percepção de novas
possibilidades de lidar com esses sentimentos.
O grupo favoreceu o processo de informar e orientar so-
bre a enfermidade, criando um espaço de reflexão e co-cons-
trução do conhecimento, que facilitou a aceitação dos
próprios limites e um maior ajustamento às exigências do
tratamento. Assim, foi possível trabalhar as dificuldades
emocionais do paciente relacionadas ao diabetes e sua ade-
são ao tratamento, utilizando-se das potencialidades que o
trabalho grupal faculta, sobretudo a universalidade e o al-
truísmo.
Observou-se, inicialmente, que a comunicação não acon-
tecia de forma complementar. Havia até mesmo uma im-
possibilidade de ouvir, em alguns momentos as falas
aconteciam ao mesmo tempo e de forma subgrupada, o que
é comum no início dos grupos. Em certos momentos, houve
também uma dificuldade de partilhar e descentrar-se das

390
Parte III: Serviços psicológicos: interfaces e interações com a comunidade

próprias necessidades. À medida que os encontros foram


acontecendo, percebeu-se uma melhora significativa na co-
municação estabelecida entre os integrantes do grupo, pro-
movendo uma maior interação e coesão grupal, o que
possibilitou novas aprendizagens. As falas começaram a ter
uma maior complementaridade e houve uma identificação
crescente e maior cooperação de uns com os outros no en-
frentamento das dificuldades.
Ao final, os pacientes avaliaram que o grupo proporcio-
nou um importante espaço para falar e escutar, promoven-
do uma maior interação entre os participantes do programa
assistencial, valorizando a capacidade de elaboração dos sen-
timentos envolvidos no processo de adoecimento. A impor-
tância dessa experiência repousa em seu potencial de
permitir aos participantes refletirem, trocarem experiên-
cias e co-construírem conhecimentos por intermédio de uma
perspectiva dialógica e interativa, em que os problemas e
soluções são compartilhados, ampliando assim os horizon-
tes do pensar, do sentir e do agir.
O clima predominante nos encontros era de reflexão e co-
laboração, de co-construção e elaboração de significados atri-
buídos às experiências relacionadas ao diabetes e às limitações
que essa condição acarretava no cotidiano do portador.
Com relação ao papel da coordenação, pode-se dizer que
os coordenadores funcionavam como facilitadores da comu-
nicação grupal. Para tanto, selecionavam recursos e plane-
javam atividades que pudessem estimular a livre expressão
dos sentimentos e a manutenção de um diálogo construtivo
e enriquecedor para todos os componentes do grupo.

Considerações finais
Os resultados obtidos com a aplicação dos grupos de
apoio psicológico demonstraram que a intervenção em gru-
391
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

pos menores revelou-se uma estratégia útil para o alcance


dos objetivos educativos do Programa.
A abordagem de grupo operativo, partindo do respeito
às questões colocadas pelo grupo, favoreceu a troca de opi-
niões e experiências, assim como a explicitação de contra-
dições, fantasias, mitos e crenças que permearam o processo
grupal. O grupo também parece ter contribuído para pro-
mover uma maior autonomia dos seus integrantes, que gra-
dualmente deixaram de assumir uma postura passiva para
se tornarem protagonistas de sua própria história.
Desse modo, pode-se concluir que o grupo cumpriu seu
papel de fornecer apoio e suporte psicológico para o proces-
so de enfrentamento das vicissitudes do tratamento de uma
enfermidade crônica, promovendo uma maior aceitação do
diabetes e, por consegüinte, uma atitude de maior aprovei-
tamento dos aportes educativos fornecidos pelas interven-
ções dos demais integrantes da equipe multiprofissional:
médicos, enfermeiros, nutricionistas e educadores físicos.
Esse modelo assistencial favoreceu o estabelecimento de
um vínculo efetivo entre o paciente e a equipe multidisci-
plinar, que repercutiu em índices elevados de adesão e me-
lhora no nível glicêmico. Além disso, a implantação do
programa como um todo proporcionou à equipe um campo
fértil para o aprendizado compartilhado e a criação de no-
vos recursos para a operacionalização da educação em dia-
betes.

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394
PARTE IV

PRÁTICAS PSICOLÓGICAS
NA ATENÇÃO À SAÚDE
19. CONSTRUINDO BIOGRAFIAS: UMA
ATIVIDADE PSICOEDUCATIVA COM PACIENTES
PSIQUIÁTRICOS E O DESENVOLVIMENTO DA
IDENTIDADE PROFISSIONAL DO ESTAGIÁRIO
EM PSICOLOGIA

Murilo dos Santos Moscheta


Sandra Akemi Okajima
Juliana Araújo Ferreira
Sérgio Luiz Alécio Filho
Marina Rezende Bazon
Carmen Lúcia Cardoso
Sergio Ishara

“Viver é afinar o instrumento,


de dentro pra fora, de fora pra dentro.
A toda hora, a todo momento,
de dentro pra fora, de fora pra dentro.”
Walter Franco

AS TRANSFORMAÇÕES EM SAÚDE MENTAL E A


INSERÇÃO DO PSICÓLOGO NESTE CONTEXTO
A partir da década de 80 do século passado, surgem no
contexto da saúde mental críticas ao modelo manicomial/
asilar centrado na exclusão social e marginalização do
doente. O movimento da reforma psiquiátrica apontou a
necessidade de reformulação do modelo assistencial em saú-
de mental, com modificações nas políticas e tendo como pro-
posta central a desospitalização psiquiátrica do doente
mental. Buscavam-se modelos alternativos aos hospitais
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

que fossem mais eficazes e de menor custo social (ALVES


et al., 1994).
O usuário passa a ser reconhecido como um ator social
importante no processo saúde-doença, bem como os seus
familiares e a comunidade. Afirma-se a necessidade de de-
senvolvimento de estratégias de reintegração e ressociali-
zação dos usuários. A reforma psiquiátrica indica que além
de serviços substitutivos aos manicômios faz-se necessá-
rio também a reformulação da cultura profissional, reven-
do concepções, paradigmas e práticas atreladas à saúde
mental.
Nas novas modalidades de atenção a saúde mental, veri-
ficou-se a necessidade da participação de outros profissio-
nais, além dos psiquiatras, entre eles o psicólogo, para que
as propostas de reformulação da assistência se concreti-
zassem.
A entrada do psicólogo no âmbito da saúde pública se
deu, entretanto, sem que este profissional tivesse revisto
suas concepções teóricas e modelos práticos, o que ocasio-
nou uma reprodução do modelo hegemônico da Medicina
Científica, com enfoques centrados em um indivíduo abstrato
e a-histórico próprios da Psicologia Clínica (DIMENSTEIN,
1998; CARDOSO, 2002; SPINK, 2003).
A Psicologia, desde a sua criação, na década de 60, é reco-
nhecida como uma profissão liberal – parecer 403/1968 (Lei
4119, p. 6) “...só assim, há de ser possível assegurar à Psicolo-
gia a posição de relevo que lhe cabe, no concerto das chama-
das profissões liberais...” A ênfase da atividade do psicólogo
se centrará nas decádas seguintes no trabalho autônomo, clí-
nico, individual, curativo e voltado para uma clientela parti-
cular (SILVA, 1992; DIMENSTEIN, 1998; CARDOSO, 2002).
Com a crescente diversificação dos campos de atuação
do psicólogo, e a necessidade de adotar uma abordagem mais
social dos fenômenos psicológicos, foi necessário começar

398
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

a enfrentar o desafio de encontrar maneiras diferenciadas


para trabalhar, implicando em ações em níveis preventi-
vos, educativos e de reabilitação psicossocial, em diferen-
tes contextos.
Apesar de um certo consenso em torno desta considera-
ção, abrir mão do modelo de atuação clínica tradicional não
parece ser tão fácil ou natural. Conspiram contra as mu-
danças o fato de ainda predominar um ensino quase que
exclusivamente voltado para atendimentos em parâmetros
de consultórios, fomentado por uma cultura profissional
que veicula esta imagem da profissão, assim como a escas-
sez de modelos suficientemente consistentes, capazes de
orientar a formação a partir de uma outra perpectiva.

O DESENVOLVIMENTO DA IDENTIDADE PROFISSIONAL


A partir de nossa experiência, ao longo dos três últimos
anos, verificamos que a entrada do estagiário no contexto
da saúde mental é acompanhada de conflitos acerca das
imagens relativas ao papel profissional a ser desempenha-
do, tendo em vista as novas propostas de atuação do psicó-
logo. De maneira análoga à construção da identidade
pessoal, a profissional também tem sido investigada, en-
quanto um objeto de estudo per si, de uma perspectiva de-
senvolvimental, ou seja, enquanto um processo e a partir
das transformações e continuidades detectadas ao longo do
tempo (BAZON, 1995). Em outras palavras, há estudos es-
pecíficos que descrevem as características de certas etapas
existentes ao longo da carreira profissional e que buscam
apreender o papel desempenhado pela experiência na aqui-
sição de competência.
É preciso considerar que a experiência, aqui, não é um
termo que se refere somente ao exercício temporal de uma
profissão mas, principalmente, à maneira como as expecta-
tivas e imagens pré-concebidas são contrariadas, refinadas

399
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

e/ou confirmadas em função das vivências do trabalhador


(BENNER, 1984; HILLS, 1989).
No que tange especificamente às profissões que envolvem
a relação de ajuda, grande parte dos estudos já realizados
visaram apreender as necessidades vividas em momentos
particulares da trajetória profissional (SARATA, 1979;
VENDER VEN, 1979; SHEAHAN et al., 1987; HILLS, 1989;
MOSCRIP; BROWN, 1989), e os trabalhos afirmam que re-
traçar as etapas do desenvolvimento profissional permite
antecipar certas reações face aos desafios cognitivos e afe-
tivos impostos pela profissão, podendo servir de guia para
a implementação de discussões e supervisões, cujo intuito
seja o de engendrar maior competência.
É importante frisar que o desenvolvimento profissional
é concebido num contexto maior, o da “socialização profis-
sional”, sendo esta compreendida como as ações do indiví-
duo sobre as estruturas sócio-profissionais e suas reações
à cultura (ou sub-culturas) imposta pelo grupo de refe-
rência (DUBAR, 1991; LACEY, 1977; MCARTHUR, 1981;
ZEICHNER; GORE, 1990).
De modo geral, os estudos denotam a existência de três
grandes períodos de socialização em uma determinada pro-
fissão: a) o da antecipação do que será a formação e o exer-
cício profissional; b) a inserção profissional propriamente
dita; c) e a integração profissional (CORWIN, 1961).
O período inicial, “antecipação”, corresponde à fase em
que o indivíduo aspira à adesão a uma determinada profis-
são, desenvolvendo imagens daquilo que o espera. Estas são
geralmente baseadas em informações parciais ou idealiza-
das, ou seja, coloridas por necessidades e desejos pessoais.
As antecipações feitas nesta fase estarão relacionadas com
o tipo e a amplitude das desilusões na fase subseqüente
(THORTON; NARDI, 1975).
O período seguinte, “inserção”, geralmente comporta
fortes exigências por parte do meio de socialização, em ter-

400
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

mos de adaptação, constituindo-se, portanto, numa fase


crítica. É o momento de, por assim dizer, “aparar as ares-
tas” entre as imagens idealizadas e a realidade que se lhe
apresenta. Quanto maiores forem estas, maiores as mudan-
ças que se operarão na identidade e no processo de engaja-
mento profissional, produto da matemática possível entre
os sentimentos de satisfação e insatisfação (MCARTHUR,
1979). O período de inserção compreende as etapas de for-
mação, incluindo aí os eventuais estágios, e entrada no
mundo do trabalho, o que pode durar muito tempo. Ade-
mais, esta fase pode tanto conduzir à desistência, como à
seguinte, a da integração profissional. Se o profissional
consegue lidar com o “choque de realidade” de maneira a ir
se ajustando às exigências formais e informais da profissão,
este período corresponderá ao da afirmação da identidade
profissional escolhida e ao engajamento (MCARTHUR,
1981).
Sabe-se que “integração profissional”, inicialmente, será
marcada por uma certa rigidez na maneira de interpretar
os códigos inerentes ao seu trabalho, mas que ao longo do
tempo, denotar-se-á uma concepção do papel profissional
mais personalizada, fundada na própria hierarquia de va-
lores e sobre os traços de personalidade. Como já se disse, a
etapa de inserção e adaptação profissional é normalmente
um momento de crise, num sentido identitário, decorrente
das possíveis diferenças entre as expectativas e a realida-
de, mas que não deve, necessariamente, ser entendido como
negativo. Contudo, é de se supor que se esta fase se desen-
rola em um contexto de adversidades maiores, a agudez da
crise pode ser significativa.
Num primeiro plano, tem-se que considerar, no caso das
profissões de nível universitário, que este período coincide,
freqüentemente, com os anos da juventude, momento de tran-
sição para a vida adulta e que, por si só, é geralmente marca-
do por intensas reformulações na identidade pessoal. Assim,

401
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

a etapa inicial do desenvolvimento profissional sofre o im-


pacto das características da fase de desenvolvimento pes-
soal (DUBAR, 1991). Em segundo lugar, se os contextos
em que se pratica a profissão estão em crise, devido a de-
terminadas dificuldades ou transformações, ou ainda se
os modelos disponibilizados para a atuação profissional
oferecem poucos parâmetros ao jovem profissional, as an-
gústias serão potencializadas (SUTTON, 1977; SARATA,
1979).
Tratando-se especificamente das profissões de ajuda,
sabe-se que os primeiros anos de experiência profissional
são caracterizados pelo predomínio de um sentimento de
insegurança frente à clientela e, sobretudo, frente aos cole-
gas mais experientes. Também demonstram que a maturi-
dade não parece, ainda, suficiente para vislumbrar
objetivamente as situações e centrar as intervenções sobre
as necessidades do outro, tendendo a centrar-se mais sobre
as próprias. Apesar de uma gradativa aquisição de know
how (saber-fazer) e de uma maior autoconfiança, estes pro-
fissionais geralmente irão se apoiar, ora numa certa rigi-
dez na aplicação de normas e técnicas aprendidas, sem fazer
muita distinção entre os vários tipos de demanda, de acor-
do com as situações, ora numa improvisação quase que to-
talmente desprovida de parâmetros teóricos e metodológicos
(o que eles geralmente vão denominar de intuição). Parale-
lamente, eles continuam se pronunciando sobre certo sen-
timento de desânimo, de insatisfação e de impotência,
colocando em questão a própria escolha profissional e, não
raro, da formação recebida, queixando-se que ela é (ou foi
insuficiente). Também relatam dificuldades de trabalho em
equipe, e falam da distância entre a teoria e a prática. Nes-
sa fase também já se destaca uma reflexão sobre o
(des)equilíbrio entre as exigências profissionais e as neces-

402
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

sidades pessoais, por vezes, consideradas incompatíveis


(BAZON, 1995).
Com o tempo de experiência (que as pesquisas têm apon-
tado como sendo um período de aproximadamente cinco a
sete anos), o que antes era chamado de intuição tende a
transformar-se numa leitura personalizada dos conceitos
teóricos, que passam a ser mais valorizados, considerando
uma tomada de consciência quanto à complexidade dos pro-
blemas com que se depara e a necessidade compreendê-los,
de maneira científica e profissional. Contudo, a maturida-
de e a segurança adquirida permitem uma aplicação flexí-
vel e adaptada dos conceitos teóricos à prática, ou seja,
considerando as características e necessidades dos sujeitos
e do meio em que se trabalha. Além disso, se nos anos inici-
ais os profissionais de relação de ajuda acreditam se conhe-
cer bem, com a experiência, concluem que este é um desafio
para a vida toda, mas efetivamente já delineiam melhor seus
limites e recursos para a atuação na área. Neste sentido, é
possível que reclamem um enquadramento profissional (tra-
balho de equipe e supervisão) que, se ausentes ou de difícil
consecução, será motivo para um grande desânimo frente à
carreira (BAZON, 1995).
Temos observado que muitos desses aspectos do desen-
volvimento profissional que a literatura aponta têm surgi-
do na nossa experiência enquanto supervisores e estagiários
de Psicologia no contexto da saúde mental. Assim, o objetivo
do presente trabalho é analisar e refletir a cerca da constru-
ção da identidade profissional em Psicologia, considerando
as experiências e os desafios inerentes a um estágio desen-
volvido em um Hospital Psiquiátrico de semi-internação, com
a introdução de um modelo teórico-metodológico diferen-
ciado, a Psicoeducação, no sentido que requer um modo de
atuação muito distante do tradicionalmente adotado pela
Psicologia.

403
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Metodologia
O CONTEXTO DO ESTÁGIO
O Hospital Dia da Faculdade de Medicina de Ribeirão
Preto/Universidade de São Paulo (HD-FMRP-USP) compõe
com outros serviços assistenciais uma rede de atendimen-
to a uma população portadora de patologias psiquiátricas
graves. O serviço oferece hospitalização parcial, com um
programa de cuidados intensivos realizados por equipe
multiprofissional. Em consonância com as abordagens e
referenciais teórico-metodológicos disponíveis na Psiquia-
tria, priorizam-se intervenções visando à melhora sinto-
mática e a reabilitação psicossocial.
Em termos de abordagem psicossocial, o serviço oferece
um conjunto diversificado de atividades que incluem, entre
outras, abordagens psicoterapêuticas, sobretudo grupais, te-
rapia ocupacional e familiar. O programa psicoeducativo in-
tegra o programa de assistência desta instituição desde 1998,
com atividades de treinamento de habilidades e projetos edu-
cativos, voltados aos usuários, visando fornecer informações
para a ampliação e aprofundamento dos conhecimentos acer-
ca das patologias e respectivos tratamentos.
Este referencial, de origem americana (ANDERSON;
REISS; HOGARTY, 1986), denominado Psicoeducação, orien-
tava as atividades clínicas do Programa de Psicoeducação
no Hospital Dia, caracterizando o atendimento, no tocante
à dimensão psicossocial, como fundamentalmente voltado
para a educação sobre a doença e a modificação do compor-
tamento. Acreditava-se na validade, para a área, de mode-
los de abordagem cognitivo-comportamental, porém, no
cotidiano, algumas experiências de trabalho levantavam
questionamentos sobre a necessidade de maior aprofunda-
mento e abrangência para as intervenções psicossociais de
modo a superar uma espécie de compartimentalização do
sujeito e sua redução ao cognitivo e/ou ao comportamental.
404
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

Houve um processo de busca por novos referenciais teó-


ricos e metodológicos que permitiu a aproximação do Pro-
grama de Psicoeducação ao modelo psicoeducativo, de
origem canadense, como uma alternativa possível para
atender aos anseios de qualificação das atividades de assis-
tência que vinham sendo desenvolvidas.
Neste contexto, iniciou-se em julho de 2001 o estágio em
Psicoeducação, oferecido aos alunos de quarto e quinto ano
da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão
Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP - USP). Uma
vez que não constava na literatura nacional nenhuma ten-
tativa de aproximação do modelo Psicoeducativo canaden-
se ao contexto hospitalar, o referido estágio marcou o início
de um trabalho de pesquisa e intervenção, em que novas
possibilidades de atuação passaram a ser desenvolvidas.
Em termos gerais, o modelo Psicoeducativo canadense
busca a adaptação ativa do sujeito à realidade através da
atualização de seus recursos em um meio de intervenção
planejado segundo suas necessidades.
As intervenções desenvolvidas pelo Psicoeducador, neste con-
texto, são construídas a partir de experiências compartilhadas
por ele e o usuário, que servem de base para o levantamento de
necessidades e potencialidades de desenvolvimento do sujeito.
Neste referencial o educador participa, “vivendo com”, da ro-
tina diária dos usuários, buscando com isso as experiências
significativas e capazes de promover desenvolvimento.
Em resumo, os pressupostos teóricos que orientam a in-
tervenção psicoeducativa são a compreensão da aprendiza-
gem a partir de uma perspectiva transformadora e dialética:
a valorização da experiência e da relação como instrumen-
to da intervenção e a compreensão das atividades desenvol-
vidas dentro da instituição, não como um fim em si mesmo,
mas sim como uma estratégia de intervenção planejada,
animada e utilizada para responder às necessidades de de-
senvolvimento do sujeito (GENDREAU, 1978).

405
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

O modelo Psicoeducativo, tendo em vista a sua abrangên-


cia, poderia ser o referencial adotado pela instituição como
um todo, contudo, decidiu-se por iniciar sua experimentação
dentro do programa do HD, através da implementação de
algumas atividades específicas, inspiradas em seus princípi-
os e conduzidas com seus métodos. Uma destas atividades
foi denominada BIOGRAFIA. Esta tem nos chamado a aten-
ção tanto pelo desafio que sua consecução representa quan-
to por seu impacto na relação educador-usuário.

A ATIVIDADE BIOGRAFIA
O objetivo geral dessa atividade consiste em identificar
e resgatar na história de vida do usuário os recursos e po-
tencialidades geralmente sobrepujados pela doença mental,
ou pelas representações em torno desta, criando condições
para uma reconfiguração e ressignificação da própria iden-
tidade do sujeito, para além da “doença”. A atividade tam-
bém seria propícia à coleta de dados de natureza diferente
da tradicionalmente seguida pelas instituições de saúde
(mental), que priorizam informações sobre a doença e sua
história evolutiva. Em relação aos usuários que ingressam
no programa do HD, a atividade biografia é particularmen-
te importante na medida em que diversifica as informações
sobre o usuário.
Para isso, estabeleceu-se que os estagiários teriam en-
contros semanais com os usuários, que permitissem a com-
preensão do sujeito de maneira integral, sobretudo nos seus
padrões de interação com as pessoas e objetos, através da
realização de atividades do cotidiano do serviço, como por
exemplo, tomar um chá, jogar ping-pong, almoçar, tomar
uma coca-cola na padaria da esquina e, até mesmo, indo à
sua residência para conhecer o seu ambiente de vida.
É importante frisar que todas estas ações são norteadas
pelo objetivo, definido através de um levantamento de ne-
cessidades dos usuários e este é explicitado aos mesmos de
406
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

antemão, de modo que as ações não se dêem a revelia do


sujeito. Assim, não há insignificâncias no que é vivido e
compartilhado entre profissional e usuário, e o fazer jun-
tos alguma coisa transcende o caráter ocupacional que,
eventualmente, poderia assumir.
A partir do material obtido nessas atividades, os estagi-
ários, em colaboração com os usuários, têm a tarefa de con-
ceber, de modo criativo, uma maneira deste ser apresentado
aos outros usuários do serviço e aos membros da equipe do
hospital, revelando aspectos até então negligenciados ou
desconhecidos. Tais aspectos são geralmente parte de sua
identidade que parecem lhe ter sido destituídos, às vezes
por si mesmo e, não raro, pelo ambiente de vida, do qual o
próprio hospital participa, ao dificultar a expressão daqui-
lo que não seja a doença e/ou a sua sintomatologia.
Assim, a apresentação da biografia ganha em sentido ao
evidenciar para o próprio usuário aspectos saudáveis seus,
criando condições para que haja uma re-apropriação. Em
relação ao ambiente do hospital, esta atividade pode propi-
ciar um “novo olhar” e este, por sua vez, um “novo lidar”.
Numa perspectiva sócio-interacionista, tem-se, assim, ali-
mentada uma dinâmica do contínuo desenvolvimento psi-
cológico (PALACIOS, 1995).
É necessário ressaltar que apesar da preocupação com a
apresentação final, em que o usuário participa mais ou
menos ativamente, dependendo dos seus recursos e desejo,
a intervenção em si dá-se ao longo dos encontros que a pre-
cedem e, também, imediatamente após, quando a experiên-
cia da apresentação pode ser retomada, levando em conta
as ações e reações de todos os participantes.

MÉTODO DE ANÁLISE
Neste trabalho apresentaremos fragmentos da implemen-
tação da atividade BIOGRAFIA desenvolvida por um gru-

407
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

po de estagiários, do ano de 2004, junto aos usuários e bus-


caremos discutir como o trabalho de elaboração dessa ati-
vidade despertou nesses estagiários algumas questões
fundamentais para a construção de sua identidade e papel
profissional.
Para tanto, realizamos uma dinâmica de grupo com os
atuais estagiários, com o objetivo de identificar a imagem
que eles tinham do profissional psicólogo e os desejos que
moviam suas escolhas em três momentos de suas carrei-
ras: 1) antes do ingresso no curso; 2) até os três primeiros
anos do curso e; 3) durante a realização do estágio.
Os estagiários também elaboraram um diário reflexivo
no qual relatavam o desenvolvimento de sua atividade BIO-
GRAFIA, atendo-se à descrição do processo vivido com o
usuário e ao impacto dessa experiência sobre eles.
A organização desse material para a construção desse
texto se constitui em um duplo desafio. O primeiro diz res-
peito à possibilidade de apresentar e inter-relacionar, no
mesmo texto, duas perspectivas semelhantes e ao mesmo
tempo, particulares: a do estagiário e a do usuário. Busca-
se pela detecção dos sentidos que a atividade BIOGRAFIA
resgata, em termos de trajetória profissional, em relação
aos estagiários e de história de vida, no caso do usuário.
Nosso segundo desafio refere-se à dificuldade de comu-
nicar toda a riqueza dessas experiências. Os limites impos-
tos pela linguagem exigiram de nós autores, um esforço
criativo na produção de um estilo de escrita que pudesse
melhor significar a complexidade do tema tratado. Além
disso, assumimos que o sentido criativo de nossa escrita
também diz respeito a uma produção de sentidos acerca das
experiências e não apenas seu mero relato.
Nosso esforço resultou na produção da história de um
estagiário imaginário que congrega os pontos relevantes
identificados a partir da dinâmica realizada com os três es-

408
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

tagiários. A história elaborada começa antes de sua entrada


na faculdade até chegar ao estágio em psicoeducação. A par-
tir daí apresentamos um relato de atividade, no qual busca-
mos não apenas apresentá-la de forma descritiva, mas
principalmente, salientar os aspectos subjetivos da expe-
riência dos estagiários. Nossa expectativa não é de que ela
seja uma explicação ou revelação de como a identidade pro-
fissional é construída e negociada durante as primeiras ati-
vidades práticas do psicólogo, mas que seja para o leitor uma
possibilidade de diálogo com suas próprias experiências.
Por fim, acreditamos que a complexidade deste trabalho
deve-se justamente ao foco escolhido: duas trajetórias dis-
tintas que, ao se encontrarem, multiplicam-se em novos
possíveis horizontes.

Resultados
A HISTÓRIA DO ESTAGIÁRIO
Quando comecei a pensar em meu futuro profissional
avaliava as possíveis carreiras a partir de meu interesse
pessoal, da influência de meus relacionamentos e das ques-
tões financeiras. A idéia de cursar Psicologia surgiu atre-
lada ao meu desejo de atuar em algo que me oferecesse mais
que uma razoável remuneração, como, por exemplo, poder
estabelecer relações e ajudar aos outros.
Para mim, o psicólogo era alguém equilibrado, conhece-
dor e detentor da solução de todo o sofrimento humano,
numa relação assimétrica, em que ele sabia o que era o
melhor para o paciente. Seu trabalho era sentar de pernas
cruzadas e mão no queixo, atrás do divã, com uma postura
de quem resolveria todos os problemas. Eu queria muito
ter as respostas, e achava que depois dos cinco anos de fa-
culdade eu as teria. A partir dessas idéias, resolvi prestar o
vestibular para Psicologia.

409
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Ao entrar no curso, percebi que, por mais que eu lesse os


livros, não encontraria todas as respostas, que elas não
estariam prontas como imaginei. Não existiam soluções
mágicas. Comecei a perceber que o não-saber, apesar de frus-
trante, era parte do que eu teria que aprender. Uma crise
foi inevitável, quando notei o quão idealizada encontrava-
se a minha imagem do que era ser psicólogo. No entanto, a
minha própria significação de crise mudou, o que antes era
assustador, negativo e precisava de uma “cura”, passou a
ser apenas mais uma parte necessária ao meu processo de
desenvolvimento.
No decorrer do curso, comecei a entrar em contato com
as várias possibilidades de atuação do psicólogo. Mais que
novas teorias, percebi que existiam outros campos de tra-
balho além da clínica. A partir disso, passei a buscar mode-
los mais flexíveis, de maior abrangência e que me davam
mais liberdade de ação, inclusive com uma perspectiva de
trabalho em equipe. Tudo isso, contribuiu com o questio-
namento do estereótipo que tinha de psicólogo. Fui desco-
brindo assim, que ele não é aquele que encontrou o equilíbrio
e se mantém nele, mas alguém que aceita e consegue lidar
melhor com o desequilíbrio natural do desenvolvimento.
Os questionamentos e as crises que surgiram ao longo
desses primeiros anos, me levaram a algumas escolhas. Uma
dessas questões dizia respeito ao modelo teórico e prático
que eu buscaria para minha atuação profissional. Ao con-
trário do que imaginei a princípio, não fui para a clínica,
mas escolhi um modelo que se adequava melhor aos meus
anseios pessoais: ter uma atuação abrangente e diversifi-
cada. Assim, optei em estagiar em um hospital psiquiátri-
co, numa abordagem Psicoeducativa.
O trabalho prático veio junto com a realidade da doença
mental, e isso me assustou muito. Os pacientes eram “nor-
mais” demais para a minha idéia de doente mental, e eu

410
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

precisei de tempo para aceitar o quanto aquilo era próximo


a mim. Seria mais confortável para minha atuação profis-
sional se eles se enquadrassem na visão que eu tinha do
paciente psiquiátrico como alguém que perdeu totalmente
a capacidade de se recuperar. Entretanto, o que eu vi foram
pessoas em profundo sofrimento e que tiveram como con-
seqüência uma acentuada desqualificação ou diminuição das
atividades que caracterizavam seu cotidiano; mas com po-
tencial para se reorganizar. O que eles precisariam era des-
cobrir um novo jeito de viver com aquela nova situação.
Os casos “saíram dos livros” e a proximidade com o pa-
ciente e seu sofrimento veio junto com muita frustração e
insegurança. A minha incapacidade de solucionar o proble-
ma dele me fez perceber o que hoje eu considero mais im-
portante na relação com paciente: a construção da melhora
depende muito de uma participação ativa do paciente e o
meu trabalho é apenas parte desse processo, criando condi-
ções para que ele o faça. Eu ajudo, mas não posso fazer pelo
outro a sua parte. Fui percebendo que a ajuda não se ofere-
ce, mas que ela acontece na relação com o paciente, e assim
o desenvolvimento é contínuo, tanto o meu quanto o dele.
Sei que estas questões que me incomodam hoje não vão
mais ter importância em algum tempo, e quando isso for
superado, outras surgirão. Minha insegurança continua e
hoje eu sei que ela sempre estará lá de alguma forma. Isso
já não me incomoda mais. A dúvida e a insegurança, antes
fonte de angústia, são hoje material de trabalho.

MINHA HISTÓRIA COM DONA TEREZA


Dona Tereza foi a primeira paciente com quem eu pude
trabalhar a atividade biografia. Ela já havia sido encami-
nhada por diversas vezes para um hospital de internação
total, devido a sua severa depressão e conseqüentes tenta-
tivas de suicídio.

411
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Eu a percebia como uma pessoa muito receptiva, comu-


nicativa, tanto que, às vezes, não me deixava nem falar. Além
disso, notava que sua fala contínua e inquietação sugeriam
intensa ansiedade. Ela também me parecia uma pessoa in-
teligente articulando com facilidade um saber de natureza
médica, relacionando nomes de doenças, suas causas, os
remédios indicados, seus efeitos e dosagens. Devido a isso,
era reconhecida pelos vizinhos e amigos como a “enfermei-
ra do bairro”, sendo continuamente procurada para saber
como curar um mal, que médico procurar e até mesmo que
remédio tomar.
Notava que as questões relacionadas à saúde e à doença
formavam um eixo de diálogo central em seus discursos.
Através disto a paciente relacionava-se com os outros em
busca de reconhecimento e aprovação social.
Nesse sentido, dona Tereza continuamente repetia his-
tórias nas quais cuidava de parentes e vizinhos.
Paralelamente, sabia-se que Dona Tereza tinha três fi-
lhos, mas estes só apareciam em suas falas quando ela re-
latava suas doenças e as inúmeras visitas que fazia com
eles aos “balcões” do Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto - USP.
Além disso, ela também me transmitia necessidade de
ter a atenção dos outros usuários nas atividades. Lembro-
me de certa vez em que foi proposta uma atividade na qual
cada usuário cuidasse de um “cantinho” hospital que pode-
ria ser um vaso de planta, uma mesa, o bebedouro, etc. Dona
Tereza insistiu em responsabilizar-se pela limpeza dos ba-
nheiros, fazendo do evento um ato muito mais complexo (e
talvez grandioso) do que a proposta inicial. Em seu discur-
so, ela revelava sua dedicação ao tratamento comparando-
se aos outros usuários.
Quando ela se referia à sua profissão (boleira), sempre
afirmava que fazia bolos que todos achavam maravilhosos
e altamente requisitados.

412
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

Todas essas percepções que tinha da paciente configura-


vam para mim um quadro bastante complexo. Ao conside-
rar o longo curso e a gravidade de sua doença e o tom
repetitivo e rígido de seu discurso, eu me questionava quan-
to às minhas capacidades de efetivamente contribuir com
seu tratamento. A insistência de dona Tereza em centrar-
se nos aspectos de sua doença dificultava meu trabalho de
encontrar potenciais e recursos a serem explorados.

A INTERVENÇÃO PROPOSTA
Em um primeiro momento, pensava que meu trabalho
seria o de ficar, como ela, conversando e pensando sobre
fatores que causaram seu transtorno. Talvez pudesse ex-
plorar como ela se sentia atualmente e como se relaciona-
va com a sua doença. Percebi, no entanto, que esta
perspectiva fundamentava-se em um modelo biomédico de
intervenção, no qual a doença ganhava destaque e encobria
os demais aspectos da vida da paciente. A partir disso, consi-
derei que dona Tereza havia aprendido conosco (profissio-
nais do sistema de saúde) um modelo de relacionamento ou
que, pelo menos, vinha usando em proveito da doença a ên-
fase por nós dada a estes aspectos seus.
Em um segundo momento, com o auxílio dos superviso-
res e com a experiência que o estágio me oferecia, comecei a
amadurecer profissionalmente e, à luz do modelo Psicoe-
ducativo, pensei na possibilidade de trabalhar com dona
Tereza fatos do cotidiano, considerados banais ou obscu-
recidos em seus relatos grandiosos, mas que na verdade
diziam respeito a outros aspectos de sua identidade pessoal
negligenciados por ela e por nós.
Passei, assim, a vasculhar nas suas narrativas tais as-
pectos. Mas o que seria isso? A mãe que cuida dos filhos,
não porque os leva aos balcões do Hospital das Clínicas da
FMRP - USP, mas porque faz o almoço deles, leva-os à esco-

413
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

la, ajuda-os na lição de casa. A dona-de-casa comunicativa


e receptiva com os vizinhos, a pessoa curiosa e que gosta de
ler, etc.
Esta mudança de foco surgia de uma percepção que eu
tinha da forma como dona Tereza se relacionava comigo e,
portanto, parte da intervenção era comunicar-lhe a minha
percepção acerca dessa maneira de interagir e, eventual-
mente, testemunhar-lhe que a assunção de tais papéis me-
recia reconhecimento.
E assim, compartilhei com ela minha observação de que
a doença está sempre muito presente nas nossas conver-
sas. Nesse período já me sentia cansado de estar com dona
Tereza em atividades regulares escutando seus relatos
repetitivos. Considerei a dificuldade de trabalhar em um
modelo de intervenção no qual a vivência cotidiana é o prin-
cipal material de intervenção, e para tanto, essas vivências
exigiam a capacidade de estar ao mesmo tempo afetivamente
engajado, porém preservando um distanciamento neces-
sário.
Chegado o momento de apresentá-la ao grupo, momento
culminante da atividade BIOGRAFIA, decidi aproveitar o
seu talento culinário e organizei a apresentação no forma-
to de uma brincadeira na qual faríamos um bolo. À dificul-
dade do esforço criativo em construir algo interessante e
significativo somavam-se a minha angústia e a confusão,
ao me questionar sobre como fazer um bolo com um usuá-
rio seria trabalho para um psicólogo e se isso de fato teria
algum valor terapêutico. Afinal, cozinhar não fazia parte
de nada que havia lido e aprendido nos anos de faculdade
que cursara até então. De todo modo, ousei. Junto com dona
Tereza, fui colocando cada um dos ingredientes que compu-
nham nosso bolo em uma vasilha, utilizando característi-
cas dela que eu havia observado para nomeá-los. Coloquei
toda a mistura em uma assadeira e levei a um forno fictí-

414
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

cio, no qual outro bolo que eu havia preparado em casa


aguardava. Nesse momento, falei sobre o simbolismo do
forno-fogo e da possibilidade de transformação em situa-
ções difíceis.

Resultados e repercussões
No decorrer da apresentação, dona Tereza percebeu que
eu tinha esquecido o fermento e disse: “Mas está faltando o
mais importante: o fermento”. Esta afirmação me indicou
um certo apelo dela, querendo me dizer: “Está faltando
minha característica mais importante, que é a que cuida
dos outros, a que entende de doença, a enfermeira do bair-
ro”. Mas inesperadamente, alguém do grupo se antecipou e
disse: “o fermento somos nós”, tomando-lhe o espaço para
reiterar o que lhe parecia ser o seu único recurso ou quali-
dade apreciável.
Depois da apresentação, conversando com ela sobre suas
impressões acerca da atividade, ela destacou o caráter sur-
preendente da vivência, ressaltando que até então não se
dava conta das características que eu havia enfatizado.
Mais tarde me procurou e disse que aquelas caracterís-
ticas a atrapalhavam, pois ela sempre cuida de todos e nin-
guém cuida dela. Nesse momento surgiu a pessoa que
também necessita de ajuda e pontuei que ela estava sendo
cuidada ali no hospital, embora ela dificultasse o processo
na medida em que “sabia tudo sobre a sua doença”.
Portanto, acredito que o principal efeito desse trabalho
foi permitir a dona Tereza perceber que esquema de intera-
ção por ela estabelecido, aparentemente interessante, pois
cheio de brilho e reconhecimento (“a conhecedora dos ma-
les, a enfermeira do bairro”), além de sobrepujar-se sobre
quem ela era, reduzia-lhe as possibilidades de interações
em que ela fosse efetivamente reconhecida na suas neces-
415
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

sidades e fragilidades, como alguém que também necessita


de ajuda.
Só foi possível à dona Tereza perceber-se assim, porque
esteve engajada em um tipo de relação comigo que era, pro-
vavelmente, diferente daquelas que havia estabelecido du-
rante sua história.
Viver com ela esse processo também significava para mim
a entrada em uma forma de interação profissional inédita e
transformadora. Nesse sentido, dona Tereza e eu, cada um
a seu modo, revisamos nossos discursos sobre nós mesmos
de modo a introduzir elementos novos à nossa identidade e,
assim, continuarmos na construção de nossa biografia com
uma sensação ampliada de ter um pouco mais de controle
sobre as formas de nos relacionarmos e assim, nos torna-
mos mais sujeitos da própria história.

Considerações finais
Nossa experiência enquanto supervisores e estagiários
na implantação e condução do estágio em Psicoeducação,
no HD tem sido marcada por inúmeros desafios estimulan-
tes, mas também, merecedores de muita reflexão.
Em primeiro lugar, embora se conte com um apoio da
comunidade científica e profissional, para a busca de novos
modelos de intervenção clínica, o recurso ao Modelo da
Psicoeducação é pioneiro no Brasil e, portanto, encontra-
se em fase de experimentação. Vale dizer que a Psicoeduca-
ção tem sua origem no campo sócio-comunitário e teve,
mesmo no Canadá, seu desenvolvimento e consolidação
bastante atrelados à área da proteção infanto-juvenil (BAZON,
2002). Trazer este modelo para o contexto de trabalho em
saúde mental constitui um esforço criativo e científico, na
medida em que existem poucos trabalhos disponíveis, mes-
mo na literatura internacional. Assim, a implantação des-
se estágio tem se dado no quadro de um contínuo movimento

416
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

de avaliação e transformação da prática desenvolvida, cri-


ando um contexto de abertura e experimentação que é, ao
mesmo tempo, fonte de angústia e de curiosidade investi-
gativa.
Isto ganha maior relevância quando pensamos acerca
da experiência dos estagiários que relatamos acima. É nes-
se contexto exploratório e experimental que o estudante de
Psicologia ensaiará seus primeiros exercícios teórico-me-
todológicos e técnicos. A isso, somamos o fato desses estu-
dantes estarem vivendo um significativo momento de
transição, no qual começam a se despedir da vida universi-
tária preparando-se para a entrada no mundo do trabalho.
Para além de uma crise previsível da identidade pessoal,
que marca a passagem mais ou menos abrupta da juventu-
de à vida adulta, inicia-se a troca de uma identidade estu-
dantil por uma profissional com a tomada de consciência
da grande responsabilidade inerente às profissões em geral
e, em específico, às de ajuda interpessoal. Acrescenta-se a
isso o “choque de realidade”, marcado pelas perdas e as se-
parações necessárias à substituição da imagem profissio-
nal idealizada por uma imagem mais realista.
Além do mais, a atuação profissional, segundo o modelo
Psicoeducativo, coloca o estagiário em um contato com os
pacientes no qual sua maneira de pensar, agir e sentir es-
tão constantemente em questionamento.
Esta vivência, permeada por estes inúmeros elementos
de transformação, certamente coloca o estagiário em uma
disposição particularmente vulnerável, em que o enquadra-
mento através de supervisões e discussões em grupo faz-se
imprescindível.
No caso do estágio em questão, a supervisão tem papel
fundamental como contexto de reflexão e desenvolvimento
técnico, e também como espaço continente às angústias dos
estagiários, concernente às crises inerentes à (re)construção
de sua identidade profissional.

417
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

É preciso sublinhar que o caráter dinâmico e experimen-


tal desse estágio oferece aos estudantes a possibilidade de
formar-se de maneira menos estereotipada, desenvolvendo
um espírito questionador, empreendedor e criativo. Apren-
der a lidar com o dinamismo das situações cotidianas e da
própria profissão, na sua necessidade de adaptar-se às de-
mandas e contextos de atuação constitui-se num desafio e
obrigação das instituições formadoras que devem necessa-
riamente conjugar os esforços de ensino, pesquisa e exten-
são, no sentido de legitimar o papel social das profissões de
relação de ajuda humana.

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420
20. A CONSTRUÇÃO DE GRUPOS DE
PROMOÇÃO DE SAÚDE: REPENSANDO A
PRÁTICA PROFISSIONAL DO PSICÓLOGO

Viviane Milan Pupin


Carmen Lúcia Cardoso
Trude Ribeiro da Costa Franceschini

Um galo sozinho não tece uma manhã:


ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
(João Cabral de Melo Neto)

As mudanças que ocorreram na área da saúde nas últi-


mas décadas trazem como convite o fazer juntos, em equipe,
através de processos que favoreçam a emergência da saúde.
O movimento da reforma sanitária propôs uma ampla
reformulação do setor de saúde, problematizando o tradicio-
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

nal modelo biomédico centrado no curativismo, no tecnicis-


mo, no individualismo, para propor uma atenção integral ao
usuário. Este movimento desembocou na implantação do
Sistema Único de Saúde (SUS).
O SUS foi construído através de uma grande mobiliza-
ção social, da qual participaram diversos atores sociais,
como profissionais, usuários da saúde, estudantes, profes-
sores, políticos, entre outros. Propõem novas concepções
do pensar e fazer saúde visando, principalmente, a demo-
cratização do acesso e a humanização do atendimento
(BORGES, 2002).
A saúde é considerada em sua positividade, enfocando a
qualidade de vida entendida como condição de vida, ou seja,
de viver bem e com prazer o cotidiano, implicando, assim,
num determinado nível de acesso a bens e serviços econô-
micos e sociais (MENDES, 1996).
Neste contexto, os princípios norteadores do SUS são: a
descentralização na gestão de serviços; a integralização das
ações; a regionalização e hierarquização das unidades pres-
tadoras de serviços; a participação da população na formu-
lação, planejamento, execução e avaliação das ações de saúde
e o fortalecimento do papel do município. Além disso, o
Estado deveria gradativamente se responsabilizar pelo fi-
nanciamento do sistema de saúde, através de uma ampla e
profunda reforma tributária (CORDEIRO, 1991; CARDOSO,
2002).
Na tentativa de viabilizar as propostas e os princípios
do SUS e reestruturar e reorganizar o sistema de atenção
primária foi criado pelo Ministério da Saúde em 1994 o
Programa de Saúde da Família (PSF). O PSF propõe a des-
centralização das ações, com tomadas de decisões mais par-
ticipativas e horizontalizadas, redistribuindo o poder
decisório e rompendo com as perspectivas mais hierarqui-
zadas próprias do modelo biomédico. O foco centra-se na

422
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

família e não mais no indivíduo, concebendo a saúde na


multiplicidade de fatores que a compõem. Para efetivar suas
ações, o PSF tem como ponto central o estabelecimento de
vínculos e a criação de laços de compromisso e de co-res-
ponsabilidade entre profissionais de saúde e a população
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2000).
A proposta do PSF de ser um serviço de proximidade à
comunidade, agindo num território específico, voltado à
coletividade, intersetorial, integral e que enfatiza a promo-
ção da saúde, tem permitido o estabelecimento de relações
de solidariedade e ajuda mútua.
A promoção da saúde conceituada como “processo de
capacitação da comunidade para atuar na melhoria de sua
qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participa-
ção e controle deste processo” (FIRST INTERNACIONAL
CONFERENCE ON HEALTH PROMOTION, 1986, p.1),
ressalta o papel da cidadania na construção da descentrali-
zação da saúde. Cabe assinalar que para desenvolver traba-
lhos e ações que promovam saúde é preciso atuar em
diversas instâncias, como política, econômica, social, en-
tre outras. A equipe de saúde terá que aprender a fazer, uma
vez que o foco sai da doença e passa a ser a saúde na sua
positividade, no fazer cotidiano, no acolhimento e no acom-
panhamento longitudinal da comunidade.
Voltamos ao início enfatizando que os atores sociais que
compõem a área da saúde têm o compromisso de produzir o
CUIDADO para que a manhã/saúde possa se elevar por si
mesma, como um toldo livre de armação

Objetivos
Objetiva-se relatar a experiência da construção de um
grupo de dança de salão como uma atividade no contexto
do Programa de Saúde da Família, e, ainda, refletir, a par-
423
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

tir desta atividade grupal, sobre a formação do estagiário


de Psicologia para a atuação no nível de atenção primária
à saúde.

Estratégias de Intervenção
O estágio – O psicólogo em uma equipe do Progra-
ma de Saúde da Família: desenvolvendo programa
de promoção de saúde na comunidade
“Assim como falham as palavras
quando querem exprimir qualquer pensamento,
Assim falham os pensamentos
quando querem exprimir qualquer realidade.”
(Fernando Pessoa/Alberto Caeiro)

O estágio é oferecido aos alunos do quarto e quinto ano


do curso de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP - USP), sob a supervi-
são e coordenação da Profa. Dra. Cármen Lúcia Cardoso.
Anualmente são oferecidas de três a dez vagas e teve início
em fevereiro de 2002.
Para a realização do presente estágio foi efetuada uma
parceria entre a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
de Ribeirão Preto (FFCLRP - USP) e a Faculdade de Medi-
cina de Ribeirão Preto (FMRP - USP), para que o mesmo
pudesse ser desenvolvido em uma das unidades do Centro
de Saúde Escola (CSE) da FMRP. O CSE da Vila Tibério era
uma unidade materno-infantil, mas desde o início do ano
2000 vem desenvolvendo concomitantemente o Programa
de Saúde da Família (PSF).
O CSE da Vila Tibério conta com uma equipe mínima do
PSF, composta de um médico generalista, uma enfermeira
e cinco agentes comunitárias de saúde. Esta equipe foi in-
tegrada à antiga unidade materno - infantil que tem em seu

424
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

quadro funcional: quatro pediatras, dos quais uma é coor-


denadora da unidade, um ginecologista-obstetra, uma en-
fermeira e técnicas de enfermagem. A unidade não conta
com psicólogo contratado, mas aponta a necessidade de tal
profissional junto à equipe, podendo contribuir para um
melhor desenvolvimento do trabalho junto à comunidade.
A proposição geral do estágio foi trabalhar dentro de um
modelo mais integrado, reconhecendo a saúde como um fe-
nômeno multidimensional, na tentativa de superação do
modelo biomédico, caminhando para uma compreensão mais
holística do processo saúde/doença dentro do modelo biopsi-
cossocial e com enfoque na promoção da saúde.
Para tanto, adotou-se no estágio o referencial teórico
metodológico do construcionismo social, que considera que
a produção de sentidos no cotidiano se dá através das prá-
ticas discursivas, ou seja, que os termos e as formas por
meio das quais conseguimos a compreensão do mundo e de
nós mesmos são produtos de trocas entre pessoas, situadas
histórica e culturalmente. A linguagem é, para o constru-
cionismo social, uma ação social que não descreve um mun-
do independente, mas o constrói ativamente. Dessa forma,
o sentido é uma construção social e sua produção é uma
prática social, dialógica, que implica a linguagem em uso
(GERGEN, 1997; SPINK; MEDRADO, 2000).
Tendo em vista a recente implantação do PSF e a inser-
ção de estagiários de Psicologia neste programa, este está-
gio configurou-se como um trabalho de intervenção e
pesquisa, que busca construir novas propostas de atuação
para o psicólogo na saúde pública, diverso do modelo tradi-
cional centrado na clínica.
O trabalho inicial do estagiário de Psicologia era de obser-
vação e acompanhamento das atividades desenvolvidas na
Unidade visando que o aluno pudesse conhecer o território
no qual estava se inserindo. Paralelamente a essa observa-

425
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

ção participante, o estagiário, juntamente com as agentes


comunitárias de saúde, realizaram um levantamento das
necessidades e recursos da comunidade e discutiram possí-
veis formas de intervenções centradas na promoção de saú-
de. Para tanto, foi introduzida na rotina da Unidade uma
reunião semanal, de uma hora de duração, com a participa-
ção dos estagiários de Psicologia, a docente responsável pelo
estágio e a equipe do PSF. O objetivo principal desta reunião
foi dar voz às diferentes formas de pensar e agir numa equipe,
independentemente dos níveis hierárquicos pré-existentes,
valorizando as trocas e a criatividade entre os participantes
e, portanto, ampliando possibilidades de atuação voltada
para a comunidade por parte da equipe de saúde, especial-
mente das agentes comunitárias, em consonância com os
princípios norteadores do SUS e do Programa de Saúde da
Família, no contexto de atenção primária à saúde.
A partir das discussões realizadas nessas reuniões se-
manais foram desenvolvidas propostas de trabalhos e ini-
ciados, então, três grupos de promoção de saúde, a saber:
grupo de dança de salão, grupo de reflexão e grupo de arte-
sanato. Estes grupos são coordenados por agentes comuni-
tárias e estudantes de Psicologia. A coordenação de cada
grupo definiu de forma sistemática um programa para a
condução do mesmo, especificando os objetivos, as ativida-
des, o local, a duração, a freqüência, os participantes e as
formas de avaliações dos grupos. Além disso, foram intro-
duzidas reuniões semanais com os coordenadores de cada
um dos grupos, para o planejamento, o acompanhamento e
a avaliação dos mesmos.

“Alegria de dançar”: a construção de um grupo de


dança de salão
“É fazendo que se aprende a fazer aquilo que se deve aprender a fazer”
(Aristóteles)

426
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

A partir das visitas domiciliares realizadas juntamente


com as agentes comunitárias, participação nas reuniões
multidisciplinares de discussão de casos e consulta aos
prontuários das famílias cadastradas, foi possível levantar
as necessidades da comunidade inserida na área de abran-
gência do Programa de Saúde da Família. Identificou-se a
predominância de pessoas idosas, que, na sua maioria, mo-
ravam sozinhas e mantinham poucos relacionamentos in-
terpessoais. A principal queixa desses idosos era de solidão
e de abandono por parte de familiares e amigos, além de
apontarem a necessidade e o desejo de estabelecer novos
vínculos. Uma das moradoras sugeriu, em um encontro com
as estagiárias de Psicologia e agentes comunitárias de saú-
de, que fosse organizado um grupo de dança de salão.
Esse processo de escuta/atenção à comunidade desembo-
cou na realização de reuniões com a equipe de saúde da fa-
mília onde foram gestadas propostas de intervenções em
promoção de saúde voltadas para essa clientela. Após várias
discussões, definiu-se pela construção de um grupo de dan-
ça de salão. Para tal, mobilizou-se um grupo da própria co-
munidade, incluindo as agentes comunitárias, na busca por
recursos da comunidade para montar o grupo de dança.
O professor de dança, que residia na área de abrangên-
cia, foi convidado pela agente comunitária de saúde res-
ponsável pelas visitas domiciliares em sua casa e o mesmo
se dispôs a ensinar o grupo voluntariamente, durante o
período de um ano. Após esse contato, o professor foi con-
vidado a participar das reuniões de planejamento do grupo
realizadas entres os coordenadores e pôde colaborar na sua
construção. Várias e diferentes vozes se uniram em um todo
plural na busca de objetivos muito semelhantes, ou seja,
melhorar as condições de vida, minimizando sofrimentos e
ampliando potencialidades.
Neste contexto, foi possível sistematizar os objetivos do
grupo de dança de salão, a saber: construir um espaço fa-

427
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

vorecedor de vínculos afetivos entre os participantes do gru-


po e a longo prazo a formação de uma rede de suporte social,
tendo em vista serem moradores de uma mesma comunida-
de; facilitar uma maior interação entre a instituição de saúde
e a comunidade, aproximando a comunidade das práticas
de saúde e a equipe do “universo comunitário”, rompendo
com o discurso do distanciamento entre essas instâncias;
aprendizagem da dança concebida como um meio para se
conquistar bem-estar e qualidade de vida; participação ati-
va e criativa no grupo visando gerar autonomia; espaço para
reflexões de temas referentes à promoção de saúde e aos
novos paradigmas, problematizando o modelo assistencia-
lista/paternalista em saúde, centrado na doença.
A comunidade foi convidada a participar do grupo atra-
vés de convites feitos pessoalmente pelas agentes comuni-
tárias de saúde durante as visitas domiciliares e de cartazes
fixados na Unidade de Saúde e nos estabelecimentos comer-
ciais do bairro.
Em consonância com o referencial teórico-metodológico
adotado havia a preocupação com a valorização do espaço
coletivo de decisões e, assim, nas reuniões iniciais com a
comunidade, foi apresentado o planejamento realizado pela
equipe de saúde e, em seguida, foi solicitada a contribuição
de todos para a construção desse espaço grupal. A partir
daí, o grupo propôs que a cada final de mês fosse realizado
um baile temático, para que pudessem treinar os passos de
dança aprendidos, convidar outras pessoas para o espaço
do grupo - ampliando os contatos interpessoais e ser um
momento de maior descontração.
Os participantes juntamente com os coordenadores con-
feccionavam enfeites e decoravam o salão para os bailes
mensais. Decidiu-se que os aniversários do mês seriam co-
memorados nos dias de baile, assim, alguns participantes
levavam toda a sua família para comemorar o seu aniver-
sário no grupo.

428
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

Além disso, os participantes do grupo sugeriram um


momento de confraternização semanal realizada ao final
de cada encontro, onde se organizavam para trazer algum
tipo de bebida e/ou comida.
O grupo ficou dividido em três momentos, a saber: ini-
cialmente um momento de discussões de aspectos gerais da
saúde, vida e cidadania, onde todos os participantes cons-
truíram ativamente este momento, trazendo contribuições
como textos, poesias e sugestões para os próximos encon-
tros, constituindo-se num fazer coletivo e implicado. Após
esse momento inicial, realizava-se a aula de dança de sa-
lão, onde o professor ensinava os passos de diversos ritmos
e no final havia o momento de confraternização.
Este grupo foi coordenado por duas agentes comunitá-
rias e dois estagiários de Psicologia, configurando-se como
um grupo aberto, realizado semanalmente, com duração de
duas horas, num espaço dentro do próprio bairro, cedido
pelos seus representantes. O grupo contou com a partici-
pação média de vinte pessoas, sendo que, em dias de baile
temático esse praticamente número dobrava. Constituiu-
se basicamente de pessoas da terceira idade, com uma leve
predominância de mulheres.
Cabe ressaltar que, para cada encontro, havia um mo-
mento de planejamento do mesmo, onde agentes comunitá-
rias e estagiários de Psicologia pensavam e discutiam sobre
o andamento do grupo, refletindo aspectos que haviam ocor-
rido no encontro anterior e planejando a coordenação do
próximo encontro.
Continuamente o grupo era ressignificado, ou seja, os
participantes adotavam uma perspectiva reflexiva em rela-
ção ao mesmo, discutindo aspectos relacionados ao seu fun-
cionamento e propondo sugestões críticas. Além disso, no
final de cada semestre era realizada de forma criativa a
avaliação do grupo, visando colocar em diálogo as formas

429
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

com que os participantes descrevem a sua participação nesta


experiência grupal e os sentidos da mesma.
Na primeira avaliação foi sugerido que o grupo tivesse
um nome. Várias foram as propostas de nomes para o gru-
po e, decidiu-se por realizar uma eleição. O nome mais vo-
tado foi “Alegria de Dançar” e os participantes relacionaram
o mesmo ao que o grupo representava para eles – a dança
como uma forma de se alegrar, de se divertir, de mudança
da rotina, de encontro com outros.
A partir da avaliação anual, selecionamos trechos do
relato dos integrantes que descrevem os sentidos produzi-
dos sobre a experiência do grupo “Alegria de Dançar”.

Espaço para o desenvolvimento de relações inter-


pessoais
Os participantes descrevem o grupo como sendo um es-
paço onde eles puderam fazer novas amizades e conviver
com pessoas diferentes. O participante 2 estreita de tal modo
os novos laços que os compara a uma nova família, prova-
velmente pela capacidade de atenção, escuta, e pertença que
o grupo foi adquirindo.
“... grupo de dança pra mim está sendo uma nova famí-
lia que eu estou conhecendo...” (Participante 2 – P2).
Citam, ainda, mudanças em relação à comunicação, fa-
vorecida pelas trocas horizontalizadas que o grupo propôs.
Eles passaram a se sentir mais à vontade para conversa-
rem com médicos, enfermeiras, técnicas de enfermagem e
agentes comunitárias, aproximando a equipe de saúde dos
usuários.
“Em minha vida, a comunicação com as pessoas ficou bem
melhor, com as enfermeiras, com o professor...”(Participante
1 – P1);

430
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

Aprendizagem da dança de salão


Alguns participantes valorizaram a oportunidade de po-
der aprender a dançar, aprender novos passos e ritmos de
dança de salão.
“estou aprendendo a dança...” (P3);
“...melhorar minha dança, principalmente o forró....”
(P4).

Valorizam o grupo como um momento de distra-


ção e lazer
Os participantes perceberam o grupo como sendo um
lugar para se distraírem das preocupações do dia a dia e,
ainda, que esses momentos de lazer propiciaram um sen-
tir-se bem.
“quando estou no grupo de dança sinto-me muito bem,
me distraio, areja a cabeça, esqueço das preocupações” (P5).

Conquistas em relação à saúde


O grupo foi, diversas vezes, relacionado a melhoras em
aspectos físicos, psicológicos e sociais. Os exemplos, abai-
xo, descrevem o grupo numa perspectiva não fragmentada
da saúde, ou seja, como veículo para melhora da coordena-
ção motora, da mente, e de encontros que podem conferir
alegria.
“para mim está sendo uma terapia principalmente bom
a saúde. Me sinto uma outra pessoa com as novas amizades
que eu estou fazendo”(P6);
“Sinto mais disposição, é bom para a mente por causa
da coordenação motora” (P4);
“Eu percebo que estou mais animada e minhas pernas
estão mais desembaraçadas” (P7);
“O grupo de dança é uma terapia para aquelas que preci-
sam de alegria” (P8).

431
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Expectativas de continuidade do grupo


Desejo de continuidade da experiência vivida no grupo,
traduzida como amizade, brincadeiras e conversas.
“que se um dia se acabar o grupo, que as pessoas não
acabem com a amizade também, pois temos que se comuni-
car, brincar, da mesma forma um com o outro” (P10).
Citam ainda o desejo de ampliação do que está sendo vi-
vido e a percepção de que isso poderá acontecer num futuro
próximo. A participante mostra-se co-responsável pela di-
reção que o grupo irá tomar, acreditando que poderá criar
novas possibilidades de encontro para os participantes.
“Da maneira com que está acontecendo, penso que em
futuro próximo estaremos fazendo excursão a outros luga-
res, conhecendo e fazendo novas amizades” (P9).
Cabe ressaltar ainda, que o grupo foi significado como
sendo propiciador da aquisição de autonomia por parte
dos participantes, uma vez que os mesmos começaram a se
reunir para irem a bailes e eventos musicais da cidade. Os
coordenadores mostravam-se disponíveis em fornecer in-
formações sobre os locais dos eventos, horário e meio de
transporte.
Além disso, notou-se uma participação mais assídua dos
integrantes do grupo em fóruns de decisões políticas, como
a Comissão Local de Saúde, demonstrando um maior en-
volvimento e sendo representantes da comunidade local
nesta instância deliberativa do sistema de saúde.

Discussão e considerações finais


“O que hoje é realidade foi outrora imaginação”
(Willian Blake).
A descrição deste relato de experiência – a construção de
um grupo de dança de salão, no contexto do Programa de
Saúde da Família – possibilita reflexões sobre a inserção
do psicólogo no campo da assistência pública à saúde.

432
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

O movimento de reorientação das modalidades de aten-


ção em saúde tem exigido mudanças na formação dos profis-
sionais de saúde, na perspectiva de desenvolver capacidades
distintas das produzidas pelo modelo biomédico. Neste sen-
tido, a criação deste estágio em Psicologia num Programa
de Saúde da Família constitui-se num desafio, uma vez que
busca por novos paradigmas em consonância com as pro-
postas e diretrizes do Sistema Único de Saúde para a aten-
ção primária.
Os estagiários juntamente com os profissionais do PSF
e a comunidade construíram uma possibilidade de inter-
venção marcada desde o início pela pluralidade de vozes,
num movimento contra hegemônico, criando um espaço
favorecedor do crescimento de todos os atores envolvidos,
os usuários dos serviços, os profissionais de saúde e os es-
tudantes de Psicologia.
Em consonância com o referencial teórico-metodológico
adotado, o grupo constituiu-se num contexto relacional, onde
através da linguagem – entendida como ação social que pro-
duz sentidos – os participantes e coordenadores foram cons-
truindo o grupo e novas formas de ação no mundo.
O grupo foi entendido não como algo já existente à prio-
ri, mas como um processo de negociação, onde cada indiví-
duo é co-responsável pela contínua construção do mesmo.
A conversação grupal, por sua vez, fez com que partici-
pantes entrassem em contato com a diversidade de senti-
dos sobre si mesmo e sobre o mundo, ressignificando e
ampliando, inclusive, noções sobre saúde.
A participação no processo de construção de uma ativi-
dade em saúde pública possibilitou ao estagiário de Psico-
logia colocar em diálogo e problematizar as concepções sobre
o “fazer - saber psicológicos” produzindo novas práticas e
propiciando reflexões sobre as contribuições que a Psicolo-
gia, com suas ferramentas de trabalho, pode oferecer tanto
para as equipes de saúde, quanto para a comunidade.

433
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

A construção da identidade profissional coloca o aluno


em constantes questionamentos e exige sua participação
ativa e criatividade. Neste sentido a supervisão se consti-
tui em um momento ímpar para discussão e reflexão destas
atuações, (re)significando práticas e sendo um espaço de
acolhimento das angústias suscitadas pela prática profis-
sional.
Neste estágio, desenvolvido em uma instituição de ensi-
no superior, acredita-se na importância de se desenvolver
pesquisas e práticas psicológicas capazes de abordar o so-
frimento humano na multiplicidade de descrições que este
comporta, incluindo parcelas da população que vivem em
condições desfavorecidas e excluídas do acesso a estes ser-
viços. Almeja a formação de profissionais/pessoas engaja-
dos com a realidade do país e que sejam capazes de análises
críticas destes contextos, desenvolvendo práticas centra-
das nos usuários dos serviços e estando implicados com as
propostas de mudanças na área da saúde.
Finalizamos trazendo para o diálogo o relato de uma
participante do grupo “Alegria de dançar”, que expressa o
sentido que essa atividade, voltada para a produção do cui-
dado e da saúde, para o acolhimento, para a solidariedade.
“[...] encontrar alegria, amizade, conforto espiritual,
apoio nessa idade que ninguém mais quer sequer olhar para
você , (...) você terá alguém para ouvi-lo e se importar com
problemas que antes eram só seus. Além de tudo isso, você
terá a oportunidade de aprender a dançar, a conviver e se
relacionar com pessoas diferentes e ao mesmo tempo espe-
ciais como você” (P10).

Referências

BORGES, C. C. Sentidos de saúde/doença produzidos numa


comunidade alvo do Programa de Saúde da Família (PSF).

434
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

2002. Dissertação (Mestrado em Psicologia) Faculdade de Filosofia,


Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo,
Ribeirão Preto, 2002.
CARDOSO, C. L. Tratamento odontopediátrico no contexto
de uma clínica-escola: avaliação do estresse da criança, do
acompanhante e do aluno. 2002. Tese (Doutorado em Psicologia)
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto,
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2002.
CORDEIRO, H. Sistema Único de Saúde. Rio de Janeiro: Ayuri
Editoral, 1991.
GERGEN, K.J. Realities and relationships. Cambridge: Harvard
University Press, 1997.
MENDES, E. V. Uma agenda para a saúde. São Paulo: Hucitec,
1996.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Cadernos de Atenção Básica.
Programa Saúde da Família. Brasília, 2000.
FIRST INTERNACIONAL CONFERENCE ON HEALTH
PROMOTION, Ottawa charter for health promotion. Ottawa:
Canadá, 1986.
SPINK, M.J.; MEDRADO, B. Produção de sentidos no cotidiano:
uma abordagem teórico-metodológica para análise das práticas
discursivas. In: SPINK, M.J. (org.) Práticas discursivas e
produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e
metodológicas. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2000. Cap.2, p.41-62.

435
21. A POSSIBILIDADE DE FAZER
DIFERENTE: A EXPERIÊNCIA COMPARTILHADA
FAVORECENDO A RESSIGNIFICAÇÃO DE
CRENÇAS E DESEJOS A PARTIR DO ENCONTRO
COM CANDIDATOS À ADOÇÃO

Manoel Antônio dos Santos


Letícia Pereira da Silva
Renata Loureiro Raspantini
Fernanda Aguiar Pizeta
Letícia Araújo Moreira da Silva

Da possibilidade de fazer diferente


Uma das principais características do ser humano é o
desejo de dar sentido à vida e transcender a certeza da mor-
te, na medida em que se torna consciente de sua finitude.
Assegurar aos descendentes a transmissão das marcas de
nossa identidade, tanto de um ponto de vista concreto como
simbólico, por meio da experiência da maternidade e pater-
nidade, é um dos recursos que dispomos para garantir nosso
anseio de permanência e continuidade. No entanto, algumas
famílias apresentam uma configuração familiar na qual não
é possível a continuidade biológica. Essa situação é obser-
vada na maioria das famílias adotivas, nas quais as relações
parentais baseiam-se mais especificadamente nas intersecções
afetivas que caracterizam os vínculos entre os seus membros
(LEVINZON, 2004).
Regida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA,
artigos 39 a 152), a adoção no Brasil pode ser dividida em:
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

clássica e moderna. A adoção clássica preocupa-se com a


solução da questão dos casais sem filhos, ao passo que a
moderna prioriza os interesses e necessidades da criança,
buscando oferecer-lhe um lar e proporcionar condições mí-
nimas de desenvolver-se integralmente.
Estudos sobre o tema da adoção demonstram a preferên-
cia dos pretendentes por crianças brancas, do sexo femini-
no e recém-nascidas (PEREIRA; SANTOS, 1998). Por conta
dessas restrições sociais e a não consolidação de uma cul-
tura da adoção na realidade brasileira, crianças com mais
idade, negras ou portadoras de alguma deficiência ou en-
fermidade encontram dificuldades para serem alocadas em
famílias substitutas. A adoção de crianças que desviam do
perfil comumente desejado pelos adotantes é defendida pela
concepção moderna de adoção, que preconiza a necessidade
de “uma família para a criança” em vez de “uma criança
para a família”.
Segundo Pereira e Santos (1998), em um estudo realizado
no Fórum de Ribeirão Preto, 65% dos casais cadastrados
preferem crianças de cor branca, com idade de até um ano
(71%), 51% não tem preferência quanto ao sexo e 36% prefe-
rem menina, sem problemas físicos (91%) e mentais (95%).
Desses casais, 78% dos cônjuges são de cor branca, o que
pode estar associado à preferência por crianças dessa mes-
ma cor. Desse modo, os casais parecem reproduzir o modelo
de família biológica ao buscarem adotar crianças recém-nas-
cidas e de cor semelhante à sua, privilegiando o perfil de fa-
mília socialmente aceito e valorizado em nossa cultura.
Esses dados contrastam com outros estudos, que anali-
sam inúmeros exemplos de adoções bem-sucedidas que não
seguem esse padrão culturalmente valorizado. Referimo-nos
às denominadas adoções tardias – isto é, aquelas realiza-
das quando a criança tem dois anos ou mais – e as adoções
inter-raciais. Essas adoções são consideradas relativa-
mente raras e estão cercadas por estigmas e preconceitos

438
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

sociais que interferem no estabelecimento do vínculo pa-


rental (SANTOS et al., 2004a).
Segundo Weber (1998), a adoção tardia é vista como um
processo mais delicado, uma vez que a criança ou adoles-
cente já possui um conjunto de idéias, valores e hábitos pré-
estabelecidos e, geralmente, experiências passadas dolorosas
e potencialmente conflituosas. A adoção inter-racial, por
sua vez, sofre o preconceito da explicitação social da ado-
ção devido à visibilidade acarretada pela diferença de cor;
como a adoção muitas vezes ainda é mal vista em alguns
círculos sociais ou avaliada sob o olhar indulgente da fi-
lantropia, esse tipo de organização familiar torna-se mui-
tas vezes rechaçado socialmente.
Nota-se, assim, que apesar da adoção corresponder a uma
prática antiga, ainda hoje engendra vários questionamen-
tos e suscita polêmicas, por estar permeada por desinfor-
mação, mitos, tabus, preconceitos e estereótipos que se
encontram enraizados no imaginário coletivo (SCHETTINI,
1998).
Dentre as diversas fantasias que povoam o imaginário
dos pais adotantes, as relacionadas aos temores devido à
hereditariedade e ao desconhecimento da história pregres-
sa da criança são as mais freqüentemente destacadas pela
literatura (VARGAS, 1998; SCHETTINI, 1998; PEREIRA;
SANTOS, 1998; PIZETA; SANTOS, 2004; SANTOS; KODATO,
2004). Tais fantasias podem estar reforçadas e potenciali-
zadas pela crença extremamente difundida de que a soma
de experiências prévias de um indivíduo afeta a sua capaci-
dade de se relacionar com as outras pessoas (WEBER, 1998).
Como as crianças oferecidas à adoção geralmente trazem
em sua bagagem histórias de dor e sofrimento em virtude
do rompimento precoce de vínculos afetivos, o potencial
disruptivo dessas experiências traumáticas poderia torná-
las mais vulneráveis a apresentar dificuldades de ajusta-
mento psicossocial.

439
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Além disso, o desconhecimento da origem hereditária da


criança fomenta nos pais adotivos o medo de que ela possa
desenvolver anormalidades e deficiências no decorrer do
seu desenvolvimento em decorrência de fatores genéticos.
Schettini (1998) denomina de medo da hereditariedade pa-
tológica essas fantasias que ocorrem nos pais adotivos. E
uma das áreas em que eles mais temem a prevalência das
características herdadas é a da organização da personali-
dade, que se estrutura paralelamente à afirmação da auto-
imagem do adotado, intimamente associada à percepção de
sua origem.

Do compartilhar: A co-construção de
significados
Este estudo tem por objetivo demonstrar como uma in-
tervenção grupal sistematizada pode contribuir para a pos-
sibilidade de mudança da atitude tradicional em relação à
adoção e, mais precisamente, em relação à adoção tardia.
Será focalizado um grupo de orientação psicológica para
candidatos à adoção, inscritos no cadastro do Forum de uma
cidade do interior de São Paulo, que aguardavam a chegada
da criança.
Sob a coordenação geral do primeiro autor, o grupo foi
planejado e executado pelas demais autoras do presente
capítulo, pesquisadoras do Grupo de Assistência Integral à
Adoção (GAIA) da FFCLRP-USP, todas bolsistas de Inicia-
ção Científica da FAPESP em função de diferentes projetos
relacionados à temática da adoção.
Segundo Bechelli e Santos (2002), o trabalho grupal pos-
sibilita, por meio do encontro com o outro, o contato com o
desconhecido que nos habita, o que pode fomentar mudan-
ças de atitudes com relação aos aspectos da realidade. Foi
pensando na possibilidade transformadora que o enquadre

440
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

grupal favorece que se elaborou um trabalho de interven-


ção grupal sistematizado para a orientação psicológica a
adotantes.
O enfoque desse estudo privilegiará uma das reuniões
dos pretendentes à adoção, na qual se promoveu o encontro
com um casal que havia adotado dois meninos, irmãos bio-
lógicos. O casal foi convidado pelos coordenadores do gru-
po como parte de uma estratégia que visava facilitar o
contato com modelos de adoção bem-sucedida que escapam
do modelo tradicional que comumente é difundido (no caso
em foco, trata-se de uma dupla diferença: adoção de irmãos
e tardia, simultaneamente).

Da construção do contexto
conversacional
O Grupo de Orientação Psicológica a Adotantes, desen-
volvido no segundo semestre de 2002, teve como finalidade
fornecer orientação psicológica a candidatos à adoção, pro-
movendo reflexões a respeito de temas relacionados ao pro-
cesso, além de fornecer ativamente informações sobre os
trâmites legais dele decorrentes (SANTOS et al., 2004b).
Foi delimitada, a priori, a realização de nove encontros, com
freqüência semanal. Trata-se, portanto, de um grupo de
duração limitada, que contou com a participação de 11 in-
tegrantes, dentre os quais cinco constituíam casais.
É válido destacar também que esse grupo caracterizou-se
por ser um grupo fechado, ou seja, não era permitida a en-
trada de novos participantes no decorrer do processo. Cada
encontro tinha uma temática específica que norteava as ati-
vidades desenvolvidas pelos participantes e orientava o tra-
balho da coordenação, a quem competia manter a centralidade
do foco do trabalho grupal sobre o preparo psicológico dos
adotantes para acolherem o filho que estavam aguardando.

441
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Os passos para a construção do contexto dialógico fo-


ram detalhados em trabalho anterior (SANTOS et al, 2004b;
SILVA; SANTOS; RASPANTINI, 2004b).
No sétimo encontro realizado o objetivo era contrapor a
imagem da criança idealizada (expectativas dos adotantes)
com as possibilidades reais de adoção, bem como demons-
trar a possibilidade de satisfação com uma adoção conside-
rada especial e rara. Para tanto, um casal, Rosália e Airton,
que havia adotado dois meninos – irmãos biológicos que,
na época da adoção, contavam com três e quatro anos de
idade, respectivamente – foi convidado a dar seu depoimen-
to a respeito das dificuldades e satisfações vivenciadas no
percurso dessas adoções. Cumpre destacar que, por moti-
vos éticos, os nomes apresentados ao longo desse trabalho
são fictícios, a fim de garantir a preservação do anonimato
dos participantes.
O casal convidado foi sabatinado pelos participantes, que
questionaram como surgiu a opção deles por esse tipo de
adoção, as dificuldades, preconceitos e mitos sobre as su-
postas “manias” que as crianças adotadas trazem “do ber-
ço” e que naquelas adotadas tardiamente supostamente
seriam mais difíceis de corrigir.

Do encontro: O potencial
transformador do grupo
Diante do casal que generosamente se dispôs a oferecer
seu testemunho, os participantes do grupo inicialmente ma-
nifestaram muita curiosidade a respeito de como havia sido
o processo de adaptação das crianças à nova família. Indaga-
ram a respeito das “manias” que os adotivos apresentam e
de seus comportamentos e reações afetivas em relação aos
pais adotivos – se, por exemplo, elas os chamavam de “pai”
ou de “mãe”.

442
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

Mas como que é a adaptação deles? Porque uma criança


de quatro anos já sabe o que é mãe e o que é pai. (Eva, par-
ticipante do grupo)

Quanto às “manias”, a mãe adotiva mencionou que as


crianças realmente tinham algumas manias, como comer
muito rápido.

A única coisa que eles tinham de mania era que eles co-
miam rapidinho, sabe? Acho que lá [instituição] era assim,
aquele que fosse mais rápido pegava mais, né? (Rosália)

Contudo, a mãe acentuou que esses comportamentos


mudaram com o decorrer do tempo (após seis meses de ado-
ção) e disse acreditar que a criança esquece o que lhe ocor-
rera na instituição em que estava, numa tentativa, talvez,
de amenizar seu próprio sofrimento.
O grupo pareceu mais aliviado diante dessa fala. Nesse
contexto, um dos participantes relatou que o fundamental
era cultivar o amor e o carinho entre pais e filho. O pai
adotivo convidado complementou que ter uma família e um
lar era tudo para ele e seus filhos.
Um dos participantes mencionou que:

A partir do momento em que a gente dá carinho... eles


precisam de amor. Como eu estava dizendo, a partir do
momento que você dá, isso transforma. (...) O amor já vai
crescendo cada vez mais. (Marcelo)

Este participante acrescentou que, para um homem, tal-


vez seja mais fácil essa etapa de adaptação à adoção; já a
mulher teria a “necessidade de gerar uma criança” e ofere-
cer-lhe os primeiros cuidados. Pôde-se perceber, assim, que
talvez esse casal ainda não tivesse superado a questão da
infertilidade, o que é um requisito extremamente impor-

443
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

tante para que a relação estabelecida com a criança a ser


adotada não seja impregnada pela sombra de um luto não
elaborado (no caso, a impossibilidade de gerar filhos). Se-
gundo Pereira e Santos (1998), a motivação para a adoção e
a elaboração do luto pela incapacidade de gerar um filho
biológico são fatores fundamentais para que se possa asse-
gurar uma adoção bem-sucedida.

Dos reflexos (e reflexões) sobre o


grupo
O contato com essa história de vida teve uma repercus-
são direta sobre a natureza das fantasias que os adotantes
tinham a respeito do perfil da criança que pretendiam ado-
tar, em sua maioria recém-nascida, o que pôde ser discuti-
do nos encontros posteriores. Ao término do processo
percebeu-se que o contato com outras possibilidades de ado-
ção, que se distanciam do estereótipo usual, levou os pre-
tendentes a refletirem, com o auxílio da interação grupal,
sobre pontos centrais de seu projeto de adotar
Até esse dia (sétimo encontro) em questão, observáva-
mos que os participantes do grupo manifestavam o desejo
pela adoção de um recém-nascido. No entanto, parte do medo
relativo referente à influência do passado da criança pôde
ser elucidada quando foram colocados frente à possibilida-
de de adotar uma criança mais velha. Geralmente, os parti-
cipantes diziam querer “moldar” a criança de acordo com
os princípios e valores nos quais acreditavam, entendendo
que isso só seria possível se cuidassem de sua educação desde
a mais tenra idade. Desse modo, pudemos perceber o quão
válida foi a visita do casal convidado para que os partici-
pantes pudessem refletir sobre seus temores.
Um dos cônjuges do casal convidado chegou a dizer que,
antes de efetuar o processo, assim como a maioria dos inte-

444
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

grantes do grupo, queria adotar crianças mais novas, para


poder “moldá-las” de acordo com os princípios que lhe fo-
ram transmitidos no decorrer de seu próprio processo edu-
cativo. Contudo, depois de refletir, percebeu que seus anseios
advinham do medo do desconhecido.

Não, mas o recém-nascido que você quer é para moldar


ele aos seus costumes. (Airton)

Nesse momento, alguns integrantes do grupo concluí-


ram que, se um dos desejos era vivenciar o início da vida de
uma criança e dispensar-lhe cuidados básicos, aqueles que
já o fizeram – seja por meios biológicos ou de uma adoção –
poderiam perfeitamente adotar uma criança mais velha. Tal
pensamento encontrou eco junto ao grupo porque dois ca-
sais participantes já haviam adotado uma criança anterior-
mente e um outro casal já tinha dois filhos biológicos:

Acho que, assim, para nós que já temos um filho, que já,
apesar de que nós pegamos com oito meses, mas... Passa-
mos um pouquinho aí por isso. Nessa questão aí, talvez é
até mais fácil cuidar de um mais velho... Agora, pode ter
casal que não tem nenhum, acho que esse negócio de sentir
a emoção de nenezinho, isso faz parte da vida da gente. Mas
a gratificação maior talvez esteja em adotar uma criança
maior. (Eva)

Com relação ao ambiente social, os participantes já ha-


viam verbalizado em encontros anteriores sobre os comen-
tários de amigos e parentes a respeito de sua decisão de
adotar. Segundo eles, alguns colegas tentaram dissuadi-los
da idéia, desencorajando-os, argumentando que eles esta-
vam ficando “loucos”. Nesse sentido, devido ao fato de a
adoção tardia dar maior visibilidade social à questão, evi-
denciando mais claramente a ausência dos laços de con-

445
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

sangüinidade entre adotantes e adotados, o preconceito


surgiria de uma maneira mais forte ou direta. Assim, os
participantes do grupo não hesitaram em indagar o casal
com relação a essas dificuldades. No entanto, o casal con-
vidado disse não ter sofrido preconceito por parte de ami-
gos e parentes, que foram, ao contrário, muito receptivos e
acolhedores:

Com os amigos? Gente, eles são meus filhos. Vocês vão


passar a ser meus amigos, vocês vão ver eles como meus
filhos, entendeu? Eles querem meus filhos mais do que eles
querem meu sobrinho. (...) Não, todo mundo queria ser pa-
drinho deles. (Airton)

Das mudanças possíveis: O tempo de


maturação
Observou-se que, ao longo do encontro em questão, houve
uma integração intensa entre os participantes, constituin-
do-se genuinamente um grupo de trabalho. Em contato com
pais que passaram por uma experiência semelhante, os par-
ticipantes puderam identificar-se com suas conquistas e de-
senvolver recursos de enfrentamento e superação dos receios
e dificuldades inicialmente vivenciadas. Vale destacar que
um dos possíveis benefícios auferidos foi a possibilidade de
mudança da idade da criança a ser adotada.

A gente quer adotar mais velho, acho que de até quatro


anos ainda é... (...) Já estamos na dúvida, né? (Dalva)

Nós mudamos para um ano. Era até quatro meses, aí


nós mudamos para um ano. Daqui a pouco, se demorar,
muda para dois. (Luiza)

446
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

Os temores e dúvidas com relação às conseqüências des-


sa mudança no perfil da criança desejada também foram
explicitados. O contexto dialógico grupal favorável permi-
tiu que um dos participantes manifestasse esse anseio:

Sei lá, eu acho assim, o amor parece que vai ser maior
do que se ele fosse um nenê todo cheirosinho. Então, acho
que a gratificação é maior. Porque com nenê a gente não
tem muito o que fazer. (Eva)

(...) a gente vê você falar assim, eu estou analisando aqui


que você tá querendo mais velho, só que você não está ten-
do coragem. (Edson)

Mas é justamente isso. Essa semana eu estava pensando:


“Será que se eu pegasse um mais velho ia já fazer compa-
nhia para o Pedrinho, porque já tá grande?”... e o medo, e as
dúvidas? Então... Mas é uma idéia que pode madurar. (Eva)

As transformações já eram vistas como possíveis, mas


demandavam um tempo de maturação.
Ao cabo da intervenção, no grupo em questão não foram
observadas mudanças em relação ao padrão de cor e sexo
da criança, mas houve modificações quanto à idade inicial-
mente admitida pelos futuros pais.
Ao final do processo os casais estavam mais conscientes
quanto às dificuldades que poderiam encontrar ao longo do
percurso da adoção, podendo discriminar melhor suas fan-
tasias da realidade. Além disso, relataram que sentiam-se
mais seguros em relação ao desejo de adotar, refletindo so-
bre o que realmente desejavam com a adoção, quais eram
suas razões e motivações mais profundas e que papel o fi-
lho viria cumprir no projeto de vida parental.
Desse modo, conclui-se que foi possível ampliar o conta-
to com os fatores afetivos envolvidos na adoção, o que con-

447
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

tribuiu para ampliar o repertório de recursos e abrir ou-


tras possibilidades, diferentes das usuais, de conceber e signi-
ficar esse processo. Os pretendentes puderam refletir, a
partir da inter-relação dialógica que o grupo proporcionou,
sobre pontos cruciais da adoção e reconstruir um novo sen-
tido para esse conceito, diferente dos estereótipos usual-
mente difundidos como verdades inquestionáveis.
Esses achados podem servir como subsídios para o tra-
balho dos grupos de apoio e incentivo à adoção junto às
famílias adotivas. Como mostra o estudo de Silva e Santos
(2004), que focaliza o alcance social da experiência desses
grupos de mútua ajuda, eles atualmente já se encontram
bem difundidos em todo o território nacional.

Referências

BECHELLI, L. P. C.; SANTOS, M. A. Psicoterapia de grupo e


considerações sobre o paciente como agente da própria mudança.
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10, n. 3, p. 383-391, maio/jun. 2002.
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adoção: revisão da literatura. In: LABATE, R. C. (Org.).
Caminhando para a assistência integral. Ribeirão Preto: Scala/
FAPESP, 1998. p. 225-246.
PIZETA, F. A.; SANTOS, M. A. Satisfações e dificuldades no
decorrer do percurso da adoção: ressignificando experiências para
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o filho a respeito de sua condição de adotado. In: CONGRESSO DA
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448
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

RIBEIRÃO PRETO, 2º JORNADA DO NESME, 8ª, 2004, Ribeirão


Preto. Anais... Ribeirão Preto: SPAGESP, 2004. CD-ROM.
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Adoção e saúde mental: a tessitura dos vínculos no grupo familiar.
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candidatos à adoção. In: CONGRESSO DA SPAGESP, 2º
ENCONTRO DE SAÚDE MENTAL DA REGIÃO DE RIBEIRÃO
PRETO, 2º JORNADA DO NESME, 8ª, 2004, Ribeirão Preto.
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SILVA, L. P.; SANTOS, M. A. A experiência dos grupos de apoio à
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SILVA, L. P.; SANTOS, M. A.; RASPANTINI, R. A possibilidade de
fazer diferente: construindo contextos dialógicos em um grupo com
adotantes. In: CONGRESSO DA SPAGESP, 2º ENCONTRO DE
SAÚDE MENTAL DA REGIÃO DE RIBEIRÃO PRETO, 2º
JORNADA DO NESME, 8ª, 2004, Ribeirão Preto. Anais... Ribeirão
Preto: SPAGESP, 2004. CD-ROM.
SCHETTINI, L. Compreendendo os pais adotivos. Recife:
Edições Bagaço, 1998.
VARGAS, M. M. Adoção tardia: da família sonhada à família
possível. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
WEBER, L. N. D. Laços de ternura: pesquisas e histórias de
adoção. Curitiba: Santa Mônica, 1998.

449
22. OFICINAS TERAPÊUTICAS:
UMA POSSIBILIDADE DE INTERVENÇÃO
EM SAÚDE MENTAL

Ana Paula Mastropietro


Érika Arantes de Oliveira
Manoel Antônio dos Santos
Adriana Sparenberg de Oliveira

O Transplante de Medula Óssea (TMO) é um procedi-


mento de alta complexidade, cujo desenvolvimento permi-
tiu o tratamento de doenças que antes eram fatais, como é
o caso das neoplasias e algumas doenças hematológicas.
Na fase posterior ao TMO (pós-TMO) é muito comum a
queixa de inatividade, dado que a rotina fica extremamente
centrada no tratamento (o paciente aguarda a hora do re-
médio, do retorno, dos exames, sendo somente estas as suas
atividades de vida diária). Em uma tentativa de alterar tal
situação foi implantada, em janeiro de 2003, uma oficina
terapêutica junto à casa do Grupo de Apoio aos Pacientes
Transplantados de Medula Óssea (GATMO) do Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto
(HCFMRP-USP), utilizando a técnica de mosaico. Essa ofi-
cina é coordenada pelos profissionais de Psicologia e Tera-
pia Ocupacional e freqüentada pelos pacientes e familiares.
O objetivo do presente trabalho é descrever o processo
de implementação das oficinas na casa de apoio ao trans-
plantado de medula óssea (GATMO). Vale ressaltar que esta
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

proposta não têm nenhum caráter profissionalizante, não


visando oferecer um treinamento de uma habilidade espe-
cífica para definição de uma função profissional.

O transplante de medula óssea


O transplante de medula óssea (TMO) é um procedimento
utilizado para o tratamento de diversas neoplasias e doenças
hematológicas malignas, que não respondem a tratamentos
convencionais (THOMAS; BLUME; FORMAN, 1999; THOMAS,
2000).
Segundo Wolcott e Stuber (1992), essa terapêutica re-
presenta um notável avanço médico, já que oferece à maio-
ria dos pacientes que a ela se submetem a única esperança
de uma sobrevida de longo termo.
O transplante de medula óssea é constituído por três fa-
ses (ANDRYKOWSKI; BRANDY; HENSLEE-DOWEY, 1994):
• Pré-TMO: antes da internação, o paciente e o doador,
que já foi escolhido anteriormente, permanecem em uma
fila de espera, neste período são marcados retornos fre-
qüentes para fazer exames preparatórios para o TMO;
• Internação para o TMO: internação em uma enferma-
ria com isolamento protetor, na qual o paciente receberá
altas doses de quimioterapia e a infusão da medula óssea
do doador; ficará à espera da recuperação parcial do sis-
tema autoimune para a alta hospitalar (que ocorre em
aproximadamente trinta dias);
• Pós-TMO: inicia-se com o momento da saída da enfer-
maria e começo do acompanhamento ambulatorial. Nos
primeiros 100 dias após a saída da enfermaria o paciente
apresenta necessidades de retornos constantes ao hospi-
tal e de cuidados intensivos com a sua saúde.

Como a maioria dos pacientes da UTMO-HCFMRP-USP


provém de outras regiões do Brasil e apresenta situação

452
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

econômica desfavorável, é oferecida para os mesmos e seus


familiares a possibilidade de hospedagem gratuita na casa
de apoio, próxima ao Hospital, denominada de casa do
GATMO.
Nesta fase os pacientes enfrentam muitas limitações fí-
sicas, o desenvolvimento da Doença do Enxerto Contra o
Hospedeiro (DECH), as dores e a sensação de distorção da
imagem corporal devido às conseqüências dos efeitos cola-
terais do tratamento: queda de cabelo, escurecimento da
pele, emagrecimento ou edema; além das questões que en-
volvem as relações familiares, problemas sexuais e econô-
micos (LESKO, 1990; BARROS, 2002).
Estudos como o de Almeida, Loureiro e Voltarelli (1998),
Torrano-Masetti et al. (2000) e Contel et al. (2000), mos-
tram a complexidade e intensidade das demandas emocio-
nais, físicas e ocupacionais associadas ao TMO e salientam
as limitações impostas no cotidiano dos pacientes como:
disfunção sexual, dificuldade nas relações sociais, ansieda-
de, depressão, desemprego e limitações quanto às atividade
recreativas, alterações nos seus hábitos de vida, perda ou
prejuízo da capacidade produtiva, perda da independência e
de alguns papéis sociais (ANDRYKOWSKI et al., 1994).
Assim, a adaptação à vida fora do hospital e a qualidade
de vida destes pacientes têm sido objeto de estudo de inú-
meros pesquisadores (BELEC, 1992; GRANT et al. 1992;
GREENBERG et al. 1992; CHAO et al. 1992; BAKER et al.
1994; BAKER et al. 1997; DOW et al. 1999; dentre outros),
que confirmam a ocorrência de alterações psicológicas e psi-
quiátricas, tais como ansiedade, depressão, fadiga, irritabi-
lidade, desorientação, perda do controle, medo de morrer e
perda da motivação na fase posterior ao TMO (NEITZERT
et al., 1998).
Neste momento do tratamento há uma preocupação tan-
to dos profissionais quanto do transplantado e seu familiar

453
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

de como será a reestruturação do cotidiano do paciente subme-


tido ao TMO fora do hospital. A seguir, iremos oferecer uma
breve explanação a respeito do conceito de cotidiano.

Algumas considerações sobre o


conceito de cotidiano
A vida cotidiana, sob vários aspectos, passa a ser hetero-
gênea, sobretudo no que se refere ao conteúdo e à significa-
ção ou importância que o paciente atribui a cada parte
orgânica da vida cotidiana, tais como: a organização do traba-
lho, a vida privada, o lazer, o descanso, as atividades sociais
sistematizadas, o intercâmbio e a purificação (FERRARI;
TEDESCO; BENETTON, 2002).
Segundo Ferreira (1986), cotidiano é tudo aquilo que se
faz ou que ocorre todos os dias, o que sucede ou se pratica
habitualmente.
O cotidiano pode ser entendido como o lugar da repeti-
ção, do concreto, da experiência vivida. Constitui também
um espaço de transformação – e não só de reiteração do já
conhecido, pois é nele que ocorrem e se renovam as rela-
ções sociais e se articulam a produção e a reprodução, o
banal e o sublime o privado e o público (FERRARI; TEDES-
CO; BENETTON, 2002). Para essas autoras, o cotidiano é o
tempo da ação: o dia-a-dia pensado como um ponto cego que
não se vê simplesmente porque não foi feito para ser visto,
nem sequer vivido, exceto sob o prisma da necessidade.
Segundo Heller (2000), a vida cotidiana é a vida do indiví-
duo, sendo o sujeito sempre, simultaneamente, um ser parti-
cular e um ser genérico. A dinâmica básica da particularidade
individual humana é a satisfação das necessidades do eu.
Dessas experiências de gratificação nascem os afetos e as
paixões. Já o genérico é o produto e expressão de suas rela-
ções sociais, herdeiro e preservador do desenvolvimento

454
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

humano. Assim, por exemplo, o trabalho tem freqüentemen-


te motivações particulares, mas a atividade do trabalho,
quando se trata de trabalho efetivo, isto é, socialmente ne-
cessário, é sempre atividade genérica.
Para Heller (2000) a vida cotidiana pode ser entendia como
sendo o conjunto de atividades que caracterizam a reprodu-
ção dos homens particulares, os quais, por sua vez, criam a
possibilidade de reprodução social. Para obter uma com-
preensão da singularidade do sujeito é necessário conhecer
todas as partes orgânicas que compõem o cotidiano desse
indivíduo, como elas se relacionam entre si, qual é a signi-
ficado que o sujeito dá para cada uma delas.
Para Takatori (2003), a singularidade do sujeito e das
características do seu cotidiano é entendida como uma deter-
minada forma de ser e fazer em um determinado ambiente,
no qual o sujeito estabelece relações por meio de diversas
experiências às quais ele imprime sua marca pessoal. O
cotidiano, nessa perspectiva, é considerado como um espa-
ço e um tempo ocupados de forma também singular. Mais
do que uma rotina de horários ou uma seqüência mecânica
de atividades ou procedimentos, o cotidiano é uma forma
pessoal de viver a própria história.
O sujeito e seu cotidiano são partes inter-relacionadas e
constitutivas entre si. Como um cenário, pessoal e inconfun-
dível, o cotidiano se revela e nele acontece a inserção no mun-
do comunal, compartilhado, social e cultural (TAKATORI,
2001).

O adoecimento e o tratamento
modificando o cotidiano do paciente
Diante de situações extremas de enfermidade e por mais
real e notório que sejam os avanços da Medicina e dos re-
cursos medicamentosos, o simples diagnóstico de doenças

455
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

que sabidamente ceifavam inúmeras vidas noutros perío-


dos da história faz com que o imaginário transforme esse
paciente num simples refém do destino, abandonado à pró-
pria sorte diante de uma “doença letal”. Ainda que se argu-
mente sobre os números de cura, restabelecimento e até
mesmo da total ausência de seqüelas em decorrência de um
tratamento bem conduzido, a realidade não tem como en-
frentar a criação fantasiosa do imaginário que não só des-
preza os dados reais, como muitas vezes cria situações
sequer tangíveis pela razão.
Camon (1996) afirma que um diagnóstico de doença crô-
nica transcende a patologia – suas manifestações, decor-
rências, efeitos medicamentosos, etc. – para encontrar
arcabouço emocional no dimensionamento criado pelo pa-
ciente sobre as implicações subjetivas da doença.
Tal diagnóstico provoca sentimentos e representações
mentais que são comuns para um grande número de pessoas:
o sentimento de devastação, de perda da própria imagem
corporal e descontrole de seu próprio corpo, a troca de pro-
cessos fisiológicos, a aparição de cicatrizes, perdas de au-
tonomia na realização de atividades de vida diária (AVD),
percepção da finitude da vida. Também alteradas suas fun-
ções pessoais em todos os níveis: sexual, marital, ocupacio-
nal, econômico e social, dando lugar à produção de intensos
conflitos que necessitam ser resolvidos.
Segundo Camon, Nicoletti e Chiattone (1996):

O estigma de uma doença crônica, portanto, está relaciona-


do a sofrimento, sentença de morte, dor, mutilação, defor-
mação, desfiguração, apreensão com a auto-imagem e perda
de peso que comunica ao mundo a realidade da doença, aban-
dono, contágio, perda da estima, perda do atrativo sexual,
medo da morte, perda da capacidade produtiva. (p. 105)

Conseqüentemente:

456
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

[...] este paciente adoece como um todo, como uma unidade


vital somato-psicológica, apresentando muito mais do que
uma doença orgânica com sua sintomatologia, pois junto a
ela estão a consciência e os sentimentos frente à enfermida-
de, com as repercussões próprias e pessoais na maneira de
viver, de adaptar-se ao stress vital e delinear seu próprio
destino. (p. 106)

Oliveira (2000) afirma que, somado a isso, de forma ge-


ral as pessoas com doenças graves e que são submetidas a
tratamentos intensivos (como o transplante de medula ós-
sea) são reconhecidas somente como um doente, além de se
acreditar que, tal como seus órgãos afetados, são incapa-
zes e necessitam de cuidados excessivos, que na maior par-
te das vezes os exclui de papéis sociais, do seu cotidiano, da
gerência de sua existência e da realização de seus desejos e
aspirações. Portanto, “reconstruir a pessoa de quem tem
uma larga e agressiva doença é ressignificar o seu ‘corpo-
alma’ que, frente a tanto medo, agressões e mutilações se
tem sedimentado”.

O processo de adoecer na quase totalidade dos casos traz em


seu bojo uma configuração de total falta de sentido para o
próprio significado existencial do paciente. É como se tudo
que fosse preconcebido anteriormente desmoronasse e per-
desse a configuração com o real pela possibilidade do adoecer
e das implicações de sua ocorrência. (CAMON; NICOLETTI;
CHIATTONE, 1996, p. 182).

Objetivo
O objetivo do presente estudo é descrever a implantação
de um projeto de oficinas terapêuticas, utilizando a técnica
de mosaico, na casa do grupo de apoio ao paciente trans-
457
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

plantado, em um modelo de auto-gestão, no qual as peças


produzidas são comercializadas e a verba é destinada para a
manutenção da própria oficina (compra de azulejos, verniz,
pincéis, etc.).

Implantação do grupo de atividades


As oficinas terapêuticas são caracterizadas como um
espaço/lugar de referência onde aos pacientes podem reali-
zar as atividades propostas (no caso mosaico), desfrutar do
convívio em grupo, sentir-se estando com outras pessoas,
vendo e vivendo suas limitações e potencialidades. Experi-
mentar um fazer compartilhado pode abrir possibilidades
de se relacionar com outras pessoas.
Nestes espaços, segundo Oliveira (2000), pode-se obser-
var a relação com o fazer, a maneira de pedir ou oferecer, de
estar com os outros, de interagir, de manipular ferramen-
tas, de contatar com materiais e de expressar as emoções,
no sentido de caminhar das formas concretas para as for-
mas abstratas das experiências. Propõe-se através destas
experiências de sentir, criar, conhecer a si e ao outro, alte-
rar seu mundo, conseqüentemente a si próprio, e levando
cada um a perceber o modo como contribui para seu desen-
volvimento e o de toda a sociedade.
Vale ressaltar que o grupo de atividades que está sendo
apresentado não tem nenhum caráter profissionalizante,
uma vez que não visa um treinamento de uma habilidade
específica para definição de uma função profissional.
Inicialmente foram discutidas algumas sugestões de ati-
vidades, nas modalidades: vídeo, leitura, jornal, jogos e vá-
rios tipos de artesanatos. Após algumas experimentações
foi escolhida a técnica de mosaico, uma vez que se obser-
vou: a facilidade no manuseio dos materiais e produtos, a
curiosidade dos pacientes e a possibilidade de venda do pro-
duto final, sendo este um dos objetivos da oficina, tendo em

458
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

vista a busca-se da independência e auto-manutenção a par-


tir de seus próprios recursos.

Oficinas de mosaicos
Uma vez definida a adoção da técnica de mosaico, as ofi-
cinas iniciaram suas atividades em janeiro de 2003, ocor-
rendo sistematicamente duas vezes por semana, com a
duração de duas horas, sendo integradas pelos pacientes,
seus acompanhantes e os estagiários da Terapia Ocupacio-
nal e Psicologia, sob a orientação e supervisão da terapeu-
ta ocupacional e da psicóloga da Unidade de TMO.
Até o presente momento foram produzidas e comerciali-
zadas 105 peças, cuja renda foi destinada à autogestão das
oficinas e o restante para a casa do GATMO.
Os benefícios da implementação deste tipo de modalida-
de podem ser observados nos discursos dos pacientes, ilus-
trados em alguns trechos abaixo:

“No começo fiquei desconfiado, não sabia se podia parti-


cipar, mas depois de tantos convites fui. Primeiro fiquei só
observando, mas depois me senti à vontade para experimen-
tar. Hoje ainda não consigo fazer um inteiro sozinho, mas
acho que ainda vou conseguir” (C, masculino, 27 anos, por-
tador de Leucemia Mielóide Crônica).

Observa-se que o processo de participação neste grupo


de produção arduamente conquistado, exigindo uma postu-
ra ativa do terapeuta, em uma tentativa de quebrar a es-
tagnação produtiva dos pacientes:

“No início não queria saber de atividades. Eu sei lá...


queria ficar mais sozinho. Mas toda semana elas (estagiá-
rias de Psicologia e Terapia Ocupacional) estavam lá e me
convidavam. Todas as vezes... Ai fui um dia e fiquei. Agora

459
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

espero com ansiedade a hora do encontro” (M, masculino,


32 anos, portador de Leucemia Mielóide Crônica).

Por vezes a quebra deste movimento de estagnação é re-


alizada não pelos terapeutas, mas também pelos demais par-
ticipantes:

“Cheguei meio perdida no GATMO, mas pude perceber


que tinha um grupo de pacientes que esperavam o horário
dessa tal oficina para aprender coisas, não sabia bem o que
era, mas fui atrás deles. Hoje faço um dos melhores mosai-
cos, participo até das vendas e pego encomendas” (F, femi-
nina, 34 anos, portadora de Anemia Aplástica Grave).

Se bem-sucedida a interação, as produções extrapolam o


espaço dos grupos, sendo as atividades realizadas também em
outros contextos em que os pacientes estão inseridos e, o que
parece ser o dado mais importante, resgatando a capacidade
produtiva, permitindo ao paciente desempenhar outras ativi-
dades, ampliando seu repertório ocupacional e repercutindo,
em última instância, em uma melhor adesão ao tratamento e
a reconstrução do seu cotidiano:

“Não estou mais no GATMO, graças a Deus já estou em


casa, mas sempre que volto nos retornos dou uma passada
nas oficinas. Penso como foi importante ter esse espaço pro-
dutivo durante o meu tratamento. Agora em casa penso
como vou fazer para construir esse espaço produtivo na
minha vida” (J, masculino, 40 anos, portador de Leucemia
Mielóide Aguda).

Discussão
Os pacientes que passaram pela experiência radical do
transplante de medula óssea, como pôde ser visto e farta-

460
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

mente documentado nos resultados discutidos no presente


estudo, apresentam uma necessidade imperiosa de recons-
truir seu cotidiano. A doença grave, potencialmente fatal,
seguida de um tratamento por vezes tão ou mais agressivo
e altamente invasivo, interrompe a linha de continuidade
da existência, abrindo uma fenda profunda no sentimento
de identidade pessoal e profissional. Mas também pode-se
imaginar que é justamente porque há uma ruptura brutal
do cotidiano que se pode criar a possibilidade de reconstru-
ção, abrindo brechas para vencer as sérias dificuldades de
reinserção social.
Benetton (1999) descreve a história dessas pessoas que,
por algum motivo, têm suas histórias marcadas por ausên-
cias ou desorganizações das atividades que sustentam o
cotidiano, como indivíduos que permanecem no tempo à
espera: da hora de tomar o remédio, de ir ao retorno médico,
de submeter-se aos cuidados de enfermagem... são pessoas
reguladas pelo compasso de espera: a hora de tomar banho, a
hora de tomar água... não existindo um sujeito que vive este
tempo de forma ativa, mas um tempo que antecede o sujeito
e anuncia atividades: de sobrevivência e cuidados clínicos,
incorporados ao seu dia-a-dia como parte inexorável de uma
rotina alienante e inflexível, que é oferecida como uma be-
nesse, ou antes, uma obrigação, para quem “ganhou a vida
novamente”.
As necessidades subjetivas desses pacientes, antes de ser
identificadas e inseridas socialmente no circuito das tro-
cas simbólicas que se estabelecem na relação com o outro,
por meio de alguma atividade profissional, assumem uma
dimensão empobrecida, restringindo-se a conseguir reprodu-
zir as mínimas exigências para a manutenção do corpo bioló-
gico. Como auxiliá-los a superar essa perspectiva que esmaga
a subjetividade e estreita os horizontes existenciais é o desa-
fio dos profissionais que se ocupam com o cuidado com os as-
pectos de saúde mental e qualidade de vida desses pacientes.

461
Formação em Psicologia: desafios da diversidade na pesquisa e na prática

Em primeiro lugar, é necessário a humanização do tra-


tamento. Para tanto, é preciso que a equipe multiprofissio-
nal compreenda profundamente a necessidade de abordar o
paciente de forma integral, reconhecendo-o em suas dimen-
sões biopsicossociais. Só assim será possível ajudá-lo a cons-
truir um lugar singular a partir de seus próprios recursos,
tempo e ritmo, onde o seu jeito próprio e o seu modo de
existir possam acontecer e tornar sua produção particular,
singular e única. Dessa matéria-prima original é que o pa-
ciente necessita se apropriar para construir seu cotidiano.
Para Takatori (2001), este processo de reconstrução da
vida diária pode depender de uma estrutura que sustente
esse período de transição e organização da vida, como é o
caso dos grupos de atividades, que buscam auxiliar nesse
processo de ressignificação de papéis.
Os resultados até o momento evidenciam que os pacien-
tes e familiares freqüentam e valorizam este espaço.
Os resultados obtidos indicam que a proposta de um grupo
de atividades de auto-gestão pode proporcionar a reflexão
sobre a retomada da capacidade produtiva e da autonomia
frente à própria vida, privilegiando o sujeito como autor
(autogestor) de sua própria história.
Com base nestes dados será implantada no próximo semes-
tre um novo grupo de atividades, com o aprendizado da técni-
ca de fotografia, com funcionamento semelhante à de mosaicos.
Outro fator importante é a possibilidade de um trabalho mul-
tiprofissional. O apoio da equipe de voluntariado da casa de
apoio tem sido decisivo para o sucesso do trabalho.

Refrências

ALMEIDA, A. C.; LOUREIRO, S. R.; VOLTARELLI, J. C. O


ajustamento psicossocial e a qualidade de vida de pacientes
submetidos ao transplante de medula óssea. Medicina, Ribeirão
Preto, v. 31, n. 2, p. 296-304, 1998.

462
Parte IV: Práticas psicológicas na atenção à saúde

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465
ASSESSORES
E CONSULTORES AD HOC

Alessandra Fernandes Carreira Maria Célia Pacheco Lassance


Ana Celina Pires de Campos Guimarães Maria Lucia Tiellet Nunes
Ana Paula Mastropietro Maria Lucia Zanetti
Ana Raquel Lucato Cianflone Marilene Krom
Antônia Regina Ferreira Furegato Marília Aparecida Muylaert
Antônio dos Santos Andrade Marina Rezende Bazon
Carmen Lúcia Cardoso Marisa Japur
Cristiane Paulin Simon Marlene Castro Waideman
Edwiges Ferreira Mattos Silvares Olga Maria Piazentim Rolim Rodrigues
Eliana Herzberg Quinha Luiza de Oliveira
Elisa Médici Pizão Yoshida Regina Helena Lima Caldana
Érika Arantes de Oliveira Rita Aparecida Romaro
Eucia Beatriz Lopes Petean Rodrigo Sanches Peres
Irene Rodrigues de Andrade Rosana Aparecida Spadoti Dantas
José Miguel H. Bairrão Sérgio Kodato
Juliana Vendrúscolo Sônia Regina Loureiro
Elizabeth Ranier Martins do Valle Sonia Regina Pasian
Leda Verdiani Tfouni Sylvia Domingos Barrera
Leila Jorge Tatiane Neme Campos Brustelo
Licia Barcelos de Souza Valéria Barbieri
Lucy Leal Melo-Silva Vera Curi Labate
Manoel Antônio dos Santos Vera da Rocha Resende
Marco Antônio de Castro Figueiredo
Informações e vendas, ligue:
Tel. (11) 3146-0333 – Fax. (11) 3146-0340
ou vendas@vetoreditora.com.br

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