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Eu não acredito que a psicanálise se faça só.

Também não acredito que ela seja


feita só por analistas. Assim como não acredito que existam analistas. Análise é um
ato, um ato que depende de alguém que fale e que articule um não saber por supor
o saber no outro. Onde está o analista aí? Onde está a psicanálise livre de uma
visão de mundo? Em momento algum da história da psicanálise ela esteve fora de
um conflito fundamental ao ponto de ser um risco a sua extinção. Freud começa a
partir da fuga de Breuer, do cala boca que ouviu de sua paciente, a qual instituiu a
cura pela palavra. Se quisermos seguir a letra de Freud, também devemos ouvir a
voz de quem nos manda calar, para ouvir. Como sempre, hoje a psicanálise passa
por crises, a pergunta que tenta predizer como se faz um analista, como forma um
analista esbarra no puritanismo da razão, que tenta estabelecer um regime formal
para a emergência do sujeito da razão, o que Denise Ferreira da Silva chama de
tese da transparência. Mas, invertendo essa pergunta, Denise questiona a condição
de emergência do sujeito kantiano da crítica, ou seja, o que acontecia no mundo
para que o eu transparente fosse criado. Para respondê-lo, ela começa a restituir a
razão em sua formulação ontoepistemológica, ou seja, o que sustenta o cogito
cartesiano, no qual a razão funda o sujeito, enquanto este se funda pela razão. Que
Nietzsche já nos tinha alertado que, uma vez que a razão tenha tomado o centro,
ela faria com que o próprio homem tenha se objetificado, isso já era sabido. Mas o
que Ferreira traz de fundamental é como a interioridade do sujeito da história
(sujeito da razão) se funda na produção do sujeito da exterioridade, ou seja, o racial.
Para isso, como esse segundo sujeito não é dotado da razão que o fundaria na
transparência e na liberdade, caberia a ele ser descrito e estudado pelas ciências do
homem, o que só poderia ser possível pelo conceito de globalidade, ou seja, tudo o
que a interioridade filosófica vem a conhecer por meio de suas ciências. Ao
contrário de negar a frenologia, por exemplo, enquanto dispositivo científico, Denise
investiga a emergência das ciências humanas a partir da invenção do racial, ou
seja, o outro que pode ser estudado pelo eu transparente. Quando olhamos para a
crise corrente nas instituições de psicanálise, nas quais há um isolamento de todos
os tipos (financeiros, geográficos, filosóficos) de tudo aquilo que nega a sua
transparência, a sua prerrogativa universal francesa, nas quais a letra de Freud e
Lacan só pode significar uma coisa. Em um regime infinito de igualdade, de soma
de pares, os coletivos de psicanálise emergiram como uma frente sem um rosto
único, o que eu pensei chamar de mínimos, múltiplos e comuns. Mínimo pois se
trata da singularidade. Múltiplos pois é invadido por vários devires e agenciamentos/
confluências. Comum pois é para além do que o homo modernus entende por
existência, o envolver tudo o que nos move, se a psicanálise identitária ( e todo
identitarismo é branco e masculino) diz que não é uma visão de mundo, a comum
diz que a psicanálise não só está no mundo, como ela está no Cosmos, junto aos
minerais, aos ventos, aos territórios, aos riscos em pedras, aos ciborgues e às
espécies companheiras. A democratização da psicanálise está longe de ser uma
política de cotas em uma instituição localizada longe da periferia, na qual o acesso
das pessoas seria barrado pelos preços, os quais fazem com que a psicanálise não
seja apenas um saber mercantilizado e rentável, como enclausurado no mundo de
significados produzidos por uma elite branca que se entende como universal. Penso
que a proposta de dupla ontologia (interior/ da vida e exterior/ da morte) é uma das
formas de permanecer nessa crise de identidade que nos constitui como analistas
na margem. Tomando as palavras de lispector: enquanto o eu inventar o analista,
ele não existe.
O racial, hoje, antes de ser uma raiz identificatória com um perfil, como alguns
analistas dizem, é um momento do agora, não de Ágora, um momento de impasse
teórico fundamental, como nos diz Frank B. Wilderson III, ao apontar, a partir do
afropessimismo, que a psicanálise e o marxismo não dão conta de lidar com a
questão da racialidade, mesmo argumento que Denise usa para escrever o seu livro
A dívida impagável.
Pelo que foi dito, não surpreende ninguém que na universidade eu não tenha
encontrado orientação na psicanálise. Sou estudante da UFC, curso psicologia
desde 2020. Fiz parte do programa de extensão Pasárgada, fui monitor de Saúde
Coletiva 1 e de Ética, e atualmente sou bolsista voluntário de Pibic da Prof Nara
Diogo, na temática de relações etnico raciais, arte e velhice, do programa
Quilombolar. Acabei tendo maior envolvimento com estudos de esquizoanálise,
análise institucional, gênero, estudos decoloniais, racial studies…, o que para mim
foi um bom contraponto para a formação excessivamente marxista que eu tive.
Também publiquei um resumo no qual me dedicava a fazer uma crítica da formação
em Psicologia a partir da ética e do conceito de território da saúde coletiva, no qual
tomava a ética como um compromisso político em relação ao lugar onde se está,
uma vez que é isso que a etimologia da palavra nos indica: morada. Como Denise
nos diz ao incorporar o quântico para pensar a temporalidade, um copo de um rio é
um rio inteiro. O lugar onde estamos passa por todos os tempos e estabelece
relações de longa duração, tocar um solo e cavar um buraco para colocar as mãos é
viajar no tempo, enquanto rompe relações ancestrais existentes nos caules das
árvores. Ao mesmo tempo em que eu venho estudando psicanálise. Uso bastante o
YouTube e foi assim que acabei conhecendo o Coletivo, por meio das aulas
disponíveis e dos textos indicados, depois conheci os textos do Instagram. A partir
do Margem, eu também conheci outros coletivos e psilacs, da federal de Minas.
Mesmo não tendo entrado em um laboratório de psicanálise de orientação
decolonial, tive muita sorte de ter encontrado duas professores que tiveram grande
impacto na minha formação, ao ponto de me motivar a permanecer no curso, como
também apontar algo que liam como muito evidente em mim: um desejo de
trabalhar com a psicanálise. Assim, buscando as tangentes apagadas pela
psicanálise hegemônica, fui constituindo o meu percurso, o que muito me
surpreendeu pelo paralelismo com o projeto do Margem, pois, não precisamos
apenas do compromisso com a letra de Freud, às vezes nos cabe ver a caligrafia,
traçar para qual lado ela aponta, e, principalmente, reler Freud e Lacan a partir de
posições críticas fundamentais. Outro elemento atrativo do coletivo é a sua vocação
para o coletivo e para o território. A expansão da psicanálise de cativeiro para uma
psicanálise marginal, que toma de assalto os significantes na disputa que o Nêgo
Bispo chamou de guerra das denominações, na disputa pelos conceitos. Se a
psicanálise não é uma visão de mundo, isso não quer dizer que ela não possa ter os
pés no chão, as mãos na terra, a boca na manga madura.
Entrei no curso já com intenções de estudar psicanálise, ao mesmo tempo que me
via apaixonado pela filosofia e pela literatura. Os momentos finais do meu ensino
médio foram um rasgo profundo na minha possibilidade de existir. O mundo do
colégio particular no qual eu estudava com uma bolsa parcial era profundamente
diferente de toda a realidade que eu havia vivido. Foi a primeira vez na minha vida
que eu vi alguém ser conhecido por nome e sobrenome, nas outras escolas,
independente de quantos Arthurs teriam na sala, a distribuição seria numérica
(Arthur1, 2, 3…). Ter um sobrenome estrangeiro não valia nada, ao ponto de nem
chegar a ser conhecido. Eu vivia uma crise relativa a como ser, como falar, como
emular o jeito que me era posto pela escola, enquanto em casa a demanda era
diferente. Como homem gay, tive que me comprometer, ao longo da vida, com
mecanismos de defesa, um deles passava pelo significante inteligente, pelo qual eu
me defendia com um “mas” em frente ao gay. Vim de uma família de classe média
baixa recém saída da miséria, muito impactada pelas políticas públicas de fomento
à educação. Minha mãe e uma irmã mais velha foram as únicas de 10 filhos que
terminou o fundamental. A pobreza extrema de meu avô, agricultor, e o falecimento
de sua primeira esposa fez com que seus 7 primeiros filhos fossem dados para
parentes que pudessem criar. Minha mãe, filha mais velha do segundo casamento,
teve a possibilidade de crescer com seus pais e os seus dois irmãos mais novos. O
que não foi fácil, apesar de terem comida e casa, a condição deles não ia além
disso. O que era agravado pelo uso abusivo que meu avô fazia do álcool e as
perseguições que ele infringiu à minha avó. Minha mãe se formou professora. Eu fui
gestado durante a sua graduação de matemática na UVA, que foi resultado de
políticas públicas para a formação de professores. A geração da minha mãe acabou
por ser, em sua maioria, composta por professores. Depois que eu nasci, minha
mãe passou no concurso para ser professora do mesmo município e começou a
lecionar matemática para o fundamental. Nessa época tínhamos nos mudado de
uma região muito empobrecida e violenta de Aquiraz, Chácara da Prainha, e fomos
morar em um bairro similar, Gruta, porém, nessa época, era uma região mais
amena. Eu acompanhava a minha mãe quando criança, ia passar as tardes com ela
na escola quando o meu pai estava viajando por conta de seu trabalho no exército.
Embora tenha sempre frequentado as escolas públicas onde ela trabalhava, acabei
por sempre estudar em colégios particulares. Grande parte disso se deu pelos locais
onde minha mãe foi trabalhar. Mesmo antes da guerra entre facções se tornar um
cotidiano em Aquiraz, a Prainha, região litorânea e turística, era marcada pela
violência ligada ao crime organizado. Foi nesse momento, no pico da violência, que
minha mãe foi trabalhar na única escola da localidade. Infelizmente, muitos alunos
não terminaram o fundamental por terem sido mortos por conta de dívidas. Nunca
irei esquecer do Carnaval no qual um aluno fantasiado matou o chefe do tráfico da
região e a sua namorada (que era colega do atirador). Eu lembro de todos se
jogarem ao chão, do choque no rosto de minha mãe quando soube da morte da
aluna, da distância que algumas pessoas conseguiram correr após os disparos.
Mas, principalmente, não poderia esquecer o rosto e a voz da mãe dessa aluna.
Não lembro o que ela disse, mas sinto o seu olhar, a sua voz, era uma tristeza
própria de quem perde a capacidade de sonhar, sua filha era um sonho, o sonho de
ver um de seus filhos ter uma vida melhor (os outros dois haviam morrido
similarmente). Contudo, no meio de embates sérios entre professores e alunos,
professores e seus pares, minha mãe conseguiu ser uma pessoa querida. Mesmo
assim, após alguns adoecimentos recorrentes, fendas nas cordas vocais, minha
mãe foi redistribuída, tornou-se diretora de uma escola na Chácara da Prainha.
Essa escola era para o fundamental 1, ou seja, até o 5 ano. E foi um dos momentos
de maior adoecimento para ela. O território passava por uma guerra de facções
muito intensa. As ameaças eram constantes, assim como as mortes, os tiroteios.
Crianças eram ameaçadas para se tornarem aviãozinho do tráfico. Muitas crianças
eram ameaçadas nas portas dos escolares. Muitas professoras entraram em grande
sofrimento. O próprio território convulsionava, era difícil lidar com a parte
administrativa, pois muitas crianças não podiam mais ir à escola. Foi um momento
de grande evasão escolar. O conselho tutelar era acionado várias vezes, mas não
tinha o que fazer frente ao conflito. O trabalho, nessa época, era mais voltado às
famílias, o processo educacional era secundário frente às necessidades de
acolhimento, de elaboração de documentos para transferir alunos, para fazer rede
com o CRAS e o CREAS, quando acontecia de o responsável ir embora com o
cartão do bolsa família e deixar os filhos desassistidos.
Passei um pouco pela história da minha família para situar um pouco de como me
entendo e para dizer que foi uma surpresa me descobrir branco. Primeiro eu me
descobri homem quando percebi, em uma conversa com uma amiga, como eu não
entendia o que era a vida de uma mulher frente ao assédio, o que me fez observar
mais e ver várias situações de assédio com mulheres, inclusive com essa amiga. O
processo da branquitude foi mais longo, mas parte de alguns pontos:1) ser um dos
poucos que fala nas aulas; 2) participar de um grupo de estudos do VIESES e ouvir
relatos de racismo sendo compartilhados e me sentir esmagado, percebendo a
diferença indescritível de tratamento; 3) entender que as relações de classe e
gênero são secundárias à raça e que a racialidade não se trata de exclusão apenas,
mas de contínuas mortes simbólicas por um aparato discursivo que constitui o
mundo desde a modernidade.
Por isso, venho a concordar com a Donna Haraway ao saber que nossos saberes
são localizados, inclusive o do analista. Há algo que só pode ser descoberto quando
o outro fala. Há um caleidoscópio de posições que só poderá ser escutado no
território, entendendo o território como espaço, paisagem sonora, uma clínica à céu
aberto, enquanto esse céu está caindo. Pensando na resistência do analista em sua
identidade racial branca, apenas uma operação no coletivo pode ter algum efeito
“interpretativo”. A forma organizativa e a própria vocação pública da formação me
chamaram muito a atenção. Pensar em uma formação em psicanálise não
mercantil, inclusive, me leva a pensar a possibilidade de pensar o pagamento em
psicanálise a partir da teoria do valor, o que para muitos seria um crime. Mas o bom
de estar na margem é que ela não tem limite.

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