Você está na página 1de 23

PRINCÍPIOS PSICANALÍTICOS

DE ENTRADAS E VARIEDADES CASUAIS

Organizadores
Estanislau Alves da Silva Filho
Ivan Ramos Estevão
Diagramação: Marcelo Alves
Capa: Gabrielle do Carmo

A Editora Fi segue orientação da política de


distribuição e compartilhamento da Creative Commons
Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências


bibliográficas são prerrogativas de cada autor. Da mesma
forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e
exclusiva responsabilidade de seu respectivo autor.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

P957 Princípios psicanalíticos: de entradas e variedades casuais [recurso eletrônico] /


Estanislau Alves da Silva Filho, Ivan Ramos Estevão... [et al.]. – Cachoeirinha :
Fi, 2023.

252p.

ISBN 978-65-85725-03-3

DOI 10.22350/9786585725033

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Psicanálise – Princípios. I. Silva Filho, Estanislau Alves da. II. Estevão, Ivan
Ramos

CDU 159.964.2

Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto – CRB 10/1023


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

INÍCIO 11
Estanislau Alves da Silva Filho

ENSAIOS

1 21
SE FOSSE SÓ UM CAFÉ...
Talita Minervino Pereira

2 27
O DINHEIRO E O PAGAMENTO NAS PRELIMINARES
Luiz Eduardo de V. Moreira

VINHETAS

3 35
PRIMEIRO TEMPO DA TRANSFERÊNCIA E A LEITURA DOS PREFIXOS
Victória Kniest

4 38
MUITOS QUASE
Luiza Azem Camargo

5 40
A CAUSA DA MINHA DOR NAS COSTAS – UM OBSESSIVO
Carina Cruvinel

6 44
DA CHEGADA DE BENTO
Karina Destro
DENSIDADES CLÍNICAS

7 51
PALAVRA APÓS PALAVRA
Cirlana Rodrigues de Souza

8 73
AS MI(G)RAGENS DA ANÁLISE DO IMIGRANTE: HÁ SINGULARIDADE NA ENTRADA EM
ANÁLISE DE UM IMIGRANTE?
Gabriel Inticher Binkowski

9 92
A ENTRADA EM ANÁLISE E A CATÁSTROFE: FUNDAR A SUBJETIVIDADE NA
PRECARIZAÇÃO DA VIDA
Clarice Pimentel Paulon

10 112
SOBRE ENTRADA EM ANÁLISE E ENCAMINHAMENTOS CLÍNICOS: A RESPEITO DA
IDENTIDADE E CORPOREIDADE DO PAR ANALÍTICO
Augusto Coaracy
Mayara Pinho

11 131
PRIMEIROS CUIDADOS PSICOLÓGICOS – O QUE PODE ESCUTAR A PSICANÁLISE?
Julia Bartsch

12 149
DE UM REAL A OUTRO
Aline Accioly Sieiro

PROSPECTOS TEÓRICOS

13 175
CONSTRUÇÕES CLÍNICAS SOBRE A ENTRADA EM ANÁLISE
Estanislau Alves da Silva Filho

14 230
RIGOR E RIGIDEZ NAS (ENTRE)LINHAS DA PSICANÁLISE
Enzo Cléto Pizzimenti
Andressa Dumarde
AS MI(G)RAGENS DA ANÁLISE DO IMIGRANTE:
8
HÁ SINGULARIDADE NA ENTRADA EM
ANÁLISE DE UM IMIGRANTE?
Gabriel Inticher Binkowski 1

DAS MIRAGENS DO EU ÀS MIGRAGENS DO SUJEITO

Uma experiência de imigração impõe uma res-situação subjetiva


muitas vezes extrema, que toca, literalmente, nos extremos e litorais do
sujeito, naquilo que compõe o estrutural e as nuances de sua relação
com a alteridade e com o próprio desejo. O sujeito precisa relocalizar-se
diante de um Outro, podendo, só assim, ser capaz de laços com outros,
com o pequeno outro. Muitas passagens e experiências da vida
demandam algo de uma ordem parecida: certos momentos da infância
e da adolescência, a entrada no mundo da educação, passagens
institucionais, transformações corpóreas, experiências de adoecimento
e vivências extremas – enfrentar algum tipo de tragédia ecológica, um
atentado terrorista, perseguições políticas e/ou subjetivas.
No entanto, a cultura, muitas vezes, oferece uma trama simbólico-
imaginária, ou seja, uma discursividade e operadores de laço social para
lidar com aquilo que carece de sentido, restabelecendo tais vivências

1
Psicanalista e Professor no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Mestre em Clínica
Transcultural e Doutor em Psicologia pela Université Sorbonne Paris Nord; Membro do Laboratório de
Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL) e da Unité Transversale de Recherche Psychogenèse et
Psychopathologie. Supervisor clínico no Grupo Veredas: Psicanálise e Migração, coordena o eixo de
Atendimentos Clínicos. Também é um dos coordenadores do Relapso – Grupo Interuniversitário de
Pesquisa em Religião, Laço Social e Psicanálise.
74 • Princípios psicanalíticos: de entradas e variedades casuais

num certo ordenamento do que pode vir a fazer sentido. Temos, então,
rituais de passagem ou de tratamento (pela cultura) e soluções sociais
que tentam dar sentido a essas rupturas do lugar do sujeito diante do
Outro, da pregnância da imagem especular (sua eficácia simbólica) e da
Lei.
Neste escrito, mais especificamente, levo adiante a hipótese de que
há três momentos (lógicos) bastante específicos que exigem uma grave
reorganização subjetiva dessa relação com o Outro. Logo, são momentos
lógicos pois implicam a própria lógica da constituição do sujeito no
âmago de sua relação com o Outro. Estes configuram-se como
momentos privilegiados, no sentido subjetivo, porque, malgrado a
existência de tramas simbólico-imaginárias que apontem certos
recalques e, portanto, que uma reorganização do gozo para o sujeito é
possível, elas simplesmente não dão conta, visto que o sujeito está
diante de um encontro grave, ou seja, que tenta gravar algo do real.
Contudo, sabemos que o real não se grava, não se inscreve. Ele não
fica registrado senão a partir de uma borda do simbólico, fenda, que dá
uma certa dimensão meio que miragem de falta, ou mesmo de perda.
Podemos até tentar imaginarizá-lo, o que gera frutos, claro, mesmo que
a partir de uma lógica do faltante. Diante disso, a propósito dessas três
modalidades de experiência, aponto o luto, a experiência de
paternidade/maternidade e, por fim, a da migração.
Tendo em vista que me atenho nesse ensaio ao terceiro tipo de
exigência de reposicionamento, relativo à migração, aponto apenas en
passant que tanto a experiência da perda e, portanto, aquilo que pode
implicar um luto, como também a da maternidade/paternidade,
Gabriel Inticher Binkowski • 75

colocam o sujeito diante de uma manifestação de falta real: na


perda/luto, encontra-se a hiância entre um ser amado que desaparece e
a permanência de nossos objetos psíquicos que remetem a esse objeto
afetivo e mnemônico; já na paternidade/maternidade, o sujeito pode se
deparar, primeiro, com o real da procriação (o que é válido tanto em
experiências de gravidez dita natural, como também naquela que
envolve os métodos de manipulação biológica, assim como o próprio
encontro com algo como a esterilidade ou a impossibilidade de gerar um
bebê), como também o real da chegada de uma criança que, sendo fruto
de concepção biológica ou adotiva, envolve especialmente um ser que é
investido como objeto, mas que, na verdade, é também um falasser, um
ser desejante e de gozo, que se arvora na e através da linguagem.
Feitas tais ressalvas, vou, finalmente, tratar, ou seja, dar um
tratamento, ou melhor, tentar dar uma direção de um tratamento ao
tema, o que, afinal, é a única coisa que pode sustentar um psicanalista.
Com efeito, como já defendia Lacan em A direção do tratamento e os
princípios de seu poder (1966), tal direção consiste na observação de que
o humano que fala diante de nós tente – pois é sempre apenas uma
tentativa – guardar a livre-associação discursiva. Tal regra, a única
regra verdadeira para o paciente, cujo equivalente para o psicanalista é
a da associação flutuante, é um ideal técnico, sabemos, ideal que se
nutre de uma sustentação de que a relação com o psicanalista e as
atualizações e movimentos transferenciais que ali podem se dar são
produções dessa aposta que chamamos inconsciente. O inconsciente,
então, mesmo quando se dá nos retornos, encalços ou fragmentos
desavisados, trabalha – se assim posso dizer – para que haja um encalço
76 • Princípios psicanalíticos: de entradas e variedades casuais

ou contorno para e na experiência de perda. Pode-se falar também da


perda de ideais, de modalidades de gozo, do perder-se em relação até
mesmo às repetições nas quais o sujeito antes se reconhecia.
Alfred Schutz (2008), importante sociólogo e expoente da teoria do
mundo social e da complexidade envolvendo biografia, capacidade
narrativa e relações grupais, considerava que o sofrimento do imigrante
se dá pela frequente inviabilidade do uso da reserva de experiência no
cotidiano do imigrante. Grosso modo, isso implica dizer que a cultura,
que é sobretudo uma grande reserva simbólica que nos permite ler o
outro, interpretar suas ações, predizer comportamentos e, portanto,
outorgar sentido, é vivida pelo sujeito como um composto tanto
consciente quanto inconsciente, que nos dá parâmetros de como agir,
sentir, pensar e, até mesmo, como sofrer, ficar doente, ligar com as
quebras de referenciais, eventos potencialmente traumáticos, perdas,
etc. Ora, o drama do imigrante passaria tanto pela constatação de que
sua reserva acaba não sendo tão útil assim e que, tantas vezes, ela acaba
gerando leituras, respostas e reações indevidas. Claro que nem todos
imigrantes portam malas que lhe dão ferramentas mais ou menos
adaptadas (ZERMANI, 2005), já que não são poucos os que são obrigados
a se deslocar portando apenas, literalmente, a ausência de uma mala, o
vazio.
Como psicanalistas, já nos ensinava Pierre Fédida (1978), a
ausência, ou melhor, o ausente ou a falta, dá continência ao sujeito na
medida em que esse se forja – se instaura logicamente – através de um
desejo do Outro e do porte de um objeto-ausência que, com a teoria
lacaniana, nomeamos de objeto a. Portar um objeto-ausência pode soar
Gabriel Inticher Binkowski • 77

antinômico, paradoxal ou até mesmo um oxímoro, muito embora disso


decorra a própria força do retorno do recalcado naquilo que se
configura como o encontro com o estranho, conceito freudiano
fundamental para pensar o inconsciente em sua dimensão tanto da
estética quanto da ética. O estranho e seu retorno constituem,
primordialmente, entradas para apreender os efeitos daquilo que o
inconsciente produz, na medida em que este surge enquanto um
estrangeiro ou duplo para o sujeito em seu campo experiencial.
Julia Kristeva (1988), em sua tentativa intelectual de restituir o
estrangeiro como operador-chave para um futuro tanto da psicanálise
quanto de uma certa noção de civilização (sem nos deter nas tantas
críticas que pode ser feita contra tal tema), coloca o estranho, categoria
per se freudiana, como algo que se insinua em nossa razão e que irriga o
sujeito e o social a partir de outras lógicas, da heterogeneidade (até
mesmo da biologia), da loucura, da beleza e mesmo da fé. Assim dito, o
estrangeiro, aqui quando nos referimos à categoria de imigrante, é uma
figura e tanto um amálgama de um certo registro do vazio-falta-desejo
que nos remete às próprias fundações da subjetividade, da vida psíquica
ao social e à cultura. O próprio Freud, em suas investigações e hipóteses
a propósito do judaísmo e da figura de Moisés (FREUD, 1939/2016), já
salientava a força inaugural da estrangeiridade, da vocação do exílio
(FUCKS, 2000) e da ausência como força-motriz do pacto social e
cultural.
Por isso, e costumo dizer isso aos psicanalistas e clínicos que se
interessam por pensar nos aspectos técnicos da psicanálise com pessoas
de outras línguas e culturas, com seres humanos em deslocamento, o
78 • Princípios psicanalíticos: de entradas e variedades casuais

trabalho de escuta de sujeitos imigrantes, de subjetividades em


deslocamento, nos faz reencontrar o próprio coração da psicanálise, em
seu estranhamento quando do deparar-se com a alteridade em sua
dimensão de outro desejo. Isso está para-além dos meros efeitos de
estranhamento causados pelas diferenças de língua e dos espectros
culturais-religiosos – malgrado a afetação que estes costumam causar.
Muitas vezes nos deparamos frontalmente com miragens, seja em
atuações em instituições de saúde, educação ou assistência, nos
consultórios privados e em projetos que atuam nas margens, algo tão
comum no trabalho humanitário ou em projetos de atendimento a
pessoas e populações em deslocamento. Por onde passa o desejo de se
confrontar a populações que muitas vezes encarnam e vivem o extremo
da marginalidade e da vulnerabilidade, como é o caso de uma parcela
considerável dos imigrantes do planeta, notadamente os refugiados e
demandantes de asilo? O que é possível fazer?
Responder à pergunta acima desespera, ou seja, retira os clínicos
de uma situação de espera e silêncio, o que muitas vezes caracteriza
nosso lugar de objeto a através dos quais atuamos quando do laço social
analítico (LACAN, 1992), quando lançamos mão de que o sujeito produza
seus próprios significantes primários na situação da análise.
Desenvolvo atividades há mais de uma década em diferentes espaços e
situações que envolvem escutar essas pessoas que chamamos de
imigrantes e é bastante saliente que aqueles que se interessam por esse
campo de prática se sentem atraídos tanto pela riqueza humana e
cultural desse tipo de encontro como pelo desejo de fazer-algo, fazer-
com esses sujeitos que se encontram nas fronteiras, seja do social,
Gabriel Inticher Binkowski • 79

muitas vezes do capitalismo, expurgados frequentemente de toda


possibilidade de cidadania. Mais ainda, os imigrantes encarnam
seguidamente figuras da própria abjeção (CASTELLI, 2021). Esse tipo de
encontro clínico, todavia, reencena nos clínicos, sejam psicanalistas ou
psicoterapeutas de orientação analítica ou que atuam através de outras
epistemologias, algo de um desamparo diante de um outro, de um
sujeito, que acaba por encarnar uma certa imagem de ser humano em
desamparo total.
Não é incomum, nas práticas clínicas e psicossociais com
imigrantes, ouvirmos histórias de muitas perdas, mortes, destruição,
viagens infinitas, deslocamentos horripilantes e impossibilidades de
continuidade. Como reagir quando um ser humano olha em nossos
olhos e pergunta: “Falar com você vai me ajudar a ter uma casa?” ou “O
que eu vivi, não há nenhuma descrição possível”. A palavra pode, sim,
ser uma casa, dar o contorno de um lugar, do desejar, de morada ou lar,
um horizonte de lugar para que algo se deposite ou se restitua. Em
outras tantas modalidades de vivências de imigrantes, temos sujeitos
que descrevem diferenças irreconciliáveis com o país de acolhimento,
sensações de desajustamento social, privação de linguagem (como é
comum em casos de crianças apartadas tanto da língua de origem de sua
família como da língua do país de acolhimento). Mais ainda, já vivi
muitos casos de imigrações aparentemente escolhidas e bem
delineadas, nas quais a migração se faz a partir de um desejo de criação,
de prazer e criatividade: mudanças por conta de relações amorosas, pelo
desejo de vivenciar outra cultura, a atração pelo cosmopolitismo e,
80 • Princípios psicanalíticos: de entradas e variedades casuais

também, por oportunidades profissionais e financeiras de muitos


ganhos materiais e simbólicos.
Mesmo assim, impõe-se ao sujeito uma fratura das miragens do eu,
uma vez que numa migração, como sustento desde o princípio do
presente escrito, impera um deslocamento que, na verdade, como
insiste Rosa (2016), é o do próprio deslocamento enquanto trama
metonímica do desejo. Há perda e uma rearticulação da posição do
sujeito diante do Outro e, portanto, do próprio desejo do encontro de
um estranho que lhe habita. Não é incomum, logo, que tal trabalho
psíquico seja vivido com a intensidade de um desencontro que
desespera, afinal, as miragens do eu, os ideais, se decompõem,
colocando o sujeito diante da necessidade de realizar o que chamo de
migragens.

O ENCONTRO COM A PSICANÁLISE EM MIGRAÇÃO: REFUNDAR-SE


ENQUANTO SUJEITO MIGRANTE

A psicanálise ocupa uma estranha posição na história tanto das


práticas do sujeito como do próprio desenvolvimento do pensamento
moderno e contemporâneo. Estranho porque sua prática se forja, a
princípio, como uma consequência epistemológica de uma série de
concepções que bordeavam o conceito de inconsciente como também
práticas que lidavam com psicopatologias tidas como marginais. Sua
novidade pode ser traçada a partir de seu aparecimento num certo
enquadre da modernidade, de uma modernidade progressista, deveras
ancorada em ideologias evolucionistas e colonizatórias, mas também de
um estilo de práticas que são as das possíveis transformações do sujeito
Gabriel Inticher Binkowski • 81

quando do encontro com a verdade. A propósito disso, Foucault (2001)


apontava conexões, tanto na psicanálise como no marxismo, com algo
da ordem de uma espiritualidade. Isso se dava porque uma
espiritualidade tem por pré-condição que algo se dá para o sujeito a
partir da condição de confrontar-se com a verdade.
Tal tônica já se encontrava na posição excêntrica (no sentido de
fora do eixo central) do próprio Freud: judeu-ateu, banhado no caldo de
uma Europa cosmopolita e universalista do Império Austro-Húngaro,
marcado pelo selo do exílio na forja da identidade familiar e religiosa e,
depois, na própria experiência de vida. Ora, as primeiras gerações de
analistas e pacientes foram quase que inteiramente marcadas por
experiências de exílio, genocídios, perseguições, diferenças de língua e
de universo cultural. Não esqueçamos de todas as trocas de países e de
língua para estas primeiras gerações de praticantes da psicanálise. Por
isso, esforços de figuras como Géza Rohéim (1967) ou Georges Devereux
(1972) no estabelecimento de fronteiras e conexões epistemológicas
entre psicanálise, antropologia e disciplinas afins (arqueologia,
filologia, estudos culturais) são marcantes por insistir na presença das
marcas dos processos inconscientes como o verdadeiro ordenador das
relações entre psiquismo e cultura, entre o sujeito e as tramas
simbólico-imaginárias. As tramas conceituais e epistemológicas da
psicanálise guardam estes fósseis (BINKOWSKI, 2020), os quais
produzem tanto efeitos éticos como também da localização da
subjetividade do analista diante das alteridades.
Sabemos que a psicanálise se refunda com cada paciente, até mesmo
em cada sessão. O que desejo, neste escrito, mais ainda, é imantar o
82 • Princípios psicanalíticos: de entradas e variedades casuais

quanto a prática clínica com subjetividades em situação de migração


encarna algo um tanto basilar dessa prática de encontro com a verdade
que é a psicanálise. Curioso, porém, que algo costuma se repetir nas
práticas clínicas com imigrantes, seja naqueles que teriam realizado uma
migração desejada, escolhida e mesmo planejada, e para aqueles que
encontraram, na jornada migratória, uma forma de sobrevivência: a
migração passa a ser contada como um destino de transformação da vida,
algo que se apresentava como verdadeira semente da subjetividade, como
desejo e/ou como possibilidade de existir. É como se ela sempre estivesse
lá enquanto possibilidade existencial.
Em seguida, há alguns outros motes que costumam se repetir para
imigrantes, como bem o mostra a literatura especializada dessas
práticas clínicas (dentro os quais indico particularmente os trabalhos
de Marie Rose Moro e Tobie Nathan): uma certa experiência de clivagem
– “não me sinto aqui, nem lá” – e também uma relação mais ou menos
constante com a ideia de retorno. Além disso, o próprio Georges
Devereux, autor-tributário tanto para Moro como para Nathan, fez de
grande parte de sua obra um grande exercício de uma verdadeira
“metapsicanálise”: é possível fazer uso da psicanálise para conhecer o
funcionamento inconsciente de universos culturais, enquadres
psicopatológicos não-ocidentais e, especialmente, utilizar a técnica e a
teoria psicanalítica para atender seres humanos que não sejam
subjetivados num registro de intimidade psicológica em relação a suas
concepções de si e de sujeito? (DEVEREUX, 1972).
Essas questões animam há décadas o campo da atuação clínica com
imigrantes, a partir de diversas abordagens conceituais e técnicas e em
Gabriel Inticher Binkowski • 83

campos de práticas distintos, seja o da psicanálise com populações


autóctones nos mais diversos continentes, com comunidades que se
inscrevem em registros religiosos e de organização societal bastante
distintos para com o mundo ocidental, burguês, cristão que se entrega
há tempos para uma organização cada vez mais individualizante,
privatista e homogênea no neoliberalismo. Malgrado essas questões,
resta a experiência analítica nesse tipo de encontro, notadamente
quando se trata da questão migratória, na qual há deslocamentos e uma
experiência que é a da troca ou perda do universo cultural.
A psicanálise é um conjunto de ferramentas e uma posição ética
diante do outro, o que invariavelmente implica que ela pode, sim, ser
algo que nos ajude a oferecer algo a um outro que se encontra em
sofrimento, seja diante de seu percurso e trajetória, como também algo
que imprima o desejo de encontrar-se com um outro que nos é
desconhecido. No contexto do encontro psicanalítico com imigrantes,
reencena-se um teatro de ambivalência entre o desejo de compreensão
e a incompreensão – isso se não simplesmente o encontro de um muro
de incompreensão e de sensação de indiferença. Digo isso porque
muitas vezes, especialmente em contextos como o do cuidado
humanitário ou associativo, um imigrante que nos fala pouco ou nada
sabe das concepções profissionais daquele a quem ele dirige a palavra –
costuma-se dizer que a relacionalidade psicologizante e intimista é
exótica para uma série de culturas.
Todavia, isso não impede, muito pelo contrário, o estabelecimento
de uma relação transferencial – de endereçamento de demanda e de
atualização de certos laços e liames sociais. De outro modo, em situações
84 • Princípios psicanalíticos: de entradas e variedades casuais

clínicas mais afirmadas, quando recebemos um encaminhamento


específico para trabalhar com uma pessoa em situação de migração ou
quando um imigrante nos procura deliberadamente para um processo
analítico, ainda assim se coloca a pertinência da psicanálise num
encontro que carrega seguidamente as marcas da diferença cultural,
linguística, o que implica muitas vezes uma certa impossibilidade de
partilha.
A partilha acaba sendo, então, uma questão fundamental de toda
experiência migratória: conseguir partilhar a própria história e o que se
sente, acessar novos referenciais culturais (o que vai da gastronomia às
piadas), não ficar restrito à uma imagem de um outro que é assimilado
apenas a um determinado estereótipo nacional, cultural ou religioso.
Essa trama, novamente, se refaz na situação analítica, o que de cara já
coloca o seguinte: não necessariamente um paciente-imigrante supõe
que seu analista/clínico seja capaz de acessar os referenciais e as
próprias experiências que dizem respeito ao sujeito. Do outro lado, para
o analista, essa des-localização subjetiva em sua relação com o paciente
pode despertar um certo gozo com a pulsão escópica, que resumo aqui
com a ideia de ver e testemunhar de algo diferente, algo exótico que
aparece em certos significantes trazidos pelo paciente. Em algumas
situações institucionais, já testemunhei essa relação quase fetichista,
voyeur, em relação a imigrantes marcados por certos traços culturais
considerados curiosos ou exóticos. No fim das contas, isso nada mais é
do que uma das faces da segregação e do racismo – o qual se constitui
uma modalidade para lidar (ou recusar a lidar) com a diferença.
Gabriel Inticher Binkowski • 85

Logo, o que intento aqui é adicionar uma verdadeira pré-condição


ética no trabalho clínico-analítico com imigrantes: o estabelecimento
de que o sujeito que vai aparecer diante de nós deve passar pelo
reposicionamento de si enquanto falasser que precisa se encontrar
enquanto cidadão. E isso passa pelo desejo do analista, constituindo,
assim, um dever ético basal do analista para com sujeitos marcados pela
migração e pelo deslocamento. Um analista que possa também desejar
enquanto cidadão, em toda responsabilidade que disso decorre.

DO FALASSER A CIDADÃO: UM ETERNO RETORNO?

Patrícia Gherovici (2021) recupera que, para Lacan, o desejo do


analista não é um desejo puro, e sim um desejo de obter a diferença
absoluta, o que implica, para a autora, no reconhecimento de que o ódio
que sentimos pelo outro está relacionado à possibilidade de ser outro,
de termos outro em nós. Escolher abordar a questão da entrada em
análise pelo desejo do analista encontra respaldo na ética proposta por
Lacan em seu ensino e em sua produção escrita: o desejo é desejo de
saber, saber que se desvela como efeito de verdade do inconsciente e do
sintoma naquilo que estes apontam para a primazia do significante do
qual participa o real do sexo (LACAN, 1966, p. 365-366).
A relação analítica se estabelece como um caso, no qual a relação
transferencial se instaura enquanto passagem entre demanda e desejo,
com o que Brousse (1989) considera como uma ordenação subjetiva do
caso em que o inconsciente surge enquanto abertura do sujeito ao
insabido. Por sua vez, o desejo de saber fica do lado do analista, saber
86 • Princípios psicanalíticos: de entradas e variedades casuais

com e a partir da diferença. A partir destes apontamentos, a questão da


pertinência de pensar sobre uma especificidade da entrada em análise
na clínica com subjetividades em situação de migração deve ser
colocada. Faria sentido tal questão, de haver ou não uma especificidade?
No primeiro toque, resta uma marca de diferença no encontro de
um analista com um sujeito imigrante, contudo, tal diferença também
pode ser indicada quando o próprio analista é um imigrante ou ainda
em qualquer outra situação social em que há vestígios ou evidências
estruturais de posições sociais, subjetivas, sexuais, existenciais e até
mesmo econômicas entre analista e paciente. Ora, as diferenças
escorrem por todas as partes, se apresentam em cada novo significante
que é dito. O que interessa aqui, todavia, é a pertinência da questão de
que a clínica se faça e que para que a psicanálise se transforme a partir
e com ela. A questão que foi colocada foi a seguinte: há uma
singularidade da entrada em análise na clínica com imigrantes?
Como iniciei esboçadamente acima, o que me parece relevante é o
quão recorrente durante uma experiência migratória consta a
interrogação do sujeito sobre sua própria divisão subjetiva (estar/ser
daqui ou de lá), a constância na reatualização narrativa da própria
história – o que costuma levar à descoberta de que o destino migratório
parecia favas contadas – e, principalmente, a questão de um certo
retorno, daquilo que retorna. Esse último se estende desde o retorno
migratório até aquilo que fica reaparecendo durante a experiência
migratória – rever as razões de certas escolhas, o ressentimento na
experiência do exílio (mesmo na migração dita escolhida), o constante
confronto com a divisão subjetiva, as marcas culturais e linguísticas que
Gabriel Inticher Binkowski • 87

atravessam o sujeito (como no sotaque, o qual se define como uma


deformação natural do aparelho fonador em razão dos fonemas
predominantes e dos ausentes na(s) língua(s) em que uma pessoa
atravessa infância e adolescência.
Em seguida, sabemos que os temas da migração e das políticas
migratórias vêm sendo um vetor determinante das discussões políticas
das últimas décadas, dentro dos mais variados matizes políticos e em
diferentes cenários nacionais. O imigrante passou a ser uma figura da
encarnação política da diferença, do perigo e fonte de ameaça. Nossos
ideais burgueses e cosmopolitas de um mundo sem fronteiras e de livre
mercado não cessam de se chocar contra algo que não se inscreve
corretamente em nosso ideário dito humanista: as diferenças sociais e
econômicas, as guerras e dramas populacionais, as crises humanitárias
e ecológicas, os desastres, etc., são parte de uma trama velada da própria
constituição ideológica da subjetividade ocidental e de seu acinte a
partir da colonização e de seus processos subsequentes (GIANNICA;
BINKOWSKI, 2023). Isso não cessa de retornar quando trabalhamos
clinicamente com imigrantes.
Preciso aqui fazer justiça a algo: não me refiro apenas à clínica que
se tenta sustentar em sujeitos em situação de refúgio e de asilo, ou em
outras modalidades de migração precária. O imigrante contesta e se
contesta a partir das diferenças de modos bastante agudos, e isso se dá
porque o encontro com a dimensão do estrangeiro é um invariável
quando da experiência migratória, levando a uma necessidade de
relocalização subjetiva. Em termos gerais, o reposicionamento que uma
migração exige repõe para o sujeito certas perguntas que parecem
88 • Princípios psicanalíticos: de entradas e variedades casuais

colocadas pelo Outro quando de etapas fundantes da subjetividade, na


lógica do sujeito e de sua sexuação. Afinal, a cultura brota a partir de
certos impasses das funções somáticas (ZUPANČIČ, 2022), do desamparo
fundamental do sujeito e da dependência absoluta do Outro no começo
da vida e, depois, da linguagem e dos pactos que envolvem o simbólico
e a Lei.
A experiência analítica com cada imigrante deve então ser
pensada, ou melhor, devemos a ela dar um tratamento, como um trajeto
de reencenamento e reenquadramento dessas etapas forjadoras da
subjetividade. Trata-se da uma retomada do falasser enquanto questão
para o sujeito. Contudo, isso parece estar no bojo do processo analítico
em geral – se pudermos arriscar falar do geral em psicanálise. Mesmo
assim, o que é salientado pelo encontro analítico com imigrantes é que
o reposicionamento de falasser a cidadão – o qual se faz a partir do
rastro dos aspectos da hospitalidade (DERRIDA, 2003) e de seus impasses
– se faz sentir tanto para sujeito como para o clínico/analista.
Os impasses da hospitalidade como estandarte do Ocidente e de sua
jurisprudência foram apontados por Derrida na imposição exatamente
ao estrangeiro de se submeter a uma língua e uma Lei, ou seja, como o
próprio filósofo sustenta, a um Pai. Esse processo, com a psicanálise,
encontramos nos próprios ditames da colonização, na qual impõe-se um
S1 postiço para toda uma população, relegando sua trama simbólica e
filiativa a um lugar secundário na melhor das hipóteses (MELMAN,
2014) – mas, sendo bem claro, o que a colonização acabou gerando, na
maioria das vezes, é um processo simbólico-imaginário de tentativa de
apagamento e/ou rasura das tramas culturais e filiativas pregressas.
Gabriel Inticher Binkowski • 89

A lógica da rasura fora bem delineada por Derrida, mesmo assim,


encontramos nas hipóteses de Freud sobre a estrangeiridade de Moisés
(FREUD, 1939/2016) diversas formulações para levar adiante tal
inquietação, correspondente à continuidade da verdade material do
recalque ao longo dos processos populacionais, históricos e políticos.
Por isso, considerava Freud, algo como a condição do exílio e do
estrangeiro tanto caracterizava e submetia como também singulariza e
produz comunidade para o povo judeu, uma vez em que ela se
encontrava presente já na própria condição singular de seu fundador.
Como isso pode ajudar a pensar na entrada em análise de um imigrante?
Na verdade, muito além da própria necessidade de reposicionamento
subjetivo do imigrante em seus processos lógicos como sujeito,
encontramos uma convocação para que o analista possa escutar desde
seu lugar de estrangeiro e, paradoxalmente, de cidadão. Minha hipótese,
portanto, é que a questão da entrada em análise de um imigrante e das
mi(g)ragens do sujeito imigrante em sua relação com as miragens do eu
também atinja o cerne das miragens da própria posição da psicanálise
para com sua história (técnica, epistemológica, institucional) e para com
as transformações, rasuras e arquivos de suas políticas.
Diante disso, é preciso sabermos que sempre atendemos seres que
habitam o hiato entre saber e não-saber, entre outro e Outro e que nossa
responsabilidade para cada um, em cada ato clínico, é também o de
conduzir o falasser a cidadão. Isso é um ato analítico mínimo, que
constitui um retorno da posição cidadã para a psicanálise: nossa ciência
está na pólis e precisamos sempre acolher o estrangeiro dessa última e
a própria estrangeiridade de nossa prática e da história desta.
90 • Princípios psicanalíticos: de entradas e variedades casuais

REFERÊNCIAS

Binkowski, G.I. Fósseis do campo psi: sobre conversão de orientação sexual e gênero.
Psicologia Ciência & Profissão, 39 (spe3), 2020. Disponível em:
https://doi.org/10.1590/1982-3703003228542. Consultado em 6/2/23 às 7h54.

BROUSSE, M.-H. O destino do sintoma. In: Motta, M.B. (1989). Clínica lacaniana. Casos
clínicos do campo freudiano. RJ: Jorge Zahar Editor, 1989, p. 69-79.

CASTELLI, A.C. Abjeção e migração: deslocamentos clínicos do enigma do dejeto às


autorizações do desejo. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Clínica. Instituto de Psicologia. Universidade de São Paulo, 2021.

DERRIDA, J. Da hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003.

DEVEREUX, G. Essais d’enthopsychiatrie générale. Paris: Gallimard, 1970.

FÉDIDA, P. L’absence. Paris: Gallimard, 1978.

FOUCAULT, M. L’herméneutique du sujet. Cours au Collège de France, 1981-1982. Paris:


Gallimard/Seuil, 2001.

FREUD, S. Moisés e o monoteísmo. Obras Completas Volume 19. São Paulo: Cia das
Letras, 2016.

FUKS, B.B. (2000). Freud e a Judeidade. A vocação do exílio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2000.

Giannica, D; Binkowski, G.I. Le refus de l’étranger. Migrations, discours et exclusions


dans la subjectivité néolibérale. Recherches en psychanalyse. Artigo aceito para
publicação, 2023.

Gherovici, P. Uma psicanálise para o povo. Descolonização e psicanálise. SP: n-1 edições,
2021. Disponível em: https://www.n-1edicoes.org/uma-psicanalise-para-o-povo.
Consultado em 6/2/23 às 7h32.

KRISTEVA, J. Étrangers à nous-mêmes. Paris: Gallimard, 1988.

LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Lacan, J. (1966/1998).


Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 591-652.
Gabriel Inticher Binkowski • 91

LACAN, J. De um desígno. In: In: Lacan, J. (1966/1998). Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1998, p. 365-369.

LACAN, J. O Seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1992.

MELMAN, C. Lacan aux Antilles. Paris: Érès, 2014.

RÓHEIM, G. (1967). Psychanalyse et anthropologie. Paris: Gallimard, 1967.

ROSA, M.D. (2016). A clínica psicanalítica Diante da dimensão sociopolítica do


sofrimento. São Paulo: Escuta/Fapesp, 2016.

SCHUTZ, A. Le chercheur et le quotidien: la phénoménologie des sciences sociales.


Paris: Klincksiek, 2008.

ZERMANI, M. Alfred Schutz: l’étranger et sa compréhension du groupe social, Sociétés


(89), 2005/3. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-societes-2005-3-page-
99.htm. Consultado em 6/2/23 às 7h22.

Zupančič, A. Por que psicanálise? Três intervenções. São Paulo: Lavrapalavra, 2022.

Você também pode gostar