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FILOSOFIA NA VEIA
FILOSOFIA NA VEIA

REFLEXÕES E EXPERIÊNCIAS

Organizador
Francisco Atualpa Ribeiro Filho
Diagramação: Marcelo Alves
Capa: Gabrielle do Carmo

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

F488 Filosofia na veia: reflexões e experiências [recurso eletrônico] / Francisco


Atualpa Ribeiro Filho (org.). – Cachoeirinha : Fi, 2024.

247p.

ISBN 978-65-85725-97-2

DOI 10.22350/9786585725972

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Filosofia. I. Ribeiro Filho, Francisco Atualpa.

CDU 14/141

Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto – CRB 10/1023


SUMÁRIO

PREFÁCIO 9
Francisco Atualpa Ribeiro Filho

1 15
A COMUNICAÇÃO DE FELIZ ANO NOVO E A NECESSIDADE DO MAL: O ENCONTRO
ENTRE RUBEM FONSECA E GEORGES BATAILLE NA SALA DE AULA
Francisco Atualpa Ribeiro Filho

2 47
A CONCEPÇÃO DO VIVER E DO MORRER NAS OBRAS DE LÚCIO ANNEU SÊNECA
Adão Lopes da Silva
Francisco Atualpa Ribeiro Filho

3 69
A DÚVIDA METÓDICA EM RENÉ DESCARTES
Aline Silva Alves
Francisco Atualpa Ribeiro Filho

4 101
REFLEXÕES INSPIRADAS NA OBRA “PENSAMENTOS” DE BLAISE PASCAL
Lya Neanne Louzeiro Costa
Francisco Atualpa Ribeiro Filho

5 131
ÉTICA E POLÍTICA EM NICOLAU MAQUIAVEL
América Dayana de Carvalho e Guedes
Francisco Atualpa Ribeiro Filho

6 151
CISÃO ENTRE POLÍTICA E ÉTICA NA OBRA O PRÍNCIPE DE NICOLAU MAQUIAVEL
Arnon Santana Fernandes Gama
Francisco Atualpa Ribeiro Filho
7 179
O PROJETO KANTIANO DE PAZ PERPÉTUA
Weuller Carvalho Barreira Sales
Francisco Atualpa Ribeiro Filho

8 207
O CONCEITO DE VIOLÊNCIA NO ENSAIO SOBRE A VIOLÊNCIA DE HANNAH ARENDT
Sônia Maria de Aguiar Cana Verde
Francisco Atualpa Ribeiro Filho
PREFÁCIO
Francisco Atualpa Ribeiro Filho

Caros leitores,

Com grande satisfação, dirijo-me a vocês neste momento não


apenas como coautor e organizador deste livro, mas também como
alguém que teve a honra de participar ativamente da jornada que o
inspirou. “Filosofia na Veia: Reflexões e Experiências” transcende a
mera compilação de capítulos e tópicos; é uma homenagem, uma
celebração e um tributo à incrível turma “Filosofia na Veia”, que tive o
privilégio de orientar e acompanhar.
Durante o período em que atuei como tutor presencial,
testemunhei a dedicação, paixão e responsabilidade que essa turma
demonstrou em sua busca pelo conhecimento. Cada tema abordado
neste livro representa um fragmento do extraordinário percurso
filosófico que embarcamos juntos.
O livro inicia com uma profunda imersão na interseção de dois
grandes pensadores: Rubem Fonseca e Georges Bataille. Juntos, eles nos
conduzem por um território filosófico muitas vezes negligenciado,
explorando a Comunicação do Mal e a necessidade de compreendê-lo.
Essas reflexões surgiram em sala de aula, onde ideias complexas
encontraram solo fértil para florescer. É relevante destacar que essa
experiência filosófico-literária ocorreu em uma escola de ensino médio,
onde atuei simultaneamente como professor de filosofia e redação.
10 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

Assim, essas reflexões expressam a metodologia emancipadora


transgressiva que adoto durante as aulas.
Partindo da filosofia clássica o orientando Adão Lopes volta-se
para as obras de Sêneca, o filósofo estoico, cujas palavras nos lembram
da brevidade da vida e nos incentivam a refletir sobre como vivemos e
enfrentamos a morte. Sêneca oferece lições atemporais sobre a busca da
sabedoria e a compreensão da natureza, tendo como norte a provocação:
como encontrar paz de espírito? Ele nos desafia a cultivar a virtude, a
autossuficiência e a resiliência perante as adversidades, orientando-nos
a viver de acordo com a razão e a natureza. Ao enfrentar a
inevitabilidade da morte, Sêneca propõe uma atitude de serenidade
diante desse destino inevitável, argumentando que a verdadeira
liberdade reside na aceitação da condição humana e na prática da
virtude.
Aline Alves defende o pensamento de René Descartes, sendo este
precursor da filosofia moderna, inaugurando uma revolução no
pensamento ao introduzir o método cartesiano, cuja pedra angular é a
dúvida metódica. Descartes propõe que, para alcançar a certeza
indubitável, devemos duvidar de todas as crenças e conhecimentos até
encontrar algo que não pode ser duvidado: o ato mesmo de duvidar,
encapsulado na célebre frase “penso, logo existo”. Este cogito, ou “eu
penso”, torna-se o ponto de partida para o estabelecimento da certeza
e, portanto, o fundamento do conhecimento. Além disso, vale pontuar
que o método cartesiano, centrado na dúvida sistemática e na busca por
certezas inabaláveis, pode ser aplicado de maneira relevante nos
desafios contemporâneos, como a disseminação de notícias falsas (fake
news). A dúvida metódica cartesiana, quando transposta para a esfera
Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 11

da informação, incentiva uma postura crítica diante das informações


recebidas.
O contraste entre o pensamento cartesiano e a filosofia de Blaise
Pascal, conforme observado pela acadêmica Lya Costa, revela duas
perspectivas fundamentais na história da filosofia. Enquanto Descartes
busca uma base sólida para o conhecimento por meio da dúvida
metódica e da afirmação do “cogito”, Pascal, em suas “Pensées”,
mergulha em uma exploração complexa que transcende a mera
racionalidade. A dualidade entre o coração e a razão em Pascal marca
uma abordagem única, na qual ele reconhece a importância de ambos
na compreensão da verdade.
A visão pascaliana transcende as fronteiras tradicionais entre fé e
razão, buscando uma síntese que respeite a totalidade da condição
humana. Não obstante, Descartes procurar certeza através da dúvida e
da razão isolada, Pascal nos convida a considerar as profundezas do
coração, reconhecendo que a verdadeira compreensão exige uma
abordagem holística. Assim, a dualidade proposta por Pascal não apenas
enriquece a compreensão da condição humana, mas também lança luz
sobre a complexidade inerente à busca da verdade, destacando a
importância de harmonizar elementos racionais e emocionais para uma
compreensão mais completa de nós mesmos e do universo que
habitamos.
A trilha filosófica proposta por América de Carvalho e Arnon Gama
nos leva ao pensador renascentista Nicolau Maquiavel, cujo nome se
tornou sinônimo de realismo político. Exploramos as complexidades da
ética e da política em suas obras, especialmente em “O Príncipe”, onde
a separação entre política e ética teleológica é abordada de forma franca
e desafiadora. O texto apresenta reflexões acerca de dilemas propagados
12 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

pelo senso sobre o pensamento maquiaveliano, como a noção de que


ética e política são dicotômicas e que incentiva a corrupção. Dessa
forma, o pensamento maquiaveliano desafia simplificações excessivas e
incentiva uma análise mais aprofundada da complexa relação entre
ética e política, proporcionando insights relevantes para a compreensão
das dinâmicas políticas contemporâneas e os desafios morais
enfrentados pelos líderes em diferentes contextos.
O movimento iluminista nos inspirou a estudar Immanuel Kant,
que como destaca o discente Weuller Sales, nos lembra da importância
da paz perpétua e do direito cosmopolita, desencadeando uma discussão
sobre sua influência na criação da ONU e no ideal de paz global. No que
diz respeito ao direito cosmopolita, Kant sustenta a ideia de que todos
os seres humanos, independentemente de sua nacionalidade, têm
direitos fundamentais inalienáveis. Ele defende a ideia de que, em um
mundo ideal, as nações deveriam cooperar com base no respeito mútuo
desses direitos, estabelecendo um sistema de direito internacional que
transcende as fronteiras nacionais. Isso implica uma concepção de
justiça que se aplica universalmente e não apenas dentro das fronteiras
de um estado.
Na análise da filósofa política Hannah Arendt, sobre o conceito de
violência, Sônia Cana Verde destaca a obra da pensadora como uma
lente valiosa para compreender as intrincadas relações entre política e
ação. Arendt, em suas reflexões, distingue entre poder, força,
autoridade e violência, oferecendo uma abordagem única que desafia
preconceitos convencionais. O poder, para Arendt, não se traduz
simplesmente como coerção ou imposição, mas como a capacidade de
agir coletivamente na esfera pública, onde os indivíduos podem
deliberar e influenciar o curso dos acontecimentos políticos.
Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 13

A relação entre o pensamento de Arendt e as discussões entre


Sartre, Marx e Fanon sobre o conceito de violência proporciona um
terreno fecundo para aprofundar a compreensão desse fenômeno
complexo. Assim, ao expandir as análises arendtianas oferecemos uma
contribuição valiosa para o entendimento da violência no contexto
político e social, incorporando diversas dimensões do pensamento
filosófico para iluminar a complexidade desse fenômeno multifacetado.
Em cada capítulo, os leitores encontrarão uma síntese das
discussões e reflexões que permearam a turma “Filosofia na Veia” que
tive o prazer de orientar. Este livro é uma homenagem a todos aqueles
que participaram dessa jornada, seja como alunos, professores ou
entusiastas da filosofia. É uma celebração do desejo insaciável de
conhecimento, da busca implacável pela verdade e da paixão pela
filosofia.
Espero que este livro inspire outros a se aventurarem nas
profundezas do pensamento filosófico, questionando, refletindo e
debatendo. E que, assim como a turma “Filosofia na Veia”, vocês também
encontrem uma comunhão intelectual que enriqueça suas vidas.
Agradeço a todos que fizeram parte desta jornada e que
contribuíram para a concretização deste livro. Que ele sirva como um
tributo duradouro ao amor pela filosofia e à incrível comunidade que a
tornou possível.
A COMUNICAÇÃO DE FELIZ ANO NOVO E A
1
NECESSIDADE DO MAL: O ENCONTRO ENTRE RUBEM
FONSECA E GEORGES BATAILLE NA SALA DE AULA 1
Francisco Atualpa Ribeiro Filho 2

INTRODUÇÃO

“Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aquele


tremendo trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele
foi escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele
tinha um buraco que dava para colocar um panetone” (FONSECA, 2012,
p. 16). É assim que Rubem Fonseca (1925-2020) alveja o leitor com a
normatização dessa atmosfera criminosa, cuja brincadeira consiste em
saber se o homem iria ficar grudado na parede com o tiro de uma arma
de calibre doze. Nesse sentido, Fonseca foi alvo da Ditadura Civil-Militar
(1964-1985) que por meio do autoritarismo, censura e violência agredia
artistas, músicos, escritores ou qualquer um sob o pretexto de ser
subversivo e/ou macular os bons costumes. Diante disso, Feliz ano novo
trancafiado em 1975, adquiriu, com muita resistência, sua liberdade em
1985. Constitui uma coletânea de quinze contos, sendo a violência

1
O presente artigo é um recorte da Pesquisa de Mestrado em Filosofia, tendo como título: As
manifestações da barbárie no ambiente escolar: o encontro entre a educação emancipadora de
Theodor Adorno e a literatura transgressora de Georges Bataille como práxis filosófico-literária.
2
Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí; Licenciado em Filosofia pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie; Licenciado em Sociologia pelo Centro Universitário Internacional (UNINTER);
Bacharel em Administração Pública pela Universidade Estadual do Piauí. Especialização em: Docência do
Ensino Superior (UNOPAR); Gestão Pública Municipal (UESPI); Gestão Educacional em Rede EaD (UFPI);
Atualmente é orientador do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) da Faculdade
do Cerrado Piauiense (FCP) e Professor de Filosofia da SEDUC-CE. Lattes: http://lattes.cnpq.br/
1491096614911103. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2256-4336E-mail: farf25@gmail.com
16 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

urbana o escopo das narrações. Portanto, o ultrarrealismo de Fonseca


torna prosaico o processo de desumanização refletido no cotidiano,
sendo o retrato que ainda persiste de uma sociedade estratificada pelo
signo do poder.
O conto Feliz Ano Novo (2012), homônimo do livro, integrará o
encontro entre Rubem Fonseca e Georges Bataille para assim,
constituírem trocas comunicativas, cujo objetivo consiste em despertar
uma análise crítica da realidade dos educandos. Outrossim, a prosa de
Fonseca expõe a crueza do Mal, desde a brutalidade extrema que o
homem pode praticar por sua situação marginal à frieza do pai de
família, aparentemente pacato, que sente prazer em atropelar
pedestres. Dessa forma, a violência que assola os guetos, transborda sua
predeterminação ao silêncio e invade a zona civilizacional com pessoas
dispostas a acusarem o outro ou o destino dos acontecimentos que
fogem à ordem estabelecida. Por isso,

A linguagem artística, especialmente a literatura, dá voz ao coletivo, ao


universal. Na ficção vemos retratado o drama de todos os homens, o que
inclui o nosso próprio. Os limites da ficção são os da humanidade, não se
circunscrevem a um determinado lugar ou indivíduo. Daí também decorre
seu caráter de exemplaridade. Diante da ficção literária, instala-se um
curioso processo de identificação entre o leitor e personagem, que não
acontece diante da singularidade do fato real (SILVA, 2009, p. 71).

A partir disto, a linguagem literária de Fonseca aborda o Mal como


exercício de denúncia, pois sendo a violência uma das marcas culturais
e históricas brasileiras, faz-se necessário a discussão desse autor no
contexto da sala de aula. Nesse sentido, é possível que haja
sensibilização dos educandos por parte da análise e interpretação
desses contos. Ademais, o diálogo – mutatis mutandis – entre Fonseca e
Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 17

a comunicação batailliana revela-se como experiências de pensamentos


sobre a incessante transferência de culpa diante de atos agressivos que
se percebe no contexto da sociedade, inclusive dos agentes que
compõem a comunidade escolar.
Vale pontuar que o conceito de Mal para Bataille não pode ser
entendido apenas em termos morais convencionais, mas como uma
força poderosa e fundamental que permeia a existência humana. Ele
considera que há uma dimensão do ser humano que está além da razão
e da ordem social, que ele chama de “excesso” ou “transgressão”. Essa
transgressão é uma afeição ao caos, à desordem e à violência, isto é, uma
manifestação do lado obscuro e irracional da natureza humana. Bataille
argumenta que essa força do Mal está presente em várias expressões da
vida, como nos rituais religiosos que envolvem sacrifícios, nas práticas
sexuais que ultrapassam os limites impostos pela moralidade, na
literatura e até mesmo na economia, onde o desperdício e a destruição
de recursos são despercebidos.
É importante notar que a concepção de Bataille sobre o Mal não é
uma apologia à violência ou à imoralidade, mas um convite à reflexão
sobre a complexidade e as contradições inerentes à experiência
humana. Sua filosofia busca abordar questões existenciais
fundamentais e desafiar as convenções morais e culturais estabelecidas.
Nessa perspectiva, esses escritos elevam-se à consciência, instiga à
crítica e diante dos cenários violentos nos mais diversos estratos
sociais, pode-se pensar sobre o posicionamento acovardado que
professor e educando assumem frente ao erro, sobre a violência física
e/ou moral que muitos estudantes cometem ou ainda, sobre
normalização de preconceitos que envolvem as jovens como gravidez
precoce e sexualidade.
18 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

Diante disso, ao refletir sobre o conto Feliz Ano Novo (2012) e os


conceitos de hipermoral e vontade de chance bataillianos, haja vista sua
influência nietzschiana, foi possível desenvolver narrativas
autobiográficas que enriqueceram o processo de ensino- aprendizagem
de filosofia, contribuindo no trânsito das tensões e traumas sucumbidos
pelo conteudismo das aulas.
A metodologia adotada neste estudo foi de cunho bibliográfico,
caracterizando-se como exploratória e alinhada ao modelo qualitativo
de investigação. Diante disso, para a implementação dessa atividade
emancipadora foram necessários cinco encontros que ocorreram
durante as aulas de filosofia e redação o que contribuiu para o
entendimento da proposta filosófico-literária, saber: 1º encontro:
Desenvolvimento da reflexão crítica; 2º encontro Empatia transgressiva
e compreensão do outro; 3º encontro: Autoconhecimento e identidade,
4º encontro: Estímulo à expressão criativa – elaboração das narrativas
autobiográficas; 5º encontro: Diálogo filosófico-literário.
Por meio da análise aprofundada das obras de Fonseca e Bataille,
buscou-se compreender a relação entre literatura, filosofia e a
percepção do Mal na condição humana. Dessa forma, o trabalho busca
contribuir na autoconscientização dos educandos sobre aspectos
complexos da natureza humana, ao mesmo tempo em que estimula o
desenvolvimento do pensamento crítico e da apreciação da literatura à
luz do pensamento filosófico.

1. RUBEM FONSECA À LUZ DO PENSAMENTO DE BATAILLE

As literaturas de Fonseca e batailliana quiseram desobstruir as


cordas vocais da linguagem e dar vazão ao berro da violência que
acompanha a humanidade para refletir sobre como a sociedade produz
Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 19

e reproduz aquilo que combate. Para Bataille “os civilizados falam, os


bárbaros se calam, e aquele que fala é sempre civilizado. Ou, mais
exatamente, a violência é silenciosa, já que a linguagem é, por definição,
a expressão do homem civilizado” (BATAILLE, 2017a, p. 213-214). Nessa
perspectiva, a limpidez racional cindiu o mundo em dois extremos, cuja
norma conduziu o civilizado (nós) e o bárbaro (os outros) como
realidades heterogêneas, entretanto “civilização e linguagem se
constituíram como se a violência fosse exterior, estranha não apenas à
civilização, mas ao próprio homem (BATAILLE, 2017a, p. 214). Dessa
forma, não há selvagens que não falem e sejam passivos de convívio e
reciprocamente não há civilizados que não sejam capazes de selvageria.
Com isso, as narrativas violentas não fazem jus ao discurso lógico e
coerente, decerto essas cenas despertam no imaginário do leitor à
escuta do que o homem é capaz de fazer.
Em grande medida ao mencionar a violência como necessária para
conduzir à consciência, Bataille se refere ao sistema racional, tendo sua
expressão no pensamento cartesiano, cuja teoria ignorou os
sentimentos, as emoções e a violência como possibilidade de
emancipação. Desse modo, o homem civilizado enxerga-se unicamente
como possuidor de faculdades racionais que permitem ideias claras e
distintas, mas não se enxerga como dotado de instintos destrutivos,
pois, incorporou em seu imaginário uma postura reativa quanto aos
seus erros. Por isso, faz-se urgente refletir colaborativamente sobre
cenários violentos tendo a literatura como aliada no processo de
autoconscientização.
No conto Feliz Ano Novo (2012) o exercício da violência é municiado
pelas manchetes dos programas policiais ou o desejo de adquirir as
roupas de marca e as guloseimas que veiculam nas programações
20 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

televisivas, não passa apenas de uma notícia, tendo em vista que não
podem pertencer a esse mundo: “Vi na televisão que as lojas bacanas
estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames vestirem no
réveillon. Vi também que as casas de artigos finos para comer e beber
tinham vendido todo o estoque” (FONSECA, 2012, p. 13). As personagens
Pereba e Zequinha tentam superar a necessidade que possuem de se
encaixar na sociedade, de serem aceitos imaginado possuíram tais
objetos.
A cena do assalto sugere uma rotina que se alimenta da violência
por ser a única forma de continuar sobrevivendo. O que impressiona é
a consciência dos bandidos de seu estado marginal e do desprezo que a
classe abastada possui por eles. Isso pode ser constatado quando um dos
empresários resolve acalmar a situação e trazer conforto aos outros
reféns. Assim, os lances do assalto sugerem uma rotina que se
retroalimenta das agressões, sendo esta, a única forma de continuar
existindo e de conquistar flertes com o mundo das propagandas.
Quanto a esse cenário, Bataille salienta que a violência carrega em
si um drama paradoxal. Esses exemplos literários “de toda maneira,
afirmam, é o valor soberano das violências, dos excessos, dos crimes,
dos suplícios. Assim, infringem esse profundo silêncio que é próprio à
violência, a qual nunca diz que existe, e nunca afirma um direito de
existir, apenas existe sem dizê-lo” (BATAILLE, 2017a, p. 216). Nesse
sentido, Fonseca (2012) fala em nome da violência dos esquecidos,
mostra o assassino, a prostituta, o interesse financeiro e não obstante
terem vivido em épocas distintas, apesar do clima opressivo da ditadura
brasileira ou do totalitarismo do nazifascismo.
O autor de Feliz ano novo (2012) converge à postura batailliana,
haja vista que “deixou falar nele a revolta: falou, o que, sozinha, a
Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 21

violência não faz”, denunciou ao mundo o que o regime militar fez,


atacando o terreno do homem moral, a que a linguagem pertence”
(BATAILLE, 2017a, p. 217). Diante disso, ambos os autores, por meio da
linguagem ultrarrealista, têm como objetivo elevar à consciência do
leitor a estrutura social que é aplacada pelo consumo, de tal modo que
em meio as felicitações e banquetes em comemoração à passagem de
ano as cenas de fome e miséria em muitas famílias se repetem.
Os personagens de Fonseca (2012) deixam-se guiar pelo instinto de
destruição que o próprio sistema dissipa e oportuniza sua manifestação.
Sem crítica, mediações e pausas reflexivas o referido conto revela o que
homem pode fazer consigo e com o outro, encarando como normal tais
atrocidades. A incompreensão do sistema diante de escritos com essa
intenção pode ser, segundo Bataille, a dignificação deste estilo literário,
ou seja, da própria violência.
Essa maneira de revelar a violência através da escrita nos afasta do
embrutecimento, pois a agressividade que Feliz Ano Novo (2012)
expressa “transformara a violência no que ela não é, de que ela é mesmo
necessariamente o oposto: uma vontade refletida, racionalizada, de
violência. A humanidade se aparta de si mesma o que deriva da loucura.”
(BATAILLE, 2017, p. 219). Por isso, Bataille e Fonseca renunciam a uma
cadência costumeira da filosofia e da literatura para se lançarem ao
desconhecido e ao risco da rejeição.
Com isso, o que Fonseca pretendeu fazer em certa medida foi trazer
à mente dos leitores esse instante soberano de uma comunicação
consciente. Dessa forma, Bataille (2017a, p. 219-220) remete ao estilo
voluptuoso como um excesso, ou seja, “é um excesso vertiginoso, mas é
o excessivo ápice daquilo que somos. Desse ápice não podemos nos
desviar sem nos desviar de nós mesmos”, sendo que a “violência é
22 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

desgarre, e o desgarre se identifica com os furores voluptuosos que a


violência proporciona”.
Diante das perspectivas de Fonseca e Bataille pode-se inferir que
nos deparamos com o contágio literário ou melhor com um problema:
embora a violência constitua a alma do erotismo, o que deve ser
entendido como uma busca pelo "excesso" que desafia normas sociais e
morais, envolvendo o tabu, o sacrifício e o prazer proibido, o homem
civilizado possui um ritmo encadeado, inteligível e lógico, então, como
poderia a violência penetrar em indivíduos acostumados aos
imperativos morais?
Todavia, esse mesmo homem, declara-se culpado, condena-se por
não dar chance à natureza, por negá-la diante de olhares castradores e
racionalizantes que reforçam segmentos morais. Nesta seara o erotismo
não se limita à expressão da sexualidade, mas é uma dimensão mais
ampla da experiência humana que envolve a busca do êxtase, da
transgressão e da dissolução das fronteiras individuais. Bataille (2017a)
acreditava que o erotismo era uma forma de explorar o lado obscuro da
existência e transcender as limitações do eu que fora consumido pelos
ditames da razão.
Diante dessas chaves argumentativas bataillianas, a obra de
Fonseca incorpora a literatura como um lugar, onde o Mal pode ser de
múltiplas formas, oportunizando o exercício estético soberano, cujo
ritual estimula outros a tocarem nessas linhas e ao se deixarem possuir
ocorre uma sagrada explosão de sentidos. Tal experiência passa a
dilacerar e sofrer como se estivéssemos na pele dos personagens.
Conforme Bataille (2017a) é bagunçando pela violência esse
encadeamento de normas e princípios racionais que ocorrem momentos
soberanos e sagrados, os quais proporcionam à consciência instantes
Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 23

transgressivos que colidem com deformações racionais como os


preconceitos seja destinado à cor da pele ou ao gênero. Por isso, as
figuras de Fonseca emergem no mundo profano da ação para aspirar à
consciência clara e distinta do homem normal/civilizado que possui o
hábito de enriquecer-se a todo o custo mesmo que para isso seja preciso
aniquilar o outro.
A cultura e suas normas são criteriosamente criadas para
assegurar a evasão dos instintos do homem civilizado. Costuma-se ouvir
frases como “Bandido bom é bandido morto” ou com fundo histórico “O
correto seria olho por olho dente por dente” e ainda “No Brasil podia haver
pena de morte”. Dessa forma, entre um intervalo e outro vê-se em
noticiários a população esquecer do modismo da empatia que se alastra
pelas redes sociais como uma cortina de fumaça para encobrir o desejo
da promoção de linchamentos sob a justificativa de descaso das
autoridades competentes. Discussões acirradas que banalizam a vida em
brigas de trânsito, agressões física e verbal, podendo até morrer por
defender determinada postura política. Percebe-se homens que matam
por não se conformarem com o término do relacionamento. Ou ainda,
de forma legal, no moderno octógono, cuja meta consiste no
deslocamento do adversário, extrair sangue, violentá-lo e a multidão
enfurecida grita aos berros palavras de ordem, torcendo para que o da
sua preferência ‘mutile’ o outro.
Diante desses fatos, Fonseca escreveu para revoltar e possibilitar o
entendimento mediante irregularidades da violência crua às
disposições lógicas da consciência. Foi por meio da transgressão da lei
que Feliz ano novo (2012) explora o lado obscuro da existência,
apresentando personagens que se entregam a impulsos destrutivos e
transgressores. Por isso, através da literatura, ambos os autores buscam
24 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

uma experiência interior que transcende as limitações da moral e da


razão.
Bataille (2017a, p. 223) ressalta que o Mal é necessário na literatura
para que, o homem normal/civilizado não somente o aprendesse, mas
“sua consciência devia se abrir àquilo que mais violentamente o revoltava:
aquilo que, mais violentamente, nos revolta, está em nós”. Desse modo, a
leitura do conto Feliz Ano Novo (2012) não possibilita apenas a
decodificação de signos e a elaboração de cenas no imaginário, mas
sentimentos desterritorializantes se fazem presentes no enfrentamento
das interferências encarcerantes da racionalidade para fazer tocar nos
interstícios e contagiar os leitores de uma experiência interior, na qual
desconstrói o ser diante do conhecimento profundo de si mesmo.
Vale ressaltar que por experiência interior Bataille (2016, p. 33-35)
entende tal como “a necessidade de pôr tudo em causa (em questão) sem
repouso admissível”, como “estados de êxtase, de arrebatamento ou de
emoção meditada”, “apreensão mais obscura do desconhecido: de uma
presença que em nada mais se distingue de uma ausência” que se
familiariza pela via poética. A compreensão que Bataille propõe vai além
da superficialidade, mergulhando em uma apreensão mais obscura do
desconhecido. Ele descreve uma presença que, de maneira intrigante, se
confunde com a ausência, sugerindo uma experiência profundamente
paradoxal. Essa ambiguidade parece ser particularmente explorada
através da expressão poética, onde as fronteiras entre o conhecido e o
desconhecido se dissipam.
Bataille, ao adotar essa abordagem, convida os leitores a
considerarem as complexidades da existência humana, destacando a
importância da poesia como meio de explorar e dar forma a essas
experiências. Essa via poética, para Bataille, se torna um caminho para
Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 25

a familiarização com uma presença que transcende categorias


convencionais, desafiando-nos a repensar constantemente nossas
noções preestabelecidas.
Entretanto, não se pode entender esse movimento interior como
intimidade ou espiritualização religiosa do ser, mas como inclinação para
si mesmo, sendo ele mesmo, único valor e única autoridade, pois não se
subordina ao conhecimento, nem à entidade transcendental ou
personalidade elevado ao status divino como no budismo: “por não poder
ter princípio nem um dogma (atitude moral), nem na ciência (o saber não
pode ser nem seu fim nem sua origem), nem na busca de estados
enriquecedores (atitude estética, experimental), também não pode ter
outro anseio nem outro fim que não ela própria” (BATAILLE, 2016, p. 37).
Portanto, para que haja essa experiência é necessário que os sujeitos
estejam abertos ao esvaziamento de si mesmos, de preconceitos,
intolerância, estereótipos e deixar seduzir-se pela literatura.
Nesse contexto, as implicações morais desses escritos violentos
durante a presente pesquisa se traduziram na linguagem batailliana
como uma hipermoral, na qual expressa uma superação diante das
repressões da moralidade convencional que sufoca certos impulsos
humanos. A hipermoral implica em abraçar a totalidade da experiência
humana, incluindo seus aspectos sombrios e perturbadores. Por
conseguinte, Bataille propõe o conceito – vontade de chance3,– cujo
escopo consiste em elevar a moral ao ápice, tendo como oposição a

3
Na obra Sobre Nietzsche: a vontade de chance de 1945, Bataille, desloca a vontade de poder nietzschiana
para a vontade de chance. Os escritos de Bataille sobre Nietzsche constituem em grande medida uma
tentativa de desnazificação, ou seja, acabar com esse equívoco vulgar de encontrar semelhanças na
filosofia nietzschiana que justifiquem a eugenia nazifascista. É provável inclusive para o francês que
Nietzsche tenha dado um prognóstico da situação alemã. A filosofia de nietzschiana é incompatível com
qualquer ideia racista e antissemítica.
26 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

moral do atraso – cristã 4 e burguesa. Uma vontade que coloca o homem


inteiramente em jogo, lança-o como dados ao acaso. Dessa forma,
somente lançando-se em um jogo, as peças podem colidir e, assim, o
homem pode vislumbrar sua inteireza e comunicar-se.
O conceito de vontade de chance está relacionado à ideia de que os
seres humanos têm uma atração pelo acaso, pelo imprevisível e pelo
caos. Bataille (2017b) argumenta que, apesar de nossas tentativas de
impor ordem e racionalidade à nossa existência, existe uma força
pulsante em nós que nos leva a buscar momentos de ruptura,
transgressão e experiências que não podem ser totalmente controladas
ou previsíveis. Por isso, a importância da comunhão entre filosofia e
literatura para haver esse extravasamento das pulsões que o ser
humano busca satisfazer constantemente. Portanto, essa abordagem
pode conceber a vontade de chance como a busca humana por
experiências que transcendem o controle e a previsibilidade, cujo
objetivo dentre outros consiste em quebrar paradigmas, as normas
sociais e a busca por prazeres que desafiam a razão e a moralidade,
mediante a escrita autobiográfica.

2. A NECESSIDADE DE COMUNICAR O MAL

Na linguagem batailliana, “só comunico fora de mim,


abandonando-me ou lançando-me para fora. Mas, fora de mim, não sou
mais. Tenho esta certeza: abandonar o ser em mim, buscá-lo fora, é

4
Nessa disputa “o declínio – corresponde aos momentos de esgotamento, de cansaço – atribui todo
valor à preocupação de conservar e enriquecer o ser. É dele que procedem as regras morais” (BATAILLE,
2017c, p. 57). A comunicação que Bataille fala refere-se ao crime da crucificação de Cristo. A condição
para que houvesse “comunicação” entre Deus e os homens, inundados no pecado, foi permitir o
assassinato de seu próprio Filho. Caso o homem permanecesse ensimesmado em seu isolamento – que
para o autor é um mal terrível e talvez maior – não haveria comunhão.
Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 27

correr o risco de estragar – ou de aniquilar – aquilo sem o que a


existência do fora não teria sequer aparecido para mim, esse eu”, que
não tornar-se-ia o que é para mim (BATAILLE, 2017b, p. 62). Assim, o
erotismo coloca em xeque o próprio homem, tendo como princípio uma
experiência interior.
A comunicação implica viver desgarrado de si mesmo e para haver
comunicação é necessário a perda de crédito, pois “o sacrifício está do
lado do mal, é um mal necessário ao bem. A comunicação só tem lugar
entre dois seres postos em jogo – dilacerados, suspensos, um e outro
inclinados sobre seu Nada” (BATAILLE, 2017b, p. 59-60, grifo do autor).
Assim, essa íntima e comunicável relação, percebe-se entre as
personagens de Fonseca que além de correrem risco, por menor que
seja, tornam-se penetráveis uma à outra, inclusivo com o leitor ou
leitora.
Não há solidificação em sentido absoluto nessa relação
comunicativa entre os seres, mas há conflito entre opostos, tendo o
ápice moral (hipermoral) como caminho desinteressado à lassidão do
ser, uma vez que “aquilo que se convencionou chamar de mal, o que
agride o ser, torna-se necessário para um bem maior” (PASCHOAL,
2008, p. 51). Portanto, o Mal não pode ser entendido simplesmente como
oposto ao bem, mas necessário à sua constituição, como movimento
indiferente ao tempo porvir, sem depender de postulados morais
convencionais que outros decidiram ser melhor e mais justo para este
ou aquele momento.
Deve-se pontuar que para a efetivação de uma comunicação
autêntica é necessário que o leitor se despossua de si mesmo e enxergue
a experiência interior não como uma troca monetária, mas como um
momento espiritual, tendo os cenários e detalhes do texto como veículo
28 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

condutor para a apreciação dessa espiritualização. Dessa forma, com


situações corriqueiras Fonseca consegue revelar à consciência o que ela
mesma renunciou. Através dos detalhes do calibre da arma, da
quantidade de páginas em um livro, a velocidade do carro, o valor do
empréstimo, a marcação das horas, redirecionam o leitor para
experiências reais de violência que são reprimidas por sentenças morais
ou doutrinas religiosas.
Com essas nuances Bataille elucida que a comunicação do mal
ocorre devido “os ápices não provêm mais de uma moral do ápice: uma
moral do declínio designa-os menos a nossos desejos do que a nossos
esforços” (BATAILLE, 2017b, p. 70, grifo do autor). Tal assertiva sobre a
moralização do pensamento, por meio da hegemonia da conduta
racional do sujeito, o Mal perde sua soberania ao se aliar às sentenças
transcendentais, moralistas e virtuosas. Portanto, ao legitimar a prática
do preconceito, do assassinato em detrimento de uma religião ou grupo
social, o indivíduo perde aos poucos o sentido de quem ele é.
Ao formular uma moral do declínio ou ainda, ao explicar o ápice
moral já constitui o declínio do ser, sua fraqueza, medo e indigência. Ao
falar do ápice moral não o promovo como tal, mas o negligencio, uma
vez que o ápice não admite em sua natureza qualquer submissão, ao
explicá-lo é mesmo que prendê-lo na camisa de força da intenção. O
ápice moral não possui a mesma mecânica do perecimento religioso
piedoso e nesse sentido, é necessário tanto um juízo ingênuo quanto
uma consciência do mal que a moral do declínio não possui por está
infectada na busca incessante pela terra prometida. Assim, a
hipermoral “furta-se a nós, ao menos na medida em que não cessamos de
ser homens: de falar. Não se pode, além do mais, opor o ápice ao declínio
Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 29

como mal ao bem. O ápice não é ‘aquilo que é preciso atingir’; o declínio,
‘aquilo que é preciso suprimir’” (BATAILLE, 2017b, p. 72, grifo do autor).
A hipermoral e para outros pensadores metaética não pode ser
definida simplesmente como “bem” que deve ser alcançado e “mal” que
deve ser evitada. Isto é inconsistente com as categorias tradicionais de
julgamento moral, tais como aquelas baseadas em dualismos, como
certo e errado, certo e errado. Bataille sugere, em vez disso, que a
metamoralidade representa uma dimensão da experiência humana que
transcende as categorias morais convencionais. É uma força que se
manifesta de formas imprevisíveis e muitas vezes perturbadoras,
desafiando os nossos entendimentos e noções tradicionais de
moralidade.
A busca por uma verdade absoluta, uma conduta ilibada, uma vida
sem falhas produz um clima inescapável às ações morais declinantes. O
ápice enquanto inacessibilidade aponta à descida do ser, porém isso não
impede que o ser deseja alcançá-lo, o que não pode significar uma
abolição ou revolta de regras morais, tendo em vista que se entende sua
aceitação como impotente ou como parte de um processo humanizador.
Bataille postula liberdade e autonomia como os desejos mais
intensos do ser, todavia não há autonomia sem a aplicação do máximo
de força possível, de excesso extremo de energia e, com isso, não há
sentido subordinar a moral às categorias de bem e mal, de resiliência ou
de dever, pois “é deixando a interrogação aberta em mim como uma
chaga que guardo uma chance, um acesso possível a ele”, ao ápice moral
(BATAILLE, 2017b, p. 77).
Nessa via dilacerante que a hipermoral extrapola na festa da
sensualidade e do prazer, caminhos para alcançá-la, Bataille faz um
alerta que o ápice moral não pode servir apenas a um grupo de pessoas
30 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

eleitas, todos podem se deixar possuir por essa ferida conspurcante.


Portanto, a comunicação necessita de fissuras, de frestas, chaves
excessivamente abertas para que o Mal se deflagre e transmita a
soberania embalada por uma experiência transgressora que vê o
interdito, a moral do declínio como a expressão do gozo que a
experiência interior da literatura “exige daquele que a faz uma
sensibilidade não menor à angústia que funda o interdito do que ao
desejo que leva a infringi-lo. É a sensibilidade religiosa que liga sempre
estreitamente o desejo e o pavor, o prazer intenso e a angústia”
(BATAILLE, 2017a, p. 62). Por isso, o medo do inferno no pós-vida ou o
que pode acontecer devido aos castigos impostos por Deus permeiam o
imaginário da sociedade, o que estimula a clausura atitudinal em
detrimento de doutrinas religiosas.
Uma verdade circunstancial que altera e robustece suas exigências
sob o pretexto de que o fim dos tempos se aproxima ou de que ao
transgredir alguma norma irá queimar nas profundezas do inferno
implica no declínio do homem. Como viver amedrontado, terrificado de
postulados que aniquilam qualquer centelha de criatividade, de riso,
diversão ou sentimento? Bataille (2017b, p. 77, grifo do autor) afirma:

Não quero zombar de ninguém. Quero apenas zombar do mundo, ou seja, da


inapreensível natureza de que sou o resultado. Não costumamos levá-la em
conta, se refletimos, se falamos, mas a morte nos interromperá. Não terei
de prosseguir sempre na subordinadora busca do verdadeiro.

Sua perspectiva não equivale ao anarquismo ou ao perecimento das


religiões, mas sua proposta consiste em lançar-se e deixar que a
literatura cumpra os lances do jogo. Dessa forma, despossuir-se do
determinismo, da predestinação e apresentar-se à chance para que seja
Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 31

ao acaso sem julgamentos, oportunizar ao Mal de comunicar sua


sacralidade, que se eleva à consciência clara e distinta de sua magnitude
e soberania.
O conto Feliz Ano Novo à luz de uma hipermoral batailliana
confessa-se culpado e irresponsável não somente por levar à
consciência do homem à violência, mas também por alavancar a
culminância moral, transgredindo e fazendo dos obstáculos
oportunidades para questionar a ordem estabelecida, dando vasão às
denúncias das mazelas sociais. É sob uma vivência espiritual da
literatura que Bataille trilha sua comunicação transgressora, sensual e
risível para revelar o pior do homem e refletir sobre sua incapacidade
de ver-se como autor dessas agressões que em muitos casos delegam, à
religião, ao destino ou à pessoa mais próxima.
Com isso, Rubem Fonseca e Georges Bataille partilham uma
abordagem literária que procura denunciar a violência e a ambiguidade
da condição humana. Suas histórias desafiam as normas e a ética,
confrontando os leitores com o lado sombrio da sociedade e da própria
humanidade que se recusa a assumi-la. Através da literatura,
procuraram inspirar a autoconsciência e transcender os limites da
razão e da moralidade.

3. LOCUS DA PESQUISA

Este trabalho destaca a importância da participação democrática e


da colaboração de toda a comunidade escolar, especialmente da
administração. A colaboração entusiástica e dialógica da liderança da
escola foi fundamental, desde o planejamento à implementação dessa
atividade emancipadora: a escrita de autobiografias. Nesse sentido, a
sensibilidade da administração em compreender os objetivos do projeto
32 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

e as questões envolvidas demonstra consistência com a legislação, uma


vez que os diretores promoveram conversas que auxiliaram no
diagnóstico da realidade do discente e contribuíram para a criação de
estratégias adequadas para cada estudante.
Diante disso, o ambiente escolar emancipador é caracterizado pela
capacidade de ouvir, pela abertura ao diálogo e à inovação, pelo
pensamento crítico, pelo respeito às diferenças e pela coragem. Essas
características representam a gestão escolar do CENSA, que enfrenta
desafios financeiros, falta de profissionais em diversas áreas e
limitações na infraestrutura.
A pesquisa foi realizada com estudantes do ensino médio do
Colégio Estadual Nossa Senhora Aparecida (CENSA) em 2018, na cidade
de Formosa do Rio Preto, Bahia, que possui uma população de 25.311
habitantes. O CENSA oferece um programa de ensino médio regular de
três anos em três turnos, com uma idade média dos alunos com idade
estimada entre 14 e 20 anos. As atividades se concentraram
principalmente em três turmas do terceiro ano, totalizando 50
educandos que aderiram à pesquisa, ou seja, a todos os participantes foi
concedida a livre escola de participar das atividades da pesquisa, por
meio de um termo de consentimento, haja vista a utilização de imagens
e textos dos estudantes envolvidos.
É necessário esclarecer que os fatores socioculturais das famílias
dos discentes que são diversos como dependência química, gravidez na
adolescência, pobreza, falta de saneamento básico, violência doméstica.
Na época, lecionava disciplinas de redação e filosofia entre os anos de
2012 e 2019, o que contribuiu no processo dialógico entre literatura e
filosofia. Nesse sentido, algumas aulas de redação foram utilizadas para
o desenvolvimento da pesquisa devido à afinidade entre essas áreas.
Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 33

Além disso, a administração da escola permitiu a inclusão de autores


que não faziam parte do currículo original.

4. METODOLOGIA FILOSÓFICO-LITERÁRIA NA SALA DE AULA

A metodologia filosófico-literária visa integrar dialogicamente


textos de diversos gêneros literários e filosóficos na rotina dos
educandos, promovendo a exploração literária e filosófica da realidade
e facilitando uma perspectiva interdisciplinar para uma aprendizagem
que ultrapassa o rigor curricular aprimorada. Nesse sentido, entende-
se por metodologia filosófico-literária a relação transacional entre
filosofia e literatura como atividade emancipadora, cujo objetivo
perpassa o mero hibridismo semântico filosofia poética, lírica filosófica
ou filosofia literária.
Diante disso, conforme Nunes (2009) essas formas híbridas
marginalizavam a literatura a cumprir servilmente os requisitos
hermenêuticos da filosofia e seus sistemas conceituais, nos quais a
tarefa da filosofia consiste em promover a literatura como instrumento
para exemplificar as teorias apresentadas. Desse modo, é por meio da
metodologia filosófico-literária que os sujeitos da pesquisa –
estudantes e professor – podem repensar suas ações para criar ações
que nutram o processo de ensino-aprendizagem da filosofia, de
(auto)desbarbarização e (auto)emancipação. Assim, na
transacionalidade ninguém destrona ninguém, é um mover-se
constante entre Filosofia e Literatura, pois, não se reduzem uma à outra.
O conto Feliz Ano Novo retrata a brutalidade de um grupo de
homens que invade uma casa durante o Ano Novo e comete atos de
violência extrema. O conto denuncia a desumanização, a brutalidade e a
degeneração da sociedade, sugerindo que, sob certas circunstâncias, as
34 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

pessoas podem se tornar monstros. No geral, esse conto de Rubem


Fonseca revela a escuridão que existe sob a superfície da vida nas
cidades, explorando temas como violência, alienação, degradação moral
e desumanização. Ele oferece uma visão crua e perturbadora da
realidade brasileira, muitas vezes desafiando os leitores a confrontar
aspectos sombrios da experiência humana.
Os textos que serviram como base para a explanação dos conceitos
de Georges Bataille desempenharam um papel crucial no processo de
compreensão do conto de Fonseca. Ao longo das aulas, foi possível
traçar um percurso de entendimento conceitual em conjunto,
utilizando mapas conceituais como ferramenta. Essas reflexões
colaborativas durante os encontros levantaram questões intrigantes,
como: Por que as pessoas tendem a transferir a culpa de seus atos para
objetos, terceiros, doutrinas religiosas ou entidades malignas, ou
mesmo o destino? Até que ponto a moralidade pode ser utilizada como
um instrumento de manipulação social? Apesar de sermos seres
racionais, com a capacidade de superar muitas outras espécies em
termos de inteligência, por que cometemos tantos atos violentos? Essas
perguntas estimularam discussões profundas e promoveram uma
análise crítica do comportamento humano mediante a relação entre
filosofia e literatura.
Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 35

Figura 1: Mapa conceitual

Fonte: Produção cooperativa entre os partícipes da pesquisa

Durante nossas discussões, sentimos a necessidade de revisitar o


pensamento de diversos filósofos para melhor compreender os
conceitos de Bataille. Isto porque Bataille criticou a hegemonia do
racionalismo dentro dos sistemas filosóficos estabelecidos. Por isso,
conduzimos nossas conversas dialeticamente, ou seja, abordamos elas
de forma aberta e sem limitações semânticas predeterminadas. Os
estudantes se sentiram livres para expressar suas opiniões
independentemente do estilo que adotaram, seja com erros gráficos e
vocabular, seja com a utilização de gírias e/ou palavrões.
Essa abordagem dialética nos permitiu fomentar um sentimento
de empatia transgressiva entre os participantes da pesquisa. A empatia
além desse limite implica um relacionamento sem exigências rígidas ou
adesão a regras discursivas convencionais entre professor-estudante.
Para o êxito desse projeto foi preciso que o docente se despossuísse do
tradicionalismo que permeia sua profissão. Diante disso, o educador
não deve tolher falas e gestos, a sala de aula deve ser um espaço
36 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

acolhedor, democrático e fluido. Portanto, foi um processo gratuito e


único de descoberta de ideias que nos ajudou a compreender melhor os
conceitos desafiadores e inovadores de Bataille.
A relação entre o conto Feliz Ano Novo de Rubem Fonseca e os
conceitos de Bataille, como a transgressão, vontade de chance,
hipermoral e mal, é profundamente significativa na compreensão da
obra de Fonseca e na análise de como ele aborda a violência e a
brutalidade da sociedade. Assim, com a condução dos encontros foi
possível chegarmos a algumas conclusões sobre a relação entre o escrito
de Fonseca e a filosofia de Bataille, a saber:

1. Transgressão: O conto de Fonseca é um exemplo claro de transgressão das


normas sociais. Os personagens cometem atos violentos, como assaltos,
assassinatos e comportamento criminoso. A transgressão das normas sociais é
evidente nas ações dos protagonistas, que desafiam abertamente as regras e
convenções estabelecidas.
2. Vontade de Chance: A busca por experiências imprevisíveis e caóticas é um
traço marcante nos personagens do conto. Anseiam por riqueza, consumismo e
estão dispostos a tomar medidas extremas para atingir os seus objetivos. Isso
reflete a ideia de acaso, em que personagens se jogam em situações
imprevisíveis em busca de alegria e satisfação.
3. Hipermoralidade: A hipermoralidade, como sugerido por Bataille, envolve
abraçar toda a experiência humana, incluindo os seus aspectos mais sombrios.
A história de Fonseca apresenta a brutalidade e a violência como parte
integrante da experiência humana, desafiando as convenções morais
convencionais. A história não julga os personagens, mas os apresenta como
pessoas complexas que agem de acordo com motivos pessoais.
4. Mal: O conceito de “mal” e sua comunicação como necessidade na literatura é
claramente demonstrado na obra de Fonseca. A história confronta a moralidade
convencional questionando normas e princípios razoáveis. A violência e a
brutalidade retratadas na história têm como objetivos confrontar a moralidade
Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 37

estabelecida e questionar o que é considerado certo e errado sem fazer uso de


critérios religiosos.

A aplicação dessa atividade emancipadora mediante a elaboração


de narrativas autobiográficas para cinquenta estudantes do terceiro ano
do ensino médio pôde proporcionar diversos resultados positivos com
essa experiência filosófico-literária. Nesse sentido, para a realização
desse projeto foram necessários cinco encontros com duração de dois
tempos de cinquenta minutos. Esses encontros tiveram as seguintes
temáticas e objetivos:

1. Desenvolvimento da reflexão crítica: esse encontro tem como objetivo


apresentar as etapas do projeto, o contexto dos autores Rubem Fonseca e
Georges Bataille e seus principais conceitos. Houve ainda a distribuição
impressa do conto para que os estudantes pudessem ler e refletir.
2. Empatia transgressiva e compreensão do outro: nesse segundo momento houve
a partilha das impressões dos discentes acerca do conto e dos conceitos
bataillianos. Discussão de temas como violência contra mulher e escolar como
bullying, autoritarismo docente, vandalismo, depredação do patrimônio público
e transferência de culpabilidade pelos seus atos.
3. Autoconhecimento e identidade: nesse encontro foi explicado os estudantes
deveriam planejar suas narrativas autobiográficas, cuja intenção consiste em
promover o desabafo de suas experiências de violência, vivências, traumas e
angústias por meio da escrita o que permitiu o autoconhecimento e
amadurecimento pessoal.
4. Estímulo à expressão criativa – elaboração autobiográficas: a escrita das
narrativas autobiográficas incentiva os alunos a expressarem sua criatividade
e habilidades literárias. Foi proposta a utilização de pseudônimos para a
preservação da identidade dos partícipes.
5. Diálogo filosófico-literário: a obra de Rubem Fonseca é rica em
questionamentos filosóficos sobre a condição humana, a moralidade e o sentido
da vida. Frente a isso, esse instante do projeto foi crucial no processo de
38 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

compreensão da necessidade de falar sobre suas angústias e de entender que se


faz necessário comunicar o mal através do estilo ultrarrealista.

Esses são apenas alguns dos possíveis resultados que podem ser
alcançados com a aplicação dessa metodologia. É importante ressaltar
que cada aluno terá sua própria experiência e poderá extrair
aprendizados individuais, criando um ambiente enriquecedor para o
desenvolvimento intelectual, emocional e social.

5. RESULTADOS E DISCUSSÃO DA EXPERIÊNCIA FILOSÓFICO-LITERÁRIA

A relação entre o conto e os conceitos de Bataille mostra como a


obra de Fonseca investiga a natureza humana, explora a transgressão,
procura experiências caóticas, abraça o lado obscuro da sobrevivência e
do confronto com a moralidade convencional. Isto proporcionou aos
estudantes a oportunidade de refletir sobre as limitações da sociedade
e a complexidade da condição humana.

1. Desenvolvimento da reflexão crítica: A leitura e discussão das histórias de “Feliz


Ano Novo”, que abordam temas profundos e complexos da realidade brasileira,
podem estimular os alunos a refletir criticamente sobre questões sociais, como
a violência urbana, a desigualdade social e a corrupção. Essa reflexão crítica
contribui para a formação de cidadãos conscientes e engajados.
2. Empatia transgressiva e compreensão do outro: Ao se depararem com as
histórias de personagens marginalizados e em situações extremas, os alunos
têm a oportunidade de exercitar a empatia e desenvolver uma maior
compreensão das diferentes realidades que existem na sociedade. Isso promove
a tolerância, o respeito e a capacidade de se colocar no lugar do outro.
3. Autoconhecimento e identidade: A atividade de escrever narrativas
autobiográficas inspiradas nas histórias de "Feliz Ano Novo" permite que os
alunos explorem suas próprias experiências e identidades. Eles têm a chance de
Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 39

refletir sobre suas vivências, sonhos, desafios e perspectivas de futuro, o que


contribui para um maior autoconhecimento e amadurecimento emocional.
4. Estímulo à expressão criativa – elaboração das autobiografias: A escrita das
narrativas autobiográficas incentiva os alunos a expressarem sua criatividade
e habilidades literárias. Eles podem explorar diferentes estilos narrativos,
linguagem poética e recursos literários para dar vida às suas histórias pessoais.
Isso fortalece a capacidade de expressão escrita e a apreciação da arte literária.
5. Diálogo filosófico-literário: A obra de Rubem Fonseca é rica em
questionamentos filosóficos sobre a condição humana, a moralidade e o sentido
da vida. Ao discutir as narrativas do livro, os alunos são desafiados a refletir
sobre essas questões profundas, desenvolvendo habilidades de pensamento
crítico e filosófico. Isso contribui para uma formação intelectual mais ampla e
estimula a busca por respostas e significados pessoais.

Durante a pesquisa houve a necessidade de interrompermos


algumas atividades devido os estudantes terem dificuldade de
acompanharem a leitura. Isso demonstrou a deficiência que ainda
persiste no ensino público brasileiro, no tocante a capacidade de
desenvolver certa constância no ato de ler nos discentes. Outro entrave
foi a rejeição por parte de alguns estudantes das discussões acerca de
temas sensíveis como gravidez precoce, assédio sexual e suicídio.
Solicitamos auxílio da coordenadora pedagógica para mediar a conversa
e podermos discutir tais temáticas.
A relação entre o conto e os conceitos de Bataille evidencia uma
investigação sobre a natureza humana, explora a transgressão, procura
experiências caóticas, abraça o lado perverso da sobrevivência e do
confronto com a moralidade convencional. Assim, esse projeto
proporcionou aos estudantes a oportunidade de refletir sobre as
limitações da sociedade e a complexidade da condição humana. Aqui
40 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

estão alguns aspectos que surgiram nas discussões e nas autobiografias


amparado pela experiência filosófico-literária:
Ampliação do repertório literário: A leitura de “Feliz Ano Novo”
proporcionou aos alunos o contato com uma obra renomada da
literatura brasileira contemporânea. Essa experiência contribuiu para
expandir o repertório literário dos estudantes, introduzindo-os a um
autor consagrado e permitindo que explorem diferentes estilos
narrativos e temáticas profundas. Os educandos estavam acostumados
com o estilo Enem de escrever, por isso, o projeto permitiu o desapego
às métricas dos vestibulares, o que pode ser constatado com a fala da
estudante Luz: “Muito bom professor conhecer outros pensadores e
deixar de lado a escrita para vestibular. Como me sinto leve ao poder
expressar minhas opiniões e traumas. Por exemplo, Georges Bataille
curou ou aliviou sua dor com a escrita, isso é tão lindo. (risos)”.
Reflexão sobre a realidade social: As narrativas de Rubem Fonseca
à luz dos conceitos de Bataille abordam questões sociais sensíveis e
complexas, como a violência urbana, a desigualdade social e a
marginalização. Ao discutir esses temas, os alunos são instigados a
refletir sobre a realidade ao seu redor, compreender as dinâmicas
sociais e desenvolver uma postura crítica diante dos problemas
enfrentados pela sociedade. Em “Experiência para desabafar” a autora
Psiquê Falante relatou vários acontecimentos trágicos com seu o pai
alcoólatra ao final disse: “foi bom poder falar sobre tudo que passei,
porque as vezes escrever e desabafar, mesmo que doa lembrar, é
essencial falar. Dizem que cutucar velhas feridas nunca vai curá-las, é
verdade, não há cura. Por isso, é preciso cutucar, para saber o quanto
você ainda precisa ser feliz, devido tudo que viveu” (FALANTE, 2018). A
Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 41

experiência interior de Psiquê teve como força motriz o sofrimento,


percebeu que viver constitui uma ação caótica e concreta.
Identificação com as histórias e personagens: A obra “Feliz Ano
Novo” apresenta personagens marginalizados e situações extremas, que
podem despertar identificação e empatia nos alunos. Essa conexão
emocional permite que eles se coloquem no lugar dos personagens,
compreendam suas motivações e desafios, e ampliem sua visão de
mundo ao considerar diferentes perspectivas e experiências de vida.
Observou-se essa identificação empática com os personagens, os contos
de Fonseca e no processo de comunicação do mal na escrita da discente:
“― Nossa como uma pessoa com fome pode fazer absurdos. Realidade
de muitas famílias brasileiras”, disparou Ana Luiza, a jovem continuou:
“― Desculpa por ter julgado o livro. Isso que você fala que devemos ir
além do óbvio faz uma diferença danada. Tomei a liberdade de ler o livro
por inteiro e o que fiquei chateada é que sempre são homens que matam,
estupram, nenhuma mulher é protagonista da violência, veja só nem
mesmo na violência a mulher é apenas mais uma” (AVALANCHE, 2018).
Estímulo à expressão pessoal e criativa: A atividade de escrever
narrativas autobiográficas inspiradas nas histórias do livro incentiva os
alunos a explorarem sua própria criatividade e expressão pessoal. Eles
foram desafiados a refletir sobre suas vivências, desejos, valores e
sonhos, e a encontrar uma forma de expressá-los por meio da escrita.
Isso promove o desenvolvimento da habilidade de comunicar ideias e
emoções de forma clara e artística. Os estudantes realizaram
autobiografias manuscritas:
42 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

Imagem 2: Cinquenta tom de Azul - Por Uriel Zuri

Fonte: Arquivo do próprio autor

Diálogo filosófico e ético: A obra de Rubem Fonseca levanta


questões filosóficas e éticas relevantes, convidando os alunos a
refletirem sobre o sentido da vida, a moralidade, a barbárie e a condição
humana. A discussão dessas temáticas em sala de aula promoveu um
diálogo filosófico-literário enriquecedor, onde os estudantes foram
estimulados a expressar suas opiniões, confrontar diferentes
perspectivas e buscar respostas pessoais para questionamentos
existenciais. Tais respostas e reflexões sobre problemas existenciais
como angústia, depressão e suicídio pode ser observado nesse poema
produzido pela estudante Sam Markz (2018), tendo como título: Aquela
luz inesperada:

Todos temos depressão e a maldita aparece sem pedir permissão, começa


como uma coisinha simples que nem parece que existe e depois vai
Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 43

crescendo e tomando conta do seu coração, é um sentimento, um


pensamento, um acontecimento que afeta e te mata por dentro.
A tristeza te domina e quando você menos imagina ela vira tua pior inimiga.
Daí você pensa que o seu mundo acabou e teu coração cortado ficou e o
sorriso?
Ah meu amigo é forçado e sem brilho. O olho inchado de chorar, as pernas
rasgadas, os braços cortados é um retrato do pior estado que alguém pode
ficar.
Sem contar da solidão todos ao seu redor e você fingindo estar bem ali, só
pra não deixar a ficha cair, mas uma coisa eu posso dizer com fé em Deus,
na arte da escrita e no poder da fala tu podes vencer. Tenha fé e acredite
porque uma saída pra isso é difícil.
Mas, existe e quando isso acabar em teu coração a alegria vai reinar a luz de
verdade irá aparecer e assim tu poderás dizer:
Quem chegou agora foi a felicidade, desculpa tristeza você chegou muito
tarde.

É importante ressaltar que os resultados podem variar de acordo


com a dinâmica da turma, o nível de envolvimento dos educandos e a
forma como a atividade é conduzida. O papel do professor é
fundamental para estimular a participação ativa dos estudantes, criar
um ambiente seguro para o compartilhamento de ideias e promover
uma discussão acolhedora e respeitosa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa buscou estabelecer um diálogo entre o conto de Rubem


Fonseca “Feliz Ano Novo” e o pensamento de Georges Bataille, realizado
em um ambiente escolar do ensino médio, revelou-se como uma
experiência rica e profunda. Ao explorar a literatura ultrarrealista de
Fonseca e os conceitos de hipermoral, transgressão, vontade de chance
e o “mal” bataillianos, a pesquisa permitiu a construção de narrativas
44 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

autobiográficas e promoveu reflexões filosóficas e literárias de grande


relevância.
No entanto, durante a pesquisa, foram encontrados desafios, como
a dificuldade de alguns alunos em acompanhar a leitura e a rejeição de
temas sensíveis. Esses obstáculos destacam a necessidade contínua de
melhorias no sistema educacional e na abordagem pedagógica para
promover a leitura e discussões de temas sensíveis.
A pesquisa demonstrou que a integração de literatura e filosofia no
ensino médio, aliada à escrita de narrativas autobiográficas, pode
proporcionar uma experiência de aprendizado enriquecedora. Ela não
apenas amplia o conhecimento dos estudantes sobre literatura e
filosofia, mas também os estimula a refletir criticamente sobre questões
sociais e a desenvolver suas habilidades criativas e de expressão. Além
disso, promove empatia, respeito e uma compreensão mais profunda da
complexidade da condição humana. Em um cenário educacional em
constante evolução, essa abordagem demonstra ser valiosa e
promissora para o desenvolvimento integral dos estudantes.

REFERÊNCIAS

BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica


Editora, 2017a.

BATAILLE, Georges. A experiência interior: seguida de Método de Meditação e


Postscriptum 1953. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.
Suma ateológica v. I.

BATAILLE, Georges. Sobre Nietzsche: vontade de chance: seguido de Memorandum.


Tradução Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017b. Suma
ateológica v. III

FONSECA, Rubem. Feliz Ano Novo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 45

NUNES, Benedito. Poesia e filosofia, uma transa. In: Filosofia e literatura: uma relação
transacional. Luiz Rohden; Cecília Pires (org.). Ijuí: Unijuí, 2009.

PASCHOAL, Antônio Edmilson. Nietzsche e Bataille: em torno da questão do “Mal”. In:


Tempo da Ciência (UNIOESTE). v. 15, n. 30, p. 45-58, 2008.
A CONCEPÇÃO DO VIVER E DO MORRER
2
NAS OBRAS DE LÚCIO ANNEU SÊNECA
Adão Lopes da Silva 1
Francisco Atualpa Ribeiro Filho 2

INTRODUÇÃO

“Zele por este momento. Mergulhe em suas particularidades. Seja sensível a


que você é, ao seu desafio, à sua realidade. Livre-se dos subterfúgios. Pare de
criar problemas desnecessários para si mesmo. Este é o tempo de realmente
viver; de se entregar por completo à situação em que você está agora”.
(Epicteto)

A presente monografia justifica-se pelo propósito de buscar


conhecer e analisar os aspectos intrínsecos da forma de viver e morrer,
bem como suas implicações no contexto individual e coletivo na
filosofia de vida dos estóicos e, principalmente, nas obras e vida do
grande filósofo Sêneca, numa perspectiva de desafio ao entendimento
destas questões, e procurar dar mais sentido e compreensão ao modo
contemporâneo como vivemos. Este trabalho objetiva, também, obter
entendimento sobre o estoicismo e a visão senequiana acerca de viver
uma vida feliz e harmoniosa frente às atribulações que surgem no
decorrer da mesma.

1
Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí – UFPI.
2
Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí; Licenciado em Filosofia pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie; Bacharel em Administração Pública pela Universidade Estadual do Piauí.
Especialização em: Docência do Ensino Superior (UNOPAR); Gestão Pública Municipal (UESPI); Gestão
Educacional em Rede EaD (UFPI); Licenciando em Letras Português pela Estácio. Atualmente é
orientador do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) da FCP e professor efetivo
da SEDUC-CE. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1491096614911103. E-mail: farf25@gmail.com.
48 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

Existe uma quantidade inumerável de questionamentos e


respostas para o real sentido da vida, para a filosofia antiga o real
sentido da vida consiste na aquisição da felicidade. Para Sêneca o
verdadeiro sentido da vida está no aprimoramento moral da alma, na
qual somos esbanjadores do tempo que a natureza nos proporciona.
O presente artigo foi possível sua realização através de leitura e
pesquisa de fragmentos de várias obras de Sêneca e trabalhos
científicos. Dentre estes foram utilizadas as obras de autoria do próprio
Sêneca: Sobre a brevidade da vida, Consolação à minha mãe Helvia, e O
conceito de razão e natureza para Sêneca, de autoria de Aryane Raysa.

1. A NATUREZA PARA SÊNECA

As coisas celestes são todos os elementos da natureza que estão


contidos no universo. Na natureza existem forças vitais que permitem
que os elementos tenham vida, distinta de um corpo considerado
simplesmente matéria química. Desde o início do ciclo da vida desse
planeta houve a divisão natural dos elementos existentes na natureza.
Na divisão dos seres obteve-se os animais racionais e irracionais. Ambos
vivem de acordo com os mandamentos da natureza, possuem um corpo
e estão sujeitos à morte, distinguindo-se uns dos outros pela
racionalidade.
Enquanto o homem possui faculdades físicas que desenvolvem sua
intelectualidade e através da lógica é livre para fazer suas escolhas, o
animal é uma fera, agindo por instinto. A vida do homem vai muito além
das necessidades biológicas. Conforme Sêneca (2008, p. 9), não
nascemos estritamente para alimentar o corpo e suas paixões, mas para
alimentar “a alma que é sagrada e eterna”.
Adão Lopes da Silva; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 49

No capítulo VI – 1 de Consolação à minha mãe Hélvia, Sêneca (2008,


p. 4) ao esclarecer sobre o exílio, nos contempla com uma verdade
conforme seus preceitos: “o homem não plasmado de pesada matéria
terrena, mas deriva do sopro divino: e as coisas celestes estão sempre
em movimento” e assim como os astros, o homem está em constante
movimento e em constante transformação.
Ao observarmos as estrelas que iluminam o mundo, perceberemos
que nenhuma delas fica parada. Devemos ser atentos e, por isso,

[...] O sol anda continuamente e vai de lugar em lugar e, embora rodando


com todo o universo, move-se em sentido contrário ao céu e passa por todos
os pontos das constelações e nunca para: seu movimento e seu andar de um
lugar a outro são eternos todas as coisas rodam e passam: vão de um a outro
ponto, como ordena a inexorável lei do mundo; quando terão terminado,
durante um determinado período de tempo, sua volta, farão novamente o
caminho percorrido. Continuas, agora, a pensar que a alma humana,
formada pelas mesmas partículas das quais são constituídos os astros, sofre
em viajar e em migrar, quando o próprio deus simpatiza ou talvez vive
justamente pelo seu eterno velocíssimo movimento? (SÊNECA, 2008, p. 04).

Conforme a visão senequiana a natureza oferece tudo que o homem


necessita, sem que para isso precisamos nos afastar dela, basta apenas
que mantenhamos um elo de harmonia com tudo que ela gerou e, dessa
forma, poderemos ter uma vida farta e feliz. Nesse sentido, o autor não
especifica quem deu forma ao universo, mas tem certeza de que a
natureza é algo imutável ao homem e, este, pode alterar-se com a
natureza, todavia a natureza jamais mudará por causa do homem.
No conceito senequiano, os homens quando escravos de si próprios
admiram os tesouros da natureza terrena, esquecendo-se dos
verdadeiros tesouros, que são aqueles que a alma leva consigo para a
50 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

eternidade. Para o autor, estas inumeráveis quantidades de coisas e


objetos que totalmente tendemos a admirar como são tudo supérfluos e
servem apenas para aprisionar e ofuscar nossa visão acerca do que
realmente seja importante

[...] mármores, ouros, pratas, grandes mesas redondas e polidas — são pesos
terrenos que não podem atrair uma alma pura e que lembra sua natureza,
imune de tal vício e pronta para voar ao céu assim que liberta do corpo, e,
no entanto, observa as coisas divinas com pensamento incansável (SÊNECA,
2008, p. 09).

Sêneca expressa também em sua forma de pensar que se o homem


souber olhar, observar e contemplar de qualquer ponto em que estiver
a grandeza, a harmonia dos elementos, a prosperidade da natureza, a
perfeição e o movimento dos astros, não se importaria com os corpos
que um dia a natureza degenerada. Ele elevaria a alma cheia de gratidão
e nada mais lhes bastaria. Em sua percepção,

De qualquer parte o olhar levanta-se igualmente para o céu, a mesma


distância separa em qualquer parte as coisas divinas das humanas. Por isso,
enquanto meus olhares não se afastarem do espetáculo que nunca os farta;
enquanto me for permitido olhar o sol e a lua, fixar os outros planetas, deles
observar o nascimento e o ocaso e as distâncias, e indagar as causas que
tornam seu curso mais veloz e mais lento, contemplar durante a noite
tantas estrelas brilhantes, uma imóvel, outra que se move em curto espaço
mas sempre sobre seu caminho, e algumas que aparecem de repente,
algumas que espiram centelhas, como se caíssem, tanto que ofuscam a vista,
ou cintilantes percorrem voando um grande espaço; enquanto estiver com
todas essas coisas e me confundir, tanto quanto é permitido ao homem, com
as coisas celestes; enquanto tiver sempre alta a alma, inclinada por sua
natureza à contemplação dos astros a ela semelhantes — que importa que
solo eu pise? (SÊNECA, 2008, p. 06).
Adão Lopes da Silva; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 51

Diante disso, o filósofo romano Sêneca fomenta a universalidade


da experiência humana diante da grandiosidade do cosmos. Ele destaca
a ideia de que, não importa de onde alguém esteja, todos compartilham
a mesma visão do céu, a mesma distância entre o divino e o humano. Há
uma sensação de igualdade e conexão que surge da contemplação do
espetáculo celestial.
Sêneca expressa uma profunda admiração pelo cosmos e descreve
como a observação dos corpos celestes desperta nele um senso de
maravilha e um anseio pela compreensão das leis que regem o
movimento dos astros. Ao mencionar o sol, a lua e outros planetas, ele
destaca a regularidade e a previsibilidade desses fenômenos celestes.
A atitude de Sêneca em relação à contemplação do céu revela uma
busca por transcendência e uma conexão com algo maior do que a vida
cotidiana. Ele parece encontrar significado e propósito ao mergulhar na
observação dos fenômenos celestes, sugerindo que essa experiência
transcende as preocupações terrenas e proporciona uma sensação de
elevação espiritual.
Além disso, Sêneca sugere que a admiração pelos elementos
celestes pode servir como uma fonte de inspiração e um meio de elevar
a alma humana. A contemplação do cosmos pode oferecer uma
perspectiva que transcende as fronteiras geográficas e culturais, unindo
as pessoas em uma apreciação compartilhada da beleza e complexidade
do universo.
A natureza com suas riquezas pode elevar ou cegar o homem com
seus infindáveis recursos. O homem frágil ilude-se com o falso poder
sobre as forças da natureza, que em dados momentos alteram-se, mas
sempre seguirá seu percurso nas leis que regem o universo. Por isso
Sêneca propagava as ideias de contemplação e aceitação do que não
52 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

podemos mudar na natureza e concentrarmo-nos naquilo que podemos


mudar.
Dentre estas coisas que podemos mudar ele cita enfaticamente o
abandono do materialismo, que é uma parte pesada que aprisiona a alma
e a busca pelo verdadeiro conhecimento no objetivo da leveza e
tranquilidade da alma, sendo esta, a parte nobre da natureza que está
destinada “a um momento na eternidade” (SÊNECA, 2008, p. 09).
Segundo Aryane Raysa (2016, p. 41), em sua tese sobre O conceito
de razão e natureza para Sêneca assume vários significados: “de certo
modo podemos relacionar a razão com a própria natureza, que é Deus,
daí a necessidade de harmonizar os homens com o divino”. Ela
acrescenta ainda que, “para um exótico como Sêneca, viver de acordo
com a natureza significa dizer que para se tornarem virtuosos, os
homens têm que viver conforme sua própria natureza e a do universo
que é racional, produzindo ações pautadas na racionalidade”. Sêneca
tem uma forma sui gêneris de nos incutir um modus vivendi que nos leve
a desfrutar de uma vida rica e tranquila.
Os homens sempre se queixaram e queixam dos males que eles
julgam que a natureza traz até eles. Segundo Sêneca isto ocorre,”
justamente por não compreenderem que existem fatores, leis que
regem a natureza e isto não se altera pelos desejos dos homens.
(SÊNECA, 1993, p. 01). Ele enfatiza a que natureza transforma e irá
transformar sempre tudo o que não lhe é mais necessário ou tenha
cumprido com seu tempo de utilidade neste mundo. À medida que o
tempo passa e as coisas se transformam, o tempo supostamente levará
tudo para aqueles que não compreendem o real significado da natureza.
Observa-se que Sêneca faz referência aos seres mortais que
passaram e passam pela experiência da vida e estes têm a necessidade
Adão Lopes da Silva; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 53

de culpar algo ou alguém por seus males considerando-os verdadeiros


infortúnios. Segundo Sêneca (2017, p. 09):

os vícios não permitem que o homem se instrua sobre as benevolências da


natureza, tornando as queixas frequentes, queixam–se tanto os homens
leigos como os doutores de não haver mais tempo para prolongar seus
prazeres e suas paixões. A natureza é generosa para aqueles que sabem fazer
o bom uso do que ela dispõe, mas quando o infortúnio ou a fatalidade
contraria os nossos valores de posse, o homem sente-se vítima quando não
há mais tempo para viver, acaba julgando que a natureza é malevolente
culpando-a pelos seus desígnios.

Desse modo, a natureza oferece ao homem a oportunidade de


mudar o que está ao seu alcance, mas como a maioria deles opta por
enlouquecer pelo brilho das paixões, acabam vitimando-se e nada fazem
para que o corpo aprenda através das asperezas as virtudes, os
verdadeiros valores da generosidade da natureza.
Sêneca nos faz compreender ainda que esta ideia e sentimento que
temos sobre o controle e posse do tempo é vã e tende a nos cegar ou
tornar nossa visão obtusa, alimentando ainda sentimentos de avareza e
impulsionar uma busca de mais tempo, mais poderio sobre os outros ou
sobre as coisas que nos cercam. Devemos nos atentar que não somos
donos do tempo, nem da natureza e tudo que ela dispõe, mas somos
responsáveis por não os empregar na realização de feitos importantes.

2. A BREVIDADE DA VIDA EM SÊNECA

Poeta humanista, Sêneca além de ser admirador dos preceitos


estóicos dedicava-se às diversas correntes filosóficas. Para ele a
filosofia era a própria vida baseada na ética e na lógica. Escreveu cartas,
diálogos, que posteriormente tornaram-se livros de suma importância
54 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

para a filosofia e para aqueles que se preocupam com a imortalidade da


alma, Sêneca diferente de alguns filósofos ia muito além de ideias,
exprimia sentimento em suas obras. Com suas argumentações
filosóficas nos traz um verdadeiro arsenal sobre os comportamentos
que o homem em seu ego perturba a alma deixando de viver e passando
apenas a existir.
O homem com suas faculdades intelectuais abrevia a vida através
de suas escolhas, principalmente as escolhas oriundas do corpo. O corpo
em suas estruturas aprisiona e exerce domínio sobre a alma, submete-
a aos seus desejos e paixões, levando-a às trevas. A alma luta pela paz
eterna na ânsia de retomar o lugar de onde desceu, mas enfraquecida
afastada do seu valor real. Para Sêneca (2017, p. 03):

Estas coisas que vês nos cercarem: os ossos, os nervos, a pele que nos cobre,
a face, as mãos que nos servem e as outras coisas petas quais somos
envolvidos, são liames e trevas da alma. Por eles a alma é oprimida,
sufocada, manchada, afastada da verdade e do seu próprio mundo, presa no
ermo. Toda a sua luta é com esta carne que pesa para que não seja arrastada
e enfraquecida; esforçasse para retomar ao lugar de onde desceu: ali, a ela,
que do caos e da treva sai para ver as puras claridades, espera-a a paz da
eternidade.

O homem dando valor demasiado ao corpo afastando-se da


natureza e aproximando- se do mundo externo usando seu livre-
arbítrio para alimentar os vícios e aprisionando-se no próprio corpo. Os
vícios cegam o homem de tal forma, que ele não consegue discernir o
que é real do que é irreal ao ponto que não lhe é permitido saber se vive.
Sêneca (2017, p. 08) enfatiza que,

Os vícios atacam-nos, e rodeiam-nos de todos os lados e não permitem que


nos reergamos, nem que os olhos se voltem para discernir a verdade,
Adão Lopes da Silva; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 55

mantendo-os submersos, pregados às paixões. Nunca é permitido às suas


vítimas voltar a si: se por acaso acontecer de encontrarem alguma trégua.

O homem queixa-se na natureza por não haver mais tempo para


viver. “O fato é o seguinte: não recebemos uma vida breve, mas a
fazemos, nem somos dela carentes, mas esbanjadores” (SÊNECA, 1993,
p. 01). Nesse sentido, o tempo passa independente do que façamos, no
caso existimos, a vida poucos vivem, pois empregam qualidade no
tempo de existência porque “pequena é a parte da vida que vivemos,
pois, todo o restante não é vida, mas tempo” (SÊNECA, 1993, p. 01).
Cada homem com suas peculiaridades torna-se único em seus
conceitos e comportamentos numa lei universal da natureza, na qual
cada ação torna-se reação. Não é possível enumerar as infindáveis ações
ou as profundezas de cada estado de espírito de cada ser mortal. Dessa
forma, Sêneca faz lembrar de quantos homens cegos pelos bens
brilhantes combatem a sociedade e os próprios familiares. Homens que
ostentam despertando a inveja e a intolerância, outros que se entregam
ao ódio e às guerras injustas, outros que se entregam à gula, ao
adultério, aos vícios, aos entorpecentes, à cólera, à vaidade, à
negligência, à luxúria e um número infindável de mazelas da alma estão,
nas quais Sêneca faz menção que dentre “os piores estão os homens que
são disponíveis para nada” (SÊNECA, 1993, p. 04).
Sêneca emprega a palavra ócio em duplo sentido. No sentido literal
da palavra, na qual o ócio é sinônimo de preguiça, os homens indolentes
não estão disponíveis para nada, passam pela existência sem esforços
pessoais para ajudar a si e nem aos outros nas labutas diárias, ou seja,
na desocupação do tempo. Sobre outra perspectiva, o filósofo a traz o
ócio empregado em estar ocupado em aprender tudo que existe no
56 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

mundo. Aprender futilidades não significa que o homem aproveita o


tempo de existência vivendo.
O pensador defende que “[...] o ócio de alguns é ocupado: quer em
sua vila ou em seu leito, quer em meio à solidão, mesmo quando estão
afastados de todos, eles próprios prejudicam a si mesmos; não devemos
chamar sua vida de ociosa, mas de ocupação indolente” (SÊNECA, 1993,
p. 07). Aqui o autor faz uma crítica mordaz aqueles que tentam justificar
o injustificável

[...] Portanto esse aí não é ocioso; dá-lhe outro nome: ele está doente, ou,
melhor ainda, está morto. É ocioso o que é também consciente de seu lazer.
Mas este semi- vivo, que precisa de alguém que lhe indique a postura do
próprio corpo, como poderia ser senhor de um momento sequer de sua
vida? (SÊNECA, 1993, p. 07).

Podemos ver isto em nossa atual sociedade onde um uma numerosa


turba vive a esmo ou à procura de lazeres supérfluos. Segundo o filósofo,
as frivolidades e paixões de apreender inutilidades apossou-se do homem
de maneira tal que acabam por conduzi-lo ao gozo das dores, tormentas
e aborrecimentos. Na visão de Sêneca (1993, p. 12),

Seria alongar demais percorrer todos os exemplos daqueles que


desperdiçaram suas vidas em jogos de xadrez, bola, ou queimando-se ao sol.
Não gozam de ócio aqueles cujos prazeres trazem muitas ocupações. Pois
ninguém duvidará que muito se fatigam sem nada obrar, os que se prendem
a inúteis questões de literatura - e eles já são multidão entre os romanos!
Foi um vício dos gregos investigar quantos remadores teve Ulisses, se a
Ilíada ou a Odisséia foi escrita primeiro. Mas esses assuntos, ainda que não
conduzam à verdadeira glória, versam sobre exemplos de feitos cívicos; tal
ciência não acarreta benefício algum, embora nos prenda a atenção pela
futilidade dos feitos. Perdoemos também aos que pesquisam assuntos como,
este: quem foi o primeiro a persuadir os romanos a embarcar num navio.
Adão Lopes da Silva; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 57

Com isso, a mera ilusão que ao passar dos anos ou aprofundamento


de assuntos cívicos, a vida lhe trará experiência e conhecimento. Muitos
homens vivem na ânsia pelo futuro na busca da tão sonhada paz, depois
de anos de afinco dedicando-se às paixões, aos vícios, ao acúmulo de
ouro e prata para que na velhice possa descansar de uma vida longa e
desfrutar da tranquilidade e da paz de espírito. Sêneca (1993, p. 02)
pontua que:

Ouvirás muitos dizerem: Aos cinquenta anos me refugiarei no ócio, aos


sessenta estarei livre de meus encargos. Por isso desejava o ócio; todos os
seus labores residiam nessa esperança e pensamento, tal era o desejo
daquele que podia satisfazer todos os desejos

Para o autor era agradável fazer indagações e interrogações a


qualquer um que já tivesse vivido um longo tempo de vida e estivesse já
em idade avançada e arguir sobre os mais diversos assuntos e dentre
estes sobre o tempo ou medida de sua existência

[...] Vemos que chegaste ao fim da vida, contas já cem ou mais anos. Vamos!
Faz o cômputo de tua existência. Calcula quanto deste tempo credor,
amante, superior ou cliente, te subtraiu e quanto ainda as querelas
conjugais, as reprimendas aos escravos, as atarefadas perambulações pela
cidade; acrescenta as doenças que nós próprios nos causamos e também
todo o tempo perdido: verás que tens menos anos de vida do que contas.
Quantos não terão esbanjado tua vida, sem que percebesses o que estavas
perdendo; o quanto de tua vida não subtraíram sofrimentos desnecessários,
tolos contentamentos, ávidas paixões, inúteis conversações, e quão pouco
não te restou do que era teu! (SÊNECA, 1993, p. 02).

Sêneca chama a atenção dos homens de idades avançadas que


miram viver apenas quando já estão no limiar da finitude da vida. Ele
faz uma indagação: “não te envergonhas de reservar para ti apenas as
58 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

sobras da vida e destinar à meditação somente idade que já não serve


mais para nada?” (SÊNECA, 1993, p. 02).
Sêneca nos conduz a compreender e enxergar que a cobiça invade
o homem nos desejos incontidos de poder sobre tudo e todos e estes
nunca estão satisfeitos. A insatisfação humana faz com que o homem
busque incansavelmente por desejos, criando necessidade para si. O
filósofo elucida que “Todos os desejos, que nascem não do desejo, mas
do vício, têm a mesma natureza: por muito que se acumule na frente de
tais homens, a cobiça desses não terá fim, mas dará mais um passo”
(SÊNECA, 2017, p. 09).
À medida que vão satisfazendo um prazer passam a um outro
prazer e a outro e não podem e não conseguem permanecer fixos num
só desejo ou prazer e ficam queixando-se e almejando mais e mais. Para
Sêneca a queixa está enraizada no homem. O homem queixa-se do
tempo que hora passa rápido, hora passa devagar, queixam-se das
doenças, dos infortúnios, da boa sorte, queixam dos alimentos que não
agradam seu paladar, queixam-se do trabalho, dos patrões, dos
familiares, da morte, queixam-se até por estarem vivos.
A vida envolve movimentos de escolhas e a cada passo dado o
homem tende-se ao bem ou ao mal, cabendo a ele exclusivamente este
poder, pois para isso tem seu livre-arbítrio. O homem é um ser confuso,
hora quer, hora não quer, fatiga com tudo que deseja, busca
incansavelmente pelo saciar incansável dos vícios e dos prazeres
carnais e assim seguem empobrecendo sua alma. Sêneca afirma “que o
prazer é inimigo do homem sábio” (SÊNECA, 2017, p. 07). Portanto, o
estudo da Filosofia é essencial para uma vida digna, pois esta aprimora
a alma e ela o ser do homem tornando-o sábio, guiando-o à verdadeira
felicidade.
Adão Lopes da Silva; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 59

3. O VIVER E O MORRER EM SÊNECA

Para Sêneca, somos frutos da natureza com as quais mantemos um


elo divino que nos direciona às esferas inferiores ou superiores de
acordo com cada consciência. A esfera material obstrui parte da nossa
consciência espiritual, o corpo é o fator atuante nesta esfera
tridimensional que nos rege e nos direciona.
Segundo Sêneca (2017, p. 09) o desterrado sentirá a falta de roupas
e de casa

[...] mesmo se ele desejar essas coisas somente porque são necessárias, não
lhe faltará nem teto nem trapo para vestir. Como com pouco se nutre, assim
com pouco se veste o corpo humano: a natureza quis que as necessidades,
que ela deu ao homem, não fossem difíceis de satisfazer.

O homem insaciável cria desejos, acarretando necessidades difíceis


de satisfazer. “Quem, portanto, permanece contente entre os limites
marcados pela natureza, não conhece a pobreza: quem sair desses
limites é pobre mesmo entre as maiores riquezas” (SÊNECA, 2017, p. 09).
O ser humano, ávido por natureza, constantemente gera desejos que
resultam em necessidades difíceis de serem plenamente satisfeitas.
Aqueles que ultrapassam esses limites, mesmo em meio a grandes
riquezas, ainda se encontram em estado de carência.
Sêneca distingue a questão das riquezas que também advém da
natureza, mas que tem sempre como objetivo acumular, desperdiçar,
torturar, o que aprisiona e dilacera o corpo levando o homem à mais
solene das loucuras, correndo aqui e acolá afanosamente, e nesse
ínterim ele pergunta: “para que acumular riquezas sobre riquezas? Não
refletem quão pequenos são vossos corpos?” (SÊNECA, 2017, p. 08).
60 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

Mesmo com aumento dos patrimônios o homem não mudará as


estruturas do seu corpo.
A humanidade divide-se em duas: uma constituída por homens
preocupados em servir ao corpo e outra minoria que se preocupa com a
imperturbabilidade da alma sendo ela sagrada e imutável, na busca pela
liberdade e perfectibilidade. Por isso que “este corpo frágil, prisão e
liame da alma, é lançado aqui a acolá sobre ele os suplícios, os roubos e
as doenças têm poder: a alma, em verdade, é sagrada, eterna e imutável”
(SÊNECA, 2017, p. 07). Por outro há o uso da riqueza na qual promover
ao homem uma vida digna, desde que usada sem arrogância ou soberba,
no bom senso, ou seja, de forma estoica traz lhes benefícios eternos.
Em nossa existência perdemos bens materiais, o corpo, o tempo e
perdemos uma vida, mas se o homem cultiva as virtudes e usufruir da
natureza com responsabilidade levará com tua alma as coisas mais
belas. “De fato, quão pouco é o que perdemos! Mas nos seguem em toda
a parte as duas coisas mais belas: a natureza comum a todos e a virtude
individual” (SÊNECA, 2017, p. 05). Ele ressalta a ideia de que, embora
possamos perder coisas materiais ao longo da vida, a verdadeira riqueza
está enraizada em aspectos mais profundos e duradouros da existência
humana: nossa conexão compartilhada como seres humanos e as
virtudes que cultivamos como indivíduos.
Para Sêneca, a vida ou tempo de existência é com certeza efêmero,
passageiro, um piscar de olhos e já não estamos mais presentes neste
mundo. Cabe aos homens administrar esta vida com maestria “[...] pois
esta viagem permite a pobreza ou a riqueza da alma “À alma nada
importa o dinheiro” (SÊNECA, 2017, p. 09). Continua o autor na sua
explanação que os homens se tornam ricos em virtude da alma. Sendo
Adão Lopes da Silva; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 61

assim, quanto mais alimentar a alma de virtudes, mais ricos serão os


homens.
Sêneca questiona qual tipo de saúde o homem deve priorizar: a
saúde que alimenta os músculos ou o alimento dos esforços adquiridos
com o estudo da filosofia? Sem esta, a mente torna-se enferma e o corpo
também. Não deve o homem viver sua existência acumulando bens
terrenos desgastando sua saúde física, esquecendo-se da saúde mental.
Para tanto, Sêneca nos instiga a nos dedicarmos aos estudos da
Filosofia, pois sem está a mente é enferma e acaba por enfermizar o
corpo também. E este também, embora possa ser muito poderoso, é
forte apenas como o de um louco é forte.
O homem vive como se fosse imortal, despreocupado com a alma, na
ilusão que vive o melhor possível ou que a natureza está em suas mãos.
Além disso, “e quem garantirá que tudo irá conforme planejas?” (SÊNECA,
1993, p. 02), pergunta o autor. O homem ainda adormecido vive
desperdiçando o tempo, desperdiçando a oportunidade de fazer o melhor.
“Faz um esforço de memória: quando tiveste uma resolução seguida?
Quão poucas vezes um dia qualquer decorreu como planejaras! Quando
empregaste teu tempo contigo mesmo?” (SÊNECA, 1993, p. 02). Sêneca
interroga ao homem qual tempo realmente tiraste para si, empregando
lhe faculdades morais e se tudo está de acordo com seus desejos? “Quem
ousará queixar-se da soberba de um outro, quando ele mesmo não tem
um momento livre para si próprio?” (SÊNECA, 1993, p. 02).
Ele traz a reflexão que a vida está contida no tempo, pois na medida
em que empregamos a filosofia no tempo, mais vivemos e
possibilitamos que a alma volte a sua origem ao encontro com o
universo na eternidade “[...] de fato, tudo vai bem, pois que a alma, livre
de qualquer estorvo, pode atender às ocupações próprias dela, e agora
62 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

compraz-se em estudos menos severos, agora, ávida de verdade, eleva-


se a considerar sua natureza e a do universo” (SÊNECA, 2017, p. 15).
Nesse sentido, vale ressalta que quando a alma está livre de
impedimentos e preocupações, ela pode se dedicar plenamente às suas
ocupações e estudos. Esse estado de liberdade proporciona à alma a
capacidade de se envolver em atividades intelectuais menos rigorosas,
mas também a possibilita elevar-se para uma contemplação mais
profunda sobre a natureza, tanto da própria alma quanto do universo.
Sêneca nos incuti de forma serena e firme através de suas
observações e belos textos que as temperanças da vida se tornam
suportáveis quando o homem faz estudos literários menos severos, e
aprofunda-se nos estudos da sabedoria. Pode-se concluir pela leitura de
suas obras que nenhum homem pode viver uma vida feliz, ou mesmo
uma vida suportável, sem o estudo da sabedoria.
Por isso, se faz necessário mudar o nível de padrão mental num
esforço diário de nossas ações, sair do ego e aceitar as coisas que não
nos é permitido mudar. O autor nos incita “procurar refúgio onde todos
os que procuram conforto para suas mágoas deviam refugiar-se: nos
estudos liberais. Eles saberão sarar tua ferida, arrancando de ti toda
queixa” (SÊNECA, 2017, p. 13). Fica evidente o apelo do autor para que as
pessoas busquem refúgio nos “estudos liberais” como uma fonte de
consolo para suas aflições e desgostos. Esses estudos referem-se
geralmente a uma educação que busca desenvolver a capacidade
intelectual e moral de um indivíduo, incluindo disciplinas como
filosofia, literatura, história e ciências. Assim, faz necessário pontuar as
particularidades desse apelo:
Busca pelo Conhecimento como Remédio: Sêneca parece sugerir
que a busca pelo conhecimento em áreas consideradas “liberais” pode
Adão Lopes da Silva; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 63

oferecer alívio para as angústias e desafios emocionais da vida. Isso


reflete a crença de que o entendimento mais profundo da natureza
humana, do mundo e das questões éticas pode proporcionar consolo e
perspectiva.
Desenvolvimento Pessoal e Resiliência: A ideia de que os estudos
liberais podem “sarar feridas” sugere que a educação e o
desenvolvimento pessoal podem tornar uma pessoa mais resiliente
diante das adversidades. O conhecimento adquirido por meio desses
estudos pode fortalecer a capacidade de lidar com as dificuldades e
oferecer uma perspectiva mais ampla sobre a vida.
Fuga das Queixas: Ao afirmar que os estudos liberais podem
arrancar "toda queixa", Sêneca destaca a capacidade desses estudos de
direcionar a mente para algo mais elevado, afastando-a das queixas e
lamentações. Isso sugere a ideia de que a busca pelo conhecimento pode
ser uma maneira eficaz de superar a autocomiseração e encontrar um
sentido mais profundo na existência.
Cultivo da Alma: A referência aos estudos liberais como um refúgio
implica que há uma dimensão mais profunda no desenvolvimento
humano, não apenas no aspecto prático, mas também na cultura da
alma e do intelecto. Esses estudos são vistos como uma jornada que vai
além da mera aquisição de informações, abrangendo uma
transformação interior. Assim, Sêneca enfatiza a importância dos
estudos liberais como uma fonte de consolo e crescimento pessoal,
indicando que a busca pelo conhecimento nas áreas mais amplas da
educação pode oferecer cura e fortalecimento diante das adversidades
da vida.
Para o autor o único conhecimento válido é o filosófico. A filosofia
dava-lhe as respostas aos problemas que atormentava o homem rico
64 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

quanto o pobre, servindo-lhe como um guia da vida. Segundo o Sêneca,


a Filosofia não pode ser confundida com mero panfletário para ludibriar
o povo. Esse conhecimento trabalha com fatos e somente com discursos
estéreis. Assim, nas palavras do autor a filosofia “[...] molda e constrói a
alma; ordena nossa vida, guia nossa conduta, nos mostra o que devemos
fazer e o que devemos deixar por fazer; ela senta ao leme e dirige o nosso
curso enquanto nós titubeamos em meio às incertezas” (SÊNECA, 2017,
p. 12). Nesse sentido, a vida sem a prática do filosofar não tem sentido,
e por isso, vive-se de forma atormentada.
Os estudos liberais possibilitam um vasto conhecimento no qual
levará o homem questionar-se, modificar sua visão de mundo e, através
dos esforços, buscar o aprimoramento individual das virtudes. O homem
torna-se desconectado das nobrezas da alma quando está mais vinculado
ao corpo. Mudar o padrão de consciência da vida é um desafio, mas é
possível progredir, basta “examinar-se; examine-se e observe-se de
várias maneiras; mas antes de tudo diga se é na filosofia ou meramente
na própria vida que você fez progresso” (SÊNECA, 2017, p. 12).
Sêneca reconhecia e enfatizava que o estudo da filosofia, para os
estoicos, abrangia a física, a lógica e a ética. Dizia ele que “aqueles
fundadores das sublimes filosofias nasceram para nós, e eles nos
preparam o caminho para a vida. Graças aos seus esforços, conduzem-
nos das trevas à luz, aos mais belos conhecimentos” (SÊNECA, 1993, p.
09). A referência à “física” neste contexto não se limita à ciência
moderna, mas à compreensão da natureza e do universo. A inclusão da
lógica destaca a importância do pensamento claro e racional. A ética
estoica, muitas vezes associada à virtude, é a parte mais conhecida dessa
filosofia. Assim, a expressão “conduzem-nos das trevas à luz, aos mais
belos conhecimentos” sugere uma jornada de transformação pessoal.
Adão Lopes da Silva; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 65

A sabedoria, a coragem, a justiça e autodisciplina compõem as


virtudes que homem pode desenvolver e como dizia o filósofo: “o estoico
vê toda adversidade como treinamento”, deve-se converter as situações
externas da natureza consideradas pelo homem como infortúnio uma
oportunidade de aprendizagem (SÊNECA, 2017, p. 08). Conforme
preconiza o filósofo em suas exortações as temperanças e virtudes
tendem a robustecer a alma e com isso levam à invulnerabilidade dela
por toda a parte. Sêneca (2017, p. 10) fundamenta que:

[...] Se te livraste da avareza, que é o mais violento flagelo da humanidade,


a ambição não retardará teu caminho; se consideras a morte não como uma
pena mas como uma lei da natureza, de modo que a alma fique
desembaraçada do medo dela, nenhum outro medo ousará vir aborrecê-la;
se estás convencido de que a união dos sexos foi dada ao homem não para o
prazer mas para a continuação da espécie, e não violas essa lei arcana e
severíssima, profundamente enraizada em nossas vísceras, estarás imune a
qualquer outro desejo do prazer. A razão não vence os vícios um por um,
mas os abates todos contemporaneamente: ela vence uma de vez por todas.

Afirma ele que podemos aprender com os grandes mestres. Pode-


se vencer os vícios e viver a vida, indagar e “discutir com Sócrates,
duvidar com Carnéades, encontrar a paz com Epicuro, vencer a natureza
humana com a ajuda dos estóicos” (SÊNECA, 1993, p. 09). Sêneca nos dá
o consolo ao afirmar que dentre tantos mestres das virtudes “nenhum
deles deixará de estar à nossa disposição, nenhum despediu o que o
procurar, sem que o faça mais feliz e mais devotado a ele, nenhum
permitirá a quem quer que seja partir de mãos vazias; e eles podem ser
encontrados por qualquer homem, tanto durante o dia como à noite”,
basta observá-los e aprenderemos muito com os seus exemplos
(SÊNECA, 1993, p. 09).
66 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

Ao estudar o pensamento e ideias senequianas pode-se concluir


como tão acanhada é a alma, que as coisas terrenas deleitam; e quão
necessário é arrancá-la dessas e levá-la para as que em toda a parte
apareçam e igualmente resplandeçam. Para o autor é de suma
importância que reflitamos acerca dos bens terrenos e que estes bens,
em suas palavras “[...] são obstáculos aos verdadeiros bens por causa das
opiniões falsas e mentirosas quanto mais monumentais se erguem os
tetos das salas de jantar, tanto mais todas essas coisas nos esconderão
o céu” (SÊNECA, 2017, p. 06). Assim ele nos chama a enfatizar o quão é
importante a reflexão e o filosofar constante.
Sêneca conclui que para o homem viver, basta lhe pouco, e se estes
souberem viver em harmonia com a natureza entregando-se as virtudes
e à sabedoria, saberão viver e morrer e jamais partiram para eternidade
de mãos vazias. Ele nos ensina e procura incutir em nós uma resignação
para compreender e aceitar a morte como algo inerente a nós. Muitos têm
a morte como um fim indigno. No entanto, é de suma importância que
despertemos e entendamos que tudo passa e tudo passará. De acordo com
Sêneca (1993, p. 02), deveríamos ter a compreensão de que morremos
prematuramente, tendo em vista que cabe o questionamento:

[...] qual é pois o motivo? Vivestes como se fósseis viver para sempre, nunca
vos ocorreu que sois frágeis, não notais quanto tempo já passou; vós o
perdeis, como se ele fosse farto e abundante, ao passo que aquele mesmo
dia que é dado ao serviço de outro homem ou outra coisa seja o último.

A filosofia de Sêneca enfatizava que não era somente a multidão e


a turba insensata que se lamentava deste mal considerado universal. Ele
dizia que as mesmas queixas e lamúrias eram feitas por homens
ilustres. Para o filósofo, a vida é longa o suficiente e foi nos dada com
Adão Lopes da Silva; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 67

generosidade para que possamos realizar grandes feitos se soubermos


empregar bem esta dádiva maravilhosa.

A vida nos foi dada para a realização das maiores coisas, se a empregamos
bem. Mas, quando ela se esvai no luxo e na indiferença, quando não a
empregamos em nada de bom, então, finalmente constrangidos pela
fatalidade, sentimos que ela já passou por nós sem que tivéssemos
percebido (SÊNECA, 1993, p. 01).

Na visão do autor, a alma está aprisionada a este mísero corpo e ele


pode ser jogado a qualquer momento e em qualquer lugar “[...] pode ser
jogado em qualquer lugar; sobre ele têm poder os suplícios, os roubos,
as doenças: a alma é sagrada e eterna, e ninguém lhe pode fazer
violência” (SÊNECA, 2017, p. 09). Podemos concluir que aqui o filósofo
acredita que esta vida é um sopro e que mesmo sendo poeira cósmica
temos a grandeza e importância neste vasto universo que está em
constante mutação e ou transformação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para Sêneca viver em sua plenitude tem a ver com um observar a


vida dum ângulo que se permita realmente estar aqui. Para ele o ócio é
uma força motora que leva o corpo a influenciar a alma ao sentimento
de posse do homem sobre homem, sobre a vida, sobre a natureza,
alimentando assim suas paixões e ilusões, favorecendo as mazelas da
alma no desperdício de tempo que a natureza nos proporciona,
distanciando ainda mais do aprimoramento das virtudes. Dessa forma,
a filosofia de Sêneca aborda a busca da felicidade, a preparação para a
morte, as desilusões, a amizade e levanta uma das principais questões
68 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

humanas: como conquistar qualidade de vida com o aproveitamento


correto do tempo que nos foi dado.
Através das ideias estoicas, ele propagava à renúncia do
materialismo e a busca pela tranquilidade da alma através do
conhecimento, da racionalidade e da contemplação da natureza. Em um
mundo tão apressado e tão conturbado como o que vivemos hoje e no qual
impera um consumismo exacerbado, a busca e adoração inexplicável por
bens e coisas materiais, e também um narcisismo doentio, a filosofia
desse grande filósofo se torna mais necessária que nunca.
Portanto, de posse dos conhecimentos e da filosofia dos estoicos
podemos encontrar a verdadeira felicidade. Uma felicidade que vai nos
dar leveza, paz, bem-estar e alegria. E, consequentemente, ao irmos em
busca de nossa felicidade, ao encararmos a vida com mais leveza e amor,
com certeza todos ao nosso redor sentirão esta felicidade, pois ela pode
ser contagiante. Sabemos que o exemplo tem o poder de arrastar
multidões.

REFERÊNCIAS

LI, Willian. Introdução. In: SÊNECA, Lúcio Anneu. Sobre a brevidade da vida. Disponível em:
<http://www.filosofia.com.br/livros_inteiros.php?pg=19>. Acesso em: 05 abril 2017.

Sobre a brevidade da vida / Sêneca: Tradução e notas Willian LI. São Paulo SP: Editora
Novalexandria, 1993.

RAYSA, Aryane Araujo dos Santos, O Conceito de Firmeza de Alma nas Cartas a Lucilio
de Sêneca, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Piauí, 2016,
repositorio.ufpi.br/xmlui/handle/123456789/710 – Acesso em 05 abril 2018

SÊNECA, Lúcio Anneu. Consolação a Hélvia. Disponível em: <http://www.filosofia.


com.br/livros_inteiros.php?pg=19>. Acesso em: 20 marco 2018.

. Consolação à Minha Mãe Hélvia / Sêneca: Introdução, tradução e notas de


Alexandre pires Vieira. – São Paulo, SP : Montecristo Editora, 2017.
A DÚVIDA METÓDICA EM RENÉ DESCARTES
3
Aline Silva Alves 1
Francisco Atualpa Ribeiro Filho 2

“Viver sem filosofar é o que se chama ter os olhos fechados sem nunca os
haver tentado abrir”.
(René Descartes)

INTRODUÇÃO

O filósofo francês René Descartes (1596-1650) tornou-se conhecido


como o pai da filosofia moderna. Nasceu na cidade de La Haye, em 31 de
março de 1596. Um racionalista vindo de uma família burguesa de
procedência nobre. O pai se chamava Joachim Descartes, a mãe Jeanne
Brochard. Perdeu a mãe com apenas um ano de idade e com uma
tremenda saúde frágil, passou a morar com uma avó.
Entretanto, René Descartes estudou numa das escolas mais
famosas da Europa, (Lá Fleche), passou a maior parte de sua vida
viajando, e provando os costumes de outras regiões. Conseguiu alguns
diplomas, inclusive, matemática e filosofia. Faleceu em 1650, vítima de
uma tuberculose, e para marcar sua história deixou várias obras

1
Possui Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí (2018), pós-graduada do curso de
especialização em psicopedagogia clínica e institucional pela Faculdade Única, de Ipatinga MG (2022).
Aline Silva Alves. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6705827590730106.
2
Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí; Licenciado em Filosofia pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie; Bacharel em Administração Pública pela Universidade Estadual do Piauí.
Especializações em: Docência do Ensino Superior (UNOPAR); Gestão Pública Municipal (UESPI); Gestão
Educacional em Rede EaD (UFPI); Licenciando em Letras Português pela Estácio. Atualmente é
orientador do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) da FCP e professor efetivo
da SEDUC-CE. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1491096614911103. E-mail: farf25@gmail.com.
70 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

escritas, entre elas as mais conhecidas, “O Discurso do Método” e


“Meditações Metafisicas”.
O objetivo desse trabalho é propor uma reflexão à cerca do
pensamento do filósofo René Descartes. Especificando precisamente a
dúvida como método para a investigação do saber. Sendo que seu
principal elenco é utilizar da dúvida para trilhar o caminho em busca de
tudo aquilo que ele dúvida, ou ao menos precisa provar como verdadeiro
ou falso.
O propósito do tema é de grande importância para a sociedade.
Pois, trata de um tema muito utilizado no dia a dia: a dúvida. O modo
como expressa o filósofo pode influenciar as pessoas a pensarem como
ele e não aceitar nada como verdadeiro sem antes indagar ou analisar.
Influenciado por uma cultura que o poder consistia somente nas ideias
de Deus, René Descartes, sentiu a necessidade de provar as coisas da
natureza como fonte específica de saber. Portanto, o seu alvo foi
reconstruir um novo saber.
O trabalho tem como tema “A dúvida metódica em René Descartes”.
Sendo a dúvida um método utilizado pelo filósofo, como garantia de
conhecimento. Descartes utiliza a dúvida não para ser cético, mas
visando alcançar uma determinada certeza e através do seu método
organizar o pensamento, e não correr risco de cair em erros.
O motivo pelo qual, levou o filósofo garantir a dúvida como fonte
sustentável de um novo conhecimento, e adentrando o mesmo fundar
um Método, foi a repulsiva opinião de uma cultura, baseadas somente
nas ideias de Deus. René Descartes, colocou os seus pensamentos em
limpo e sentiu a necessidade de provar as coisas da natureza como fonte
específica de saber. Visto que, para isso era preciso desconfiar das
coisas, para checar as verdades absolutas.
Aline Silva Alves; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 71

A metodologia da pesquisa foi utilizada a base de pesquisas


bibliográficas, usando como ferramentas, livros, sites etc. Utilizando se
de alguns conceitos como “o discurso do método, meditações metafísicas”
René Descartes (2006-2004) “O método de análise cartesiano e o seu
fundamento” Battisti (2010) “Descartes e o Ceticismo” Bittercourt (2018)
“A questão de deus na filosofia de descartes” Jesus (1997).
O trabalho está organizado em quatro seções, sendo a primeira
dedicada a contextualizar o problema e estabelecer seus objetivos. O
primeiro aspecto abordado refere-se à problemática do método, cujo
propósito consistia em empregar a dúvida como instrumento, visando
alcançar um conhecimento indubitável, ou seja, uma compreensão
verdadeira.
A segunda seção explora o método cartesiano, onde o filósofo se
depara com o impasse de encontrar uma abordagem que lhe permita
trilhar por caminhos certos. Esse método não só buscava orientar
Descartes em sua busca pessoal pelo conhecimento seguro, mas também
pretendia motivar outros a não se desviarem dos caminhos que
almejavam alcançar.
A terceira parte do trabalho se concentra no tema do
conhecimento, delineando o processo pelo qual René Descartes
alcançou sua primeira certeza. Isso representa um ponto crucial na
narrativa, destacando como o filósofo superou as incertezas iniciais por
meio de um raciocínio cuidadoso e fundamentado.

1. O PROBLEMA DO MÉTODO

O problema do método cartesiano reside na possibilidade de um


excesso de racionalismo e na sua abordagem estrita de dúvida metódica.
René Descartes, ao buscar um fundamento indubitável para o
72 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

conhecimento, propôs uma metodologia baseada na dúvida sistemática


de tudo o que pudesse ser questionado. A busca pela certeza absoluta
através do “cogito, ergo sum” (“eu penso, logo existo”) conduziu Descartes
a uma posição radical de ceticismo, colocando em dúvida até mesmo as
percepções sensoriais mais básicas. No entanto, esse método de dúvida
extrema pode levar a um isolamento excessivo da subjetividade,
negligenciando a riqueza e complexidade das experiências humanas.
Nessa perspectiva, ao reduzir a realidade a elementos cartesianos
simples e abstratos, a abordagem cartesiana pode negligenciar a
totalidade do conhecimento que muitas vezes é complexa e contextual.
O problema do método cartesiano, portanto, reside na tensão entre a
busca pela certeza e a necessidade de reconhecer a riqueza e diversidade
da experiência humana, desafiando a possibilidade de alcançar um
conhecimento completo e infalível através de um método tão rigoroso e
restritivo.

1.1 MUDANÇA DE PARADIGMA

Notoriamente, Descartes participou da transição do medieval ao


moderno sendo considerado um pensador dissidente da ideia de que o
mundo era organizado por Deus e as ideias e reflexões eram voltadas
para interpretações da vontade divina. No período medieval o centro
das indagações consistia na fé, e nas obras de Deus.
Assim, surgiram questionamentos profundos sobre a origem do
conhecimento. A transformação de paradigma implica em transcender
a hegemonia da Igreja e do Estado como detentores exclusivos da
verdade. Nesse novo contexto, o ser humano emerge como o
protagonista de sua própria narrativa e o arquiteto da verdade,
utilizando sua subjetividade como ferramenta fundamental. Conforme
Aline Silva Alves; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 73

destacado por Jesus (1997), na era moderna, a abordagem filosófica


assume uma perspectiva eminentemente antropocêntrica. Não é mais o
cosmo ou Deus que se estabelece como o epicentro do pensamento
filosófico, mas sim o próprio ser humano. Essa mudança de foco reflete
uma reconfiguração fundamental na maneira como a verdade é
concebida, com o indivíduo assumindo um papel central na construção
e interpretação do conhecimento.
Vivendo em um mundo onde até os fenômenos naturais eram
influenciados por Deus, tendo a verdade como algo sobrenatural,
induzida pela fé divina, Descartes não satisfeito, questiona-se e propõe
que a origem do conhecimento surja no próprio homem, tem-se um
novo paradigma: o homocentrismo.
Na obra “Discurso do Método” (2006), percebe-se as inquietações
do pensador acerca de um método seguro e sua descrença no modelo
medieval:

É verdade que, enquanto me limitava a observar os costumes dos outros


homens, pouco encontrava que me contentasse, pois percebia neles quase
tanta diversidade como aquela que havia constatado anteriormente entre
as opiniões dos filósofos (DESCARTES, 2006, p. 15).

O objetivo dessa forma de pensar considera o homem o centro dos


questionamentos das teorias agindo racionalmente e não mais pela fé.
Ao incentivar os indivíduos a questionarem todas as crenças da era
medieval, René Descartes passou a ser considerado o fundador da
filosofia moderna. Com isso, ele tomou como ponto de partida a busca
de um novo alicerce para a filosofia, procurando entender a verdade
através do conhecimento racional. Assim, resolveu romper com a
tradição aristotélica e o pensamento escolástico que dominavam a
atmosfera da época.
74 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

A partir do momento, porém, em que desejava dedicar-me exclusivamente a


pesquisa da verdade, pensei que deveria agir exatamente ao contrário e
rejeitar como absolutamente e falso tudo aquilo que pudesse supor a menor
dúvida, com a intenção de verificar se, depois disso, não restaria algo em
minha educação que fosse inteiramente indubitável (DESCARTES, 2006, p. 30).

A filosofia de René Descartes, inspira-se no poder de desvendar


uma nova ciência, a qual seu mérito, consiste na revolução do
pensamento, porém, o seu anseio era levar em conta a fundamentação
do conhecimento. Sendo assim, o homem passa a ser considerado o
centro dos questionamentos, aderindo a subjetividade, retratando sua
filosofia antropocêntrica, e considerado um sujeito pensante.
Por ser o filósofo responsável pelo pensamento moderno, sua
tarefa foi fundamentar uma nova maneira de pensar e conhecer,
estabelecendo o poder racional no homem. Diante disso, Descartes,
segue a caminho em busca de tudo o que apresentasse a menor dúvida,
procurando encontrar, através da própria dúvida, um conhecimento
indubitável. Conforme Jesus, “[...] Descartes, com razão, é considerado o
pai do pensamento moderno; um dos motivos, sem dúvida é pela
proeminência do método em sua filosofia, método este capaz de erigir
uma ciência certa, que domine a natureza” (JESUS, 1997, p. 15).
Rodeado de incertezas, Descartes resolve reconstruir e
reestabelecer uma nova ciência, tendo como princípio utilizar método
racional para chegar a uma conclusão da razão do ser pensante
existente. E seguindo com essas dúvidas, o filósofo questiona ao menos
três fundamentos: O primeiro fundamento revela a rejeição total dos
sentidos, pois estes nos enganam.
Deve-se levar em conta a obra “Meditações Metafísicas” (2004), a
questão dos sentidos uma vez que, para ele, poderia ser algo
Aline Silva Alves; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 75

indiscutível, até o ponto em que o mesmo se percebeu que


possivelmente poderia ser vítima de enganos. Pois se os sentidos são
capazes de nos enganar uma vez, é certo que pode nos enganar sempre.
Com efeito,

[…] tudo o que admitir até agora como o que há de mais verdadeiro, eu o
recebi dos sentidos ou pelos sentidos. Ora notei que os sentidos às vezes
enganam e é prudente nunca confiar completamente nos que, seja uma vez,
nos enganaram (DESCARTES, 2004, p. 22).

René Descartes, porém, no seu “Discurso do Método”, menciona


um trecho, o qual fala dos sentidos, e especificamente os sentidos da
visão. Para ele as vezes olhamos para algo e vemos que não está
devidamente correto e que por vez, ao olharmos parece ser
extravagante, estranho, sendo que para outros povos, ou seja, em outras
culturas será de bom grado. Nas palavras do autor:

Desse modo, o maior proveito que tirava disso era que, vendo uma quantidade
de coisas que, embora nos pareçam muito extravagantes e ridículas, não
deixam de ser geralmente atacadas e aprovadas por outros grandes povos,
aprendia a não acreditar com demasiada convicção em nada daquilo que me
havia sido inculcado só pelo exemplo e pelo costume. Assim, aos poucos,
conseguia livrar-me de muitos erros que podem ofuscar nossa luz natural e
nos tornar menos capazes de ouvir a razão (DESCARTES, 2006, p. 15).

O segundo fundamento a ser questionado foi o sonho, porém é algo


para ser colocado em dúvida, além disso decorrem de uma fonte enganosa
é fruto de tudo aquilo que é percebido pelos sentidos. Sendo assim, os
sonhos têm a mínima possibilidade de ter uma origem clara e distinta,
pois apresenta uma série de dúvidas. Escreve Descartes: “[...]Em verdades,
com que frequência o sono noturno não me persuadiu dessas coisas
76 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

usuais, isto é, que estava aqui, vestindo essa roupa, sentado junto ao fogo,
quando estava, porém, nu, deitado entre as cobertas” (DESCARTES, 2004,
p. 95). O terceiro fundamento questionado, foi a matemática, por quem
ele acreditava ser verdadeira por possuir problemas exatos. Mas de outra
forma, sentiu a necessidade de pôr em dúvidas, para encontrar uma
verdadeira certeza. Nesse sentido,

eu me comprazia, sobretudo com a matemática, por causa da certeza e das


evidências de suas razões, mais ainda não percebia de sua verdadeira
aplicação e, pensando que só seria para as artes mecânicas, espantava-me de
que, sendo seus fundamentos tão firmes e tão sólidos, não se houvesse
construído sobre eles nada que fosse mais relevante (DESCARTES, 2006, p. 13).

Então Descartes, chega a uma conclusão de que a razão é o


fundamento para a nova ciência e método, porque a razão humana, não
pode ser colocada em dúvida: “meu propósito, portanto, não é ensinar
aqui o método que cada um deve seguir para bem conduzir sua razão,
mas somente mostrar de que maneira me preocupei em conduzir a
minha” (DESCARTES, 2006, p. 11). René Descartes, o filósofo expressa
claramente o seu propósito ao compartilhar suas reflexões. Ele
esclarece que não tem a intenção de prescrever um método universal
para que todos sigam na orientação de sua razão. Em vez disso, seu
objetivo é oferecer um relato pessoal, apresentando como ele mesmo
conduziu seu próprio raciocínio.
Essa abordagem reflete uma postura característica do pensamento
cartesiano, que valoriza a individualidade e a busca autônoma pelo
conhecimento. Ao destacar que seu propósito não é estabelecer um
manual geral, Descartes reconhece a diversidade de caminhos que cada
pessoa pode percorrer na busca pela verdade. Essa ênfase na
Aline Silva Alves; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 77

subjetividade e na experiência pessoal também sugere uma abordagem


mais reflexiva e introspectiva à filosofia. Descartes, ao compartilhar sua
própria jornada intelectual, convida os leitores a refletirem sobre seus
próprios métodos e processos de pensamento, promovendo assim uma
abordagem mais participativa e individualizada no processo de busca
pelo conhecimento.
De fato, o ponto de partida de Descartes na sua empreitada
filosófica foi a busca por uma verdadeira ciência que encontrasse
fundamentos inabaláveis dentro de si mesmo. Sua abordagem
revolucionária tornou-o uma figura proeminente na filosofia moderna,
sendo reconhecido por sua ousadia em duvidar de tudo e questionar não
apenas as convenções intelectuais, mas também os alicerces da
tradição, dos costumes e do pensamento de sua época.
Ao desafiar as noções estabelecidas, Descartes introduziu um
método radical de dúvida metódica, que buscava eliminar qualquer
crença que não pudesse resistir à mais rigorosa análise. Sua famosa
declaração “Cogito, ergo sum” (“Penso, logo existo”) encapsula esse
ponto de virada fundamental em sua filosofia, estabelecendo a certeza
da existência individual como a pedra angular sobre a qual ele
reconstruiria seu sistema de conhecimento.
A ousadia de Descartes em confrontar as tradições filosóficas e
científicas de sua época não apenas redefiniu o método filosófico, mas
também lançou as bases para uma abordagem mais centrada no sujeito
na busca pelo entendimento. Ao enfatizar a importância da razão
individual e do questionamento constante, Descartes influenciou
gerações subsequentes de pensadores e contribuiu significativamente
para a transição do pensamento medieval para a modernidade. Sua
coragem em desafiar o status quo estimulou um ambiente intelectual
78 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

propício à investigação independente e à construção de novos


paradigmas, marcando assim seu lugar como um dos filósofos mais
importantes da história.

1.2 DÚVIDA COMO PRINCÍPIO

Descartes fomenta a construção de sua teoria tendo como princípio


a dúvida. Toda a sua filosofia passou por um processo de reconstrução
do saber para se chegar à verdade. Diante disso, René Descartes acredita
que a melhor forma de encontrar a verdade é duvidando de todas as
coisas, por mais que aparenta ter o mínimo de incerteza. No entanto,
ele pode duvidar de todas as coisas, a única coisa que ele não pode
duvidar é que ele duvida. Segundo Bittencourt, (2018, p. 121) “[...] a
dúvida é, assim, uma preparação do espírito para o conhecimento da
verdade se tomássemos as palavras de Descartes como conclusivas,
facilmente o identificariam como um cético clássico ou moderno”.
A importância e exclusividade da razão para a consolidação do
conhecimento em Descartes tem como base a desconfiança dos sentidos,
haja vista que a razão pode adoecer. Considerava, com isso, que o
indivíduo através da sua razão poderia ter conhecimento de mundo,
usando o raciocínio lógico, para se chegar à certeza das coisas, mas antes
ele tem de duvidar dos conhecimentos adquiridos para se chegar a uma
verdade evidente em torno da razão. Entretanto, a razão provém da
natureza, de um ser pensante: o homem “[...] porém, percebi que,
enquanto eu queria pensar assim que tudo era falso, convinha
necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa” (DESCARTES,
2006, p. 30).
Girando em torno dos conhecimentos adquiridos, e percebendo de
umas e outras imperfeições, o filósofo, despreza as fontes de
Aline Silva Alves; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 79

conhecimentos advindas de suas experiências, e passa a utilizar a


dúvida como princípio. Segundo Jesus, (1997, p. 36) “[...] é uma dúvida
real, que intenciona atingir o paradigma de todo conhecimento, aquele
que surge da razão e é independente dos sentidos”. A expressão “é uma
dúvida real” indica que não se trata de uma simples hesitação ou
incerteza casual, mas sim de uma dúvida estruturada e significativa.
Essa dúvida tem como objetivo atingir o paradigma de todo
conhecimento, o qual, segundo a perspectiva cartesiana, é aquele que
emerge da razão e é independente dos sentidos.
O filósofo então põe em dúvida tanto as coisas sensíveis quanto
inteligíveis, ou seja, ele considera como dúvida tanto as coisas que
podemos imaginar quanto as que podemos tocar ou perceber. Para Jesus
(1997, p. 36) “alcançar este conhecimento certo, independente dos
sentidos, logicamente necessário e universalmente válido, segundo o
modelo matemático, é mister começar tudo de novo desde o princípio”.
O motivo pelo qual levou René Descartes a utilizar a dúvida como
o processo de construção do conhecimento, foi o desejo de distinguir o
verdadeiro do falso. Dessa forma, a dúvida é um fundamento utilizado
pelo filósofo para seguir uma jornada em busca de um conhecimento
verdadeiro. Declara ele [...] “sempre tive um enorme desejo de aprender
a distinguir o verdadeiro do falso para ver claramente em minhas ações
e caminhar com segurança nesta vida” (DESCARTES, 2006, p. 15).
René Descartes mantinha sempre o desejo de conhecer a verdade,
seu pensamento era encontrar a verdade em todas as coisas, tentando
de algum modo distinguir o verdadeiro do falso, e visando trilhar
sempre por caminhos seguros. A incessante busca pela verdade é uma
característica marcante de seu pensamento, refletindo-se na
determinação em compreender a realidade de maneira precisa e
80 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

inabalável. Seu desejo contínuo de aprender revela uma aspiração


constante por uma compreensão mais profunda do mundo ao seu redor.
Descartes não apenas ansiava pelo conhecimento, mas também
aspirava à sabedoria para trilhar caminhos seguros, adotando uma
postura metódica e rigorosa em sua busca pela verdade em todas as
coisas. Nessa busca incansável pela verdade, Descartes não apenas
delineou um método filosófico revolucionário, mas também
personificou a perseverança intelectual na busca pela clareza e certeza.

1.3 NECESSIDADE DO MÉTODO

Evidentemente, para Descartes, o método cartesiano, consiste na


ideia do ceticismo metodológico, de não aceitar nada como verdadeiro,
desde que não se tenha um conhecimento seguro de tudo que nos é
emitido. Portanto, o filósofo desenvolveu o método da dúvida, o qual seu
lema era articular que só poderia existir aquilo que pode ser provado
como verdadeiro.
O propósito era procurar sempre mostrar sua condição de vida às
pessoas, levando em consideração o que ele pensava, e não impondo às
pessoas pensarem igual a ele, mas incentivando que elas aprendam a
não confiar de imediato em tudo que se pode conceder a menor dúvida.
Nas palavras de Descartes: “[...] meu objetivo nunca foi além do de
procurar reformar meus próprios pensamentos e construir num
terreno que é todo meu, [...] mostro aqui seu modelo, mas nem por isso
desejo aconselhar alguém a imitá-lo” (DESCARTES, 2006, p. 18).
René Descartes, não consiste em duvidar por duvidar: ele duvidava
porque procurava um conhecimento absolutamente seguro, e para
chegar a um conhecimento seguro é necessário duvidar. Por isso, a
Aline Silva Alves; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 81

dúvida é considerada metódica: é um método para encontrar o


conhecimento inteligível e indubitável. Dessa forma,

não recearei dizer, porém, que penso ter tido muita felicidade de me haver
encontrado, desde a juventude, em determinados caminhos que me levaram
a considerações e máximas, por meio das quais formei um método, pelo qual
me parece que eu consiga aumentar de forma gradual meu conhecimento e
de elevá-lo, pouco a pouco, ao mais alto nível, a que a mediocridade de meu
espírito e a curta duração de minha vida lhe permitam alcançar
(DESCARTES, 2006, p. 11).

A dúvida torna-se importante para a alimentação do espírito. Uma


vez, que a dúvida gera pensamento, e através do pensamento descobre
se o espírito, ou que seja, o ser pensante. Descartes criou o método para
que pudesse partir com o percurso da dúvida até a existência de um ser
pensante, e foi através dessa dúvida que o filósofo chega à certeza de
sua própria existência enquanto sujeito.
Descartes, parte com a ideia de refazer o saber, ou seja, ir em busca
de tudo aquilo que para muitos já tem uma resposta acabada. Desde
muito cedo Descartes, tinha um desejo de conhecer profundamente a
natureza, o homem e o universo, portanto na primeira parte do seu
discurso ele fez as seguintes considerações:

Fui instruído nas letras desde a infância e por ter sido convencido de que,
por meio delas, se poderia adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo
o que é útil a vida, sentia extraordinário desejo de aprendê-las. Logo que
terminei, porém, todo esse curso de estudos, no fim do qual é costume ser
recebido na classe dos eruditos, mudei totalmente de opinião. Encontrava-
me enleado em tantas dúvidas e erros que me parecia não haver conseguido
outro proveito, procurando instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez
mais minha ignorância (DESCARTES, 2006, p. 12).
82 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

René Descartes, após terminar seus estudos sentindo-se confuso


com o que havia lhe ensinado, percebeu que através do ensino
adquirido, poderia conseguir um conhecimento seguro e propício à vida.
Percebe-se embaraçado em meio a tantas dúvidas, que despertou
interesse de procurar a verdade clara de todas as coisas. Com isso,
mudou de opinião e resolveu criar um método, para melhor investigar
o saber.
O método é a base para a organização dos questionamentos de René
Descartes. Segundo Battisti, (2010, p. 573) “[...] por razões internas ao seu
sistema e em razão dos objetivos de sua filosofia, Descartes não poderia
simplesmente assumir um método estabelecido por outros”. O que René
Descartes, procurava era um caminho, um meio, uma ordem, para
restabelecer suas ideias. E questionava apenas o que para ele não era
conveniente. Ele pensou e agiu. A única maneira de solucionar os seus
pensamentos era através de um método, fundado por ele próprio.
O ceticismo de Descartes não é estéril, mas sim didático e
dinâmico. Ou seja, o filósofo, tem um propósito, duvidar de tudo que
parece não ser claro e seguro:

Distintamente dos céticos, que duvidam por duvidar, a dúvida cartesiana


vai além desse primeiro momento, ela transforma-se em método, em
caminho que a razão deve percorrer até encontrar uma verdade com força
suficiente para eliminar a própria dúvida (BITTENCOURT, 2018, p. 121).

Porém, enquanto os céticos duvidam somente por duvidar,


Descartes, vai além com seu pensamento, transformando a dúvida em
método e por meio da razão chega-se à verdade. A dúvida utilizada por
René Descartes, tinha um propósito, a qual consistia em um
Aline Silva Alves; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 83

experimento mental, ou seja, ele utilizava o seu pensamento para


analisar e distinguir o verdadeiro do falso.
A distinção entre a dúvida cartesiana e a abordagem cética ressalta
um aspecto fundamental da filosofia de Descartes. Enquanto os céticos
muitas vezes duvidam por uma atitude sistemática de questionamento
contínuo, a dúvida cartesiana transcende esse ceticismo inicial ao se
transformar em um método estruturado. Descartes não duvida por
mera inclinação cética, mas sim como parte de um processo metódico e
rigoroso, onde a dúvida é empregada como um instrumento para atingir
a certeza.
A dúvida cartesiana não é um fim em si mesma; ela se converte em
um caminho que a razão deve percorrer. Esse percurso visa encontrar
uma verdade que seja tão indubitável que tenha o poder de eliminar a
própria dúvida. Assim, Descartes utiliza a dúvida como uma ferramenta
crítica para purificar o conhecimento, descartando tudo o que não pode
resistir à análise mais rigorosa.
Essa abordagem metodológica distinta de Descartes reflete seu
compromisso em estabelecer fundamentos sólidos para o
conhecimento. Enquanto os céticos podem permanecer em um estado
de dúvida perpétua, Descartes busca uma verdade inabalável que possa
servir como alicerce para todo o edifício do saber. Essa transformação
da dúvida em um método delineia a busca sistemática de Descartes por
certeza e clareza, marcando um marco importante na história da
filosofia moderna.

2. O MÉTODO CARTESIANO

O método cartesiano proposto por René Descartes é uma


abordagem sistemática e racional para a busca de conhecimento
84 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

fundamentado em certezas indubitáveis. Descartes inicia seu método


com a dúvida metódica, questionando todas as crenças e conhecimentos
prévios para identificar algo que não possa ser duvidado. Esse processo
de dúvida extrema visa encontrar um ponto de partida seguro e
incontestável para a construção do conhecimento. O princípio “Cogito,
ergo sum” (“Eu penso, logo existo”) emerge como o fundamento
indubitável, marcando o ponto de certeza a partir do qual Descartes
constrói seu edifício filosófico.
A segunda fase do método cartesiano consiste na análise e
decomposição do problema em partes mais simples, visando
compreender claramente cada elemento. Essa etapa é seguida pela
síntese, a reconstrução dos conceitos de forma ordenada e clara. A
aplicação do método a áreas como a geometria e a física permitiu a
Descartes fazer avanços significativos no conhecimento científico. No
entanto, o método cartesiano também enfrenta críticas, especialmente
em relação à sua excessiva confiança na razão pura e ao seu
desdobramento em uma visão de mundo excessivamente mecanicista,
que simplifica a complexidade da realidade. Mesmo assim, o método
cartesiano influenciou profundamente o desenvolvimento da filosofia e
da ciência, deixando um legado duradouro na história do pensamento
ocidental.

2.1 RAZÃO COMO PRINCÍPIO

A causa mais segura, utilizada por René Descartes, para chegar a


um determinado conhecimento é a razão. A razão é a superioridade para
todas as dúvidas. Afirma Battisti (2010, p. 577) “[...] A luz natural da razão
é condição para o conhecimento das coisas”. Essa visão ressoa com a
tradição filosófica que considera a razão como uma faculdade distintiva
Aline Silva Alves; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 85

que capacita os seres humanos a discernir, refletir e compreender a


realidade. A luz da razão é metafórica para o poder iluminador que nos
permite distinguir verdades, discernir padrões e formar juízos
fundamentados. Portanto, o conhecimento das coisas, de acordo com
essa perspectiva, não é apenas uma questão de percepção sensorial, mas
é fundamentalmente moldado pela capacidade racional de interpretar e
organizar informações.
Comparando o racionalismo com o empirismo, percebe-se uma
mera contradição. Enquanto o racionalismo chega ao conhecimento
através da razão, os empiristas acreditam que a forma de buscar o
conhecimento é através de experiências sensíveis. Para o método
cartesiano a razão é livre. Descartes, não procura identificar se uns
possuem mais razões que outros, e sim não seguir os mesmos
pensamentos. Porém, deve seguir um método para não se deixar seduzir
pelo sensível:

A diversidade de nossas opiniões não se origina do fato de que alguns são


mais racionais que outros, mais somente pelo fato de dirigirmos nossos
pensamentos por caminhos diferentes e não considerarmos as mesmas
coisas (DESCARTES, 2006, p. 10).

René Descartes destaca quatro preceitos na sua obra a fim de nortear


a racionalidade até a verdade. A razão é o escopo do conhecimento
humano, porém, enfatiza o autor: “[...] quer estejamos despertos, quer
dormindo, jamais devemos nos deixar convencer a não ser pela evidência
de nossa razão” (DESCARTES, 2006, p. 35). Ao afirmar que, estejamos
acordados ou dormindo, nunca devemos nos deixar convencer a não ser
pela evidência de nossa razão, Descartes sublinha a importância de uma
abordagem crítica e lógica em todas as facetas da vida.
86 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

Essa perspectiva destaca a continuidade do papel da razão mesmo


nos estados de consciência alterados, como o sono, ressaltando que a
busca pela verdade e o discernimento não são comprometidos pelo
estado de vigília. Descartes, assim, enfatiza a autonomia da razão em
face de influências externas, convidando à constante avaliação racional
e à recusa de ser persuadido por argumentos que não estejam
fundamentados na evidência e no discernimento lógico. Essa
abordagem reflete o compromisso cartesiano com a busca inabalável
pela verdade, fundamentada na confiança na capacidade racional
humana, independentemente do contexto ou das circunstâncias.
Descartes salienta que a razão é a causa para todas as coisas. Desse
modo, a ideia de pensamento ou conhecimento advém do homem
através do intelecto racional. A qual o seu propósito, é seguir o caminho
do raciocínio, seja pela intuição, ou dedução. Afirma Battisti (2010, p.
578) “[...] A intuição permite a apreensão de conhecimentos mais
simples e fundamentais, e a dedução permite a construção de cadeias de
conhecimentos, a derivação de um conhecimento a partir de outro”.
Descartes faz considerações sobre a questão do bom senso, ou seja,
razão, deixando claro que a capacidade de distinguir o verdadeiro do
falso poderia tornar-se os homens idênticos, pois o indivíduo torna-se
tão influenciado pelos costumes que não deseja ter mais do já tem. Nesse
sentido, considera que o bom senso é igual para todos, todavia, cada um,
provido de pensamentos diferentes, seguindo caminhos diferentes.

O bom senso é a coisa do mundo mais bem distribuída, porquanto cada um


acredita estar tão bem provido dele que, mesmo aqueles que são os mais
difíceis de contentar em qualquer outra coisa, não costumam desejar tê-lo
mais do que já o têm. Não é provável que todos se enganem a esse respeito.
Ao contrário, isso prova antes que o poder de julgar e distingui bem o
Aline Silva Alves; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 87

verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina bom senso ou


razão é naturalmente em todos os homens (DESCARTES, 2006, p. 10).

Dessa maneira, Descartes justifica que todos os homens possuem


razão e bom senso. Portanto, cada um deve-se esforçar para ir além. Isto
é, não se contentar com qualquer coisa. De acordo com Descartes,
devemos sempre distinguir o verdadeiro do falso para obter um
conhecimento verídico.

2.2 AS QUATROS MÁXIMAS

No decorrer do seu “Discurso do Método”, o filósofo enfatiza ao


menos quatro máximas, que consiste no método para explicar sua
própria direção no processo da busca pela verdade:

A primeira era obedecer às leis e os costumes de meu país, conservando me


firme na religião em que Deus me concedeu a graça de ser instruído desde
a infância e comportando-me, em todas as outras coisas, de acordo com as
opiniões mais moderadas e mais distantes do excesso que fossem
geralmente aceitas pelos mais sensatos daqueles com os quais teriam de
conviver (DESCARTES, 2006, p. 24).

No entanto, a intenção da primeira máxima de Descartes, era


obedecer, os hábitos de seu país, seguindo a religião que o inspirou
desde a infância, e procurando evitar o excesso de pensamentos de
outra cultura que pudesse conviver. A segunda máxima se desvela da
seguinte forma:

Minha segunda máxima consistia em ser o mais firme e decidido possível


em minhas ações e em não segui menos constantemente do que se fossem
muito seguras as opiniões mais duvidosas, sempre que eu tivesse decidido
a tanto. Imitava nisso os viajantes que, perdidos numa floresta, não devem
ficar dando voltas, ora para um lado, ora para outro, menos ainda
88 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

permanecer parados num local, mas caminhar sempre o mais reto possível
para um mesmo lado e não o mudar por qualquer motivo (DESCARTES,
2006, p. 25).

O objetivo de Descartes, na segunda máxima, era procurar ser


firme e decidido em suas ações, e não considerar como claras e distintas
as ações mais duvidosas. Comparando, seu modo de pensar com os
viajantes que mesmo perdido na floresta, não se deve perambular para
os lados e nem ficar ileso, parado no mesmo local, e sim, seguir o
caminho reto com a certeza que pode chegar a algum lugar, pois mesmo
que não chegue aonde desejar pelo menos cheguei a um lugar
conveniente. Já a terceira máxima Descartes procura superar seus
desejos para que não atrapalhe seu entendimento:

Minha terceira máxima era a de procurar sempre vencer antes a mim


mesmo do que o destino e de modificar antes meus desejos do que a ordem
do mundo; além disso, geralmente a de acostumar-me a acreditar que nada
existe que esteja inteiramente em nosso poder se não nossos pensamentos,
de modo que, depois de termos feito o melhor possível no que se refere as
coisas que nos são exteriores tudo aquilo que deixamos de conseguir em
relação nós é absolutamente impossível (DESCARTES, 2006, p. 26).

O propósito do filósofo na terceira máxima, era mudar seus


próprios desejos em vez de mudar o mundo. E segundo ele nada estava
em nossa capacidade, e sim, envolvido em nossos pensamentos, assim,
seria o suficiente para não desejar algo que não pudesse adquirir. Com
isso, a quarta máxima destaca que se faz urgente não se satisfazer com
as opiniões dos outros sem antes analisá-las, Descartes revela sua
crença na autonomia do pensamento individual. Sua atitude reflete a
busca incessante pela verdade e a recusa em aceitar dogmas ou
concepções preestabelecidas sem uma avaliação crítica. A referência aos
Aline Silva Alves; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 89

escrúpulos ao seguir opiniões alheias destaca a importância que


Descartes atribui à integridade intelectual, sugerindo que ele busca
evitar qualquer comprometimento com crenças não fundamentadas. O
pensador afirma:

Além do que, as três máximas precedentes se baseavam somente em meu


intento de continuar a mim instruir, pois, tendo Deus concedido a cada um
de nós alguma luz para distinguir o verdadeiro do falso, não julgaria dever
contentar-me um único instante com as opiniões dos outros, se não me
propusesse a utilizar meu próprio juízo em analisá-las, quando fosse o
momento e não poderia isentar-me de escrúpulos, ao segui-las, se não
esperasse não perder com isso oportunidade alguma de encontrar outras
melhores, caso existissem (DESCARTES, 2006, p. 27).

Na quarta e última máxima, Descartes, põem-se no direito de ir


além, procurando sempre distinguir o verdadeiro do falso, não
contentando com opiniões de outros, e sentindo-se satisfeito por ter o
poder de descobrir a verdade através da razão. Uma vez que o
entendimento é o fim para diferenciar o certo do errado. A menção à
expectativa de não perder oportunidades de encontrar opiniões
melhores revela uma abertura para a revisão constante de suas próprias
convicções. Descartes adota uma postura de constante questionamento
e reavaliação, enfatizando a importância do método crítico em sua
jornada filosófica rumo à certeza e à verdade indubitável. Essa
passagem destaca, assim, a atitude reflexiva e a busca ativa pelo
consenso.

2.3 O GÊNIO MALIGNO

Ao analisar as exposições acerca do pensamento de René Descartes,


percebemos que o alvo principal que o eleva ao conhecimento é a dúvida.
90 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

Esta que é o norte para buscar novos conhecimentos. Diferente dos


céticos que duvidavam de uma verdade absoluta, Descartes duvidava
apenas de ter certeza de alguma coisa. Visto que primeiro tinha que
fazer questionamentos, analisar, por tudo que possível em dúvida para
ter certeza de um conhecimento verdadeiro.
Sempre inconformado com as percepções divinas, o filósofo sentiu-
se no direito de fazer especulações, apreciando que tudo o que lhe
originava-se dos sentidos era destinado como fonte de erros. Porém em
suas “Meditações Metafisicas”, René Descartes tentou provar a existência
de Deus, a base de questionamentos. Portanto, coloca em questão, a ideia
de um gênio maligno ou um Deus enganador. O fato pelo qual ele duvidou
da existência de Deus, não significou que ele não acredita na existência
de um Deus todo-poderoso, e sim a forma que ele usou para ter a certeza
de que Deus existe. Jesus (1997, p. 40) comenta que:

[...] o filósofo, deixa de duvidar de coisas simples e passa a duvidar de coisas


complexas, portanto a dúvida deixa de ser metódica e passa a ser
hiperbólica. Pois, a partir do momento em que Descartes descobre sua
primeira certeza ele começa a fazer questionamentos sobre coisas possíveis
e estranhas. Enfim, supõe a possibilidade de um gênio maligno querer
enganá-lo. De acordo com Jesus: “A hipótese do gênio maligno anuncia a
doutrina da veracidade divina [...] institui uma crítica da ciência que busca
compreender a relação entre verdade e ser”.

René Descartes, porém, descobre sua procedência no próprio


sujeito, ou seja, sua origem parte do eu pensante, (razão), diante disso,
o filósofo rejeita a objetividade e passa a estabelecer sua própria
subjetividade. Seu mérito sempre foi conceber a dúvida fonte de
conhecimento principal, utilizada para melhor discernir determinadas
coisas.
Aline Silva Alves; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 91

Chega um ponto em que Descartes dúvida até das coisas que para ele
era considerada como verdadeira. Assim sendo, observa Descartes que
supostamente Deus poderia ser uma espécie de um gênio maligno, já que
não o conhecemos por natureza. Em suas palavras: “Suporei, pois, que há
não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade, mais certo
gênio maligno não menos ardiloso e enganador do que poderoso que
empregou toda a sua indústria em enganar-me” (DESCARTES, 2004, p. 96).
Acontece que, na primeira parte das “Meditações”, René Descartes
deixa uma pilha de dúvidas, que segundo ele são ideias de um gênio
maligno, meras contradições instituídas as percepções divinas. Sugere
a suposição de um Deus enganador, e outros fins, que considera fontes
de dúvidas a fim de encontrar uma certeza. “[...] eis porque tomarei
cuidado para não receber em minhas crenças nenhuma falsidade, a fim
de que esse enganador, por mais poderoso e por mais astuto que ele seja
nada possa me impor” (DESCARTES, 2004, p. 33).
No entanto, o gênio maligno é considerado por Descartes, uma
espécie de um suposto Deus enganador, que contrariou o seu passado, e
alimentou o seu pensamento com ideias ilusórias. Em meio a tantas
dúvidas o filósofo põe em cena a questão do gênio maligno sendo um
Deus enganador.

Não tenho por certa nenhuma ocasião de julgar que há um Deus enganador.
[...]Tão logo a ocasião se apresente, devo examinar se há um Deus e,
havendo, se pode ser enganador. Pois, na ignorância disso, não pareça que
eu possa jamais está completamente certo de nenhuma outra coisa”
(DESCARTES, 2004, p. 73).

O que levou o filósofo a colocar Deus na exposição como um


suposto gênio maligno ou um Deus enganador, foi o desejo que o tinha
92 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

de provar a existência de Deus. E assim eis a questão, duvidar que Deus


existia, ou que poderia ser uma espécie de um gênio maligno era o
caminho para chegar à perfeição.

[...] ao refletir sobre aquilo que eu duvidava e que, por conseguinte, meu ser
não era totalmente perfeito, pois via claramente que o conhecer é perfeição
maior do que duvidar, decidi procurar de onde havia aprendido a pensar em
algo mais perfeito do que eu era. Descobri evidentemente que fosse de alguma
natureza que fosse realmente mais perfeita (DESCARTES, 2006, p. 31).

Pois bem, sabemos até então que a primeira certeza partiu do


cogito, que deu origem ao ser pensante a partir da famosa frase de René
Descartes, “penso, logo existo”, que será tema do terceiro capítulo. Isto
é, a maneira que pensamos, podemos ter a ideia de um ser perfeito
impregnado em nós, já que somos imperfeitos. Questionando a ideia de
perfeição Descartes, acredita que o sujeito pensante partiu de uma
natureza mais perfeita do que ele era. E sendo assim, um ser perfeito só
poderia ser Deus, por quem tinha em mente ser de uma natureza
claramente perfeita.

3. COGITO ERGO SUM

O método cartesiano também resultou em avanços significativos na


ciência, especialmente na geometria e na física. Ao decompor problemas
complexos em elementos mais simples, Descartes aplicou sua abordagem
analítica para compreender claramente cada componente. Essa
metodologia influenciou a formulação de leis matemáticas e físicas,
contribuindo para o desenvolvimento do método científico.
No entanto, a aplicação rigorosa do método cartesiano também
recebeu críticas, pois, ao confiar excessivamente na razão pura, tendia
Aline Silva Alves; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 93

a simplificar a complexidade da realidade, favorecendo uma visão de


mundo mecanicista. Apesar disso, o método cartesiano deixou um
impacto duradouro na filosofia e na ciência, delineando os contornos do
pensamento moderno e estimulando investigações subsequentes que
moldaram a compreensão do mundo durante séculos.

3.1 REGRAS DO MÉTODO

Levando em consideração, as opiniões de René Descartes com


relação a sua filosofia, representada como a faculdade do saber, a busca
de uma ciência que possa nos levar a um conhecimento verdadeiro,
portanto é necessário um meio, ou método. O racionalista Descartes,
partindo da explicação de como chegou ao seu método, apresenta se, as
quatros regras de preceitos contidas no discurso do método. São elas: a
evidência, a análise, a síntese e a enumeração.
O primeiro preceito era conhecido como regra da evidência, pois,
não devemos aceitar nada como verdadeiro, sem antes, utilizar um
método para organizar as ideias. O objetivo seria aceitar como evidência
somente o que fosse considerado ideias e raciocínios claros e distintos,
advindo de questionamentos cautelosos e evitando prevenções e
precipitações imediatas.

O primeiro era nunca aceitar uma coisa como verdadeira que eu não
conhecesse evidentemente como tal, ou seja, de evitar cuidadosamente a
precipitação e a prevenção e de nada mais incluir em meus juízos que não
se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito, que eu não tivesse
motivo algum de duvidar dele (DESCARTES, 2006, p. 21).

O segundo preceito era a regra da análise, “[...] dividir cada uma das
dificuldades que eu analisasse em tantas parcelas quantas fossem
94 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

possíveis e necessárias, a fim de melhor resolvê-las” (DESCARTES, 2006,


p. 21). A regra da análise consiste na regra da evidência, depois de tornar
o objeto de forma clara e distinta deve pôr em análise, e dividir os
problemas em partes, para facilitar o estudo uma por uma. E a terceira
regra, a regra da síntese:

O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos


objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-me, pouco a
pouco, como que por degraus, até o conhecimento dos mais compostos e
presumidos até mesmo uma ordem entre aqueles que não se precedem
naturalmente uns aos outros (DESCARTES, 2006, p. 21).

A regra da síntese consiste na ideia de conduzir o pensamento de


forma ordenada partindo do mais simples ao mais complexo. A quarta e
última será a regra da enumeração, que ressalta René Descartes em seu
discurso do método: [...] “elaborar em toda parte enumerações tão
completas e revisões tão gerais, que eu tive a certeza de nada omitir”.
(DESCARTES 2006, p. 21). E diante disso a enumeração, consiste em fazer
uma revisão por completo de todo conhecimento adquirido, para nada
omitir.

3.2 DA DÚVIDA À CERTEZA

O que motivou René Descartes a colocar a dúvida como principal


fonte de conhecimento, foi o desejo que tinha de conhecer a verdade.
Notou-se, que duvidar de tudo era o limite para encontrar a certeza.
Sendo a dúvida a forma de encontrar a certeza, segundo Bittencourt,
“[...] a dúvida é só um método, uma arma da qual todo homem, “dotado
de bom senso”, deve usar para guerrear contra os preconceitos e os
prejuízos do espírito” (BITTENCOURT, 2018, p. 123).
Aline Silva Alves; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 95

Enquanto, pensou a possibilidade de tudo ser falso, tornou a


questionar por si mesmo, que para duvidar era necessário pensar, e para
pensar teria de ser alguma coisa. Foi então onde surgiu a primeira
certeza; marcada pela frase: “eu penso, logo existo” conhecida em latim,
cogito, ergo sum.

Porém, percebi que, enquanto eu queria pensar assim que tudo era falso,
convinha necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. Ao
notar que esta verdade “eu penso, logo existo”, era tão sólida e tão correta
que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes
de abalá-la, julguei que podia atacá-la sem escrúpulo como o primeiro
princípio da filosofia que eu procurava (DESCARTES, 2006, p.31).

Encontrou, porém, na frase penso, logo existo a mais absoluta


certeza que o procurava. Convicto que teria chegado à certeza da forma
que o desejava, expondo a dúvida como o meio para garantir o fim: a
certeza.

A prova da existência do sujeito está na existência da própria dúvida. A


existência da dúvida, que é uma modalidade do pensamento, é a prova cabal
da existência do sujeito que a exerce. O sujeito que duvida existe, caso não
existisse, sequer a dúvida seria possível (BITTENCOURT, 2018, p. 127).

Portanto, a dúvida é o caminho para o conhecimento. Pois é através


dessa mesma dúvida que surge um ser pensante. Com isso, Descartes,
coloca a dúvida como um ponto principal para o seu método, e passa a
questionar até mesmo a realidade. Então, estava certo de que duvidar
era o processo; já que descobriu sua primeira verdade através da dúvida,
decidiu usá-la para todos os outros meios. Para solucionar os problemas
e encontrar a certeza de todas as outras coisas. Inclusive a existência de
Deus. Afirma Bittencourt, “[...] a dúvida cartesiana anseia por seu
96 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

próprio fim” (BITTENCOURT, 2018, p. 123). Com isso, Descartes


considera a dúvida essencial para a busca do conhecimento.

3.3 EU SOU, EU EXISTO

Haverá, portanto, uma transição, na frase do filósofo René


Descartes, em que o eu penso, logo existo cede espaço a expressão eu
sou, eu existo. À medida que o filósofo passa a descobrir que ele é um
ser capaz de pensar, chegou a uma conclusão que era possível existir.

De sorte que, depois de ponderar e examinar cuidadosamente todas as


coisas, é preciso estabelecer, finalmente, que este enunciado eu, eu sou, eu,
eu existo é necessariamente verdadeiro, todas as vezes que é por mim
proferido ou concebido na mente (DESCARTES, 2004, p. 45).

O filósofo deixou claro que, por mais que existisse um suposto


enganador, que institui a enganá-lo, não foi possível. Dessa forma, a
questão de algo querer enganar, não significava que ele deixaria de
pensar ser alguma coisa. “[...] Não há dúvida, portanto, de que eu, eu sou,
também, se me engana: que me engane o quanto possa, nunca poderá
fazer, porém, que eu nada seja, enquanto eu pensar que sou algo”
(DESCARTES, 2004, p. 25).

Examinando com atenção o que eu era e notando que podia fingir que eu
não possuía corpo algum e que não havia mundo algum ou qualquer lugar
onde eu existisse, mais que nem por isso podia supor que não existia e que,
ao contrário, pelo fato mesmo de pensar em duvidar da verdade de outras
coisas, seguia-se de modo muito evidente e muito certo de que eu existia
(DESCARTES, 2006, p. 31).

Ao analisá-lo o que seria capaz de ser, julgou Descartes, que


poderia não possuir corpo, e nem mundo o qual o adaptasse. Mas isso
Aline Silva Alves; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 97

não era motivo para acreditar que não existia. Notando que, seria capaz
de duvidar das verdades de outras coisas, garantiu-se, que
evidentemente existia. Isto é, Descartes procura radicalizar a dúvida
transformando em conhecimentos. Assim a dúvida deixa de ser
hiperbólica e passa a ser indubitável.
A expressão eu sou, eu existo é considerado por René Descartes,
como a afirmação da primeira certeza: o cogito. Segundo Jesus (1997, p.
46), “[...] o que garante do eu existo é o modo de pensar. O que dá a
certeza da existência é o fato de estar pensando”. Portanto, a garantia
da certeza é o fato da convenção de pensar. A certeza do cogito, uma vez
que para duvidar é necessário pensar, e para pensar é preciso existir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo foi desenvolvido a partir do pensamento do


filósofo René Descartes, destacando como principal argumentação a
dúvida metódica. Em busca de um conhecimento seguro, e desprovido
de incertezas, Descartes procurou um método para desvendar ou até
mesmo extirpar os conhecimentos enganosos.
O que levou René Descartes, a seguir um método, foi a insatisfação
de uma cultura bem diferente da que ele desejava. Sentindo-se a
necessidade de adquirir um saber conveniente e absoluto. Porém,
considerado desprovido de razões, o que possibilitou a necessidade de
lutar por uma certeza. Seguiu um método: a dúvida. O alvo desse método
era sugerir a razão como fonte de recurso, utilizada para distinguir o
verdadeiro do falso. A razão era estagnada no ser pensante. Para
sustentar seu método Descartes, resolveu colocar em questão tudo o que
apresentava o mínimo de incertezas.
98 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

Sempre com o desejo de encontrar uma certeza inquestionável,


seguia com seu pensamento reluzente, desligou-se das crenças
religiosas e partiu com entusiasmo ao encontro de outro fundamento, a
qual usou como principal arma a dúvida. Acreditava René Descartes, que
para pensar era preciso duvidar.
Portanto, não acabou. Tudo que ele queria era uma certeza para
seguir em frente, e duvidar de tudo o quanto confundia sua mente, era
preciso. Presenciou da sua primeira certeza, considerando a frase “eu
penso, logo existo”, como responsável, pelo seu verdadeiro
conhecimento. Isto é, o que facilitou seu pensamento adentrar outros
questionamentos e como escopo para seguir novas experiências.
Tendo como experiência própria, duvidar de todas as coisas para
chegar ao conhecimento verdadeiro, decidiu colocar Deus em apuros.
Achou se conveniente questionar Deus e chegou a pensar que poderia
ser um gênio maligno, ou um Deus enganador. Tomando o
conhecimento de si, chegou à conclusão que para existir teria que existir
alguém que poderia ser mais perfeito, e sendo assim só poderia ser
Deus, por quem tinha em mente ser de uma natureza perfeita.
A dúvida, porém, é um termo de grande relevância para a vida. Isto
é, o ser humano é dotado de razões. Entretanto a razão é ligada a
natureza, a qual existem seres humano com a capacidade de fazer
estimular o raciocínio e submeter a conclusões, tendo como destino agir
e pensar. Fato estes que podem causar dúvidas.
O que há de grande importância, na dúvida utilizada por René
Descartes, foi que ele assumiu um método com a intenção de organizar
os seus próprios raciocínios e trilhar em procura de uma certeza que o
pudesse garantir a todas as verdades. Isto é, duvidar para crer foi o
Aline Silva Alves; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 99

propósito de René Descartes, a qual sua missão foi desvendar


conhecimentos.
O pensamento de René Descartes continua a desempenhar um
papel fundamental em nossa sociedade contemporânea, inspirando a
abordagem crítica e questionadora que é essencial para lidar com os
desafios atuais. Sua ênfase na dúvida metódica e na busca contras.
Além disso, o legado de Descartes se estende ao campo da
cartografia e da tecnologia moderna, particularmente na utilização do
plano cartesiano. Seu método analítico influenciou não apenas a
filosofia, mas também disciplinas como a matemática, contribuindo
para o desenvolvimento de ferramentas como o GPS, que se baseiam em
princípios cartesianos para fornecer localização precisa.
A abordagem de Descartes, de duvidar para alcançar certeza,
representa uma chamada à reflexão crítica e à investigação constante.
Ele nos lembra da importância de não aceitar dogmas, de questionar o
status quo e de buscar a verdade com base na razão e na evidência. Em
um mundo inundado por informações muitas vezes contraditórias, a
mentalidade cartesiana continua a ser uma bússola valiosa para navegar
pelo oceano complexo da informação, promovendo uma sociedade mais
informada e resiliente diante dos desafios da era digital.

REFERÊNCIAS

BATTISTI, César Augusto. O Método de Análise Cartesiano e o seu Fundamento. 2010.


Disponível em: file:///F:/ARTIGOS%20USADOS%20COMO%20REFERENCIAS/
METODO%20DE%20ANALISE%20CARTESIANO%20E%20SEU%20FUNDAMNETO.pd
f. Acesso em: 04/06/18

BITTERCOURT, Joceval Andrade. Descartes e o Ceticismo. 2018. Disponível em:


file:///f:/artigos%20usados%20como%20referencias/descartes%20e%20o%20ceticis
mo.pdf acesso em: 03/06/2018.
100 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

DESCARTES, René. Discurso do método. Ed. São Paulo. Editora. Escala educacional 2006.

. Meditações Metafísicas. Ed. Em latim e em português. Editora. UNICAMP 2004.


JESUS, Luciano Marques de. A questão de Deus na filosofia de descartes. ed. Porto
Alegre: editora. EDIPUCRS, 1997.
REFLEXÕES INSPIRADAS NA OBRA
4
“PENSAMENTOS” DE BLAISE PASCAL
Lya Neanne Louzeiro Costa 1
Francisco Atualpa Ribeiro Filho 2

INTRODUÇÃO

O filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662) viveu numa época que


o império da razão reinava, nesse sentido, “demonstrou suas
habilidades quando, aos 18 anos de idade, inventou a calculadora. Como
matemático e físico, ele se converteu ao Jansenismo e se retirou para
Port-Royal. Com isso, denunciou em “Les Provinciales” a moral liberal
dos Jesuítas” (CABRAL, 2009).
Não obstante a modernidade ser permeada pelo racionalismo, um
gênio assustador contrária à faculdade suprema. Dessa forma:

[...] conforme Pascal, os filósofos que se contentam em denunciar a miséria


do homem – os céticos ou pirrônicos – estão enganados; o homem possui
também uma grandeza, e seria somente por isso que ele reconheceria a sua
miséria e que há uma ideia de verdade. Se nossa razão é impotente para
compreender os dois extremos (tudo ou nada) ela pode conhecer o meio,
algumas verdades no domínio científico; nisto ela é ajudada pelo coração,
que nos dá as intuições fundamentais sobre as quais ela constrói, em

1
Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí – UFPI; Licenciatura em Ciências Biológicas
pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI.
2
Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí; Licenciado em Filosofia pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie; Bacharel em Administração Pública pela Universidade Estadual do Piauí.
Especializações em: Docência do Ensino Superior (UNOPAR); Gestão Pública Municipal (UESPI); Gestão
Educacional em Rede EaD (UFPI); Licenciando em Letras Português pela Estácio. Atualmente é
orientador do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) da FCP e professor efetivo
da SEDUC-CE. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1491096614911103. E-mail: farf25@gmail.com.
102 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

seguida, suas demonstrações. Não se trata de certezas inabaláveis. Também


só ela não pode nos dar a fé em Deus. Então, que significa dar a fé pela razão?
(CABRAL, 2009, p. 33).

Pode-se afirmar que, na obra “Os Pensamentos” uma apologia da


religião cristã que fez sua defesa da religião cristã com o intuito de
converter os contrários ao pensamento religioso-católico e atingir
céticos. De acordo com Pascal, o homem é um ser miserável, um “nada
do ponto de vista do infinito universo, um tudo do ponto de vista do
nada, isto é, um meio-termo entre o nada e o tudo” (PASCAL, 2010, p.
35). Esse trabalho busca refletir sobre a ausência de inclinação no
percurso de alcançar a verdade, devido à razão humana ser traída pela
imaginação, e ainda a união entre fé e razão. Portanto, Pascal aposta
todas as fichas na existência de DEUS.

1. O CONTEXTO HISTÓRICO DA OBRA “OS PENSAMENTOS” DE PASCAL

“Os Pensamentos” de Blaise Pascal foi escrito no século XVII, em


um contexto histórico marcado por profundas transformações
culturais, políticas e religiosas na Europa. Pascal, um cientista e filósofo
francês, viveu durante o período conhecido como o século da razão, que
viu o surgimento do Iluminismo. No entanto, o autor também
testemunhou as tensões entre a razão e a fé, destacadas pela Reforma
Protestante e pela Contrarreforma Católica. Este ambiente de conflito e
busca por equilíbrio entre a razão e a espiritualidade influenciou
significativamente os “Pensamentos”.
A obra reflete a complexidade do pensamento de Pascal, que
explorou questões existenciais, a natureza humana e a relação entre
ciência e fé. Seus escritos expressam um profundo ceticismo em relação
à capacidade da razão humana de compreender completamente a
Lya Neanne Louzeiro Costa; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 103

existência, ao mesmo tempo em que defendem a necessidade da fé como


uma resposta à incerteza e ao mistério da vida.

1.1 PASCAL: O GÊNIO PRECOCE

Blaise Pascal teve uma vida curta, porém intensa, foi um


matemático e filósofo francês, nasceu em Clermont em 19 de junho de
1623 e morreu na cidade de Paris a 19 de agosto de 1662. Sua mãe morreu
quando tinha apenas três anos, Etienne seu pai e os irmãos foram morar
em Paris e acabou por decidir que seria ele próprio a ensinar os filhos.
Pascal foi um homem que viveu situações intensas e momentos
complicados como a dor da perda da mãe ainda criança, vida difícil logo
após a morte do pai, a doença, lidando com os mais pobres e a procura
da verdade em seus pensamentos.
A defesa da condição humana, nada mais é que aprofundar em
pontos que sejam individuais e sociais que constituem um conjunto de
pensamentos pessoais em detrimento do sofrimento humano e da fé em
Deus. O modelo pascaliano focou no estudo da condição humana e suas
relações com o mundo Paradoxal.
Gilberte Périer, irmã de Pascal conta que foi por esse tempo que
aprovou a Deus curar sua filha de uma fístula lacrimal que a afligia havia
três anos e meio. Essa fístula era maligna e os maiores cirurgiões de
Paris consideravam incurável; e, enfim, Deus permitiu que ela se
curasse tocando o Santo Espinho que existia em Port-Royal, e esse
milagre foi atestado por vários cirurgiões e médicos, e era conhecido
pelo juízo solene da igreja.
Era impossibilitado pelo seu pai de ir à escola, mas era considerado
um gênio por causa das respostas que dava a certas questões, mas,
sobretudo pelas questões que ele próprio levantava a respeito da natureza
104 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

das coisas, queria saber também a razão e o porquê de todas as coisas e


não se contentava com explicações superficiais, quando se deparava com
problemas não parava de pesquisar até encontrar a resolução.
A contribuição deste foi de suma importância para a ciência, pois
com 12 anos por si só descobriu a matemática, apesar de ter sido impedido
o contato com os livros pelo seu pai ele não desistiu. Então foi que Pascal
começou a se interessar profundamente pela religião, ele ficou bastante
emocionado com o milagre porque nele Deus era glorificado e porque
num tempo as pessoas não acreditavam na fé. Ele acreditava que a cura
da sua sobrinha e afilhada foi um milagre de Deus e foi assim que ele
começou a produzir vários pensamentos. Suas contribuições não foram
mais, devido a sua morte prematura aos 39 anos.
Pascal dedicou todos os seus esforços à aritmética, desenvolvendo
cálculos de probabilidade, a fórmula de geometria do acaso, o conhecido
Triângulo de Pascal e o tratado sobre as potências numéricas. Todo esse
esforço aliado à falta de descanso arruinou a sua saúde e ele caiu
gravemente enfermo. Nesse mesmo ano, após uma visão divina
abandonou as ciências para se dedicar exclusivamente à teologia. Durante
esse período publicou os seus principais livros filosófico-religiosos.
A elaboração da obra em sua versão original Pensées apresentou-se
como “Pensamentos” por volta de 1660, no convento de Port-Royal e
escrita por Blaise Pascal que relata sobre a religião e alguns outros
assuntos. Desse modo, o filósofo impulsionava sua rotina com anotações
espontâneas (insights) sem o compromisso e a pretensão de tornar-se
uma obra com essa magnitude. Os pensamentos eram descritos e
enumerados em pedaços de papel para proporcionar certa organização.
Esses fragmentos deixados por Pascal quiseram transmitir uma
mensagem de fé ao mundo e foram escritos em sua juventude quando
Lya Neanne Louzeiro Costa; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 105

foram acometidos por uma grave doença. Contudo, nas palavras de


Lebrun (1983, p. 07): “Toda apresentação de Pascal deve, no essencial,
apoiar-se nos Pensamentos (Pensées)”. Isso se deve ao “reagrupamento,
que foi operado após a morte de Pascal, dos pacotes de rascunhos que
ele deixara e que deviam servir para a redação da “Apologia da Religião
Cristã”, que ele projetava. Os “Pensamentos” é uma obra rica que
abrange uma ampla gama de tópicos, incluindo religião, filosofia, moral
e a condição humana.
A obra oferece insights profundos sobre a visão de Pascal sobre a
natureza humana, a fé religiosa e a busca da verdade. Dessa forma,
qualquer estudo sério sobre o pensamento de Pascal deve começar com
os “Pensamentos”, pois representam a síntese das ideias que ele
desenvolveu ao longo de sua vida. Lebrun (1983) ressalta a importância
desses rascunhos reunidos como a principal fonte para compreender a
filosofia de Pascal e seu compromisso com a apologia da religião cristã,
mesmo que ele não tenha vivido para ver essa obra concluída.

1.2 MARCAS DA VERDADEIRA RELIGIÃO

O mundo na visão pascaliana é um caos aos olhos do homem, pois


esse é capaz apenas de abstrair e gerir pouquíssimas regras e ainda de
forma obnubilada, tendo em vista, os infinitos que o rodeiam. Dessa
forma, segundo Atali (2003, p. 147):

Pascal, ao contrário, acha que o mundo é um caos por decifrar, um código a


desvendar. Entendeu [que] existem leis dessa desordem, leis do acaso, e que
estas nem sempre são lógicas, mas que é possível abordá-las estudando
muitos casos. Pois compreendeu que há uma ordem no caos do acaso. [...]
Compreendeu que o cálculo das probabilidades é o cálculo das ocorrências
106 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

de um acontecimento particular sobre um número infinito de casos. Daí


conclui que existe um elo entre o acaso e o infinito.

Pascal enfatiza um elo que conecta o acaso e o infinito, uma


conexão que se manifesta através do espírito humano, representado
pela razão. Ele acredita que esse espírito é concedido ao homem desde o
seu nascimento por um Ser onipotente que transcende a compreensão
humana. Assim, a razão e a fé se tornam aliadas essenciais na visão de
Pascal. Para ele, a fé é uma condição fundamental para a existência
plena e verdadeira, mesmo enquanto ele explora o mundo e busca
entender como viver por meio do processo de autoconhecimento.
Conforme Pascal (2010) a verdadeira religião está nele e somos
obrigados a amá-lo. Sendo que essa, não nos faz escolher entre as nossas
fraquezas e o nosso bem, mas nos aponta como nossos temores nos
impedem de alcançar, ou seja, buscar o nosso bem, por exemplo,
dinheiro, corrupção que é inserida no homem pelo pecado. Há dois
pontos a serem mencionados para esse aspecto: o homem como ser
criado, a imagem da glória de Deus; e o homem como ser criador onde
modifica o alicerce de sua criação para glorificar- se a si mesmo,
igualando-se a Deus.
Nas palavras de Pascal (2010, p. 25),

Para mim, confesso que logo que a religião cristã descobre este princípio:
que a natureza dos homens é corrompida e decaída de Deus, isso abre os
olhos a ver por toda parte o caráter dessa verdade; com efeito, a natureza é
tal que assinala por toda parte um Deus perdido, quer no homem, quer fora
do homem.

A religião cristã exige do homem algo totalmente oposto à sua


natureza: rebaixar-se, aniquilar-se, para que se reconheça limitado,
Lya Neanne Louzeiro Costa; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 107

finito. Ao homem, possuidor de amor-próprio, que se vangloria de ser


grande em status social, detentor de grandes riquezas materiais e
virtudes, a religião lhe contesta estas glórias e aponta para o fato de que
ele só será realmente grande quando reconhecer que de nada valem
estas grandezas mundanas.
Segundo Gardies (1984, p. 118), o filósofo introduz um tema
fundamental: “podemos conhecer a existência de qualquer coisa da qual
nós ignoramos a natureza”. Por consequência, podemos conhecer a
existência de Deus sem sabermos o que Ele é. Ao lançar esse problema,
Pascal estremece a estrutura antropocêntrica-racionalista 3 existente na
época, pois o homem sem Deus torna-se um ser de vícios e entregue a
miséria; e com Deus, está na felicidade, na virtude e na luz divina.
Já em função de Cristo, Pascal (2010) passa a estabelecer a
verdadeira relação entre os dois Testamentos: O Antigo revelaria a
justiça de Deus, em virtude de que todos os homens seriam culpados
pelo cumprimento do pecado original; o Novo revelaria a misericórdia
e amor de Deus por sua criação cujo sacrifício santificou o coração do
homem, tendo assim, sua remissão.
Para Mondin (1998, p. 79):

O mecanismo e o racionalismo haviam esvaziado a noção de mundo físico,


as de bem e de mal e a necessidade de o homem encontrar um apoio exterior
a ele. Para Pascal, esse ponto de apoio não estaria situado nem na natureza
física, nem na natureza humana (razão), mas em Jesus Cristo. Desse modo,

3
Deve-se pontuar que, Blaise Pascal “foi exceção em sua época. Enquanto a maioria dos filósofos vivia
quase exclusivamente de herança de Descartes, o autor que defendia o racionalismo e a especulação
lógica, fria, clara e precisa aplicados a toda e qualquer forma de ciência, seja ela exata ou humana, Pascal
moveu, então, uma guerra encarniçada contra esses conceitos” (KOGEYAMA, 2014, p. 44). Porém, o
apologista é sutil e cauteloso, pois não cita em nenhum momento o mentor da geometria cartesiana
(René Descartes) onde pretende condensar tudo às ideias “claras” e “distintas” (PASCAL, 2010, p. 19, fr.
76-79).
108 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

somente a religião daria respostas plenamente satisfatórias às questões


colocadas pela condição humana.

O gênio precoce, Pascal é absoluto ao proferir que: só a religião


cristã, é apropriada a todos nós, pois essa ensinou que o homem nasceu
do pecado original e esse mesmo homem é a mais excelente das
criaturas e ao mesmo tempo a mais miserável. Várias religiões
contrárias bradam serem fidedignas ao projeto de Cristo, mas todas são
falsas, somente a religião cristã consegue unir as duas naturezas, a
divina e a humana, com isso consegue tirar o homem do pecado, da
corrupção para encontrar-se, reconciliar-se com Deus em sua pessoa
divina: “O Redentor”.

Confesso que um desses cristãos que creem sem provas não terá, talvez, com
que convencer um infiel que lhe alegra tal coisa. Mas, os que conhecem as
provas da religião provarão sem dificuldade que esse fiel é verdadeiramente
inspirado por Deus, embora não possa prová-lo ele próprio (PASCAL, 2010,
p. 33).

A religião cristã remete que os homens conhecem essas duas


naturezas, pois há um Deus que esses acreditam e idolatram, mas
também se deixam corromper e consequentemente acabam sendo
indignos de Deus. Nesse sentido, “é igualmente perigoso que o homem
conheça a Deus sem conhecer sua miséria, e conheça sua miséria sem
conhecer o Redentor” que pode curá-lo de suas mazelas (PASCAL, 2010,
p. 21).
Com isso, para conquistarmos a felicidade com Deus e consigo
mesmo, devemos amá-lo e respeitá-lo, ou seja, estar integralmente com
Ele, caso contrário estamos imersos nas trevas. Assim, o efeito de
recusá-Lo devido às jactâncias e “concupiscências nos impede de
Lya Neanne Louzeiro Costa; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 109

conhecê-lo e de amá-lo”. O apologista é radical ao evidenciar que em


“nenhuma religião do mundo a não ser a cristã existem remédios para
as impossibilidades e os meios de obtê-los” (PASCAL, 2010, p. 23). Ao
defender o cristianismo como sendo a excelência das religiões, o filósofo
incita os pagãos a encontrarem a resposta para tal problema.

1.3 PENSAMENTOS MORAIS, UM FLERTE COM MONTAIGNE

Os homens diferenciam as pessoas pelos grandes ou pequenos


nascimentos, (PASCAL, 2010, p. 117), ou seja, aqueles que nasciam das
grandes famílias eram por natureza honrados e os que nasciam de
famílias comuns eram os ignorantes. Os meios triviais os desprezam
dizendo que o nascimento não é um mérito da pessoa, mas do acaso.
De acordo com Pascal (2010, p. 117):

Existem certas pessoas que para fazer ver que estão errados quem não
estimá-las, que não se prive de alegrar exemplos de pessoas importantes
que se preocupam com elas. Eu vos queria responder: mostrai-nos o mérito
pelo qual essas pessoas vos estimam que nós vos estimemos igualmente.

A ciência possui dois aspectos que se convergem, a primeira é a


falta de conhecimento, ou seja, a ignorância natural na qual todos os
homens já nascem; a segunda nada mais é que aquela na qual descobrem
que eles não sabem nada e se encontram no mesmo estado ponto de
partida, mas é uma ignorância sábia que se conhece.
É visível a duplicidade em que Pascal (2010, p. 117) retrata a
condição e a forma de tratamento humano, por exemplo; “se faça
revisão chega um aleijado, deficiente não nos irrita e nem nos
incomoda, mas se chega um espírito aleijado nos irrita tanto?” E que o
aleijado reconhece que somos normais, perfeitos em relação a eles, já o
110 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

espírito aleijado é porque nós o aleijamos e não teremos piedade como


o primeiro e sim a raiva intensa do segundo.
Nesse sentido, “os vícios são como galhos que não escolhem o
tronco (homem) para existir, isto é, não importa a condição social, a cor
ou até a família. Existem vícios que nos tomam por outros e que tocam
o tronco sem se importar como são os galhos” (PASCAL, 2010, p. 118). Ele
compara os vícios a galhos que não escolhem o tronco (ou seja, o ser
humano) para existirem, aborda a ideia de que os vícios não fazem
distinção de condição social, raça ou origem. Em outras palavras, os
vícios podem afligir qualquer indivíduo, independentemente de seu
status social, étnico, ou histórico familiar. Essa visão de Pascal reflete a
compreensão de que os vícios são inerentes à condição humana e podem
afetar qualquer um.
Ao mencionar que existem vícios que “tocam o tronco” (o homem),
independentemente de como são os galhos (ou seja, a pessoa em si),
Pascal está ressaltando a universalidade da influência dos vícios. Os
vícios podem ser tentadores e prejudiciais, independentemente das
características individuais de uma pessoa. Isso nos leva a uma reflexão
sobre a fragilidade humana e a necessidade de reconhecer a presença
dos vícios em nossas vidas.
Pascal, em sua obra, frequentemente discute temas relacionados à
natureza humana, à fraqueza do homem e à necessidade de busca
espiritual. Nesse contexto, a citação ressalta a importância de lidar com
os vícios, buscando a virtude e autoaperfeiçoamento,
independentemente de quem somos ou de onde viemos. É uma chamada
à autorreflexão e à autotransformação, reconhecendo que a luta contra
os vícios é uma tarefa universal.
Lya Neanne Louzeiro Costa; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 111

A condição para a existência humana nesta terra, para Pascal (2010)


é paradoxal. Pois existe um dualismo presente em todas as coisas. Desse
modo, os aspectos contrários entre, por exemplo, quente-frio, devagar-
depressa, noite-dia, saúde-doença que nos levam à visão de uma
natureza dúbia, da existência de uma contradição primordial. O ânimo
intenso e a procura pela superação deste paradoxo nos levam a formular
uma série de possibilidades, que quando aceitas, nos trazem de volta ao
bem-estar e ao terreno seguro e constante do Ser.
Percebe-se que os discursos de humildade são de matéria de
orgulho e satisfação para as pessoas gloriosas e bem-sucedidas, ou seja,
falam que todos nós devemos ser humildes; como se eles fossem agora
à verdadeira humildade está sim nos humildes, por que eles são e agem
como tais. Percebemos que poucas pessoas falam de humildade
humildemente de forma a não prejudicar ou machucar o outro e
consequentemente acaba refletindo na vida de muitos
Sobre essa temática Montaigne reflete (1972, p. 229) o que endossa
o pensamento pascaliano:

Somos vítimas da inconstância, da irresolução, da incerteza, do luto, da


superstição, da preocupação com a morte, inclusive o de depois da morte,
da ambição, da avareza, do ciúme, da inveja, dos apetites desregrados e
insopitáveis, da guerra, da mentira, da deslealdade, da intriga, da
curiosidade. Pagamos, pois, bem caro a tão decantada razão de que nos
jactamos, e a faculdade de julgar e conhecer, se a alcançamos, é à custa do
número infinito de paixões que nos assaltam sem cessar.

Tal assertiva destaca a ideia de que os seres humanos são


frequentemente dominados por suas paixões, apesar de sua capacidade
de raciocínio, um tema que também é explorado por Blaise Pascal em
suas Pensées. O homem em sua miséria com ar de bonança esconde-se,
112 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

camufla-se, destrói-se a todo o instante por meio de mentiras,


duplicidades, hipocrisias. Diante disso, Montaigne realiza uma reflexão
profunda sobre a condição humana e as muitas fraquezas que a afligem.
Ele argumenta que os seres humanos são vítimas de uma série de
emoções, características e paixões que podem ser altamente
perturbadoras e influenciar suas ações e decisões. Algumas das ideias
podem ser extraídas desse excerto de Montaigne que aborda temáticas
que reforçam o pensamento pascaliano, a saber:
Inconstância e Irresolução: Montaigne observa que as pessoas são
frequentemente inconstantes e irresolutas, o que significa que podem
mudar de opinião e tomar decisões vacilantes.
Incerteza: A incerteza é uma característica humana comum. As
pessoas muitas vezes duvidam e se questionam sobre as coisas.
Preocupações Variadas: Ele lista várias preocupações que afetam
os seres humanos, desde a morte e a vida após a morte até a ambição, a
avareza, o ciúme e a inveja.
Paixões Desregradas: Montaigne menciona apetites desregrados e
insopitáveis, o que se refere a desejos insaciáveis que podem ser
prejudiciais.
Aspectos Sociais: Ele também menciona características sociais
como a guerra, a mentira, a deslealdade, a intriga e a curiosidade, que
podem causar conflitos e complicações nas interações humanas.
O autor destaca que, apesar de a humanidade se vangloriar de sua
razão e capacidade de julgar e conhecer, o custo disso é o desafio
constante de lidar com todas essas paixões e fraquezas humanas.
Montaigne não desconsidera a importância da razão, mas ele enfatiza
que as paixões e as fraquezas humanas têm um peso significativo nas
vidas das pessoas.
Lya Neanne Louzeiro Costa; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 113

A visão de Montaigne sobre a natureza humana e sua


complexidade. Ele sugere que, apesar de nossa capacidade de raciocinar
e refletir, somos frequentemente dominados por uma miríade de
emoções e impulsos, que podem nos levar a ações e comportamentos
contraditórios. A autoconsciência e o entendimento de nossas fraquezas
podem ser o primeiro passo para lidar com elas e buscar uma vida mais
equilibrada e virtuosa. Montaigne, em suas obras, frequentemente
explora a psicologia humana e as complexidades da condição humana.

1.4 OS DOIS CAMINHOS: DOGMÁTICOS E PIRRÔNICOS

Os dois segmentos, os pirrônicos ou céticos afirmam que uma falta


de provas não constitui prova do oposto tem como objetivo sugar do
homem todo o conhecimento da verdade, mas não temos certeza desta,
pois os princípios é o da fé e da revelação que temos em nós. Já os
dogmatistas querem garanti-la sem duvidar dos princípios naturais,
dizem que conhecem a verdade tanto pelo raciocínio como pelo
sentimento e por sua inteligência.
Para Pascal, (2010, p. 81) pirrônicos e dogmáticos revelam que a
própria razão é como um vírus capaz de causar sua própria destruição.
Nessa perspectiva, a guerra entre os dogmáticos tendo a razão
fundamento de seus discursos; e os pirrônicos aqueles onde a razão é
mero instrumento desqualificado demonstra, com isso, que de fato esses
grupos perecem devido ao seu posicionamento radical perante os fatos.

Eis, pois, a guerra aberta entre os homens. É preciso que cada um tome
partido, que se renda ou ao dogmatismo ou ao pirronismo, pois quem
pensasse em conservar neutro será pirronista por excelência (157), essa
neutralidade será a essência do pirronismo, quem não está contra eles, está
certamente com eles (PASCAL, 2010, p. 82).
114 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

A natureza confunde os pirronenses e a razão confunde os


dogmatistas, mas certamente o homem vai à procura da verdade para
chegar à felicidade, pois todos os homens sem exceção desejam ser felizes,
quaisquer que sejam os diferentes meios que eles utilizam. Não há nada
que exista na natureza que seja capaz de tomar o lugar da felicidade dos
homens, seres, plantas, animais, doenças, vício, guerra e crimes.
Uns queriam buscar a felicidade na curiosidade das ciências, outros
na autoridade e outros nos grandes prazeres dos sentidos, mas na
verdade nossos instintos nos fazem perceber e sentir que é necessário
buscar nossa felicidade em nós mesmos. Frente a isso Pascal (2010, p. 85)
destaca que:

A primeira coisa que se mostra no homem, quando se olha para ele, é o seu
corpo, quer dizer certa porção de matéria que lhe é própria. Mas para
compreender o que ele é, precisa-se comparar com tudo o que existe ao
redor dele e o que o circunda a fim de conhecer os seus limites.

Pascal nos lembra que, embora o corpo seja a parte mais óbvia e
visível do ser humano, a verdadeira compreensão da natureza humana
requer a consideração de como os seres humanos se encaixam no
contexto do mundo ao seu redor. Essa abordagem relacional nos
convida a explorar as complexas interações entre os seres humanos e o
universo, destacando a importância de entender nossa existência em
relação ao mundo maior em que vivemos. É uma perspectiva que ecoa
muitos temas filosóficos, incluindo a relação entre o indivíduo e o
cosmos, a existência relativa e a busca da verdade. Diante disso,
Gouhier, (2005, p. 202) elucida que:

Por paradoxal que possa parecer, o pirronismo tem, enquanto crítica, um


valor positivo. Não só suas dúvidas são uma arma eficaz contra a tentação
Lya Neanne Louzeiro Costa; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 115

sempre ameaçadora que leva o homem a tomar-se como sobre-humano,


mas ajudam a desvendar a verdade sobre a condição do homem [...]. É por
isso que ao lado de breves notas restam alguns trechos relativamente longos
e cuidadosamente redigidos sobre o pirronismo.

Pascal manifesta certo apreço pelos resultados dos procedimentos


pirrônicos, que eram notáveis no livro Pensamentos como etapa
fundamental para o desenvolvimento de seu projeto apologético. A
argumentação pirrônica, favorável àquele que pretende tomar uma
postura correta na busca de Deus.
Assim, os dogmáticos pretendem ter conhecimento da verdade e
mostram bem que não podemos suspender universalmente o juízo, que
algumas crenças se impõem, mas se equivocam ao supor que estas
crenças possam ser fundamentadas. O ponto de Pascal é que toda
filosofia poderia se reduzir ou ao dogmatismo ou ao pirronismo,
posições contrárias entre si, mas o problema é que Pascal desenvolve
muito mais as forças dos pirrônicos do que as dos dogmáticos,
estabelecendo certo desequilíbrio favorável ao pirronismo.

2. RAZÃO: MAIOR GRANDEZA HUMANA

A razão é frequentemente considerada uma das maiores grandezas


humanas devido à sua capacidade única de análise, compreensão e
resolução de problemas. É por meio da razão que os seres humanos são
capazes de formular ideias abstratas, fazer inferências lógicas e
desenvolver conceitos complexos. A capacidade de raciocinar permite aos
indivíduos explorar o mundo ao seu redor, compreender relações causais
e buscar soluções inovadoras para desafios variados. A razão, portanto,
desempenha um papel fundamental no progresso humano,
impulsionando avanços científicos, tecnológicos e filosóficos. Ela é uma
116 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

ferramenta essencial para a tomada de decisões informadas, a resolução


de conflitos e o desenvolvimento de sociedades mais justas e equitativas.
Além disso, a razão também desempenha um papel crucial na
formação de valores éticos e morais. A capacidade de refletir
criticamente sobre a própria conduta e compreender as consequências
de ações permite aos seres humanos agir de maneira ética e
responsável. A razão, portanto, não apenas eleva a compreensão
intelectual, mas também contribui para o desenvolvimento de uma
consciência ética que sustenta relações interpessoais saudáveis, a
construção de comunidades coesas e a promoção do bem comum. Assim,
a razão se revela como uma força propulsora que não apenas amplia os
horizontes do conhecimento, mas também orienta a conduta humana
em direção a um caminho mais ético e significativo.

2.1 USO DA RAZÃO

A razão é o maior atributo, a maior qualidade que o homem possui


uma elevada categoria de magnanimidade, grandeza entre os seres
presentes no mundo, consequentemente o ponto principal que os
distingue dos outros seres. O animal ou a árvore, por exemplo, não
pensam em lançar-se da natureza eles apenas estão nela.
Através da razão, o humano passa a se autoconhecer e reconhecer
que há uma infinidade de coisas que os ultrapassam, sabendo e
buscando a dúvida de acordo com as necessidades, tendo assim uma
elevada autoconcepção da razão. Segundo o pensador, se contrariam os
princípios da razão, a nossa religião será utopia e ridícula.

A última tentativa da razão é reconhecer que há uma infinidade de coisas


que a ultrapassam. Revelar-se-á fraca se não chegar a conhecer isso. É
preciso saber duvidar onde é preciso, afirmar onde é preciso, e submeter-
Lya Neanne Louzeiro Costa; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 117

se onde é preciso. Quem não faz assim não entende a força da razão
(PASCAL, 2010, p. 29).

A capacidade de raciocinar e racionalizar a realidade, ou seja, agir


com a razão e perceber o meio em que vive em todos os aspectos acabam
proporcionando ao homem o maior êxito, tendo como ponto de partida
sua imensa curiosidade em conhecer as coisas. Pascal inicia afirmando
que a “última tentativa da razão” é reconhecer que existem aspectos do
conhecimento e da realidade que estão além de sua capacidade de
compreensão. Isso aponta para a humildade intelectual e a modéstia da
razão diante da vastidão do universo e da complexidade da vida. Ele
argumenta que a razão deve reconhecer suas próprias limitações e
fraquezas. Isso é essencial para evitar a arrogância intelectual e a crença
de que a razão pode explicar e resolver todos os mistérios da existência.
Pascal destaca a ideia de que a razão humana tem seus limites, e a
verdadeira força da razão reside em sua capacidade de reconhecer essas
limitações. Ao duvidar, afirmar e se submeter de maneira apropriada,
os seres humanos podem usar a razão com sabedoria e humildade,
evitando tanto o dogmatismo quanto o ceticismo extremo, e buscando
um equilíbrio na busca do conhecimento e da verdade.
A razão assume para o homem nada mais e nada menos que
possível investigação e indagação, ou seja, o homem não se contenta
com as simples perguntas ele vai além, busca e questiona sempre o
porquê das coisas também buscando a dúvida de acordo com as
necessidades, as necessidades vão aparecendo e eles vão buscando
dentro dos seus próprios limites. Com isso, o conhecimento científico
tem respostas para imensas perguntas só se desenvolve e se constitui
por meio da razão. Por meio desta, o ser humano também tem a
118 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

capacidade e a pretensão de se autoconhecer, ou seja, conhecer,


investigar e se aproximar de si mesmo.

2.2 AS RAZÕES DO CORAÇÃO PASCALIANO

A razão e o coração possuem métodos e objetivos de estudo distintos


que consequentemente possuem vertentes e métodos distintos de
almejar o conhecimento. Por exemplo: a razão está em busca do
conhecimento científico, lógico, ou seja, aquele que tem respostas
testadas e comprovadas de várias formas e maneiras, algo certo, concreto,
já o coração busca pelo sobrenatural, o mundo sensível, algo de momento,
o puro sentimento. De acordo com Pondé (2001, p. 108):

O coração torna-se um modo mais profundo de chegar ao objeto para o qual


o homem se volta inevitavelmente, que é Deus, pois é Sua graça [...] que cria
o campo de possibilidades para o surgimento da conversão. O convertido é
objeto de Deus, e não o contrário. Tomado pelo Amor por Deus, ele entra no
universo do conhecimento de Deus.

São através dos objetos que é transmitido sentimentos que vai para
o coração que percebemos e sentimos nossas percepções, do que nos
rodeia primeiramente parte das emoções e logo depois vem em forma de
sentimentos. Sendo Deus a fonte de inspiração de tudo, todavia, o que
sentimos, por exemplo, as emoções passam a instigar o nosso corpo; logo
depois chega ao nosso consciente, a seguir ele trabalha e reage de acordo
com os impulsos que são mandados, isto é, nós as sentimos, e por último
debatemos sobre esses determinados assuntos que foram sentidos.
Pascal (2010) destaca a importância dos “conhecimentos dos
primeiros princípios” que surgem do conjunto de percepções e emoções.
Esses conhecimentos fundamentais não são estritamente racionais,
Lya Neanne Louzeiro Costa; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 119

mas são percebidos através do coração e dos sentimentos. A famosa


frase “O coração tem razões que a razão desconhece” resume a ideia de
que a compreensão e percepção do mundo não se limitam à razão pura.
Os sentimentos, emoções e intuições desempenham um papel
significativo na formação de crenças e entendimento da realidade. Isso
sugere que a experiência humana vai além da capacidade lógica da razão
e que os aspectos emocionais desempenham um papel crucial na busca
do conhecimento e na compreensão do mundo que nos cerca.
O coração dá estrutura, ou seja, constrói o pedestal, a base onde a
razão vai se firmar. Ele elucida que as emoções afloram no homem
sentimentos e atitudes que a própria razão não consegue compreender,
por exemplo, às vezes ele se depara com situações que o correto é agir
com a razão de forma sistemática de acordo com os princípios, mas
acaba fazendo o contrário, agindo com a emoção do momento,
consequentemente perdendo a cabeça os sentidos. Quando isso ocorre,
a razão deixou de dominar o homem e sim a emoção.
A distinção entre as palavras “razões” e “razão” feita por Bessa é
fundamental para compreender a abordagem de Pascal. Ele ressalta que
“razões” se referem aos motivos do coração, ou seja, às emoções e
paixões que influenciam nossas escolhas e ações. Por outro lado, “razão”
denota algo separado do coração, representando a consciência
intelectual e moral que busca a lógica e a objetividade. Pascal reconhece
que o ser humano é governado tanto por motivos racionais quanto por
impulsos emocionais, e essa dualidade é essencial para entender a
complexidade da natureza humana e a busca pelo conhecimento e pela
verdade. Essa distinção lança luz sobre a ideia de que, em muitos casos,
a razão e as emoções podem entrar em conflito, influenciando nosso
120 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

pensamento e a tomada de decisões de maneiras variadas e complexas.


Nas palavras de Bessa (2006, p. 25):

As palavras razões e razão não têm o mesmo significado, indicando coisas


diversas. Razões são os motivos do coração, enquanto razão é algo diferente
de coração; este é o nome que damos para as emoções e paixões, enquanto
‘razão’ é o nome que damos à consciência intelectual e moral.

Há uma luta que se repete e se presencia constantemente no ser


humano, a luta entre as razões do coração, ou seja, as paixões e as razões
da consciência. É uma disputa que nunca se acaba; razão e emoção, às
vezes uma se sobressai melhor que a outra e em alguns momentos são
confundidos e em outros diferenciados. Nesse sentido, compreender
essa luta interna é crucial para o desenvolvimento pessoal e moral. Não
se trata de uma simples dicotomia, mas sim de uma complexa interação
entre emoções e razão que molda a identidade e a conduta humanas.
Portanto, o desafio está em equilibrar essas duas forças, reconhecendo
quando cada uma é apropriada e buscando uma harmonia entre o
coração e a mente, a fim de tomar decisões informadas e éticas em
nossas vidas. É uma jornada constante de autoconhecimento e
autodomínio.

2.3 MISÉRIA E GRANDEZA DO HOMEM

Percebe-se que todos têm ideias diferentes, pois, uns pegam a


grande tarefa de exaltar o homem descobrindo suas grandezas e os
outros de tornar mais baixo, ou seja, rebaixá-lo apontando suas
misérias. O importante é que cada um expressa sua opinião e diz que a
miséria do homem se conclui da sua grandeza e a sua grandeza se
conclui da sua miséria pode se concluir com a miséria para tentar
Lya Neanne Louzeiro Costa; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 121

provar a sua grandeza; e outros acham melhor concluir com a grandeza


para tentar provar a sua miséria.
Eles são exaltados uns sobre os outros, como num círculo e acabam
percebendo que na verdade, no homem estão a miséria e a grandeza. O
homem é tão grande que sua grandeza se reconhece miserável, pois
todas as suas misérias provam sua grandeza. Pascal reflete sua
perspectiva única sobre a natureza do ser humano e sua relação com o
pensamento. Ele argumenta que é possível conceber um ser humano
sem certas partes do corpo, como mãos, pés ou até mesmo a cabeça,
desde que a experiência prove que é através do pensamento que o ser
humano existe e se distingue.
Essa visão destaca a primazia do pensamento na definição da
humanidade, sugerindo que a capacidade de pensar é o que
verdadeiramente nos torna humanos. Pascal reconhece a mente como o
núcleo da identidade humana, separando-a do corpo e suas limitações.
Essa perspectiva desafia as concepções convencionais de corporeidade
e identidade, enfatizando a importância do intelecto e da consciência na
compreensão da natureza humana. Nas palavras de Pascal (2010, p. 87):

Eu posso bem conceber um homem sem mãos, sem pés e eu o conceberia


mesmo sem cabeça, se a experiência me provasse que é por ela que ele
pensa. É, pois, o pensamento que faz o homem e sem o qual eu não o posso
conceber.

O homem possui uma situação de grandeza perante os seres no


mundo, o que difere e os qualificam deles é a capacidade de possuir a
razão, ou seja, esta é a maior grandeza natural que se desenvolve. Mas o
ser humano também é um ser miserável, pois ele é vítima das
122 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

circunstâncias e das condições que vivem. Com isso, Pascal (2010, p. 86)
pontua que

O homem não é senão um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço


pensante. Mas, ainda que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais
nobre que aquilo que o mata, pois ele sabe que morre e a vantagem que o
universo tem sobre ele.

Pascal esclarece que os homens puderam inventar para se


tornarem felizes. E os que se divertem simplesmente para mostrar a
vaidade e a pequenez dos divertimentos dos homens. Eles conhecem, na
verdade, uma parte de suas misérias. O homem se torna cada vez mais
ambicioso, e possui um poder imenso de encontrar prazer nas coisas tão
pequenas e tão desprezíveis que não são necessárias para nossas vidas
e sim coisas supérfluas.

O homem tem um instinto secreto que os leva a procurar o divertimento e


a ocupação por fora, que vem do ressentimento da sua insatisfação
contínua. Eles têm outro instinto secreto que resta da grandeza da sua
primitiva natureza, que os faz conhecer que a felicidade não se perpetua no
repouso (PASCAL, 2010, p. 97).

O homem passa a reconhecer que este é tão infeliz pelo simples fato
de conhecer suas próprias condições naturais e fraquezas. Esses dois
instintos formam um projeto confuso no interior da alma, agindo como
um ser miserável e como um ser grandioso, ora um, ora outro. Pascal
sobre os instintos humanos revela uma dualidade inerente à natureza
humana. Ele descreve o homem como impulsionado por dois instintos
secretos. O primeiro, motivado pela insatisfação constante, leva as
pessoas a buscar distrações e ocupações externas, como uma forma de
escapar do vazio ou da falta que sentem. O segundo instinto, que
Lya Neanne Louzeiro Costa; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 123

remanesce da grandeza inata do ser humano, sugere que a felicidade


não pode ser alcançada através do repouso ou da inatividade.
Portanto, essa visão de Pascal ilustra a complexidade da condição
humana, na qual os seres humanos são impelidos por desejos
conflitantes, buscando incessantemente o contentamento e a
realização, enquanto também reconhecem a transitoriedade da
felicidade. Essa dualidade, segundo Pascal, é um aspecto fundamental
da experiência humana, moldando nossa busca por significado e
felicidade.

3. FÉ E RELIGIÃO: POSSIBILIDADE DE REALIZAÇÃO HUMANA

A reflexão sobre a fé e a religião é intrínseca à possibilidade de


realização humana, segundo as ideias de Blaise Pascal. O pensador
argumenta que a busca por uma conexão transcendental é inerente à
natureza humana, preenchendo um vazio existencial que vai além das
dimensões puramente racionais. A fé, nesse contexto, não é apenas uma
expressão de devoção a princípios divinos, mas uma âncora emocional
que confere significado e propósito à existência. A religião, por sua vez,
oferece um arcabouço moral e ético que orienta as ações humanas,
proporcionando um sentido de comunidade e pertencimento. Pascal,
através de suas obras, sugere que a realização plena do ser humano é
alcançada quando há uma sincera adesão à fé e à prática religiosa,
fornecendo uma base sólida para enfrentar os desafios da vida.
No pensamento de Pascal, a realização humana na esfera da fé não
é apenas uma questão de conformidade ritual, mas sim uma experiência
profunda que transcende as limitações puramente materiais. Ele
enfatiza a necessidade de se entregar à fé não como uma mera
formalidade, mas como uma jornada interior que transforma a
124 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

perspectiva individual. Para Pascal, a busca espiritual e a conexão com


o divino não apenas nutrem a alma, mas também moldam o caráter
humano, oferecendo consolo diante das incertezas da vida. Assim, a
realização humana, na visão pascaliana, é inseparável da busca pela
transcendência através da fé e da expressão religiosa, proporcionando
um alicerce sólido para a jornada existencial.

3.1 PENSAMENTOS SOBRE OS MILAGRES

De acordo com Pascal (2010) existem dois tipos de milagres, aqueles


que mostram os fatos como verdadeiros e aqueles que mostram fatos
falsos que consequentemente seriam descartados. É necessário antes
que se perceba se o milagre nega ou não a Deus, pois caso contrário
proibia-se acreditar nos milagres. Antes, pois, que se veja um milagre, é
preciso se converter ou procurar estranhas marcas do contrário. É
preciso ver se o fato nega Deus ou Jesus Cristo.

Se o determinado milagre não fosse realizado na frente das pessoas, o


milagre não era aceitável. Quando na sua plenitude de fé não se adore,
glorifique ou acredite em Deus como o criador, como o princípio de todas
as coisas e apesar de tudo o ame a frente de tudo e todos, segundo Pascal
toda religião é falsa, pois não dá para se conceber milagres a aqueles que
desprezam a doutrina de Deus. Os homens devem a Deus receber a religião
que ele envia. Deus dá aos homens o meio de eles não serem induzidos ao
erro (PASCAL, 2010, p. 102).

Pascal destaca a importância da manifestação divina na aceitação


de uma religião. Ele argumenta que, para uma fé ser genuína e
verdadeira, ela deve estar embasada em evidências tangíveis, como
milagres realizados diante das pessoas. A fé não pode ser forçada nem
concebida em um vácuo; em vez disso, requer a adoração, glorificação e
Lya Neanne Louzeiro Costa; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 125

amor a Deus como o princípio de todas as coisas. Pascal ressalta que


qualquer religião que não se baseie na doutrina de Deus e que não
apresente sinais tangíveis de Sua existência é falsa.
Ele acredita que Deus, em Sua misericórdia, proporciona meios
para evitar o erro na busca da fé verdadeira, e isso inclui a demonstração
de Seu poder por meio de milagres. Assim, a autenticidade da religião
está intrinsecamente ligada à experiência pessoal e à revelação divina,
e aqueles que desconsideram essa verdade não conseguem compreender
plenamente a fé. Pascal enfatiza a necessidade de aceitar a religião que
Deus envia, apoiada por evidências claras de Sua existência, como meio
de evitar o erro espiritual.
Para Pascal (2010, p. 103) existe uma vasta diferença entre tentar e
induzir um erro. O que ocorre é que Deus tenta, mas de forma alguma
induz ao erro. Pode se dizer que o ato de “tentar” ao erro nada mais é
que levar mostrar, ocasiões que não impõe ao homem determinada
necessidade, já o ato de induzir ao erro é persuadir, ou seja, colocar o
homem na própria necessidade, que consequentemente acaba caindo ao
erro.
Pascal, ao destacar a diferença crucial entre tentar e induzir ao
erro por parte de Deus, reforça a importância de Sua ação
misericordiosa na busca da fé verdadeira. Nesse contexto, Deus, ao
tentar, oferece oportunidades, demonstra Sua existência e deixa pistas
que possibilitam que os indivíduos escolham o caminho da fé, mas sem
impor uma necessidade absoluta. Ele não obriga ninguém a acreditar,
permitindo que a livre vontade humana desempenhe um papel vital na
busca da verdade espiritual. Em contrapartida, induzir ao erro
envolveria persuadir fortemente e deixar a humanidade sem
alternativas, o que não está de acordo com a misericórdia divina.
126 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

Portanto, a distinção feita por Pascal salienta que a busca da fé genuína


é um ato voluntário e que Deus oferece as ferramentas e as evidências,
mas respeita a liberdade de escolha de cada indivíduo, garantindo que
Sua graça seja acessível, mas não imposta.

3.2 VAIDADE DO HOMEM

A todo o instante nós os seres humanos não estamos nem um pouco


contentes com a vida que temos, sempre queremos estar nos iludindo,
querendo viver algo que não existe, ou seja, tinha imaginação de outras
vidas e acabamos trabalhando incansavelmente para permanecer a ideia
imaginária.

Nós somos tão presunçosos que queríamos ser conhecidos em toda a terra
e mesmo daqueles que virão quando nós não estivermos mais aqui. E nós
somos tão vaidosos que a estima que nos rodeia nos ilude e nos deixa
contentes (PASCAL, 2010, p. 89).

O homem se glorifica independente da condição financeira, da


postura e do status que ele possui, a vaidade está entrelaçada, enraizada
no coração do ser humano, como diz Pascal (2010. p. 89), “um servente
de pedreiro, um auxiliar de cozinha e um carregador querem ter seus
admiradores. E apesar das nossas misérias, temos instinto que sempre
nos eleva, nos deixa afogar na vaidade”. Pascal lembra de que,
independentemente da posição social ou do status, a vaidade é uma
característica inerente ao ser humano. Isso ressalta a complexidade da
natureza humana, pois mesmo em meio às imperfeições e humildade,
ainda se busca por reconhecimento e admiração.
Pascal destaca a universalidade da vaidade e como ela pode se
manifestar em todos nós, independentemente da nossa situação na
Lya Neanne Louzeiro Costa; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 127

sociedade. Portanto, é importante reconhecer e compreender essa


característica como parte da condição humana.

Desde criança a vaidade já nos rodeia, sonhamos com uma profissão e


desprezamos todas as outras que não lhes convém, mas nem sempre a
profissão escolhida é a que conseguimos seguir por causa de uma série de
fatores, mas é onde está à vaidade, alguns têm vergonha da sua própria
profissão, acham que estas os inferiorizam. A curiosidade nada mais é do
que vaidade. É mais comum não querer do que querer falar. Não se viajará
sobre o mar pelo simples prazer de vê-lo, sem esperança e sem se comunicar
jamais com alguém (PASCAL, 2010, p. 90).

O ser humano tem uma curiosidade em conhecer e sonha a todo o


momento com aquilo que não é nosso e acaba deixando escapar o que
realmente é de posse dele e que dá sustentação em sua vida. A
curiosidade maior é como vai chegar ao futuro, mas sabemos que não
tem nenhuma segurança de que chegará nele. Pascal aborda a vaidade
desde a infância, destacando como desde tenra idade somos
influenciados por ideias de status e profissão. Muitas vezes, as pessoas
escolhem carreiras não por paixão, mas para satisfazer sua vaidade ou
buscar aprovação social. Isso pode levar à insatisfação e à vergonha
quando a realidade não corresponde às expectativas.
Além disso, ele menciona a curiosidade, que descreve como uma
forma de vaidade, indicando que muitas vezes buscamos informações
não por genuíno interesse, mas para nos destacarmos ou nos
comunicarmos com os outros. Essas reflexões de Pascal nos convidam a
considerar como a vaidade influencia nossas escolhas e a importância
de buscar significado e autenticidade em nossas ações e interesses.
128 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

3.3 O HOMEM PERANTE A NATUREZA

Quando oferece ao homem admirar algo logo ele se contempla,


admira a si mesmo, o seu corpo como algo de mais importante sem
nenhuma restrição, mas isso acontecer o homem tem de conhecer
primeiro o que está acima, abaixo e ao seu redor, ou seja, que contemple
a natureza. O homem se torna cada vez mais pequeno diante da vasta
imensidão que é a natureza.

Que não se limite, pois, a olhar simplesmente os objetos que o rodeiam. Que
se contemple a natureza na sua alta e plena majestade [...]. Ela se deixará,
acima de tudo, de conhecer o que a natureza lhe oferece. Tudo o que nós
vemos do mundo não é senão um traço imperceptível no amplo seio da
natureza (PASCAL, 2010, p. 85).

Blaise Pascal nos instiga a transcender as limitações dos sentidos


e a enxergar além do que os olhos podem perceber. Ele nos convida a
contemplar a beleza e a grandiosidade da natureza que nos rodeia,
questionando nosso lugar no mundo. Ao fazer essa reflexão, torna-se
evidente que somos meros espectadores diante da vasta diversidade da
natureza, e o homem, em sua ambição, é o “objeto” mais desafiador e
intrigante. Afinal, somos capazes de compreender o corpo e o espírito,
mas frequentemente falhamos em entender sua conexão e os extremos
que representam. Pascal nos convida a uma jornada de
autoconhecimento e de apreciação da complexidade que nos envolve,
destacando a importância de ir além do superficial para apreciar
plenamente o mundo que nos cerca.
Lya Neanne Louzeiro Costa; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 129

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os escritos de Blaise Pascal revelam a profunda compreensão que


ele tinha da condição humana, explorando com clareza as
complexidades de nossa natureza. Ele nos conduz a uma reflexão sobre
a ambição, a busca egoísta de interesses pessoais e como enfrentamos
as misérias e grandezas da vida cotidiana. Ao analisar o comportamento
humano diante das realidades sociais e individuais, Pascal oferece
insights valiosos sobre o sofrimento humano e a fé em Deus.
Pascal nos faz enxergar como os seres humanos muitas vezes
buscam a felicidade inventando prazeres e divertimentos, revelando a
futilidade de muitas dessas atividades. Ao destacar nossa ambição
crescente, Pascal nos faz refletir sobre a capacidade de encontrar
satisfação nas coisas mais triviais e supérfluas, muitas vezes
negligenciando o que é essencial em nossas vidas.
O pensamento pascaliano centra-se na análise da condição
humana e sua relação com um mundo repleto de paradoxos. Suas obras
foram moldadas a partir de fragmentos que ele legou ao mundo,
transmitindo uma mensagem de fé que permaneceu inigualável. Vale
ressaltar que grande parte dessas obras foi escrita em sua juventude.
Blaise Pascal também nos lembra da notável diferença que nos
distingue dos outros seres, especialmente os animais. Ele destaca a
grandeza inerente à posição do homem no mundo, ressaltando que
nossa capacidade de raciocínio é o que verdadeiramente nos qualifica e
nos diferencia. Pascal nos convida a uma profunda autorreflexão sobre
o que nos torna únicos e a importância de nossa razão na experiência
humana.
130 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

REFERÊNCIAS

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Imagens de Descartes e Pascal. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 131-168.

BESSA, Karla Cristina. Por que ser moral?. São Paulo: Loyola, 2006.

CABRAL, M. C. L. S. A Relação entre Razão e Fé na Filosofia de Blaise Pascal. Tese de


Doutorado, Universidade de São Paulo, 2009.

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GOUHIER, Henri. Pascal: com dois ensaios sobre o paradoxo em Pascal. Edições 70, 2005.

KOGEYAMA, M. S. Blaise Pascal e o paradoxo do cristianismo. Edições 70, 2014.

MONDIN, B. O Homem à Procura de um Sentido: Contribuição à Filosofia da Religião.


Editora Loyola, 1998.

MONTAIGNE, Michel de. Ensaios (Les Essais). Edições 70, 1972.

NASCIMENTO, Jussara dos Santos. Paradoxo do homem: um estudo sobre a condição


humana em Pascal. Disponível em: http://www.dfmc.ufscar.br/uploads/
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PASCAL, Blaise. Pensamentos. Edições 70, 2010.

PONDÉ, Luiz Felipe. Filosofia para corajosos. São Paulo: Leya, 2001.
ÉTICA E POLÍTICA EM NICOLAU MAQUIAVEL
5
América Dayana de Carvalho e Guedes 1

Francisco Atualpa Ribeiro Filho 2

INTRODUÇÃO

O atual momento em que a sociedade se encontra é de grande


importância que se reflita acerca do comportamento ético e a conduta
moral do indivíduo num cenário de tanta corrupção. Através do
presente estudo, busca-se abordar a ética na visão de um dos maiores
filósofos da história – Nicolau Maquiavel. A teoria de Maquiavel gera
intensas discussões pela forma como está rompe com um modo
medieval de ver a política como extensão da moral.
Em sua obra este filósofo mostra como verdadeiramente agem os
políticos e ainda ressalta como estes deveriam agir para garantir o
poder ou mantê-lo. Um importante aspecto tratado na teoria de
Maquiavel diz respeito ao que faz parte do plano público e do privado,
segundo ele a política se encontra no plano público tendo em vista que
busca a vontade do “povo”, enquanto o privado refere-se à ética em si e
se faz parte do plano privado. É nesse sentido que gera a maior polêmica
em relação à teoria de Maquiavel, pois de acordo com essa visão, os fins

1
Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí – UFPI.
2
Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí; Licenciado em Filosofia pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie; Bacharel em Administração Pública pela Universidade Estadual do Piauí.
Especialização em: Docência do Ensino Superior (UNOPAR); Gestão Pública Municipal (UESPI); Gestão
Educacional em Rede EaD (UFPI); Licenciando em Letras Português pela Estácio. Atualmente é
orientador do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) da FCP e professor efetivo
da SEDUC-CE. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1491096614911103. E-mail: farf25@gmail.com.
132 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

justificam os meios, e dessa maneira o “governante” pode agir da


maneira que for necessária para alcançar seus objetivos.
A verdade é que o conceito de ética, bem como o comportamento
ético sempre foi tema de discussões no campo da filosofia e nas demais
ciências que se preocupam com a forma como o homem vive e interage
com os demais.
Assim, o objetivo geral deste estudo é contribuir com as discussões
no cenário acadêmico acerca do pensamento de Nicolau Maquiavel em
relação à ética e a política e propor aos alunos do Ensino Médio reflexões
acerca do comportamento ético e político. Constituem-se em objetivos
específicos: Compreender os conceitos de ética e política de maneira
geral e analisá-lo à luz da visão de Nicolau Maquiavel; Analisar
comparativamente o pensamento maquiavélico em detrimento ao
pensamento de filósofos contemporâneos acerca da ética e filosofia.
Justifica-se a escolha por essa temática pautando-se no
entendimento de que levando- se em consideração que o país vive uma
crise política que tem afetado diversos setores da sociedade, é
imprescindível que se proponha reflexões acerca da ética, do
comportamento ético em especial no contexto político. Diante disso,
entender a visão de Maquiavel sobre essa temática contribui
amplamente para o desenvolvimento de um pensamento crítico, por
isso é relevante no ambiente escolar, dentro da disciplina de Filosofia se
abra um espaço para a compreensão acerca da forma como a visão deste
importante pensador influenciou a conduta ética na sociedade atual.
Como já citado anteriormente, a ética é tema bastante debatido no
campo filosófico, e ao longo da história pensadores como Aristóteles e
Kant influenciaram na formação do pensamento contemporâneo acerca
da temática. No entanto, Nicolau Maquiavel constitui num dos
América Dayana de Carvalho e Guedes; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 133

pensadores de maior renome e prestou grande contribuição a sociedade


atual, em especial por se ocupar da ética no campo político. Em razão
disso busca-se por meio da presente proposta de pesquisa traçar a
trajetória a ser percorrida para alcançar a compreensão sobre esse tema
à luz do pensamento maquiaveliano.

1. NICOLAU MAQUIAVEL E A CIÊNCIA POLÍTICA

Antes que se entenda as contribuições de Nicolau Maquiavel para


o desenvolvimento da Ciência Política é importante que se compreenda
que foi esse importante pensador e de que forma este influenciou a
formação do pensamento ético e político da sociedade contemporânea.
Segundo Marques (2015, p. 03):

Nosso autor é considerado um humanista, nascido no que hoje é a Itália,


mais especificamente no Principado de Florença, desde muito cedo
trabalhou e estudou, embora considerado por muito de formação
deficitária. Sua obra principal, O Príncipe, escrito na renascença, conferiu
o status de um dos mais importantes pensadores italianos à Maquiavel.

Como se pode perceber, Maquiavel é italiano e sua juventude


remete ao período da Idade Média e como tal seu pensamento poderia
estar diretamente ligado às concepções dessa época, no entanto, ao se
estudar sua obra, o que se percebe é que seu pensamento contraria e
muito as crenças desse período. Diante disso,

Na conturbada Itália renascentista, Maquiavel considerou indispensável


romper com a tradição da ética medieval (cristã) e propôs uma nova conduta
capaz de fazer o governante manter o poder de Estado e perseguir seu
desiderato (GUIMARÃES, 2010, p. 39).
134 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

Perceba-se que como bem expõe Guimarães, Maquiavel não tinha


como objetivo reafirmar o pensamento da época, mas ao contrário, teve
a intenção de romper com a filosofia defendida até então, pois seu
objetivo era sugerir uma conduta do governante que mantivesse seu
poder diante do Estado não importando quais os meios seriam
necessários para isso. Eis aí uma das maiores críticas empregadas ao
pensamento de Maquiavel, a de que os fins justificariam totalmente os
meios empregados para a sua garantia.
Guimarães (2010, p. 42) afirma ainda que “nesta perspectiva,
Maquiavel desloca seu pensamento dos valores do Cristianismo”, mas
isso não significa, contudo, que despreze valores morais, mas é possível
se perceber que a orientação do filósofo é para que não se leve em
consideração apenas os princípios defendidos pela igreja, mas que sejam
analisados o comportamento do homem como um todo.
Isso torna um pouco contraditório as ideias por ele defendidas e
mais difíceis de serem compreendidas, e embora bastante questionada,
suas ideias embasam diversas teorias. Amaral (2012, p. 29) demonstra a
repulsa de Maquiavel diante do pensamento eticista propagado no
período clássico que teve sua repercussão no período medieval. Nesse
sentido, uma

[...] característica marcante do pensamento maquiaveliano é a rejeição


completa ao legado ético cristão da Medievalidade e a constituição de uma
moral laica de base naturalista. Isto vai nos levar à secularização da política,
movimento de ruptura com o pensamento político medieval que vinculava
política à religião, à Igreja. É, por romper estes laços da política com a
religião que Maquiavel entrou para a história como o fundador da ciência
política. Foi ele o primeiro pensador a tomar a política e analisá-la como
uma categoria autônoma (AMARAL, 2012, p. 29).
América Dayana de Carvalho e Guedes; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 135

Justamente essa ruptura com o pensamento ético cristão


defendido na Idade Média é o que confere a Nicolau toda a importância
que lhe é dada até mesmo na atualidade. Muito embora seja importante
que se compreenda que as o discurso dele em “O príncipe” se trata de
uma espécie de aconselhamento para que este permaneça no poder.
Embora esse estudo não se ocupe de “contar” a história de vida de
Nicolau Maquiavel, ao se compreender a realidade no qual ele viveu é
mais fácil entender suas ideias. De maneira geral, vale dizer que os
séculos XV e XVI foram períodos em que havia uma indefinição quanto
às estruturas de poder, as cidades começavam a crescer devido às
atividades mercantilistas que eram incompatíveis com a economia
agrária, e o feudalismo que embora permanecesse, começava a dar lugar
a novos conceitos e padrões.
Para Nedel (1996, p. 19), o pensamento de Nicolau Maquiavel foi
formado a partir da escola da vida e das lições que a própria história lhe
deu. Relata ainda a experiência do filósofo como Segundo Chanceler, em
sua pátria e no exterior, de acordo com o autor, essa experiência se
reflete em cada passo de sua obra, isso é o retrato de grandes líderes que
conheceu, bem como as lições que aprendeu.
Compreender a realidade vivida por Maquiavel é um pressuposto
para o entendimento de sua obra de maior nome. Muito embora haja
críticos severos acerca de seus escritos. Outro aspecto a ser levado em
consideração ao se ler e analisar O príncipe, diz respeito aos conceitos
de ética e moral, dos quais falaremos no tópico seguinte.
Antes de se compreender a ética na política de Maquiavel, que se
reflita sobre os conceitos de ética e moral, de maneira que ao se deparar
com as concepções do filósofo, estas sejam entendidas à luz do contexto
histórico em que o autor viveu. Conforme Japiassú (2002) pode-se
136 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

conceituar ética como: o estudo dos juízos de apreciação que se referem


à conduta humana suscetível de qualificação do ponto de vista do bem e
do mal, seja relativamente à determinada sociedade, seja de modo
absoluto. A moral é a regulação dos valores e comportamentos
considerados legítimos por uma determinada sociedade, um povo, uma
religião, uma certa tradição cultural.
A palavra ética que é derivada do grego ethos, assim como moral,
está relacionada com a morada humana, trata-se de um lugar que o ser
humano construiu para si mesmo, ou seja, algo que torna o ambiente
melhor. Percebe-se que por um lado a moral trata do conjunto de
valores estabelecidos como código de conduta de determinado meio
social, enquanto a ética trata de um ponto de vista pessoal de alguém
acerca do padrão de moral estabelecido.
Vázquez (2003, p. 22) pontua que:

A moral representa um conjunto de preceitos ou dogmas resultantes de


reflexões ante a realidade dos que a detêm. De modo distinto, a ética – que
o autor classifica como ciência autônoma – consistiria no estudo dos juízos
de valor que fundamentam aqueles preceitos, agregando-lhes um
sentimento de justiça, quando se respaldam os parâmetros da moral, ou de
injustiça, para repeli-los.

Ressalta-se que a moral ela varia de acordo com o ambiente, e é


influenciada pela cultura de determinado lugar, trata-se de um
entendimento relacionado à coletividade. Assim, o que pode ser
considerado imoral num dado contexto social, pode não ser em outro ou
numa outra época. A moral tem um caráter histórico, restrito, relativo
e prático. Ao passo que a ética é na verdade uma interpretação
individual da moral, uma maneira do indivíduo conceber as regras
morais de uma determinada realidade.
América Dayana de Carvalho e Guedes; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 137

Então o agir de maneira ética requer que o indivíduo pense a


respeito daquilo que ele quer, que pode e que deve ou não fazer. A ética
está relacionada com a interpretação da moral, e procura justificar a
moral, além de guiar a ação humana de maneira que essa ação seja feita
de maneira racional. O que Maquiavel propôs foi na verdade o
rompimento com a ética e a moral cristã medieval e propôs uma nova
conduta que garantisse que o governante mantivesse o seu poder de
maneira centralizada e que garantisse a ordem e a paz de todos os
indivíduos.

2. ÉTICA NA OBRA O PRÍNCIPE

A compreensão das ideias de Maquiavel é essencial para que se


compreenda o pensamento crítico moderno, isso porque ele foi um dos
primeiros a pensar, em sua análise política que o homem é capaz de ser
mal e que o governante precisa ser capaz de identificar isso e saber lidar,
razão pela qual é considerado como um dos mestres da surpresa.
A Itália do século XVI era um conjunto de cidades-estados
independentes, e não um país. Dada essa realidade Maquiavel
preocupou-se em compreender a política, e a construir um manual de
instrução para os governantes, lembrando que nessa época era bastante
comum esses tipos de escritos.
A obra O Príncipe mesmo após inúmeras traduções e edições, é um
livro que pode ser considerado pequeno, dado o fato de possuir em
média, de acordo com a edição, aproximadamente 100 páginas
distribuídas e 26 capítulos que apresentam as ideias numa linguagem
clara e objetiva, além de apresentar exemplos que facilitam o
entendimento do pensamento do filósofo.
138 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

Observa-se que já na dedicatória do livro, Maquiavel deixa claro as


intenções que ele consegue observar nas atitudes dos homens ao dizer
que aqueles que desejam agradar ao “príncipe” costuma trazer para ele
coisas que consideram caras e que são capazes de provocar o deleite, tais
como cavalos, tecidos, armas, pedras preciosas. Nesse sentido, com o
intuito de agradar ao governante, e que dadas as circunstâncias de sua
prisão só poderia lhe oferecer:

Desejando eu, portanto, oferecer-me a Vossa Magnificência com um


testemunho qualquer de minha submissão, não encontrei entre os meus
cabedais coisa a mim mais cara ou que tanto estime, quanto o conhecimento
das ações dos grandes homens apreendido através de uma longa
experiência das coisas modernas e uma contínua lição das antigas as quais
tendo, com grande diligência, longamente perscrutado e examinado e,
agora, reduzido a um pequeno volume, envio a Vossa Magnificência
(MAQUIAVEL, 2000, p. 04).

Percebe-se que o objetivo do envio da obra ao rei era uma forma de


agradá-lo e de fazê-lo conhecer as experiências e observações que o
filósofo havia concebido acerca dos homens e das coisas modernas.
Diante disso, ao se estudar “O Príncipe”, precisa-se ter em mente que os
valores e a maneira de se viver em sociedade eram muito diferentes da
forma que se vive atualmente, e esse é uma das razões pelas quais
passados séculos essa obra ainda permite diferentes leituras e
indagações dada a complexidade dos assuntos que são tratados.
O momento histórico em que sua obra foi concebida, Maquiavel
assim como outros, sofriam as consequências das lutas e das mudanças
que ocorriam na sociedade da época. O fato é que perdidos entre a fé e a
razão, muitos se viam obrigados a sacrificar a salvação de suas almas e
por amor salvar sua cidade.
América Dayana de Carvalho e Guedes; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 139

Para proclamar esse amor, para convertê-lo em verdade para si e para os


outros, Niccolò cria uma concepção moral e, mais, redimensiona o mundo
visível e invisível, equilibrando céu e inferno e abrindo espaço para um
mundo diferente (GRAZIA, 1993, p. 30).

A obra de Maquiavel não apenas reflete suas convicções pessoais,


mas também busca impor suas visões como uma verdade universal,
visando a salvação por meio da disseminação de suas ideias. Essa
disseminação pela Europa durante o Renascimento contribuiu para a
formação de uma nova consciência moral e ética, caracterizada por uma
clareza e objetividade exemplares. No entanto, essa exposição franca e
direta de Maquiavel encontrou resistência significativa por parte da
Igreja Católica, que na época detinha grande influência política e moral.
A obra foi proibida pela Igreja, uma vez que confrontava diretamente os
ideais que ela advogava, como a virtude e a concepção do governante
como alguém de caráter exemplar, dedicado ao bem-estar de seus
súditos.
A controvérsia em torno dos escritos de Maquiavel ressalta a
tensão entre as visões tradicionais sustentadas pela Igreja e a
emergência de uma abordagem mais pragmática e realista para a
política, representando um marco crucial na evolução do pensamento
político. A obra permite inúmeras interpretações diferentes, havendo,
portanto, aqueles que acreditam que a obra foi escrita apenas para
agradar a Lourenço de Médici e contribuir para que Maquiavel saísse da
prisão, há ainda os que acreditam que este é uma defesa do absolutismo
– embora não existisse o absolutismo na época em que foi escrito, e há
ainda os que creem que o livro é uma defesa de unificação da Itália.
Independentemente de quais sejam os motivos que levaram
Maquiavel a escrever essa obra, é inquestionável as contribuições da
140 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

visão maquiavélica para a formação do pensamento filosófico da


sociedade atual. Nedel (1996, p. 19) afirma que:

Maquiavel formou seu pensamento primordialmente na escola da vida e na


lição da história. A experiência que teve durante o exercício do cargo de
Segundo Chanceler, em sua pátria e no exterior, se reflete a cada passo em
sua obra. O retrato disso grandes líderes que conheceu, e suas lições,
aparecem nos seus escritos.

Diante do acima exposto, entende-se que as concepções desse


filósofo são baseadas em seu contexto social, em sua experiência de
vida. O pensamento de Maquiavel, embora bastante criticado, encontra
respaldo no contexto da época em que o pensador viveu. Nesse período
da história, a sociedade começa a viver uma crise de valores éticos e
morais, e a visão de Nicolau é afetada por isso naturalmente. A
importância de Maquiavel no desenvolvimento do pensamento ético e
político da sociedade contemporânea é notável, tanto que este
influenciou as reflexões de diversos filósofos da atualidade. Sobre isso
Reale (2003, p. 127) fomenta que:

Certamente, a brusca mudança de direção que encontramos nas reflexões


de Maquiavel, explica-se em larga medida pela nova realidade política que
se criara em Florença e na Itália, pressupõe grande crise de valores morais
que começava a grassar. Era não apenas a divisão entre “ser” (as coisas como
elas efetivamente são). E “dever ser” (as coisas como deveriam ser para se
conformarem aos valores morais), mas também elevava essas divisões a
princípios e a punha da nova visão dos fatos políticos.

A sua obra “O Príncipe” representa um marco no estudo acerca da


política, sendo, portanto, considerada o Primeiro Tratado sobre Ciência
Política e por isso, pode-se dizer que esta obra inaugurou esse campo na
ciência. Por isso, a abordagem de Maquiavel para a construção de suas
América Dayana de Carvalho e Guedes; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 141

ideias políticas representa uma marcante ruptura com a tradição


teológica e filosófica de sua época. Ao contrário de muitos pensadores
que se ancoravam na Bíblia e em obras clássicas para fundamentar suas
teorias, Maquiavel optou por uma abordagem dissidente, incorporando
o cenário político contemporâneo e sua própria experiência prática. Sua
obra reflete uma análise profunda e realista das dinâmicas políticas e
das questões emergentes de seu tempo, distanciando-se das
especulações abstratas. Sobre isso Guimarães (2010, p. 39) elucida que:

Maquiavel, contrariamente aos teólogos e outros pensadores que se


apoiavam na bíblia e em obras clássicas para elaborar suas teorias,
construiu suas ideias levando também em conta o cenário político de sua
época e a experiência real que teve ao interagir com as questões de seu
tempo.

Outro fator que deve ser considerado sempre que se analisa o


legado maquiavélico, diz respeito ao contexto histórico da época em que
o pensador viveu e a realidade do monarca daquele período. A ênfase de
Maquiavel na observação direta da política, aliada à sua disposição de
confrontar as realidades cruas do poder, estabeleceu um paradigma
influente que revolucionou a forma como a política era pensada. Essa
abordagem pragmática e contextual de Maquiavel contribuiu para a
formação de uma tradição política mais fundamentada na experiência
concreta e nas necessidades práticas do governo, marcando um
importante capítulo na evolução do pensamento político. Nas palavras
de Amaral (2012, p. 27):

Sobre as críticas mordazes dirigidas à Maquiavel, o que se pode observar é


que, de uma maneira geral, elas se baseiam exclusivamente na leitura d'O
Príncipe, e uma leitura feita, quase sempre de má-fé, tendenciosa,
142 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

recortando frases do texto para citá-las descontextualizadamente,


deturpando as ideias do autor.

De acordo com Aldallaqua (2006), na obra de Maquiavel fica


evidente que a política é um espaço de poder do qual depende a
existência de todos e que por isso tem prioridade em relação a todas as
coisas. Nesse sentido, a política funde-se com a realidade objetiva e
consequentemente com os problemas sociais que são reais, e desse
modo, a política precisa ser entendida como algo técnico e como tal usa
de estratégias, usando de leis próprias relacionadas à vida dos
indivíduos.
Em outras palavras, como o autor bem expressa, a política é
encarada por Nicolau como algo necessário à vida em sociedade e que o
governante para manter seu poder deve se valer de leis próprias que
nortearão a conduta de seus governados. Já no início da obra, em seu
capítulo Maquiavel (2000) explica a natureza de sua escrita, cuja atenção
estaria voltada para os principados, que delineou os princípios descritos
e discutiria a forma como eles deveriam ser governados e mantidos.

3. A ARTE DA CONQUISTA E A PERMANÊNCIA NO PODER

Na obra de Nicolau Maquiavel fica nítida a noção de liberdade que


é baseada nos princípios das ideias renascentistas, haja vista que ele
viveu nesse período, foi um diplomata e sabia exatamente como
funcionavam os instrumentos do poder. Para ele a liberdade
representava não ser escravo de nenhum outro povo, não sendo refém
da ação de nenhum outro estado. Essa noção de liberdade exige que o
ser humano conheça sua capacidade de agir e governar melhor, sem
pensar que algo miraculoso aconteça.
América Dayana de Carvalho e Guedes; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 143

Em “O príncipe”, Maquiavel (1996) pontua que se os homens fossem


bons toda a natureza de sua obra seria má. O que ele quer dizer é que o
homem em sua natureza é capaz de pensar coisas más e de articular
para manter o domínio sobre os outros. Ele subtrai a visão idealista que
se pregava sobre o homem e passa a falar dele de maneira realista,
exatamente como ele é, não apenas possuidor de virtudes, mas também
de defeitos.
Na política e na disputa pelo poder seria viável utilizar de todos os
meios que se fizessem necessários, assim, a política era vista de maneira
realista, onde seria possível usar das estratégias de persuasão e
conquista. Essa mesma visão de realidade ele emprega a forma do
homem viver é tão realista que ele diz que entre a maneira que se vive e
o ideal da vida é tão grande que uma pessoa que se ocupa mais com
aquilo que deveria fazer do que de fato com aquilo que faz, é na verdade
alguém que caiu na desgraça de preservar a si mesmo. E exemplifica
dizendo que “ora, um homem que de profissão queira fazer-se
permanentemente bom não poderá evitar sua ruína, cercado de tantos
que bons não são” (MAQUIAVEL, 2000, p. 13).
Ao se ler a obra sua principal obra que trata especificamente da
soberania do governante, a impressão que se tem é que Maquiavel era
calculista e mal, dizem respeito ao fato de ele pensar na política de uma
forma autônoma e soberana, desligada dos conceitos religiosos que
eram defendidos até então. De maneira geral o que pregava era que de
acordo com a necessidade o governante deveria agir para manter o
poder, incluindo-se a habilidade de conquistar e persuadir.
Ele tinha um entendimento da política que se pautava na realidade
dos séculos XV e XVI, onde o renascimento cultural pregava que haviam
saído da idade das trevas (Idade Média) e estavam renascendo para o
144 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

surgimento de novas ideias em todas as áreas. E Maquiavel também vai


contribuir com novas ideias em relação à política e ao governo, que até
então o pensamento disseminado era de que o governante teria que ser
uma pessoa virtuosa, que não mentisse, não roubasse e pensasse no bem
do próximo, e isso era porque a natureza havia feito o homem assim.
Percebe-se nesse fragmento que a instrução de Maquiavel para o
governante conquistador é que este imediatamente após ter
conquistado um território, deveria habitá-lo, pois assim seria mais fácil
de manter seus súditos em obediência. Pois visto que estes tinham uma
língua, leis e costumes diferentes era mais difícil de dominá-los. Sobre
isso, é válido lembrar que nesse período da história, a Itália ainda não
era um país, mas várias colônias com linguagem, costumes e leis que
eram próprias de cada região.
Outra estratégia apontada pelo autor de O príncipe seria instalar
colônias em um ou dois pontos, como se fossem grilhões do estado. E
conclui afirmando que as colônias não geram tantas despesas, e que
seriam mais fiéis, pois ofendem menos e os prejudicados não podem
causar mal, caso se tornem pobres e dispersos. E diz ainda que os
homens precisam ser acarinhados ou eliminados, porque são capazes de
se rebelar vingando-se por pequenas ofensas.
A estratégia seria no caso ofender de uma maneira que não fosse
possível executar uma vingança. Percebe-se que não haveria meio
termo. Aqueles que se opusessem ao governante deveriam ser
neutralizados, pois assim não haveria rebelião. Por isso, ele sugere
ainda que nas colônias houvesse forças militares, mesmo que isso
custasse muito, pois a própria colônia produziria o dinheiro que seria
gasto com isso.
América Dayana de Carvalho e Guedes; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 145

Embora pareça contraditório, pois as ideias de Maquiavel


defendiam o poder absoluto do rei, a liberdade individual também era
defendida no absolutismo. Tanto que em “O Príncipe”, ele defende que
o rei não deve se “importar-se com a má fama de cruel para manter seus
súditos unidos e leais” (MAQUIAVEL, 1996, p. 123). Mais uma vez fica
evidente a máxima de que os fins justificariam os meios, e nesse aspecto
deveriam ser empregados os meios necessários para que se garantisse a
autonomia do governante não importando que esse levasse a fama de
cruel, desde que fosse alcançado o objetivo ter súditos unidos e leais às
ideias que o governo defendia.
Para o filósofo, essas ações deveriam ser empregadas, pois com
certeza isso evitaria uma desordem que poderia se instalar e atingir
toda a nação, ao passo que uma ação do rei atingiria uma única pessoa.
Dessa forma, a liberdade individual está relacionada ao fato de o
indivíduo ser livre para escolher obedecer às ordens do rei e estar
consciente de que sua ação de obediência contribuiria para o bem de
toda a nação.
Esse é um pensamento que não se vê presente nas ações das
pessoas na sociedade atual onde cada um pensa exclusivamente em seu
próprio benefício e ao final todos acabam por sofrer as consequências
de uma atitude individual. Para Maquiavel, o governante hábil deveria
equilibrar a Virtude e a Fortuna para que assim pudesse garantir seus
interesses. No entanto, para que esse equilíbrio fosse possível, o
pensador sugeriu que os valores morais impostos pela fé e pela
sociedade não poderiam restringir a ação do rei. Com isso, Nicolau
Maquiavel promoveu a cisão entre Moral e Política tecendo sua célebre
frase, onde pregava a ideia de que “os fins justificam os meios”.
146 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

A frase “os fins justificam os meios” é frequentemente associada


ao pensamento do filósofo e político italiano Nicolau Maquiavel. No
entanto, é importante observar que Maquiavel não expressou essa frase
exatamente nos termos populares em que a conhecemos. Em sua obra O
Príncipe (Il Principe), Maquiavel discute a política e a ação do
governante, e ele aborda a questão da moralidade e da necessidade de
um governante tomar medidas que, em certos casos, podem ser
consideradas moralmente questionáveis. Maquiavel argumenta que, em
certas situações, os líderes políticos podem precisar tomar decisões
impopulares ou recorrer a meios que, à primeira vista, parecem
injustos, a fim de alcançar objetivos políticos desejados, como a
estabilidade do Estado.
A referida ideia se tornou uma interpretação simplificada e
popularizada do pensamento de Maquiavel e é frequentemente usada
para descrever uma abordagem pragmática ou realista à política, onde
a moralidade pode ser sacrificada em nome de objetivos políticos. No
entanto, é importante lembrar que Maquiavel não estava defendendo a
imoralidade, mas sim discutindo os desafios morais que os líderes
políticos enfrentam em suas decisões e ações.
Em sua obra, Maquiavel sempre fala de atitudes que visam o
equilíbrio nas atitudes do governante e, neste caso, esse equilíbrio entre
a fortuna e a virtude não deveria ser apenas uma característica do
governante, mas das pessoas de modo geral. Uma reflexão cabível diz
respeito ao fato de que uma sociedade corrupta não se tornou corrupta
pelo governo que rege um povo, mas pelo povo que instituiu o governo.
Portanto, de nada adiante se requerer uma conduta reta por parte do
governo se os seus “súditos” se corrompem.
América Dayana de Carvalho e Guedes; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 147

Acerca disso Hobbes (2002, p. 137) concorda com o italiano ao


afirmar que “o direito de punir com castigos corporais ou pecuniários,
ou com a ignomínia, a qualquer súdito, de acordo com a lei que
previamente estabeleceu”. Isso porque o objetivo maior deveria ser a
paz, o bem-estar, a segurança e o equilíbrio dos seus súditos fosse
mantido, e para que isso acontecesse seria permitido qualquer atitude
que justificasse o fim que se desejava alcançar o bem-estar de todos.
O que acontece com as ideias de Maquiavel e de inúmeros outros
pensadores, é que há sempre posicionamentos a favor e contra, mas o
fato é que esses pensamentos estão intimamente relacionados com a
realidade do momento, com o contexto histórico, muito embora os
problemas e dilemas de uma dada época tenda a se repetir em outra.
Viroli (2002, p. 27) argumenta que:

Enquanto nos palácios nutriam a arrogância das grandes famílias e a


corrupção dos costumes, a inexistência de um exército bem disciplinado
colocava a liberdade de Florença em perigo constante. Para defender e manter
o domínio sobre outras cidades da Toscana, os Florentinos recorriam aos
chefes mercenários e às milícias, que, se tivessem a oportunidade de lucrar
mais passando ao campo inimigo, faziam-no sem vacilar.

O pensamento de Maquiavel é norteado pela situação na qual vive,


e nesse sentido, o poder do monarca era limitado, pois o rei vivia à
mercê dos costumes e da religião. Dallaqua (2006), afirma também que
a Itália renascentista era palco de grande confusão, onde imperava a
tirania de pequenos principados que eram regidos por ideias
tradicionais e direitos incontestáveis. A ilegitimidade do poder gerava
situações de crise e instabilidade permanente, onde somente o cálculo
político, a astúcia e a ação rápida e fulminante contra os adversários
eram capazes de manter os príncipes.
148 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

Esmagar ou reduzir à impotência a oposição interna, atemorizar os


súditos para evitar a subversão e realizar alianças com outros
principados constituíam o eixo da administração. Como o poder se
fundava exclusivamente em atos de força, era previsível e natural que
pela força fosse deslocado, deste para aquele Senhor. Nem a religião,
nem a tradição, nem a vontade popular legitimam e ele tinha de contar
exclusivamente com sua energia criadora. A ausência de um Estado
central e a extrema multipolarização do poder criavam um vazio, que as
mais fortes individualidades tinham para ocupar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente estudo buscou-se fazer uma abordagem quanto a ética


na visão de um dos maiores filósofos da história – Nicolau Maquiavel.
Este, sendo um dos pioneiros do Absolutismo que se desenvolveu na
Europa, propunha a separação entre a moral e a política no Estado
Absolutista. Essas teorias contribuíram para que uma nova perspectiva
se desenvolvesse em relação à política, ao estado e até mesmo em
relação à nação. O cerne do pensamento dele estava voltado para a
afirmação de que o rei sempre teria pessoas inimigas dispostas a
destruí-lo pela sua autonomia no poder que deveria ser absoluto, mas
que isso não era motivo para o rei ser considerado um tirano.
O termo “maquiavélico” é por vezes usado para se referir a alguém
que é considerado mau, e representa uma distorção em relação à obra e
as ideias de Nicolau Maquiavel que são por muitos como ruins para a
sociedade. É importante, no entanto, que se compreenda que as ideias
defendidas por ele estão relacionadas ao contexto no qual ele viveu, por
exemplo, a obra “O Príncipe” da qual se falou neste estudo foi escrita
num período em que este estava na prisão.
América Dayana de Carvalho e Guedes; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 149

Essas ideias são na verdade um marco na história das teorias


acerca da ética e da política, e geram intensas críticas tanto favoráveis
quanto desfavoráveis, mas é importante que se compreenda que as
teorias deste filósofo são pertinentes ao período histórico no qual este
viveu, e estão relacionadas com as experiências por ele vividas. O fato é
que estas ideias ao serem difundidas passaram a influenciar o
pensamento individual da época, sempre salientando que o
planejamento e a estratégia eram os elementos essenciais para que o
poder absoluto do rei fosse mantido. O livro é um manual de instruções
para os governantes da época, por isso é difícil de compreender quando
se analisa a obra de acordo com a sociedade contemporânea.
Uma outra defesa do filósofo diz respeito ao fato de que o
governante era livre para tomar qualquer atitude para que a paz, a
ordem e a harmonia de seus governados fossem mantidas, pois melhor
seria que uma única pessoa fosse punida do que todos sofressem as
consequências das atitudes erradas de uma única pessoa. Isso porque
para o convívio em sociedade vale a máxima de que o direito de um
termina quando começa o do outro.
O fato é que a ética e a moral na obra de Maquiavel estão
relacionados ao contexto da política, de certa maneira, o filósofo separa
a vida cristã da vida na política e é como se algumas atitudes possam ser
aceitas num dado contexto, mas em outro não. A série de conselhos que
Maquiavel dá aos monarcas através de sua obra, ao serem aplicados e
analisados de acordo com a moral e a ética da sociedade atual, é difícil
de ser concebida e é facilmente entendida por muitos como imoral e
antiético, mas dada a realidade no qual ele escreveu é facilmente
entendida e talvez aceita.
150 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

Chama-se a atenção para o fato de que é essencial que se observe a


obra de Maquiavel à luz do contexto da época em que ele viveu e da sua
realidade de vida, a concepção de estado no sentido de governo, pois ele
foi um dos primeiros a usar esse termo em relação ao governo. Embora
ele use a palavra príncipe, essa nomenclatura é usada não para designar
o filho do rei, mas para o governante.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Márcia do. Maquiavel e as relações entre ética e política. In: Ensaios
Filosóficos, v. 5, p. 25-37, 2012.

GUIMARAES, Carlos Nunes. Maquiavel e Max Weber: ética e realismo político. In:
Argumentos Revista de Filosofia, Fortaleza, v. 2, n. 4, p. 38-45, 2010. Carlos
Alexandre Michaello Marques.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução de Antonio Caruccio Caporale. Porto Alegre:


L&PM, 1999.

_______. O Príncipe. Tradução, Prefácio e notas de Lívio Xavier. Rio de Janeiro:


Ediouro, 2000.

_______. O Príncipe. Tradução de Edson Bini. 12ª ed., São Paulo: Hemus, 1996.

MARQUES, Carlos Alexandre Michaello. A ética em Maquiavel e suas implicações na


política. In: Enciclopédia: vol. 04, Pelotas, 2015.

NEDEL, José. Maquiavel: concepção antropológica e ética. Porto Alegre: Edipucrs, 1996.

SOUSA, Rainer Gonçalves. Absolutismo. Artigo disponível: https://mundoeducacao.


bol.uol.com.br/historiageral/nicolau-maquiavel.htm. Acesso em 12 de abr. de 2018.

VÁZQUEZ, Adolgo Sánchez. Ética. 24ª ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.
6
CISÃO ENTRE POLÍTICA E ÉTICA NA OBRA O
PRÍNCIPE DE NICOLAU MAQUIAVEL
Arnon Santana Fernandes Gama 1
Francisco Atualpa Ribeiro Filho 2

INTRODUÇÃO

“E nenhuma coisa dá tanta honra a um homem novo que chega ao poder do


que as novas leis e as novas ordens criadas por ele: estas coisas, quando são
bem fundadas e há nelas grandeza, tornam-no reverenciado e admirado”.
Nicolau Maquiavel.

Nicolau Maquiavel, figura central na transição entre a Idade Média


e a Renascença, transcendeu as barreiras do tempo e desafiou
concepções tradicionais ao estabelecer os fundamentos do pensamento
político moderno em sua obra magistral, “O Príncipe”. Nesse contexto,
é crucial contextualizar o pensamento de Maquiavel, compreendendo as
nuances entre o maquiavélico e o maquiaveliano, as características
distintivas do pensamento maquiaveliano no cenário Renascentista e a
acirrada querela entre seu pensamento e a tradição aristotélica.
Maquiavel, frequentemente rotulado como o arquiteto do
maquiavelismo, estabelece uma distinção sutil entre ser maquiavélico e
maquiaveliano. A primeira denota malícia e astúcia desenfreadas,

1
Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí – UFPI.
2
Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí; Licenciado em Filosofia pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie; Bacharel em Administração Pública pela Universidade Estadual do Piauí.
Especialização em: Docência do Ensino Superior (UNOPAR); Gestão Pública Municipal (UESPI); Gestão
Educacional em Rede EaD (UFPI); Licenciando em Letras Português pela Estácio. Atualmente é
orientador do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) da FCP e professor efetivo
da SEDUC-CE. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1491096614911103. E-mail: farf25@gmail.com..
152 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

enquanto a segunda reflete a pragmática aplicação dos princípios


políticos delineados em suas obras.
No cenário efervescente da Renascença, Maquiavel rompe com a
tradição ao abordar a política de maneira realista e desprovida de
ilusões. Seu pensamento, moldado pela observação atenta das
dinâmicas políticas da época, destaca a necessidade de adaptabilidade e
flexibilidade na condução do poder. Diante disso, a querela entre o
pensamento maquiaveliano e a tradição aristotélica revela-se como um
embate filosófico significativo. Enquanto Aristóteles defendia a
primazia da ética na política, Maquiavel desafia essa concepção,
enfatizando a imperatividade de ações pragmáticas para a manutenção
do poder.
Em “O Príncipe”, Maquiavel delineia a complexa teia das relações
políticas, explorando a governabilidade dos diferentes tipos de
principados. Sua abordagem pragmática destaca a eficácia sobre a
moralidade, estabelecendo um realismo político que transcende as
barreiras do tempo. Com isso, a dicotomia entre política e ética torna-
se evidente quando Maquiavel argumenta que, em determinadas
circunstâncias, a virtù política – a habilidade de agir eficazmente – pode
demandar a supressão de princípios éticos convencionais em nome da
estabilidade e da manutenção do poder.
A gênese etimológica da virtù, conforme explorada por Maquiavel
em “O Príncipe”, remonta à tradição romana, onde o termo era
associado à força, coragem e habilidade de um líder em conduzir seu
povo. Para Maquiavel, a virtù transcende a simples virtude moral,
incorporando elementos de astúcia, destemor e engenhosidade. Ela
representa a capacidade do governante de agir decisivamente em
conformidade com as exigências políticas do momento, muitas vezes
Arnon Santana Fernandes Gama; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 153

demandando ações que podem ser interpretadas como cruéis e


impiedosas. Essa concepção, inovadora para a época, redefine a virtù
como uma qualidade instrumental, moldada pelo contexto político em
constante transformação.
Por fim, examinaremos a herança política deixada por “O
Príncipe”. Como obra seminal, sua influência perdura, suscitando
debates sobre a natureza da política e a separação entre ética e ação
política até os dias atuais. Este artigo, portanto, buscará desvendar as
intrincadas camadas da cisão entre política e ética na obra de
Maquiavel, explorando suas implicações na teoria política, assim como
seu impacto duradouro na compreensão do exercício do poder.

1. CONTEXTUALIZAÇÃO DO PENSAMENTO DE NICOLAU MAQUIAVEL

A vida e obra de Nicolau Maquiavel são indissociáveis do


efervescente cenário da Renascença Italiana, um período de renovação
cultural, artística e intelectual que se estendeu do século XIV ao XVI.
Nesse contexto, Maquiavel emergiu como um observador perspicaz das
complexidades políticas da Itália fragmentada, composta por cidades-
estados e principados em constante competição.
A influência dos Medici, uma poderosa família de Florença,
permeou a trajetória de Maquiavel, que desempenhou papéis como
diplomata e político na República de Florença. Sua experiência direta
com as intrincadas dinâmicas políticas proporcionou a ele uma visão
única sobre a fragilidade da estabilidade política em meio à
fragmentação italiana.
As Guerras Italianas, conflitos envolvendo potências europeias,
trouxeram tumulto à região e moldaram as reflexões de Maquiavel
sobre estratégia militar e poder político. A instabilidade resultante
154 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

dessas guerras e a constante ameaça de invasões estrangeiras


provocaram a inquietação de Maquiavel, levando-o a explorar a questão
crucial de como um líder poderia manter o poder em um ambiente
político volátil.
A obra mais emblemática de Maquiavel, “O Príncipe”, publicada
postumamente em 1532, reflete seu pensamento maduro e pragmático.
Ao oferecer conselhos práticos aos governantes, Maquiavel rompeu com
a moralidade convencional da época, destacando a importância da virtù,
uma habilidade política astuta e adaptável, e da razão de Estado. Essa
abordagem, afastando-se do moralismo predominante, representou
uma inovação radical, estabelecendo as bases para a moderna teoria
política ao desvincular a política de princípios éticos rígidos.
Assim, Maquiavel, imerso nas transformações da Renascença,
forjou um pensamento revolucionário que desafiou concepções
tradicionais, influenciando profundamente a forma como entendemos
o exercício do poder e a interseção entre política e ética na
contemporaneidade.

1.1 DIFERENÇAS ENTRE MAQUIAVÉLICO E MAQUIAVELIANO

Com base nas ideias expostas em “O Príncipe”, houve a aplicação


do vocábulo maquiavélico atribuída injustamente a Nicolau, já que
defende a aplicação da ética na política. Desse modo, o termo remete-se
àqueles que fazem uso de atos desleais, imorais ou violentos para obter
vantagem sobre algo ou alguém. Tais ações visam uma finalidade: o
poder.
Para alcançar a finalidade almejada deve-se enfrentar e aniquilar
todos os obstáculos que estiverem no caminho. Segundo Aranha e
Martins (2009, p. 299) “como expressão dessa conduta, costuma-se
Arnon Santana Fernandes Gama; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 155

vulgarmente atribuir a Maquiavel a famosa máxima ‘os fins justificam


os meios’”. Porém, Maquiavel defende a utilização de meios éticos para
se chegar até lá. Daí dar-se-á a conceituação oposta, a maquiavélica:

Falamos num ‘poder maquiavélico’ para nos referir a um poder que age
secretamente nos bastidores, mantendo suas intenções e finalidades
desconhecidas para os cidadãos; que afirma que os fins justificam os meios
e usa meios imorais, violentos e perversos para conseguir o que quer [...]
esperando que os jogadores causem a si mesmos sua própria ruína e
destruição (CHAUÍ, 2012, p. 339).

Com isso, um dos diversos motivos pelos quais essa confusão tem
ocorrido é pelo pretexto de que Maquiavel está inserido em um grupo
de pensadores dos quais comumente se ouve falar, mas tampouco se
sabe sobre eles, ou seja, não se conhece a essência de seu conteúdo.
Nesse sentido, Martíns (1996, p. 23) acredita que:

O maquiavelismo antecede Maquiavel como repositório de práticas que


informavam a ação dos detentores do poder; ele simplesmente teria
sistematizado este conhecimento transformando-o em engenharia
operacional de governo.

Surge então, um pré-julgamento extremamente negativo de suas


ideias, construídos a partir de um conceito geral, do senso comum. Esta
negação, oriunda da leitura de apenas uma obra, a mais valiosa e
conhecida, que se destaca das demais: “O Príncipe”. Mesmo aqueles que
jamais a leram e nunca ouviram falar em Nicolau Maquiavel, cultivam a
existência desse conceito invertido.
O pensamento do autor é denominado maquiaveliano, por fazer
referência ao nome Maquiavel. O maquiavelismo tem função de orientar
e guiar o agir dos governantes tendo como referência as próprias
156 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

práticas do homem voltadas para o poder, conforme elucidado por


Bobbio, Matteucci e Pasquino (2000, p. 738):

É uma expressão usada especialmente na linguagem ordinária para indicar


um modo de agir, na vida política ou em qualquer outro setor da vida social,
falso e sem escrúpulos, implicando o uso da fraude e do engano mais que da
violência. ‘Maquiavélico’ é considerado, em particular aquele que quer se
mostrar como um homem que inspira sua conduta ou determinados atos
por princípios morais e altruísticos, quando, na realidade, persegue fins
egoísticos. Esta expressão constitui, portanto, na linguagem ordinária, uma
prova da reação que a doutrina de Maquiavel suscitou e continua suscitando
na consciência popular, e da tendência que considera essa doutrina como
imoral. Esta expressão, além disso, pode ser usada também em sentido
técnico, para indicar a doutrina de Maquiavel ou, mais genericamente, a
tradição de pensamento baseada no conceito de razão de Estado.

Além do uso comum, a expressão “maquiavélico” também pode ser


empregada em um sentido técnico para se referir à doutrina de
Maquiavel ou, de maneira mais abrangente, à tradição de pensamento
que se baseia no conceito de razão de Estado. Nesse contexto técnico, a
palavra carrega uma conotação mais neutra, indicando uma abordagem
realista e pragmática da política, muitas vezes dissociada de
considerações éticas tradicionais.
A utilização da expressão “maquiavélico” reflete não apenas uma
condenação moral na linguagem cotidiana, mas também uma
complexidade cultural e histórica relacionada à recepção da obra de
Maquiavel e à contínua tensão entre a ética e a política na reflexão
filosófica e na prática governamental. Porém, de maneira justa ou
injusta, o nome Maquiavel ecoou ao longo dos séculos como sinônimo
para o mal. Pois, mesmo em uma linguagem informal, é comum o uso
da expressão maquiavélico para caracterizar indivíduos com perfis
Arnon Santana Fernandes Gama; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 157

traiçoeiros e cínicos ao fazer uso da mentira e da má-fé como impulsos


a atingirem seus fins. Também se utiliza desta, para referenciar
falsidade, perjúrio e perversidade.
Essa interpretação negativa sugere uma associação direta entre a
abordagem política pragmática proposta por Maquiavel e práticas
manipuladoras ou antiéticas. Portanto, pode-se até mesmo inferir, com
base no que foi dito, que tal colocação se aproxima mais de apenas uma
generalização ao invés de uma verdade, de fato. Desse modo, é
indesejável que se faça uso da expressão, para atribuir a Maquiavel tal
descrição.

1.2 CARACTERÍSTICAS DO PENSAMENTO MAQUIAVELIANO NO CENÁRIO


RENASCENTISTA

No contexto em que Nicolau Maquiavel viveu (século XV), há


frequentes e intensas lutas pelo poder e uma profusão de ideias de
proporção gigantesca. No Renascimento, ideias que normalmente ainda
não havia a necessidade de surgir, estão eclodindo desenfreadamente.
Como por exemplo, a separação do Estado e Igreja. Chauí (2012, p. 338)
caracteriza o período renascentista:

Estamos no período conhecido como Renascimento, no qual se espera fazer


renascer o pensamento, as artes, a ética, as técnicas e a política que haviam
sido desenvolvidos antes que o saber tivesse sido considerado privilégio da
Igreja e os teólogos houvessem adquirido autoridade para decidir o que
poderia e o que não poderia ser pensado, dito e feito.

Na Itália, palco onde o Renascimento adquiriu seu auge, Maquiavel


dita sua ideia ao assumir que o Estado é a única organização capaz de
mobilizar todos os indivíduos, é um meio exclusivo que tem poder de
agir dentro da sociedade. Afirma que o Estado é laico quando nega a
158 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

origem de um ideal religioso em seu núcleo. Nessa perspectiva,


Vicentino (2000, p. 185) argumenta que:

No conjunto da produção renascentista começam a sobressair valores


modernos, burgueses, como o otimismo, o individualismo, o naturalismo, o
hedonismo e o neoplatonismo, mas o elemento central do Renascimento foi
o humanismo, isto é, o homem como centro do universo
(antropocentrismo), a valorização da vida terrena e da natureza, o humano
ocupando o lugar cultural até então dominado pelo divino e extraterreno.

O humanismo que surge nesse cenário vem assegurar a integridade


e dignidade do homem. Não somente pelo fato de ser posto no centro do
universo, mas, porque recolhe sua condição pela participação em Deus.
Nesse sentido, é descoberto, também, o valor da humanidade.
Mesmo pertencendo ao mesmo momento histórico, o pensamento
maquiaveliano foi distinto de todos os demais: como, por exemplo, os
teólogos, que se basearam na Bíblia e no Direito Romano, ou também,
os contemporâneos renascentistas que partiram das obras dos filósofos
greco-romanos. Maquiavel fez diferente ao aprofundar em sua teoria
política a própria experiência real de seu próprio tempo.
No que tange ao âmbito da teoria política, essa e outras linhas de
pensamento incitaram conflitos ao longo das décadas. Isso porque
Maquiavel foi “um estrategista do poder, diplomata atuante e pensador
das causas políticas de seu tempo” (BITTAR, 2008, p. 145). Estabeleceu
um conceito inovador de ética para a política, sendo o primeiro
pensador político da era cristã que sistematicamente analisou as
condições necessárias para manter-se e conquistar mais poder.
Hereditariedade, personalidade e virtude formavam o centro da
política, orientadas pela ideia de justiça e bem comum. Esse conjunto de
ideias e imagens é demolido por Maquiavel (CHAUÍ, 2012, p. 341).
Arnon Santana Fernandes Gama; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 159

Maquiavel atenta-se para a ideia de que as opiniões políticas antigas e


medievais eram incapazes de compreender o conceito de poder. E por
isso, uma nova concepção da sociedade e da política seria necessária
para a Itália, e, principalmente, para Florença.
Desse modo, Costa (2010, p. 162) assegura que:

O anseio por uma ordem política nova, em que o exercício do poder se


libertasse do determinismo das tradições, em que o julgamento crítico dos
subordinados fosse possível e em que houvesse o debate público, amplo e
aberto, foi revelado em diversas manifestações do pensamento
renascentista.

A questão política defendida pelo nosso pensador está


intimamente ligada à sua crença em que todas as coisas têm de ser como
são na realidade e não como devem ser. Reale e Antiseri (2003, p. 127)
expressam que, essa concepção é evidenciada em “O Príncipe”: “que
discute o princípio de que é necessário se ater à ‘verdade efetiva das
coisas’, sem se perder na busca de como as coisas ‘deveriam’ ser: trata-
se, em suma, daquela separação entre ‘ser’ e ‘dever ser’.”
De tal modo que, devam-se levar em conta algumas medidas que
um príncipe deve adotar para seu governo como, ser racional e manter
seu governo sobressaindo dos demais. Para alcançá-los, deve-se
devastar e residir neles, e ainda, deixar que crie suas leis e arrecade
tributo, erguendo um governo com uma quantidade mínima de
indivíduos.
Portanto, a diferença entre como se vive realmente e como se deve
viver influência para que o homem ignore a realidade do que é feito e se
oriente pelo que deve fazer, e para Maquiavel, este homem encontra-se
a caminho da autodestruição. Contudo, para um melhor entendimento
160 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

de suas obras e ideias, é essencial entender que a importância de Nicolau


Maquiavel na política está centrada no modo em que distinguiu a ética
e a política. Maneira pela qual, contrapunha as concepções tradicionais,
pois seu estudo foi baseado em fatos e não em meras ideias
preconcebidas.

1.3 A QUERELA ENTRE O PENSAMENTO MAQUIAVELIANO E ARISTOTÉLICO

No início da origem do pensamento, há o interesse no estudo do


agir humano e sua influência na pólis (cidade). Aristóteles é o primeiro
a explicar essa influência por meio de um tratado ético. Assim, por
muito tempo questionou-se a política apenas com intenção de analisar
o agir do homem político e este deveria postar-se de maneira
harmoniosa diante da sociedade.
A obra Ética a Nicômaco, escrita por Aristóteles, instaura o estudo
da ética. Este livro é tomado como referência aos ensinamentos éticos
do período clássico, embora tenha sido um estudo consideravelmente
fraco ao surgimento de Maquiavel, que levava em consideração os
valores de como as coisas são na realidade – o que recebe a denominação
de realismo maquiaveliano.
Apesar de ambos terem discutido sobre a ética, a ideia de
Maquiavel opõe-se à de Aristóteles, que definia a política como apenas
uma extensão da ética. Nicolau discutiu a política e seus fenômenos
sociais aplicando o método científico de Aristóteles à política.
Assim, na visão Maquiaveliana, a síntese da política era apenas
uma: alcançar e nutrir o poder, tendo como único fator de interesse a
característica de ser um homem calculista. O restante, como religião e
moral só importavam se fossem caminhos para a aquisição do poder,
cabendo ao bom político saber como agir a cada nova situação.
Arnon Santana Fernandes Gama; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 161

Ainda em relação às divergências entre ambos, Aristóteles


acreditava ser função do Estado garantir a felicidade e a virtude. Porém,
Maquiavel pensava o contrário. O Estado tem sua própria
funcionalidade e suas leis, não prepara os homens para o reino dos céus.
Maquiavel considera a política como uma técnica de conquistar o
poder e seu objetivo é somente o poder pelo poder. “A posição de
Maquiavel pode também ser resumida pela fórmula ‘a política pela
política’, que expressa sintética e plasticamente nada mais que o
conceito de autonomia” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 127). Já Aristóteles,
dita que o fim do poder é a concretização da justiça e moral, opondo-se
ao maquiavelismo, cuja finalidade é o próprio poder.
Nicolau Maquiavel é tido como o maior responsável por essa cisão,
que demonstra expressar de maneira mais forte as características de
sua obra. Deve-se considerar o grande conhecimento que o próprio
autor possui sobre a verdade das coisas. Pois, considera como
verdadeiro a condição atual das coisas, ao deixar de lado o estado de
como tais coisas poderiam ser.

2. O PRÍNCIPE: O REALISMO POLÍTICO E A ÉTICA

Escrito em 1513 – porém, publicado no ano de 1531, anos depois da


morte do autor – trata-se de uma tipologia de guia que discorre sobre a
arte de governar. Dedicado a Lourenço de Médici, esta obra tem gerado
várias interpretações distintas. Na visão de alguns, é tido como um
manual que se destina aos tiranos e totalitário e, para outros, surgiu
como a abertura para a tolerância étnica e religiosa.
Apesar disso, o objetivo básico de “O Príncipe” é de ser apenas um
guia espiritual de ensinamentos para um bom governo e direciona-se
ao bom governante, ou, a todo aquele que queira exercer um cargo de
162 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

direção, de mando. Isso porque quando Maquiavel escreve tal obra, na


verdade, quer se reaproximar do poder. Embora não sendo a intenção
direta, acaba por se tornar um tratado sobre a natureza humana.
“O Príncipe” expõe um tipo de sistema político no qual a finalidade
justifica todo o agir durante o percurso, ou seja, ‘os fins justificam os
meios’, em que tais meios devem ser dignos de merecerem o objetivo
final. Esse princípio, não é usado de forma direta na obra, como
também, jamais fora dito de maneira literal por Maquiavel, mas, se
tornou bastante conhecido, conforme pode ser interpretado na seguinte
passagem: “[...] por essa razão, um príncipe deve ter o crédito de
conquistar e manter seu estado, visto que os meios sempre serão
considerados honestos, e ele será louvado por todos [...]” (MAQUIAVEL,
1999, p. 83).
Dessa forma, o foco principal da obra é: para que permaneça no
poder, o governante (príncipe) tem de ter um preparo para enfrentar
qualquer consideração moral ou até mesmo desrespeitá-la. Quanto ao
governo, o país deve ter grande poderio militar – o que o torna forte –
e seu exército só pode confiar nos cidadãos de seu próprio país para não
se tornar fraco e vulnerável. A partir das reflexões maquiavelianas
inicia-se uma

[...] nova época do pensamento político: com efeito, a investigação política,


com ele, tende a afastar-se do pensamento especulativo, ético e religioso,
assumindo como cânon metodológico o princípio da especificidade do seu
próprio objeto, que deve ser estudado [...] de modo autônomo, sem ser
condicionado por princípios que são válidos em outros âmbitos, mas que só
indebitamente poderiam ser impostos à investigação política. A posição de
Maquiavel pode também ser resumida com a fórmula ‘a política pela
política’, que expressa sintética e plasticamente nada mais que o conceito
de autonomia (REALE; ANTISERI, 2003, p. 126-127).
Arnon Santana Fernandes Gama; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 163

Entende-se, portanto, que com a obra, Maquiavel abre espaço para


discussões acerca de valores éticos e políticos. Por isso, “O Príncipe”
mostra uma visão do homem e da política, que normalmente não é
encontrada nos livros. A citação de Bittar ressalta a ênfase de Maquiavel
na análise do que os homens efetivamente fazem quando estão no poder
e na compreensão das dinâmicas concretas da política. Essa perspectiva
distingue Maquiavel como um pioneiro, desviando-se das abstrações
filosóficas tradicionais para mergulhar na observação direta e no
entendimento prático dos acontecimentos políticos de sua época. Nas
palavras de Bittar (2008, p. 146):

O destaque que se costuma dar, em meio aos demais escritos de Maquiavel,


é para o texto que representa a suma de seu pensamento político, a saber, O
Príncipe (De principatibus). A preocupação de Maquiavel não está centrada
nem na lei natural, nem na lei ideal que poderia governar a política, mas
com que efetivamente os homens fazem e podem fazer ao estarem em
contato com o poder.

A rejeição da busca por uma lei natural ou ideal na política é um


dos traços distintivos do pensamento maquiaveliano. Em vez disso,
Maquiavel direciona sua atenção para a natureza humana tal como é,
considerando as ações concretas dos governantes e as circunstâncias
específicas que moldam o exercício do poder. Essa abordagem realista
representa uma ruptura significativa com a tradição política e filosófica
que o antecedeu, marcando Maquiavel como um precursor do
pensamento político moderno.
É como uma visão deturpada, um desencantamento para quem lê,
de que o governo não existe para fazer o bem aos cidadãos e resolver os
problemas da sociedade, para proteger os mais fracos e promover as
igualdades: social, racial e econômica. Maquiavel entende que quando
164 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

se trata de política e ser humano, não são válidos apenas conceitos e


explicações superficiais, deve-se compreender como as coisas
funcionam na política, ou seja, o modo como acontecem.

2.1 O GOVERNO E OS PRINCIPADOS

Nicolau Maquiavel foi o pioneiro em classificar o governo e dar


nome ao Estado, de tal modo que os gregos seriam a denominada pólis e
os romanos, a res publica. O Estado era governado por um ou por muitos
(não existindo diferenciação entre os ‘muitos’). Isso era uma
contradição da maneira como os gregos classificavam o Estado, pois
estes faziam uma análise das cidades helênicas para que a partir das
informações obtidas pudessem então, construir suas formas de
governo.
Na visão de Sadek (1997, p. 20) “Maquiavel sugere que há
basicamente duas respostas à anarquia decorrente da natureza humana
e do confronto entre os grupos sociais: o Principado e a República”.
Assim, essas formas opostas de governo atuam de modo que, o
principado era o reino e a república seria a aristocracia e a democracia.
A república romana (base para Maquiavel) tinha o equilíbrio dos
três poderes: monarquia, aristocracia e o povo, sendo assim considerada
como um governo misto. O equilíbrio da República advinha da
existência desses seus três poderes, cujos quais eram fundamentais
para aquisição de uma maior força governamental.
Neste caso, povo era quem garantia a longa vida de sua constituição
e da liberdade interna de seus cidadãos, visto que esta última era a
condição principal para um bom governo e para a estabilidade do
Estado. Quanto aos principados tem-se a distinção entre: principados
hereditários (baseava- se na lei de sucessão: de pai para filho) e
Arnon Santana Fernandes Gama; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 165

principados novos (conquista do poder por aqueles que ainda não eram
príncipes).
Nas palavras de Maquiavel (2001, p. 03):

Os principados são ou hereditários – nos quais o sangue de seu senhor vem


governado há longo tempo – ou são novos. Os novos ou são inteiramente
novos [...] ou são como membros anexos ao estado hereditário do príncipe
que os adquire. Os domínios assim formados estão habituados ou a viver sob
um príncipe ou a ser livres. E se adquirem ou com as armas de outrem, ou
com as próprias, graças à fortuna ou à virtú.

Com relação aos principados hereditários ressalta-se que havia


duas espécies deste. Em uma, os príncipes governavam sem
intermediários, ou seja, tinham o poder total; e noutra, governavam
com a intervenção da nobreza, isto é, não era um governo absoluto (que
possuía poder sobre tudo). Quanto aos principados novos podem-se
citar quatro espécies: na virtù, na fortuna, na violência e consentimento
popular. Destes, a virtú e a fortuna eram as formas mais duradouras.
Além disso, os principados podem também ser mistos, isso ocorre
quando são conquistas oriundas de outros Estados que foram liberados
por príncipes hereditários.
Diante disso, em conformidade com o pensamento maquiaveliano,
a conservação de principados previamente autônomos implica
estratégias que reflitam a astúcia política e a habilidade em manobras
pragmáticas. A primeira abordagem reside na prevenção da ruína do
principado, adotando uma postura realista e assertiva diante dos
desafios. Nesse contexto, é imperativo que o novo governante
identifique e elimine potenciais ameaças à estabilidade interna,
consolidando seu poder por meio de medidas eficazes. A consolidação
do controle político e militar é fundamental para preservar a
166 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

integridade do principado, evitando assim sua queda na anarquia e


desordem.
A segunda estratégia consiste na gradual implantação de um novo
governo, mantendo a fachada da continuidade legislativa. Ao introduzir
mudanças de forma gradual e dissimulada, o governante consegue
mitigar resistências e oposições, conquistando a aceitação gradual da
população. Essa abordagem sutil, que preserva as aparências enquanto
instaura uma nova ordem, permite ao líder consolidar seu domínio sem
despertar hostilidades imediatas, uma vez que as mudanças são
percebidas como uma continuação da tradição pré-existente.
Aqueles príncipes que chegaram ao poder por meio de crimes, em
geral, não ficam imunes do peso de seu delito, sendo então, tidos como
homens que não possuem virtudes. Pois, os principados construídos da
conquista de armas e fortunas de outros não conseguem ser mantidos.
Na verdade, esse príncipe não tem poder, quem realmente governa todo
o Estado é somente aquele que foi o dono da fortuna, conforme será
explanado ao longo do capítulo III, deste estudo.
Por outro lado, há ainda, o principado civil, que é definido quando:

Um cidadão particular se torna príncipe de sua pátria, não por atos


criminosos nem outras violências intoleráveis, mas pelo apoio de seus
concidadãos (o que se pode chamar principado civil; para alcançá-lo, não é
necessário ter muita virtú, nem muita fortuna, mas antes uma astúcia
afortunada) (MAQUIAVEL, 2001, p. 43).

Assim sendo, há os chamados eclesiásticos. Estes principados são


advindos por virtude ou fortuna e mantidos pela religião, e por isso não,
tem a necessidade de serem defendidos. Esse tipo de principado é
considerado muito seguro e feliz já que seu poder pode ser ampliado
Arnon Santana Fernandes Gama; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 167

apenas com virtudes e armas. Apesar da existência de tipologias de


principados, cada um deles deve possuir uma ética de governo própria,
o que garante o sucesso e permanência do poder.

2.2 POLÍTICA E ÉTICA COMO FINALIDADE DO GOVERNO

Maquiavel analisa que há uma distinção entre a moral política e a


privada, pois o agir político deve ser entendido a partir de
circunstâncias vividas e obtendo resultados na busca do bem. Trata-se
então de uma nova moral que se baseia no princípio do qual o que
importa é o bem da comunidade, sendo dever do príncipe manter-se no
poder a qualquer custo.
Assim sendo, a ética maquiaveliana tem por análise o resultado que
as ações possam ter, ou as consequências delas para o meio político.
Toma-se como finalidade do ato de governar os meios políticos
utilizados para alcançar e se manter no poder.
Tal postura leva a considerarmos Maquiavel como um político
imoral que defende tiranos e corruptos. Porém, o que é proposto em “O
Príncipe” é a construção de uma ética individual, sem descartar a moral
própria da ação política, cuja qual não deve ser orientada pela moral em
si, mas em função do resultado dela. Assim, depreende-se que “o campo
da política se configura na existência do conflito entre a dimensão
privada e a pública, na medida em que o homem é um ser social”
(MARIA; SOUZA, 1995, p. 154). Já que a ação política se volta para a
sobrevivência de um grupo ou comunidade, e não de um indivíduo
adotado como isolado, desconsiderando-o como um ser social.
A visão política imposta por Maquiavel é relevante por colocar em
discussão o poder através da distinção de classes na sociedade, ou seja,
seu foco era o poder se formalizando através do Estado, sendo a
168 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

sociedade um meio de o indivíduo ter participação no Estado. Realça


que, os pontos da ética política têm de ser revistos de acordo de como as
circunstâncias acontecem e visando fins coletivos, para a comunidade.
Seguindo essa ideia, para que a política seja feita de fato seria necessário
compreender todo o sistema envolvido. Com isso, o desafio para o
príncipe, então, está em fazer uso da fortuna e da virtú.

3. ALCANCE E PERMANÊNCIA NO PODER

O alcance e a permanência no poder ao longo da história estão


intrinsecamente ligados a uma complexa interação de fatores sociais,
econômicos e políticos. No cenário de regimes autoritários, por
exemplo, líderes muitas vezes buscam consolidar seu poder por meio de
estratégias que incluem o controle da mídia, a manipulação da opinião
pública e a supressão de dissidências. A capacidade de manter-se no
poder está diretamente relacionada à habilidade de gerenciar alianças
políticas, assegurar apoio de grupos-chave e, em alguns casos,
perpetuar a lealdade através de mecanismos de repressão.
A permanência no poder pode, por vezes, ser caracterizada pela
manutenção de um equilíbrio delicado entre o apoio popular e o
controle institucional. Governantes que conseguem estabelecer uma
narrativa coesa, promover políticas que beneficiem determinados
setores da sociedade e, ao mesmo tempo, neutralizar potenciais
ameaças internas, tendem a prolongar sua permanência no poder. No
entanto, é importante ressaltar que essa estabilidade pode ser efêmera,
pois as dinâmicas sociais e políticas estão constantemente sujeitas a
mudanças, podendo levar a transformações rápidas e imprevisíveis no
cenário político.
Arnon Santana Fernandes Gama; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 169

3.1 O PRÍNCIPE VIRTUOSO E A FORTUNA: DA GÊNESE ETIMOLÓGICA AO


PODER

Primeiramente, a fim de dar uma melhor compreensão aos termos


virtú e fortuna, Francisco Weffort (2010, p. 21) explicita:

Para os antigos, a Fortuna não era uma força maligna implacável. Ao


contrário, sua imagem era a de uma deusa boa, uma aliada potencial, cuja
simpatia era importante atrair. Esta deusa possuía os bens que todos os
homens desejavam: a honra, a riqueza, a glória, o poder. [...] Como se tratava
de uma deusa que era também mulher, para atrair suas graças era
necessário mostrar-se vir, um homem de verdadeira virilidade, de
inquestionável coragem. Assim, o homem que possuísse virtú no mais alto
grau seria beneficiado com os presentes da cornucópia da Fortuna.

Mas, com o domínio do cristianismo, essa visão de deusa foi


desconstruída. Passou então a significar a roda do tempo, com
habilidade de girar sem que se descubra o seu real movimento. Desse
modo, os bens não têm mais valor e, além disso, a honra, a glória e poder
não tem mais relação com a felicidade. O homem virtuoso deve
conseguir a honra, a glória e a fama para si mesmo e a segurança aos
seus governados.
Assim sendo, as tais expressões italianas: virtú e fortuna são
utilizadas por Nicolau Maquiavel para descrever a ação do príncipe, de
modo que a primeira pode ser contextualizada como uma virtude
relacionada a força de guerrilha e a segunda, seria o acaso, ocasião ou
até oportunidade.
A política, em termos gerais, é definida como a arte de governar e
opinar na vida pública. Para Sadek (1997, p. 24), ela “tem uma ética e uma
lógica próprias.” Na visão de Maquiavel, não permitia serviços gratuitos,
favores e/ou benefícios, impondo a virtú e a fortuna como mecanismos
170 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

de meio e fim da ação política. De modo que, a virtú seja a competência


de se realizar determinada razão já calculada; e, a fortuna, a própria
ocasião destinada à realização da ação política daquele que é dotado de
virtú.
Homens virtuosos ou homens de virtú são tidos como exemplares
e capazes de realizar grandes manifestações históricas. Porém, não se
pode confundi-los ou relacioná-los aos homens do período medieval,
que agiam segundo uma moral cristã. Diferente destes, o aspirante a
príncipe de virtú é aquele capaz de perceber o jogo político para que
possa agir de maneira correta a fim de conquistar e manter-se no poder,
tornando-se um príncipe.
A virtú não é autossuficiente para mover o principado. A
oportunidade que se apresenta ao príncipe não pode ser descartada, sua
fortuna é exatamente essa ocasião. Não adianta ser virtuoso se não se
sabe aguardar a ocasião propícia, apenas fazendo uso da sorte de em
algum momento ser vantajoso ou não. Do mesmo modo, “o príncipe não
deve depender da fortuna, mas deve ter força, honra, coragem,
virilidade” (MARIA; SOUZA, 1995, p. 160).
Marilena Chauí (2012, p. 341) interpreta que:

A oposição virtude-fortuna jamais abandonou a ética e, como esta surgia


inseparável da política, a mesma oposição se fez presente no pensamento
político. Neste, o governante virtuoso era aquele cujas virtudes o protegem
do poderio da caprichosa e inconstante fortuna.

Essa oposição que se mencionou é retomada por Maquiavel, que lhe


atribui uma nova percepção, nesse sentido: a virtú deixa de ser um
conjunto de qualidades morais do príncipe que será oposta à fortuna e
passa a ser a capacidade de flexibilidade do governante perante as
Arnon Santana Fernandes Gama; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 171

circunstâncias apresentadas. Essa competência muda conforme a


situação objetivando o domínio da fortuna.
De outro modo, entende-se que, aquele governante que agir da
mesma maneira e sempre de acordo com os mesmos princípios em todas
as ocasiões terá fracasso total nestas e não será digno de possuir virtude
alguma, já que a fortuna, para Maquiavel, sempre será favorável ao que
souber agarrá-la. Funciona, portanto, como um mérito a ser entregue
àqueles que souberem vencê-la e tiverem a ousadia de enfrentá-la.

3.2 A HERANÇA POLÍTICA DE O PRÍNCIPE

A obra “O Príncipe” possibilita interpretações de diversas


maneiras. Por isso, é importante elencar alguns ensinamentos
mostrados por Maquiavel que se fazem presentes desde a época em que
viveu até os dias atuais. Neidson Rodrigues (2011) enumera dez lições
aprendidas com a leitura deste livro, que serão mencionadas e debatidas
a seguir.
A primeira lição: “O dirigente do Estado deve ter competência para
antecipar os problemas que ele vai enfrentar e, ao antecipar os
problemas, deve remediá-los, não permitindo que o tempo corroa a sua
autoridade” (RODRIGUES, 2011, p. 32). Assim, é função do Estado
dominar seus males antes que este seja então dominado por eles. Uma
vez ignorado, o mal se torna mais conhecido e mais próximo de se
tornar incurável.
Quando os problemas econômicos, sociais e culturais não são
analisados pelo Estado, se transformam em sérios agravos. A fim de
evitá-los, os dirigentes têm de ter o costume de lidar com problemas
cotidianos e remediá-los logo de início, antes que seja tarde demais para
172 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

isso. A demora na procedência de remediação pode vir a denegrir a


autoridade do dirigente.
Como sequência, o próximo ensinamento reflete sobre o agir:
“Quando uma determinada ação, por pior que seja, for inevitável, é
preciso fazê-la rapidamente e não adiá-la” (RODRIGUES, 2011, p. 34). De
modo que mesmo diante da guerra jamais permitam que as
circunstâncias sigam seu rumo natural, deve-se intervir. O adiamento de
qualquer ação significa dar mais tempo aos adversários. Então, com mais
tempo, eles podem se organizar melhor e se fortalecer contra o Estado.
O terceiro aprendizado cita que “é mais fácil conquistar o governo
do estado do que implementar novos costumes e, consequentemente,
impor a direção pensada quando da disputa deste governo”
(RODRIGUES, 2011, p. 36). Maquiavel acreditava ser mais fácil conquistar
o Estado ao invés de impor sobre ele novas regras, uma nova ordem.
Para obter essa tal confiança nos personagens integrantes do Estado e
instalações públicas, deve-se tomar certas iniciativas a fim de fazer
acreditar que a mudança está acontecendo, de fato.
É importante que os cidadãos acreditem na força do governo,
podendo, esta ser de duas vertentes: pelo crescimento do poderio bélico
ou pela eficácia e segurança de suas ações, ambas reprimem e
intimidam o povo. Tem-se então que “todos os profetas armados
venceram e os desarmados fracassaram” (RODRIGUES, 2011, p. 40).
Quando um governante se mostra superior e reprime a sociedade
com sua força, os indivíduos recuam com medo de agir de modo que irrite
seus opositores e acabem por morrer em vão. Nesse momento, Maquiavel
acredita que o governante precisa se armar com seus próprios princípios,
jamais contra o povo, mas sim com a confiança deles.
Arnon Santana Fernandes Gama; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 173

Para manter com segurança o seu estado, alguns príncipes desarmaram


seus súditos, outros mantiveram os territórios divididos, alguns
fomentaram inimizades contra si mesmo, outros procuraram conquistar os
que lhes pareciam suspeitos no início de seu governo, alguns construíram
fortalezas, outros as arruinaram e destruíram (MAQUIAVEL, 2001, p. 99).

Não existe só uma maneira de se armar e fazer com que a


população confie no governo. Porém, o que não pode ocorrer é que
inexista um ponto de confiança entre eles, pois só assim o governo
estará isento de acusações em períodos de crise.
Esta próxima lição é destinada aos recém-chegados, que quando
assumem o poder devem excluir alguns elementos do governo anterior.
Como por exemplo, afastar radicalmente dos cargos, aqueles indivíduos
que eram considerados pessoas de confiança do governante antecessor
a fim de evitar que o poder do novo príncipe seja ameaçado ou
enfraquecido.
Deste modo, “ao assumir o governo, o dirigente deve realizar todas
as ações que produzem malefícios a membros da sociedade, de uma só
vez e de maneira completa, para que seus efeitos não perdurem durante
todo o governo” (RODRIGUES, 2011, p. 42).
Quanto mais precoce for a decisão de expulsar de cargos
importantes do governo aqueles que são considerados suspeitos e
inconfiáveis, menos tempo estes terão para tentar corromper a
sociedade. Deve-se agir severamente ao tomar as decisões corretas.
A sexta lição diz que “É preciso cuidado com aqueles que se
aproximam do novo governante para definir o caráter e os interesses.”
(Idem, p. 45). Ao conseguir o poder, instantaneamente surgem grupos
de pessoas: o povo, os que são adversários (aqueles afastados dos
cargos), e, os que oferecem amizade e fidelidade em troca de
174 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

favorecimento. É função dele observá-los e distingui-los, conforme diz


Maquiavel (2001, p. 111):

A primeira conjectura que se faz a respeito da inteligência de um senhor


baseia-se na observação dos homens que tem em torno de si. Se estes forem
competentes e fiéis, o príncipe sempre poderá ser reputado sábio, porque
soube reconhecê-los como competentes e mantê-los fiéis. Quando, porém,
não são assim, sempre se pode fazer mau juízo dele, pois cometeu seu
primeiro erro nesta escolha.

Ao grupo dos que almejam apenas favores, isto é, são aliados do


governo apenas por interesse, tem-se ainda mais uma divisão. São
apartados em uns que podem ser aproveitados e outros, que tem de ser
contidos. São, respectivamente, os mais ou menos competentes e os
poderosos que têm o objetivo de desarmar o poder.
Por conseguinte, a sétima lição pontua que “uma ação para ser
vitoriosa deve ser levada a efeito com as próprias forças que puderem
ser mobilizadas para esta ação” (RODRIGUES, 2011, p. 49). Dessa
maneira, Nicolau Maquiavel defende que para o Príncipe ter êxito em
uma guerra, tem de contar com seu próprio empenho. Assim, deve-se
evitar o auxílio de outras forças.
Porém, haverá episódios em que tal ação militar dependa de apoio
de Estados afins. Nestes casos, a vitória do governante será
comprometida, o que torna a ajuda inútil. Entende-se então que
Maquiavel ensina que para a ação social ter merecida vitória, ela deve
ser articulada e organizada com suas próprias forças, ou seja, as forças
do seu Estado.
Nicolau impunha a condução da guerra (guerra, aqui, denota toda
ação a ser exercida por aquele que empunha uma tarefa social) como
atividade fundamental do Príncipe. “O Príncipe que ignora o terreno
Arnon Santana Fernandes Gama; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 175

sobre o qual se desenvolve a guerra e desconhece os soldados que


comanda conduz, necessariamente, as suas forças para a derrota”
(RODRIGUES, 2011, p. 52). A ignorância é, dentre os inimigos do
governante, o pior deles. Deve-se estar junto da população para que não
seja derrotado.
Além disso, a sociedade espera que o Príncipe opte pelo correto e
decida por decisões adequadas à situação. “As pessoas esperam do
dirigente que ele tome decisões adequadas, justas e corretas, ainda que
isto fira os interesses de um ou de outro grupo” (RODRIGUES, 2011, p.
55).
O dirigente do Estado não deve temer ser odiado, ou seja, é
inadequado que ele deixe de tomar determinadas decisões por medo de
ser odiado por todos, já que deseja ser amado por eles. Tem ainda de ser
movido pela razão em qualquer circunstância. O governante pode ser
amado sim, mas deve ser temido de alguma forma para que suas
fraquezas não se sobressaiam.
A décima e última das lições refere-se ao alcance dos objetivos pela
política:

O dirigente político que deseja conduzir a sociedade a um objetivo bem


determinado, deve procurar estabelecer objetivos os mais altos possíveis e
impulsionar a sociedade naquela direção a fim de colocar alvos difíceis e
não se limitar aos considerados viáveis, porque na realidade, na ação da
sociedade, a tendência é sempre atingir objetivos inferiores aos projetados
(RODRIGUES, 2011, p. 57).

Percebe-se com isso, que Maquiavel ensina: deve-se mirar em um


alvo bem acima do objetivo. Pois, se houver algum imprevisto, há uma
menor chance de atingir seu objetivo. Agir dessa maneira é saber pensar
à frente dos demais. Por isso, essa obra de Nicolau Maquiavel é
176 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

“criticada em toda parte, atacada por católicos e protestantes,


considerada ateia e satânica, tornou-se, porém, a referência obrigatória
do pensamento político moderno” (CHAUÍ, 2012, p. 342). Apesar de todas
as lições aqui apresentadas, cabe ainda ao Príncipe exercê-las de forma
a engrandecer o Estado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra “O Príncipe” – trata do poder e esclarece aos príncipes e


aspirantes a príncipes a maneira que o jogo político é impelido.
Maquiavel inaugura o estudo da ciência política, que passa então a ser
estudada separadamente da moral e da religião.
Nicolau Maquiavel apresenta uma nova forma para pensar e fazer
política, em que não se importam os meios para conquistar o poder,
devendo fazê-lo a qualquer custo. Esta imposição gera – de forma
involuntária – a expressão ‘maquiavélico’, termo este que nada tem a
ver com a proposta Maquiaveliana.
Quando traz à baila a hipótese que Maquiavel sugere que os fins
justificam os meios, o bom Príncipe deve estar disposto a esquecer dos
ensinamentos da Ética, da religião e da moral. Pois, para salvar um
Estado inteiro, este deve, simplesmente, fazer qualquer coisa.
É sabido que existem várias circunstâncias em que quanto mais o
poder e a sobrevivência estão chantageados tem-se menos tempo de
escolha, a menos que o Príncipe opte pelo poder, onde sua sociedade se
destrói, devido a utilização de meios ilegais. Ao mostrar todos os
caminhos necessários para os indivíduos conseguirem alcançar,
aumentar e se manter no poder, “O Príncipe” dita claramente uma
repulsa e descrença do autor em relação à condição humana, enquanto
vivida sob um estado bem governado.
Arnon Santana Fernandes Gama; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 177

Foi feito um estudo desde o período renascentista, que perpassa


pelo debate entre o pensamento maquiaveliano e aristotélico e destaca
o estudo da ética, moral e política. Além disso, com o intuito de
compreender ainda mais o jogo político, conforme expressado por
Maquiavel, abordou-se sobre as classificações dos principados e como
estes se manifestam.
É necessário que, além de alcançar o poder do governo, o príncipe
saiba como permanecer neste por meios da virtú e da fortuna. É a relação
virtude-fortuna que dita o sucesso político de um príncipe. As
explicações de Nicolau Maquiavel vão além de um texto que mostra a
realidade da política. A partir dos dez ensinamentos da leitura de “O
Príncipe”, aqui apresentados, compreende-se que para ser um bom
político não basta pensar individualmente, mas em prol de todo um
povo.
Apesar de ser uma obra antiga perante a literatura mundial, tudo
aquilo que foi ensinado pelo autor está servindo aos governantes atuais.
Isso ratifica o avanço histórico dos conselhos do pensamento de
Maquiavel. Assim, tem-se que “O Príncipe” funciona como um tratado
da natureza humana, de como viver em coletividade, ou ainda, de como
o homem se comporta frente aos seus semelhantes quando têm – ou
almeja o poder.

REFERÊNCIAS

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Paulo: Moderna, 2009, p. 299.

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178 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

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Carmen C. Varriale, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luís Guerreiro Pinto Cocais
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MAQUIAVEL, N. O Príncipe. Tradução de Maria Júlia Goldwasser. In: Col. Clássicos –


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In: Col. Questões da nossa época. v. 29. 20. ed. São Paulo: Cortez, 2011. p. 32, 34, 36,
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SADEK, M. T. Nicolau Maquiavel: O cidadão sem fortuna, o intelectual sem virtù. In:
WEFFORT, Francisco (Org.). Os clássicos da política. 8. ed. v. 1. São Paulo: Ática, 1997.
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WEFFORT, F. C. Os Clássicos da Política. v. 1. 14. ed. 6. reimp. São Paulo: Ática, 2010. p.
21.

VICENTINO, C. História Geral. São Paulo: Scipione, 2000. p. 185.


O PROJETO KANTIANO DE PAZ PERPÉTUA
7
Weuller Carvalho Barreira Sales 1
Francisco Atualpa Ribeiro Filho 2

INTRODUÇÃO

Immanuel Kant, foi um importante filósofo prussiano, nascido em


Koenigsberg em 22 de abril de 1724. Todos os seus estudos foram
realizados em sua terra natal. Tendo recebido de seus pais luteranos,
uma educação religiosa. Ainda com 16 anos, em 1740, ingressa na
Universidade de Koenigsberg, onde tem contato inicialmente com a
filosofia de Martin Knutzen, o qual investigou e aprofundou o estudo da
filosofia racionalista de Leibniz e de Christian Wolff.
Entretanto, com a morte de seu pai, em 1746, Kant deixa a academia
antes de terminar os devidos graus, para ajudar nas despesas de sua
família. Porém, nunca deixou de estudar, e mesmo fora da universidade
ele publicou sua primeira obra, “Pensamento sobre o verdadeiro valor
das forças vivas”, em 1749. No ano de 1754, ele retorna à universidade, e
em 1755 lança sua segunda obra, “História universal da natureza do céu”,
e neste mesmo ano obtém da universidade de Koenigsberg sua
promoção.

1
Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí – UFPI; Bacharel em Direito pela
Universidade Estadual do Piauí – UESPI.
2
Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí; Licenciado em Filosofia pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie; Bacharel em Administração Pública pela Universidade Estadual do Piauí.
Especialização em: Docência do Ensino Superior (UNOPAR); Gestão Pública Municipal (UESPI); Gestão
Educacional em Rede EaD (UFPI); Licenciando em Letras Português pela Estácio. Atualmente é
orientador do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) da FCP e professor efetivo
da SEDUC-CE. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1491096614911103. E-mail: farf25@gmail.com.
180 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

Somente em 1770 é que ele inicia sua obra propriamente dita. É


entre as décadas de 1780 e 1790 que as publicações de grande relevância
de Kant são conhecidas: Suas críticas, “Crítica da Razão Pura”, foi sua
obra mais lida, nesse trabalho ele tenta desvendar três fundamentais
questões da filosofia: Que podemos saber? Que devemos saber? Que nos
é lícito esperar? Tais indagações estão presentes em sua primeira
crítica, que precede a “Crítica da Razão Prática”, que dá continuidade
com a observação sobre os princípios da moral que fora iniciada com a
“Fundamentação da metafísica dos costumes” (1785). Na terceira obra,
“Crítica do Julgamento”, Kant deseja ir além da razão, examinando
acerca dos limites a que podemos conhecer, pela faculdade que cada um
possui de julgar. Em 1790, com a divulgação de sua última obra crítica,
seu projeto pode-se considerar acabado, pois as publicações que se
seguiram não mudaram o pensamento do filósofo.
Immanuel Kant, foi um dos mais expressivos filósofos da
modernidade, se destacou no mundo inteiro sobre novos modos de
pensar a filosofia e a moral do homem. Ele foi testemunha atenta de
todos os movimentos revolucionários de sua época. Um apreciador da
Revolução Francesa. Suas obras, extremamente sistemáticas, no tocante
à moralidade, nos mostram as adversidades de sua época. Rodrigues nos
esclarece que

[...] é possível classificar as obras de Kant em três grandes períodos de sua


vida. Num primeiro momento, suas ideias pessoais ainda não tomaram
forma, comungando do pensamento filosófico dominante na Alemanha – o
racionalismo dogmático de Leibniz. Esse período cessa-se quando Kant tem
contato com o ceticismo de Hume, haja vista o dogmatismo racionalista
apresentar-se incapaz de resistir à crítica do filósofo escocês. Neste
período, Kant lê a obra de Rousseau, a qual o conduz mais a formulações de
problemas do que a proposições de soluções (RODRIGUES, 2010, p. 08).
Weuller Carvalho Barreira Sales; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 181

Mas é em 1795 que Kant divulga um texto que serviria de base para
este trabalho de conclusão de curso, um projeto denominado de “A Paz
Perpétua”, com a finalidade de estabelecer um contrato nos diversos
estados europeus, e consequentemente em todo o mundo, desde a
extinção das guerras. Trata-se de uma obra de caráter legal, cujo
objetivo é instruir os homens em um estado de paz cessando todas as
hostilidades entres as nações.
O tratado aborda toda a normatização e os pressupostos para se ter
entre os estados o fim das guerras. O conteúdo do projeto se divide em
duas seções, a primeira, com seis artigos preliminares e a segunda três
definitivos. Os seis primeiros contendo normas de cunho proibitivo,
com a intenção de promover a paz. Há ainda na obra, dois suplementos,
o primeiro tratando de uma garantia da paz perpétua, e o segundo, um
artigo secreto para a paz perpétua. Os dois apêndices finais falam
respectivamente, da discrepância entre a moral e a política e da
harmonia da política com a moral.
Nessa perspectiva, este trabalho de cunho monográfico tem como
escopo fazer uma reflexão sobre a obra “A Paz Perpétua”. Inicialmente
descobrindo o objetivo que levou Kant, de propor este tratado.
Conjuntamente far-se-á a devida correspondência com assuntos
abordados neste trabalho com o que Kant aborda em “Metafísica dos
Costumes” e “Crítica da razão prática”, e tratar de temas como a moral
e o direito, essenciais para a compreensão da referida obra. Ao final
deste capítulo, serão observadas as normas que propôs o autor para se
ter paz entre os estados, os artigos preliminares.
No segundo momento, tratar-se-á sobre a importância do regime
republicano para a construção da paz perpétua, enfatizando
especificamente o conceito de republicanismo e de direito cosmopolita
182 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

em Kant. Por fim, nesta seção será proposto uma reflexão do que Kant
chamou de confederação dos estados livres. O último capítulo deste
trabalho monográfico, irá tratar da natureza intrínseca da moral e a
política para haver paz, irá discorrer ainda acerca da relação, muitas
vezes controversa entre a moral e a política e a influência do projeto “A
Paz Perpétua” nos vínculos internacionais do século XX, com a formação
da Liga das Nações e consequentemente a criação da Organização das
Nações Unidas em 1948.
Este trabalho de conclusão de curso será desenvolvido com base
um uma pesquisa exploratória através do desenvolvimento de um
modelo de descoberta de conhecimento a partir de bases textuais como
as obras Fundamentação da metafísica dos costumes, “Metafísica dos
Costumes” e especialmente “A Paz Perpétua”. Foi utilizado também
diversos exemplos de monografias de ótimas referências. A metodologia
de desenvolvimento deste trabalho é dividida em três etapas, num
primeiro momento buscando refletir a respeito da gênese da obra, como
também seus artigos que não admitiam concessões. Em seguida, foi
observado a importância do regime republicano para a construção da
paz perpétua, principalmente sobre a luz dos pensamentos de Norberto
Bobbio. Por fim, foi abordado neste trabalho temas como a moral e
política e a influência da obra na criação da ONU.

1. OBJETIVO DA OBRA PAZ PERPÉTUA

A obra “A Paz Perpétua” (Zum ewigen Frieden), escrita por Immanuel


Kant em 1795, destaca-se como uma contribuição significativa para a
teoria política e a filosofia do direito internacional. O objetivo central
de Kant nesta obra é esboçar os princípios fundamentais que poderiam
conduzir à criação de uma paz duradoura entre as nações. Ele propõe
Weuller Carvalho Barreira Sales; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 183

uma visão otimista, acreditando que a paz é alcançável por meio da


instauração de repúblicas constitucionais e da implementação de
princípios específicos nas relações entre os Estados. Kant sugere a
necessidade de uma federação de Estados livres baseada em três artigos
definitivos que ele formula, destacando a ideia de que os Estados devem
se unir sob uma estrutura jurídica que impeça conflitos e promova uma
paz não apenas temporária, mas perpétua.
Kant argumenta que a paz duradoura só pode ser alcançada quando
as nações abandonarem políticas expansionistas, respeitarem a
autonomia de outras nações e adotarem governos republicanos. Ele
enfatiza que a paz não deve ser apenas a ausência de guerra, mas a
presença ativa de instituições e acordos que previnem conflitos. Ao
propor esses princípios, Kant vislumbra um futuro em que as nações, ao
agirem de acordo com a razão e a moralidade, possam estabelecer uma
ordem mundial mais justa e pacífica. “A Paz Perpétua” não apenas
reflete a visão de Kant sobre a política internacional, mas também
destaca sua confiança na capacidade da razão humana de construir
instituições que promovam a paz e a coexistência pacífica entre as
nações.

1.1 METAFÍSICA DOS COSTUMES E CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA

A chamada “Fundamentação da metafísica dos costumes” (1785),


trabalho que ampara a crítica da razão prática, é em entendida pelo
filósofo prussiano, como uma forma de estabelecer as possibilidades de
uma Lei Moral Universal, guiando as ações humanas, de maneira
autônoma, segundo a razão prática que tem condições a priori da sua
vontade. Obra que muitos pensadores consideram a mais célebre obra
já escrita com a temática sobre moralidade.
184 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

O que difere o homem dos outros seres da natureza, segundo Kant,


é a razão. No começo da obra, ele afirma que não existe nada bom em
absoluto, somente a ideia de Boa Vontade. Ele examinou o conceito de
Leis Morais, e disse que elas somente serão constituídas, se aplicadas no
contexto universal. O modo de ação humana, ao seu modo de ver,
quando for aceita na universalidade, aí sim, pode ser concebida como lei
moral, ou seja, devem ser seguidas por todos. Na introdução da obra,
Kant (2007, p. 21) inicia a primeira seção dizendo:

[...] Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa
ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa
vontade. Discernimento (1), argúcia de espírito (2), capacidade de julgar (3)
e como quer que possam chamar-se os demais talentos do espírito, ou ainda
coragem, decisão, constância de propósito, como qualidades do
temperamento, são sem dúvida a muitos respeitos coisas boas e desejáveis;
mas também podem tornar-se extremamente más e prejudiciais se a
vontade, que haja de fazer uso destes dons naturais e cuja constituição
particular por isso se chama carácter, não for boa.

Todas essas questões morais e de caráter se fundamentam em uma


única coisa, a boa vontade, que se baseiam estritamente no “dever ser”,
as leis morais traduzem-se em ações esperadas, devendo observar a sua
não obrigatoriedade. “A ação que possa concordar com a autonomia da
vontade é permitida; a que com ela não concorde é proibida” (KANT,
2007, p. 22). Reside então, na suprema máxima da vontade humana. As
leis morais terão então o dever de orientação do agir do homem, que
consistirá como procedência de uma boa vontade. Na obra
“Fundamentação da metafísica dos costumes” é explanado:

A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão
para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão somente pelo querer,
Weuller Carvalho Barreira Sales; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 185

isto é, em si mesma, e, considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau


muito mais alto do que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado
em proveito de qualquer inclinação, ou mesmo, se se quiser, da soma de
todas as inclinações (KANT, 2007, p. 23).

É dito sempre que, as ações más e boas, não são mais ou boas em si
mesmas. O ser humano é o único ser que pode ter sentimentos de maldade
e bondade, visto que é o mesmo que realizará suas ações e tem vontade de
atingir um determinado fim. Ao homem, é dado pela razão a liberdade de
agir, portanto, suas condutas são boas ou más dependendo da vontade do
homem. Para falar sobre metafísica dos costumes, é importante
primeiramente conceituá-la. Norberto Bobbio (2000, p. 84) se refere a
metafísica dos costumes “como o estudo das leis que regulam a conduta
humana sob um ponto de vista meramente racional”.
Kant (2008, p. 13) aclara na introdução da FMC:

Esclarece Kant que: todo o conhecimento racional ou é material, e considera


qualquer objeto, ou formal, ocupando-se unicamente da forma do
entendimento e da razão em si mesma, e das regras universais do pensar
em geral, sem distinção de objetos. A filosofia formal denomina-se lógica; a
filosofia material, porém, que se ocupa de determinados objetos e das leis a
que eles, por sua vez, se submetem, se divide em duas, pois que estas leis ou
são leis da natureza ou leis da liberdade. A ciência das primeiras denomina-
se física; a das segundas, ética, aquela costuma ser também chamada teoria
da natureza; essa, teoria dos costumes.

Assim sendo, a Teoria da Natureza, ou filosofia natural, estaria sob


o comando das leis da natureza. É dirigida pela norma de “ser”, pois são
ações categóricas, ou seja, não permitem falseamentos. A Teoria dos
Costumes, também denominada Filosofia Moral, regra-se pelo “dever-
ser”, isto é, depende da vontade humana.
186 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

A obra “Metafísica dos Costumes” é um trabalho de


complementação de outro importante projeto kantiano, a “Crítica da
razão prática”, ao passo que, na segunda é estudado a legislação e suas
fundamentações, na primeira estuda-se a lei moral e suas aplicações. Na
crítica da razão prática, lançada em 1788, segunda da trilogia, dá
continuidade ao estudo dos assuntos morais, que tiveram início com a
obra “Fundamentação da metafísica dos costumes”.
A referida obra é de grande importância para compreendermos a
ética em Kant. Ela trata da capacidade de a razão determinar à vontade
e ação da lei moral. Objetivo dessa publicação é determinar como se dá
à vontade, como é o movimento da vontade, o qual é possível, porque a
nossa realidade é objetiva e não subjetiva. A ideia não é colocar leis, para
dizer o que é certo ou errado, até porque isso causaria um
condicionamento da vontade. Dessa forma, se percebe a crítica a
prática, a ética empirista, em que é preciso ser palpável as coisas, para
que aconteçam em plenitude. Por isso, Kant, na sua obra “Crítica da
razão prática”, crítica às pretensões opostas à razão prática que segundo
ele representa algum defeito.

1.2 MORAL E DIREITO ENTRE DOIS MUNDOS

Há na razão humana uma espécie de separação. De um lado o


mundo natural que irá se encaixar o corpo e as suas necessidades físicas,
Kant entende o homem como um ser sensível (ou homem natural), e há
também o denominado mundo racional, que ele chama de mundo
racional, também chamado de mundo da liberdade, dada em função da
faculdade, ou livre-arbítrio das decisões, e planejamentos, que o filósofo
de Konigsberg denominou como razão/liberdade.
Weuller Carvalho Barreira Sales; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 187

Assim sendo, para compreendermos a liberdade em Kant,


precisamos nos desprender de conceitos como o dado, por exemplo, na
liberdade natural (fazer o que bem entender), ou o que a lei proclama
(fazer somente o que a lei não proíba) e a liberdade de escolha (o livre
arbítrio). A liberdade, em Kant, está ligada a coerção, ao respeito as
normas. As leis comandam o modo de vida, e, por conseguinte, os
homens são livres, desde que, provocados a fazer. Portanto, podemos
compreender que a liberdade em Kant não é definida no mundo natural
e sim no racional, pois ela dá a possibilidade de os próprios seres
humanos criarem suas próprias legislações, entende-se afinal, que a
liberdade é dotada de leis. Habitualmente se define o Direito como um
conjunto de regras e codificações a fim de estabelecer na sociedade uma
certa ordem. As leis são imposições externas, que obrigam a execução
de deveres.
Como visto, no mundo natural, deve-se abdicar dos prazeres e dos
desejos para se ter as normas morais. O Direito também necessita dessa
abdicação, pois se fundamentam no mundo racional e na liberdade.
Todos os pensamentos de Kant a respeito do Direito se atem sobre uma
ideia de os homens como seres morais, ou seja, os homens devem
organizar-se em sociedade segundo tal Direito, e adotar a forma de
governo republicana e estabelecer a paz mundial, porque tais comandos
são a priori da razão, e não pelo fato de sua utilidade. Vale a pena fazer
um rápido comentário do chamado imperativo categórico, que podemos
entendê-lo como o alicerce para a filosofia da moral em Kant. A norma
moral tem o feitio de um imperativo categórico. No domínio que nela
está contido, podemos perceber a ideia do dever-ser e está inteiramente
atrelada a uma norma de todos os seres humanos.
188 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

1.3 A PAZ SEM CONCESSÕES

A obra do filósofo Immanuel Kant discorreu sobre a ideia de uma


espécie de paz universal. O trabalho divide-se em duas seções, artigos
preliminares e artigos definitivos, e tem ainda dois suplementos e um
anexo. Kant (2008, p. 3) ainda na introdução ressalta o público-alvo da
referida obra:

Pode deixar-se em suspenso se esta inscrição satírica na tabuleta de uma


pousada holandesa, em que estava pintado um cemitério interessa em geral
aos homens, ou em particular aos chefes de Estado que nunca chegam a
saciar-se da guerra, ou tão-só aos filósofos que se entregam a esse doce
sonho.

Primeira seção: Primeiro artigo - segundo Kant, não deve haver


nenhuma reserva de matéria para uma guerra futura, pois, não será
uma paz de verdade, e sim, somente um armistício, um intervalo. Não
se deve ter no seio da pátria, indústrias bélicas sendo preparadas para
uma possível guerra, por exemplo. Segundo artigo – Kant ressaltou que
um estado não é um patrimônio, ou seja, não pode ser usado como
herança, troca, compra ou doação. Pois, em cada Estado possui uma
sociedade que tem dignidade, seus cidadãos possuem naquele território,
laços sociais e desenvolvem sua cultura e seu modo de viver. Que não
pode ser subjugado. Terceiro artigo – na ideia cosmopolita de paz
perpétua, não poderia haver lugar para os exércitos permanentes, pois
poderia desejar sobrepor o outro e os homens e tornaram meras
máquinas a serviço da destruição. Atrelado a isso, a questão do dinheiro
seria preponderante, o poder nas mãos de uma nação rica iria
potencializar a segurança para uma guerra.
Kant (2008, p. 06) acrescenta:
Weuller Carvalho Barreira Sales; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 189

Algo de todo diverso é defender-se a si e defender a Pátria dos ataques do


exterior com o exercício militar voluntário dos cidadãos empreendido de
forma periódica. Ele se passaria com a acumulação de um tesouro;
considerado pelos outros Estados como uma ameaça de guerra, forçá-los-ia
a um ataque antecipado, se a tal não se opusesse a dificuldade de calcular a
sua grandeza (pois dos três poderes, o militar, o das alianças e o do dinheiro,
este último poderia decerto ser o mais seguro instrumento de guerra).

Nesse trecho, Immanuel Kant aborda a questão da defesa militar e


acumulação de riqueza por parte de um Estado. Kant argumenta que a
defesa da pátria contra ameaças externas deve ser realizada através do
serviço militar voluntário dos cidadãos. Ele sugere que essa abordagem
periódica, envolvendo os próprios cidadãos na defesa, pode ser mais
eficaz do que manter um exército permanente.
Além disso, Kant discute a acumulação de tesouro como um meio
de defesa. No entanto, ele observa que outros Estados podem
interpretar a acumulação de riqueza como uma ameaça de guerra, o que
poderia levar a um ataque preventivo. Kant destaca a dificuldade de
calcular a verdadeira ameaça representada por uma nação rica,
indicando que a acumulação de dinheiro pode ser um instrumento de
guerra mais seguro do que a manutenção de um exército permanente.
Quarto artigo: as dívidas públicas em relação aos interesses
externos do estado para os outros estados, não poderão ser admitidas,
pois um estado não deve ter dívidas, para possivelmente financiar uma
guerra, pois teria nesses débitos uma espécie de motivo para conflitos
futuros. Quinto artigo – a soberania de um estado deve ser respeitada
acima de qualquer coisa, intrometer-se ou tomar parte em algum
assunto externo, pode causar sérios problemas. Mesmo sendo um
estado desordenado ou até caótico, sempre há esperança de uma
regulação interna.
190 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

Sexto artigo: sentimentos de rivalidade, provocações ou ofensas são


inadmissíveis entre os estados. Segundo Kant, deve haver certas regras
básicas que mesmo em caso de conflitos devem ser atendidas, para que se
tenha um mínimo de confiança. Pois sem essa confiabilidade, uma guerra
com destruição e aniquilamentos em massa pode acontecer.
Immanuel Kant (2008, p. 08) postula:

[...] São estratagemas desonrosos; mesmo em plena guerra deve ainda


existir alguma confiança no modo de pensar do inimigo já que, caso
contrário, não se poderia negociar paz alguma e as hostilidades resultariam
numa guerra de extermínio (bellum internecinum); a guerra é apenas o
meio necessário e lamentável no estado da natureza (em que não existe
nenhum tribunal que possa julgar, com a força do direito), para afirmar pela
força o seu direito; na guerra, nenhuma das partes se pode declarar inimigo
injusto (porque isso pressupõe já uma sentença judicial).

Portanto, qualquer e toda nação, mesmo em estado de guerra tem


alguma credibilidade na forma de pensar do inimigo, pois se não a
existisse, logo haveria uma destruição total das sociedades. Ademais, nos
referidos artigos, Kant discorre e explana a necessidade de uma paz
eterna entre nações do mundo. Para haver tal paz, os artigos devem ser
seguidos todos em obrigatoriedade e não instintivamente. A honra é uma
palavra frequente, a respeitabilidade é a palavra-chave para se ter uma
ausência de conflitos e consequentemente uma harmonia entre Estados.

2. A IMPORTÂNCIA DO REGIME REPUBLICANO PARA A CONSTRUÇÃO DA


PAZ PERPÉTUA

A importância do regime republicano na construção da paz


perpétua, conforme delineada por Immanuel Kant em sua obra
homônima, reside na convicção de que Estados regidos por repúblicas
Weuller Carvalho Barreira Sales; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 191

são mais propensos a adotar princípios éticos e jurídicos que promovem


a estabilidade internacional. Para Kant, as repúblicas, caracterizadas
por governos representativos, divisão de poderes e participação cidadã,
estão mais inclinadas a respeitar a autonomia de outras nações e a
seguir uma política externa fundamentada em princípios racionais. Ao
contrário dos Estados monárquicos, que podem ser motivados por
interesses pessoais ou dinásticos, as repúblicas, segundo Kant, são mais
propensas a agir em conformidade com a vontade geral de seus
cidadãos, reduzindo assim as chances de conflitos baseados em
ambições territoriais ou expansionistas.
Kant argumenta que, dentro de um sistema republicano, as decisões
de guerra e paz são mais deliberativas e transparentes, envolvendo a
participação ativa dos cidadãos e evitando decisões arbitrárias ou
impulsivas. Além disso, as repúblicas, ao compartilharem uma forma de
governo semelhante, podem estabelecer relações mais previsíveis e
harmoniosas entre si. Ao promover a ideia de uma federação de
repúblicas, Kant busca instituir um mecanismo internacional baseado na
cooperação mútua, na solução pacífica de disputas e na criação de uma
ordem mundial regida por leis que garantam a paz perpétua. Assim, a
importância do regime republicano na visão de Kant não está apenas na
estrutura interna de um Estado, mas na contribuição fundamental que
tais formas de governo podem oferecer para a construção de um cenário
global mais pacífico e cooperativo.

2.1 O REPUBLICANISMO

É preciso inicialmente sabermos o conceito de constituição


republicana em Kant. Segundo ele, a carta jurídica na república tem em
sua essência a noção de um contrato originário, e é neste contrato que
192 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

deve se ater todas as normas da nação. Na obra, ele nos introduz a


finalidade da carta: “A constituição republicana, além da pureza da sua
origem, isto é, de ter promanado da pura fonte do conceito de direito, tem
ainda em vista o resultado desejado, a saber, a paz perpétua” (KANT, 2008,
p. 12). O contrato para Kant, era “um princípio ideal que deve servir para
a justificação racional do Estado” (BOBBIO, 2000, p. 199). Este contrato
seria a segurança que os indivíduos teriam de algo que pudesse ferir
algum Direito. Os direitos na república seriam tutelados pelo Estado.
O fundamento e a justificativa é que a constituição republicana é
instituída por princípios de liberdade, igualdade e na segurança que
todos os cidadãos estarão sujeitos a uma única carta magna. E esta
constituição provoca às pessoas uma maior participação em todos os
assuntos, diferentemente de sistemas de governo como a monarquia,
que toda a decisão das contendas se restringe apenas ao governante.
É refletido por Kant, se a constituição republicana era a que melhor
se encaixava no projeto para haver a paz entre as nações. Ele conclui que
sim, pois nela, aos súditos caberia a decisão de guerrear com outro país,
pois haveria mais cautela no momento de decisões dessa magnitude. Ao
passo que na forma de governo monárquica, o soberano tem para si a
posse do Estado, e suas perdas seriam no máximo alguns fartos
banquetes, palácios de passeio ou caçadas em parques. No
republicanismo, as pessoas ao tomarem uma decisão, são primeiramente
levadas a uma reflexão do problema, e de suas consequências, ou seja, são
mais prudentes. Kant (2008, p. 13) descreve que:

[...] Pelo contrário, numa constituição em que o súbdito não é cidadão, e que
portanto não é uma constituição republicana, a guerra é a coisa mais
simples do mundo, porque o chefe do Estado não é um membro do Estado,
mas o seu proprietário, e a guerra não lhe faz perder o mínimo dos seus
Weuller Carvalho Barreira Sales; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 193

banquetes, das suas caçadas, dos palácios de recreio, das festas cortesãs,
etc., e pode, portanto, decidir a guerra como uma espécie de jogo por causas
insignificantes e confiar indiferentemente a sua justificação por causa do
decoro ao sempre pronto corpo diplomático.

Na república, todas as pessoas são iguais perante o Estado, e a todos


é admitida a participação nas matérias legislativas. E em caso de alguma
batalha, como é o próprio povo que sofreu os danos, teriam mais
prudência. Mais adiante, Kant difere o seu conceito de república, que é
a forma de governo em que possui uma separação de poderes, em
especial o executivo e o legislativo, sendo este último feito de
representantes da população, e a democracia, em que a soberania
estaria em voga, do lado da aristocracia e de autocracia.

2.2 DIREITO COSMOPOLITA (HOSPITALIDADE UNIVERSAL)

Redede (2010, p. 34) nos expõe que a expressão “hospitalidade” tem


interpretação rigorosamente jurídica. Trata-se resumidamente do
direito que possui qualquer pessoa de ser tratado com respeito em um
país estrangeiro, inclusive com a viabilidade de estabelecer relações de
comércio. Kant (2008, p. 20), no entanto, nos coloca que “enquanto o
estrangeiro se comportar amistosamente no seu lugar, o outro não o
deve confrontar com hostilidade”. Esta possibilidade de um estrangeiro
visitar outro estado sem haver qualquer tipo de comportamento
litigioso, iria se converter a normas jurídicas, e ao fim, poderia os
humanos, chegar próximo da idealizada constituição cosmopolita.
Kant (2008, p. 20-21) elucida que “deste modo, partes afastadas do
mundo podem entre si estabelecer relações pacíficas, as quais acabarão
por se tornar legais e públicas, podendo assim aproximar cada vez mais
o género humano de uma constituição cosmopolita”. Kant destaca que,
194 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

ao estabelecerem relações pacíficas entre si, partes distantes do mundo


têm a capacidade de transformar essas relações em algo legítimo e
público. Esse processo gradual pode, portanto, contribuir para a
aproximação progressiva da humanidade em direção a uma
constituição cosmopolita. A ideia central expressa por Kant é a
possibilidade de construir uma ordem global baseada em relações
pacíficas e instituições que transcendam as fronteiras nacionais,
promovendo a ideia de uma comunidade global.
O filósofo de Konisgsberg entendia o direito cosmopolita como a
relação intrínseca do estado para com os cidadãos visitantes. O preceito
da hospitalidade é fundado no direito que cada qual possui de entrar em
território de estrangeiro, por simplesmente o solo da terra não possuir
dono. Diante disso, essa limitação do direito cosmopolita, a ideia do
acolhimento aos estrangeiros iria acabar com os terríveis abusos
coloniais, e isso iria dar aos seres humanos um conforto no país vizinho,
ou seja, uma sensação de ser cidadão universal. As intensas trocas
comerciais entre os povos iriam fortalecer a dependência de todos.
Desse modo, não haveria hostilidades, justamente para não acabar com
esse relacionamento amistoso. Kant (2003, p. 194) destaca que:

E uma vez que a posse de terra, sobre a qual pode viver um habitante da
terra, só pensável como posse de uma parte de um determinado todo, e
assim na qualidade de posse daquilo a que cada um deles originalmente tem
um direito, segue-se que todas as nações originalmente se acham numa
comunidade do solo, embora não numa comunidade jurídica de posse e,
assim, de uso dele ou de propriedade nele; ao contrário, acham-se numa
comunidade de possível interação física, isto é, numa relação universal de
cada uma com todas as demais de se oferecer para devotar-se ao comércio
com qualquer outra, e cada uma tem o direito de fazer esta tentativa, sem
Weuller Carvalho Barreira Sales; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 195

que a outra fique autorizada a comportar sem relação a ela como um


inimigo por ter ela feito essa tentativa.

A filosofia política de Kant é fundamentada na noção da paz


perpétua e do direito cosmopolita. Embora seja reconhecida como uma
teoria difícil de ser concretizada na prática, a importância de seus
preceitos reside no fato de que todas as nações devem orientar suas
ações políticas como se fosse possível realizá-las. Conforme Milić (2013)
a ideia central é que, mesmo que a paz perpétua seja um ideal difícil de
alcançar, os critérios estabelecidos por Kant devem orientar as ações
políticas. Caso contrário, a filosofia política kantiana perderia sua
essência, uma vez que sua estrutura está intrinsecamente ligada à busca
pela paz perpétua.

2.3 A CONFEDERAÇÃO DOS ESTADOS LIVRES

Em Kant o direito internacional deve fundar-se em um federalismo


de estados livres. Ele ressalta que, pelo simples fato de os estados
existirem, isso já concebia sentimentos de hostilidade de um para com
o outro. A face disso, para buscar uma maior segurança, cada estado
poderia requerer do outro ingressar com ele em uma constituição
pareada com civil, em que haveria uma maior proteção de seus direitos.
O que formaria uma espécie de liga dos povos, um contrato entre os
estados, que consequentemente iriam defender os interesses da
coletividade. Através dessa formação de liga dos povos, gradativamente
se chegaria à liga de paz, entre todos os estados-membros. Kant (2008,
p. 16) acrescenta:

Haveria aí uma contradição, porque todo o Estado implica a relação de um


superior (legislador) com um inferior (o que obedece, a saber, o povo) e
196 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

muitos povos num Estado viriam a constituir um só povo, o que contradiz


o pressuposto (temos de considerar aqui o direito dos povos nas suas
relações recíprocas enquanto formam Estados diferentes, que não se devem
fundir num só).

Essa concepção de agregação entre países, com a idéia de liga dos


povos, é a base da Organização das Nações Unidas (ONU) que, foi
formada depois da segunda guerra mundial, com o objetivo de se ter
uma organização mundial estruturada por países que se uniram
voluntariamente para trabalhar pela paz e o desenvolvimento
internacional.
O pensamento de Kant sobre a relação que tem com os estados, não
se difere da sua filosofia política. O desenrolar da história é certamente
pelo progresso moral através da lei natural, mas sem uma interferência
política não seria possível se evitar as guerras. Kant mostra para os
homens instruídos de sua época a imprescindibilidade a priori da paz.
Até meados do século XX as resoluções dos conflitos eram sempre
através de violência e batalhas que sempre enfraquecem e colocavam os
países em estado crítico. Tais hostilidades impossibilitaram o
surgimento de um direito entre essas nações, uma espécie de potência
no âmbito externo entre os estados. Essa falta de juridicidade nos
vínculos entre as nações, causava ainda mais guerras. No entanto, uma
batalha não é capaz de atingir um direito, como também um acordo de
paz, dificilmente assegurará a paz. Kant esclarece que, somente com
uma federação de paz composta por estados, têm possibilidade de
acabar com todas as guerras. Na referida confederação, nenhum estado
tem algum tipo de superioridade sobre os demais, todas as potências
devem ser tratadas com igualdade.
Weuller Carvalho Barreira Sales; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 197

3. O CARÁTER INTRÍNSECO ENTRE MORAL E POLÍTICA NA GARANTIA DA


PAZ PERPÉTUA

O caráter intrínseco entre moral e política desempenha um papel


crucial na busca pela garantia da paz perpétua. A conexão entre esses
dois domínios reflete a necessidade de fundamentar as decisões
políticas em princípios éticos que transcendem interesses imediatos e
partidários. A moralidade na política se manifesta na consideração dos
direitos humanos, na justiça social e na equidade, formando a base sobre
a qual as estruturas políticas podem ser construídas para promover a
coexistência pacífica. Quando a política é guiada por valores éticos, as
relações entre as nações podem evoluir para uma cooperação mais
estável, baseada no respeito mútuo e na compreensão, contribuindo
assim para a preservação da paz.
A busca pela paz perpétua requer não apenas acordos formais entre
estados, mas também um compromisso moral de agir em prol do bem
comum. A integração entre moral e política implica a renúncia a
estratégias unilaterais e expansionistas em favor de abordagens
colaborativas e diplomáticas. A moralidade na política não apenas
molda as decisões governamentais, mas também influencia a percepção
pública, fortalecendo o apoio popular a políticas que buscam a paz
duradoura. Assim, a interligação entre moral e política não apenas cria
um ambiente propício para a prevenção de conflitos, mas também
estabelece os alicerces para a construção de relações internacionais
baseadas em princípios éticos, contribuindo para a realização da
aspiração humanitária de uma paz duradoura.
198 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

3.1 A NECESSIDADE DA UNIÃO PARA HAVER PAZ

Neste apêndice, Kant faz uma crítica acerca do afastamento que


existe entre a moral e a política, e ressalta a importância da junção entre
as duas para se ter em plenitude o projeto da paz perpétua. Ao passo
que, as duas estando em desacordo, não seria possível a implantação de
uma república federativa entre os estados. A dimensão ética e política é
realizada por Kant neste apêndice porque são condições inevitáveis para
poder construir a paz entre as sociedades e as nações.
Desse modo, a moral é vista como a agregação de leis que nos levam
à um dever-ser, ou seja, como devem ser nossas ações, nosso modo de
agir é determinado pela moral. A política, no entanto, se mostra como
uma teoria jurídica que limita a moral. Kant diz que a política deve
preservar sua moralidade sendo a moral
Kant (2008, p. 34) menciona um adágio popular que diz: “Sede
prudentes como a serpente”; e a moral acrescenta (como condição
limitativa): “e sem falsidade como as pombas”. Os dois conceitos se não
estiverem unidos, há algum problema. Se a política e a moral devem
estar juntas, é uma enorme contradição a sua separação.
Ainda tratando sobre a ligação entre a moral e a política, Kant
designa os conceitos de político moral e de moralista político. O
primeiro seria aquele que tem em sua essência sentimentos como a
prudência como princípio supremo, o segundo é aquele que dá um certo
falseamento na moral, ou seja, irá usá-la somente quando for
conveniente a si ou aos interesses do Estado.

Ora, o primeiro princípio, o do moralista político (o problema do direito


político, do direito das gentes, do direito cosmopolita), é um simples problema
técnico (problema tecnicum), ao passo que o segundo como princípio do
Weuller Carvalho Barreira Sales; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 199

político moralista, para o qual é um problema moral (problema moral e), é


diametralmente diverso do outro no procedimento para suscitar a paz
perpétua, que se deseja agora não só como um bem físico, mas também como
um estado nascido do. Reconhecimento do dever (KANT, 2008, p. 41-42).

Mais adiante, a atuação do direito nas sociedades é refletida por


Kant, como também os problemas da prudência e da sabedoria de
Estado. Por fim, cabe notar que a obra Kantiana é em seu âmago uma
incessante defesa da justiça como forma de dominação dentro dos
estados, tendo como finalidade o intuito de se acabar com a violência e
de chegar a uma paz perpétua.

3.2 A AFINIDADE ENTRE POLÍTICA E MORAL NA PROMOÇÃO DO DIREITO


PÚBLICO

A relação entre moral e política perpassa a mera afinidade, pois essas


devem ser exercidas como sinônimos. Onde houver o exercício da política,
a moral essencialmente, deve estar presente. A política pode ser
entendida como o corpo e a moral como o espírito que anima e
substancializa suas ações. Kant, neste segundo apêndice, esclarece como
se dá o acordo da política com a moral, no âmbito do direito público.
Inicialmente, Kant (2008, p. 46) faz a exposição da seguinte
proposição, que ele denominou de Fórmula Transcendental do Direito
Público: “são injustas todas as ações que se referem ao direito de outros
homens, cujas máximas se não harmonizarem com a publicidade”. Isso
pode ser traduzido como o agir dos homens, para ter moral em suas
ações e serem tidas como corretas, devem todas serem publicadas,
devem ser públicas.

Toda a pretensão jurídica deve ter a possibilidade de ser publicada; por isso,
a publicidade, já que é muito fácil julgar se ela ocorre num caso concreto,
200 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

isto é, se lhe é possível, ou não, harmonizar-se com os princípios do agente,


pode subministrar a priori na razão um critério oportuno e de fácil
utilização, para conhecer imediatamente no último caso, por assim dizer
mediante um experimento da razão pura, a falsidade (ilegalidade) da
pretensão suposta (praetensio juris) (KANT, 2008, p. 46).

Mais adiante, o autor faz a manifestação de três circunstâncias:


uma sobre o Direito de Estado, a próxima sobre o Direito Internacional
e por fim, o Direito Cosmopolita. Na primeira situação, que também se
denomina Direito Interno, Kant dita todo um contexto estatal, tendo
como governante um tirano, que descumpriu os direitos dos homens. Se
porventura houvesse uma revolta para tirar o arbitrário do poder, teria
legitimidade. Levando em conta o contexto moral seria certo tal
publicação dos revolucionários, no entanto, politicamente, essa
publicação iria atrapalhar as intenções do povo.
Na segunda ocasião, pode-se perceber também o desacordo da
política com a moral. Se caso um estado viesse a crescer tanto que
pudesse haver ameaça entre os estados menores, se porventura, esses
menores se unirem e tornarem suas intenções públicas sobre o estado
maior, isso causaria uma antecipada ação do estado mais poderoso. E
finalmente, Kant prefere não adentrar no Direito Cosmopolita por
considerar este muito próximo do conceito de Direito Internacional. Em
suas palavras: “Quanto ao direito cosmopolita, vou aqui passá-lo em
silêncio, porque as suas máximas, em virtude da sua analogia com o
direito das gentes, são fáceis de indicar e de apreciar” (KANT, 2008, p.
50). O autor continua:

A política facilmente coincide com a moral no primeiro sentido (como ética),


em sacrificar o direito dos homens aos seus superiores; mas no segundo
sentido da moral (como teoria do direito), perante a qual devia dobrar o seu
Weuller Carvalho Barreira Sales; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 201

joelho, a política acha aconselhável não entrar em pactos, negar-lhes antes


toda a realidade e interpretar todos os deveres como atos de simples
benevolência; a filosofia facilmente faria fracassar esta astúcia de uma
política tenebrosa através da publicidade das suas máximas, se ela ousasse
apenas conceder ao filósofo a publicidade das suas (KANT, 2008, p. 51).

Assim sendo, torna-se evidente a discordância entre a política e a


moral, levando Kant a reconhecer a necessidade de um direito
internacional que, em primeiro lugar, estabeleça um Estado Jurídico.
Nesse contexto, o autor nos apresenta outra fórmula transcendental:
“Todas as máximas que necessitam de publicidade (para não falharem
em seu propósito) concordam simultaneamente com o Direito e com a
política” (KANT, 2008, p. 51). Esse enunciado enfatiza a importância da
transparência e visibilidade das máximas éticas, alinhando-as tanto
com os princípios do Direito quanto com os da política.

3.3 A INFLUÊNCIA DE KANT NA CRIAÇÃO DA ONU

A obra “A Paz Perpétua” foi escrita no fim do século XVIII, no


entanto, sua influência se expandiu até os dias de hoje. Sua repercussão
ressoou em documentos jurídicos do mundo todo, como o exemplo da
Carta das Nações Unidas, que em seu preâmbulo pode-se perceber a
filosofia de Kant como inspiração, como também de seus artigos
preliminares e definitivos.
Nessa perspectiva, é importante salientarmos que o chamado
idealismo liberal foi aflorado e tido como paradigma para as relações
entre os estados no início do século XX, mais precisamente após a
Primeira Grande Guerra. A questão do idealismo surge não somente
como forma de analisar a realidade ao qual se encontrava o contexto
202 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

mundial, mas como uma maneira de propor a organização de uma


política internacional que alcançasse a paz entre os estados.
O abalo deixado pela Primeira Guerra Mundial fez com que
pensadores refletissem sobre formas inovadoras de relações
internacionais. Dessa forma, “o projeto de Kant foi o maior
influenciador deste contexto no pós-guerra, tornando-se como um
norte para o pensamento político, uma válvula de escape, e constituindo
o cerne da concepção que seria chamada Idealismo” (SALDANHA;
MELANIE, 2008, p. 89). Com isso, em 1919, com função primordial de
realizar fóruns permanentes entre os estados, tendo por função
assegurar a paz. Inicialmente logrou algum sucesso entre as nações que
historicamente tinham muitos conflitos. No entanto, este mesmo
idealismo liberal nos vínculos internacionais teve sua decadência
concomitantemente com o fim da Liga das Nações.
Dessa maneira, este enfraquecimento do idealismo se deveu ao
sistema de votação unânime, que como citou Celso de Mello (1976, p. 360):

Era intocável nos diplomas jurídicos internacionais, e pela livre


possibilidade de retirada de seus membros tal qual proposto por Kant, além
do não ingresso dos EUA, cujo presidente democrata tinha sido o maior
defensor da criação da liga, cessou suas atividades com o estopim da
Segunda Guerra Mundial, tendo sido oficialmente extinta em 1947.

Ao passo que, esta norma tenha motivado o que culminou com a


Segunda Guerra Mundial, como foi enormemente indagado, suas
orientações foram de suma importância para a constituição de
mecanismos jurídicos entre as nações para se garantir a paz. E sobre
esse assunto: “a despeito do insucesso na evitação da guerra, o pacto da
Liga das Nações estabeleceu técnicas de negociações para solução
Weuller Carvalho Barreira Sales; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 203

pacífica de litígios, as quais foram posteriormente aperfeiçoadas com o


advento das nações unidas” (VENTURA; SEINTENFUS, 2008, p. 142).
Contudo, a Carta das Nações Unidas se diferiu da primeira por não
ser orientada pelo entendimento idealista e sim levando em
consideração as condições que existiam na década de 40,
principalmente as conjunturas da política internacional. Assim sendo,
cabe sintetizar, que o filósofo prussiano pensou a teoria da paz perpétua
que tempos depois serviria de paradigma para a Carta da ONU, como
também seus propósitos e preceitos determinados por esta Organização
Internacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Passados mais de duzentos anos da publicação do projeto Kantiano


“A Paz Perpétua”, suas ideias continuam a gerar repercussões, tanto no
meio acadêmico, quanto no político. A teoria escrita por Kant deve ser
entendida como uma regra política, a fim de se ter um funcionamento
entre as nações sem ódios e adversidades. A inspiração republicana,
citada pelo filósofo Konigsberg, é necessária, para justamente fazer com
que as sociedades se guiem no rumo único do cosmopolitismo.
Entretanto, para Kant, o único modo de acabar com as guerras, é
fundando um ordenamento jurídico comum, tendo o propósito de fazer
toda a humanidade pensar de forma coletiva. Somente deste modo, sob
o mesmo ordenamento, pode-se pensar na viabilidade do progresso
humano. Ademais, o questionamento se existe ou não a possibilidade da
referida paz, já que ao homem é duvidoso alcançar este estado, não deve
ser proposta. Esta é a conclusão de Kant. “A paz perpétua é a norma
segundo a qual todos os políticos devem funcionar. Ela deve ser na
fundação da sabedoria política de um Estado civil que, o mais
204 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

provavelmente, cresceu da violência gerada pelos conflitos dos


interesses próprios” (MILIĆ, 2013, p. 52).
O pensamento contido na obra, perpassam o tempo e chegam até
os nossos dias. Nessa perspectiva, o projeto kantiano visita diversos
ambientes do conhecimento, como o da Filosofia do Direito, do Direito
Internacional e dos Direitos Humanos, e fundamenta a questão do
idealismo. Este projeto de Kant aborda também diversas temáticas da
contemporaneidade, como a liberdade, a democracia e a dignidade da
pessoa humana.
No ano de 1945, com a decadência da Segunda Guerra Mundial e a
fundação da Organização das Nações Unidas, o vínculo entre os estados
ganha uma nova proporção, e passa de um desejo incontrolável de
poder, para um maior espírito de cooperação, em que há uma maior
preservação dos Direitos Humanos. Dessa forma, o surgimento da Carta
das Nações Unidas representou a prática da teoria de Kant, que em seus
artigos é de fácil percepção a influência desta na referida carta jurídica.
Na esteira do que foi explicado, conclui-se que a obra de Kant se
apresentou como um enorme progresso para o Direito Público
Internacional, o qual abandonou contextos históricos de guerras,
buscando toda a composição internacional requisitos jurídicos que até
então existiam somente no direito interno.
Todavia, instituições jurídicas internacionais como a Liga das
Nações e depois com a ONU, não obtiveram grandes êxitos para garantir
a paz à humanidade. Mas pode-se perceber e confirmar que, como dito
por Kant, aos homens existe a possibilidade de pelo menos se juntarem
e conversarem entre si, sobre os problemas que os convêm, este diálogo
de maneira racional, irá trazer respostas mais pacíficas. Portanto, no
pensamento de Kant, do mesmo modo que os homens devem ceder parte
Weuller Carvalho Barreira Sales; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 205

de sua liberdade em benefício de uma entidade, que se coloca em


superioridade, também os estados devem, como forças políticas, ceder
parte de sua soberania, pois, seus funcionamentos sem medidas é o que
fundamenta as guerras.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emmanuel Kant. São Paulo,


Mandarim, 2000.

MELLO, Celso D. de A. Direito Internacional Público. 5ª ed., Rio de Janeiro, Freitas


Basto, 1976.

SALDANHA, W, E; MELANIE, M. de A. O Idealismo e a Carta da ONU. Curitiba: Juruá,


2008.

VENTURA, Deisy, e SEINTENFUS, Ricardo. Introdução ao Direito Internacional


Público, 2ª ed., Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2008.

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 25ª ed. 2001.

RODRIGUES, Redede. Fernando. O projeto kantiano de paz perpétua e seus reflexos no


direito internacional do século XX. UFP. Curitiba, 2010. Acesso em:
https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/31473/M1365JU.pdf?sequence
=1. No dia 08/05/2018.

MILIĆ, Branimir A ideia kantiana de paz perpétua e suas. Reformulações. UNB.


BRASÍLIA – DF 2013. Disponível em: http://bdm.unb.br/bitstream/10483/5178/
1/2013_BranimirMilic.pdf. No dia 02/05/2018.

KANT, Immanuel. A Paz Perpétua. Um Projecto Filosófico. Tradução de Artur Morão.


Colecção: Textos Clássicos de Filosofia. Covilhã, 2008.

KANT Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo


Quintela. EDIÇÕES 70, LDA. Setembro de 2007.

WEFFORT, C. Francisco. Os Clássicos da política. Editora Ática. 2010.


O CONCEITO DE VIOLÊNCIA NO ENSAIO
8
SOBRE A VIOLÊNCIA DE HANNAH ARENDT
Sônia Maria de Aguiar Cana Verde 1

Francisco Atualpa Ribeiro Filho 2

INTRODUÇÃO

Hannah Arendt nasceu em 1906 no seio de uma família judia perto


de Hannover. Ela foi uma filósofa que abordou temas muito atuais,
possivelmente influenciada por sua vivência em uma sociedade
permeada por relações de poder e violência. Arendt escolheu destacar
os problemas enfrentados pela coletividade devido à opressão vivida por
muitos judeus e outros povos em regimes totalitários e opositores.
Ao contrário da visão convencional que enxerga a violência como
simples manifestação de força e agressão para demonstrar domínio e
poder, a perspectiva de Arendt destaca que a violência se manifesta
especialmente em meio à fragmentação do poder. Essa abordagem
oferece uma análise mais profunda das dinâmicas sociais, explorando

1
Possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí (2018) e graduação em Pedagogia
pela Faculdade Integrada do Brasil (2011). Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Piauí
(2021). Especialista em ensino de Filosofia para o Ensino Médio UFPI Especialista em Ciências da Religião
PROMINAS. Cursando Mestrado Profissional em Filosofia pela UFPI. Servidora efetiva da Secretaria
Estadual de Educação do Piauí - SEDUC. Tem experiência no ensino de Filosofia, Sociologia, História e
Ensino Religioso.
2
Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí; Licenciado em Filosofia pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie; Bacharel em Administração Pública pela Universidade Estadual do Piauí.
Especialização em: Docência do Ensino Superior (UNOPAR); Gestão Pública Municipal (UESPI); Gestão
Educacional em Rede EaD (UFPI); Licenciando em Letras Português pela Estácio. Atualmente é
orientador do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) da FCP e professor efetivo
da SEDUC-CE. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1491096614911103. E-mail: farf25@gmail.com.
208 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

como a violência surge em contextos nos quais as estruturas de poder


estão fragmentadas e há falta de coesão social.
Este trabalho foi desenvolvido com o objetivo de compreender o
conceito de violência no pensamento de Hannah Arendt, como também
as suas principais características e diferenciá-lo do conceito de poder,
refletir acerca da relação entre poder e violência em meio às relações
humanas, bem como sua natureza e causas. Compreender o contexto
histórico que a filósofa alemã se baseou como plano de fundo para
escrever seu ensaio acerca do tema proposto também é de grande valia,
pois Arendt era preocupada com temas atuais e pontuais.
O problema a ser destacado será como a violência é vista nas
relações de poder no pensamento de Hannah Arendt, observando como
a violência e o poder é utilizado como prática humana para exercer
domínio sobre o outro, bem como a utilização desse instrumento nas
relações políticas para a sua manutenção no pódio. A metodologia a ser
utilizada será básica, pois visa contribuir conhecimento para o meio
acadêmico, e de pesquisa bibliográfica, ou seja, feita a partir de leituras
de livros e textos publicados.
Este trabalho está organizado da seguinte forma, a primeira
discussão trata acerca do cenário histórico e as concepções de violência
da época. Aborda a respeito das Revoltas Estudantis e as Guerras
Internacionais. Já na seção seguinte, apresentaremos o conceito de
violência em Hannah Arendt, bem como a distinção entre poder, força,
vigor, autoridade e violência. O último tópico trata a respeito da
distinção entre poder e violência, bem como a sua natureza não
zoológica, mas política.
O trabalho versa sobre Hannah Arendt em seu ensaio “Sobre a
Violência”. Contemplando ainda outros autores como, Artur Domingos
Sônia Maria de Aguiar Cana Verde; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 209

Santos Andrês, Danilo Arnaldo Briskievicz, Matheus Kaltner Mendes


Silva e Flávio Marcelo Rodrigues Bruno e Karina A. Fry.

1. O CENÁRIO HISTÓRICO E AS CONCEPÇÕES DE VIOLÊNCIA DA ÉPOCA

Hannah Arendt, filósofa e teórica política, desenvolveu suas


concepções sobre violência em um contexto histórico marcado por
eventos significativos do século XX. Suas ideias foram fortemente
influenciadas pela experiência traumática da Segunda Guerra Mundial
e, especialmente, pelo julgamento de criminosos de guerra nazistas em
Nuremberg. Em sua obra “Origens do Totalitarismo”, Arendt examina
como o totalitarismo emergiu como uma forma extrema de governo que
instrumentalizou a violência de maneiras inéditas. Ela destaca a
natureza desumanizadora dos regimes totalitários, que empregavam
não apenas a violência física, mas também estratégias de controle
ideológico e manipulação da verdade para alcançar seus objetivos. O
cenário histórico do Holocausto e das atrocidades cometidas pelo
regime nazista fornecem o pano de fundo para as reflexões de Arendt
sobre a banalidade do mal e a capacidade humana de se afastar da
responsabilidade moral diante de ações violentas.
Diante disso, em sua obra “Sobre a Violência” – mola mestra dessa
pesquisa –, Arendt explora as diferentes formas de violência presentes
na sociedade, distinguindo entre violência que visa a dominação e a
violência que busca a liberdade. Ela contextualiza suas ideias em meio
aos movimentos sociais e protestos da década de 1960, um período
marcado por uma efervescência política global. Arendt critica a
instrumentalização da violência como meio de alcançar objetivos
políticos, argumentando que essa abordagem mina os fundamentos da
política e da convivência humana. O cenário histórico em que Arendt
210 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

desenvolve suas concepções sobre violência reflete, assim, um profundo


engajamento com os desafios éticos e políticos de sua época,
proporcionando uma análise crítica das dinâmicas sociais e políticas
que permeiam a utilização da violência.

1.1 GUERRAS INTERNACIONAIS

Hannah Arendt decidiu escrever seu Ensaio “Sobre a Violência”


(1969) tendo como base os acontecimentos e debates do século XX, visto
por ela como o “século de guerras e revoluções” ou o período da
violência, a partir dos impactos políticos do pós-guerra. Outro fator que
também chamou a atenção de Arendt (1968, p. 04) foi, “o progresso
técnico dos instrumentos da violência alcançarem um ponto onde o
objetivo político algum poderia corresponder ao seu potencial de
destruição”, ou seja, a Segunda Guerra Mundial e outras guerras do
século XX colaboraram para o crescimento da produção dos
instrumentos da violência.
Ao tratar das guerras internacionais, Arendt enfatiza que o seu
maior objetivo não é unicamente a vitória. Em suas palavras,

O seu objetivo racional é a dissuasão e não a vitória; e a corrida


armamentista, não mais uma preparação para a guerra, somente se justifica
agora argumentando-se que mais e mais dissuasão é a melhor garantia de
paz. Para a indagação de como poderemos um dia desembaraçar-nos da
óbvia insanidade dessa situação, não existe resposta (ARENDT, 1969, p. 04).

Pode-se dizer que o maior objetivo das guerras ou o objetivo mais


racional é fazer o outro mudar de ideia e não propriamente a vitória de
um lado, e que a corrida armamentista, a produção de armas de forma
acelerada não seria uma preparação para a guerra, mas apenas um meio
Sônia Maria de Aguiar Cana Verde; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 211

de instigar a mudança de opinião a fim de garantir a paz. Ao se


questionar se poderia decifrar a evidente alienação ou loucura dessa
situação, Arendt diz não existir resposta.
Na visão arendtiana,

A razão principal por que os conflitos armados ainda existem, não é


nenhum desejo secreto de morte da espécie humana, ou um irreprimível
instinto de agressão, nem, finalmente, e mais plausivelmente os sérios
perigos econômicos e sociais inerentes ao desarmamento: porém o simples
fato de que substituto algum para esse árbitro final nas relações
internacionais apareceu ainda no cenário político (ARENDT, 1968, p. 05).

A existência de conflitos armados deve-se não ao desejo de morte


ou agressão dos homens, nem tampouco aos desastres econômicos e
sociais que são inseparáveis ao desarmamento, todavia, ao fato de não
haver nenhum substituto para esse juiz final das relações
internacionais. A violência sempre foi o melhor juiz nas relações
conflituosas das relações internacionais e nunca apareceu na história
um árbitro melhor. Bresikevicz (2015, p. 02) elucida que “Arendt
observava com repúdio a ampliação do uso da violência política mesmo
depois das fatídicas experiências da Segunda Guerra Mundial”.
A violência por muito tempo foi marginalizada, por ser vista como
fato corriqueiro foi negligenciada e, por isso, as pessoas não questionam
aquilo que era evidente para todos. Arendt (1969, p. 07) argumenta que
“qualquer um que procurasse algum sentido nos registros do passado
estava quase destinado a encarar a violência como um fenômeno
marginal”.
A violência estava sendo vista como algo normal, que fazia parte
necessária da história e, por isso, não era mais motivo para ser
questionado pelas pessoas, pois não havia o que questionar a respeito
212 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

de algo que se fazia necessário, normal e comum para o crescimento e


desenvolvimento das atividades humanas no contexto histórico da
humanidade.
Porém, Arendt (1969, p. 07) discorda dessa tese ao defender que
“fazer adormecer o nosso bom senso, que nada mais é que o nosso órgão
mental que se destina a perceber, compreender e lidar com a realidade
e com os fatos”. Com isso, a filósofa acredita ser necessária a ação
humana, que as pessoas usem o bom senso para perceber a realidade
que está em sua volta, ou seja, a violência não pode ser vista como algo
normal e natural nas relações humanas.
Conforme Arendt, (1969, p. 07) “ninguém que se dedique à
meditação sobre a história e a política consegue se manter ignorante do
enorme papel que a violência desempenhou sempre nas atividades
humanas”. Mesmo tendo desempenhado um enorme papel nas
atividades humanas desenvolvidas na história e na política, a violência
raramente foi componente de importância nas meditações acerca da
história. A violência foi tida por muito tempo como algo aceitável como
normal e, por isso, colocada à margem das discussões políticas como
algo que deveria ser mudado.
A autora defende que atualmente essas verdades, ou seja, esse
relacionamento entre guerra versus política e violência versus poder, são
inaplicáveis, visto que,

À Segunda Guerra Mundial não se seguiu a paz, mas sim uma guerra fria e
o estabelecimento de um complexo militar-industrial. Falar da prioridade
do potencial para a luta armada como a principal força de estruturação da
sociedade, sustentar que os sistemas econômicos e as filosofias políticas
servem e estendem o sistema bélico e não vice-versa, concluir que a própria
guerra é o sistema social básico, dentro do qual outros tipos de organização
Sônia Maria de Aguiar Cana Verde; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 213

social conflitam ou conspiram. [...] ao invés de ser a guerra uma extensão


da diplomacia ou da política ou da busca dos objetivos econômicos, a paz é
a continuação da guerra por outros meios, é o verdadeiro desenvolvimento
das técnicas da guerra (ARENDT, 1969, p. 08).

A relação entre poder e violência, bem como guerra e política não


podem mais ser aplicados na atualidade, pois se esses mecanismos
realmente funcionassem, após a Segunda Guerra Mundial teria
sucedido a paz, visto que esses instrumentos foram utilizados da
“melhor” forma possível, e é notório que isso não aconteceu, pois após
a guerra veio outra guerra, ou seja, é como se um abismo chama outro
abismo. Outra consequência da guerra foi o investimento em larga
escala em pesquisas para fins bélicos especialmente nos Estados Unidos
desencadeou a busca pelo domínio das ogivas nucleares.
Uma sociedade que é estruturada em seu potencial bélico, ou
acreditar que a guerra faz parte do sistema básico de uma coletividade
não é bem-vista na visão de Arendt, pois no seu entendimento, o que
deveria ser a expansão da política seria a paz e não a guerra, ou seja, a
paz deveria ser a extensão da guerra vista por outros meios.
Na visão arendtiana, “quanto mais dúbio e incerto tornou-se o uso
da violência nas relações internacionais, mais ganhou em fama e
atração na política interna, especificamente em se falando em
revolução” (ARENDT, 1969, p. 09). Arendt argumenta que embora
sabendo que o uso da violência traria resultados imprecisos e duvidosos
nas relações internacionais, as políticas internas foram atraídas pelo
uso violento em suas revoluções, e foi o que aconteceu na revolta dos
estudantes da França em maio de 1968.
214 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

1.2 AS REVOLTAS ESTUDANTIS

Outro fato marcante que Hannah Arendt fez questão de enfatizar


em seu ensaio foi a revolta estudantil de 1968, que gerou grande
repercussão não só na França, como também em outros países e
inclusive nos Estados Unidos. Os estudantes franceses reivindicavam
mais diálogo e debate com o governo autoritário, e os americanos
desejavam a saída dos EUA da guerra do Vietnã.
Arendt não se opõe a movimentos populares, quando estes são
feitos de forma não violenta. A revolta dos estudantes franceses
influenciou os americanos que decidiram protestar também,
principalmente pela saída dos EUA na guerra do Vietnã, os
estadunidenses não queriam seus irmãos morrendo em uma guerra que
não era especificamente dos Estados Unidos. Protestaram também
contra o racismo e a igualdade de educação para estudantes negros e
brancos.
Ao abordar os participantes da Nova Esquerda, composta por
estudantes universitários, professores, ativistas negros e feministas,
denominados assim por estarem, na visão dos revolucionários,
seguindo o modelo de revolução proposto por Karl Marx, vale destacar
que Arendt não concordava com a ideia de que esses revolucionários
eram seguidores fiéis de Marx. Isso se deve ao fato de que Marx,
precursor da luta operária, não era adepto da violência.
Arendt destaca uma divergência fundamental entre a abordagem
dos revolucionários contemporâneos e a perspectiva original de Marx.
Enquanto Marx focava na luta de classes e na busca por transformações
sociais por meio da conscientização e organização da classe
trabalhadora, muitos grupos da Nova Esquerda adotavam estratégias
Sônia Maria de Aguiar Cana Verde; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 215

mais radicais e, em alguns casos, recorriam à violência como meio de


alcançar seus objetivos. Arendt, portanto, via uma diferença
significativa entre os métodos propostos por Marx e as táticas
empregadas por alguns segmentos da Nova Esquerda.
Hannah Arendt argumenta que não sendo Marx adepto da
violência, os manifestantes da Nova Esquerda também não poderiam
utilizar desse instrumento para se despontarem, pois, a luta de Marx
era baseada na revolta e no poder de união dos operários. Quanto ao
entendimento de que a Nova Esquerda estava se baseando no
pensamento marxiano, Arendt (1969, p. 10) aponta que,

Certamente, Marx tinha consciência do papel desempenhado pela violência


na História, mas esse papel era para ele secundário; não a violência, mas
sim as contradições da antiga sociedade que causaram o seu fim. [...] Tem-
se frequentemente observado, e algumas vezes deplorado, que a Esquerda
revolucionária sob a influência dos ensinamentos de Marx rejeitava o
emprego dos meios violentos.

Nesse sentido, o pensamento da autora é de total convicção que os


adeptos da Nova Esquerda que utilizam meios violentos para
protestarem não tinham nada a ver com o que defendia Karl Marx, pois
o filósofo não via a violência como principal instrumento de revolta e
pelo contrário seriam os absurdos, as condições da antiga sociedade que
causaram revoltas dos operários que decidiram lutar pelos seus direitos.
Aliás, Arendt defendia que os adeptos da esquerda revolucionária
influenciados por Karl Marx rejeitam o uso da violência.
Na realidade, o apoio ideológico dos revoltosos, segundo Arendt,
foi Sartre e Fanon, pois esses são adeptos e defensores do uso da
violência. Hannah Arendt fez questão de enfatizar em sua obra
características do pensamento dos filósofos. Em suas palavras,
216 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

Sartre está inconsciente de sua discordância básica com relação a Marx


sobre a questão da violência, especialmente ao afirmar que a violência
irreprimível é o homem recriando a si mesmo, e que é através da fúria louca
que os desgraçados da terra podem tornar-se homens. [...] para Marx, o
homem produz a si mesmo através do trabalho, pois foi o trabalho, a
maneira humana de metabolismo com a natureza, que preenche essa função
(ARENDT, 1969, p. 10).

Na perspectiva de Sartre, a violência incontrolável, irrefreável é o


homem reinventando a si mesmo. No entanto, no pensamento
marxiano é o trabalho que desempenha esse papel, por isso, Arendt
defende que os adeptos da Nova Esquerda são apoiados no pensamento
de Sartre e não de Marx. Visto que Sartre baseava-se no uso de violência
para conseguir chegar a algum objetivo e, consequentemente, construir
a si mesmo enquanto Marx acredita que são as relações de trabalho
responsável por erguer e arquitetar o homem.
Outro posicionamento que chamou a atenção de Hannah Arendt foi
o pensamento de Fanon quanto à violência ao dizer que “só a violência
vale a pena”. Fanon tinha um pensamento radical quanto ao uso da
violência, por isso, Sartre e Fanon são os principais influenciadores dos
adeptos da Nova Esquerda, ou seja, os manifestantes que utilizavam de
meios violentos para revelar-se em meio aos protestos (ARENDT, 1969,
p. 11).
Ao tratar da Nova Esquerda americana, Arendt argumenta que a
paixão e inspiração dessa geração foi o desenvolvimento das armas
modernas, foi uma geração que cresceu em um cenário histórico
marcado por guerras e produção de arsenal bélico em massa. Arendt
chega a dizer que “essa é a primeira geração a crescer à sombra da
bomba atômica” (ARENDT, 1969, p. 11).
Sônia Maria de Aguiar Cana Verde; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 217

A herança política e histórica dos adeptos da Nova Esquerda


americana era bastante violenta, pois eles aprenderam tanto nas escolas
quanto nas Universidades acerca de guerras, mortes e destruição. Era
uma geração que cresceu à sombra da bomba atômica, ou seja, sob o
signo de informações acerca da Segunda Guerra Mundial.
Entretanto, a filósofa destaca que a primeira reação da geração da
Nova Esquerda americana ao se depararem com as guerras foi a repulsa
à violência, ou seja, foram adeptos das reações não violentas e Arendt
traz como exemplo a resistência à participação dos Estados Unidos na
guerra do Vietnã, os americanos não queriam mais conflitos violentos e
sanguinários.
Destaca que “às grandes vitórias desse movimento, especialmente
no campo dos direitos civis, seguiu-se o movimento de resistência à
guerra do Vietnã, o qual se manteve como fator importante na
determinação do clima de opinião neste país (EUA)” (ARENDT, 1969, p.
11). Quando os adeptos da Nova Esquerda americana decidiram se
manifestar contra a participação dos Estados Unidos na guerra do
Vietnã, eles fizeram protestos pacíficos, sem o uso da violência, os
estudantes decidiram lutar contra a guerra, pois morreram milhares de
soldados americanos na batalha, reivindicavam direitos civis, e queriam
o fim do serviço militar obrigatório.
Todavia, Arendt enfatiza que sendo a rebelião estudantil um
fenômeno global, as suas manifestações mudam de um país para outro
e até mesmo de uma universidade para outra, principalmente quanto à
prática de meios violentos. As revoluções estudantis do século XX se
espalharam por diversos países, porém as manifestações tinham suas
peculiaridades quanto ao uso da violência e de meios agressivos em suas
práticas ativistas.
218 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

Em se tratando do movimento estudantil dos Estados Unidos,


Arendt (1969, p 13) defende que,

Nos Estados Unidos, o movimento estudantil tinha-se radicalizado onde


quer que intervenham a polícia e a sua brutalidade em demonstrações
essencialmente não-violentas; ocupação de prédios da administração, sit-
ins; etc. a violência mais séria entrou em cena apenas com o aparecimento
do movimento Black Power no campus.

Hannah Arendt argumenta os estudantes sempre faziam


manifestações, como ocupações de prédios, ficaram sentados no chão
como ato de protestar e obstruir vias, decidindo por não se alistarem ao
sistema militar e até mesmo manifestar repúdio ao alistamento
queimando as carteiras em praça pública, mas sempre de forma pacífica.
Porém, o movimento começou a se radicalizar quando a polícia começou
a intervir de forma brutal, pois o governo queria cessar as manifestações
e, com isso, fez uso da força bruta, da coerção, ou seja, da violência.
Magalhães (2008, p. 41) salienta que,

A primeira reação dos estudantes norte-americanos frente aos


acontecimentos foi a de adotar uma política pacifista que resultou na
desobediência civil, bem como no boicote à convocação do serviço militar
obrigatório: em outubro de 1965, dezenas de milhares de estudantes foram
às ruas de Nova York e Berkeley protestarem contra a Guerra do Vietnã,
gritando palavras de ordem como “Saiam do nosso bairro e do Vietnã”.
Outras vezes os estudantes ensinavam como fraudar os exames do
recrutamento militar, como também eram queimadas diante das redes de
TV as carteiras de reservista.

As manifestações dos jovens americanos inicialmente foram


pacíficas, pois eles usaram como principal arma a desobediência civil, se
recusando ao recrutamento militar. Entretanto, o estopim da violência
Sônia Maria de Aguiar Cana Verde; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 219

nos movimentos, na visão arendtiana, foi o aparecimento dos grupos de


Black Power, pois os negros reivindicavam equiparação no trato entre
brancos e negros, igualdade no setor educacional (queriam diminuir os
padrões acadêmicos) e repulso ao racismo de forma violenta.
Hannah Arendt não aprova a adesão dos estudantes
revolucionários brancos com os negros, pois segundo Magalhães, “a
autora alemã aponta a aproximação dos estudantes brancos ao
movimento Black Power, e chega a criminalizá-lo, não aprovando a
associação dos estudantes brancos – rebeldes legítimos - aos negros –
rebeldes criminosos”. Afinal, os estudantes brancos estavam corretos
em suas ações, porém se corromperam ao se adequarem à maneira
violenta dos negros de se manifestarem (ARENDT, 2008, p. 58).
Arendt entende que o movimento estudantil começa a glorificar a
violência, pois suas argumentações e teorias passam a ser inspiradas em
Fanon. A ênfase que a filósofa apresenta como positiva no movimento
estudantil dos Estados Unidos foi o seu apenas o slogan que diz
“democracia participante” (ARENDT, 1969, p.16). Ao reivindicarem a
democracia participante os jovens revolucionários estavam corretos,
porém se desvirtuaram quando passaram a utilizar de meios violentos
para conseguirem chegar a esse objetivo.
Hannah Arendt, ao observar os desdobramentos dos eventos
ocorridos no século XX, notou a presença marcante da violência em
vários manifestos e movimentos políticos. Diante desse cenário, a
filósofa se propôs a explorar e compreender as principais
características do conceito de violência em sua obra. Para Arendt, a
violência não se limita apenas à manifestação física de força ou
agressão, mas ela se revela de maneira mais profunda e complexa nas
relações sociais e políticas.
220 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

Arendt destaca que a violência pode se manifestar de diversas


formas, não apenas como uma ação direta, mas também como uma
ferramenta de controle e poder. A análise da filósofa vai além das
dimensões individuais e abrange as dinâmicas coletivas, examinando
como a violência pode ser utilizada como instrumento político para
impor vontades e restringir a liberdade. Assim, o entendimento de
Arendt sobre a violência não se restringe ao âmbito físico, mas engloba
também aspectos psicológicos, sociais e políticos, oferecendo uma
perspectiva abrangente sobre esse fenômeno complexo.
Na busca por compreender as raízes e as manifestações da
violência, Arendt contribui para uma reflexão mais profunda sobre os
desafios éticos e sociais enfrentados pela humanidade. Suas reflexões,
fundamentadas em uma análise crítica e contextualizada dos
acontecimentos de sua época, continuam a inspirar debates e estudos
sobre a natureza da violência e suas implicações na sociedade
contemporânea.

2. ARENDT E A VIOLÊNCIA

Em “Sobre a Violência”, Arendt explora a distinção entre poder e


violência, argumentando que o verdadeiro poder deriva da capacidade
de agir em conjunto na esfera pública. Para ela, a violência, quando
utilizada como instrumento político, representa uma falha no exercício
do poder legítimo, minando a autenticidade da ação política. Arendt
ressalta que a busca pela coerção violenta frequentemente revela a falta
de engajamento cívico e a incapacidade de estabelecer consenso por
meio do diálogo, enfatizando a importância do espaço público como
palco para a ação política eficaz.
Sônia Maria de Aguiar Cana Verde; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 221

Desse modo, em “Eichmann em Jerusalém”, Arendt confronta a


natureza da violência no contexto dos crimes nazistas, introduzindo o
conceito de “banalidade do mal”. Ao analisar o papel de Adolf Eichmann
na implementação logística do Holocausto, ela argumenta que a
violência extrema muitas vezes resulta de ações aparentemente banais
e desprovidas de reflexão moral individual. Arendt destaca como
estruturas burocráticas e a obediência cega podem facilitar atrocidades,
ressaltando a necessidade de uma reflexão ética constante em meio a
ambientes propensos à violência. A contribuição de Arendt para o
entendimento da violência vai além da simples análise dos atos brutais,
estendendo-se para uma análise mais profunda das condições sociais e
políticas que propiciam sua emergência.

2.1 CONCEITO DE VIOLÊNCIA EM HANNAH ARENDT

Quanto ao conceito de violência, a autora se preocupa mais em


compreendê-la do que em definir o que ela venha a ser, pois na sua visão
a compreensão nos faz aprender a lidar com nossa própria realidade e a
harmonizar-nos com ela. Em seu ensaio “Sobre a Violência”, a filósofa
faz distinção entre alguns conceitos, sendo eles poder, vigor,
autoridade, força e violência, consideramos o que a autora destaca a
respeito da violência. Nesse sentido, segundo Arendt (1968, p. 28):

A violência distingue-se por seu caráter instrumental. Do ponto de vista


fenomenológico, está ela próximo do vigor, uma vez que os instrumentos
da violência, como todos os demais, são concebidos e usados para o
propósito da multiplicação do vigor natural até que, no último estágio de
desenvolvimento, possam substituí-lo.
222 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

A violência se distingue das demais pelo seu caráter instrumental,


pois esta precisa de instrumentos, ou seja, como todos os meios a
violência sempre carece de orientação e justificação pelos fins que
persegue, sendo assim, necessitando ser justificada por alguma outra
coisa não pode ser essência de coisa alguma, visto que é utilizada como
meio para atingir determinado fim ou uma finalidade almejada.
Como bem esclarece Arendt (1969, p. 33) “a violência não depende
de números ou de opiniões, mas sim de formas de implementações e
essas formas de implementações aumentam e multiplicam a força
humana”. Para a autora essa prática da violência tende a aumentar a
força humana, sendo essa força a que a filósofa apresenta como as
forças das circunstâncias, ou seja, a energia liberada através de
movimentos físicos ou sociais. Quando os governantes se sentem
ameaçados em determinado governo gerando desarmonia e caos a
violência tende a aumentar.
Hannah Arendt dedica parte significativa de sua obra a uma
cuidadosa análise semântica e conceitual, destacando a importância de
diferenciar termos que frequentemente são percebidos como
intercambiáveis, mas que, segundo a autora, possuem significados
distintos. Para Arendt, esse exercício de diferenciação é crucial para
uma compreensão mais precisa das dinâmicas políticas e sociais.
Arendt, por exemplo, examina minuciosamente conceitos como
“poder”, “violência” e “autoridade”, argumentando que, apesar de
frequentemente utilizados como sinônimos, cada um carrega consigo
nuances específicas que moldam sua aplicação e impacto na esfera
política.
No âmbito de suas reflexões, o “poder” é entendido por Arendt
como a capacidade de agir em conjunto, de influenciar a ação de outros
Sônia Maria de Aguiar Cana Verde; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 223

e de compartilhar decisões coletivas. Em contraste, a “violência” é


percebida como uma imposição unilateral, muitas vezes desconectada
da capacidade de persuasão e diálogo. Já a “autoridade” está relacionada
à legitimidade e ao reconhecimento, sendo construída a partir do
consentimento e da confiança mútua.
Ao esmiuçar esses conceitos, Arendt busca não apenas esclarecer
suas distinções, mas também ressaltar como sua compreensão
específica de cada termo pode oferecer insights cruciais para a análise
das dinâmicas políticas. Essa abordagem contribui para uma visão mais
complexa e matizada das relações de poder, autoridade e violência na
esfera pública, proporcionando uma base conceitual sólida para a
reflexão sobre as interações humanas e as estruturas políticas.

2.2 PODER, FORÇA, VIGOR E AUTORIDADE.

Em seu ensaio “Sobre a Violência”, Hannah Arendt faz a distinção


entre os termos poder, vigor, força, autoridade e violência, isso demonstra
na autora uma maneira de emancipar um termo do outro, a fim de não
igualar, como se fossem sinônimos, pois de certa forma são palavras para
indicar os meios em função dos quais o homem domina o homem.
O Vigor, que segundo Arendt, “é uma entidade individual, uma
qualidade inerente a um objeto ou pessoa e que pertence ao seu caráter,
podendo se manifestar em relação a outras pessoas, porém
essencialmente independente deles” (ARENDT, 1969, p. 28). Ao afirmar
que o vigor é “essencialmente independente” de outros indivíduos,
Arendt ressalta a natureza intrínseca dessa qualidade. O vigor não é
determinado pelas relações externas, mas é uma expressão do caráter e
da singularidade de uma entidade específica. Essa abordagem ressoa
com a ênfase de Arendt na importância da individualidade e da ação
224 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

singular na esfera pública. O vigor, portanto, não é apenas uma força


física, mas uma expressão da vitalidade única que cada pessoa ou objeto
carrega consigo, independentemente de suas interações com os outros.
Briskievicz (2009, p. 119) em sua dissertação “Violência e Poder em
Hannah Arendt” destaca que:

O vigor é a resistência ou energia inerente a um objeto ou pessoa. O vigor se


encontra no mundo em objetos ou indivíduos no singular. É parte
integrante e inerente de coisas e pessoas e é experimentado em contato com
outros, guardando sempre sua propriedade. A singularidade do vigor é a sua
independência.

O Vigor é essencialmente individual, característico da pessoa.


Através do vigor o indivíduo tem a capacidade de dominar sem usar a
força e a imposição, pois por meio de sua energia a pessoa conquista e
faz com que os outros lhe sejam submissos. Briskievicz (2009, p. 119) cita
como exemplo “o Papa João XXIII em que a capacidade de fazer o bem e
evitar o mal fazia parte da sua própria maneira de viver” e de ser
humano. Como exemplo podemos citar o próprio Cristo, que não se
importando com a opinião da maioria fazia o que era correto e através
disso conquistou muitos seguidores.
A Força, “vista como as forças da natureza ou das circunstâncias,
ou seja, indica a energia liberada através de movimentos físicos ou
sociais”. Assim, podemos ter como exemplo o movimento totalitário,
visto que necessitava de força bruta para manter sua mobilidade, os
regimes totalitários baseiam-se em sua força para alcançar o fim
almejado (ARENDT, 1969, p. 28).
Quanto à Autoridade, Arendt (1969, p. 28) afirma que a sua principal
“caraterística é o reconhecimento sem discussões por aqueles que são
Sônia Maria de Aguiar Cana Verde; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 225

solicitados a obedecer, nem a coerção e nem a persuasão são


necessários”. Segundo Arendt (1969, p. 28), “para conservar a autoridade
é necessário o respeito pela pessoa ou pelo cargo, sendo o maior inimigo
da autoridade o desprezo e a maneira mais segura de solapá-la é a
chacota ou o riso”. Temos como exemplo de autoridade as relações de
pais e filhos, professor e aluno e até mesmo as relações nos cargos
hierárquicos das igrejas.
O Poder na visão arendtiana “corresponde à habilidade humana de
não apenas agir, mas de agir em comum acordo. O poder jamais é
propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e existe apenas
enquanto o grupo se mantiver unido” (ARENDT, 1969, p. 27). Para que o
poder possa ter êxito, faz-se necessário que um grupo esteja em comum
acordo a respeito de determinado fim, ou seja, para manter um
governante no domínio, um grupo de pessoas devem concordar com a
ideia de tê-lo como líder.

2.3 A NATUREZA INSTRUMENTAL DA VIOLÊNCIA

O fenômeno da violência é frequentemente confundido com outros


conceitos como o poder e a autoridade, porém existem diferenças entre
tais conceitos e o principal deles é que a violência é por natureza
instrumental, ou seja, tem a necessidade de ser justificada, visando
sempre uma resposta rápida daquilo que almeja.
Conforme Arendt (1969, p. 50):

A violência, sendo instrumental por natureza, é racional até o ponto de ser


eficaz em alcançar a finalidade que deve justificá-la. E já que quando
agimos, jamais saberemos com certeza quais serão as eventuais
consequências, a violência só pode manter-se racional se buscar objetivos
em curto prazo. A violência não promove causas, nem a história, nem a
226 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

revolução, nem o progresso, nem a reação, mas pode servir para dramatizar
reclamações trazendo-as à atenção do público.

Sendo instrumental, a violência procura meios para conseguir


justificar-se, ela busca alcançar seus objetivos em curto prazo e mesmo
não trazendo progresso para a história a violência sempre consegue
atrair a atenção do público ou da maioria. A violência tem a capacidade
de transparecer racionalidade, na medida que busca alcançar seus
objetivos a curto prazo, pois existem casos em que o uso da violência foi
capaz de conseguir aquilo almejado de forma rápida e eficaz, como nos
casos de revanche do governo para conter manifestantes nas ruas ao
utilizar da força militar para conter as manifestações.
Andrês (2012, p. 24), elucida que:

O fenômeno da violência é frequentemente confundido com outros


fenômenos e respectivos conceitos associados, pelo simples fato de
coexistirem amiúde (e habitualmente) no próprio espaço em que este
ocorre. É, pois, tradicionalmente associado ao conceito de poder e de
autoridade, mas Arendt faz questão de dissociá-lo de tais realidades e de
explicar que a violência é amiúde um instrumento usado para coagir e para
expressar uma dada vontade e impor as respectivas ordens. O fenômeno da
violência pode, portanto, ser tanto o resultado da ação do braço armado de
um governante como um instrumento revolucionário utilizado por um
grupo revoltado. Em qualquer dos casos visa sempre a imposição de um
dado ordenamento ou a procura de um outro que possa porventura ser mais
eficaz ou funcional – ou, frequentemente, ainda que de forma
imperceptível, a mera tentativa de retorno a “tempos mais prósperos”.

Visto isso, pode-se dizer que a violência é frequentemente


confundida com o poder e a autoridade, porém o que os dissocia é o
caráter instrumental da violência, ou seja, é um instrumento usado para
forçar, intimidar, para fazer com que os demais sigam determinadas
Sônia Maria de Aguiar Cana Verde; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 227

ordens de maneira coercitiva. A violência é um instrumento utilizado


por governos totalitários, tirânicos e ditadores, por exemplo, para
impor suas ideias e ordens.
Percebe-se na argumentação de Andrês que a violência está
presente não somente no Estado ao utilizar o poder bélico para que seu
governante alcance o resultado pretendido como também é utilizada
como instrumento por grupos rebeldes em busca de uma revolução, de
uma mudança. Desse modo, a violência pode fazer-se presente tanto nas
ações estatais em busca de manter o controle, como nas atuações dos
civis que se unem em grupo visando um resultado em curto prazo,
podendo ser uma revolução social, nos sistemas e até mesmo nas ações
dos governantes.
Ao falar sobre violência coletiva, Hannah Arendt (1969, p. 42)
argumenta que “embora a eficácia da violência não dependa de números
[...] na violência coletiva as suas características mais perigosamente
atraentes se destacam”. A título de exemplo de violência coletiva em que
suas características mais perigosas são destacadas temos as
manifestações populares, onde o povo utiliza-se de meios violentos
como destruindo os bens públicos e particulares reivindicam um direito
ou uma vontade da maioria em contraste à vontade dos líderes ou
governantes.
Assim, Hannah Arendt procura fazer a distinção entre os conceitos
de violência e poder, pois outros autores apresentam tais conceitos
como tendo o mesmo significado, porém em sua visão são palavras que
têm significados totalmente diferentes, visto que onde o poder reina a
violência não tem vez nem voz.
228 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

3. PODER, CAUSAS E NATUREZA DA VIOLÊNCIA

O poder e a violência, em suas complexas interações, são temas


fundamentais na obra de Hannah Arendt. O poder, segundo Arendt, tem
sua origem na ação coletiva e na capacidade dos indivíduos de se
associarem para realizar objetivos comuns. Diferentemente da violência,
que pode ser imposta coercitivamente, o poder emerge da cooperação
entre as pessoas na esfera pública. A natureza do poder está
intrinsecamente ligada à habilidade de persuasão e ao consenso, sendo
um fenômeno dinâmico e plural que se desdobra nas interações humanas.
No entanto, quando o poder é corrompido ou incapaz de gerar
consenso, Arendt alerta que pode haver uma transformação para a
violência como meio de coerção. A violência, nesse contexto, é vista
como um substituto deformado do poder legítimo, uma vez que falta a
legitimidade e a autorização que são características essenciais do
verdadeiro poder.
As causas da violência, de acordo com diversas perspectivas
filosóficas, podem ser variadas e multifacetadas. Desde fatores sociais,
econômicos e políticos até questões psicológicas e culturais, as origens
da violência são complexas e inter-relacionadas. Certas abordagens
sugerem que desigualdades estruturais, marginalização social e a busca
por recursos escassos podem alimentar a violência.
Outras perspectivas exploram as dimensões psicológicas da
agressão e a influência de contextos culturais na formação de atitudes
violentas. É crucial considerar as causas profundas da violência para
desenvolver estratégias eficazes de prevenção e intervenção. A
compreensão da natureza interconectada do poder e da violência, bem
como a análise das diversas causas subjacentes à violência, são
Sônia Maria de Aguiar Cana Verde; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 229

essenciais para abordar efetivamente esses fenômenos complexos e


promover uma sociedade baseada em princípios éticos e justiça.

3.1 DISTINÇÃO ENTRE PODER E VIOLÊNCIA

Em sua obra “Sobre a Violência”, Hannah Arendt faz a distinção


entre poder e violência, deixando bem claro suas diferenças ao dizer que
“o poder não precisa de justificativas, sendo inerente à própria
existência da comunidade, mas precisa de legitimidade”. Percebe-se aí
que diferentemente da violência, o poder depende apenas de
legitimidade ou legalidade, pois já faz parte das relações sociais das
pessoas (ARENDT, 1969, p. 32).
Enquanto a violência visa meios ou instrumentos para alcançar
determinada finalidade o poder visa apenas o fim, sendo legítimo o
poder permanece por muito tempo, porém quem o detém deve cuidar
para não perder sua legitimidade, pois quando alguém perde o poder,
na visão de Hannah Arendt, utiliza da violência para permanecer no
comado e dessa forma essas pessoas não possuem mais poder pois este
não lhe é legítimo.
Temos como exemplo os governos tiranos que permanecem no
poder utilizando a violência porque não têm o apoio popular, ou seja, “a
perda do poder torna-se uma tentação em substituir a violência pelo
poder”. Os governos tiranos utilizam-se da violência justamente pela
falta de legitimidade, ou seja, pela falta do apoio popular para exercer
seu domínio (ARENDT, 1969, p. 34).
De acordo com Hannah Arendt (1969, p. 33),

O poder e a violência, embora sejam fenômenos distintos, geralmente se


apresentam juntos. Onde quer que se combine, o poder é o fator fundamental
e predominante. Aqueles que se opõem à violência com o mero poder, cedo
230 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

descobriram que se confrontam não com homens, mas sim por artefatos
fabricados pelo homem, cuja desumanidade e força de destruição aumentam
em proporção à distância a separar os inimigos. A violência sempre é dada
para destruir o poder. O que jamais florescerá da violência é o poder.

Conforme Arendt, poder e violência mesmo sendo diferentes


andam sempre juntos, porém o poder predomina sobre a violência, visto
que quando o poder é legítimo ele se mantém forte, no entanto, segundo
Arendt, aqueles que tendem a se opor à violência apenas com o poder
descobriram que as armas utilizadas pela violência são desumanas e
possuem forças capazes de destruir e separar os inimigos.
Para Arendt, a violência tem a capacidade de destruir o poder, na
sua visão, o poder jamais nascerá de relações de violência, ou seja, a
violência não tem a capacidade de fazer nascer o poder, pois ela é apenas
instrumental que visa uma finalidade acelerada e instantânea,
enquanto para que o poder possa existir é necessário legitimidade e não
força brutal.
Bresikevicz (2009, p. 137), apresenta o poder como:

Um fenômeno temporal, circunscrito à capacidade de ação em conjunto,


podendo ser destruído pelo instrumento que mina toda ação, a violência, a
qualquer tempo. Poder é uma capacidade de um grupo, de um conjunto de
indivíduos mobilizados por interesses comuns, uma capacidade para a ação
em concerto, mas que não pode ser controlado. Nem mesmo a lei pode
controlar o poder. Para Arendt, o poder humano se dá quando há um objetivo
comum para a ação. Nesse sentido, o poder apenas acontece se e quando os
homens se unem entre si no propósito de exercerem uma ação, e deixa de
existir quando, por qualquer razão, se dispersam e abandonam uns aos outros.

Segundo o autor, o poder é um fenômeno temporal, ou seja, está


sujeito à capacidade de um agir coletivo, pois a violência pode destruí-
Sônia Maria de Aguiar Cana Verde; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 231

lo a qualquer momento. O poder é a capacidade de um conjunto de


pessoas que agem concretamente visando um bem comum, mas que não
pode ser controlado nem mesmo pela lei. Quando um grupo não visa
mais determinado interesse comum, então tendem a se desfazerem o
que é uma ameaça para o poder, pois não havendo consenso e acordo
acerca de algo, logo não se faz mais necessário se manter unido para
defender tal ideia.
O poder acontece quando os homens se unem no propósito de
exercerem uma ação concreta, e que o mesmo se desfaz quando os
indivíduos, independente do motivo, se separam abandonando uns aos
outros, visto que é necessária a união entre os homens para que haja
uma relação de poder legítimo.
No ponto de vista arendtiano,

O poder e a violência se opõem, ou seja, onde um domina de forma absoluta,


o outro está ausente. A violência aparece onde o poder esteja em perigo, mas
se se deixar que percorra o seu curso natural, o resultado será o
desaparecimento de poder. Tal coisa significa que não é correto pensar na
não violência como o oposto da violência; falar do poder não violento é
realmente uma redundância. A violência pode destruir o poder, mas é
incapaz de criá-lo (ARENDT, 1969, p. 35).

Pode-se dizer que para Arendt poder e violência se opõem porque


onde um está dominando absolutamente o outro não pode estar
presente, pois a violência começa a aparecer quando o poder está em
perigo e se ela seguir seu curso natural, ou seja, se a violência começar
a aumentar o seu resultado será a tomada do poder, visto que onde a
violência reina o poder não pode estar presente, ele desaparece. A
violência tem a capacidade de destruir o poder, porém não tem a mesma
competência para criá-lo.
232 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

Andrês (2012, p. 10) enfatiza que:

O poder assenta no número e extrai daí a sua mais-valia, ao passo que a


violência é frequentemente a única maneira que qualquer entidade
encontra para se sobrepor ao poder de muitos. O poder tem uma essência
própria enquanto a violência carece de emprego ou de instrumentalização
para poder inscrever qualquer fim – a violência sempre carece de
justificação quando, paradoxalmente, não tem qualquer justificação. Não
cabe à violência justificar-se porque perde sentido no próprio instante em
que ocorre a sua inscrição – e porque, sendo muda, jamais poderá discursar
em sua própria defesa. A violência ocorre por falência/interrupção do
discurso e silenciamento do diálogo. A violência é um péssimo interlocutor
porque nada tem para dizer.

Conforme Andrês o alicerce do poder é o número, ou seja, a


quantidade de apoio que ele possui, assim quanto mais aliados a uma
ideia ou líder mais ele se conservará no poder. Por outro lado, a violência
é vista como a maneira mais eficaz que uma entidade encontra para se
sobressair ao poder de muitos, visto que à violência é dada a capacidade
de destruir o poder, ela só não tem a capacidade de criá-lo.
Portanto, conforme supracitado a violência é muda, não podendo
assim discorrer a seu próprio respeito, visto que ela se baseia no uso da
força e da coerção, e ela, a violência, se fortalece justamente quando há
a interrupção do diálogo. Diferentemente do poder, que sustenta a
importância do discurso, da conversa e da capacidade de
convencimento, a violência nunca terá algo para dizer.
Na visão arendtiana, o poder está presente de maneira mais forte
quando se tem a ausência da violência, em seu entendimento, é
necessário fazer o uso do poder não violento, pois em sua perspectiva,
quanto mais houver poder, menos haverá violência. Quanto mais
Sônia Maria de Aguiar Cana Verde; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 233

legitimidade, diálogo, consenso e acordo, menos haverá a necessidade


de uso de instrumentos de coerção.

3.2 O PODER NÃO VIOLENTO

O poder para Arendt faz parte das estruturas sociais, ou seja, onde
há sociedade, consequentemente também há poder, porém, na visão da
autora, o que se percebe é que na maioria das vezes a ideia de poder está
vinculada à ideia de violência, e Arendt não concorda com a equivalência
dessa linha de pensamento, pois mesmo sabendo que fatores históricos
contribuíram para disseminação dessa ideia, a autora acredita que a
coincidência histórica não pode fazer disso uma verdade. Com isso,
O poder não precisa de justificativas, sendo inerente à própria
existência das comunidades políticas; mas precisa, isto sim, de
legitimidade. [...] O poder é originado sempre que um grupo de pessoas
se reúne e age de comum acordo, porém sua legitimidade deriva da
reunião inicial e não qualquer ação que possa se seguir (ARENDT, 1969,
p. 33).
Em virtude disso é que se acredita que quanto mais poder, menos
violência, visto que o poder precisa apenas de legitimidade para se
sustentar, pois quando há união e acordo entre pessoas ou grupos
haverá também poder legítimo. Quando os grupos se reúnem e entram
em consenso abre-se aí a possibilidade de poder autêntico e
consequentemente a ausência de violência.
Silva e Bruno (2015. p. 11), destacam que:

O que se há de dizer, no entanto, é que, para ela (Arendt), o poder violento,


ou seja, a associação de poder com violência já é uma demonstração do
desvirtuamento conceitual da ideia de poder. Mais que isso, é já sinal de que
o poder, que funciona na base de consensos e jogos de aceitação, encontra-
234 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

se ameaçado de extinção, cedendo espaço para algo que lhe substitui, e que
não depende de consentimento, mas da capacidade técnica de gerar
sofrimento e submissão: a violência.

Assim, a associação de poder com violência já é uma manifestação


do desvirtuamento da ideia de poder, pois ao associá-los já se manifesta
que o conceito original e verdadeiro foi mudado ou vinculado um ao
outro, tornado as duas palavras com o mesmo sentido e isso não pode
acontecer, afinal violência e poder nunca terão o mesmo significado,
visto que são conceitos antagônicos entre si.
Hannah Arendt argumenta que o poder que outrora funcionara
com base nos conselhos, argumentos e consensos entre as pessoas, está
ameaçado de extinção por estar perdendo seu espaço para algo que não
depende de consentimento, mas que tem como a sua principal forma de
sustentação, o sofrimento e a submissão, ou seja, a violência. Para a
filósofa, a violência está substituindo o poder.
Conforme argumenta Silva e Bruno (2015, p. 11), “o poder, deixa de
existir, quando entra em ação um conjunto de aparatos cuja força
representa uma aniquilação do poder de estar com, de discussão, de
debate, de discurso, elementos que caracterizam o estar entre homens”.
Para se romper o poder é necessário tão somente que os homens percam
a capacidade de discussões, debates, argumentações, pois esses
elementos caracterizam a convivência harmoniosa entre os seres
humanos.
Quando os homens perdem a capacidade para dialogar são logo
excitados a agirem com violência, afinal, decisões acompanhadas de
violência são reguladas pela capacidade de abafar perspectivas de
aborrecimento ou contrariedade. Segundo a filósofa, “a violência
funciona como o último recurso do poder contra os criminosos ou
Sônia Maria de Aguiar Cana Verde; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 235

rebeldes – isto é, contra indivíduos isolados que, pode-se dizer,


recusam-se a ser dominados pela maioria” (ARENDT, 1969, p. 32).
Quando em um meio social existem aquelas pessoas que não
aceitam ser dominadas ou governadas pela opinião da maioria, então a
violência é posta em prática como um recurso contra esses rebeldes.
Para a autora, “a forma extrema do poder resume-se em Todos contra
Um, e a extrema forma de violência é Um contra Todos. E esta última
jamais é possível sem instrumentos”. Se todos estão de acordo com
determinado assunto, então se tem aí uma relação de poder, porém
apenas um deseja que as suas vontades, que as suas decisões sejam
seguidas, então aparecerá a figura da violência para satisfazer esse
desejo. (ARENDT, 1969, p. 26).
Segundo Arendt, o poder não é sinônimo de opressão ou coerção,
mas sim da capacidade humana para viver em sociedade, através da qual
as pessoas convivem, se comunicam, se convencem através do melhor
argumento; é uma relação entre os homens na qual há diversidade de
opiniões, porém que prevalece o diálogo.
Como bem argumentou Bresikevicz (2009, p. 94), “A ação e o
discurso não podem ser fabricados como um instrumento posto no
mundo. Ação e discurso são fenômenos de homens no plural, ou seja, é
o resultado de um mundo em que a liberdade é uma prerrogativa
política”. Assim, em uma relação entre poder e violência, o poder é uma
ação em conjunto resultante da liberdade humana, ou seja, da
capacidade de criar a novidade, e a violência é um instrumento utilizado
para alcançar um fim desejado em curto prazo.
Na visão arendtiana, a violência é impotente, pois ela é incapaz de
manter um espaço onde reina o discurso. Afinal, como bem esclarece
Andrês (2012, p. 26), “a reação ao emprego de quaisquer meios violentos
236 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

só vem gerar mais e maior generalização da própria violência”. Os frutos


produzidos pela violência jamais serão de paz, pelo contrário, ao se
utilizar meios violentos uma pessoa ou determinado grupo colherão a
multiplicação e disseminação da própria violência.
Os meios violentos, mesmo só gerando mais violência, têm sido
utilizados frequentemente não só por revolucionários, mas também
pelo próprio poder político, por governos que querem manter a sua
superioridade e ver obedecidas às suas ordens, pois o poder faz parte do
núcleo de todo governo.

3.3 PODER, VIOLÊNCIA E POLÍTICA

Sendo Hannah Arendt (1969, p. 32) uma filósofa política, não


poderia deixar de escrever acerca do tema em sua obra. Em se tratando
de poder a filósofa afirma que “o poder é realmente parte da essência de
todo governo”. Não existe governo sem manifestação de poder, pois
para que o governante se mantenha no domínio é necessário que outras
pessoas ou grupos o apoiem.
O conceito de política é bem apresentado por Silva e Bruno (2015,
p.12) ao argumentarem que,

Política é a ciência que trata das relações do poder e para o poder ser
exercido, é preciso que se tenha força, entendida como instrumento para o
exercício do poder. Quando falamos em força, é comum pensar-se
imediatamente em força física, coerção, violência. Na verdade, este é apenas
um dos tipos de força.

A política é de relevante importância no pensamento arendtiano,


pois a filósofa aborda assuntos voltados para as relações de poder, bem
como a maneira que este deve ser exercido. Na política existem
Sônia Maria de Aguiar Cana Verde; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 237

manifestações acerca das relações de poder, como este deve ser


exercido, para que ele seja necessário nas relações sociais. Para que o
poder seja exercido nas relações políticas o uso da força é necessário,
pois a força é um instrumento utilizado para o exercício do poder. A
força nesse sentido não é o uso da violência coercitiva, mas a capacidade
de influenciar outras pessoas a seguirem suas opiniões.
Fry (2010, p. 117) argumenta que,

As concepções mais liberais de Arendt estão ligadas a seu interesse pela


liberdade política, pela ação política e pela necessidade de as pessoas serem
capazes de expressar suas opiniões políticas sem serem manipuladas pelo
governo ou por formas de pensamento tecnológico.

Arendt sempre se interessou por temas que envolvem política e


liberdade, pois a filósofa viveu em um século marcado por
acontecimentos políticos, como os regimes de governos totalitários, a
Segunda Guerra Mundial e a perseguição aos judeus que tirara desse
povo todos os direitos políticos e a liberdade, inclusive até mesmo o
direito à vida.
Por isso, na visão arendtiana, é necessário que as pessoas tenham
a oportunidade de se expressarem, de poderem manifestar suas
opiniões sem a intervenção do governo e das manipulações exercidas
pela comunicação tecnológica. Arendt defende a liberdade política das
pessoas, a oportunidade de agir politicamente e de se expressarem da
forma que realmente elas acreditam, sem interferências de
interessados tendenciosos, como é o caso da mídia e do governo.
Segundo Fry (2010, p. 102),

Se a política abre espaço para a livre discussão e a divergência, então os


métodos violentos tornam-se desnecessários, porque o processo da política
238 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

produz o poder do povo, que chegou a um acordo através da persuasão. [...]


Na política de Arendt os atos políticos para a continuidade requerem um
governo que assegure a liberdade a longo prazo [...] enfatiza a relevância da
estabilidade do governo, se se quiser estabelecer, preservar e proteger a
liberdade.

A estabilidade de um governo está baseada nas ações do


governante. Se um governo utiliza de discussões certamente não
precisará utilizar de meios violentos, pois o processo da política produz
poder surgido do povo, sendo esse poder adquirido através do diálogo.
Afinal, para que um governante se mantenha no poder é necessário que
ele mantenha uma liderança estável.
Os governantes devem assegurar a liberdade política do povo e não
fazer com que as pessoas sigam a linha de pensamento defendida por eles
de maneira coercitiva. Em um governo onde o seu líder assegura o espaço
para livre discussão e possíveis divergências, então não será necessário
utilizar-se de meios violentos, visto que o seu poder emanou do povo por
meus da sua capacidade de persuasão, pois todo governante para se
manter no poder depende de uma base que o apoie, por isso, nenhum
governante que se ampare unicamente na violência jamais existiu.
Hannah Arendt (1969, p. 31) defende que,

Governo algum, exclusivamente baseado nos instrumentos da violência,


existiu jamais. Mesmo o governante totalitário, cujo principal instrumento
de dominação é a tortura, precisa de uma base de poder – a polícia secreta
e a sua rede de informantes. [...] Homens isolados sem outros que os apoiem
nunca têm poder suficiente para fazer uso da violência de maneira bem-
sucedida.

Para Arendt, não existiu nenhum governo baseado exclusivamente


em instrumentos violentos para se manter no poder, pois todos os tipos
Sônia Maria de Aguiar Cana Verde; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 239

de governo e até mesmo os mais totalitários que utilizam da tortura


para dominar, dependem da participação de outras pessoas para se
sustentar, visto que nesse modelo de governo o governante possui uma
rede de informantes bem como o amparo da própria polícia. Mesmos
governos que aparentemente dominam de maneira isolada possuem ao
seu lado pessoas que o apoiam e sustentam.
Na visão arendtiana, o homem isolado, sem o apoio de outros, não
tem poder nem mesmo para fazer uso dos instrumentos da violência de
forma produtiva e vitoriosa, por isso, o ser humano que vive isolado não
consegue agir com violência e ser bem-sucedido em suas ações. Mesmo
não dependendo de números, a violência precisa de apoio para produzir
seus frutos.
Bresikevicz (2009, p. 111), acredita que a violência na política deve
ao grande desenvolvimento tecnológico e com isso o desenvolvimento
de armas cada vez mais poderosas. Em sua visão, “a violência política
está ligada ao desenvolvimento tecnológico da humanidade e à nova
ciência ligada ao surgimento da modernidade”, e isso é uma realidade,
pois com o desenvolvimento da tecnologia os homens começaram a
produzir armas cada vez mais potentes e com o poder de destruição cada
vez maior.
A tecnologia, sem dúvida, é louvável, porém com o seu
desenvolvimento foram surgindo também novas armas, inclusive as
bombas nucleares e isso infelizmente favoreceu o crescimento da
violência, pois “a violência amplia seu poder destrutivo à medida que a
ciência oferece a tecnologia necessária para potencializar sua capacidade
de destruição”. É uma parceria que não pode ser aplaudida, pois a união
entre violência e tecnologia tende a aumentar a capacidade de destruição
do homem, e isso é uma infelicidade (BRESIKEVICZ, 2009, p. 111).
240 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

Em “Sobre a Violência”, Arendt apresenta a distinção entre os


governos que por natureza fazem uso da violência em suas relações
políticas e sociais, sendo eles totalitários, tirânicos e ditatoriais. A
autora apresenta a seguinte afirmação,

A distinção decisiva entre o domínio totalitário, baseado no terror, e as


tiranias e ditaduras, impostas pela violência, é que o primeiro se volta não
apenas contra os seus inimigos, mas também contra os amigos e
correligionários, pois teme todo o poder, até mesmo o poder dos amigos
(ARENDT, 1969, p. 35).

As relações de poder e violência também estão atreladas aos


regimes políticos, e Arendt busca apresentar as diferenças entre esses
modelos de governo ou de domínio. Segundo a filósofa, os líderes
totalitários baseiam-se no terror, no pavor, no pânico, na opressão,
enquanto a tirania e ditadura apoiam-se na violência para manterem
sua estabilidade. Porém a filósofa enfatiza que um governo totalitário
além de voltar-se contra os inimigos pode também investir contra os
próprios amigos, por medo e insegurança, pois nesse tipo de governo o
seu representante teme até mesmo o poder dos seus aliados.

3.4 VIOLÊNCIA: NEM NATURAL, NEM IRRACIONAL, APENAS POLÍTICA

Em seu Ensaio, Arendt procura identificar a natureza e as causas


da violência fazendo uma crítica à “biologização” da violência. A filósofa
alemã faz uma crítica às explicações científicas de que o ser humano é
violento por natureza. A autora defende que a violência não é inerente
ao ser humano, mas sim resultado das relações entre os homens. São as
circunstâncias que o cerca que faz com que o homem se torne violento
ou não, e não a sua própria natureza.
Sônia Maria de Aguiar Cana Verde; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 241

Arendt critica a comparação feita pela ciência e a tecnologia entre


homens e animais que tende a transparecer o comportamento violento
do homem como natural. Mesmo reconhecendo o trabalho dos cientistas
em suas pesquisas acerca da natureza violenta do homem comparando-o
com os animais, Arendt diz não entender como se aplica os trabalhos
desenvolvidos pelos zoólogos ao problema da violência, visto que os
animais são bem diferentes do homem e não tem como comparar, ou
encontrar alguma relação entre a natureza violenta dos dois.
Para a filósofa, não é necessário estudos científicos com os animais
para se descobrir que um povo lutará pelo seu direito de propriedade, não
é preciso estudar o comportamento em grupo de formigas, peixes ou
macacos para se verificar os instintos de defesa do território. Segundo a
autora, “para se saber que a superpopulação resulta em irritação e
agressividade, não é necessário fazer experiências com ratos, pois um só
dia passado em uma favela das grandes cidades teria sido suficiente”. Na
realidade, o que instiga o comportamento humano são as condições que o
cercam e não a sua natureza violenta (ARENDT, 1969, p.37).
Segundo Arendt (1969, p. 38),

Os resultados de uma pesquisa nas áreas das ciências sociais, como das
ciências naturais, tendem a considerar o comportamento violento como
uma reação mais natural do que estaríamos dispostos a aceitar na ausência
destas pesquisas. [...] Os instintos agressivos no reino animal parecem
independer de provocação é natural; se tiver perdido a sua base lógica,
fundamentalmente a sua função de autopreservação, torna-se irracional, e
é esta a suposta razão por que o homem pode ser mais “bestial” do que os
outros animais.

As pesquisas científicas na visão arendtiana tendem a avaliar o


comportamento violento dos homens como uma reação natural. Ao
242 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

analisar os instintos de agressividade no reino animal, Arendt acredita


que para os animais se demonstrarem violentos faz-se desnecessário a
provocação, pois as ações dos animais são naturais.
Para Arendt, o que torna o homem mais selvagem do que os outros
animais é exatamente o uso da razão, ou seja, mesmo sendo racional,
podendo calcular seus atos, melhorar o seu comportamento e medir as
consequências dos seus feitos, o homem torna-se mais violento do que
os animais irracionais. Arendt (1969, p. 38) afirma que, “é o uso da razão
que nos torna perigosamente ‘irracionais’”.
O agir de forma violenta do ser humano está ligado ao seu juízo
político, ou seja, ao seu senso de justiça que o torna capaz de perceber o
mundo em sua volta, e percebendo a realidade que o rodeia e ao ver que
certas situações poderiam ser mudadas pelas ações de outros que estão
ao seu lado e têm o poder de mudar as circunstâncias, mas não mudam,
faz com que o homem venha a agir com ódio e violência.
Bresikevicz (2009, p. 115) argumenta que,

O risco da adoção de um discurso biológico tanto para o poder quanto para


a violência é que “a partir do instante em que se começa a falar em termos
biológicos, não políticos, os glorificadores da violência podem apelar para o
fato inegável de que, no seio da natureza, destruição e criação são as duas
faces do processo natural, de modo que a ação violenta coletiva, deixando
de lado a sua atração inerente, pode parecer tão natural enquanto um pré-
requisito para a vida coletiva da humanidade, quanto à luta pela
sobrevivência e a morte violenta em nome da continuação da vida, no reino
animal.

A defesa científica de que a violência é inerente ao homem não é


bem aceita, pois se se começa a creditar que as reações violentas dos
seres humanos são naturais e não políticas podem levar aqueles que
Sônia Maria de Aguiar Cana Verde; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 243

glorificam a violência a usar desse argumento para disseminar que a


criação e destruição são faces do processo natural da vida.
Nesse sentido, até mesmo a ação violenta coletiva pode parecer
natural a ponto de ser vista como pré-requisito para a vida em
coletividade, pois assim como no reino animal, os homens têm a função
de lutar para garantir a sua sobrevivência e a continuação da sua
espécie. Depois de observar como a ciência se posiciona a respeito da
natureza da violência, Arendt (1969, p. 39) conclui que a distinção entre
animal e homem não é a razão, “mas sim a ciência, o conhecimento de
padrões e as técnicas que os aplicam, o homem age de maneira
irracional e como um animal quando se recusa a ouvir os cientistas e
suas descobertas”.
A filósofa faz uma crítica à ciência, pois na sua visão, a ciência
dissemina o entendimento de que quando o homem não se atenta para
as descobertas e o conhecimento científico então é visto como ser
inferior e irracional. Para Arendt (1969, p. 39), “a violência não é nem
animalesca e nem irracional”. A violência é política, pois são fatores
políticos, relações de convivência, a percepção da realidade em que se
insere que faz com que o homem se torne violento ou não.
Na visão arendtiana a violência não se origina do ódio, mesmo
“sendo possível criar condições que desumanizam o homem – tais como
os campos de concentração, a tortura e a fome – porém, isto não
significa que se tornem semelhantes aos animais”. As condições de
extrema desgraça não tornam os homens desumanos, mas sim, estando
nessas condições não fazerem uso do ódio e da violência para saírem
desse estado, isso sim os tornam desumanos.
Conforme Arendt (1969, p. 39),
244 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

O ódio não é de forma alguma uma reação automática à miséria e ao


sofrimento como tais; ninguém reage com o sentimento de ódio de uma
doença incurável ou a um terremoto ou a condições sociais que parecem
imutáveis. Somente onde houver razão para suspeitar que as condições ser
mudadas e não o são é que surgirá o ódio. Somente onde o nosso senso de
justiça for ofendido é que reagiremos com ódio.

Segundo a autora, o ódio e a violência não são inerentes ao homem,


mas sim uma reação quando o seu senso de justiça é ofendido, ou seja,
não é uma reação natural, mas sim política. Percebe-se que as pessoas
não agem agressivamente, com ódio e violência contra algum
acontecimento natural, sem interferência do homem. Pode-se notar
também que ao presenciarem desastres naturais, doenças incuráveis, as
pessoas não agem agressivamente.
O agir agressivo das pessoas está em saber que as condições em que
elas estão vivendo poderiam ser mudadas pela ação do governo, por
exemplo, e não o são, ou seja, é a sensação de injustiça que causa no
homem o sentimento de ódio, são fatores políticos que o torna violento
e não que a violência seja inerente a ele. Conforme Arendt (1969, p. 47),
“nada poderia ser teoricamente mais perigoso do que a tradição do
pensamento orgânico na política de acordo com o qual o poder e a
violência são interpretados em termos biológicos”, pois nessa hipótese
a violência seria explicada em termos de capacidade criadora
A principal característica que torna o homem um animal político é
sua faculdade de agir, pois segundo Arendt, “falando do ponto de vista
filosófico, agir é a resposta humana à condição de natalidade”. Afinal,
somos capazes de criar, de agir e de seguir vida começando algo novo e
aprendendo sempre, somos capazes de agir de forma racional para
mudar certa situação.
Sônia Maria de Aguiar Cana Verde; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 245

Ao tratar da distinção do homem para o animal Arendt (1969, p. 52)


defende que,

Nenhuma outra faculdade, exceto a linguagem, nem a razão e nem a


consciência, nos distingue de forma tão radical de todas as espécies
animais. Agir e começar não se trata da mesma coisa, mas são atividades
estritamente relacionadas. [...] nem a violência, ou o poder, são fenômenos
naturais, isto é, manifestações de um processo vital; pertencem eles ao
setor político das atividades humanas cuja qualidade essencialmente
humana é garantida pela faculdade do homem de agir, a habilidade de criar
algo de novo.

Assim, nem a razão ou a consciência nos distingue tão bem dos


animais quanto à faculdade da linguagem, pois mesmo sendo racionais
e tendo consciência dos fatos, bem como as consequências dos seus atos,
o homem age de forma violenta, porém ao utilizar-se da linguagem o
ser humano se destaca, faz a diferença entre ele e os animais. Sendo
comunicativos e utilizando as palavras, as pessoas tendem a solucionar
problemas, deliberar conflitos e resolver dificuldades de forma
amigável, passiva e não violenta.
Na visão arendtiana, nem a violência e nem o poder são fenômenos
naturais, mas sim pertencentes ao setor político nas atividades humanas.
A violência não é uma manifestação de um processo vital, mas sim
reações a algum fato político que o cerca e lhe causa sensação de injustiça.
A ação violenta do homem está mais ligada a fatores externos ao homem
do que à sua própria natureza, ou seja, aos seus fatores internos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Hannah Arendt foi uma filósofa que conseguiu escrever acerca de


assuntos que ainda hoje são de grande relevância, ao se interessar por
246 • Filosofia na veia: reflexões e experiências

temas políticos trouxe uma grande contribuição tanto para a filosofia


como para a nossa sociedade atual. Não se pode pensar em ciência
política sem mencioná-la, bem como não se fala em violência sem ter
algum respaldo em suas ideias e argumentações acerca do tema.
A violência já tinha sido tema de livros de outros autores, porém
Arendt traz uma nova visão acerca do seu conceito, enfatiza também a
diferença entre poder, força, autoridade e vigor. A autora apresenta
uma distinção dentre esses conceitos e argumenta que eles são
geralmente usados como forma de manifestação de violência, porém de
forma errada.
A filósofa sempre se preocupou com questões voltadas para a
liberdade, poder, política e violência, pois viveu em um século de
grandes revoluções, e conviveu em uma sociedade marcada pela
violência e supressão dos direitos humanos. A Segunda Guerra Mundial,
as Revoltas Estudantis, o surgimento da Nova Esquerda serviram de
plano de fundo para que a autora escrevesse seu ensaio “Sobre a
Violência”. Arendt apresenta em sua obra uma visão diferente de outros
filósofos que também escreveram sobre a violência.
A filósofa alemã apresenta a distinção entre poder e violência e
enfatiza que onde uma reina a outra está em decadência, pois a violência
só será utilizada no momento que o poder estiver ameaçado. Porém
Arendt acredita que o uso do poder não violento é a forma mais legítima
de governar, pois a violência é apenas um instrumento utilizado para
conseguir algo em curto prazo.
Na visão arendtiana, a violência e o poder não são inerentes à
natureza humana, como a ciência tentou provar com seus estudos
acerca do comportamento humano e do comportamento animal, mas
Sônia Maria de Aguiar Cana Verde; Francisco Atualpa Ribeiro Filho • 247

sim manifestações em meio às relações políticas, pois o homem só age


violentamente quando vir o seu senso de justiça ser violado.
A violência na perspectiva arendtiana é comumente vista em nossa
sociedade, pois somos palco de ações de pessoas ou de governantes que
ao perceberem que seus poderes estão sendo diminuídos cada vez mais,
não se conformam e tendem a usar de instrumentos da violência para
se manter no domínio, temos como exemplo a situação da Venezuela,
onde seus cidadãos estão migrando não só por falta de alimentos, mas
também pela pressão exercida pelo governo para com eles, e isso por
questões políticas, pois o governo não quer perder o domínio e não
tendo mais poder legítimo faz uso da violência para se sustentar.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. Da Violência. Tradução de Maria Claudia Drummond. Data


Publicação Original, v. 1970, n. 5, 1969.

ANDRÊS, Artur Domingos Santos. O conceito de ‘violência’ no pensamento de Hannah


Arendt. 2012. Disponível em: https://run.unl.pt/bitstream/10362/8309/1/ Texto_
Completo.pdf. Acesso em 02 maio 2018.

BRISKIEVICZ, Danilo Arnaldo. Violência e Poder em Hannah Arendt. Minas Gerais,


2009. Disponível em: https://filosoficabiblioteca.files.wordpress.com/2013/10/
briskievicz-violência- e-poder-em-hannah-arendt. Acesso em: 02 maio 2018.

FRY, Karina A. Compreender Hannah Arendt. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2010.

MAGALHÃES, Simone Maria. Poder e violência: Hannah Arendt e a Nova Esquerda –


Marília, 2008. Disponível em: https://www.marilia.unesp.br/Home/Pos- Graduacao/
CienciasSociais/Dissertacoes/magalhaes. Acesso em: 25/05/2018

SILVA, Matheus Kaltner Mendes; BRUNO, Flávio Marcelo Rodrigues. A Filosofia do


Poder em Hannah Arendt: Um Ideal de Inspiração para Mahatma Gandhi. Aracajú,
2015. Disponível em: http://openrit.grupotiradentes.com/A filosofia do poder em
Hannah Arend Umideal inspira para Mahatm. Acesso em: 25 maio 2018.
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