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A Escolástica
Aula 15
Olavo de Carvalho
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Nascida da necessidade de estruturar
filosoficamente a verdade cristã expressa nas
Sagradas Escrituras, a Escolástica organizou-se como
uma filosofia praticada por uma classe de intelectuais
que compartilhavam de conhecimentos, terminologia
técnica e experiências interiores comuns, o que deu
condições para que se estabelecesse um diálogo
filosófico altamente fértil e especializado.
Formada por homens com uma honestidade
intelectual impressionante, o legado da Escolástica
influenciou profundamente os pensadores que a
sucederam e chega vigoroso até os dias de hoje.
“Olavo de Carvalho é o
mais importante pensador
brasileiro hoje.”
Wagner Carelli
“Um gigante.”
Bruno Tolentino
“Olavo de Carvalho se
destaca porque pensa,
reflete, e é de uma
honestidade intelectual
que chega a ser cruel.”
Carlos Heitor Cony
coleção
História
Essencial da
Filosofia
A Escolástica
Aula 15
por Olavo de Carvalho
Editor
Edson Manoel de Oliveira Filho
Projeto Gráfico
Monique Schenkels e Dagmar Rizzolo
Diagramação
Dagui Design
Transcrição
Alexander Gieg
Revisão
Tereza Maria Lourenço Pereira
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda c qualquer reprodução desta edição
por qualquer meio ou forma, seja ela eletrónica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer
meio.
A Escolástica
Aula 15
coleção
História
Essencial da
Filosofia
üijE lT vIij
2006
Coleção História Essencial da Filosofia
A Escolástica - Aula 15
por Olavo de Carvalho
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da consciência, e vice-versa, o que supõe que seja sempre um esforço
individual. Mesmo dentro desse contexto de um diálogo comunitário,
continua sendo um esforço individual a ser compartilhado com pessoas
que lêm mais ou menos a mesma formação e as mesmas experiências
interiores. Essas experiências geralmente se remetem, de algum modo,
a um contexto simbólico comum, seja de ordem religiosa, ritual, seja
pelo menos de ordem social. É necessário ter um grupo com uma
experiência, uma vivência da realidade mais ou menos em comum, e
com o mesmo grau de individualização da consciência, para que esse
diálogo possa ser possível. Mas a partir do momento em que se cumpre
esta condição, a individualidade dos sistemas acabados se torna um
pouco fluída.
Entre a obra de Santo Alberto e a de Santo Tomás, por exemplo, é
difícil saber onde termina uma e começa a outra. A pretensão inicial
de Santo Alberto foi simplesmente organizar o aristotelismo; ele não
queria fazer uma filosofia própria, nem havia muito esta noção de
“filosofia própria”, como houve depois. E Santo Tomás, quando começa
a trabalhar, sua única pretensão é corrigir e completar o trabalho de
Santo Alberto. Embora a síntese se opere no nível da consciência
individual, sua expressão e sua elaboração doutrinal explícita são um
trabalho sempre coletivo, sempre compartilhado. É por isso que, nessas
aulas sobre a Escolástica, não estou dividindo: a filosofia de Santo
Alberto, a filosofia de Santo Tomás, a filosofia de Fulano... A coisa não
c bem assim. Essas diferenças aparecem, mas mesmo as divergências
não são tão individualizadas, são geralmente conflitos de grupos.
O primeiro conflito de grupo que aparece é o seguinte: como a
Escolástica era uma investigação filosófica baseada num material
textual prévio (que é por um lado o Evangelho, ou melhor, as Sagradas
Escrituras inteiras, e por outro lado as sentenças dos primeiros padres,
os depoimentos dos apóstolos), e como tudo se faz com base neste
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material, então existe desde o começo uma espécie de pressuposto
embutido de que tudo isto é verdadeiro não só em seu conteúdo,
mas também em sua expressão verbal. Isto é, a expressão verbal
do Evangelho, tida como inspirada pelo próprio Deus, é veraz não
somente cm seu conteúdo profundo; a própria seleção das palavras é
de ordem divina, existe um toque de Deus ali, ainda que haja um autor
humano.
Acontece que esse pressuposto, embora seja de ordem filológica,
tem uma consequência filosófica imediata, que é a de que as palavras
correspondem às coisas, no sentido em que dizia Santo Tomás: nós
falamos com palavras, mas Deus fala com as palavras e com as coisas,
e os fatos consumados são obras divinas. Se o Evangelho é obra
divina, ele é uma espécie de fato consumado, então tem de haver uma
correspondência entre palavras e coisas. Isso implicava uma adesão à
proposta do chamado “realismo filosófico”, que é a de que os conceitos
universais correspondem a realidades no mundo exterior.
Ora, isto é um pressuposto filosófico, sendo assim ele pode ser
discutido a qualquer momento. Então, no século XII, já se tem o
primeiro dos chamados nominalistas, um sujeito chamado Roscelino
de Compiégne, que afirma taxativamente que as palavras que enunciam
conceitos gerais, que enunciam conceitos de espécie, são apenas
produtos da mente. Desde que você não tem nenhuma experiência
sensível das espécies, mas tão-só dos seus indivíduos, quando se refere
a uma delas no sentido universal, quando a designa pelo nome de
espécie, está acrescentando à realidade percebida algo que foi criado
por sua mente. Ou seja, é sua mente que cria o universal no qual se
agrupam as várias espécies.
De imediato, isto é respondido por um sujeito chamado Guilherme de
Champeaux, que afirma de modo taxativo que os universais correspondem
à própria estrutura da realidade e que eles existem objetivamente no
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mesmo sentido em que, para Platão, existiam objetivamente suas
famosas formas ou idéias. Quando ele se refere a triângulos, por
exemplo, não existem só os triângulos, mas de fato a espécie triângulo,
com as propriedades que a definem c que serão reencontradas em todos
os triângulos possíveis. Aí já se tem uma primeira divergência, mas não
se pode dizer que isto seja urna discussão entre Roscelino e Guilherme
de Charnpcaux, pois era um grupo para cá e outro para lá, quer dizer,
formam todo um estilo.
No meio dessa discussão, entra o famoso Pedro Abelardo, que
vai criar uma solução intermediária que obteve um certo sucesso na
época. Abelardo resolve a questão pelo método caracteristicamente
aristotélico de não discutir os conceitos de modo direto, tal como eles
se apresentam, mas de sondar o que está neles implícito, isto é, aquilo
que se está quase que inconscientemente querendo declarar a partir da
experiência real, c então discernir no mesmo conceito vários sentidos.
Para perguntar se os universais existem objetivamente ou se eles
são criações da mente humana, seria preciso, primeiro, perceber que
a própria palavra “universal” não é um conceito unívoco, mas que
significa coisas diferentes. Às vezes, estão usando o mesmo termo, mas
estão designando, mais ou menos sem perceber, realidades diferentes.
A essas três ordens de realidades - que atendiam pelo mesmo nome de
“universal” -Abelardo designa, então, com os termos latinos(1) universaiia
unte rem (universais antes das coisas),(2) universaiia in re (universais na
coisa) e 13) universaiia post rem (universais depois da coisa).
Isto significa que, como ele diz, quando se fala em "‘universais”
pode-se estar querendo se referir aos arquétipos das realidades
existentes, ou seja, a modelos ou formas eternas tal como existem na
mente de Deus. Este seria o <’>universaiia ante rem, o “universal antes
da coisa”: anles mesmo de criar uma espécie, Deus tem o seu modelo.
Existe ainda o (2) universaiia in re, o “universal na coisa”, ou seja, o
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traço da espécie tal como está presente no indivíduo singular. Para
encontrar a espécie, basta separar no mesmo indivíduo singular o que
é acidental e o que ele tem em comum com outros membros da mesma
espécie, então se verá que este traço universal está de fato presente
nele. Um gato, além de ter as características que o singularizam, tem
uma série de traços em comum com outros gatos, traços esses que
estão efetivamente nele. Este é o “universal na coisa”. Em terceiro,
diz Abelardo, há o universal como conceito ou como coisa pensada,
o r,) universalia post rem, o “universal depois da coisa”, que já não
depende dela e que é, este sim, uma criação da nossa mente.
Abelardo tem essa feliz intervenção na discussão, o que permite
mostrar o universal “sob certo aspecto” . Essa expressão - “sob certo
aspecto” - é caracteristicamente aristotclica. Aristóteles resolve
quase todas as questões assim, distinguindo dentro da questão vários
aspectos c dizendo: “Sob certos aspectos é assim, sob outros aspectos
c assado...”. Esse é o procedimento dialético característico. Então, com
essa intervenção de Pedro Abelardo, pode-se perceber que o universal
às vezes c uma realidade, às vezes é um produto da mente, às vezes é
uma mistura das duas coisas.
Abelardo tem ainda uma outra característica que o torna
singularmcnte importante para nós. Todo mundo conhece a história.
O sujeito comeu a aluna e depois tentou fugir com ela. Enquanto ele
estava comendo a aluna, ninguém achou nada de mal, pois era mais
ou menos um costume, mas... Geralmcnte as pessoas imaginam essa
história ao contrário, pensam que o sujeito foi punido porque estava
comendo a aluna, mas não é nada disso. Estava comendo a menina
fazia tempo, e ninguém dizia nada. Daí, como cie era um sujeito muito
cristão, começou a ficar arrependido daquilo e achou que tinha que
casar. Nessa hora complicou, pois a família não queria, já que ele era
um pobretão. Então o sujeito fugiu com a mocinha para casar, aí o
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pegaram e o caparam. E isto foi um benefício, pois daí ele não podia
mais se dedicar a tarefas eróticas e teve que se trancar num mosteiro,
íicar estudando, e deu todas essas contribuições à filosofia universal.
Abelardo, por causa das circunstâncias da sua vida, não deixa de
ser um filósofo autobiográfico no mesmo sentido de Santo Agostinho,
se bem que não com a mesma perfeição. Em Agostinho, sua meditação
autobiográfica, seu exame de consciência, é o fundamento dc toda a
filosofia que ele constrói depois. E há uma perfeita continuidade desde
a autoconsciência individual - entendida no sentido cristão de assumir
a responsabilidade pela própria vida, pelos próprios atos. confessar os
pecados e, através da confissão, transcendê-los - até o sistema filosófico
completo, com toda a metafísica e a filosofia da História. Em tudo isto
existe uma perfeita continuidade - não se pode separar as partes da
filosofia de Agostinho.
Em Abelardo, a coisa já não é tão coesa assim: existe um lado
autobiográfico e também uma série de polêmicas filosóficas nas quais
cie sc meteu, havendo alguma conexão. Não se consegue compreender
direito Abelardo sem ter cm vista seu lado autobiográfico, mas cie
não consegue fazer aquela síntese tão perfeita que, para mim, torna
Agostinho o mais filosófico dos filósofos, na verdade.
Agostinho é o filósofo por excelência, pois realiza essa definição
da unidade do conhecimento na unidade da consciência, e vice-
versa. A unidade do conhecimento não é separável da unidade
da consciência - entendida não no sentido psicológico, abstrato, da
consciência em geral, mas no sentido biográfico concreto da “minha”
consciência. Quando ele estava contando a sacanagem que fez,
ou explicando a Santíssima Trindade, ou explicando as seis etapas
da História, etc., estava fazendo a mesma coisa. Tudo isto cra uma
perfeita continuidade. É como Sócrates, cm quem o aspecto de sua
autoconsciência pessoal, sua dúvida pessoal, seus problemas pessoais
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não são separáveis da meditação que ele está fazendo. Sócrates nunca
está colocando, para outros, problemas que dc certo modo não o
perturbem pessoalmente, então o lado “experiência real humana” e o
lado “teoria” estão muito coesos.
Em outros filósofos, essa coesão não aparece. Por quê? Porque o
lado experiência pessoal não é narrado, não é exposto, então, por trás do
sistema montado, Lemos que escavar para saber qual foi a experiência.
Isso não quer dizer que eles estejam ocultando, não é isto. Em Abelardo
ainda aparece bastante a conexão entre as duas coisas, já quando se
chega em Santo Alberto, on em Santo Tomás, não é fácil, pois eles
escrevem e expõem impessoalmente. Por quê? Porque já eram filósofos
profissionais no sentido medieval da coisa.
A Escolástica, por um lado, na medida em que monta a casta
profissional dos filósofos e a dota de uma terminologia técnica, de um
conjunto de procedimentos metodológicos comuns a Ioda a classe, cria
um benefício que acelera a discussão. Por outro lado, ela como que
apaga a pista da ligação entre os sistemas, enlre as idéias filosóficas e a
experiência pessoal que está no fundo, então nos obriga a escavar para
descobrir. Mas nós não podemos esquecer que é com a Escolástica que
começa o problema que vou chamar de “paralaxe” .
A paralaxe vai ser o total deslocamento entre o eixo da
experiência real e o eixo da construção teorética. Não que já se
observe a paralaxe na Escolástica - não, pois aqueles homens eram
de uma sinceridade brutal -, mas, na medida em que o progresso da
técnica du discurso filosófico permite uma espécie de uniformização
do vocabulário filosófico e a criação de um diálogo padronizado,
como acontece em qualquer comunidade científica, a referência
à experiência concreta pode ficar implícita, e, na medida em que
ela pode ficar implícita, aos poucos essa experiência pessoal
pode sumir embaixo.
Quando surge esse problema da disputa dos universais, se eles
correspondem ou não à realidade exterior, surge junto, e quase que
automaticamente, urna polêmica pró-Aristóteles e anti-Aristóteles, c
com isso uma polêmica pró-filosofia e antifilosofia. O mais curioso de
tudo é que o mesmo fenômeno-de que, por um lado, estão se formando
sistemas filosóficos integrais mais ou menos inspirados em Aristóteles
e, por outro lado, surgem reações de ordem mística que dizem que tudo
isso é coisa do capeta, leva para o Inferno, que é preciso ir para a vida
contemplativa - aparece igualmente nas três comunidades religiosas:
na cristã, na islâmica e na judaica.
Vamos encontrar um tipo filosófico e urn tipo místico radical nas
três, na mesma época, e isto independentemente de contatos. Isto
não se pode explicar nem pelo difusionismo, nem pelo funcionalismo,
nem pelo estruturalismo, nem por coisa alguma. Explica-sc pela
própria natureza da questão, que tão logo aparece já se perfilam
automaticamente as duas atitudes possíveis. No momento em
que esses grandes sistemas filosóficos começam a se articular, que
começa a ser possível expô-los c torná-los objeto da discussão num
círculo de intelectuais dotados da mesma qualificação e da mesma
formação, alguns percebem que existe nisso um perigo, que eles
não sabem exatamente no que consiste. Eu não estava lá para avisá-
los de que isto que cies temiam era o que se chamava “paralaxe”,
ou seja, o deslocamento entre o intelecto construtivo teorético e a
consciência pessoal. Era esle o problema. Mas para que se tornasse
possível enunciá-lo era preciso que a coisa tivesse se desenrolado c se
manifestado lotalmente, e na época estava em germe.
Três místicos - São Bernardo de Clairvaux, Ai-Ghazali, no mundo
islâmico, e Yehuda Ha-Levi, entre os judeus - protestam então de
imediato, dizendo que a filosofia estava colocada infinitamente abaixo
da contemplação, e que aquilo que interessava cra o conhecimento
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contemplativo. Acontece que, na hora em que colocam isto, eles de certo
modo têm razão. Mas, ao se colocar filosofia versus contemplação, está-
se colocando as duas no mesmo nível como meios de conhecimento, e
na verdade isso não é assim. A vida contemplativa não é um meio de
conhecimento, é um modo de ser - ela não faz parte da teoria, mas da
realidade.
Existe um desnível entre os dois. É claro que qualquer teoria está
subordinada à realidade, a qual, por definição, tem o primado sobre
qualquer teoria. Não é que exista uma teoria chamada “realidade”
contra outra chamada “teoria”, não é isto. E na hora em que esses
três começam a protestar contra a teoria filosófica em nome da vida
contemplativa, por um lado o protesto é justo, por outro lado eles estão
transformando a contemplação num modo de conhecimento ou numa
espécie de teoria. Estão coisificando também: “Existe aqui a escola dc
pensamento mística, contemplativa, e existe a escola de pensamento
filosófica, racional, teorética”. Hoje entendemos que essa colocação é
absolutamente falsa.
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Não, a vida contemplativa não é propriamente conhecimento, é um
modo de ser, e de certo modo a primeira condição para que exista
inteligência é que exista a vida contemplativa. Se, em vez de se dedicar
à vida contemplativa, o sujeito ficar só construindo ideias, ele está
fugindo da realidade para um mundo de sua própria construção.
Entre a contemplação e a teoria, a vida intelectual construtiva,
existe uma hierarquia, que é a da realidade para o seu reflexo, para a sua
imagem. Então, sempre que esses camaradas protestavam eles tinham
razão, com a ressalva de que, ao fazerem isso, estavam transformando
numa polêmica intelectual, e como que num confronto de escolas, algo
que não cra um confronto de escolas de maneira alguma.
Não, eles não podiam negar, pois todo mundo sabe que isso não é
defensável. Ter uma atitude anticicntífica não é possível. Eles estavam
tentando restabelecer uma hierarquia, mas, na hora em que formulam
isso, como é que eles fazem? Teoreticamente também, criando uma
hierarquia de conhecimentos: “Olha, a contemplação está em cima”.
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de realidades espirituais, como veremos em São Boaventura.
O que eu quero dizer é que contemplação não é uma via de
conhecimento. É um estado de ser, um modo de ser. Contemplação
significa simplesmente estar na realidade ainda que não se saiba
enunciá-la.
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então você tem que viver no meio disto, tern que ter a experiência real
disto, quer disto obtenha alguma ciência, quer disto obtenha apenas a
salvação da própria alma.
Nesse sentido, a vida religiosa e contemplativa tinha um primado
óbvio sobre qualquer outra atividade, mas esse primado não era, por
sua vez, de ordem doutrinal. A própria existência dc doutrinas fazia
parte de um contexto existencial criado pela vida contemplativa, então
não se colocavam num mesmo plano. E se você monta uma discussão
doutrinal em torno disto, você está, de certo modo, querendo que
a própria existência real, que é o fundo dentro do qual é possível a
atividade teorética, se torne por sua vez uma teoria. Aí já está fazendo
urna espécie dc “efeito Eseher’: a mão que se desenha a si mesma.
Em princípio, nenhum filósofo tem o direito de protestar contra as
condições que permitem a atividade filosófica; a própria existência dele
é uma delas. Existem coisas que ficam fora da especulação teorética,
porque elas são a própria condição existencial para que seja possível
a atividade teorética, então não podem ser conlestadas por aquilo
mesmo que ela possibilita. Ou seja, um filósofo não tem o direito dc
protestar contra a realidade. Ele tem o direito de protestar contra
outra teoria, mas não contra a realidade - contra o fundo existencial,
isso ninguém pode, já é uma atividade de louco. Isso quer dizer que,
quando o sujeito faz isso, ele está protestando contra o próprio fato de
estar protestando. Isso é uma loucura moderna, caracteristicarnente.
Vê-se que nesta discussão já tinha entrado uma pontinha disto, na
medida em que o primado da realidade fundamental sobre as teorias
se transforma, por sua vez, numa teoria, sendo discutido como tal.
Na verdade, qualquer filósofo contra o qual urn desses três, Yehuda Ha-
Levi, Al-Al-Ghazali ou São Bernardo, apresentasse objeções, ele teria
todo o direito de responder: “Sim, você tem toda a razão, só que isto
não interfere em nada nas teorias que estou fazendo. Uma coisa não
tem nada a ver com a outra. A própria possibilidade da existência da
minha teoria depende disso que você está dizendo”.
1«
Ocidente, só se liam alguns dos escritos lógicos de Aristóteles, que
eram os Tópicos, as Categorias, etc. E nessa época, então, através dos
árabes, chega a tradução das duas Analíticas, que são propriamente
a teoria do silogismo. Esse Gilbert de la Porrée é, então, um dos
camaradas importantes na formulação da nova lógica, que permitiria
que, idealmente, todas as discussões daí para adiante tomassem a
fornia de deduções silogísticas.
Mais ou menos na mesma época, chegam os escritos de alguns
filósofos islâmicos, cspecialmente de Al-Farabi, Averróis e Avicena,
cuja contribuição entra de imediato nas discussões locais. E todos eles,
de algum modo, estão fortalecendo a formação da tecnologia filosófica
e a corrente aristotélica, que tendia a formar um sistema das ciências.
É curioso que Al-Farabi é um filósofo do século X, cujos escritos
chegam aqui por volta do século XII, Embora ele fosse um aristotélico,
era um antiaristotélico num ponto muito importante: acreditava
que os conceitos universais- chegam a nós por iluminação divina,
exatamente como Santo Agostinho. Lembrem-se de que Agostinho
dizia o seguinte: “Nós só temos experiência dos seres singulares.
Então, de onde tiramos essas grandes noções universais? De onde
tiramos até o conceito de igualdade?”. Ele dizia: “É porque existe no
intelecto humano algo de supra-humano”. Este algo supra-humano é
uma assistência que recebemos do intelecto divino, que nos permite
conceber coisas que estão infinitamente além da nossa experiência.
A isto os aristotélicos stricto sensu observarão que não é assim, que
obtemos os conceitos universais, mas que os obtemos por comparação
de características comuns entre vários entes singulares.
Nesta discussão introduz-se também uma confusão que o próprio
Aristóteles, se estivesse vivo, resolveria, creio eu, da seguinte maneira:
ele diria que o fato de obtermos os conceitos universais por abstração,
isto é, por comparação de indivíduos singulares, não impede que para
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isso seja necessária a ajuda do intelecto divino. Por quê? Porque,
quando você compara dois seres singulares para pegar o que eles têm
em comum, o que precisamente você comparou dc um com o outro?
Já dei uma aula sobre isso, dizendo: sc você vai comparar uru gato
com outro gato, com outro gato, com outro gato, para obter no final
o conceito universal “galo”, é necessário que os traços observados no
primeiro galo sejam os mesmos observados no segundo. Se num você
observou a cor, no outro observou o peso, no terceiro observou a posição,
no quarto observou a ação, se ele estava dormindo ou acordado, andando
ou parado, no final você não vai obter nada. A própria possibilidade da
comparação já subentende uma certa unidade da forma que você capta
em cada um dos seres singulares.
O processo abstrativo é então necessário, ou seja. a comparação
para captar os elementos comuns é um processo necessário, mas ele
não seria possível se você já não estivesse, dc certo modo, pré-orientado
por uma espécie de pressentimento de quais são os elementos que você
deve comparar entre um e outro. Se você fizesse a comparação por
partes, jamais chegaria a nada. Por exemplo, aqui você pega um gato,
que é marrom; do lado tem uma bola marrom - então, nesse sentido,
o gato e a bola são a mesma coisa. E depois tem um gato preto, e esse
gato preto, sob esse aspecto, é enormemente diferente do gato marrom
e da bola marrom - então cic vai entrar numa outra espécie. Como é
que você conseguiría formar os conceitos das espécies se sua atenção
já não estivesse voltada para aquele esquema comum que os vários
objetos têm uns com os outros e que permite que sua mente perceba o
agrupamento deles numa espécie?
O velho Aristóteles, se estivesse vivo naquele momento - ora, ele
seria um pouco menos aristotélíco do que os aristotélicos medievais
diria: “Você obtém os conceitos universais por abstração, com
alguma ajuda da iluminação divina, como dizia Agostinho” . Essas
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duas correntes não são, então, realmente opostas, mas na época
pareceram opostas.
Também não deixa de ser interessante que a mesma solução que
Abelardo havia articulado ao problema dos universais apareça na obra
de Avicena, outro camarada que vive no século X para o XI. Com
relação aos universais, ele diz: “De fato, os universais são criações
da mente humana, porém a eles corresponde, na esfera da realidade,
a essência de cada espécie, que está na espécie e não na nossa mente.
Portanto, o universal é ao mesmo tempo invenção da mente humana e
um traço efetivo da realidade, algo que está presente na realidade”. Sua
solução é bastante semelhante à dc Pedro Abelardo, e eles a obtiveram
de maneira totalmente independente.
Também na mesma época chegam aqui as obras de Averróis,
um sujeito que não foi importante no contexto islâmico - onde foi
esquecido logo depois de morto mas que no Ocidente teve utn efeito
arrasador, criando aqui, pelos séculos seguintes, uma visão totalmente
errada do que teria sido a evolução do pensamento islâmico. Para os
ocidentais ou latinos, Averróis estava no centro dos acontecimentos;
e, para os islâmicos mesmos, Averróis nem estava lá.
Ele tinha duas teorias que no meio islâmico foram consideradas
altamente heréticas. Uma delas é a de que a verdadeira religião é mesmo
a filosofia; somente a filosofia permite o acesso às verdades universais
principais, e a religião, com todo o seu aparato de símbolos, mitos,
rituais, etc,, não é senão uma espécie de expressão exótica ou floreada
das mesmas verdades que a filosofia capta por outro meio. A segunda
teoria explica o conhecimento dos conceitos universais; segundo ele,
a parte superior da inteligência humana, ou seja, aquela que capta os
conceitos universais, é uma só em todos os seres humanos.
Nessa época, dividia-se o intelecto humano em dois aspectos: o
intelecto agente, que é aquele que fornece a verdade; c o intelecto
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possível, que é aquele que a recebe. Averróis disse: “O intelecto
agente, que é a parte divina da inteligência humana, é um só para
todos; e o intelecto possível é um para cada um. Então, quando você
percebe um conceito universal, o que está agindo em você é o mesmo
que está agindo em mim”. Acontece que isso criava um problema
teológico, pois, se é assim, se o intelecto agente, a parte mais nobre da
alma humana, é uni só cm todos, somente esta parte é que pode ser
salva quando o sujeito morre, não havendo propriamente a salvação
individual. O intelecto agente, que veio do Céu, volta para o Céu, e nós
todos vamos para o buraco. Evidentemente, os muçulmanos ficaram
muito revoltados, e os cristãos também, quando ouviram falar disto.
Surge, então, toda uma discussão, principalmente com Santo Tomás
de Aquino. Ele até fará uma polémica com Averróis sobre este ponto, e
seus argumentos são absolutamente devastadores.
Na época, junto com o interesse pelos universais, começa a surgir
uma outra questão, que é o problema da individualização. Ele se
formula mais ou menos da seguinte maneira: se na mente de Deus os
universais, ou seja, as idéias, as essências das espécies, precedem a
criação dessas espécies, e se formalmente, portanto, todos os membros
de uma espécie são o mesmo, pois obedecem ao mesmo esquema geral,
o que os diferencia individualmente? De onde surgem os indivíduos,
de onde vem a diferença individual?
Aí surgem duas hipóteses. A primeira é a seguinte: a diferença
individual está apenas na matéria. É como se você tivesse um mesmo
molde. Por exemplo, a espécie humana: tem um molde chamado
“humanidade”. Conforme esse molde foi aplicado, hoje nós diriamos,
num grupo de moléculas de carbono que estava localizado na cidade
de Campinas, cm 1947, no dia tal, no Hospital da Beneficência
Portuguesa, virou eu. E se o mesmo molde foi aplicado em outro
pedaço de matéria que estava em outro lugar, daqui a pouco virou
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você, você, você... Essa é a teoria de Santo Tomás, de que a diferença
individual é exclusivamente material. Ao que alguns objetavam: sc a
diferença individual c apenas material, então, também, como é possível
a salvação da alma? Por que um pedaço de matéria há de ser salvo?
Surge uma outra escola que diz que a individualidade não pode
estar só na matéria, deve estar na forma. Há diferença essencial de
indivíduo para indivíduo. Existe uma espécie de essência individual,
que mais tarde John Duns Scot chamará de esseidade. A esseidade é a
minha essência, a sua essência, a dele... Há uma para cada um.
Esta mesma coisa que surgirá no século X I11 com Duns Scot já
havia sido expressa (vamos dar uma olhadinha no século XI) por
um filósofo judeu, Ibn Gabirol, que alguns chamaram de Avicebron.
E Avicebron dizia que a alma, a própria alma, que estaria com relação
ao corpo como a forma está para a matéria, ela própria não é forma, é
também composta de forma c matéria. Ele dizia que existe uma matéria
da qual são feitas as almas. E esta matéria, por sua vez, na criação
dos entes concretos, subdivide-se numa “matéria espiritual” (como se
fosse o software do indivíduo) e numa “matéria material”, que seria
o seu corpo. Então lbn Gabirol já tinha mais ou menos apreendido o
princípio da solução que mais tarde Duns Scot dará ao problema da
individualidade.
Nesta época, também se difunde muito o conhecimento de
outro filósofo judeu importante, que é Moisés Maimônides, que
toma decididamente o partido da corrente aristotélica afirmando
taxativamente que o conhecimento racional c científico é até um dever
religioso. Isso deixará uma marca muito importante no pensamento
judaico pelos séculos seguintes. Embora aceitando integralmente o
conteúdo das Escrituras, ele dirá que, na interpretação deles, o que
predomina é realmente a razão, Onde houver um conflito direto,
onde uma afirmação das Escrituras contradiz frontalmente a razão,
23
sem possibilidade de conciliação, nesses casos a Escritura deve ser
interpretada alegoricamente ou simbolicamente. Nunca se vai fazer
com que a Escritura em si predomine sobre a razão, porque a razão
6 o único meio que se tem de interpretá-la. Seria uma espécie de
curto-circuito. Maimônides não aceita esse curto-circuito, então diz:
“A Escritura predomina, mas ela mesma exige a interpretação racional.
E onde for confrontada com a razão, significa que não se entendeu,
então aquilo tem um outro sentido”.
Note bem: contra indivíduos como Ibn Gabirol e M aimônides,
aparece Yehuda Ha-Levi; contra Averróis e Avicena, aparece
Al-Ghazali; e contra os aristotélicos ocidentais todos, Pedro Abelardo
e outros, aparece São Bernardo. Esses três fenômenos são mais ou
menos concomitantes. Isso mostra que essa questão é de certo modo
estrutural, Onde existir um desenvolvimento de urna filosofia dentro
de um contexto religioso, aparecerá esse problema da contemplação
versus a construção teorética e a construção científica. E, nos três
casos, o problema será mal equacionado pelos partidários da vida
contemplativa, mal equacionado a uni ponto em que São Bernardo
cria uma verdadeira obsessão anti-Abelardo. Eram amigos de infância,
mas ele vivia cismado com Abelardo e - todo dia ia procurar alguma
coisa herética nos seus escritos, c nunca encontrava. Ele dizia: “Esse
negócio deve ser herético...”, daí revirava. Mas nunca conseguiu
provar efetivamente nada. Esta espécie de obsessão anti-herética já
mostra que havia alguma coisa errada na formulação de uma outra
que era profundamente verdadeira. No primado da contemplação,
São Bernardo estava montado na razão, mas, caso se transformasse o
primado da contemplação, por sua vez, numa teoria, então ela entrava
em confronto com outra teoria.
Note que para Agostinho nada disso fazia o menor sentido. É a
contemplação que lhe permitia ter a consciência de si, da qual ele tirava
24
a filosofia, então nem sc discute. “Prímum vivere, deindephilosophare”
(“primeiro viver, depois filosofar”), este é o sentido. Quer dizer que
a vida, não se trata da vida prática, não - “Primeiro eu vou ganhar
meu dinheiro, depois vou filosofar”, - não é disso que ele está falando.
Está falando da vida no sentido de existência real, E a existência
real é existência não só no mundo material, mas no mundo material
dentro do imenso contexto da infinitude espiritual que o cerca. A vida
contemplativa c simplesmente a abertura da alma para a infinitude da
realidade, e é claro que isto precede qualquer elaboração teórica.
Sc na esfera da discussão filosófica havia esses problemas dos
universais, da individualidade, etc., pelo lado dos místicos também
havia alguns problemas, e na verdade problemas até mais graves.
Porque toda e qualquer atividade mística, seja na esfera cristã, seja na
islâmica ou na judaica, oferece dois riscos.
O primeiro risco é o chamado “egoísmo espiritual” : o sujeito está tão
imbuído da sua busca mística que se esquece da humanidade e cuida só
de si mesmo. Claro que ele está dedicado a unia atividade muito nobre,
mas especificamente no contexto cristão isto é condenado. Pelo quê?
Pelo 2UMandamento. O sujeito está praticando o Io Mandamento: ele
ama a Deus sobre todas as coisas, então só pensa nele 24 horas por
dia. Mas como é a maneira concreta de você amar a Deus sobre todas
as coisas? Deus não precisa de você para absolutamente nada. O que
você pode fazer em favor dele? Nada. Então, o amor concreto a Deus se
manifesta no 2° Mandamento: “Ama a teu próximo como a ti mesmo”.
A mística é, então, muitas vezes, a fuga ao dever da caridade.
Em segundo lugar: a vida mística levando ao conhecimento dos
mundos espirituais e, em última análise, ao conhecimento de Deus.
Como o conhecimento dentro de um contexto medieval é sempre
identificação entre o sujeito cognoscente e a coisa conhecida, ele levava
a uma espécie de identificação do sujeito com Deus. Dessa maneira, o
25
sujeito já não sabia mais quem ele era individualmente, podendo dizer,
como São Paulo Apóstolo: “Já não sou mais eu quem falo, é Cristo que
fala por mim”. Bom, em termos. Porque sempre tem aquele negócio do
Diabo. O padre estava fazendo um exorcismo c dizendo assim: “Em
nome de Jesus Cristo, saí daí”. E o Diabo diz: “De Jesus Cristo eu já ouvi
falar, mas você quem é?”. Esta diferença entre o Criador e a criatura
é então irredutível, sempre permanece. Sc existe uma identificação,
essa identificação é one way: c você que é absorvido em Deus, não
Deus que é absorvido em você. O místico em transe de identificação
com Deus pode fazer, então, como aquele famoso Al Hallaj, o místico
islâmico, que um dia saiu em praça pública e disse: “Ana ai Haqq”
(“Eu sou Deus”). E imediatamente lhe cortaram a cabeça - o que, se
ele era Deus, não teria lhe feito mal algum.
Esses dois riscos - o primeiro dc ordem ética e o segundo de ordem
cognitiva foi contra isto que São Francisco de Assis funda a sua
ordem. A ordem de São Francisco é baseada essencialmente na prática
do amor ao próximo, então aí não há perigo nem do egoísmo místico
nem da identificação de Criador e criatura.
26
estendem ao mundo animal e até vegetal. Este processo da identificação
com Deu.s e do egoísmo místico, que no mundo islâmico virará uma
verdadeira epidemia, no mundo ocidental é então cortado pela
interferência providencial dc São Francisco, que será o pai intelectual
de um grande filósofo, que é São Boaventura.
A Ordem Franciscana foi fundada para isto, o amor ao próximo,
a caridade. A Ordem Dominicana, ao contrário, era de frades
intelectuais e pregadores. Você tem a dos frades mendicantes, que
eram os franciscanos, e frades pregadores, que eram os dominicanos.
E eles se tornam os dois pólos da discussão filosófica, gerando algumas
diferenças absolutamente fantásticas, maravilhosas, entre o mundo de
Santo Tomás de Aquino e o dc São Boaventura, que talvez nós não
consigamos expor agora.
Como eu disse, o centro da discussão intelectual nesse período, na
fase áurea da Escolástica, são então as universidades, particularmente a
Universidade de Paris, onde, numa abadia, que existe ainda em ruínas,
um abade chamado Siger de Brabante adere, de uma só vez, a todos
os pressupostos filosóficos aristotélicos os mais heréticos possíveis.
Isso foi uma vantagem, pois de certo modo fez da Universidade o
pólo arislolélico dessa discussão. Ele adere até à noção aristotelica
da eternidade do mundo, dizendo: “Se está em Aristóteles, deve ser
verdade de alguma maneira”. Vai contra o próprio princípio da criação
do mundo, - pois, se o mundo é eterno, ele não foi criado nunca; - no
entanto, na Bíblia está dito que não é eterno.
Siger adere também ao monopsiquismo - a teoria do Averróis de que
o intelecto agente é um só em todos os seres humanos - e, evidentemente,
quando chega cm contradições, com isso admite que pode haver duas
verdades totalmente contraditórias: há uma verdade teológica, que
se deduz da Bíblia, e uma outra verdade filosófica, que se deduz da
observação e de Aristóteles. Não tem problema, pode-se perfeitamente
27
viver com esta contradição. A coisa em si é absurda, mas como princípio
estruturador da vida universitária é muito bom, pois permile a convivência
e o diálogo das duas. Já que não se tem a solução do problema, admite-se,
pelo menos provisoriamente, a existência de ambas.
Atitude similar aparecerá no século XX com um filósofo muito
estranho, um italiano chamado Ugo Spirito, que criará uma filosofia a
que vai chamar de “problcmaticismo” . Ele coloca um monte de dúvidas
filosóficas e diz: “Olha, eu não digo que elas não tenham solução; elas
talvez até tenham, mas eu não conheço nenhuma. Então, enquanto
isso, vamos ficando com os problemas”.
Na discussão pró e anti-Aristóteles, evidentemente, a primeira coisa
que acontece quando se começa a divulgar os escritos aristotélicos é
a repulsa total. Vai logo haver um Concílio que condena 28 teses de
Aristóteles, ao mesmo tempo em que uma outra parte, como o próprio
Sigcr, aderia por completo, enfrentando claramentc o Concílio.
O pessoal pensa que na Idade Média era assim: o Papa falava, todo
mundo obedecia servilmente. Imaginam que a Idade Media era uma
espécie de Partido Comunista, que havia o Comitê Central que decidia e
todo mundo, ate o último, tinha que repetir. Não, aquilo era exatamente
o contrário, um saco de gatos e uma discussão permanente. Então, uma
instituição importantíssima, como a Universidade dc Paris, era dirigida
por um sujeito que enfrentava ostensivamente o Concílio - muito mais
do que qualquer Leonardo Boff hoje. A divergência era muito mais
profunda. Leonardo Boff não tem nenhuma divergência filosófica
com ninguém, não é capaz de compreender essas coisas, mas Siger de
Brabante sabia perfeitamente com o que estava lidando. No entanto,
não houve punição nem perseguição. Por quê? Porque não era matéria
decidida ainda, isso estava em discussão.
28
[Aluno: Mesmo com um Concílio deliberando que aquilo está
errado?]
30
ser, conhecer e amar, está pegando a própria Santíssima Trindade em
analogia, em microcosmo.
Isso quer dizer que Boaventura vê o universo todo como uma série
de esferas das quais uma é imagem da outra; as mais inferiores são
imagens indiretas e, por assim dizer, encobertas das superiores. Isto
significa que ele contorna o problema dos universais de uma maneira
absolutamente genial, pois você só coloca esse problema dos universais
se esquecer esse aspecto simbólico e analógico, que uma esfera remete
à outra. Então, o que quer que você diga numa certa esfera é de certo
modo inexato, porque só na esfera superior c que tem a explicação
daquilo, só quando chegar em Deus é que daí fecha a pirâmide toda.
fsto significa que, em todos os debates filosóficos parciais, em
nenhum deles você vai ter certeza absoluta, pois sempre vai depender
de você subir na escala, E é justamente esta ascensão, este itinerário
da mente a Deus que é a própria filosofia. Na verdade, a solução dos
problemas filosóficos parciais não étão importante assim, pois qualquer
esfera de realidade que você esteja tratando é somente uma imagem de
uma esfera superior. O que interessa não é resolver o problema aqui,
mas subir para a esfera seguinte, e ir subindo, subindo, até chegar a
Deus. Isto quer dizer que, em Boaventura, não existe diferença entre
a filosofia e a mística: são exatamente a mesma coisa, apenas nomes
diversos da mesma coisa.
[Aluno: Hierarquia. ]
3)
mas será simbólica nos dois casos. E também a partir daí Boaventura
desenvolve uma certa filosofia da história parecida com a de Santo
Agostinho; e dá um desenvolvimento da história humana em seis
etapas, que refletem os seis dias da Criação, o que significa que ele
aceita inteiramente o famoso simbolismo dos números.
Acho esse Boaventura uma figura absolutamente fascinante,
maravilhosa. Tudo o que para os outros é problema, para ele não é
problema dc maneira alguma, pois vai com a maior simplicidade resolver
tudo. Ele diz; ‘’Olha, vocês estão discutindo porque estáo tomando
isso dc maneira demasiado literal, como se essas questões, se referindo
a dimensões da realidade que estão abaixo de Deus, pudessem ter uma
solução definitiva. Mas só Deus é definitivo, então essa questão será
resolvida de maneira parcial e provisória só para que dela você possa
subir um degrau na escala". Isso quer dizer que todas as discussões
filosóficas em Boaventura se transformam em etapas, em degraus de
uma ascensão mística a Deus.
n
correlações e conhecer o mundo. Ai tem uma etapa extra, porque
essa segunda etapa... \
33
TT
I 34
O que Santo Tomás de Aquino estava procurando cra outra coisa.
É como se dissesse: “Boaventura estava filosofando para si mesmo, e
Santo Tomás dc Aquino estava filosofando para a civilização inteira” .
O problema é então diferente. Do ponto de vista da ascensão da alma,
da salvação, o que Boaventura está dizendo é mais do que suficiente.
Você já entendeu a pirâmide que vai indo até Deus, vai subindo, e tem
uma série de questões filosóficas que serão resolvidas imperfeitamente,
pois o próprio mundo é imperfeito, e é imperfeito porque cada degrau
é somente analogia ou símbolo do seguinte, então só tem solução
quando chegar em Deus. Muito bem, digo eu, suponha que você tenha
chegado lá. Como é que vai fazer a pirâmide de volta? Como é que
vai organizar o mundo humano e o mundo do conhecimento? Este
segundo problema era o de Santo Tomás de Aquino. Então, por um
lado, eles estão se contradizendo, como se diz aristotelicamente: sob
certo aspecto, estão se contradizendo, mas sob outro aspecto não há
contradição, mas apenas uma diferença de objetivo.
Isto significa que em Boaventura se reafiza mais perfeitamente
aquilo que nós definimos como essência da filosofia. A filosofia será
uma organização da unidade do conhecimento, mas na escala da
consciência individual. Ou então aquela resposta serve para aquele
indivíduo e para aqueles que têm uma vivência da realidade parecida ou
similar à dele -portanto, não tem validade social. Se passa a ter validade
social, c porque já é a filosofia c algo mais. O que entendemos hoje, na
modernidade, por ciência é algo que tem validade social. Por exemplo,
num tribunal, você pode alegar um argumento científico. Você quer
proibir as pessoas de fumar, então diz: “Olha, cicntificamcnte, dizem
que faz mal, que as pessoas morrem. Está aí o Olavo, que já morreu faz
vinte anos...". Esse é um argumento científico. Filosoficamente, isso
não faz o menor sentido, pois a filosofia só é válida para indivíduos que
têm uma vivência da realidade similar. A filosofia, nesse sentido, não
35
tem autoridade externa, não pode ser imposta. Só pode usar do quê?
Da persuasão racional. Mas a persuasão racional pode falhar.
36
absolutamente formidável. Além de ser um filósofo, clc era uma
espécie de administrador do mundo. Isso quer dizer que, deste ponto
de vista - que cra mais externo e já não se tratava da ascensão até
Deus, mas da descida até Deus, do governo do mundo a analogia já
não bastava. Ele precisava de algo mais, queria uma prova. Mas como
no mundo não mandamos nada mesmo, e eu estou pouco me lixando
para o governo do mundo, então eu fico com São Boavcntura.
Santo Tomás tem coisas, por exemplo, de filosofia política, que são
de uma veracidade permanente. Pode ser base do governo do mundo
mesmo; o governante que seguir aquilo vai dar certo. Ele teoriza, por
exemplo, em favor da democracia, isto é, diz que para haver a ordem
social é necessário que todos participem do exercício do poder, todos.
Quem são “todos”? São as três classes: os optimates, os aristocratas;
o pessoal que não é aristocrata, mas tem dinheiro; e o povinho. Todo
mundo tem que participar. Advoga a favor da democracia, mas diz:
“A democracia não é absoluta, não é um valor absoluto, é relativa.
Às vezes cfa sc transforma numa coisa má, quando se instaura a
ditadura dos de baixo”. E daí ele pergunta: “Quais são os sintomas
de que se instaurou uma ditadura dos de baixo?”. Primeiro, é que os
bens dos ricos são tomados; segundo, é que começa a se introduzir
a corrupção nas eleições, os caras são comprados; terceiro, é que se
elegem pessoas ineptas. É o Brasil! Entendem? Ele diz que, quando a
democracia virou uma ditadura dos de baixo, então tem que haver uma
reação aristocrática para botar as coisas cm ordem dc novo.
Mas não é? Esse tipo de coisa... Vocc vc que, onde aconteça isso,
essas três condições se manifestam: é o voto comprado, é a corrupção
37
financeira, e, quando o fator financeiro começa a interferir gravemente
na eleição, começa esse negócio de os caras de baixo tomarem os bens
dos ricos. Começam a invadir fazenda, começam a fazer não sei o quê.
E começam a eleger o Luiz Inácio Lula da Silva. O negócio, segundo
Santo Tomás, ficou brabo, e seria de alia conveniência,., Ah, Santo
Tomás já explicou tudo isso. Os sintomas da ditadura de baixo são
esses três, os três estão aí manifestos!
Nestes assuntos São Boavcntura nunca nem se meteu. Ele estava
lá pensando: “Como é que vamos fazer para usar as investigações
filosóficas como um meio de chegar até Deus?”. Então, por um lado,
vê-se que em São Boaventura o conflito entre mística e filosofia (que
em alguns casos deu até em morte) simplesmente não existia. E note
bem que ele não teoriza a unidade das duas coisas, simplesmente a
pratica. Demonstra o movimento andando, demonstra que não existe
conflito mostrando que. na pessoa dele, não há conflito algum. Acho
que esses dois de certo modo se complementam.
|Aluna: O senhor não acha que vão sempre existir esses dois?\
[Aluna: (...) é até bom, então, para a humanidade que haja esses...]
Não, ela pode. O que ela não pode é reivindicar para si essa
autoridade, como vai fazer na Revolução Francesa.
39
| Aluno: Mas Aristóteles também não fez um movimento de
organizar as ciências e as (...)?]
[Aluno: Por assim dizer; talvez fosse uma organização com vistas
ao próprio conhecimento (...) e não com vistas a ser socialmente...]
[Aluno; Mas num sentido ele era “lighE’, pois falava: “Deixa do
jeito que está, não mexe”. O princípio dele era basicamente esse:
“Está assim, não mude”.]
40
método está errado, a resposta está errada c as conseqüências estão
erradas. Está todo errado. No entanto, como diziam, ele era um homem
bem-intencionado.
Não, acho que Kant foi muito bem entendido, muito bem
compreendido, isso é que é o pior de tudo. Porque os caras não só
entenderam, como estão fazendo o que ele disse para fazer.
É. Então ele vai explicar isto como necessidade, e todo mundo engole.
É uma explicação perfeitamente imbecil! Até que, na década de 1920,
42
chegou um camarada que foi pegando item por item, demonstrando por
que isso era urna impossibilidade absoluta. Daí trataram de inventar
outra explicação idiota. E, se ele lesse São Boaventura, entenderia por
que tem o totem, como entenderia todos os rituais, símbolos, etc.
Veja, a ideia de que, por exemplo, se possa explicar o mito... Você
pega um antropólogo moderno, como Lévi-Strauss e outros. Muito
bem, vamos raciocinar agostinianamente. Se você não conhece a si
mesmo, não vai entender é nada. Você já percebeu qual c a função
do elemento mítico cm sua vida? Quanto da sua vida é baseada em
elemento mítico? Se entendeu isso, talvez entenda o mito... Mas,
se não entende nem em você mesmo, não vai entender nada lá fora.
Ninguém exigiu isto do Lévi-Strauss. Quer dizer que o sujeito forma
uma teoria para explicar o universo inteiro, mas essa teoria não explica
ele mesmo. E isto o que é? Paralaxe. Do Lévi-Strauss, para não falar
dos antropólogos evolucionistas.
É curioso que a antropologia evolucionista já caiu, está totalmente
desmoralizada há mais de um século, no entanto a teoria da evolução
continua cm pé. Mas, sc ela é tão boa assim, deve ser aplicada em
antropologia. Por que a aplicação à antropologia deu errado? Deve ter
algo furado nela mesmo. Isso não quer dizer que o fenômeno evolução
não exista. Pode ser até que exista, mas o fato é que não sabemos.
E uma coisa que não sabemos não pode servir cie base para explicar
outra que também não sabemos.
Esse negócio da paralaxe, que começa mais no século XII,
vai abrindo, abrindo, até que chega um ponto em que o filósofo
realmente não sabe mais o que está dizendo, não tem mais a menor
idéia do que eslá dizendo. Está no mundo da lua, completamente. E o
pior é que ninguém acha isso ruim.
43
[Aluno 1: Sobre a questão do Kant, que se você entende a realidade
não entende o Kant e vice-versa, eu lembro que quando eu tive a
primeira aula com o Giannotti na USP...]
É trem-fanlasma!
44
Leituras sugeridas
DEMPF, Alois. La concepción de! mundo en la F.dad Media, Madri: Gredos, 1958.
WOODS JR., Thomas E. How the Catholic Church Built Western Civilization.
Washington: Regnery, 2005.
45
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Carvalho, Olavo de
A Escolástica : aula 15 /
por Olavo de Carvalho - São Paulo: É Realizações, 2006.
(Coleção história essencial da filosofia)
Inclui um DVD.
Conteúdo: aula 8: Advento do cristianismo -
aula 9: Filosofia patrística e escolática - aula 10: Santo Agostinho -
aula 11: Tomás de Aquino c Duns Scott - aula 12 : Filosofia islâmica -
aula 13: Filosofia cristã - aula: 14: Idéia versus realidade - aula: 15: A escolástica,
06-0905 CDD-109
História
Essencial da
Filosofia
Aula 1:
História das Histórias
da Filosofia
Aula 2:
O Projeto. Socrático
Aula 3:
Sócrates c Platão
Aula 4:
Aristóteles
Aula 5:
Pré-Socráticos
Aula 6:
Período Hckmístico 1
Aula 7:
Período Helcnístico 11
Aula 8:
Advento do Cristianismo
Aula 9:
Filosofia Patrística e
Escolástica
Aula 30:
Santo Agostinho
Aula lt:
São 'Ibmás dc Àquino e
Duns Scott
Aula 12:
Filosofia Islâmica
Aula 13:
Filosofia Cristã
Aula 14:
Idéia versus Realidade
Aula 15:
A Escolástica