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Olavo de Carvalho

Antifascismo
hitlerista
Por que os comunistas vivem chamando os
outros de fascistas? Já vi esse rótulo colado nas fi-
guras mais díspares: cristãos, liberais, conservado-
res, maçons, militares latino-americanos, anarquis-
tas, social-democratas, muçulmanos – todo
mundo. Nem judeus escapam: Menachem Begin e
Arthur Koestler levaram essa carimbada umas dú-
zias de vezes.
De onde vem essa mania, essa necessidade
compulsiva de dar a cada desavença, por mais mes-
quinha e estapafúrdia, o ar de um épico combate
antifascista?
Detesto conjeturas psicológicas. Prefiro o
método genético do velho Aristóteles. Em quase
cem por cento dos casos, contar como as coisas
começaram já basta para a plena elucidação de
causas e motivos.
Até o princípio dos anos 30, os comunistas
não ligavam muito para fascismo ou nazismo. Papai
Stalin ensinava-lhes desde 1924 que esses movi-

[1]
mentos eram apenas a radicalização suicida da ide-
ologia capitalista, prenunciando o fim do império
burguês e a vitória final do socialismo. “O nazismo,
dizia-se, é o navio quebra-gelo da revolução.” De
repente, em 1933, partindo de Moscou sob o co-
mando de Karl Radek, uma onda de antifascismo
varreu a Europa sob a forma de livros, reporta-
gens, congressos, passeatas, filmes, peças de tea-
tro. Intelectuais independentes apareciam nos pa-
lanques ao lado dos poetas oficiais do Partido. Ma-
nifestos antinazistas traziam as assinaturas de es-
trelas do cinema.
Entre essas duas épocas, algo aconteceu.
Adolf Hitler, eleito chanceler, preparava-se para
grandes conquistas que requeriam o poder abso-
luto. Ansioso de eliminar concorrentes, e não po-
dendo abusar do apoio recalcitrante do exército
alemão, recorreu à ajuda da instituição que, no
mundo, era a mais informada sobre movimentos
subversivos: o serviço secreto soviético. A colabo-
ração começou logo após a eleição de Hitler. Em

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troca da ajuda militar alemã, vital para o Exército
Vermelho, Hitler era informado de cada passo de
seus inimigos internos. O sucesso da “Noite das
Longas Facas” de 1934 inspirou Stalin a fazer ope-
ração idêntica no Partido soviético: tal foi a origem
do Grande Expurgo de 1936, no qual o serviço se-
creto alemão, já disciplinado por Hitler, retribuiu
os favores soviéticos, descobrindo e forjando pro-
vas contra quem Stalin desejasse incriminar. O fa-
moso pacto Ribentropp-Molotov foi somente a
oficialização exterior de uma colaboração que já
era bem ativa fazia pelo menos seis anos.
A onda mundial de histrionismo antifascista
foi inventada por Karl Radek, em primeiro lugar,
como vasta operação diversionista. No auge da
campanha, ele escrevia a um amigo: “O que ali digo
(contra o fascismo) é uma coisa. A realidade é bem
outra. Ninguém nos daria o que a Alemanha nos
dá. Quem imagina que vamos romper com a Ale-
manha é um idiota.”

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De Paris a Hollywood, idiotas pululavam en-
tre os escritores e artistas. Arregimentá-los como
“companheiros de viagem”, criando a cultura do
comunismo chique que até hoje dá o tom nos
meios pedantes em países periféricos, foi o se-
gundo objetivo da operação. Eram pessoas impor-
tantes, formadoras de opinião, que conservavam
sua identidade exterior de independentes, ao
mesmo tempo que serviam obedientemente ao
comunismo porque suas vidas eram controladas
através de suborno, envolvimento e chantagem.
Um exemplo entre centenas: André Gide, que era
homossexual, durante anos não teve um compa-
nheiro de cama que não fosse plantado ali pela es-
pionagem soviética. Quando se recusou a colabo-
rar, a sujeira colecionada nos arquivos despencou
em cima dele. Por análogos procedimentos, a es-
pionagem soviética colocou a seu serviço André
Malraux, Ernest Hemingway, Sinclair Lewis, John
dos Passos e muitos outros, como também atores

[4]
e atrizes de Hollywood, que, além do glamour, ga-
rantiam para Moscou um regular fluxo de dólares,
moeda indispensável nas operações internacionais.
O controle dos intelectuais era feito diretamente
por agentes soviéticos, em geral à margem dos
partidos comunistas locais, que por isto foram pe-
gos de surpresa pelo pacto de 1939.
A terceira finalidade do “antifascismo” foi re-
crutar espiões nas altas esferas intelectuais. Alguns
dos mais célebres agentes soviéticos, como Kim
Philby, Guy Burgess, Alger Hiss e Sir Anthony
Blunt, entraram para o serviço por meio da cam-
panha. Conforme o combinado com Hitler, ne-
nhum dos então recrutados foi usado contra a Ale-
manha nazista, mas todos contra os governos an-
tinazistas ocidentais.
Comunistas, espiões e “companheiros de vi-
agem” carregam pesada culpa pela mais sórdida
fraude já montada por uma parceria de tiranos. Em
suas mais notórias expressões, toda a cultura anti-

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fascista da época, o espírito do Front Popular, ma-
triz do antifascismo cabotino que ainda subsiste no
Brasil, foi a colaboração consciente com uma farsa,
sem a qual as tiranias de Hitler e Stalin não teriam
sobrevivido a suas oposições internas; sem a qual
portanto não teria havido nem Longas Facas, nem
Grande Expurgo, nem Holocausto.
Neurose, dizia um sábio amigo meu, é uma
mentira esquecida na qual você ainda acredita. A
compulsão comunista de exibir antifascismo xin-
gando os outros de fascistas revela o clássico ritual
neurótico de exorcismo projetivo, no qual o do-
ente se desidentifica artificialmente de suas culpas
jogando-as sobre um bode expiatório. Nos velhos,
é hipocrisia consciente. Nos jovens, é absorção si-
miesca de um sintoma ancestral que acaba por
neurotizá-los retroativamente, fazendo deles os
guardiães inconscientes de um segredo macabro.
Por isso, amigo, quando um comunista cha-
mar você de fascista, não se rebaixe tentando ex-

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plicar que não é. Ninguém neste mundo deve sa-
tisfações a um colaborador de Hitler.

O Globo, 2 de setembro de 2000

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