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A

VIRTUDE
DO
NACIONALISMO

YORAM HAZONY
MINHA ARGUMENTAÇÃO APONTA para uma série
decisiva de vantagens de se organizar o mundo político em
torno de Estados nacionais independentes. Dentre outras
coisas, defendo que esse modo de organização é o que ofe­
rece as melhores condições para a autodeterminação
coletiva dos povos; que ele inculca nas pessoas uma aver­
são à conquista por parte de nações estrangeiras, e abre as
portas para uma tolerância maior para com diversos tipos
de vida; e que ainda estabelece uma competitividade s u r ­
preendentemente produtiva entre as nações, na medida
em que cada uma luta por promover o máximo possível
suas capacidades e as de seus membros individuais. Além
disso, considero que as fidelidades mútuas e sólidas, que
estão sempre no coração de um Estado nacional, nos dão o
único fundamento possível para o crescimento das livres
instituições e das liberdades individuais.

— YORAM HAZONY
A virtude do nacionalismo
Yoram Hazony
I o edição — setembro de 2019 — c e d e t
Título original: The Virtue ofNationalism.
Copyright © 2018 by Yoram Hazony
Esta edição foi publicada em acordo com a Basic Books de Nova York, n y .

Os direitos desta edição pertencem ao


c e d e t — Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico

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c e p : 13087-605 — Campinas, s p

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Editor:
Thomaz Perroni

Tradução:
Evandro Fernandes de Pontes

Revisão:
José Lima
Letícia de Paula
Luiz Fernando Alves Rosa
Jéssica Cardoso

Preparação do texto:
Letícia de Paula

Capa:
Gabriella Regina

Diagramação:
Virgínia Morais

Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo

FICHA CATALOGRÁFICA
Hazony, Yoram
A virtude do nacionalismo / Yoram Hazony; tradução de Evandro Fernandes de Pontes
— Campinas, SP: v i d e Editorial, 2019.
ISBN : 978-85-9507-073-8
1. Ciência política 2. Nacionalismo
I. Título. II. Autor.
cdd — 3 2 0 / 320.54
ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO

1. Ciência política — 320


2. Nacionalismo — 320.54

VIDE Editorial — www.videeditorial.com.br


Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer
meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução,
sem permissão expressa do editor.
Este livro é dedicado com am or ao s membros da minha tribo:
A v it a l

Tech elet
E f r a im

Ya r d e n a
H a d a r A h ia d

G a v r ie l
B in y a m in Z e ’e v N e t z a h

Yo se f
E l ia h u
Sumário

Nota do tradutor à edição brasileira.................................... 9


Introdução: Um retorno ao nacionalismo............................ 13

PARTE I
O nacionalismo e a liberdade ocidental

1. Duas visões de ordem mundial...................................... 27


2. A Igreja de Roma e sua visão de império.................... 33
3. A construção protestante do Ocidente......................... 37
4. John Locke e a construção liberal................................ 42
5. Nacionalismo em descrédito......................................... 53
6. Liberalismo como forma de imperialismo................... 59
7. Alternativas nacionalistas ao liberalismo.................... 65

PARTE II
Defesa do Estado nacional

8. Duas espécies de filosofia política.................................. 71


9. As fundações da ordem política.................................... 74
10. Como realmente nascem os Estados?........................... 88
11. Negócios e fam ília.......................................................... 95
12. Império e anarquia.......................................................... 101
13. Liberdade nacional como princípio de ordenação...... 109
14. As virtudes do Estado nacional..................................... 118
15. O mito da solução federalista....................................... 147
16. O mito do Estado neutro............................................... 160
17. Um direito à independência nacional?.......................... 171
18. Alguns princípios da ordem dos Estados nacionais.... 180
PARTE III
Antinacionalismo e ódio

19. Seria o ódio um argumento contra o nacionalismo?... 191


20. As campanhas difamatórias contra Israel.................... 193
21. Immanuel Kant e o paradigma antinacionalista......... 196
22. Duas lições de Auschwitz............................................... 201
23. Por que ninguém protesta contra as monstruosidades
do islã e do Terceiro M undo......................................... 207
24. A Grã-Bretanha, os Estados Unidos e outras nações
deploráveis....................................................................... 211
25. Por que os imperialistas têm ó d io ................................ 215

Conclusão: A virtude do nacionalismo................................ 221

Agradecimentos....................................................................... 229

índice remissivo....................................................................... 231


Nota do tradutor à edição brasileira

A
ntes de conhecer o professor Hazony pessoalmente, dei o
primeiro passo e conheci a sua obra — não apenas esta, mas
todo o seu pensamento — para então remontar o seu percur­
so intelectual. Ato contínuo, voltei a esta obra e selecionei os textos
que julguei centrais para o pensamento do autor: John Stuart Mill,
Giuseppe Mazzini, Immanuel Kant, John Locke, Thomas Hobbes,
Johann Gottfried von Herder, Emer de Vattel,Theodore Herzl, Ludwig
von Mises e, last but never the least, as Escrituras Sagradas.
Fiz questão de estudar essas obras centrais para Hazony nos res­
pectivos detalhes — isto é, fiz um esforço hercúleo para me colocar na
posição do próprio autor até onde fosse possível. Boa parte dos livros
usados por ele (Mill, Kant, Burke, Locke, Hobbes e Mises) possuem
traduções para o português que oscilam entre o razoável e o bem
feito. Embora Mill, Locke, Burke e Hobbes tenham sido citados no
original, dei-me ao trabalho de buscar as traduções dos trechos citados
e reproduzi-las sempre que fossem seguras e consolidadas, em vez de
traduzir os trechos eu mesmo. Em apenas um dos casos tive que fazer
reparos, em nota.
Deram-me um trabalho mais complexo, no entanto, as obras de
que o autor lançou mão em versões não originais, mas traduzidas:
refiro-me a Mazzini, Herder, Mises e Kant. Consultei três versões para

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YORAM HAZONY

cada obra citada desses quatro autores — a tradução em inglês usada


e citada por Hazony, a versão original em italiano ou alemão, e tam­
bém a respectiva tradução direta do italiano ou do alemão, para que
o leitor brasileiro pudesse contar com uma versão do texto bastante
fiel às intenções de Hazony.
Uma exceção precisou ser feita com relação a Herder, cuja tradução
para o português eu mesmo tive de fazer, haja vista as incongruências
notadas na versão inglesa de sua obra, apontadas em nota de rodapé.
Em alguns casos (e especialmente nesse de Herder e em Mazzini), o
texto original é disponibilizado para que o leitor que eventualmente
domine esses idiomas possa capturar com maior profundidade a idéia
transmitida por Hazony.
No caso de Mises, a versão existente no Brasil não dá informações
a respeito de qual texto foi usado como base para a tradução, se de
fato o texto original em alemão ou se o tradutor fez um trabalho de
segunda mão e partiu da tradução inglesa do original alemão. De
toda forma, busquei trabalhar no melhor sentido do texto original,
que apresenta algumas distâncias visíveis de sua versão brasileira.
Caso isolado é a referência a Vattel, cujo original em francês foi
acessado pelo autor, que citou o trecho a partir de uma tradução sua.
Nesse caso, fiz o percurso inverso e acessei a tradução recomendada
pela Fundação Alexandre de Gusmão, ligada ao Ministério das Rela­
ções Exteriores, respeitando também o sentido que Hazony empregou
ao‘ original ao rejeitar traduções inglesas e fazer a sua própria versão.
Outras obras são apenas referenciadas e seus correspondentes lo­
cais, quando os há, estão devidamente indicados (caso de Fukuyama,
Rand e outros).
Para as demais obras e papers utilizados pelo autor, o critério foi
não traduzir o título original (para que o leitor possa localizar o texto
caso precise da versão original, ainda que não domine o idioma) mas
apenas o trecho devidamente citado por Hazony, entre aspas.
Sobre a Bíblia Hebraica, o trabalho foi exatamente o de tentar
lançar aqui a essência do texto sagrado, puxando-lhe do hebraico o
seu sentido original, sem baldeação em outras línguas.

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A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Para todo esse trabalho, portanto, além dos originais de Hazony,


fizeram companhia em minha escrivaninha as seguintes versões para o
português:

— John Stuart Mill, Considerações sobre o governo representativo


[Considerations on Representative Government]. Tradução de Denise
Bottmann. Porto Alegre, rs : l &pm , 201 8; Sobre a liberdade [On Liberty).
Tradução de Paulo Geiger. São Paulo, sp : Penguin Clássics/Companhia
das Letras, 2017.
— Immanuel Kant, Idéia de uma história universal de um ponto de vista
cosmopolita [Idee zu einer Allgemeinen geschicbte in Weltbürgerlicher
Absicht). Tradução de Rodrigo Novaes e Ricardo Terra. São Paulo, sp :
Martins Fontes, 4a ed., 2016; Á paz perpétua [Zum ewigen Frieden].
Tradução de Marco Zingano. Porto Alegre, rs : l &pm , 2017.
— Ludwig von Mises, Liberalismo [Liberalism]. Tradução de Haydn
Coutinho Pimenta. São Paulo, SP: Instituto Ludwig von Mises Brasil,
2a ed., 2010.
— Emer de Vattel, Direito das gentes [Le Droit des Gens). Tradução
de Vicente de Marota Rangel. Brasília, d f : Editora UnB/iPRi, 2004.
— John Locke, Dois tratados sobre o governo [Two Treatises o f
Government). Tradução de Júlio Fischer. São Paulo, sp : Martins Fontes,
1998.
— Thomas Hobbes, Leviatã [Leviathan). Tradução de João Paulo
Monteiro & Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo, sp : Nova Cultural,
Coleção Os Pensadores, 1997.
— Edmund Burke, Reflexões sobre a revolução na França [Reflections
on the Revolution in France]. Tradução de Marcelo Gonzaga de Oliveira
& Giovanna Louise Libralon. Campinas, sp : Vide Editorial, 2017.

De Kant e Mises, acessei também as obras originais:


— Immanuel Kant, Idee zu einer Allgemeinen geschicbte in
Weltbürgerlicher Absicht. Berlin: Deutsche Bibliotheck, 1914 (versão
que contém trechos da obra de Herder sobre Geschicbte der Menschheit
citada abaixo); Zum ewigen Frieden — Ein philosophischer Entwurf.
Leipzig: Insel, 1917.
— Mises, Liberalism. Jena: Verlag von Gustav Fischer, 1927.

li
YORAM HAZONY

De Vattel, a versão original acessada foi Le Droit des Gens. Paris:


Reys et Gravier, 1820 (os quatro livros condensados em um único
volume).
Quanto à Mazzini, fui à obra original e traduzi-a diretamente do
italiano, no trecho em que o autor cita a versão traduzida em inglês:
I Doveri delVUomo. Milano: a sefi , 1995.
Já em Herder, fui à obra original e traduzi-a diretamente do alemão,
no trecho em que o autor cita versão traduzida em inglês para Ideen
zur Philosophie der Geschichte der Menschheit, 2o volume. Karlsruhe:
Christian Gottlieb Schmieder, 1794.
Por fim, para as Escrituras Sagradas me fiei no original bilíngüe
hebraico-português organizado pelo Rabino Marcelo Borer e traduzida
por David Gorodovits e Jairo Fridlin (Tanah completo — Hebraico/
Português. São Paulo, sp : Séfer, 2018.

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INTRODUÇÃO

Um retorno ao nacionalismo

A
política na Grã-Bretanha e nos eua deu uma guinada para
o nacionalismo. Isso incomodou muitos, especialmente nos
círculos mais intelectualizados, onde a integração global vem
desde há muito sendo vista como um pré-requisito para políticas
sólidas e uma decência moral. A partir dessa perspectiva, o voto da
Grã-Bretanha para deixar a União Européia e a retórica “América em
primeiro lugar”, vinda de Washington, dc , parecem anunciar a reversão
para um estágio mais primitivo da história, quando o belicismo e o
racismo eram verbalizados abertamente e permitidos justamente para
pautar a agenda política das nações. Temendo o pior, figuras públicas,
jornalistas e acadêmicos deploraram a volta do nacionalismo para a
vida pública dos eua e Grã-Bretanha nos termos mais duros possíveis.
Mas o nacionalismo nem sempre foi entendido como o mal que
esse discurso corrente do senso comum vem sugerindo. Até poucas
décadas atrás, uma política nacionalista era comumente associada
a uma mentalidade aberta e um espírito generoso. Progressistas
reconhecem os Catorze Pontos de Woodrow Wilson e a Carta do
Atlântico de Franklin Roosevelt e Winston Churchill como faróis
de esperança para a humanidade — e justamente porque eles foram
considerados expressões de nacionalismo, prometendo independência

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YORAM HAZONY

nacional e autodeterminação para pessoas escravizadas ao redor do


mundo. Conservadores como Teddy Roosevelt e Dwight Eisenhower
discursaram, da mesma forma, apresentando o nacionalismo como
algo positivo, e em sua época Ronald Reagan e Margaret Thatcher
foram bem recepcionados entre conservadores por conta do “novo
nacionalismo” que ambos reintroduziram na vida política. Em outras
paragens, governantes como Mahatma Gandhí e David Ben-Gurion
lideraram movimentos políticos nacionalistas que granjearam ampla
admiração e estima enquanto conduziam seus povos para o caminho
da liberdade.1
Obviamente, os muitos governantes e intelectuais que abraçaram o
nacionalismo nas gerações anteriores sabiam algo sobre o assunto, e
não estavam simplesmente tentando nos dragar de volta a um estágio
primitivo na história, de belicismo ou racismo. O que então eles viam
no nacionalismo? Há, surpreendentemente, poucas tentativas, seja na
esfera pública, seja na Academia, para responder a essa questão.
Meus próprios antecedentes pessoais me permitem discernir ele­
mentos desse assunto. Tenho me mantido como um judeu nacionalista,
um sionista, por toda a minha vida.2 Como a maioria dos israelenses,
herdei essa visão política de meus pais e avós. Minha família veio para
a Palestina Judaica durante os anos 20 e o início dos anos 30, com o
propósito de estabelecer um Estado judeu independente nessa terra.
Eles tiveram sucesso e tenho vivido boa parte da minha vida em um
país que foi fundado por nacionalistas, e foi governado amplamente
por nacionalistas até os dias atuais. Ao longo dos anos, conheci muitos
grandes nacionalistas, incluindo figuras públicas tanto de Israel quan­
to de outros países. E enquanto notava que nem todos eram do meu
agrado pessoal, via que a grande maioria eram pessoas que admirava
profundamente — por sua lealdade e coragem, seu bom senso e sua
decência moral. Entre eles, o nacionalismo não é como uma doença

Sobre o “ novo nacionalismo” de Reagan, v. Norman Podhoretz, “The New American


Majority” , Commentary, janeiro de 1981; IrvingKristol,“The Emergence ofTwo Republican
Parties” , Reflections o fa Heo-Conservative, Nova York: Basic Books, 1983, p. 111.
A respeito de minhas opiniões sobre o nacionalismo judaico, v. Yoram Hazony, The Jewish
State, Nova York: Basic Books, 2000; “ Did Herzl want a jewish State?” , Azure 9 (Spring
2000); “The Guardian of the Jews” , Azure 13 (Summer 2003); “Character” , Azure 14
(Winter 2003).)

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A VIRTUDE DO NACIONALISMO

política obscura qualquer, que invade países sem razão alguma ou sem
o fundamento de um bom propósito, como muitos nos eua e na Grã-
-Bretanha parecem pensar hoje em dia. É, pelo contrário, uma teoria
política familiar sob a qual muitos deles foram educados — uma teoria
sobre como o mundo político deve ser organizado.
Sobre o que fala, portanto, essa teoria política nacionalista? O na­
cionalismo em meio ao qual cresci é um ponto de vista fundamentado
na idéia de que o mundo é mais bem governado quando as nações
estão em condições de traçar seu caminho de forma independente,
cultivando suas próprias tradições e buscando seus próprios interesses
sem qualquer interferência. Isso se opõe ao imperialismo, que busca
trazer a paz e a prosperidade ao mundo, unificando a humanidade,
na sua máxima extensão possível, sob um único regime político. Não
suponho que a questão do nacionalismo seja inequívoca. Ponderações
podem ser reunidas em favor de ambas as teorias. Mas o que não se
pode fazer sem que se escamoteie argumentos é evitar a escolha entre
essas duas posições: ou você defende, em princípio, o ideal de um
governo ou regime internacional que imponha a sua vontade sobre
nações submetidas a esse mesmo regime em todas as ocasiões em que
seus líderes entendam ser necessário; ou você acredita que as nações
devem ser livres para estabelecer elas mesmas seus próprios destinos
na ausência desse governo ou regime internacional.3
Esse debate entre nacionalismo e imperialismo tornou-se aguda­
mente relevante novamente a partir da queda do Muro de Berlim em
1989. Naquele tempo, a luta contra o comunismo havia se encerrado
e as mentes dos líderes ocidentais foram invadidas por dois grandes
3 Minha definição de nacionalismo baseia-se em uma tradição de pensamento explanada por
Mill, que diz que “uma condição necessária para a existência das instituições livres é, em
geral, a correspondência aproximada entre as fronteiras dos governos e as fronteiras das
nacionalidades” . John Stuart Mill, Considerações sobre o governo representativo (p. 283).
Da mesma forma, Mazzini diz que “com a exceção da Inglaterra e da França, talvez não
exista uma única nação cujos confins correspondam àquele desenho [divino] [...]. As divi­
sões naturais e inatas, as espontâneas tendências dos povos serão substituídas por divisões
arbitrárias sancionadas por maus governos. O mapa da Europa será redesenhado. Pátrias
pertencentes aos povos surgirão, com base na escolha daqueles que são livres” . Giuseppe
Mazzini, I Doveri Dell’Uomo. A tradicional associação do nacionalismo a visões desse tipo
vem sendo confundida com a proliferação de novas definições avançadas na Academia.
Dentre estas, talvez a mais próxima da visão tradicional seja a de Ernst Gellner, que sugere
que o nacionalismo é um “princípio político, que sustenta que a unidade política e nacional
seja congruente” . Gellner, Nations and Nationalism, Oxford, uk : Blackwell, 1983, p. 1.

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YORAM HAZONY

projetos imperialistas: a União Européia, que vem progressivamente


mitigando os Estados-membros de muitos dos poderes que usual­
mente estão associados à sua independência política, e um projeto
de estabelecimento de uma “ Ordem mundial americana” , no qual as
nações que não se sujeitarem a um ordenamento jurídico internacional
acabarão coagidas a tal, sobretudo por mecanismos de força militar
conduzidos pelos e u a . Ambos são projetos imperialistas, ainda que
seus proponentes não gostem de chamá-los assim, por duas razões:
primeiro, a intenção é remover o processo decisório das mãos dos
governos nacionais independentes, transferindo-o para as mãos de
governos ou órgãos internacionais. E em segundo lugar, como pode-
-se rapidamente observar na literatura produzida por entusiastas e
instituições que promovem essas ambições, elas são conscientemente
parte de uma tradição política imperial, recebendo sua inspiração his­
tórica do Império Romano, do Império Austro-Húngaro e do Império
Britânico. Por exemplo, o argumento de Charles Krauthammer para
a “Dominação universal” americana, escrito no alvorecer do período
pós-Guerra Fria, conclama pela criação, por parte dos e u a , de uma
“ supersoberania” que irá presidir sobre a permanente “ depreciação
[...] da noção de soberania” em todas as nações sob a face da terra.
Krauthammer adota o termo latino pax americana para descrever essa
visão, invocando a imagem dos e u a como uma Nova Roma: assim
como o Império Romano supostamente estabeleceu a pax romana
(ou paz romana), trazendo segurança e tranqüilidade para toda a
Europa, assim deveríam os e u a fazer, providenciando segurança e
tranqüilidade para o mundo todo.4

Charles Krauthammer, “ Universal Dominion: Toward a Unipolar World” , The National


Interest, Winter 1989-1990), pp. 46—49. Krauthammer explica que não considera os eua
como um império porque “ não somos sedentos por territórios” . Charles Krauthammer,
“Democratic Realism: American Foreign Policy in Unipolar World” , Palestra anual na Irving
Kristol, American Enterprise Institute, em 10 de fevereiro de 2004. É um erro, contudo, supor
que o imperialismo se expresse pela sede de território. Seria mais a expressão de uma sede
de controle sobre outras nações — algo que muitos analistas crêem que possa ser obtido
por meio de bombardeios aéreos ou por outros métodos que dispensariam a anexação de
território. Visão similar aparece em William Kristol e Robert Kagan, em “Toward a Neo-
Reaganite Foreign Policy” , Foreign Affairs 75:4 (julho-agosto de 1996), pp. 18-32, em
que se propõe uma “ benevolente hegemonia global” , na qual hegemonia é definida como
“ preponderante influência e autoridade sobre todos os outros que se encontram sob seu
domínio” , p. 20.

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A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Esse florescimento de projetos e idéias políticas imperialistas dessas


últimas gerações deveria ter deflagrado um debate rigoroso entre na­
cionalistas e imperialistas a respeito do modo como o mundo político
deveria se organizar. M as, até muito recentemente, discussões dessa
natureza foram amplamente evitadas. Desde 1990, quando Margaret
Thatcher foi deposta por seu próprio partido por ter expressado dúvi­
das sobre a União Européia, absolutamente ninguém em uma posição
influente, seja nos e u a , seja na Europa, havia mostrado muito interesse
em comprar briga com essa visão já espraiada em todo meio político
e que reinava no coração desses dois projetos-gêmeos de construção
imperial já em andamento.5 Essa estranha unanimidade permitiu que
ambas as versões de “ Ordem Mundial” , os e u a e a União Européia, ace­
lerassem os projetos sem que disparassem um debate público explosivo.
Ao mesmo tempo, porta-vozes desses projetos ligados à política
e à intelectualidade estiveram conscientemente empenhados em não
rénovar um “Império Germânico” , mesmo aquele que estivesse gover­
nando nominalmente a partir de Bruxelas. Eles estavam conscientes
também de que os americanos frequentemente hesitavam em propa­
gar a idéia de um “Império Americano” . Como resultado, todos os
debates públicos relacionados a esses esforços foram conduzidos em
uma sombria novilíngua recheada de eufemismos como “ nova ordem
mundial” , “ unificação evolutiva” , “ abertura social” ,6 “globalização” ,
“governo global” , “soberania conjunta” , “ordem normativa unificada” ,
“jurisdição universal” , “ comunidade internacional” , “ internaciona-
lismo liberal” , “transnacionalismo” , “ liderança americana” , “ século
americano”, “mundo unipolar” , “nação indispensável” , “hegemonia”,
“ subsidiariedade” , “jogar conforme as regras” , “ o lado certo da his­
tória” , “o fim da história” e assim por diante.7 Tudo isso permaneceu

Sobre o ponto de vista de Thatcher, veja o seu Discurso no College of Europe (“The
Bruges Speech” ), em 20 de setembro de 1988; Margaret Thatchei; Statecraft, Nova York:
HarperCollins, 2002), pp. 320-411.
Do original em inglês “ openness” , termo inspirado no popperismo das Open Societies. — nt
Em relação à hesitação entre os imperialistas em relação ao uso desse termo, Thomas
Donnelly lembra: “ N ão há tantas pessoas que falarão abertamente sobre isso [...] é
desagradável para muitos americanos. Eles apenas usam frases de efeito como ‘Os eua são
uma superpotência’” . Thomas E. Ricks, “Empire or Not?”, Washington Post, 21 de agosto de
2001. N ão obstante, depois do ataque da Al-Qaeda de 11 de setembro, ambos, proponentes
e oponentes começaram a falar mais enfaticamente de império. V. M ax Boot, “The Case for

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YORAM HAZONY

por uma geração — até que finalmente o significado dessas locuções


começou a ficar bem claro para o público em geral, com os resultados
que vemos hoje diante de nossos olhos.
Se o derramamento de sentimento nacionalista na Grã-Bretanha e
nos e u a irá, ao final, prevalecer em favor do bem geral, é algo ainda
incerto e a ser conferido. M as ao menos podemos concordar neste
ponto: o tempo de discursar no vácuo pertence ao passado. O debate
entre nacionalismo e imperialismo se nos impõe. Imperialismo e nacio­
nalismo são ideais igualmente grandiosos e opostos, que se chocaram
entre si no passado e reciclam seus antigos conflitos nos dias de hoje.
Cada um desses pontos de vista merece ser pensado com o devido cui­
dado e respeito, o que inclui debater sobre eles de maneira direta, com
termos precisos e não ambíguos, para que haja perfeita compreensão
do que está sendo discutido. Esperamos que o debate, que há tanto
tempo parecia superado, volte a ser conduzido de modo a conjugar
franqueza, razoabilidade e clareza.
Escrevi este livro para que tenhamos uma declaração das razões de
ser um nacionalista.8 No interesse de contribuir para uma discussão

American Empire” , Weekly Standard, 15 de outubro de 2001; Stephen Peter Rosen, “An
Empire If You Can Keep It” , National Interest (Spring 2002); Stanley Kurtz, “ Democratic
Imperialism: The Blueprint” , Policy Review (Maio de 2003); Herfried Münkler, Empires,
trad.: Patrick Camiller (Malden, m a : Polity, 2007 [2005]); Niall Ferguson, “America as
Empire, Now and in the Future” . The National Interest (23 de junho de 2008). Opinião mais
crítica aparece em Andrew Bacevich, American Empire (Cambridge, m a : Harvard University
Press, 2002); Michael Ignatieff, “The American Empire” . Nova York Times Magazine, 5 de
janeiro de 2003; John Judis, The Folly o f Empire (Nova York: Scribner, 2004). Para uma
formulação de ordem política universal que não use o termo “ império” , veja, dentre outros,
Alexander Wendt, “Why a World State is Inevitable” , European Journal o f International
Relations 9 (2003), 491-542; Anne-Marie Slaughter e Jonh Ikenberry, Forging a World o f
Liberty Under Law (Princeton, n j : Woodrow Wilson School, Princeton University, 27 de
setembro de 2006).
Autores contemporâneos defendem uma ordem de Estados nacionais independentes ou
aspectos dessa mesma ordem, incluindo Roger Scruton, “ In Defense of the Nation” in The
Philosopher on Dover Beach (Nova York: St. Martin’s Press, 1990, pp. 299-328); David
Miller, Nationality (Oxford, UK: Oxford University Press, 1992); Gertrude Himmelfarb,
“The Dark and Bloody Crossroads: Where Nationalism and Religion Meet” , The N ational
Interest 32 (Summer 1993), pp. 53-61; Margaret Canovan, Nationhood and Political Theory
(Northampton, MA: Edward Elgar, 1996); Lenn Goodman, “The Rightsand Wrongs of
Nations”, in Judaism , Human Rights, and Human Values (Oxford, UK: Oxford University
Press, 1998, pp. 137-161); John Bolton, “ Should We Take Global Govemance Seriously?” ,
Chicago Journal o f International Law 1 (2000); David Conway, In Defense o f the Realm
(Hampshire, uk : Ashgate, 2004); Jeremy Rabkin, Law Without N ations? (Princeton, n j :
Princeton University Press, 2005); Pierre Manent, A World Beyortd Politics? (Princeton, n j :

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A VIRTUDE DO NACIONALISMO

que seja clara e a mais ampla possível, tratarei por “globalismo” aquilo
que obviamente ele é — uma versão do velho imperialismo. No mesmo
sentido, não vou perder tempo tentando fazer o nacionalismo mais
palatável chamando-o de “patriotismo” , como muitos hoje o fazem em
círculos onde o nacionalismo é considerado como algo inconveniente.
Normalmente, patriotismo se refere ao amor ou à lealdade que alguém
sente pela sua própria nação independente.*9 O termo nacionalismo
pode ser usado nesse mesmo sentido quando falamos de Mazzini como
um nacionalista italiano ou de Gandhi como um nacionalista hindu.
M as nacionalismo pode, da mesma forma, ser algo mais abrangente.
Há, como venho dizendo, uma longa tradição de uso desse termo para
se referir a uma teoria da melhor ordem política — qual seja, a uma
teoria anti-imperialista que busca estabelecer um mundo composto de
nações livres e independentes. É nesse sentido que o termo será usado
neste livro.
Uma vez que os eventos sejam vistos à luz desse longo histórico de
conflito irreconciliável entre duas posições sobre a ordem política, o
assunto como um todo se torna bem mais fácil de ser compreendido,
e uma conversa mais inteligente pode daí surgir.
Meu esquema de argumentação será o seguinte: na primeira parte
do livro, “ O nacionalismo e a liberdade ocidental” , estabeleço uma
configuração histórica básica para se compreender o confronto entre
imperialismo e nacionalismo, tal qual se desenvolveu entre as nações
do Ocidente. Apresento assim a diferença entre uma ordem política
baseada no Estado nacional, que busca legislar sobre uma única nação,
e aquela cuja proposta é trazer paz e prosperidade pela união de toda
a humanidade sob um único regime político em um Estado imperial.10

Princeton University Press, 2006); Natan Sharansky, Defending Identity (Nova York: Public
Affairs, 2008); John Fonte, Sovereigrtity or Submission (Nova York: Encounter, 2011); Dani
Rodrik, The Globalization Paradox (Nova York: Norton, 2011); Bemard Yack, Nationalism
and the M oral Psychology o f Community (Chicago: University of Chicago Press, 2012);
Amitai Etzioni, “The Democratization Mirage” , Survival: G lobal Politics and Strategy 57
(julho de 2015, pp. 139-156).
9 V. John Breuilly, Nationalism and the State, Chicago: University of Chicago Press, 1982, p.
8.
10 Evitei o termo “nação-Estado” , freqüentemente compreendido como a nação que consiste
no conglomerado de indivíduos vivendo em determinado Estado. Para a relação entre nação
e Estado, v. os cap. 9 e 10.

19
YORAM HAZONY

Esta distinção é central para o pensamento político extraído da Bíblia


Hebraica (ou Antigo Testamento), e no despertar da Reforma inspirou
a renúncia à autoridade do Sacro Império Romano do Ocidente por
Estados nacionais como a Inglaterra, a Holanda e a França. Assim
teve início um período de quatro séculos em que os povos da Europa
Ocidental e da América viveram sob uma nova política mundial de
construção Protestante, na qual a independência nacional e a autodeter­
minação surgiram como princípios fundacionais. De fato, essas coisas
passaram a ser incluídas entre as mais preciosas riquezas humanas e
a base de todas as nossas liberdades. Uma ordem de nações indepen­
dentes permitiria diversas formas de autogoverno, religião e cultura
em um “mundo de experimentos” que beneficiaria toda a humanidade.
Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, muitos ainda acreditavam
que o princípio da liberdade nacional era essencial para um mundo
justo, diverso e relativamente pacífico. Hitler, porém, mudou isso tudo,
e hoje vivemos esse longo “ dia seguinte” em que a narrativa simplista,
incessantemente repetida, afirma que “o nacionalismo causou duas
guerras mundiais e o Holocausto” . E quem, de fato, quer ser um na­
cionalista, se o nacionalismo significa sustentar racismo e massacre em
uma escala inimaginável?
Se o nacionalismo pavimentou o caminho para os maiores males
da nossa era, não é surpresa que as velhas intuições a favor da inde­
pendência nacional tenham sido gradualmente atenuadas e finalmente
até desacreditadas. Hoje muitos passaram a considerar uma intensa
lealdade pessoal a um Estado nacional e sua independência não ape­
nas algo desnecessário, mas também moralmente suspeito. A lealdade
nacional e as tradições deixaram de ser consideradas uma base sólida
para determinarmos as leis sob as quais vivemos, regularmos a econo­
mia, sustentarmos decisões sobre defesa e segurança, estabelecermos
normas públicas para religião e educação, ou decidirmos quem está
apto a viver em qual parte do mundo. O novo mundo imaginado hoje
por essa massa assim descrente do nacionalismo corresponde a um
mundo em que as teorias liberais do “Estado de Direito” (rule oflaw),
da economia de mercado e dos direitos individuais — as quais incluem
um contexto doméstico de Estados nacionais como a Grã-Bretanha,
os e u a e a Holanda — são consideradas como verdades universais e

20
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

estabelecidas como bases apropriadas para um regime internacional,


que fará a independência do Estado nacional completamente desne­
cessária.11 O que está sendo proposto, em outras palavras, é um novo
“ Império liberal” que irá substituir a velha ordem protestante baseada
nos Estados nacionais independentes. É esse Império que, pressupõe-se,
nos salvará dos males do nacionalismo.
No entanto, os adeptos desse novo imperialismo estariam descrevendo
corretamente o que seria esse nacionalismo e de onde ele vem? Estariam
certos em atribuir ao nacionalismo os maiores males do último século?
E seria a reciclagem do imperialismo realmente a solução?
Entendo que esses pontos de vista são altamente questionáveis. E assim,
na Parte n, “Defesa do Estado nacional” , defendo um mundo baseado
em Estados nacionais independentes como a melhor ordem política
possível, e mostro por que devemos rejeitar o imperialismo, que anda
exacerbadamente em voga. Essa parte do livro apresenta uma filosofia
política baseada na comparação de três formas rivais de organização
política que nos chegou pela experiência: a ordem política dos clãs e
tribos encontrada em virtualmente todas as sociedades pré-Estado; uma
ordem internacional sob um Estado Imperial; uma ordem de Estados
nacionais independentes.
As mais recentes tentativas de comparação entre uma ordem política
“globalista” e um mundo de Estados nacionais foram enfocadas sob
o ponto de vista das vantagens econômicas e de segurança oferecidas
por um regime jurídico unificado mundialmente. Mas de acordo com a
visão que defendo, argumentos baseados na economia e na segurança
são muito estreitos para oferecer uma resposta adequada para a ques­
tão sobre a melhor ordem política. N a realidade, muito do que ocorre
na vida política é motivado por preocupações surgidas no contexto
de nossa associação a certas coletividades, como as famílias, as tribos
e as nações. Os seres humanos nascem dentro de tais coletividades ou

11 Aqui e ao longo deste livro, considero o liberalismo como uma teoria política racionalista
baseada na suposição de que os seres humanos são livres e iguais por natureza, e essa
obrigação para com o Estado e outras instituições surge por meio do consentimento dos
indivíduos. Como o liberalismo é uma teoria racionalista, seus preceitos devem ser universais,
isto é, aplicáveis em todos os tempos e lugares. Às vezes é útil referir-se especificamente
ao “liberalismo clássico” , que, além disso, propõe que a motivação política humana esteja
grandemente preocupada em proteger a vida e a propriedade.

21
YORAM HAZONY

as adotam posteriormente ao longo de suas respectivas vidas, e estão


atados uns aos outros pelos poderosos vínculos de lealdade entre seus
membros. De fato, consideramos essas coletividades como parte integral
de nós mesmos. Muitos, se não grande parte, dos objetivos políticos são
derivados de responsabilidades e deveres que temos não na esfera das
nossas próprias individualidades egoísticas, mas sim na medida em que
o “nosso ego” (self) se incorpora à nossa família, à nossa tribo, ou à
nossa nação. Tais objetivos incluem a preocupação pelas vidas e pelas
propriedades dos membros da coletividade à qual somos leais. Também
somos intensamente motivados pelo fato de partilharmos preocupações
que não são meramente físicas: a necessidade de manter a coesão in­
terna de uma família, de uma tribo ou de uma nação, e a necessidade
de fortalecer sua única herança cultural e transmitir tudo isso para as
gerações vindouras.
Não podemos descrever tais dimensões da motivação humana na
política de forma precisa, reduzindo-as a meros desejos individuais de
proteção da própria vida, da própria liberdade e da propriedade pessoal.
Todos nós necessitamos, de fato, de algo mais, que sugiro aqui sob a
denominação genérica de autodeterminação coletiva: a liberdade de uma
família, de uma tribo, ou de uma nação. Essa liberdade que sentimos
quando a coletividade à qual somos leais se fortalece, e acaba desenvol­
vendo qualidades especiais e características que ganham um significado
singular diante de nossos olhos.
Na tradição político-liberal, o desejo e a necessidade dessa auto­
determinação coletiva tendem a ser considerados como primitivos ou
dispensáveis. Assume-se que, com o advento da modernidade, os indiví­
duos se livram de motivações dessa natureza. Sustento, porém, que nada
disso ocorre de fato no mundo real. Conceitos ingleses e americanos de
liberdade individual não são universais ao ponto de serem imediatamente
compreendidos e desejados por todos, como freqüentemente se prega.
Eles são culturas herdadas de certas tribos ou nações. Americanos ou
ingleses que buscam a difusão desses conceitos ao redor do mundo
continuam a dar voz a um antigo desejo por autodeterminação coletiva,
levando-os a querer testemunhar o crescimento, em força e influência,
de sua herança cultural — mesmo que isso signifique a destruição da
herança dos que vêem as coisas de maneira diferente.

22
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Meu raciocínio aponta para um número de vantagens determi­


nantes na organização de um universo político em torno de Estados
nacionais independentes. Entre outros argumentos, sugiro que a
ordem dos Estados nacionais traz maiores possibilidades de auto­
determinação coletiva; que imprime uma aversão às conquistas de
nações estrangeiras e abre portas para a tolerância de diversas formas
de vida; estabelece surpreendentes oportunidades de competição
produtiva entre nações, pois cada uma delas irá se esforçar para
manter o grau máximo de desenvolvimento de suas habilidades e de
seus membros. Adicionalmente, entendo que as poderosas lealdades
mútuas presentes no coração do Estado nacional nos dão a única
fundação conhecida para o desenvolvimento de instituições livres e
de liberdades individuais.
Estas e outras considerações sugerem que um mundo de Estados
nacionais independentes acaba por ser a melhor ordem política que
poderiamos aspirar. Isso não implica, entretanto, que deveriamos
endossar um direito universal à autodeterminação, tal qual proposto
por Woodrow Wilson. Nem todos os milhares de apátridas no mundo
podem ter ou terão independência política. Portanto, qual princípio de
independência nacional deveriamos ter nas relações entre as nações?
Concluo a Parte n discutindo qual pode ser a relevância da ordem
dos Estados nacionais para o real cenário internacional, no qual a
independência política não pode ser aplicada sempre e em todo lugar.
A alegação que mais comumente se apresenta contra uma política
nacionalista é que ela encoraja o ódio e a intolerância. E há uma ver­
dade por trás disso: em todo movimento nacionalista, você encontrará
pessoas fanáticas e haters. Mas qual a conclusão que se pode extrair
desse fato? Assim me parece: sua significância é enfraquecida pela
percepção de que os ideais políticos universais — cuja espécie é tão
proeminente, por exemplo, na União Européia — parecem invaria­
velmente gerar ódio e intolerância ao menos na mesma intensidade
que os movimentos nacionalistas. N a Parte III, “Antinacionalismo e
ódio” , investigo esse fenômeno, comparando o ódio entre nações ri­
vais ou grupos tribais que se sentem ameaçados uns pelos outros, e o
ódio que proponentes de ideologias imperialistas ou universais sentem
em relação a nações ou grupos tribais que se recusam a aceitar suas

23
YORAM HAZONY

demandas — demandas que estariam teoricamente trazendo a salvação


e a paz mundial. O mais famoso exemplo do ódio gerado por ideologias
imperialistas ou universais talvez seja o cristianismo anti-semita. Mas
o islã, o marxismo e o liberalismo também se provaram bem capazes
de inflamar ódios violentos contra grupos determinados a resistir às
doutrinas universais que propõem. De fato, sugiro que os ideais políticos
do liberal-imperialismo se tornaram um dos mais poderosos agentes
de fomento à intolerância e ao ódio no mundo ocidental de hoje. Isso
não significa, porém, que o ódio possa ser endêmico aos movimentos
políticos de forma geral, nem que a disputa entre nacionalismo e im­
perialismo deveria ser decidida em outro campo.
Na conclusão, “A virtude do nacionalismo” , proponho breves notas
sobre a relação entre nacionalismo e o caráter personalíssimo de cada
indivíduo. Por toda a minha vida, ouvi dizer que o nacionalismo cor­
rompe a personalidade humana. Já ouvi essa opinião tanto de cristãos
e muçulmanos quanto de liberais e marxistas, todos eles consideram o
nacionalismo um vício por erguer barreiras entre as pessoas enquanto
deveriamos derrubá-las. Minha compreensão é diferente. Ensinaram-me
que o nacionalismo é uma virtude. Explico como isso pode ocorrer,
mostrando que a orientação rumo a uma ordem de nações indepen­
dentes pode pavimentar o caminho para acertos positivos que são mais
difíceis, quando não impossíveis, de se alcançar quando uma das partes
está comprometida com o sonho de um império.

Muito ainda permanece incerto acerca do exato curso que está fa­
zendo renascer o nacionalismo na Grã-Bretanha e nos e u a , e que outras
nações estão assumindo. Mas seja qual for a direção que os ventos
políticos possam ainda tomar, é certo que a falha sísmica desnudada
no coração da vida pública do Ocidente não irá mais se esvanecer. A
política das nações está se rearranjando no espaço deixado por esse
abalo sísmico, separando aqueles que queriam conservar as vetustas
fundações nacionalistas de nosso mundo político daquelas elites educa­
das que têm, sob certo grau, se tornado comprometidas com um futuro
sob uma ordem imperial. Neste momento, portanto, dificilmente há um
tema que demanda tanta atenção e cuidado quanto essa divergência
entre nacionalismo e imperialismo.

24
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Ao tratar deste tema, empregarei e desenvolverei conceitos políticos


como nação, império, independência, liberdade nacional, autodeter­
minação, lealdade, tribo, tradição e tolerância. Muitos desses termos
têm um ar um tanto quanto antiquado, mas peço ao leitor muita pa­
ciência nesse aspecto. É verdade que esses e outros termos correlatos
foram amplamente negligenciados nos últimos anos em favor de uma
narrativa que busca compreender os problemas políticos quase que
inteiramente sob termos como Estado, eqüidade, liberdade pessoal,
direitos, consentimento e raça. Essas constrições em nossa visão política
são, por si mesmas, uma das maiores dificuldades que enfrentamos
hoje. O mundo da política não pode ser reduzido a esses termos, e a
tentativa de fazê-lo induz a uma absoluta cegueira em áreas cruciais
— cegueira que é acompanhada de grande desorientação quando co­
meçamos a colidir com coisas do mundo real, mesmo quando já não
somos capazes de enxergá-las. Uma ampla gama de conceitos políticos,
cujos usos atualizados a estes novos tempos reaparecem, pode fazer
muito mais para restaurar essa mesma ampla gama em favor da nossa
capacidade de enxergar e, conseqüentemente, dissipar a confusão que
tomou conta de todos nós. Uma vez que consigamos enxergar essa
estrada de forma clara, decidir qual rota devemos tomar torna-se uma
decisão igualmente mais simples.

25
PARTE I

0 nacionalismo e a liberdade ocidental

1. Duas visões de ordem mundial

P
or séculos, a política nas nações ocidentais foi caracterizada por
uma luta entre duas visões antitéticas de ordem mundial: uma
ordem de livres e independentes nações, cada qual buscando o bem
político de acordo com a sua própria tradição e entendimentos; e uma
ordem de pessoas unidas sob um único regime jurídico, promulgado e
mantido por uma única autoridade supranacional. Em recentes gera­
ções, a primeira visão foi representada por nações como a índia, Israel,
Japão, Noruega, Coréia do Sul, Suíça — e, claro, pela Grã-Bretanha, no
despertar de sua virada pela independência. A segunda visão foi tomada
pela maioria das lideranças da União Européia, que reafirmou o seu
compromisso com o conceito de uma “ união ainda mais estreita” entre
as pessoas naquele Tratado de Maastricht, em 1992, e assim procedeu,
desde então, para introduzir as leis e a moeda da Comunidade Européia
na maioria das nações, exigindo livres movimentações de povos entre
a maioria desses Estados-membros.12 Os e u a , comprometidos desde a

12 Os signatários do Tratado de 1957, instituindo a Comunidade Européia, afirmam que estão


“ determinados a lançar as bases de uma união mais estreita entre os povos da Europa” . Na
Declaração Solene da União Européia de 1983 (a “Declaração de Stuttgart” ), dez governos
de países europeus concordaram em “ uma união cada vez mais estreita entre os povos dos

27
YORAM HAZONY

sua fundação com o ideal de uma nação independente, foi capaz de


manter esse caráter, pela maior parte do tempo, até a Segunda Guerra
Mundial. M as em face da competição com a União Soviética, e espe­
cialmente depois do fim da Guerra Fria, desviou-se de seu modelo de
nação independente e progressivamente estabeleceu um regime global
de Estado de Direito (rule o f law) que executou em todas as nações
por meio de seu poderio.13
O conflito entre essas duas visões a respeito da melhor ordem po­
lítica é tão antigo quanto o próprio Ocidente. A idéia de que a ordem
política deveria basear-se em nações independentes foi uma importante
característica da sociedade israelita antiga, tal como o atesta a Bíblia
Hebraica (ou Antigo Testamento),14 e apesar da civilização ocidental,
em grande parte de sua história, ter sido dominada por sonhos de
impérios universais, a presença da Bíblia no íntimo dessa civilização
assegurou que a idéia de autodeterminação submetesse o conceito de
nação independente a constantes revisões.15
E por que a Bíblia é tão preocupada com a independência das nações?
O mundo dos profetas de Israel foi dominado por uma sucessão de
forças imperiais: Egito, Babilônia, Assíria, Pérsia, cada uma pavimen­
tando o caminho para a seguinte. Apesar das diferenças, cada um desses
impérios impunha uma ordem política universal para a humanidade
inteira, como enviados dos deuses para suprimir disputas desnecessá­
rias entre pessoas, criadores de um reino internacional unificado sob o
qual homens poderíam viver juntos em paz e prosperidade. “ Ninguém
foi enforcado durante meu reinado ou mesmo chegou a passar sede” ,
escreveu o Faraó Amenemhet i séculos antes de Abraão. “ Homens

Estados-membros da Comunidade Européia” . O Tratado de Maastricht de 1992, instituinte


da União Européia, declara também que “este Tratado marca uma nova etapa no processo
de criar uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa” . (Título i, Artigo A).
13 A idéia dos eua como um império com possessões no exterior foi brevemente assumida
pela liderança política americana nos anos da década de 1890, mas rapidamente caiu
em descrédito. Sobre a posição constitucional da América como um Estado nacional
independente e o efeito deste status em suas Relações Exteriores, v. Rabkin, Law Without
Nations?, pp. 9-11.
14 Yoram Hazony, The Philosophy ofHebrew Scripture, Cambridge, uk : Cambridge University
Press, 2012, pp. 103-160; Rabkin, Law Without Nations?, pp. 9-11.
15 Vide Parte i, nota 37, abaixo.

28
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

habitaram em paz nos domínios por mim forjados” .16 E isso não era
nenhuma pretensão ambiciosa. Pondo fim aos períodos de guerra em
vastas regiões e aproveitando suas respectivas populações para o traba­
lho agrícola produtivo, os poderes imperialistas estavam de fato aptos
a trazer para milhões um estado de paz relativa e pôr fim às ameaças
de fome. Não é de se admirar que naquele tempo os legisladores im­
periais do mundo antigo viam suas próprias funções, nas palavras do
Rei babilônico Hamurabi, como responsáveis por “ submeter quatro
quartos do mundo à absoluta obediência” . Aquela obediência foi feita
para salvar o mundo da guerra, de doenças e da possível fome.17
Ainda assim, apesar das vantagens econômicas óbvias de uma paz
egípcia ou babilônica que unificasse o mundo, a Bíblia nasceu de uma
profunda oposição a esses mesmos planos. Para os profetas de Israel,
o Egito foi “ a casa dos escravos” e eles não pouparam palavras para
lamentar a crueldade e o derramamento de sangue envolvidos nas
conquistas e governos imperiais — que recorreríam à escravidão, ao
assassinato, à exploração de mulheres e à violação de propriedades.18
Tudo isso, os profetas de Israel debateram com base na idolatria egípcia
— da submissão aos deuses que justificava quaisquer sacrifícios para
o avanço dos domínios da paz imperial, assegurando a produção de
grãos em sua capacidade máxima.
Havia uma alternativa viável para esse império universal? O Oriente
Médio antigo já tinha muita experiência com o poder político local
na forma das cidades-Estado. Mas na maior parte, elas eram inúteis
diante de exércitos imperiais e do ideário de um império universal que
os sustentava. É na Bíblia que encontramos a primeira apresentação
razoável de uma possibilidade diferente: uma ordem política baseada
na independência de uma nação que vivesse dentro de fronteiras limi­
tadas ao lado de outras nações independentes.

lé Apud Harold Nicolson, Monarchy, London: Weidenfeld and Nicolson, 1962, p. 20.
17 Tradução de G. R. Driver and John C. Miles para o The Code o f Hammurabi, Oxford,
UK: Clarendon, 1955, qual seja, O código de Hamurabi; James B. Pritchard [organizador],
Ancient Near Eastern Texts, Princeton, n j : Princeton University Press, 1969, p. 163.
18 Sobre o termo “casa dos escravos” , v. Êxodo 13, 3; 20, 2; Deuteronômio 5, 6. [O termo
original é »3TD yn, qual seja, Beit Yvarim. — n t ]

29
YORAM HAZONY

Defino o termo nação como um certo número de tribos com língua e


religião em comum, além de um passado de atuação em conjunto pela
defesa comum de seus integrantes e pelo desenvolvimento de empreen­
dimentos de larga escala.15*19A Bíblia sistematicamente promove a idéia
de que os membros de uma nação deveríam tratar-se uns aos outros
como “ irmãos” , e a Lei Mosaica apresenta aos israelitas a constituição
que os une naquilo que hoje podemos chamar de Estado nacional.20 O
rei desse Estado seria retirado de “entre seus irmãos” . Seus profetas,
igualmente, estariam “ entre vós, entre seus irmãos” . E assim também
estariam seus pastores e sacerdotes, indicados para proteger as leis tra­
dicionais da nação e ensiná-las para o rei, “para que seus sentimentos
não se elevem acima de seus irmãos” .21Além disso, Moisés estabeleceu
as fronteiras de Israel, instruindo seu povo a manter-se afastado das
terras de reinos vizinhos como o Moab, Edom e Amon, que mereciam

15 Neste livro, faço a distinção entre a nação e as tribos e clãs que, juntos, constituem a nação.
Usarei a palavra povo (people) mais abertamente para me referir a agrupamentos nacionais,
tribais ou de clãs sem referência a sua escala. Sobre isso, v. o cap. 9.
20 Sobre o antigo Reino de Israel como um Estado nacional clássico, v. Hans Kohn, The Idea of
Nationalism (Toronto: Collier, 1944, pp. 27-30); Steven Grosby, Biblical Ideas ofNationality
(Winona Lake, in : Eisenbrauns, 2002); Anthony Smith, Chosen Peoples (Oxford, u k : Oxford
University Press, 2003); Aviei Roshwald, The Endurance o f Nationalism (Cambridge, u k :
Cambridge University Press, 2006, pp. 14-22); David Goodblatt, Elements o f Ancient
Jewish Nationalism (Cambridge, u k : Cambridge University Press, 2006, pp. 21-26); Doron
Mendels, The Rise and Fali o f Jewish Nationalism (Nova York: Doubleday, 1992). Com
efeito, a história bíblica de Israel não retrata o Estado nacional como ideal. A preferência
inicial de Deus é que a unidade nacional israelita seja alcançada sob a ordem de tribos e
clãs, sem um governo permanente. É o fracasso desta ordem no livro de Juizes que faz Deus
consentir no estabelecimento de um Estado. V. Juizes, esp. 17-21 e 1 Samuel 8; Hazony,
The Philosophy ofHebrew Scripture, pp. 144-154.
21 A respeito do rei, v. Deuteronômio 17,15 e Jeremias 30,21; sobre os profetas, v. Deuteronômio
18,15-18; sobre os sacerdotes ensinando os reis, v. Deuteronômio 17,18-20. [No original,
ao fim desta nota o autor destaca: “Todas as traduções a partir da Bíblia Hebraica são de
minha responsabilidade” . De minha parte, trouxe para mim essa responsabilidade,evitando
transpor do inglês para o português um texto cujo sentido originalmente está no hebraico.
Imitando aqui o autor no trabalho de traduzir direto do hebraico, cheguei a uma conclusão
que se aproxima bem do termo usado por Hazony no inglês: so that his thought. Na versão
de Gorodovits & Friedlin (op. cit., idem, p. 531; Deuteronômio 17,15) o trecho vai assim
traduzido: “ a fim de que o seu coração não se eleve sobre seus irmãos” . É também o que
se extrai da versão católica da Bíblia. A diferença (e, talvez, a chave de compreensão) está
no termo 'apl (levavoh), literalmente “coração” , mas que pode dar origem, por exemplo,
ao verbo 'asifi (livcôt), o que autoriza uma tradução desprendida do sentido literal ou
fisiológico do órgão, para uma conotação mais expandida e literariamente metonímica para
traduzir então o que ele representa e nem tanto o que é: sentimentos (todos, sem exceção e
sem hierarquia). — n t ]

30
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

suas respectivas e próprias independências. Como ele mesmo dizia em


nome de Deus:

Passareis pela fronteira de vossos irmãos, os filhos de Esaú [...]. Não


combatais com eles, porque não vos darei da sua terra, nem do que pisar
a planta de um pé, porque dei a Esaú o Monte Seir por herança. [...]. Não
molestes o M oab e não faças guerra a ele, porque não te darei da sua
terra por herança, pois dei Ar aos filhos de Lot por herança [...]. (Hoje tu
vais passar pela fronteira de Moab por Ar) e chegarás até defronte dos
filhos de Amon; não os moleste e não combatas com eles, porque não te
darei herança da terra dos filhos de Amon, pois a dei aos filhos de Lot
por herança.22

Tais passagens nem sequer são únicas. Ao longo da Bíblia, notamos


que as aspirações políticas dos profetas de Israel não eram a de um
império, mas sim de uma livre e unificada nação que vivesse de forma
justa e em paz entre outras nações livres.23
A Bíblia, desta maneira, introduz uma nova concepção política: um
Estado de uma única nação, que é unida, se autogoverna e não tem
interesse em submeter seus vizinhos às suas próprias regras. Esse Estado
é governado não por estrangeiros que servem a um legislador de uma
terra distante, mas sim por reis e governadores, pastores, sacerdotes e
profetas extraídos a partir das colunas de integrantes da própria na­
ção — indivíduos justamente identificados como os mais aptos para
permanecer em contato com as necessidades de seu próprio povo, seus
“ irmãos” , incluindo os menos afortunados entre eles.
Adicionalmente, já que o rei de Israel é um dentre todos os integrantes
desse povo, e não o seu representante por alguma ambição universal
abstrata, poderão ser limitados os seus poderes de modo a evitar abu­
sos. Diferentemente dos reis do Egito ou da Babilônia, o rei de Israel
sob a Constituição Mosaica não é investido de poder para fazer leis,

22 Deuteronômio 2, 4-6; 9, 19. [Adoto integralmente no trecho a versão de Gorodovits &


Friedlin (op. cit., Idem, p. 483—485; Deuteronômio 2,4 -6 ). — n t ]
23 Demandas pela unificação das tribos dividas de Israel sob seu próprio comando incluem
Isaías 11, 13-14; Jeremias 3, 18; 30, 21; 50, 4; Ezequiel 34, 23; 37, 15-24; Oséias 2, 2.
Compare com Isaias 9,21; Jeremias 33,24. A respeito da liberdade das outras nações, v. o
chamado de Jeremias para a restauração do Moab (48,47), de Amnon (49,6) e de Elã (49,
39); v. também Daniel 11, 41. V. também o pranto pelo Moab em Isaías 15, 5; 16, 11. A
restauração de Israel é descrita como sendo um tratado de amizade com o Egito e a Assíria
em Isaías 19,23-25.

31
YORAM HAZONY

que são uma herança de sua nação e jamais sujeitas a seus caprichos.
Nem mesmo pode nomear para o sacerdócio, fazendo assim a lei e a
religião subservientes ao seu arbítrio. Além disso, a lei Mosaica limita
o direito do rei de tributar e escravizar pessoas, da mesma forma que
as fronteiras de Israel evitam que o rei se lance em aventuras ou sonhos
de conquista universal.24
É importante notar que a concepção israelense de nação nada
tem a ver com biologia, ou com aquilo que se convencionou chamar
de raça.25 Para as nações bíblicas, tudo depende de uma compreensão
compartilhada transmitida de pai para filho — de história, língua e
religião, uma religião, aliás, à qual outros outsiders podem se juntar.
Assim, no livro do Êxodo ensina-se que haviam muitos egípcios que
se afeiçoaram e se ligaram aos escravos hebreus em fuga do Egito, e
assim teriam recebido os Dez Mandamentos (mais bem traduzidos
como os Dez Pronunciamentos)26 no Sinai com o restante do povo de
24 Deuteronômio 17, 14-20.
25 O termo “raça” não assumiu o sentido que tem hoje em dia, restrito a concepções biológicas,
que teve início a partir dos fins do século xix. Depois da Segunda Guerra Mundial,
termos como “ etnia” e “grupo étnico” foram criados para substituir o termo, que havia
se contaminado por sua associação com as teorias raciais nazistas. Azar Gat, Nations.
Cambridge, Reino Unido: Cambridge University Press, 2013, p. 27.
26 Segundo versão do Tattah de Gorodovits & Friedlin (op. cit., idem, p. 509; Deuteronômio
10,4), a tradução para o que se convencionou chamar no mundo lusófono como “ Os Dez
Mandamentos” não é tão simples. Há no Livro do Deuteronômio, o Devarim do Torah,
duas passagens importantíssimas para o termo: 5 ,9 e 10,4. Neles, os vocábulos usados no
texto original em hebraico são diferentes. Para que se possa compreender a dimensão do
exemplo dado por Hazony, é necessário conhecer ambas as passagens no original da Torah.
Em 5 ,9 , a passagem em que Ele diz, segundo a Bíblia católica “e uso de misericórdia com
milhares dos que me amam e guardam meus Mandamentos” e que segundo a versão de
Gorodovits & Friedlin seria “ e faço misericórdia até duas mil gerações dos que me amam
e aos que guardam meus preceitos” é referida no original em relação aos “ preceitos” ou
“ mandamentos” como mitzvat (fiyn?). São as “ obrigações” do pacto do Povo com Deus.
É exatamente o mesmo termo usado quando Moisés se refere a tais obrigações em 8, 1.
Contudo, em 10,4, na passagem em que Moisés reforça a importância de cumprimento do
pacto, em que os católicos lêem em sua versão na Bíblia: “Então o Senhor escreveu nas tábuas
conforme a primeira escritura, os dez mandamentos [...]” e Gorodovits & Friedlin traduziram
como “e escreveu sobre as tábuas como a primeira escritura, os dez pronunciamentos [...]” ,
a palavra usada é exatamente a que abre o livro, HaDevarim (/rpTfl), qual seja, literalmente
as dez palavras, o que pode ser mais bem traduzido por dez sentenças ou, uma melhor opção
de acordo com Gorodovits 8c Friedlin, dez pronunciamentos. Portanto, ambas as palavras
utilizadas para absorver a compreensão do conteúdo desse pacto (mitzvat ou devarim) teriam
sua pior tradução pelo termo impositivo “ mandamento” . O contexto original sugere ao
leitor que há aí não uma ordem, mas sim, de fato, um pacto, cuja adesão marcou o destino
do Povo de Israel por toda a eternidade — é, literalmente, um compromisso de um povo
com o Eterno. — nt

32
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Israel. De modo semelhante, Moisés convidou o sheik Medianita Jetro


para se unir ao povo judeu. Rute e os moabitas se tornaram parte de
Israel quando ela enfim disse para Naomi: “ O seu povo é o meu povo
e seu Deus é o meu Deus” , e seu filho tornou-se parte da linhagem do
próprio Rei Davi. Mas a habilidade de Israel em trazer esses indivíduos
nascidos no estrangeiro para o seu próprio seio depende da disposi­
ção em aceitar o Deus de Israel, suas leis e compreender sua história.
Sem abraçar tais aspectos centrais da tradição israelense, eles não se
tornarão parte da nação israelense.27

2. A Igreja de Roma e sua visão de império


Os judeus não foram os únicos a reconhecer o potencial do modelo de
organização política na forma de nação como baluarte contra a tirania
e o império universal. O historiador grego Políbio condenava as cida-
des-Estado gregas por não terem se engajado em um modelo de nação
unificada quando perderam a luta contra Roma. Um Estado nacional
grego nunca chegou a existir na história, mas Políbio usou de exemplos
que o antecederam, a saber, os Armênios e os judeus sob os Macabeus
— duas nações que, durante a sua existência, foram bem-sucedidas
na rebelião contra o Império Selêucida grego e estabeleceram-se sob a
forma de Estados-nação independentes — e, ao que parece, ele tinha
a esperança de que a Grécia se unisse um dia também.28

27 Diz-se que os não-judeus se juntaram a Israel durante o êxodo do Egito, cf. Êxodo 12,38,
Números 11, 4. Para Jetro, v. Números 10, 29 e Rute 1 ,1 6 . A punição mosaica do karet,
sendo “cortado” do povo, é especialmente voltada para aqueles que não participam dos
aspectos mais básicos da nacionalidade israelita: circuncisão (Gênesis 17, 14); jejum no
Yom Kippur, o Dia do Perdão (Êxodo 12,15.19); e manter a “ pureza” sexual (Levítico 18,
1-29). V. também Números 15, 31; Mishna Keritot 1 ,1 ; Maimonides, Comentários sobre
o Mishna para Keritot 1:1, que oferece uma lista mais extensa, incluindo o resguardo do
Shabat e a Páscoa (Pesach).
28 Políbio, H istória, 5.104. Em contrapartida, relata que Fiilipe n da M acedônia
desdenhosamente declarou: “ Que Grécia é esta que vocês exigem que eu abandone?” (18.5).
Expressões de lealdade à nação grega como um todo também podem ser encontradas em
Heródoto e Isócrates, entre outros. V. Roshwald, The Endurance ofNationalism, pp. 26-30.
Mas nenhum Estado nacional grego, nem um trabalho filosófico ou literário descrevendo
tal Estado nacional unido parece ter existido. Para discussão dos Estados nacionais da
antiga Edom, Aram e Armênia, v. Grosby, Biblical Ideas o f Nationality, pp. 120-165.
Uma pesquisa mais ampla sobre antigos Estados nacionais no Oriente Médio e na Ásia
pode ser encontrada em Azar Gat, Nations, pp. 89-110. [Do original em Políbio (18.5.5),
“ètcxcopeív 'EÀÂáôoç m i n&ç âipopíCete raúrrçv” ; (Qual Grécia é esta que devo abandonar e marcar
os limites?) — NT]

33
YORAM HAZONY

Ao longo da história dos povos ocidentais, contudo, o ideal de


nação independente permanecia largamente suspenso. O cristianismo
eventualmente teve sucesso ao estabelecer-se como a religião oficial de
Roma. Durante o processo, adotou o sonho romano de um império
universal, e o projeto do Direito Romano, que ascendeu ao nível de uma
única estrutura para a pax romana, estendeu-se por todas as nações.29
Por mais de mil anos, o cristianismo alinhou-se, não mais com o ideal
de libertar nações conforme os profetas de Israel haviam proposto,
mas com a aspiração exatamente idêntica que acabou por erguer o
império egípcio, assírio e babilônico: a aspiração pela consolidação de
um império universal de paz e prosperidade.30
Referindo-se a si mesma como “católica” (qual seja, “ universal” ou
“ a Igreja universal” ),31 a Igreja romana foi aliada, em teoria e freqüen-
temente também na prática, com o Sacro Império Romano-Germânico
e seus respectivos imperadores, que foram incumbidos de estabelecer
um império cristão universal. Neste ponto, o pensamento católico
romano, portanto, se assemelhava ao dos califas muçulmanos e ao
dos imperadores chineses, que acreditavam que também tinham sido
encarregados de trazer a paz e a prosperidade para o mundo sob o
domínio de seu próprio império universal.32

29 Como Cícero, estadista e filósofo romano, dizia: “ não serão leis diferentes em Roma ou
Atenas, ou leis diferentes agora e no futuro, mas uma lei eterna e imutável será válida para
todas as nações e para todos os tempos” . República, 3:33. O estoicismo está intimamente
relacionado à idéia de uma “cidadania mundial” ou cosmopolitismo, descendente de
Diógenes, o cínico. V. Malcolm Schofield, The Stoic Idea o f tbe City, Cambridge, u k :
Cambridge University Press, 1991; Julia Annas, The Morality o f Happiness, Oxford, u k :
Oxford University Press, 1993, pp. 159-179. [Do original em M. T. Cícero (3.33), “ [...]
nec erit alia lex Romae, alia Athenis, alia nunc, alia posthac, sed et omnes gentes et omni
tempore una lex et sempiterna et imtnutabilis continebit [...]” . — nt ]
30 Sobre a busca romana do império universal e a adoção desse objetivo imperial romano pelo
cristianismo, v. Anthony Pagden, Lords ofA ll tbe World, New Haven, CT: Yale University
Press, 1995, pp. 11-62. Sobre a ordem cristã na Europa e sua busca por uma “ paz cristã” ,
v. Garrett Mattingly, Renaissance Diplomacy, Nova York: Dover, 1988.
31 O leitor brasileiro não pode confundir o trecho original de Hazony, quando o autor se refere
ao termo grego original KadoXiKÓç [k atb ólikos], que significa literalmente “universal” , com
aquela religião neopentecostal autodenominada no Brasil como “Igreja Universal” , “ Igreja
Universal do Reino de Deus” , “ iu r d ” ou simplesmente “Universal” . — NT
32 Como dizia o sultão otomano Mehmed, o Conquistador, aparentemente depois de ter
tomado Constantinopla para o Islã em 1453, “ deve haver apenas um império, uma fé e
uma soberania no mundo” . Franz Babinger, Mehmed tbe Conqueror o f his Time, trad.:
Ralph Manheim, Princeton, n j : Princeton University Press, 1978 (1953), p. 112. Após a
queda de Constantinopla, a Rússia reivindicou ser a “ Terceira Roma” e protetora de todo

34
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Mas o pensamento político cristão diferenciava-se daquele do Islã


ou da China em ao menos um aspecto crucial: o cristianismo baseia-se
na Bíblia Hebraica, com sua visão de mundo assentada em nações
independentes.33 Esta visão de mundo nunca deixou de ser problemá­
tica para os defensores de um império católico universal, inspirando a
consolidação de Estados nacionais que mantinham um independência
política de facto, mesmo quando continuavam a reconhecer a autoridade
simbólica do Imperador e a autoridade religiosa da Igreja. Por exemplo,
foi a presença da Bíblia Hebraica em meio aos cânones católicos que
modelou a história peculiar do catolicismo francês, que lançou mão
de uma característica de independência nacional baseada no reinado
bíblico de Davi, resistindo fortemente a se submeter ao controle dos
Papas e Imperadores. Séculos antes do período da Reforma, acabou por
dar forma, também, ao surgimento de Estados nacionais independentes
e coesos como a Inglaterra, a Polônia e a Hungria.34
Assim, quando o protestantismo surgiu durante o século xvi, junto
da invenção da imprensa, com a conseqüente circulação ampla da Bíblia
traduzida para as línguas de todas as nações, um novo chamado pela
liberdade de interpretação das Sagradas Escrituras, sem a autoridade
da Igreja Católica, não afetou apenas as doutrinas. Especialmente
sob a influência de pensadores orientados pelos ideais do Antigo
Testamento, como Ulrich Zwinglio e João Calvino, o protestantismo
abraçou e rapidamente vinculou-se às singulares tradições nacionais de
povos em atrito com idéias que lhes pareciam estrangeiras. Em 1534,

o cristianismo, que também deu origem a uma longa tradição de um império universal
russo. V. Smith, Chosen Peoples, pp. 98-106; Henry Kissinger, World Order, Nova York:
Penguin, 2014, pp. 51-59. [Há uma versão para o português da obra de Kissinger pela
Editora Objetiva, traduzida por Cláudio Figueiredo com o título Ordem Mundial (São
Paulo, 2015), cujo trecho citado por Hazony corresponde às pp. 41-48 (subcapítulo “ O
enigma russo” ao cap. 2). — nt ]
33 Sobre o desenvolvimento dos Estados nacionais na Europa cristã e a ausência de tais Estados
sob o Islã, v. Grosby, Biblical Ideas o f Nationality, 6, n. 17.
34 Como salientou Hastings: “ O Antigo Testamento forneceu o paradigma. Nação após nação
aplicou-o para si, reforçando sua identidade em um processo” . Hastings, The Construction
o f Nationhood, 196. Na França, v. Joseph Strayer, “France: The Holy Land, the Chosen
People, and the Most Christian King” , em Medieval Statecraft and Perspectives ofH istory,
John Benton and Thomas Bisson, orgs. (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1971,
pp. 300-314). Sobre os tchecos, v. Howard Kaminsky, A History ofthe Hussite Revolution
(Berkeley: University of Califórnia Press, 1967); Derek Sayer, The Coasts o f Bohemia
(Princeton, NJ: Princeton University Press, 1998).

35
YORAM HAZONY

Henrique viu declarou a independência de uma nação anglicana, um


status que obteve após sua filha, Elisabeth i, em 1588, ter derrota­
do definitivamente uma frota hispano-católica que visava invadir a
ilha.35 A revolta dos holandeses contra os seus suseranos espanhóis
igualmente fez surgir uma insurreição calvinista contra o Império
Católico, culminando com a declaração dos holandeses como nação
independente em 1581. Os pactos nacionais escoceses dessa mesma
época, baseados nos pactos de nacionalismo judaico constantes na
Bíblia, tiveram motivação parecida. A auto-imagem desses povos pro­
testantes como rigorosamente independentes em face de uma oposição
imperial era freqüentemente estruturada de forma explícita em um
modelo bíblico fundado no esforço de Israel para obter sua liberdade
nacional e religiosa frente aos ditames de um império universal de
egípcios e babilônicos.36
A Guerra dos Trinta Anos, desaguando na Paz da Westfália em
1648, é freqüentemente apresentada como uma “ guerra santa” ou
35 Dissertando sobre o Ato de Supremacia de Henrique vni, Robert Jackson enfatiza que isso
não era “apenas um conflito entre [...] Henrique viu e o Papa. Foi mais profundo: um conflito
de uma concepção de vida pública organizada em uma base teológico-política cosmopolita
versus outra construída sobre as fundações de um reino separado pela entronização de um
Estado nacional” . Robert Jackson, Sovereignty, Malden, m a : Polity Press, 2007, pp. 44-48,
esp. 47. Sobre a Inglaterra como modelo para todos os nacionalismos que lhe seguiram, v.
Hastings, The Construction o f Nationhood, 35-65, 96-97; Liah Greenfield, Natinalism,
Cambridge, m a : Harvard University Press, 1992.
36 A influência da Bíblia Hebraica sobre os Estados nacionais independentes da Europa
Ocidental foi discutida em uma série de importantes estudos, incluindo Hastings, The
Construction o f Nationhood; Philip Gorski, “The Mosaic Moment” , American Journal
o f Sociology 105 (2000), 1428-1468; Grosby, Biblical Ideas o f Nationality, passim, esp.
217-231; Fania Oz-Salzberger, “The Jewish Roots of Western Freedom” , Azure 13 (Summer
2002), 88-132; Smith, Chosen Peoples; Anthony Smith, “Nationand Covenant” , Proceedings
ofthe British Academy 151 (2006), pp. 213-255; Arthur Eyffmger, “ Introduction” to Petrus
Cunaeus, The Hebrew Republic, trad.: Peter Wyetzner (Jerusalem: Shalem Press, 2006);
Arthur Eyffmger, “ How Wondrously Moses Goes Along with the House of Orange! Hugo
Grotius’s ‘De Republica Emendanda’ in the Context of the Dutch Revolt” , In Political
Hebraism, orgs.: Gordon Schochet, Fania Oz-Salzberger e Meirav Jones (Jerusalem: Shalem
Press, 2008, pp. 57-71); Eric Nelson, The Hebrew Republic (Cambridge, m a : Harvard
University Press, 2010); Glenn Moots, Politics Reformed (Columbia: University of Missouri
Press, 2010); Diana Muir Appelbaum, “ Biblical Nationalism and the Sixteenth Century
States” , National Identities (Nova York: Routledge, 2013), pp. 1-16; Meirav Jones, “ Philo
Judaeus and Hugo Grotius’s Modern Natural Law” , Journal o f the History o f Ideas 74
(julho de 2013), pp. 339-359; Ofir Haivry, /o6« Selden and the Western Political Tradition;
Yechiel Leiter, John Locke's Political Hebraism (Cambridge, u k : Cambridge University Press,
forthcoming); bem como vários estudos na Revista de Estudos políticos hebraicos (Hebraic
Political Studies), disponível em www.hpstudies.org/20/Issue.aspx (último acesso em I o de
junho de 2019).

36
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

“guerra entre religiões” , entre protestantes e católicos. A guerra de


fato marcou o surgimento dos Estados nacionais da França, Holanda
(ou “Países-Baixos” ) e da Suécia (nações que eram, respectivamente,
católica, calvinista e luterana) contra os exércitos da Alemanha e da
Espanha, devotados à idéia de um império universal refletido no desejo
de Deus, um império que por si só poderia trazer o verdadeiro bem-
-estar para a humanidade. N a Guerra dos Trinta Anos, o conceito de
um Império Cristão universal, que teve influência sobre o imaginário
político do Ocidente por treze séculos, foi definitivamente derrotado.37

3. A construção protestante do Ocidente


O período entre a declaração inglesa de supremacia e os tratados da
Westfália apresentaram uma nova fundação de matriz protestante
para o Ocidente. Em meados do século xvn, no círculo das nações
independentes na ala do Sacro Império Romano-Germânico — Ingla­
terra, Holanda, França, Suíça, Portugal, Suécia, Dinamarca e Polônia
— apresentou-se aquilo que mais tarde passou a ser conhecido como a
ordem política da Westfália e sua forma específica. Apesar de o acordo
não ter sido oficialmente aceito pela Igreja Católica (Papa Inocêncio
x disse que “ foi, é, e sempre será nulo, inválido, ilegal, iníquo, injusto,
prejudicial, reprovável, vazio e completamente desprovido de efeito” ),38
na prática refundou a ordem política como um todo de acordo com a
teoria dos Estados independentes, antecipada por protestantes ingleses
e holandeses durante o século anterior.39 Sob essas bases protestantes, a

37 E assim ninguém impediu Luís xiv, o “ Rei Sol” , de buscar um império universal sponte
própria no dia seguinte. V. Franz Bosbach, “The European Debate on Universal Monarchy ”
In David Armitage (org.), Theories o f Empire, 1450-1800, Nova York: Routledge, 1998,
pp. 81-98.
38 Bula Papal Zelo Domus Dei, 26 de novembro de 1648. Tradução minha.
39 Os três tratados da Westfália não anunciam uma nova ordem política. Eles ainda se referem
à Europa como uma respublica Christiana universal — uma República mundial cristã. Este
ponto é discutido longamente por Croxton, sugerindo que a interpretação dos tratados
tenha sido responsável por dar origem a um sistema “westfaliano” de Estados soberanos,
ignorado na literatura de relações internacionais até que Pierre-Joseph Proudhon o apontasse
em 1863. Derek Croxton, Westphalia. Nova York: PalgraveMacMillan,2013,pp. 339-362.
Como é evidente, Vattel já havia escrito sobre um sistema de Estados supostamente “ iguais”
e “soberanos” na Europa de 1758, um século depois dos tratados da Westfália, mas a opinião
de Croxton está basicamente certa: o que mais tarde seria chamado de sistema westfaliano
está longe de ser a única visão possível da ordem emergente durante a Guerra dos Trinta
Anos.

37
YORAM HAZONY

vida política da Europa foi reconstruída com base nos dois princípios
a seguir, ambos com origem no Antigo Testamento:
1. O mínimo moral necessário para a legitimidade de um governo.
Primeiro: o rei ou governante, para estabelecer uma regra de direito,
deve dedicar-se à proteção de seu próprio povo, incluindo suas vidas,
as de suas famílias e suas respectivas propriedades, fazendo justiça
nos tribunais pela manutenção do dia de descanso (shabat) e pelo
público reconhecimento de um único Deus — praticamente os Dez
Mandamentos passados no Sinai, considerados por Lutero e Calvino
como leis naturais que deveríam ser reconhecidas por todos os homens.
Tais mandamentos eram considerados a fonte dos requisitos mínimos
para uma vida pessoal livre e digna para todos. Um governo incapaz
de manter esse mínimo moral era um governo falho quanto a sua
obrigação mais básica para o bem-estar de seu povo.40
2. O direito de uma autodeterminação nacional.
Segundo: as nações coesas e suficientemente fortes a ponto de assegu­
rar sua independência política deveríam doravante ser consideradas
como detentoras do que mais tarde seria designado como o direito à
autodeterminação, pelo qual definiu-se o direito de se autogovernarem
sob suas próprias constituições nacionais e igrejas, sem a interferência
de um poder estrangeiro. Na medida em que a existência de requisitos
naturais mínimos para a manutenção de uma sociedade civilizada
era aceita, e que, de acordo com o primeiro princípio, tais requisitos
alinhavam todos os governos, não era esperado que as nações se tor­
nassem todas homogêneas em suas formas de pensar, suas leis ou seus
modos de vida.41

40 O jurista inglês Matthew Hale, um discípulo de Selden, escreve que embora Deus tenha dado
os Dez Pronunciamentos “ a uma nação em particular, à igreja judaica, contudo fez com que
aquele sinal para aquela nação ficasse evidente e conspícuo para todo o mundo por meio de
símbolos, maravilhas e a providência observável, que funcionariam como um farol em uma
colina, como uma poderosa e imponente coluna criada no meio do mundo para sustentar as
tábuas da justiça natural, que poderíam ser visíveis e legíveis para a maior parte do mundo
gentio de muitas eras” . Matthew Hale, Treatise ofthe Nature ofthe Law in General, apud
Richard Tuck, Natural Rights Theories, Cambridge, u k : Cambridge University Press, 1979,
p. 163.
41 Os Estados nacionais europeus travaram guerra por território, mas “não extinguiam a
soberania do outro” . V. Jackson, Sovereignty, p. 66.

38
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Os dois princípios dessa construção protestante não eram inteira­


mente novos. A idéia de que um governante deve servir como protetor
de seu povo já existia sob várias formas na história da cristandade.
Isso já havia sido articulado de forma explícita durante o século xn
pelos teóricos políticos católicos, como Honório de Augsburgo e João
de Salisbury, com fundamento na Lei Mosaica do Deuteronômio e
nas descrições dos reinos israelitas nos livros de Samuel e dos Reis.42
Mas o segundo princípio — permitindo a cada nação estabelecer
aquilo que se denomina um governante legítimo, uma igreja legítima
e leis apropriadas e respectivas liberdades — trouxe o mundo cristão
diretamente para o diálogo com a visão bíblica de uma ordem indepen­
dente de nações. E foi por esse princípio que o mundo passou a saber
o que era liberdade. Dentro do contexto de uma Europa pós-Westfália,
isso significava que algumas nações se tornariam monarquias enquanto
outras, repúblicas. Significava que diferentes nações teriam diferentes
formas de religião nacional, assim como provisões variadas para a
proteção de minorias religiosas. Significava também que diferentes
nações manifestariam graus diversos de liberdades em áreas distintas.
Um exemplo paradigmático dessa variedade foi a Constituição inglesa,
que, como John Fortescue enfatizou em seu trabalho publicado em
1543, In Praise ofthe Laws ofEngland [Elogio às leis da Inglaterra],
suscitava enormes divergências entre franceses e alemães graças a
precedentes bíblicos que impunham a orientação de vedar aos reis o
poder exclusivo na promulgação das leis — uma característica crucial
dos limites do poder do governo, mais tarde conhecida pelo nome de
“separação dos poderes” .43A República holandesa, igualmente, ofereceu
42 Honório de Augsburgo, Summa Gloria, escrito na seqüência da Questão das Investiduras
em 1123, argumentou que o direito da Igreja Católica de se opor a ações injustas do Estado
origina-se na criação pelo profeta Samuel do reino de Saul, cujo governo não era absoluto,
mas limitado pela justiça divina, mesmo depois de Israel ter sido governado por um rei
ungido. V. R. W. Carlyle e A. J. Carlyle, A History o f Medieval Political Theory in the West
(Edimburgo: William Blackwood, 1950), pp. 4:286-289. Em 1159, John de Salisbury invocou
as limitações impostas aos governantes judeus no livro do Deuteronômio e argumentou
que todos deveríam “ atender à lei que é imposta aos príncipes pelo Rei Maior, que é
objeto de medo em toda a terra [...]. Certamente esta [lei] é divina e não pode ser ignorada
impunemente” . John of Salisbury, Policraticus, org. e trad. por Cary Nederman, Cambridge,
uk : Cambridge University Press, 1990, pp. 35-36.
43 John Fortescue, “ In Praise o f the Laws of England’, em On the Laws and Goverttance of
England, ed. Shelley Lockwood, Cambridge, uk : Cambridge University Press, 1997; Ofir
Haivry and Yoram Hazony, “What Is Conservatism?” , American Affairs (Summer 2017),

39
YORAM HAZONY

um grau excepcional de liberdade de expressão pessoal, resultando


em ciência, negócios e publicações que saíram de nações mais céticas
quanto a esses valores e fluíram para Amsterdã. O que de fato fez tais
inovações possíveis, entretanto, não foi a doutrina que enumerava
os “ direitos universais” . Ao contrário, foram os “ antigos costumes e
privilégios” de nações como Inglaterra e Holanda.44
Em trabalhos de teoria política protestante como o On Natural
Law and National Law [Sobre o direito natural e o direito nacional]
de John Selden, publicado em 1640, os dois princípios de construção
protestante são entendidos como elementos que se reforçam mutua­
mente. Isso é uma intuição desenhada a partir das Escrituras Hebrai­
cas, que enfatizam a nação cujos governantes, protegerão seu povo
e, ao buscar seu bem-estar, estabelecerão lealdade mútua e coesão
diante de dificuldades. Camaradagem interna e justiça, acreditavam
os profetas, são requisitos necessários para a longevidade da nação, e
também fundamentos de sua capacidade para resistir a uma invasão
ou ingerência estrangeira.45
Ainda assim esses dois princípios se mantêm em tensão mútua. Por
outro lado, a idéia de que há padrões naturais de legitimidade mais
altos que as ordens de qualquer governo em particular significa que
as nações não podem fazer o que bem entendem. Elas estarão sempre
sujeitas ao julgamento de Deus e dos homens, e isso necessariamente
torna o governo uma figura contingente.46 Por outro prisma, ainda, o
princípio da liberdade nacional fortalece e protege as instituições, as
tradições, as leis e os ideais de uma determinada nação contra o protes­
to de que possam estar ultrapassadas, graças a doutrinas promovidas
por uma igreja universal ou um império. Enquanto um mínimo moral
for reconhecido, especulações sobre a sua aplicação prática levam à
pp. 221-225. O trabalho de Fortescue foi escrito em 1470 e publicado (sem data) em 1543
(ou data próxima), durante o reinado de Henrique viu.
44 A expressão “ costumes antigos e privilégios” aparece na Declaração de Independência
Holandesa, no Ato de Abjuração de 1581. Oliver J.Thatcher [org.], The Library o f Original
Sources (Milwaukee, wi: University Research Extension Co., 1907), 5:190. De modo
semelhante, a Petição de Direitos inglesa de 1628 fala de “ direitos e liberdades de sujeitos”
tal qual aparece nas “ leis e costumes livres no reino” .
45 Sobre Selden, v. Haivry,John Selden and the Western Politícal Tradition; Haivry and Hazony,
“What Is Conservatism?” , esp. 225-230.
44 Hazony, The Philosophy ofHebrew Scripture, pp. 151-152.

40
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

admissão de tais princípios como direitos de toda nação independente,


e cada nação aproximará a questão a partir de uma perspectiva enrai­
zada em suas próprias circunstâncias históricas, experiência e visão.
A tensão inerente em manter ambos os princípios de construção
protestante conferiu um dinamismo único para as nações da Europa,
liberando uma tempestade de energias dormentes e fomentando um
espantoso grau de experimento e inovação em governo e teologia,
economia e ciência. Permitindo, assim, uma grande variedade de
arranjos constitucionais e religiosos entre países diferentes, a ordem
Protestante forneceu verdadeiros laboratórios nacionais, onde institui­
ções e liberdades, hoje associadas ao mundo ocidental, eram testadas e
desenvolvidas. E o contexto entre as perspectivas de nações rivais foi
bem além da teoria política e da teologia. A ciência empírica inglesa
foi fomentada pela revolta contra o caráter dedutivo do método car-
tesiano, que os franceses, por sua vez, insistiam ser o único caminho
“racional” para o avanço da ciência. Filósofos alemães igualmente
prosperaram sob a crença de que o Império Britânico foi uma grande
catástrofe, e que o idealismo de Immanuel Kant nos salvaria a todos.
O mesmo pode ser dito virtualmente sobre qualquer campo em que a
civilização européia tenha feito significativos avanços, inclusive o das
finanças, da indústria, da medicina, da filosofia, da música e das artes.
Em todo caso, os pontos-de-vista rivais, reconhecidos naquele perío­
do, ao mesmo tempo em que eram destacadamente nacionais em suas
características, eram propostos como os melhores para a humanidade
em geral, estimulando outros a imitar o que viam como exitoso, apesar
de suscitarem, de uma forma mais inteligente, renovados esforços para
reformular pontos-de-vista já refutados, de modo que pudessem ser
usados em uma nova batalha no dia seguinte.
Nada disso equivale a afirmar que a Europa pós-Westfália pudesse
ser algum tipo de paraíso. Os Estados nacionais cristãos estavam cons­
tantemente recorrendo a guerras de territórios e embates comerciais,
um hábito que não pode senão nos revelar uma disposição ao massa­
cre gratuito. Além disso, mesmo os ingleses, holandeses ou franceses,
que insistiram, dentro do contexto europeu, no princípio Westfaliano
da independência nacional e da autodeterminação, estiveram todos
preparados para encontrar razões para manter impérios coloniais

41
YORAM HAZONY

baseados na conquista e na submissão de povos estrangeiros na Ásia,


na África e nas Américas. Tais Estados — e, mais tarde, os Estados
Unidos também — igualmente mantiveram acordos e instituições ra­
ciais inconcebíveis, aportando uma variedade de barreiras perante a
participação dos judeus em suas respectivas vidas nacionais. Pode-se
facilmente acrescentar uma lista de práticas daqueles períodos que
acharíamos (ou, ao menos, deveriamos achar) questionáveis.
Ainda sob tantas falhas óbvias, o argumento em prol de uma ordem
internacional foi introduzido na Europa durante a modernidade re­
cente: na forma de uma ordem baseada no princípio de uma liberdade
nacional, transmitiu um benefício político e religioso tremendo para as
nações do Ocidente — uma forma que deu bases para eventuais con­
sertos de muitas de suas deficiências. Em tempo, o princípio protestante
de uma nação livre colocou um fim nos impérios europeus. E assim
procedendo, trouxe a fundação dos novos Estados nacionais ao redor
do mundo, entre eles os Estados Unidos da América e o restaurado
Estado de Israel para o povo judeu.

4. John Locke e a construção liberal


Em agosto de 1941, muitos meses antes dos e u a entrarem na Segunda
Guerra Mundial, Franklin Roosevelt e Winston Churchill assinaram
o que ficou conhecido como a Carta do Atlântico, que reafirmou o
princípio da liberdade nacional (“ o direito de todos os povos a escolher
a forma de governo sob a qual decidem viver” ) como a essência da
visão dos poderes ocidentais no mundo pós-guerra. Ambos os líderes
continuaram seus discursos sobre o compromisso de suas nações com
aquilo que Roosevelt chamou de “velhas idéias do cristianismo” , que
eles entendiam como sustentáculo da liberdade de suas próprias nações,
e também de outras. Nesta importante encruzilhada, a construção
protestante permaneceu como base da ordem política do Ocidente. O
grande desafio seria derrotar os nazistas e soviéticos em seus respectivos
esforços para derrubar essa ordem.47

47 Na carta, Roosevelt e Churchill declararam: “Eles respeitam o direito de todos os povos


escolherem a forma de governo sob a qual eles viverão; e eles querem ver direitos de soberania
e autogoverno restaurados àqueles que foram forçados a privar-se disso” (Artigo 3°). No
entanto, também é possível ver a Carta do Atlântico como o começo do fim da ordem dos

42
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Mas a derrota dos nazistas, e recentemente dos soviéticos, não trouxe


a restauração daquela construção protestante do Ocidente. De fato,
às vésperas do fim da Segunda Grande Guerra, o futuro dessa ordem
política apenas florescia de maneira incerta. Podemos observar isso
com o progressivo abandono da visão de que a família, o Sbabat e o
reconhecimento público de Deus são instituições defendidas por um
governo legítimo, além de requisitos mínimos de uma sociedade justa
(i.e., o primeiro princípio). E nós podemos ver isso no declínio súbito
do interesse em salvaguardar a independência política das nações — a
mais eficaz dentre todas as barreiras para deter a tirania do império
universal —, que culminou na reconstrução de uma Europa sob um
regime multinacional e sob uma tendência crescente de se identificar
o poderio americano com uma nova ordem mundial acima da inde­
pendência das nações (i.e., o segundo princípio).
A crise na ordem política protestante foi conduzida forçadamente a
uma alternativa emergente — qual seja, uma alternativa que pode ser
chamada de “construção liberal do Ocidente” . Ainda que seu último
triunfo não tenha sido de modo algum assegurado, a ascensão dessa
nova ordem liberal, até o ponto de ser bem-sucedida em colocar toda
a ordem protestante em risco, é o mais significante desenvolvimento
político de nossa época.
E o que seria essa “construção liberal” ? Tangenciarei suas mais
importantes características, algumas mais familiares que outras.
Diferentemente da construção protestante, que prosperou na ten­
são entre dois princípios derivados da Bíblia a respeito da liberdade
nacional e do mínimo moral para uma ordem legítima, a “construção
liberal do Ocidente” assume que há apenas um princípio na base da
ordem política legítima: a liberdade individual. Uma fonte clássica e
ainda bastante influente para essa idéia é o manifesto mais famoso da

Estados nacionais independentes, com sua referência ao “ pendente [...] estabelecimento


de um sistema mais amplo e permanente de segurança geral” (Artigo 8°). Como Woodrow
Wilson, Roosevelt tendeu a supor que o imperialismo de estilo antigo podería ser substituído
por uma forma de “segurança coletiva” que de algum modo escaparia de estabelecer uma
nova ordem. Churchill, por sua vez, como um franco defensor do império britânico fora da
Europa, admite facilmente a noção de um sistema de segurança mundial. No que se refere
a Roosevelt sobre o cristianismo, v. Franklin Roosevelt, “ Radio Discurso no sexagésimo
aniversário do Presidente” , 30 de janeiro de 1942.

43
YORAM HAZONY

modernidade, o Segundo tratado para o governo civil de John Locke.


Publicado em 1689, abre com a afirmação de que todos os indivíduos
nascem “ em perfeita liberdade” e em “ perfeita equidade” , e segue
descrevendo-os como seres em busca de vida, liberdade e propriedade
em um mundo de negócios baseado no consenso. Nessa base, Locke
constrói um modelo de vida política e uma teoria de governo.
Locke foi ele próprio produto da construção protestante, e seu tra­
balho tinha por intenção fortalecer essa construção, e não demoli-la.48
Ainda assim, ao moldar sua teoria, Locke subestimou ou simplesmente
omitiu por completo os aspectos essenciais da natureza e motivação
humanas, sem os quais nenhuma filosofia política fará sentido. Toda
teoria realiza uma redução ou simplificação material, obviamente; mas
uma teoria bem formulada captará as mais importantes características do
assunto estudado, enquanto as mal formuladas deixarão, sem perceber,
escapar elementos cruciais. E assim é com o Segundo tratado, que oferece
uma visão racional da vida política humana fazendo abstração de todo
vínculo que liga os seres humanos para além dos consensuais.49 Quando

48 Todo o Segundo tratado pode ser lido como um comentário sobre a Bíblia Hebraica. Para
uma discussão sobre o biblicismo de Locke, v. Joshua Mitchell, Not By Reason Alone.
Chicago: Universidade de Chicago Press, 1993, pp. 73-97; Leiter, John Locke’s Political
Hebraism. A teoria liberal do contrato social é, em particular, uma interpretação das
obrigações [covenants] da Bíblia Hebraica. V. Roshwald, The Endurance of Nationalism,
16; Michael Walzer, Exodus and Revolution, Nova York: Basic Books, 1985, pp. 83-84. Em
nenhum desses trabalhos lê-se que a teoria liberal do contrato social é uma interpretação
especialmente sólida do ensino bíblico.
49 Locke é um reconhecido empirista, mas essa visão de seu pensamento é baseada em grande
parte em seu Essay Concerning Human Understandmg, Oxford, Reino Unido: Oxford
University Press, 1975 (1789), que é um trabalho influente na psicologia empírica. Seu
Segundo tratado sobre o governo não é, contudo, um esforço análogo para trazer um ponto
de vista empírico para a Teoria do Estado. Locke foi um dos poucos escritores políticos
de sua época a não argumentar com base na experiência histórica (Trevor Colbourn, The
Lamp o f Experience [Indianapolis, I N : Liberty Fund, 1998], pp. 5-6), e o Segundo tratado
começa com uma série de axiomas sem qualquer conexão evidente com o que se pode saber
acerca do estudo histórico e empírico do fenômeno do Estado, afirmando que (i) antes do
estabelecimento do governo, existem homens em um “ estado de natureza” (p. 381), no qual
(ii) “todos os homens estão naturalmente em um estado de perfeita liberdade” (p. 382), bem
como em (iii) um “ estado de perfeita igualdade, em que não há superioridade ou jurisdição
de ninguém sobre outro qualquer” (p. 382). Além disso, (iv) esse estado de natureza “ tem
para governá-lo uma lei da natureza” (p. 384); e (v) esta lei da natureza é, como acontece,
nada mais do que a “razão” humana em si, que “ ensina a todos aqueles que a consultem”
(p. 384). É essa razão universal que leva os seres humanos a (vi) saírem do estado natural,
“ por seu próprio consentimento, se tornam membros de alguma sociedade política” (p.
394) por um ato de livre consentimento (cf. John Locke, Segundo tratado, Seções 4, 6-7,
15.) A partir desses axiomas, Locke passa a deduzir o caráter adequado da ordem política

44
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Locke fala de “consenso” , quer dizer que cada indivíduo se torna um


membro de uma coletividade humana apenas porque concorda com
isso, e assim tem obrigações perante tais coletividades somente porque
as teria aceitado.50 Trata-se de uma bajulação do individualismo, pois
faz parecer que as mais importantes escolhas estarão ao alcance da
decisão do indivíduo. Todavia, é plenamente defeituosa como descrição
de um mundo político empírico, em que lealdades mútuas vinculam
seres humanos a famílias, tribos e nações, e cada um de nós recebe
certa herança religiosa e cultural como conseqüência de ter nascido
no seio de tais coletividades. Essa teoria ignora as responsabilidades
intrínsecas à adesão a uma coletividade, seja para os que a herdam ou
para membros adotados — demandas que não decorrem de um mero
“consenso” ou “ acordo entre partes” , e que não desaparecem se esse
“consenso” é revogado unilateralmente por seus membros. A teoria
também desconhece os efeitos da adversidade comum, que traz desa­
fios inevitáveis e dificuldades enormes para famílias, tribos e nações,
reforçando as responsabilidades dessas coletividades e tornando-se
a característica mais intensamente perceptível, e às vezes imóvel, da

para todas as nações da terra. Em relação ao racionalismo de Locke, Quinton conclui


acertadamente: “Em Locke, uma percepção empírica do conhecimento em geral combina-
se com uma teoria racionalista sobre o nosso conhecimento da moralidade, a base da
teoria auto-evidente natural dos direitos em Locke. ‘O conhecimento moral’, diz Locke, ‘é
tão capaz de uma certeza real como a matemática’. As verdades morais, como teoremas
geométricos, são consideradas como necessidades demonstráveis. No momento em que
ele chega ao Livro iv de seu Ensaio sobre entendimento humano [v. esp. 4.3.18] em que
esta posição é tomada, argumenta de uma forma surpreendentemente fraca, esquecendo o
- falibilismo moral que é insinuado por sua rejeição no Livro i sobre os ‘princípios práticos
imanentes’. Este racionalismo ético é fundamental para a teoria política de Locke, sendo um
suporte adequado para dogmáticas liberais apaixonadas” . Anthony Quinton, The politicis
o f imperfection, Londres: Fabere Faber, 1978, p. 41.
[Usamos a tradução de Julio Fischer para o Segundo tratado, feita para a Martins Fontes em
1998 sob o título Dois tratados sobre o governo. As páginas, inserções minhas, correspondem
ao ponto em que Hazony faz a referência no original indicando as seções e capítulos. Ao
longo do livro, Ffazony usa com total ênfase o Segundo tratado. Entretanto, não podemos
deixar de recomendar ao leitor brasileiro a tradução que Anoar Aiex fez para a coleção Os
pensadores para o Essay Concerning Human Understanding. Sob o título Ensaio acerca do
entendimento humano (São Paulo: Nova Cultural, 1997), o Livro iv sobre “ Conhecimento
e opinião” revela muito do que o leitor brasileiro não está acostumado a ler na mídia
mainstream. — n t ]
50 “ Sendo todo homem [...] naturalmente livre [...] [sem que] nada [possa] colocá-lo em sujeição
a qualquer poder terreno, a não ser por seu próprio consentimento” (p. 491). Locke, Segundo
tratado, Seção 119. [A referência à página, por minha conta, é da tradução de Julio Fischer
para a Martins Fontes em Dois tratados-, a referência à seção é do autor. Os itálicos constam
originalmente na versão traduzida de Fischer. — n t ]

45
YORAM HAZONY

paisagem moral e política. Nenhuma consideração inteligente sobre


política, ou sobre o compromisso político, pode ser desenvolvida sem
dar grande peso a tais fatores. E a consideração de Locke, onde tais
fatores são omitidos, é, com efeito, uma abrangente desvalorização dos
mais básicos vínculos que mantêm a sociedade unida.
Considere como exemplo a família. A imensa maioria supõe que
irmãos e irmãs nascidos dos mesmos pais têm uma responsabilidade
especial de ajudar um ao outro em tempos de necessidades prementes.
Da mesma forma, supomos que os avós têm obrigações perante seus
netos, e que os netos têm obrigações perante seus avós. Mas nenhuma
dessas relações familiares são fruto de um consentimento: ninguém
escolhe quem será seu irmão ou quem serão seus avós. Portanto, es­
sas obrigações devem derivar de outras fontes. O modelo de Locke,
contudo, que busca definir a família com base na livre escolha e no
consenso, não gera nenhuma dessas obrigações. Isso equivale a dizer
que quem assumisse as premissas do Segundo tratado seria mesmo
incapaz de entender, e menos ainda negar, a existência da família como
a conhecemos e os laços de responsabilidade que lhes dão forma.51
Boa parte dessa crítica também se aplica à Teoria do Estado de
Locke. O Estado que é trazido para a existência concreta no Segundo
tratado é o produto único e exclusivo de um consenso: indivíduos, ao
notarem que suas respectivas vidas e propriedades estão insuficien­
temente seguras, optariam por celebrar voluntariamente um pacto
para proteger tais interesses.52 Porém, este pacto para a defesa da

51 Locke, Segundo tratado, seções 55-69. Locke é incapaz de justificar as obrigações entre pais
e filhos depois que os filhos atingem a maturidade, por isso ele recorre à tradição mosaica
“honra teu pai e tua mãe” (Êxodo 20, 11; Deuteronômio 5, 16) para que seu sistema de
obrigações funcione (Seção 66).
52 “ O fim maior e principal para que os homens se unam em sociedades políticas e submetam-
se a um governo é, portanto, a conservação da propriedade” (itálicos originais na versão de
Fischer, p. 495). Por “propriedade” Locke entende “ vidas, liberdades e bens” dos indivíduos
que se juntam ao governo. Locke, Segundo tratado, seções 123-124. V. também 87,173,222.
Locke admite a existência de clãs, tribos ou nações antes do estabelecimento do Estado. A
única coletividade de interesses para ele é o povo ou a nação criada “ sempre que qualquer
número de homens no estado de natureza, entra em sociedade para formar um povo, um
corpo político sob um único governo supremo” (p. 460 [da tradução de Fischer], Seção
89, ênfase adicionada). Esta é outra maneira de dizê-lo para Locke, em que, ao contrário
de empiristas como Selden e Burke, o conceito político de nação é totalmente ausente. Este
ponto é enfatizado por Uday Singh Mehta, “Edmund Burke on Empire, Self-Understanding
and Sympathy” , em Empire and Modem Political Thought, org.: Sankar Muthu, Cambridge,

46
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

propriedade guarda remota semelhança com os Estados nacionais


tal qual os conhecemos na experiência. N a vida real, nações são co­
munidades reunidas por vínculos de lealdade mútua, levando adiante
tradições particulares de geração em geração. Possuem memórias
históricas comuns, língua e documentos, rituais e fronteiras, dando
a seus membros uma poderosa identidade com seus ancestrais e uma
preocupação com o destino das gerações futuras. Penso, por exemplo,
na maneira como Fortescue acreditava na superioridade das leis da
Inglaterra ressoando ao longo dos séculos através de seus herdeiros,
ou no modo como o histórico temor inglês em ser dominado pela
Espanha católica fez surgir, por gerações seguidas, as instituições e as
guerras daquela região. Ligações e propensões como essas impulsio­
nam o indivíduo a servir o seu próprio país, não apenas pelo bem de
suas vidas e propriedades, mas mesmo ao preço do sacrifício destas
mesmas coisas. E ainda, na maioria dos casos, tais idéias nos são in-
culcadas desde a mais tenra infância, e são tão livremente escolhidas
quanto a semelhança entre irmãos e irmãs e entre netos e avós. Uma
teoria lockeana do Estado não nos habilita a compreender, e menos
ainda a justificar, a existência do Estado nacional e dos vínculos de
obrigação que lhes são característicos.
Ao reduzir a vida política à busca de um indivíduo pela preserva­
ção da vida e de seus bens materiais (propriedade), Locke não apenas
oferece um empobrecido e fracassado relato da ação humana e de
sua respectiva motivação. Sua teoria política convoca o indivíduo a
ingressar em um mundo de faz-de-conta, uma visão utópica na qual
as instituições políticas do mundo judaico-cristão — o Estado nacio­
nal, a comunidade, a família e as tradições religiosas — parecem não
ter qualquer razão de existência. Todas essas instituições resultam da
transmissão de vínculos de lealdade e propósitos em comum de coleti­

u k : Cambridge University Press, 2012, p. 181; Ethan Alexander Davey, “ Constitutional

Self-Government and Nationalism” , History of Political Thougbt 35 (Autumn 2014), pp.


458-484. [No original em que Locke fala sobre a “conservação da propriedade” , o termo
usado é preservatiott oftheir property. Ao defini-la como “vida, liberdades e bens” , o termo
usado é lives, liberties and estates. Chamo a atenção do leitor para o termo original estates,
traduzido por Fischer como “ bens” e que, em seu sentido estrito e jurídico, diz respeito
especificamente a bens de natureza imóvel — qual seja, estates são propriedades imóveis
que envolvem direitos sobre terras (cf. Bryan Garner [org.]. Black’s Law Dictionary, 7* ed.
St. Paul, Minn: Westgroup, 1999, pp. 567-570). — n t ]

47
YORAM HAZONY

vidades humanas, criando fronteiras e limites entre um grupo e outro,


estabelecendo laços entre gerações passadas e futuras e oferecendo um
vislumbre muito além do presente e para algo superior. Um indivíduo
que não tiver outros motivos que não sejam os de preservar a própria
vida e expandir suas propriedades, e não estiver apenas comprometido
com aquilo que consentiu, não terá nenhuma necessidade de tais coisas.
Sem ter a intenção, o mundo de faz-de-conta oferecido por Locke em
seu Segundo tratado emprestou a boa parte da ordem protestante um
ar de superfluidade, deixando-a ausente de qualquer sentido.
Os primeiros leitores de Locke ficaram profundamente incomodados
com jsso. Isto levou, por exemplo, o grande estadista e filósofo britânico
Edmund Burke a declarar no parquet do Parlamento britânico que den­
tre todos os livros até então escritos, o Segundo tratado estava “ entre
os piores” .53 M as a radical deficiência do relato de Locke foi gradual­
mente deixando de ser reconhecida como um problema. Intelectuais do
Ocidente se deliciaram com ela e até hoje somos inundados com suas
atualizações — do Contrato social de Rousseau (1762) e À paz perpétua
de Kant (1795) até A revolta de Atlas de Ayn Rand (1957) e a Teoria
da justiça de John Rawls (1972) — que reelaboram incansavelmente
esse mundo de faz-de-conta, trabalhando e retrabalhando a visão de
seres humanos livres e iguais, em busca de preservação da própria vida
e dos próprios bens e vivendo sob obrigações que decorrem apenas e
tão-somente de seus respectivos livres consentimentos. Uma teoria ou
programa que se propõe a tal moldura racional é aquilo que chamo
uma teoria ou programa liberal.54

53 Como fora relatado no Morning Chronicle de 18 de abril de 1794. Apud Richard


Bourke, Empire and Revolution, Princeton, n j : Princeton University Press, 2015, p. 683.
O relacionamento de Burke com Locke é exaustivamente estudado por Ofir Haivry, The
“Politick Personality” , Tese de Doutorado para o University College London, 2005.
54 Jean-Jacques Rousseau, On the Social Contract (1762); Immanuel Kant, “ Perpetuai Peace” ,
em Political Writings, ed. H. S. Reiss, trad. de H. N. Nisbet, Cambridge, u k : Cambridge
University Press, 1991 (1795), pp. 93-130; Ayn Rand, Atlas Shrugged, Nova York, Signet,
1996 (1957); John Rawls, A Theory o f Justice, Cambridge, m a : Harvard University Press,
1972. Minha abordagem diverge da de Leo Strauss e de outros que apresentam Rousseau
como um crítico de Locke. De fato, Rousseau defende um retorno a certas virtudes
necessárias para manter a coesão social e travar guerras em defesa da comunidade. Mas
é exagero ver nisso uma ruptura com Hobbes e Locke, iniciadores da “ primeira crise de
modernidade” , como afirma Strauss em Natural Right and History, Chicago: University of
Chicago Press, 1953, p. 2 5 2 .0 que hoje se considera modernidade política emerge, de fato,
da tradição conservadora inglesa de Fortescue, Coke e Selden e de sua luta contra as teorias

48
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Vale a pena prestar uma atenção especial para a inabilidade que as


teorias políticas liberais têm para relatarem a existência de fronteiras
entre nações. Teorias políticas protestantes seguiram as Escrituras he­
braicas ao considerarem as fronteiras nacionais não menos importantes
para a paz e para o bem-estar da humanidade que as fronteiras das
propriedades. A tentativa de Locke de derivar a existência do Estado
a partir do consenso de um grupo arbitrário de donos de propriedade,
de toda forma, elimina esse entendimento da nação enquanto uma en­
tidade intrinsecamente limitada e existente em algum território mais ou
menos definido. No Segundo tratado, não há um princípio-limite para o
tamanho do Estado ou um número de pessoas cuja propriedade estaria
sujeita à proteção, e o Estado está de fato misteriosamente desprovido
de fronteiras ou limites de qualquer natureza. De acordo com a lei da
natureza, afirma Locke, “ a humanidade é uma única comunidade” . A
existência de fronteiras políticas entre os homens é, tanto quanto lhe
diz respeito, nada além de um produto da “corrupção humana e de seus
vícios” .55 Considerando que a lei natural é para Locke idêntica e paira

absolutistas dos próprios absolutistas em si como a dos puritanos na Inglaterra. Quinton,


The Politics o f Imperfection, p. 21. A primeira crise do pensamento político moderno é
aquela iniciada pelas teorias políticas racionalistas de Hobbes, Locke e Rousseau contra
a tradição conservadora. Quinton, The Politics o f Imperfection, pp. 29-31. A adesão de
Rousseau ao sistema axiomático de Locke, como um ponto de partida para o pensamento
político, integra-o diretamente à tradição racionalista. Sua sugestão de que não pode existir
“ povo” até que seja estabelecido um Estado, e sua proposta de “ religião civil” , definida pelas
necessidades do Estado. Rousseau, Social Contract, pp. 1.6,4.8 são criações substitutivas
do universo racionalista lockeano, às quais se prende o pensamento de Rousseau.
55 Locke escreve que, de acordo com a lei da natureza, “o gênero humano forma uma única
comunidade” , compondo “ uma sociedade distinta de todas as outras criações” . Com efeito,
os homens são divididos em nações somente por sua maldade: “Não fosse pela corrupção e
crueldade dos homens degenerados, não haveria necessidade [...] que os homens se afastassem
desta grande comunidade natural e se unissem, mediante acordos positivos, em sociedades
menores e separadas” (Locke, Segundo tratado, Seção 128). Locke faz, assim, distinção entre
a comunidade natural de toda a humanidade e entre as associações “ menores e divididas” ,
feitas por acordos mútuos para proteger a vida e a propriedade. Essas associações menores
que se transformam em governo podem ser feitas por “ qualquer número de homens” ,
porque isso “ não fere a liberdade dos demais” (Locke, Segundo tratado, §95). Entretanto,
no que concerne à teoria política de Locke, não há nada inerentemente benéfico ou desejável
sobre a divisão da humanidade em nações independentes, e o modo pelo qual os governos
dividem a comunidade humana e estabelecem limites entre eles é uma questão menor. Os
limites do Estado podem ser traçados em qualquer lugar ou em lugar nenhum — definindo
o caráter inerentemente desprovido de qualquer fronteira do “ Estado lockeano” . Sobre o
relacionamento entre a teoria dos contratos sociais e a ilimitação do Estado, v. Scruton, In
Defense ofthe Nation, p. 320.

49
YORAM HAZONY

sob uma razão universal, isso implica que homens guiados somente
pela razão não seriam nem corruptos nem viciados, dispensando assim
qualquer necessidade de fronteiras nacionais sob qualquer forma.
Como as teorias políticas liberais foram promovidas em um con­
texto ainda sob a influência de fortes tradições calvinistas e anglicanas
assentadas no Antigo Testamento, a inabilidade de tais teorias liberais
em fornecer qualquer sentido de nação — como sinônimo de uma co­
munidade dotada de fronteiras — acabou sendo de nula conseqüência.
Estadistas e filósofos criados sob a influência da Bíblia apenas assumiram
que a própria nação era, como a antiga Israel, uma entidade dotada
de fronteiras que promovia a liberdade e a independência inclusive de
outras nações. M as como o liberalismo se desvinculou de suas origens
bíblicas e protestantes, sua característica não-nacionalista tornou-se
muito mais proeminente. Como todos os homens são iguais em sua
necessidade de ter suas respectivas vidas e propriedades protegidas,
uma política baseada apenas no liberalismo — sem qualquer suple-
mentação de uma tradição bíblica — significa que a persistência de
Estados nacionais independentes há de ser, na melhor das hipóteses,
uma questão indiferente.56 E se a independência e a coesão interna das
nações incluir a previsão de um custo em vidas e em propriedades, ainda
assim essa indiferença rapidamente se dissipará, deixando liberais com
uma inclinação para fazê-lo sem precisar inteiramente da existência
de um Estado nacional independente.57 Por isso é que no início do

56 Os escritores liberais nunca tiveram em conta o nacionalismo na Inglaterra, Escócia, Holanda


e França durante o período compreendido entre Henrique viu e a Revolução Americana —
um período de 240 anos. A historiografia liberal desperta apenas quanto ao nacionalismo
esperançoso das revoluções americana e francesa no final do século x v iii . Muitas vezes,
esta literatura considera as revoluções como precursoras do fim de todas as constituições
nacionais tradicionais e de uma constituição universal ditada pela razão, entendida como
uma constituição liberal. A combinação resultante de liberalismo e nacionalismo, talvez
mais familiar em Mazzini, é popular durante grande parte dos séculos xix e xx. Escrevendo
na década de 1930, por sua vez, Hayek vê os “ acidentes históricos” como causadores
da associação entre nacionalismo e liberalismo: “ Esse liberalismo aliou-se primeiro ao
nacionalismo, por ocasião da coincidência histórica que foi o nacionalismo do século xix,
que lutou na Irlanda Grécia, Bélgica e Polônia — e mais tarde na Itália e Austro-Hungria
— contra a mesma espécie de opressão a que o liberalismo se opunha” . Friedrich Hayek,
“The Economic Condition of Interstate Federalism” , New Commonwealth Quarterly 5
(setembro de 1939), pp. 131-149.
57 Essa tendência de se dispersar em Estados nacionais era evidente para Montesquieu, quem
observara que, no que diz respeito ao comércio, “ todas as mercadorias pertencem ao
mundo inteiro, que, nesta perspectiva, compõe um só Estado, do qual todas as sociedades

50
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

século xx, O liberalismo e a tradição clássica de Ludwig von Mises


advogou abertamente pela supressão de Estados nacionais em favor
de um “ Superestado mundial” .58 Friederich Hayek, o mais importante
teórico do liberalismo deste último século, igualmente argumentou que
a consistente aplicação do “ponto de vista liberal” conduziría a um
Estado federativo internacional sem fronteiras relevantes entre nações
— uma aspiração que ele endossou fortemente.59
Não muito tempo atrás, tais conclusões ainda soariam bizarras. Mas
as coisas mudaram. Nas últimas décadas, as teorias políticas e econômi­
cas liberais e as concepções de direito internacional tiveram sucesso em
afastar ainda mais as concepções mais conservadoras e realistas da ordem
política, tornando-se virtualmente um único e inquestionável desenho
teórico que uma pessoa minimamente educada precisa saber sobre o
mundo das idéias políticas. Com poucas exceções, os mais amplos debates
entre visões conflitantes em teoria política, economia e direito estão hoje
circunscritas a um paradigma lockeano, que é freqüentemente ensinado
e discutido como se não houvesse qualquer relevante alternativa a isso.60
são membros” . Montesquieu, O espírito das leis, pp. 20.23. [Montesquieu é usado apenas
nesta nota. Para a tradução exclusivamente desta nota, usei a versão de De 1’esprit des lois
de Cristina Murachco para a Martins Fontes (São Paulo, 2000), com o título O espírito das
leis (p. 358). No original,“ toutes lesmarchandises,appartiennentau monde entier, qui, dans
ce rapport, ne compose qu’un seut État, dont toutes les sociétés sont les membres” . — n t ]
58 Mises defende “ um Superestado mundial, que realmente mereça tal nome [...] a ponto de
tornar-se capaz de assegurar às nações a paz que almejam” . Ludwig von Mises, Liberalism
in tbe Classical Tradition, trad. de Ralph Raico, San Francisco: Cobden Press, 1985 (1927),
p. 150. [Liberalismo, p. 163. Eis como está no original, na p. 132: “ [...] was wirklich den
Namen Weltiiberstaat verdient und den Vólkern den Frieden gibt, dessen sie bedürfen” ,
tomando como “ Superestado mundial” o termo Weltiiberstaat, que pode ser lido pela junção
de Welt mais iiberstaat, qual seja iiber+staat, que poderia ser traduzido como “Estado de
supremacia mundial” . — nt ]
59 De acordo com Hayek, “ a revogação das soberanias nacionais e a criação de uma ordem
jurídica internacional efetiva é um complemento necessário e a conseqüência lógica do
programa liberal [...] a idéia de federação interestadual [seria] o desenvolvimento consistente
do ponto de vista liberal” . Friedrich Hayek, Tbe Economic Condition o f Interstate
Federalism.
60 Tenho em mente debates de teoria política como os de John Rawls A Theory o f Justice e
Robert Nozick Anarchy, State and Utopia, Nova York: Basic Books, 1974; ou na economia
entre John Maynard Keynes, A General Theory o f Employment, Interest and Money, Nova
York: Houghton Mifflin Harcourt, 1964 (1936), e Friedrich Hayek, The Constitution o f
Liberty, Chicago: University of Chicago Press, 1960; ou aqueles da filosofia do direito entre
Herbert Hart, The Concept o f Law, Oxford, u k : Oxford University Press, 1961, e Ronald
Dworkin, Taking Rights Seriously, Nova York: Gerald Duckworth, 1977. É especialmente
notável que as universidades apresentam a teoria política contemporânea como argumento
entre Rawls e Nozick, já que ambos baseiam suas teorias na visão de Locke sobre indivíduos

51
YORAM HAZONY

As elites intelectuais americanas e européias, educadas politicamente


nas universidades, estão em sua imensa maioria seqüestradas por essa
moldura liberal, independentemente de sua afiliação partidária. Basta
pedir a uma pessoa ponderada que tenha sido instruída nos campos da
política, da economia ou do direito para montar uma defesa da instituição
do Estado nacional, ou da família, ou do reconhecimento público da
majestade de Deus, para imediatamente se notar quão estranhas essas
coisas se tornaram e quão alienígenas estão em relação aos termos pelos
quais esses membros de nossas elites estão acostumados a conceituar o
mundo. Não é apenas uma questão de discordância sobre a proposição
de que tais coisas são vitais para uma ordem política civilizada; é sim
uma questão de estar ou não imerso em uma estrutura de construção
liberal, como se fosse impossível sequer imaginar o que uma realidade
não-lockeana pudesse parecer.
Iniciados nesse paradigma liberal, homens e mulheres educados
podem assim buscar emprego em uma vasta gama de projetos que as­
sumem uma construção liberal do mundo futuro: o programa político
da unificação européia; a expansão de um irrestrito livre mercado e
uma livre imigração entre populações do mundo; a transformação de
negócios empresariais em companhias “multinacionais” que servem à
economia global acima de qualquer interesse nacional em particular;
a submissão de nações a uma ainda maior expansão de um corpo de
direito internacional; a agitação por um regime universal de direitos
humanos por parte de várias o n g s , conselhos ligados às Nações Uni­
das e cortes internacionais; a homogeneização das universidades a
um padrão global pelo sistema dos padrões internacionais e pelo peer
review. Todos esses detalhes são definidos, obviamente, por pensadores
lockeanos treinados no meio universitário, raramente sabedores de que
há pessoas honestas e inteligentes cuja percepção da validade de tais
empreendimentos é profundamente diferente da visão que eles propug-
nam. Simplesmente assumem que ou se está “ do lado certo da história”
ou “do lado errado da história” , e que quando você está trabalhando
na construção de uma nova ordem liberal, você está do lado certo.61

livres e iguais em um estado de natureza, e no contrato que supostamente emergiría do seu


livre consentimento. V. Russell Kirk, Rights and Duties, Dallas, t x : Spence, 1997, p. 98.
61 Esta visão da construção liberal como o “ lado certo da história” foi popularizada por Bill

52
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Porém, apesar do grande sucesso desses empreendimentos terem


alterado a face do nosso mundo e o seu genuíno valor em muitas áreas,
as narrativas lockeanas permanecem o que sempre foram: uma visão
utópica da natureza humana e de suas motivações, e uma base de com­
preensão extremamente limitada da realidade política. Os fatores da
política e da vida social que não têm lugar dentro do paradigma liberal
ainda não foram completamente aniquilados, como posso demonstrar
na Parte n deste livro. Eles foram apenas negados e suprimidos. De
modo semelhante aos marxistas que os precederam, os liberais desco­
brirão o quanto a negação é fácil e a supressão exige um alto custo.

5. Nacionalismo em descrédito
Até não muito tempo atrás, o apoio à independência e à autodetermi­
nação das nações era uma indicação de uma política progressista e de
um espírito generoso. Os americanos não eram os únicos a celebrar
anualmente a própria independência, em 4 de julho, com fogos, música,
desfiles, churrascos e o ressoar dos sinos nas igrejas. Ainda em mea­
dos século xx, a independência de outros estados nacionais — desde
Grécia, Itália e Polônia até Israel, índia e Etiópia — era amplamente
considerada uma expressão de justiça histórica, bem como o prenúncio
de tempos melhores.
Mas, ao mesmo tempo, uma mudança na maré tomou o lugar dessas
posturas quanto a expressões de particularidades nacionais e religio­
sas. As duas Guerras Mundiais trouxeram uma catástrofe dificilmente
imaginável para a Europa, e os crimes monstruosos praticados pelas
forças alemãs durante a Segunda Guerra Mundial foram o coroamento
de um mal absoluto. Enquanto as nações se esforçavam para compre­
ender o que havia ocorrido, lá estavam aqueles — ambos, marxistas e
liberais — ávidos para explicar que a causa da catástrofe havia sido a
própria ordem dos Estados nacionais. Esse argumento avançou pouco
depois da Primeira Guerra Mundial, que foi amplamente vista como

Clinton. V. Bacevich, American Empire, pp. 32-3 8; David Graham, “ O lado errado do ‘lado
certo da história’ ” , Atlantic, 21 de dezembro de 2015. Os sucessores de Clinton, George W.
Bush e Barack Obama abraçaram essa retórica, como se nota no discurso de Bush: “ Nós
acreditamos que a liberdade é a direção da história” . Discurso para o “National Endowment
of Democracy” , Washington, d c , 6 de novembro de 2003.

53
YORAM HAZONY

resultante de aspirações imperiais ao poder.62 Mas depois da Segunda


Guerra Mundial, finalmente encontrou a sua marca. N a medida em
que circulavam fotografias dos campos de extermínio alemães, igual­
mente também circulavam as afirmações, junto das fotos, de que o
maior motivador da Alemanha ao empreender o assassinato de todos
os judeus do mundo teria sido o “nacionalismo alemão” . Nos anos 60,
a repugnância ao empreendimento nazista de destruição dos judeus,
em épocas em que havia uma mesma espécie de mal absoluto ocorren­
do em regimes raciais no sul dos eua e na África do Sul, triunfou em
mobilizar as elites intelectuais a identificar com o nazismo e o racismo
peculiaridades nacionais e religiosas completamente distintas.
A linha de pensamento nunca foi perfeitamente coerente. Apesar
da menção ao termo “ nacional” na nomenclatura do Partido Nacional
Socialista dos Trabalhadores Alemães, Hitler nunca foi um defensor do
nacionalismo. Ele foi um duro crítico da ordem protestante de forma
geral, mas deu especial atenção à instituição do Estado nacional, que
viu como um artifício estéril de ingleses e franceses, e amplamente in­
ferior ao legado histórico do Império Alemão. No lugar de uma ordem
política alinhada a Estados nacionais, ele operou a construção para
pôr em prática um Terceiro Reinado, o chamado Terceiro Reich, que
expressamente buscou inspiração no Primeiro Reich — isto é, a partir
do Sacro Império Romano-Germânico, com o seu reino milenar e de
aspirações universais (sob o motto do Imperador Frederick iii , Austrice
est imperare orbi universo, ou seja, “é destino da Áustria imperar sobre
todo o universo” ). Dificilmente Hitler foi o primeiro a ter dado voz
a essa herança, a qual o Imperador do Norte da Alemanha, Wilhelm
ii , ainda invocava para inspirar suas tropas quando o mesmo Hitler
servia aquele exército durante a Primeira Guerra Mundial. Como
bem lembrou o Kaiser aos seus combatentes em 1915, “ o triunfo da
Grande Alemanha, destinada um dia a dominar toda a Europa, é o
único objetivo do esforço em que estamos aqui engajados” .63 Quase
no mesmo tom, Hitler foi desabrido ao disseminar uma visão de uma

62 Vide. cap. 14, seção 2.


63 Kaiser Wilhelm n, “ Ordem do dia” , encontrado em posse de soldados capturados. Charles
Andler, Pan-Germanisnt, (Paris: Armand Colin, 1915), p. 81.

54
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Alemanha que “um dia irá dominar a terra” .64 A Alemanha Nazista
foi, de fato, um Estado imperial sob todos os aspectos, que queria pôr
um fim no princípio da independência nacional e na autodeterminação
dos povos de uma vez por todas.65
Não é possível interpretar os esforços da Alemanha em destruir os
judeus senão como resultado do princípio da Westfália acerca da auto­
determinação nacional. O extermínio nazista dos judeus na Polônia, bem
como o extermínio na Rússia, no resto da Europa e no norte da África,
não foi uma política nacional, mas sim uma política global exercida em
locais tão remotos quanto o gueto judeu de Shangai, implementado pelos
japoneses a pedido dos nazistas. Isso jamais poderia ser concebido ou
tentado fora do contexto dos esforços de Hitler em reviver um longo
e perfeito Império Germânico com aspirações universais.
Tudo isso estava perfeitamente claro durante a guerra. Nas trans­
missões de rádio, os eua e a Grã-Bretanha enfatizavam sem parar que,
enquanto aliança de nações independentes, seu objetivo era restaurar a
independência e a autodeterminação dos Estados nacionais de toda a
Europa. E no fim, foi o nacionalismo americano, britânico e russo — até
mesmo Stalin já havia abandonado a besteira marxista a respeito da
“revolução mundial” em favor de apelos explícitos a um patriotismo
russo — o que derrotou a tentativa germânica de um império universal.

64 Hitler explicitamente rejeita tanto o Estado liberal do contrato social quanto o Estado
nacional construído sob a unificação de tribos díspares com base na língua e na história,
chamando tais Estados de “ monstruosidades infames” . O Estado, na visão de Hitler tinha
um propósito totalmente diferente do Estado nacional. Consistiu, primeiro, na “conservação
e avanço de uma comunidade de criaturas física e psiquicamente homogêneas” , por meio
do “ agrupamento e preservação dos mais valiosos elementos raciais básicos” ; e depois, para
além disso, passou a ser elevar essa raça a uma “ posição dominante” , até ela se tornasse
o “ povo mestre” , uma “ senhora do globo” . Adolf Hitler, Meín Kampf, trad. de Ralph
Manheim, Nova York: Houghton Mifflin, 1971 (1925), pp. 393, 396, 398. Assim, se os
alemães lidassem firmemente com o “envenenamento racial” que os afligia, “ algum dia se
tornariam senhores da terra” . Hitler; Meitt Kampf, p. 688.
65 Anthony Smith acertadamente vê uma “divergência fundamental” entre o nazismo de Hitler
e o nacionalismo, devido à sua adoção de um “ imperialismo biológico” incompatível com
a existência de uma pluralidade de Estados nacionais. Anthony Smith, Hationalism in the
Twentieth Century, Oxford, u k : Martin Robertson, 1979, pp. 78-80. Como lembra um
renomado acadêmico alemão, toda a proposta de Hitler era “ destruir o sistema do Estado-
Nação para retornar à uma ordem imperial” . Münkler, Empires, p. 144. De fato, a única
coisa que Hitler admirava na Grã-Bretanha, era o seu aspecto imperial. V. Niall Ferguson,
Empire, Nova York: Basic Books, 2002, pp. 279-282.

55
YORAM HAZONY

Mas nada disso parece relevante para os liberais ocidentais, que se


moveram rapidamente depois da guerra rumo a uma visão de que a
independência nacional não podería mais ser aceita como base para uma
ordem internacional, haja vista as atrocidades da Alemanha. Figurava
entre os mais ardorosos novos antinacionalistas o chanceler da extinta
Alemanha Ocidental, Konrad Adenauer, que repetidamente clamava
pela criação de uma União Européia federalizada, pois, segundo ele,
somente a eliminação do Estado nacional podería evitar a repetição
dos horrores da guerra. Como ele mesmo registrou em seu livro Mundo
indivisível com liberdade e justiça para todos-.

A era dos Estados nacionais chegou a um fim [...]. Nós na Europa deve­
mos abandonar o hábito de pensar em termos de Estados nacionais [...].
Acordos europeus [...] são formulados para fazer com que as guerras entre
nações européias se tornem algo impossível no futuro [...]. Se a idéia de
uma Comunidade Européia puder sobreviver por cinqüenta anos, nunca
mais haverá uma guerra européia.66

De acordo com esse pensamento, a resposta para o impressionante


mal absoluto dos tempos da Alemanha nazista era desmantelar o sis­
tema de Estados independentes que franquearam a Alemanha o direito
de tomar decisões por si mesma, e substituí-lo por uma abrangente
União Européia capaz de restringir a Alemanha. Em outras palavras:
tire-se da Alemanha o seu direito de autodeterminação e você trará
prosperidade e paz para a Europa.
A proposta de que alguém seria capaz de “ restringir” a Alemanha
eliminando os Estados nacionais europeus é repetida incansavelmente
na Europa de hoje em dia. Mas está mais próxima de uma boa piada
do que de uma análise política séria.67 Os cidadãos falantes de alemão

66 Konrad Adenauer, World Indivisible with Liberty and Justice for All, trads.: Richard e
Clara Winston, Nova York: Harper and Brothers, 1955, pp. 6-10. V. também Jean Monnet,
Memoirs, Londres: Collins, 1978, pp. 285-286. Compare com esta passagem de Helmut
Kohl, chanceler da Alemanha, de quatro anos mais tarde: “A integração européia é de verdade
uma questão da guerra e paz para o século xxi [...]. Nós não temos a menor vontade de
retornar ao Estado-Nação de outros tempos” . The Times, 03 de fevereiro de 1996, citado
em David Conway, With Friends Like These, Londres: Civitas, 2014, p. 105.
67 Como MargaretThatcher colocou, logo após ser demitida do cargo de Primeira Ministra: “ a
preponderância da Alemanha dentro da Comunidade [Européia] é tão óbvia que nenhuma
decisão é tomada sem que as vontades germânicas sejam atendidas. Nessas circunstâncias,
a comunidade aumenta o poder da Alemanha, muito mais do que o limita” . Margaret
Thatcher, The Path to Power, Nova York: Harper Collins, 1995, p. 614.

56
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

da Europa Central jamais se constituíram em um Estado nacional. Eles


não têm qualquer experiência histórica de unidade nacional e de inde­
pendência comparável à Grã-Bretanha, à França ou à Holanda. Além
disso, tais nações da Europa Ocidental nunca temeram os alemães por
causa de seu nacionalismo, mas por causa de seu imperialismo univer-
salista — seus esforços em trazer a paz para a Europa unificando-a sob
o jugo do Imperador Alemão. Foi essa profunda e enraizada tradição
imperialista e universalizante dos alemães que tornou fácil ao proemi­
nente filósofo alemão do Iluminismo, Immanuel Kant, asseverar em sua
Paz perpétua que a única forma racional de governo seria aquela em
que os Estados nacionais europeus fossem desmantelados em favor de
um governo único que finalmente se expandisse para o mundo todo.
Ao repetir essa tese, Kant estava apenas oferecendo outra versão do
Sacro Império Romano-Germânico.68
As reiteradas propostas de Adenauer para restringir a Alemanha
pela eliminação do sistema da Westfália em favor dos Estados nacio­
nais não vislumbrava, por essa razão, alemães desistindo daquilo que
teria sido para eles historicamente significante. O chanceler estava de
fato apenas reiterando o modo como os acordos políticos na Europa
deveriam ser segundo uma venerável tradição germânica. Nações que,
nos três ou quatro séculos anteriores, obtiveram sua independência dos
imperadores alemães pagando um alto custo, por outro lado, foram
demandadas a fazer consideráveis sacrifícios pelo bem das promessas
de paz perpétua e prosperidade.
Ingleses e americanos apoiaram a idéia de uma unificação do conti­
nente europeu, pensando que suas respectivas independências nacionais
não seriam afetadas. Erraram, porém, nos cálculos. Em uma só ordem
política, o argumento kantiano da superioridade moral de um governo
internacional não pode coexistir com o princípio da independência.
Uma vez que esse argumento foi liberado novamente na Europa do
pós-guerra, ele rapidamente demoliu o compromisso de construção
protestante previamente assumido pela maioria da elite intelectual
na Grã-Bretanha e nos e u a . E esse colapso passou a fazer sentido.
Depois de tudo, por que alguém deveria se manter firme na idéia de

68 V. cap. 21 e 23.

57
YORAM HAZONY

independência nacional, se a tal independência nacional trouxe a


guerra e Holocausto?
Além disso, o ímpeto dos eua em compartilhar seu exército com
a Europa por boa parte do século indicou que a paz e a segurança
chegaram às nações européias sem que estas tivessem feito um in­
vestimento compatível nessas áreas, sejam militares ou intelectuais,
para fazer frente à atual demanda por segurança das fronteiras com a
Rússia e com os países islâmicos. Este fato peculiar — que americanos
continuassem a fornecer os fundos militares e financeiros necessários
para manter a paz na Europa a um custo relativamente pequeno para
a Alemanha e para a França — tem sido a principal razão para o
apego dos europeus a esse amor pelo império liberal. Depois de tudo,
por que alguém defendería princípios como independência nacional
e autodeterminação, se a América deu a esses povos toda a seguran­
ça sem que tenham precisado trabalhar por ela, tal qual o petróleo
que jorrou do chão e tornou os sauditas ricos sem que eles tenham
trabalhado por isso? Europeus foram reduzidos à mera condição de
dependentes, existindo apenas pela virtude da generosidade dos ame­
ricanos. Isso os manteve em infância perpétua, alegremente repetindo
as ladainhas de Adenauer pelo desmantelamento da independência do
Estado nacional, que para eles é a chave da paz na terra. M as nada
nesse sentido foi feito. Não houve qualquer União Européia, nenhuma
política de unificação da França, ou da Alemanha com a Holanda; a
presença militar americana e sua respectiva proteção teria, em qual­
quer caso, garantido a paz na Europa. Isso é o que os impérios fazem.
Eles oferecem paz em troca da renúncia da independência da nação
— incluindo sua capacidade de pensar como nação independente e
de planejar e executar políticas adequadas que se encaixem na vida
de uma nação independente.
Esse resultado é o que vemos no ambiente político que nos cerca.
Da Europa para os e u a , a construção protestante que trouxe ao Oci­
dente sua força extraordinária e a sua vitalidade foi descartada por
pessoas afáveis e instruídas. Os que pedem por uma restauração da
instituição do Estado nacional não são mais reconhecidos como pro­
ponentes daquilo que foi o fundamento de uma ordem política sob a
qual as nossas liberdades foram construídas. Ao contrário, qualquer

58
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

um que faça essa proposta é taxado como um defensor de um retorno


aos tempos de barbárie, para aquele terrível mundo antigo que deveria
ter morrido em 1945.

6. Liberalismo como forma de imperialismo


Meus amigos liberais e seus colegas parecem não compreender que
o avanço da construção liberal é uma forma de imperialismo. Mas
qualquer um que não esteja ainda imerso na nova ordem, consegue
notar como as semelhanças são fáceis de se identificar. Assim como os
faraós e os reis da Babilônia, os imperadores romanos e a Igreja Cató­
lica Apostólica Romana até a era moderna, e assim como os marxistas
do século anterior, os liberais também possuem suas grandes teorias
sobre como trariam a paz e a prosperidade econômica para o mundo
derrubando as fronteiras e unindo a humanidade sob suas próprias
e respectivas ordens universais. Empolgados com a clareza e o rigor
intelectual dessa abordagem, desprezam o trabalhoso processo de
consultar as inúmeras nações que, eles acreditam, deveriam adotar sua
visão liberal do que é certo. E exatamente como outros imperialistas,
são rápidos em mostrar repulsa, desprezo e raiva quando as suas res­
pectivas visões de paz e prosperidade encontram resistência por parte
daqueles que seriam, com toda certeza, beneficiados se simplesmente
se submetessem.69
O liberalismo imperialista não é, obviamente, monolítico. Quando
o presidente George H. W. Bush declarou a chegada de uma “Nova
Ordem Mundial” após a morte do bloco comunista, ele tinha em mente
um mundo em que os e u a forneceríam o poderio militar necessário
para impor um Estado de Direito oriundo do Conselho de Segurança
da o n u . 70 Os presidentes americanos subseqüentes rejeitaram esse

69 Um exame cuidadoso das semelhanças entre o liberalismo e o marxismo, sem perder de


vista as distinções morais entre eles, é apresentada por Ryszard Legutko, The Demott itt
Dentocracy, Nova York: Encontro, 2016. Cada vez mais relevantes são também os estudos
que examinam as conexões históricas entre o liberalismo e o imperialismo, incluindo Uday
Singh Mehta, Liberalism and Ernpire, Chicago: Universidade de Chicago Press, 1999; Jennifer
Pitts, A Turn to Empire, Princeton, n j : Princeton University Press, 2006.
70 Bush descreveu a Nova Ordem Mundial em termos fantásticos: “Há cem gerações se vem
buscando esse caminho ilusório para a paz [...]. Hoje o mundo novo está lutando para nascei;
um mundo bem diferente do que conhecemos [...] um mundo onde o Estado de Direito
[rule of law] suplanta a lei da selva [rule of the jungle]” . George H. W. Bush, “Address to

59
YORAM HAZONY

esquema, optando por uma ordem mundial baseada no unilateralismo


das ações americanas, consultando aliados europeus e alguns outros.
Europeus, por seu turno, preferiam falar de “ transnacionalismo” , uma
visão que aborda o poder das nações independentes, incluindo os e u a ,
como apenas subordinado a decisões de órgãos internacionais, admi­
nistrativos e judiciais, com sede na Europa.71 Tais desentendimentos
sobre como o império liberal-internacional deve ser governado são
frequentemente descritos como novidades históricas, mas raramente
isso corresponde à realidade. Na maioria das vezes, são simplesmente
a reencarnação dos surrados debates medievais entre o Papa e o Impe­
rador a respeito de como o império internacional católico deveria ser
governado — com o papel do imperador retomado por aqueles (boa
parte, americanos) que insistem na concentração da autoridade em
Washington, o centro político e militar; e o papel do papado assumido
por aqueles (maioria europeus e alguns americanos, todos oriundos do
universo acadêmico) que estariam investidos de autoridade máxima e
inquestionável como depositários da mais alta dignidade na interpre­
tação das leis universais, leia-se, as instituições judiciais das Nações
Unidas e da União Européia.
Esses argumentos, criados em meio ao campo do liberal-imperialismo,
levantam questões urgentes para a construção de um Ocidente liberal.
Mas, para aqueles que, como nós, permanecemos não convencidos
da conveniência em manter um tal liberal-imperialismo, o mais rele­
vante é aquilo que as partes divergentes têm em comum. Todos nessa
disputa que se propõem a justificar uma construção liberal endossam
uma única visão imperialista: expressam o desejo de ver um mundo
onde os princípios liberais são codificados na forma de leis universais
e impostos sobre as nações, se necessário, pela força. Isto, concordam
eles, é o que nos trará paz universal e prosperidade. Ludwig von Mises
fala por todas as distintas facções quando escreve:

a Joint Session of Congress on the Persian Gulf Crisis and the Federal Budget Déficit” , 11
de setembro de 1990.
71 Jürgen Habermas descreve esse “transnacionalismo” como “ uma política global interna sem
um governo mundial [...] dentro da estrutura de uma organização mundial com o poder
de impor paz e implementar os direitos humanos” . Habermas, The Divided West, Malden,
m a : Polity Press, 2006, p. 136. V. também Rabkin, Law Without Nationsf, pp. 41-43.

60
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

[...] a maior questão ideológica que a humanidade jamais enfrentou [...] é


a de [...] sermos ou não bem-sucedidos em estabelece^ por todo o mundo,
um certo modo de pensar [...] (o qual) não pode ser nada menos do que a
aceitação incondicional e irrestrita do liberalismo. O pensamento liberal
deve permear todas as nações, os princípios liberais devem penetrar em
todas as instituições políticas, se quisermos criar os pré-requisitos da paz
e eliminar as causas de guerra.72

Embora Mises imponha em termos duros um encargo de “ irrestrita


e incondicional aceitação do liberalismo” para todas as nações e todas
as instituições políticas do mundo, a aspiração que ele expressa repre­
senta o que é hoje um consenso absoluto do ponto de vista liberal.
Dogmático e utopista, assume que as verdades absolutas em relação ao
destino da humanidade foram descobertas há muito tempo e a única
coisa que resta é a forma de impô-las aos seus opositores.
Não quero dizer com isso, obviamente, que todo liberal é dogmático
e utopista desta forma. Especialmente na Grã-Bretanha e nos e u a , a
abordagem de muitos liberais ainda vão temperadas por outros fato­
res: pela doutrina bíblica, por um reconhecimento de uma variedade
de sociedades, pela experiência que torna todos nós mais humildes
ao assumir a crença em Deus, por um empirismo histórico e por um
moderado ceticismo que os países anglo-falantes chamam de “ senso
comum” . Todas essas coisas ainda são palpáveis entre boa parte dos
liberais anglo-americanos. Mas como os oponentes do liberalismo vem
sendo vencidos um a um, e o império liberal-universal parece ter atingido
o limite de seu alcance, esses fatores mitigantes foram postos de lado,
deixando um imperialismo dogmático tornar-se a voz dominante no
campo liberal — uma voz que rapidamente assumiu as piores caracte­
rísticas do império católico medieval sob o qual foi involuntariamente
modelada, incluindo uma doutrina da infalibilidade, combinadas com
elementos inquisitórios e de indexação (Inquisição e Index).73
72 Ludwig von Mises, Liberalism in the Classical Tradition, p. 150.
73 João Carlos Espada observa que “ a democracia na Europa é principalmente percebida como
a expressão de um projeto racionalista dogmático” , destacado de sua associação anglo-
-americana com empirismo, tradicionalísmo e senso comum. Por esta razão, ele escreve que
a educação na Europa ignora, em grande parte, a tradição inglesa e americana, vendo-as
como incompletas manifestações do governo liberal-democrata “cuja primeira forja ocorrería
apenas na Revolução Francesa a partir de 1789” . João Carlos Espada, The Anglo-American
Tradition o f Liberty, Nova York: Routledge, 2016, pp. 10, 109, 187-188. N o entanto, a
perspectiva européia foi adotada também na Grã-Bretanha e nos eua .

61
YORAM HAZONY

Eu gostaria de me concentrar por um momento neste último ponto.


Um dos mais surpreendentes aspectos da vida pública contemporânea
nos e u a e na Europa é a forma como as nações ocidentais estão, hoje
em dia, atormentadas por campanhas públicas de assassinatos de
reputação e de caça às bruxas, cujo propósito é estigmatizar e tornar
ilegítima uma ou outra pessoa, ou ainda um grupo de pessoas, opi­
niões ou afirmações políticas que são identificadas como capazes de
estruturar qualquer tipo de resistência relevante a essa doutrina liberal.
Muito do que se tem escrito sobre essas campanhas concentrou-se na
deterioração da liberdade de opinião nas universidades, onde censuras
oficiais e oficiosas das opiniões de professores — incluindo seus pon­
tos de vista sobre o islamismo, homossexualidade, imigração e uma
enorme miríade de outros temas — tornou-se lugar-comum. Mas as
universidades estão longe de ser o lugar central da fúria contra visões
então tidas como inapropriadas. Boa parte da esfera pública é, hoje
em dia, regularmente visitada pelos mesmos tipos de campanha de
vilanização que foram até recentemente associadas às universidades.
De fato, como o escopo da legítima discordância foi sendo progressi­
vamente diminuído, e as penas pelo dissenso cresceram e se tornaram
muito mais onerosas, as democracias ocidentais estão rapidamente se
tornando um enorme campus universitário.74
Essas demandas crescentemente insistentes de conformidade com
um único universo padronizado, seja do ponto de vista do discurso e
da narrativa ou da religião, são um previsível resultado da transição
na qual o Ocidente se afastou da sua construção protestante e do seu
princípio fundamental de nacionalismo independente e de autodeter­
minação. Este princípio, instruiu sobre uma diversidade de pontos de
vista constitucionais e religiosos dentro da ordem dos Estados nacio­
nais, o que implicou na tolerância de pontos de vista profundamente
divergentes: católicos toleraram a existência de regimes protestantes,
monarquistas toleraram regimes republicanos, e governantes preocu­
pados com a regulação rigorosa dos temas tiveram que tolerar regimes
que sustentavam liberdades mais extensas — também em cada caso
o inverso era verdadeiro. Essa concessão formal de legitimidade para

74 V. Parte m.

62
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

certa diversidade política e religiosa entre as nações tornou-se base


para a tolerância de comunidades dissidentes dentro do Estado. Certa­
mente, nem todo indivíduo sentia-se confortável de viver em cada país.
Mas havia ainda a possibilidade de negociar situações especiais para
acomodar essas comunidades dissidentes, desde que elas estivessem
dispostas a apoiar o Estado e abster-se de buscar uma revisão radical
dos costumes nacionais. E se alguém estivesse disposto a militar por tais
revisões, havia sempre a opção de deslocar-se para um Estado vizinho
onde tais pontos de vista seriam aceitos ou até mesmo abraçados.75
Sob uma ordem política universal, ao contrário, em que um único
padrão do que seria considerado certo entra em vigência em todos os
lugares, a tolerância por uma abordagem política e religiosa diversa
necessariamente declina. As elites ocidentais, cuja visão vem sendo
agressivamente homogeneizada em conformidade com uma nova
construção liberal, vêm também encontrando dificuldades enormes
para reconhecer a necessidade de certa tolerância em face de aborda­
gens divergentes, como aquela que defende o princípio nacionalista da
autodeterminação dos povos como auto-evidente em algum momento
da história. Tolerância, assim como o nacionalismo, tem se tornado
uma relíquia de uma era muito remota.
As calúnias e denúncias despejadas sobre o público inglês e sobre
suas lideranças eleitas no alvorecer da determinação britânica em bus­
car sua independência da União Européia são inquestionavelmente um
aviso para todo o Ocidente. Do ponto de vista da construção liberal,
a unificação européia não é uma opção política legítima entre outras,
é a única opção legítima à qual uma pessoa decente tem o dever de
subscrever. A ilegitimidade moral do voto britânico pela independên­
cia foi o assunto incessante entre as figuras da mídia e da política que
censuravam o voto: alegou-se que apenas os idosos apoiaram a saída
da União Européia, pressionando assim os jovens; ou que os ignorantes
apoiaram-na, diluindo dessa forma o senso de que o voto contrário vinha
daqueles que realmente sabiam das coisas melhor do que os demais; ou
que os votantes só queriam fazer um voto de protesto e não queriam
de fato deixar a Europa, e assim por diante. Esses pronunciamentos
75 Sobre o pluralismo da primeira ordem européia moderna, v. Kissinger, World Order, p. 35
[Ordem mundial, p. 12].

63
YORAM HAZONY

raivosos foram então seguidos por demandas de que a preferência do


público inglês fosse repelida — ou por um segundo referendo, ou por
uma lei baixada pelo Parlamento, ou por negociações a portas fecha­
das com os europeus. Nenhuma vingou, de modo que a única opção
legítima deve prevalecer.
O alarme e a trepidação com que as elites européias e americanas
responderam às perspectivas de uma Grã-Bretanha independente reve­
laram algo que estava obscurecido por muito tempo. A simples verdade
de que a construção liberal emergente é incapaz de respeitar, e muito
menos celebrar, o afastamento das nações em sua busca de afirmar-se
no direito de ter as suas próprias leis, tradições e políticas. Qualquer
dissenso nesse sentido é tomado como vulgar e fruto da ignorância,
senão uma evidência de um modo fascista de pensar.
Nem mesmo a Grã-Bretanha chega a ser a única nação que sentiu
o estalar desse chicote. Os e u a , igualmente, não estão imunes: a sua
negativa de permitir que o Tribunal Penal Internacional julgue seus
soldados, sua relutância em assinar tratados internacionais desenhados
para proteger o meio ambiente, a sua guerra contra o Iraque — tudo
isso foi encarado com semelhante indignação tanto dentro quanto fora
dos e u a . Esses ataques vêm há muito tempo sendo direcionados para
Israel, seja por bombardear as instalações nucleares do Iraque ou por
conta da construção de projetos de moradia na Jerusalém Oriental.
Países do leste europeu também foram atingidos pela indisposição em
aceitar imigrantes do Oriente Médio. Além disso, campanhas similares
de deslegitimação, tanto na Europa quanto nos e u a , se dirigiram contra
as práticas do cristianismo e do judaísmo, religiões cuja velha ordem
política se assenta na Bíblia, e cujo exercício vinha sendo geralmente
protegido ou ao menos tolerado por governos ocidentais. Chegamos
a ver inclusive tentativas, especialmente na Europa, de banir certas
práticas judaicas, como a circuncisão e o abate kosher, em nome de
doutrinas liberais de direitos universais, ou forçando certos ensina­
mentos sobre sexualidade e organização familiar sobre judeus e cris­
tãos no ambiente de trabalho e nas escolas. Não é necessário nenhum
discernimento especial para enxergar que isso é só o começo, e que
os ensinamentos e as práticas das formas tradicionais de judaísmo e

64
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

cristianismo se tornarão cada vez mais inadmissíveis com os avanços


das construções liberais.
Há um senso hoje disseminado por todo o mundo ocidental de
que as crenças de uma pessoa em temas controversos não deverão
mais ser discutidas de maneira aberta. Estamos agora cientes de que
devemos pensar uma segunda e uma terceira vez antes de agir ou falar
como o faríamos quando a ordem política protestante estava vigente.
A diversidade genuína nos aspectos constitucionais e religiosos das
nações ocidentais persiste apenas sob crescentes custos para aqueles
que insistem em defender a própria liberdade.

7. Alternativas nacionalistas ao liberalismo


A expulsão de Margaret Thatcher de seu cargo de Primeira Ministra
da Grã-Bretanha em 1990 marcou o início de aproximadamente
três décadas de consenso político liberal, um período durante o qual
transitaram figuras políticas e intelectuais que adquiriram o hábito de
falar como se o triunfo de uma nova ordem liberal fosse algo inevi­
tável. N a Europa, o esforço liderado pelos alemães para subordinar
à União Européia as nações independentes do continente seguiu em
passos acelerados. Nos e u a , o esforço para estabelecer uma “ ordem
mundial” americana com a Europa, na forma de um protetorado
americano, esteve na ordem do dia. Em ambos os lados do Atlântico,
a desagradável história do passado imperialista europeu e americano
impossibilitou a maioria de falar abertamente de império. O que vinha
sendo repetido à exaustão por gestores eleitos, diplomatas, homens de
negócio e personalidades da mídia — e também em uma profusão de
panfletos políticos utópicos, de Francis Fukuyama (O fim da história e
o último homem, de 1992)767a Thomas Friedman (O Lexus e a Oliveira:
entendendo a globalização, 1999),77 passando por Shimon Peres (O
novo Oriente Médio, 1995)78— era que a “comunidade internacional”
estava sendo conduzida sob a “ governança global” . O mundo estaria
sob um regime jurídico e sistema econômico únicos, governado pelos

76 Publicado no Brasil no mesmo ano pela Rocco. — nt


77 Publicadono Brasil no mesmo ano pela Objetiva. — nt
78 Publicado no Brasil no mesmo ano pela Relume. — nt

65
YORAM HAZONY

americanos e europeus de acordo com doutrinas políticas liberais. E


quando uma nação “quebrava as regras” dessa nova ordem mundial,
como foi o caso da Sérvia, Iraque e Líbia, as f f a a dos e u a com seus
contingentes aliados da Comunidade Européia apressavam-se para
reestabelecer essas regras.79
Um regime mundial de paz e prosperidade, um império liberal: esta
foi a política de consenso de todos os principais partidos políticos na
América e na Europa por uma geração inteira.
Porém, com o voto inglês pela independência e o renascimento do
nacionalismo nos EUA, o triunfo desta ordem liberal começou a ficar
menos inevitável. A construção protestante, deixada à míngua pelas elites
políticas e intelectuais de ambos os partidos nos eua , o Republicano e
o Democrata, e ambos os partidos no Reino Unido, o Trabalhista e o
Conservador, provou que ainda possuía um fio de vida.
E o que os oponentes da construção liberal desejam ver acontecer?
A construção protestante do Ocidente foi fundada sobre dois princípios
fundamentais, e assim pode, em teoria, opor-se à nova ordem liberal
de maneiras muito distintas — quer pela tentativa de restaurar um
ou outro desses princípios, quer esforçando-se para manter ambos.
Desta forma há hoje três diferentes nichos antiliberais, cada um deles
facilmente discernível no cenário político das nações ocidentais:
O primeiro, onde há o que se pode chamar de oposição neocatólica
à construção liberal. Não se trata de uma visão esposada por todos os
católicos, nem tampouco os católicos seriam os únicos a serem atraídos
por ela. Pelo contrário, é uma visão propugnada por indivíduos que estão
inclinados a abraçar uma versão atualizada da teoria política católica

79 Sobre a política global americana pós-Guerra Fria, v. Bacevich, American Empire. Bacevich
conclui: “Ter influência não apenas sobre uma, mas sobre inúmeras regiões de importância
geopolítica fundamental, desdenhando da legitimidade de princípios econômicos e políticos
que não sejam os seus, declarando que uma ordem existente é sacrossanta, afirmando
inquestionável supremacia militar com uma força implantada globalmente, configurada
não para autodefesa, mas para coerção: estas são as ações de uma nação engajada em um
governo imperial [...]. Gostem ou não, a América hoje é Roma” (p. 244). Tom Friedman
salientou: “ a ordem global emergente carece de uma autoridade executiva [enforcer], Esse é o
novo fardo que pesa sobre a América” . Thomas Friedman, “A Manifesto for a Fast World” ,
Nova York Times Magazine, 28 de março de 1999. V. também de Thomas Friedman, O
Lexus e a Oliveira, Nova York: Picador, 1999, pp. 465-468; Francis Fukuyama, O fim da
história e o último homem-, Shimon Peres, The New Middle East, Nova York: Henry Holt,
1995, além de muitos outros trabalhos desse tipo.

66
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

medieval. Essa teoria está focada em manter as versões bíblicas do


mínimo moral (freqüentemente identificadas com a teoria universal da
razão, ao invés da leitura direta das Escrituras) como a pedra-de-toque
para a legitimação do Estado. Ao mesmo tempo, uma teoria política
neocatólica é simpática às vantagens de um regime internacional —
uma espécie de nova cristandade, poderiamos dizer — para a aplicação
dos direitos humanos e liberdades em todo o mundo. Na prática, os
neocatólicos têm sido politicamente sinceros na defesa de pontos de
vista religiosos tradicionais sobre casamento e família, opondo-se à
legalização do suicídio assistido e do aborto, e também à remoção de
símbolos judaicos e cristãos (tais como as exibições públicas do Mosai­
co dos Dez Mandamentos) de gabinetes governamentais. Mas nota-se
uma ambivalência sobre a ordem dos Estados nacionais, tendendo-se
a apoiar o crescimento de um regime jurídico internacional coercitivo
que irá sobrepor-se aos poderes dos governos nacionais.
O segundo envolve uma visão neonacionalista (ou estadista), que
segue o exemplo de Rousseau e do nacionalismo revolucionário francês
na destruição das concepções tradicionais de nação, sua constituição e
sua religião, buscando, em vez disso, estabelecer a lealdade do indivíduo
ao Estado como o fim mais nobre de um ser humano. Esse nacionalis­
mo é conhecido por sua tendência ao absolutismo e ao ateísmo, bem
como pela instabilidade crônica que historicamente vem produzindo
na França. Movimentos neonacionalistas podem ser considerados con­
servadores nas seguintes objeções: ao desmantelamento dos Estados
nacionais independentes promovido pela União Européia; à transferên­
cia dos poderes dos governos eleitos para as Nações Unidas e outros
organismos internacionais; à imigração irrestrita, e à força jurídica
coercitiva do direito internacional. No entanto, são freqüentemente
distantes da tradição religiosa nacional, ignorantes das fontes bíblicas
de seu próprio nacionalismo, e desinteressados pelo papel decisivo que
os padrões morais bíblicos desempenhavam ao conter os excessos dos
indivíduos e também do Estado.
Nenhuma dessas posições me parece apresentar uma alternativa plau­
sível ao liberalismo. Neocatólicos continuarão a lutar na retaguarda das
chamadas guerras culturais contra as elites liberais em questões como o
aborto ou a definição de casamento. Mas, ao mesmo tempo, serão vistos

67
YORAM HAZONY

oferecendo apoio ativo ou passivo ao imperialismo liberal que está de-


senraizando a capacidade das nações de manter sua independência em
questões constitucionais e religiosas. O neonacionalismo, por outro lado,
pode se mostrar eficaz em tirar certas nações dessa ordem liberal. Mas,
por causa de sua fascinação com o Estado e sua distância das tradições
religiosas e morais da nação, pode também levar ao estabelecimento de
governos autoritários, reforçando assim a alegação (promovida tanto
pelos pontos de vista liberais quanto autoritários) de que a única alter­
nativa ao liberalismo é o autoritarismo.
A terceira alternativa à ordem liberal é o que pode ser denominado
como uma perspectiva conservadora (ou tradicionalista), que busca
estabelecer e defender uma ordem internacional de Estados nacionais
baseada nos dois princípios da construção protestante: independência
nacional e o mínimo moral bíblico para governos legítimos. Uso aqui
o termo “conservador” num sentido amplo, referindo-se a qualquer
movimento político cujo objetivo é preservar os fundamentos da
construção protestante, reconhecendo-a como a mais livre, e em mui­
tos aspectos a mais bem-sucedida ordem internacional que já existiu.
Isso pode incluir diversos tipos de movimentos em diferentes nações,
baseados em uma variedade de tradições constitucionais e religiosas
(incluindo aquelas que não possuam uma herança bíblica e que possam
estar, portanto, fundadas em um diferente sistema moral tradicional).
Dentre essas, a mais importante é, sem dúvida, a tradição conservadora
anglo-americana, descendente de um pensamento pertencente a indiví­
duos como Johh Fortescue, John Selden e Edmund Burke. Trata-se de
uma tradição política nacionalista que absorve os princípios da limi­
tação do poder executivo, das liberdades individuais, de uma religião
pública baseada na Bíblia, e um empirismo histórico que tantas vezes
serviu para moderar a vida política na Grã-Bretanha e nos EUA em
comparação com outros países. E essa vertente do conservadorismo
anglo-americano, enraizada na mais ampla herança política nacionalista,
que provou ser mais produtiva a um governo consistente, e trabalhou
tão bem para incentivar o florescimento dos eua , da Grã-Bretanha e
de outras nações de língua inglesa.80 É nesta tradição, atualizada de

80 Sobre a escola conservadora (ou “tradicionalista” ) na teoria política inglesa, v. Quinton,


The Politics of Imperfection; j . g .a . Pocock, The Ancient Constitution and the Feudal Law,

68
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

acordo com as necessidades de nossos tempos, que acredito que esta­


distas e pensadores políticos podem encontrar a alternativa mais útil
e salutar a um império liberal.

Na aparência, a Grã-Bretanha e os e u a às vezes dão impressão de


terem se tornado totalmente desatrelados de sua herança bíblica. Mas
estas ainda são nações que foram formadas pela mensagem bíblica de
liberdade da nação em face do império, pela limitação do poder dos
reis e pelos preceitos fundamentais que estabelecem a base para uma
sociedade justa e decente.81 Eventos demonstraram o quão poderosa
a construção protestante permanece em ambos os países, mesmo de­
pois de décadas de concessões à nova ordem liberal, que parecia estar
prestes a substituí-la. Esses eventos oferecem uma oportunidade de
repensar, a partir de um ponto de vista crítico e vantajoso em relação
ao que tem sido possível até agora, sobre o compromisso assumido com
o liberalismo universal por elites na Europa e nos e u a . Eles também
nos deram a oportunidade de nos perguntar se a liberdade bíblica a
nós legada pelos nossos antepassados deixou de ser a melhor escolha.
Na primeira parte deste livro, ofereci um quadro histórico para a
compreensão do confronto que se desenrola entre as forças do naciona­
lismo e do imperialismo que disputam a adesão das nações ocidentais
neste nosso tempo. Agora me volto para um debate geral a favor do
Estado nacional independente, defendendo-o como o melhor princípio
de ordenamento político disponível para a humanidade.

Cambridge, Reino Unido: Cambridge University Press, 1987 ed., esp. 30-55, 148-181;
Harold J. Berman, “The origins of historical jurisprudence: Coke, Selden, Hale” , Yale Law
Journal 103 (maio de 1994), pp. 1652-1738; Colbourn, The Lamp o f Experience; Kirk,
Rights and Duties; Ethan Alexander-Davey, “ Restoring Lost Liberty: François Hotman
and the Nationalist Origins of Constitutional Self-Government” , Constitutional Studies
1 (2016), pp. 37-66; Haivry, “John Selden and the Western Political Tradition” ; Haivry e
Hazony, “ What is Conservatism?” .
S1 Muito tempo depois que o iluminismo tornou brega citar passagens da Bíblia entre os
teóricos da política, as idéias bíblicas continuam sendo passadas de uma geração para outra,
velando apenas as citações. Como Michael Lind escreveu sobre os e u a de hoje em dia, “ o
calvinismo e a common law juntos produziram o que talvez seja a cultura nacional mais
biblicista do mundo” . Michael Lind, The Next American Nation, Nova York: Free Press,
1996, p. 272.

69
PARTE II

Defesa do Estado nacional

8. Duas espécies de filosofia política


filosofia política grega concentra-se especialmente na questão

A do melhor regime ou da melhor forma de governo, enquanto


o pensamento político liberal moderno preocupa-se com a
forma pela qual o governo deve ser estruturado. Esse tipo de busca
pressupõe que os seres humanos se organizarão como Estado — isto
é, uma comunidade suficientemente coesa que pode ser, e na verdade é,
governada por um único governo permanente e independente de outros
governos. Em seguida, pergunta-se que forma o governo desse Estado
deveria assumir: o Estado deveria ser uma monarquia, uma república
aristocrática ou uma democracia? Deve a autoridade do Estado se con­
centrar em um ramo do governo ou ter o seu poder distribuído entre
vários órgãos? Deve o Estado ser restringido por uma Constituição
escrita? E quem deve determinar quando essa Constituição foi violada?
O Estado deve garantir direitos básicos e liberdades mínimas para o
indivíduo? E, em caso afirmativo, quais são eles?
Estas e outras questões semelhantes pressupõem a existência de um
Estado independente e coeso. Mas a filosofia política também pode
fazer outras perguntas mais fundamentais — perguntas que reconhecem

71
YORAM HAZONY

que os seres humanos nem sempre viveram em Estados independentes


e uniformes, e que não tomam a existência do Estado como um pres­
suposto. Tenho em mente dúvidas como estas: quais condições tornam
uma comunidade suficientemente coesa para ser ordenada na forma
de um Estado? O Estado se forma quando indivíduos independentes
consentem em viver sob um governo, ou a unificação de comunidades
coesas já existia previamente? O Estado é mesmo a melhor institui­
ção para organizar a vida humana, ou existiríam outras formas de
organização política, tais como os clãs ou as ordens feudais, capazes
de atingir melhores resultados? E se o Estado for a melhor estrutura
de ordem política, deveria a autoridade estar nas mãos de um Estado
universal, ou difusa entre vários Estados competidores?
Quando essas questões são levadas em conta, vemos que a filosofia
política é naturalmente dividida em dois grandes tópicos, um mais
importante que o outro. Um deles é a filosofia do governo, que pro­
cura determinar a melhor forma de governo, dada a existência de um
Estado com um alto grau de unidade interna e independência. Porém,
precede a esta investigação a filosofia da ordem política, que procura
entender as causas da ordem política, e com base neste entendimento,
procura determinar quais seriam as diferentes formas de ordem política
disponíveis e qual delas seria a melhor.
Indivíduos que confiam na coesão e independência do Estado em que
vivem são naturalmente atraídos pela filosofia do governo. Afinal, se o
Estado é talhado para ser permanente, qual estudante de política não
iria querer trabalhar para determinar o tipo de governo que deveria ter?
Mas a filosofia do governo pode ser enganosa e até perniciosa, se não
for precedida por um estudo cuidadoso das causas da ordem política.
Eis uma lei de ouro que rege a razão humana: tudo aquilo que é assu­
mido sem discussão se torna auto-evidente, seja verdadeiro ou falso.
É o que ocorre também na filosofia do governo. Como essa disciplina
parte da premissa de que um Estado coeso e independente existe, as
mentes daqueles que estudam o fenômeno terminam por ser moldadas
para sempre supor que eles vêem Estados coesos e independentes, não
apenas em teoria, mas na realidade. Quando olham para o exterior em
outras regiões do mundo, tendem a ver Estados coesos e independentes

72
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

quando nada há por lá, ou acreditam que tais Estados podem ser trazi­
dos à existência mesmo quando tal possibilidade é inviável. E quando
eles consideram o Estado em que vivem, não podem lembrar que todos
os Estados estão perpetuamente à beira de perder sua coesão e inde­
pendência, e assim, tomam gratuitamente a unidade e a independência
de seu próprio Estado como premissa universal. Como conseqüência,
tendem a desprezar os esforços necessários para manter a coesão e a
independência do Estado, defendendo, com a melhor disposição, políticas
que trabalhem diretamente para destruir sua própria coesão e diluir sua
independência, sempre acreditando que o Estado pode sustentar tudo
isso e ainda assim permanecer sólido como era antes.
A filosofia do governo é útil em sua devida e própria esfera. Mas,
para ser eficaz, deve ser construída a partir do entendimento das
causas subjacentes à formação, coesão e independência do Estado,
bem como às de sua destruição. Este é o tipo de investigação política
que encontramos nas primeiras grandes obras da tradição política
ocidental — a saber, aquelas que foram extraídas da Bíblia Hebraica.
É aqui que encontramos uma conscientização sobre a possibilidade
de os seres humanos viverem fora do Estado, em uma ordem estabe­
lecida sobre residências, clãs e tribos, e sobre a ameaça que o Estado
representa a tal ordem. É na Bíblia, também, onde nos são expostas as
ambigüidades que estão na base da fundação do Estado, e onde somos
ensinados a reconhecer a fragilidade de todos esses Estados, que estão
a todo momento ascendendo ou caindo, rumo a uma consolidação ou
dissolução. É neste ponto que somos ensinados a pensar o modo como
os governos justos contribuem para a consolidação da ordem política,
ainda que políticas tolas direcionem para a dissolução dessa mesma
ordem, pavimentando o caminho rumo à anarquia e à submissão ao
estrangeiro. É aqui que somos expostos pela primeira vez à questão
acerca da liberdade humana ser ou não assistida, ou dificultada, pelo
Estado, e se a extensão do Estado imperialista implica, necessariamente,
na escravização de toda humanidade.
O que se segue é um estudo sobre os fundamentos da filosofia
política. Em vez de assumir que homens razoáveis necessariamente
formarão um Estado coeso e independente, considerarei as causas

73
YORAM HAZONY

subjacentes da ordem política e examinarei as formas em que essas


causas moldam as alternativas que nos estão disponíveis. Com base
neste exame, vou sugerir que a melhor forma de ordem política é
aquela baseada nos Estados nacionais independentes. Particularmente,
argüirei que tal ordem é superior em face das outras alternativas mais
conhecidas por nós: a ordem de tribos e clãs, que precede o Estado,
e a ordem imperial.

9. As fundações da ordem política


Algumas coisas podem ser alcançadas pela ação pessoal de um indivíduo.
Mas a maioria dos objetivos ou fins exige que atuemos em sintonia
com outros. Contudo, nossos vizinhos têm objetivos e motivações
próprios, e revelam muitas vezes indiferença às metas que estabelece­
mos, quando a elas não são hostis. Como, então, podemos influenciar
os outros para que cumpram tais metas que entendemos necessárias
ou desejáveis? Eis o problema fundamental do indivíduo vivendo em
uma comunidade que pertence a outros. A necessidade de encontrar
respostas para esta questão dá origem à política, que é a disciplina ou
ofício de influenciar os outros para que atuem a fim de atingir as metas
que alguém vê como necessárias ou desejáveis.
Uma resposta a este problema fundamental passa pelo estabele­
cimento de corpos permanentes ou coletividades de indivíduos — a
família, o clã, a tribo ou a nação, um Estado ou um exército, uma
ordem religiosa ou uma empresa. Estas e outras instituições são co­
letividades humanas que mantêm sua existência ao longo do tempo
estabelecendo rapidamente certas cláusulas de finalidade e respectivas
formas, tais como um nome em particular pelo qual são conhecidas ou
procedimentos característicos em que decisões são tomadas, fazendo-
-as um corpo único. Cada instituição ensina, convence ou coage seus
membros a agir de acordo com estes propósitos e procedimentos fixos,
respeitando as regras gerais e protocolos, para que possam atuar de
maneira confiável como um corpo único, sem a necessidade de serem
persuadidos ou submetidos a uma coação jurídica novamente.
Mas o que motiva os indivíduos, embora dotados de objetivos pes­
soais e motivações únicas, para reunirem esforços em uma instituição,

74
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

agindo de maneira confiável como corpo único, ao lado de outros


membros e de acordo com uma finalidade e formas fixas institucionais?
Três possibilidades são bem conhecidas: a primeira, os indivíduos
aderirão se ameaçados com represálias; a segunda, eles vão se juntar
caso se lhes ofereçam pagamentos ou outras vantagens; finalmente, eles
vão se unir se vislumbrarem a coincidência de interesses e objetivos
da instituição com os seus próprios. Desta lista, os tipos envolvidos
na segunda alternativa produzem as instituições mais fracas, pois
aqueles que se unem por alguma luta ou esforço árduo em troca ape­
nas de uma quantia em dinheiro estão constantemente calculando o
custo-benefício dos riscos, na esperança de que possam desertar para
uma causa diferente em que os pagamentos sejam melhores e os riscos
menores. As instituições tendem a ser apenas um pouco mais estáveis
quando os indivíduos são recrutados por intimidação — seja direta
ou envolvendo entes queridos —, uma vez que não podem ser dignos
de confiança toda vez que a ameaça é amenizada, de modo que estão
sempre à beira de um motim, até que ele aconteça de fato.
Por essas e outras razões, instituições fortes são estabelecidas onde os
indivíduos envolvidos identificam os seus próprios interesses e objetivos
com os da instituição. Pense, por exemplo, em um soldado que pega
um rifle na esperança de estabelecer a independência do seu povo após
uma longa história de perseguição. Tais indivíduos não precisam ser
coagidos a lutar, nem mesmo ser recompensados financeiramente por
seus serviços. O fato de lutarem em benefício de seu povo é o suficiente
para que estejam dispostos a arriscar suas vidas por uma coletividade
como uma tribo ou uma nação, carregando um ardor em seus peitos
que os move para atos de bravura e auto-sacrifício que nenhuma inti­
midação ou promessa de pagamento poderia suscitar.
Muitas teorias políticas assumem que os eventos políticos são
motivados pela preocupação do indivíduo por sua própria vida e
propriedade. No entanto, qualquer pessoa que tenha testemunhado o
comportamento de indivíduos em tempo de guerra, ou sob condições de
conflito não-violento, como em uma campanha eleitoral, entende que
esta suposição é amplamente imprecisa. É verdade que algumas vezes
a motivação fica restrita ao âmbito da própria vida ou propriedade,

75
YORAM HAZONY

mas os indivíduos são também capazes de atingir os objetivos e inte­


resses de uma coletividade ou instituição à qual estão filiados, mesmo
quando tal ação será prejudicial para suas vidas e propriedades. De
fato, eventos políticos são freqüentemente determinados pelas ações
dos indivíduos cujas motivações são exatamente desse tipo.82
Uma teoria política desenhada para entender os seres humanos
como eles são na realidade, e não para nos contar estórias sobre
aventuras de alguma criatura fantástica inventada por filósofos, não
pode desprezar essa capacidade do indivíduo de reconhecer uma
convergência entre os objetivos de uma coletividade e os seus. Tão
espantosa e tão comum quanto o ar que respiramos, essa habilida­
de nos acompanha todo dia, toda hora. É algo básico para a nossa
natureza empírica, e não pode haver qualquer análise convincente
sobre como as instituições humanas mais fortes são erigidas sem a
consideração dessa capacidade humana central. Vamos então consi­
derar essa questão mais de perto.
Sabemos que o indivíduo humano é por natureza visceralmente pre­
ocupado em assegurar a integridade de si próprio. Por si próprio defino,
em primeiro lugar, o próprio corpo do indivíduo, que é protegido por
um desejo instintivo de lutar ou procurar imediatamente esquivar-se
quando ameaçado ou atacado. No entanto, esse instinto premente de
garantir a integridade de si próprio não é de forma alguma limitado
somente ao âmbito da proteção do próprio corpo. A mesma força que
o indivíduo exibe na proteção de seu próprio corpo também é evidente
nas ações que ele toma para defender sua reputação quando acusado
ou insultado. E aparece, também, no ímpeto demonstrado ao proteger
suas terras ou outras posses físicas que ele considera como suas. Na
verdade, o amor que ele evidentemente sente por sua esposa e crianças,
por seus pais e por seus irmãos e irmãs, e que o move para protegê-los
quando estão em perigo, é nada mais do que outro nome para esse
mesmo ímpeto de proteger a integridade de si mesmo — pois esses entes

82 Com freqüência, também se atua individualmente por diversos motivos. Por exemplo, é
comum os pais trabalharem para aumentar sua própria propriedade com vistas a beneficiar
seus filhos; e um soldado pode atuar sob o ímpeto de um desejo de aumentar sua própria
reputação, ao mesmo tempo em que serve ao seu país. Mas esse fato importante não afeta
o argumento que trago aqui: a motivação humana é na maior parte do tempo relacionada
com a ação que se empenha em nome de uma coletividade ou outra.

76
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

queridos foram envolvidos, à medida em que sua própria consciência


irá se preocupar, sob a marca desse “ eu” , sendo experimentados como
se eles fossem uma parte desse mesmo “eu” .
Esta capacidade de proteger e defender os outros como se fossem
uma parte do seu próprio “eu” não se limita aos parentes. Nós vemos
esse mesmo entusiasmo na defesa de um amigo ou de um concidadão,
outro membro de um mesmo pelotão ou ainda de uma gangue de rua,
ou, mais geralmente, de qualquer outro ser humano que, por qualquer
razão, venha a ser considerado pelo indivíduo como parte de si próprio.
Muitos outros exemplos poderíam ser mencionados. O que vemos
na amplitude das atividades humanas e suas respectivas instituições
é, portanto, a natureza flexível, a capacidade de extensão do “eu” do
indivíduo, que pode ser sempre ampliado, de modo que pessoas e coisas
que imagináramos externas e alheias a um ser humano sejam de fato
reconsideradas como parte desse indivíduo.83
Quando um indivíduo traz um outro para o âmbito de si mesmo,
chamamos esse vínculo de lealdade. Quando dois indivíduos tomam
um ao outro sob a proteção de seu eu estendido, o vínculo que é es­
tabelecido é uma lealdade mútua, que permite a esses dois indivíduos
considerarem um ao outro como parte de uma entidade única. A
existência de tais vínculos de lealdade mútua não significa que eles
deixam de ser pessoas inteiramente independentes. Estas ligações não
eliminam a competição, o insulto, os ciúmes e as querelas que sempre
se fazem presentes entre indivíduos leais uns aos outros. Um marido e
uma esposa podem se desentender freqüentemente, e irmãos ou irmãs
podem brigar e discutir, buscando assim modular a hierarquia das suas
relações. Enquanto ocorrem, esses conflitos são vivenciados como uma
luta entre as partes. Mas assim que um deles enfrenta a adversidade,
o outro sofre essa dificuldade como se fosse sua, e, diante dessa di­
ficuldade, as disputas são temporariamente suspensas ou totalmente
esquecidas. Além disso, uma vez que a dificuldade se vê superada, eles

83 Esta extensão do eu (self) é descrita por Hume, que diz que o sentimento de orgulho e
vergonha são com relação às coisas que são “partes de nós mesmos, ou algo proximamente
relacionado a nós” (A Treatise ofHuman Nature, 2.1.5), incluindo orgulho pela família e
pelo país (2.1.9). Ele então conclui que tal orgulho é de fato amor (2.2.1). Para uma teoria
semelhante à luz de pesquisas recentes em psicologia, v. Jonathan Haidt, The Righteous
Mind, Nova York: Vintage, 2012, pp. 256-318.

77
YORAM HAZONY

sentem imediata sensação de alívio e prazer, de congraçamento, cada


um reconhecendo a felicidade do outro como se fosse a sua própria.
Tais experiências, quando um indivíduo é reconhecido como parte desse
eu de outrem, na adversidade ou no triunfo, têm o poder de estabelecer
a marcante diferença entre interior e exterior, o interior envolvendo
dois indivíduos, cada um deles como parte de uma única identidade;
e o exterior, a partir do qual um desafio se apresenta diante deles e em
face do qual experimentam um sofrimento ou um sucesso comum.84
As instituições podem e freqüentemente contribuem para a coe­
são, concedendo uma compensação financeira aos seus membros ou
coagindo-os. Mas instituições duradouras e resilientes são aquelas cons­
truídas principalmente sob vínculos de lealdade mútua. A família é a
mais forte e mais resiliente de todas as pequenas instituições conhecidas
pela política humana, precisamente devido à existência de tais laços de
lealdade mútua entre cada membro da família e os demais. Esses laços
são parte de fundo biológico, parte de fundo afetivo. Uma mãe para
sempre sente que os filhos que ela carregou são parte de si mesma. Mas
relações familiares afetivas, como aquelas entre marido e esposa, ou
entre qualquer um deles e seus sogros, ou entre pais e um filho adotivo,
freqüentemente não são menos poderosas do que aquelas entre pais e
seus filhos de sangue. Laços particulares de lealdade familiar podem ser
laços de sangue ou laços afetivos, mas em ambos os casos possuem uma
solidez e resiliência inigualáveis, pois resultam da experiência de con­
fiança, diária e compartilhada, nos membros da família para assistência
e apoio, como partes do “eu” estendido no outro.
A família é a mais comum das pequenas instituições, mas existem
muitas outras. Uma unidade militar de pequena escala chamada pelo­
tão (ou divisão) é, por exemplo, a formação básica sob a qual todos
os exércitos são construídos. Seguindo o modelo de família, consiste
em cerca de dez homens comandados por um oficial subalterno ou um
sargento. Neste caso, a capacidade da unidade em atuar sob extremas
condições depende dos vínculos de lealdade mútua — vínculos que
se tornam especialmente fortes em uma unidade que seja pequena o

84 Sobre o significado moral de tais laços de lealdade mútua, v. David Miller, N ationality,
Oxford, uk: Oxford University Press, 1992, pp. 65-80; Bernard Yack, Nationality and the
Moral Psychology ofCommunity, Chicago: University of Chicago Press, 2012, pp. 169-183.

78
A VIRTUDE 0 0 NACIONALISMO

bastante para assegurar que cada um conheça o outro pessoalmente e


tenha vasta experiência em confiar nos demais para assistência e suporte
em períodos de treinamentos rigorosos e no combate.85
Pequenas instituições como a família ou a divisão militar, compostas
por indivíduos unidos por lealdades mútuas desenvolvidas em longos
anos de dificuldades e triunfos compartilhados, são o alicerce de toda a
ordem política. Está além das possibilidades de tais unidades pequenas
a construção de instituições políticas de larga-escala, de tão variadas
espécies como as que vemos hoje. É possível, por exemplo, reunir che­
fes de família em uma associação de lealdade mútua, unindo assim os
membros das várias famílias em um clã. E de fato, ao redor do mundo,
e em todas as épocas, os clãs foram estabelecidos para assegurar a
defesa coletiva, para estabelecer procedimentos para a justiça, e para
buscar um ritual comum de contato com seus deuses. Uma criança que
cresce em uma dessas famílias não necessariamente desenvolverá um
laço direto de lealdade mútua com a maior parte dos outros membros
do clã, que podem estar na casa das centenas ou milhares, e espalha­
dos ao longo de um território considerável. Mas seus pais, que têm
vínculos diretos de lealdade mútua com os demais chefes de família,
experimentam os sofrimentos e os triunfos do clã como se fossem
deles mesmos, e expressam essas sensações publicamente. E então a
criança, que experimenta o sofrimento e os triunfos de seus pais como
se estivessem acontecendo com ela, é capaz de sentir o sofrimento e os
triunfos do clã como se fossem também os dela. Portanto, até mesmo
uma criança muito jovem sentirá o mal e a vergonha quando outra
criança, membro de seu clã, for prejudicada ou envergonhada por
membros de um clã rival. Desta forma, o “eu” da criança é estendido
para absorver o clã inteiro e todos os seus membros, mesmo aqueles
que jamais conheceu. E por causa dessa extensão, essa criança estará
apta a relevar até mesmo amargas disputas com outros membros do
seu próprio clã, quando uma ameaça estrangeira for experimentada
como um desafio geral.86
85 Outras instituições de pequena escala, resilientes face a pressões devido a laços de lealdade
mútua entre os membros que se conhecem pessoalmente, incluem pequenas cidades ou vilas,
igrejas, facções políticas locais, sindicatos e até mesmo gangues de rua.
86 Esta transmissão de lealdade familiar, do clã, tribal ou nacional a crianças que crescem
em uma determinada família não acontece automaticamente ou de maneira uniforme.

79
YORAM HAZONY

Quando falamos da coesão das coletividades humanas, é isso que


temos em mente: os laços de lealdade mútua que mantêm firmemente
uma aliança entre muitos indivíduos, cada um dos quais comparti­
lhando do sofrimento e dos triunfos dos demais, inclusive daqueles
que nunca conheceram.87
Coesão deste tipo não se limita ao âmbito da família e clã. Chefes
de clãs podem se unir para formar uma tribo que pode ter dezenas de
milhares de membros. E chefes de tribos podem se unir para formar
uma nação cujos membros ultrapassam os milhões.88 Esse processo de
consolidação é familiar para nós, por exemplo, na história bíblica de
Israel, que enfatiza a questão de saber se as tribos israelitas se reunirão

A intensidade com que essas lealdades são sentidas depende da presença ou ausência de
circunstâncias de perigo para a família, clã, tribo ou nação em questão. Dependerá também
da intensidade com que os pais experimentam os desafios para sua família, tribo e nação
e da sensibilidade com que cada criança os sente. Algumas crianças resistem às lealdades
ensinadas por seus pais e são mais fortemente influenciadas por outros, como um professor
de colégio, um clérigo, ou um comandante militar que se torna, por assim dizer, um segundo
pai ou mãe para eles. E, claro, até mesmo lealdades infantis podem ser quebradas ou
enfraquecidas quando a confiança atribuída a elas é rompida.
87 Este uso do termo “ coesão” vem de John Stuart Mill, “Representative Government”, em
Utilitarianism, on Liberty, and Considerations on Representative Government, ed. Geraint
Williams, London: Everyman, 1993 (1861), p. 241 [Considerações sobre o governo
representativo, p. 89. — nt]; Henry Sidgwick, The Elements ofPolítics, n.p.: Elibron Classics,
2005 (1891), pp. 233,276. Como Sidgwick escreve: “ O que é realmente essencial [...] para
uma nação é [...] que as pessoas que a compõem tenham consciência do pertencimento de
um indivíduo em relação ao outro, de serem [os indivíduos] membros de um único corpo,
além e acima do fato de derivarem de uma situação passageira por estarem sob um mesmo
governo; de modo que, se o governo deles for destruído pela guerra ou por uma revolução,
eles ainda se manteriam firmemente juntos” (p. 202). Isso se refere ao mesmo fenômeno
que Mill também chama de “sentimento de companheirismo” (fellow-feeling; p. 281), que
aparece em Herder como “ vínculos de afetividade” (inneres leben; p. 316 da obra original
Ideen zur Philosophie der Geschicbte der Menschheit, vol. ii Karlsruhe: Christian Gottlieb
Schmieder, 1794); e como o “ sentimento de solidariedade em face a outros grupos” em
M ax Weber, “The Nation” , em From Max Weber, tradutores e coordenadores do volume
H. H. Gerth e C. Wright Mills, Oxford, UK: Oxford University Press, 1946 (1921), p. 172.
[Lanço mão aqui do texto citado por Hazony em sua versão original segundo a Ia edição
de 1922: “ [...] ein spezifisches Solidaritátsempfinden anderen gegenüber [...]” , onde o
Solidaritàtsempfinden é uma “ consideração empática” pela “ solidariedade” . — n t ]
88 Discussões acessíveis sobre a ordem das tribos e dos clãs aparecem em Mark Weiner, The Rule
o f the Clan, Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 2013; Azar Gat, Hations, Cambridge,
u k : Cambridge University Press, 2013, pp. 29-66. V. também Adam Ferguson, An Essay

on the History ofthe Civil Society, org.: Fania Oz-Salzberger, Cambridge, UK: University of
Cambridge Press, 1995 (1767), p. 85. Steven Grosby aponta que na Bíblia, o clã (mishpaha)
é claramente descrito como uma subdivisão da tribo (sbevet), e a família (beit av) como
uma subdivisão do clã. As doze tribos são subdivisões dos israelitas como povo (am). Steven
Grosby, Biblical Ideas o f Nationality, Winona Lake, IN : Eisenbrauns, 2002, pp. 15-22.

80
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

para formar uma nação unificada. E é familiar na história dos ingle­


ses, dos holandeses, dos americanos e de muitas outras nações.89 De
maneira semelhante aos laços de lealdade ao clã, o vínculo de lealdade
à tribo ou nação cresce por lealdade aos pais: a criança experimenta
o sofrimento e os triunfos de sua tribo ou nação como seus, porque
experimenta o sofrimento e os triunfos de seus pais como seus, e os
pais, à medida em que se desdobram, sentem e dão expressão para o
sofrimento e os triunfos da tribo ou nação. E, novamente, esse apego
significa que o indivíduo vai deixar de lado as disputas com outros
membros de sua tribo ou nação, juntando-se a eles “como uma só
mente” 90em momentos de perigo ou quando grandes projetos públicos
estão em andamento.91
Há limites para o processo de consolidação, por meio dos quais clãs
se unem como tribos, e tribos como nações, ampliando-se as lealdades
dos indivíduos para além das fronteiras físicas da nação? Sabemos já
89 Opinião comum entre acadêmicos é considerar a nação como uma ficção ou uma invenção
recente. Entre outros, v. Hans Kohn, The Idea o f Nationalism, Nova York: Macmillan,
1948; Elie Kedourie, Nationalism, Oxford, UK: Blackwell, 1960; Emest Gellner, Nations and
Nationalism, Ithaca, NY: Cornell University Press, 2006 (1983); Eric Hobsbawm, Nations
and Nationalism since 1780, Cambridge, u k : Cambridge University Press, 1990; Benedict
Anderson, Imagined Communities, Nova York: Verso, 1991. Sobre a discussão crítica
sobre a tese de que nações seriam uma invenção da modernidade, v. Anthony Smith, “ The
Myth of the ‘Modern Nation’ and the Myths of the Nations” , Ethnic and Racial Studies,
janeiro de 1988, pp. 1-26; Azar Gat, Nations, pp. 214-220; Susan Reynolds, Kingdoms and
Communities in Western Europe, 900-1300, Oxford, u k : Oxford University Press, 1984,
pp. 255-256; Len Scales e Oliver Zimmer [coords.] Power and the Nation in European
History, Cambridge, uk: Cambridge University Press, 2005.
90 Jeremias 32, 39; Ezequiel 11,19; 2 Crônicas 30,12.
51 Este modelo de sociedade política rejeita a dicotomia entre sociedades tradicionalistas,
sociedades solidárias (gemeinschaft) e sociedades modernas e individualistas (gesellschaft)
que tem sido tão proeminente na literatura específica de âmbito acadêmico. Para uma
discussão paralela, oferecendo uma abordagem ligeiramente diferente, v. Bemard Yack,
Nationalism and the Moral Psychology ofCommunity, pp. 44-67. Trabalhos recentes sobre
lealdade dignos de atenção incluem Andrew Oldenquist, “ Loyalties ” , Journal ofPhilosophy
79 (1982), pp. 173-193; George Fletcher, Loyalty, Oxford, u k : Oxford University Press,
1995; Richard Rorty, “Justice as Loyalty” , EthicalPerspectives 4 (1997), pp. 139-149; Anna
Stilz, Liberal Loyalty, Princeton, n j : Princeton University Press, 2009; John Kleinig, On
Loyalty and Loyalties, Oxford, u k : Oxford University Press, 2014. Para discussão acerca
dos problemas que os vínculos coletivos apresentam para o pensamento político liberal,
v. Alisdair Maclntyre, After Virtue, Notre Dame, i n : Notre Dame University Press, 1981;
Michael Sandel, Liberalism and the Limits o f Justice, Cambridge, uk : Cambridge University
Press, 1982; Charles Taylor, Sources ofthe Self, Cambridge, uie Cambridge University Press,
1989; Amitai Etzioni, The Spirit o f Community, Nova York: Simon and Schuster, 1993;Will
Kymlicka, Multicultural Citizenship, Oxford, u k : Oxford University Press, 1995; Patrick
Deneen, Why Liberalism Failed, New Haven, cr: Yale University Press, 2018.

81
YORAM HAZONY

que as nações podem desenvolver laços com outras nações, e estes


podem, com o passar do tempo, ficar parecidos com os vínculos entre
tribos na formação da nação. Há, em outras palavras, algo como uma
“ família de nações” , como as nações de língua inglesa consideram-se
com freqüência, ou como sentem, às vezes, os povos hindus da índia.
Mas o que une essas famílias de nações é, novamente, a lealdade mútua
que é revivida e fortalecida pela adversidade conjunta no presente: a
solidariedade dos povos de língua inglesa tornou-se mais proeminente
em sua luta comum contra o eixo das potências fascistas, ou contra as
nações comunistas; e a lealdade mútua dos hindus veio à tona durante
a sua luta comum para libertar-se da dominação inglesa e muçulmana.92
O que nós nunca vimos, no entanto, é uma tendência genuína para
uma lealdade mútua entre todos os seres humanos — algo que só se
poderia formar sob condições em que toda a humanidade estivesse
unida diante de uma adversidade comum.93
A lealdade mútua entre indivíduos é a mais poderosa força ope­
rativa no campo político. Sentimentos de lealdade mútua mantêm
indivíduos firmemente juntos, por meio das famílias, clãs, tribos e
nações, da mesma forma que a força da gravitação atrai as moléculas,
formando os planetas, os sistemas solares, as galáxias e os sistemas
de galáxias. Escritores modernos, que foram muito influenciados pelo
darwinismo, tendem a procurar maneiras de explicar isso como um
processo impulsionado pelo vínculo biológico. Nem sempre as coisas

92 A base para tal sentimento familiar entre as nações reside em uma língua, religião ou
legislação em comum. M as estes elementos podem ser insuficientes para evitar que nações
entrem em guerra, como no caso das guerras entre Estados Unidos e Grã-Bretanha. Os
esforços mútuos para combater um inimigo comum no passado é, contudo, um elemento
mais poderoso para unir as nações, registrando lealdades mútuas de longa data e que, ás
vezes, pode ser revivido em condições de adversidade ou prosperidade.
93 Isso não exclui a possibilidade de solidarizar-se com outros seres humanos, ou com outros
seres vivos em geral. A inclinação para identificar-se com os outros, ou prestar auxílio aos
outros, é certamente muito difundida, e não se limita às coletividades às quais somos fiéis.
Por outro lado, tais sentimentos de simpatia (feelings o f sympathy) são, em sua maioria,
capazes de motivar apenas atos de bondade de curto prazo, que podem ser significativos
no contexto, mas não estabelecem compromisso duradouro como a lealdade mútua
oferecería. Por serem relativamente fracos e pouco confiáveis, os sentimentos de simpatia
não desempenham um papel significativo na criação e manutenção da ordem política. Nos
casos em que encontramos assistência continuamente prestada ou quando esta é oferecida
às custas de grandes sacrifícios, as lealdades mútuas da coletividade são quase sempre
identificadas como suas verdadeiras causas. Para uma análise mais completa, v. Eric Schliesser
[org.]. Sympathy, Oxford: Oxford University Press, 2015.

82
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

foram desse jeito. Um indivíduo humano isolado, tendo sobrevivido


a uma guerra ou doença que lhe cortou os laços familiares ou ances­
trais, invariavelmente irá juntar-se a uma nova família ou a um novo
clã, acrescentando sua força ao grupo e recebendo proteção em troca.
E assim fazendo, estabelecerá novos laços de lealdade mútua para
substituir aqueles que tinham sido perdidos, e isso sem nenhum laço
necessário de parentesco biológico. Essa constante regeneração de laços
de lealdade mútua antes destruídos significa que as famílias podem
adotar, e de fato adotam, membros estrangeiros, e que os clãs adotam
famílias que não nasceram entre os demais membros do clã. Da mesma
forma, nações não adotam apenas os estrangeiros e as famílias, mas
tribos inteiras que uma vez já foram estrangeiras, e doravante passam
a não ser assim consideradas.94
Enquanto todas as nações usam a metáfora da fraternidade para
invocar uma relação familiar de lealdade mútua entre os seus membros,
o parentesco biológico real nunca é mais que a matéria-prima sobre a
qual uma nação é construída, se é que isso é verdade.95 Por fim, o fator
decisivo são os laços de lealdade mútua que foram estabelecidos entre
os membros de uma nação em face de longos anos de dificuldades e
sucesso conjunto.
Esta constante regeneração de laços de lealdade mútua, que encon­
tramos em quase todos os seres humanos, indica que não pode haver
sociedade cujos membros sejam desprovidos de lealdade para com o
próximo. Isto é verdade mesmo nas sociedades modernas, em que a or­
dem tradicional de tribos e clãs foi enfraquecida pelo Estado nacional, e
a filosofia liberal ensinou que o indivíduo deveria pensar constantemente
em sua própria vida e em seus próprios bens.96 Mesmo aqui, coletividades
construídas a partir de laços de lealdade mútua são visíveis em todos os
lugares, e não apenas dentro da família: grupos políticos locais, igrejas
e sinagogas, escolas e outras organizações comunitárias ainda são re-
miniscentes dos antigos clãs. Em escala nacional, poderosas associações
94 V. David Miller, Nationalily, pp. 42-45.
95 Algumas nações, incluindo a inglesa, francesa e muitas outras, preservam tradições explícitas
de suas origens nacionais combinadas (mixed national origins),
96 Sobre a destruição da capacidade de pensar em termos de coletividade humana (terms of
human collectives) nas sociedades liberais, v. Jonathan Haidt, The Righteous Mind, pp.
111-133.

83
YORAM HAZONY

religiosas, étnicas, setoriais e profissionais desempenham um papel na


vida da nação que ainda é muito semelhante ao de uma tribo, com suas
fortes lealdades mútuas, cada uma se unindo a outras tribos em coalizões
móveis no esforço para manter o curso da nação a seu favor. Estas, com
certeza, não possuem a força e a resiliência dos clãs e tribos que prece­
deram o Estado. A variedade de tais associações permite aos indivíduos
uma maior liberdade de escolha ou mesmo a recusa de formar aliança
com elas, e desde que não sejam entidades politicamente independentes
e em guerra umas contra as outras, as obrigações recíprocas entre os
membros podem ser muito menos exigentes. Mesmo assim, sua existência
aponta para uma tendência eterna nos indivíduos, presente inclusive sob
o Estado moderno, que é a de aliar-se a coletividades, não só ao nível
da família, mas também do clã, da tribo ou em nível nacional.97 Essa
é uma tendência que se torna mais pronunciada quando os membros
do nosso “clã” ou “tribo” são ameaçados, e se reafirma com toda a sua
velha força quando a nossa tribo percebe que o Estado nacional já não
é capaz de nos proteger como antes.98
Os laços de lealdade mútua que fazem das famílias, clãs, tribos e
nações instituições estáveis e duradouras também garantem que os seres
humanos experimentem constantemente, como um evento pessoal, o
que se passa com as coletividades para as quais são leais. Como conse-
qüência, longe de serem motivados apenas no sentido da conservação
dos bens e da própria vida, os seres humanos ficam incessantemente
preocupados em promover a saúde e a prosperidade da família, clã,
tribo ou nação à qual são leais, não raro de uma maneira que venha
a colocar sua própria vida e propriedades em risco.

97 Diz-se frequentemente que uma grande variedade de fatores pode contribuir para a identidade
humana. No entanto, as diferentes “ identidades” em questão, mesmo quando refletem um
conteúdo inédito na antiga história humana estabelecem meramente novos clãs e novas
tribos.
98 Embora esse uso seja incomum em relação à sociedade no Estado moderno, vou continuar
a usar o termo clã para me referir a instituições locais e organizações, e tribo para me
referir a coletividades em grande escala que são fortes o suficiente para interferir em âmbito
nacional. Escolhi usar esses termos em vez de outros mais comuns, como “comunidade” ,
porque falta a conotação de um sistema hierárquico de ordenação coletiva, que é essencial
para a teoria política empírica. Pelo bem da simplicidade, adotei uma hierarquia de quatro
camadas: família, clã, tribo e nação. Mas a escolha de um sistema de quatro camadas é de
certa forma arbitrária. Na política atual das sociedades, muitas vezes pode-se encontrar
muito mais camadas de hierarquia antes de se chegar ao topo da estrutura política. — nt

84
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

O que quero dizer com saúde e prosperidade da família, do clã, da


tribo ou da nação? De maneira semelhante à qual usamos quase todos
os termos para descrever as coletividades humanas, estas são metá­
foras retiradas da vida do indivíduo. Ainda assim, as características
das coletividades humanas para as quais esses termos atraem a nossa
atenção não são menos reais por serem descritas metaforicamente.
Consideremos em primeiro lugar a família. A saúde e prosperida­
de da família, podemos dizer, depende de três requisitos: primeiro,
requer crescimento físico e material. Isso significa que as crianças
nascem e crescem fortes, que a família ganha em termos de proprie­
dade disponível, e que suas capacidades físicas e produtivas, como a
capacidade de produzir ou obter alimento, avançam ano a ano. Em
segundo lugar, a saúde da família é reconhecida quando possui uma
forte integridade interna — quando seus membros são leais uns aos
outros, celebram as conquistas uns dos outros e defendem-se mutua­
mente na adversidade, mesmo sob risco pessoal; quando seus membros
honram prontamente as diferenças de idade ou status entre eles, para
que a família possa ter uma ação unificada e efetiva sem coerção; e
quando as disputas e as tensões que inevitavelmente surgem entre
eles são conduzidas em relativa paz, para que evitem causar danos
a longo prazo para a família como um todo. Em terceiro lugar, a
saúde da família é reconhecida na extensão e qualidade da herança
cultural que é transmitida pelos pais e avós para as crianças. Este
fator é freqüentemente ignorado, mas não é menos importante para
a saúde e prosperidade da família do que qualquer um dos outros.
Tanto as capacidades físicas como a integridade interna da família
humana dependem em grande parte da herança cultural que as ge­
rações mais velhas legam aos mais jovens, e do quão bem-sucedida
foi essa transmissão."
Essas são medidas de saúde e prosperidade da família, e todo
membro de uma determinada família tem uma compreensão intuitiva
do que tais coisas possam ser, se são mais ou menos desenvolvidas ou9

99 Tal herança cultural, evidentemente, nunca é uniforme. Uma tradição nacional tem muitas
tendências, e cada tribo, clã e família enfatiza e desenvolve diferentes tendências dentro
de uma mesma tradição, muitas vezes no contexto de uma competição consciente de uns
contra os outros.

85
YORAM HAZONY

refinadas, do mesmo modo que ele possui uma compreensão intuitiva


sobre aquilo que contribui para a sua vida pessoal e seus bens.
Além disso, o indivíduo experimenta em todos os momentos o
fortalecimento ou enfraquecimento de sua família como algo pessoal.
E porque este é o caso, ele é constantemente movido a tomar medidas
para defender e construir a família em sua prosperidade material, em
sua integridade interna e em sua capacidade de transmitir uma herança
cultural apropriada às crianças. De fato, é por esses motivos que os
pais agem na maior parte de seu tempo, para não dizer durante todo o
tempo, aceitando um emprego que não é do seu gosto para que possam
alimentar a sua família. Eles aceitam humildemente manter relações
infelizes com maridos ou esposas em nome do bem maior, da paz no
lar; dedicam longas horas para a tutela dos jovens recalcitrantes, cuja
capacidade de reconhecer o valor do que lhes ensinam é muitas vezes
bem limitada. E fazem isso não por um impulso altruísta para ajudar
estranhos, mas porque o fortalecimento da família é tomado como o
fortalecimento de si mesmos.
A saúde e a prosperidade de toda coletividade humana é medida da
mesma maneira que a da família. Podemos medir a saúde da tribo ou
nação, por exemplo, fazendo um balanço de sua prosperidade material,
de sua integridade interna, e da força e qualidade da herança cultural
que passa de geração para geração. Da mesma forma, o indivíduo
que é leal à sua tribo ou nação não pode deixar de intuir que está
ficando mais forte ou mais fraco, e de sentir que tal fortalecimento ou
enfraquecimento acontece consigo mesmo na mesma proporção em
que sente que acontece com a sua família. E por essa razão, quando a
tribo ou nação se sente enfraquecida, veremos indivíduos sublevando-se
para tomar a peito tais questões, agindo com toda a emoção e espírito
para fortalecer a tribo ou a nação, assim como agem para fortalecer a
família. E não o fazem por altruísmo, mas porque o fortalecimento da
tribo ou da nação é experimentado como um fortalecimento pessoal.
Os seres humanos constantemente desejam e buscam ativamente a
saúde e a prosperidade da família, clã, tribo ou nação com a qual estejam
vinculados por laços de lealdade mútua: temos uma intensa necessidade
de buscar o sucesso material da coletividade. Trabalhamos para reforçar

86
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

a sua integridade interna, assegurando que os seus membros sejam leais


uns aos outros na adversidade, honrem os mais velhos e os líderes e
conduzam as inevitáveis disputas entre os seus membros pacificamente.
Trabalhamos para entregar a herança cultural da coletividade, sua língua
e religião, suas leis e tradições, sua perspectiva histórica e a maneira única
pela qual lê o mundo, para as novas gerações. Notavelmente, esta última
preocupação — a transmissão da herança cultural da coletividade para
as gerações futuras — é muitas vezes vista como uma necessidade não
menos poderosa do que a necessidade de alimentar e vestir nossos filhos.
Mesmo em uma família devastada pela pobreza e pela fome, os esforços
dos pais em transmitir esta herança para seus filhos não cessam — basta
alguém interferir na língua e na forma como as pessoas falam, na religião
de sua comunidade, nos direitos baseados em certos costumes pelos quais
conduzem seus negócios, ou na maneira como criam seus filhos, para
inflamar os ânimos e rapidamente levá-las à beira da violência. Porque
tais coisas colidem com a integridade interna e a herança cultural da
família, clã, tribo ou nação, são experimentadas com tal amargura e dão
origem a um acúmulo de raiva.
Nenhuma ideologia universal — nem o cristianismo, nem o islã,
nem o liberalismo, nem o marxismo — teve sucesso nas tentativas de
eliminar, ou mesmo diminuir, esse intenso desejo de proteger e forta­
lecer a coletividade. Nem mesmo deveriamos desejar que esse desejo
fosse eliminado ou diminuído, da mesma forma que não desejaríamos
que diminuísse o desejo do indivíduo por defender sua própria vida e
melhorar suas precárias circunstâncias materiais. De fato, essa preocu­
pação feroz pela prosperidade material, pela integridade interna e pela
herança cultural da coletividade faz com que toda família, clã, tribo
ou nação se feche em uma espécie de fortaleza cercada, pelo alto, por
um muro invisível. Mas esse muro é uma condição necessária para a
diversidade, inovação e progresso de todos os seres humanos, permi­
tindo que cada uma dessas pequenas fortalezas abrigue a sua própria
herança específica, a sua própria e preciosa cultura, em um jardim
em que pode florescer sem ser molestada. No interior dessa fortaleza,
o que é original e diferente ganha um espaço próprio onde pode ser
experimentado e testado ao longo de gerações. Ali, as coisas que são
ditas e feitas apenas naquela família, clã ou tribo, e em nenhum outro

87
YORAM HAZONY

lugar, têm tempo para crescer e amadurecer, tornando-se sólidas e fortes


na medida em que surgem as raízes que moldam o caráter dos vários
membros dessa coletividade — até que esses membros estejam prontos
para sair da família para o clã, do clã para a tribo ou para a nação,
e daí para todas as famílias da terra. Toda inovação que for trazida e
resultar em melhoria na compreensão ou na indústria, na lei, na moral
ou na piedade, terá sido o resultado de um desenvolvimento deste tipo,
tendo começado como uma herança independente de uma pequena
coletividade humana e, em seguida, irradiando para fora. Ao mesmo
tempo, esse muro da fortaleza representado pela língua comum e pela
cultura tribal pode ser visto como obstáculo para que as novidades se
espalhem muito rapidamente, havendo assim tempo para que aquilo
que é equivocado e destrutivo seja experimentado e identificado como
deficiente, e assim siga seu curso e morra antes que toda a humanidade
seja atingida por novidades equivocadas.

10. Como realmente nascem os Estados?


Há uma história que as mães contam para seus filhos sobre como
nascem os bebês. Elas dizem que quando o tempo chega, uma cegonha
traz o bebê para a porta dos pais escolhidos por ela.
Não há pai que acredite na veracidade dessa história. Então por
que contá-la como se fosse uma verdade? Presumo que assim se passa
pois a verdade é, aos olhos de alguns pais, algo feio e desagradável. Ao
contar para suas crianças esta pequena mentira, há nos pais a esperança
de fazer o mundo parecer mais belo do que é; e ao fazê-lo, protegem
seus jovens de pensamentos que podem causar aflição e medo.
Da mesma forma, há uma lenda que professores de política, direito
e filosofia contam a seus alunos sobre como os Estados nascem. Eles
dizem que, enquanto vive em um Estado de perfeita liberdade e igual­
dade [equality], cada indivíduo consente, juntamente com inúmeros
outros, em formar um governo e em submeter-se aos seus ditames.100
Não há um único professor universitário que acredita que isso seja
verdade. Então, por que falar como se assim o fosse?

100 Tal discussão tipicamente invoca Thomas Hobbes, Leviatã 1.13-14; John Locke, Segundo
tratado sobre governo civil, seção 97; ou Jean-Jacques Rousseau, O contrato social, 1.6.

88
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Aqui, uma resposta plausível se torna mais difícil. Tal qual a história
da cegonha, pode-se dizer que a tradição de introduzir estudantes na
teoria do governo por meio desta história fantástica protege as men­
tes dos alunos de algumas verdades feias e desagradáveis. E é aí que
as semelhanças terminam. A história da cegonha destina-se apenas
a manter as crianças em sua inocência infantil por um período mais
longo, reconhecendo-se que num certo momento seus pais lhes dirão a
verdade, enquanto que a história de como o Estado nasce é impressa em
homens e mulheres jovens e é reintroduzida inúmeras vezes em todas
as fases da sua educação — começando no ensino fundamental, depois
no ensino médio, passando pela universidade (sobretudo nos cursos de
direito) e chegando até as fases finais dos estudos em pós-graduação
(inclusive nos mestrados stricto sensu e em programas de doutorado).
Finalmente esses alunos se tornam legisladores, tratadistas, juristas e
professores de renome, fazendo com que esse conto de fadas se agarre
aos seus pensamentos políticos, ocupando o espaço que deveria estar
ocupado pela competência real de análise. E a cada dia se vê quanto
dano é causado em muitas empreitadas importantes, tanto na política
interna quanto nos assuntos externos, porque as ações são perseguidas
por estadistas que continuam a confiar neste mito da tomada de decisão
em nome do Estado. Este ponto tem sido observado vigorosamente
por quase todo teórico político que tentou abordar o assunto empi-
ricamente, incluindo Selden, Hume, Smith, Ferguson, Burke e Mill.101
101 Como escreve Hume: “ E nada prova mais claramente que uma teoria desse tipo é errônea
do que o fato de ela conduzir a paradoxos que repugnam aos sentimentos da maioria dos
homens, e aos usos e opiniões de todas as nações e de todas as épocas. A doutrina que baseia
todo o governo legítimo num contrato original [...] pertence a esse tipo” . David Hume,
“ Of the Original Contract” , in Essays, ed. Eugene F. Miller, Indianapolis, IN : Liberty Fund,
1985 (1753), pp. 465-487, esp. 486. [Ensaios morais, políticos e literários, São Paulo:
Nova Cultural, 1996, p. 212. — n t ]. A rejeição do contrato social como base para o Estado
também aparece em Adam Smith, Lectures on Jurisprudence, Indianapolis, i n : Liberty
Fund, 1982 [1766]), pp. 402-404; Ferguson, An Essay on the History o f Civil Society, pp.
24-29,118-120; Edmund Burke, Reflections on the Revolution in Erance, em Revolutionary
Writings, ed. Iain Hampsher-Monk, Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2014, pp.
32-33, 100-101 [Reflexões sobre a Revolução na França, Campinas, s p : Vide Editorial,
2017, pp. 59-60 e 153-154. — n t ]; Benjamin Constant, “Principies of Politics” , in Political
Writings, org.: Biancamaria Fontana, Cambridge, Reino Unido: Cambridge University
Press, 1988 (1815), pp. 176-178; G. F. W. Hegel, Philosophy ofRight, trad. de T. M. Knox,
Nova York: Oxford University Press, 1967 [1820]), pp. 156-167 [Princípios da filosofia do
Direito, Lisboa: Guimarães, 1986, pp. 200-208. — n t ]; Mill, Representative Government,
p. 212 [Considerações sobre o governo representativo, pp. 48 e ss. — n t ] ; Theodor Herzl,
The Jewish State, trad. de Harry Zohn, Nova York: Herzl Press, 1970 (1896), pp. 91-94.

89
YORAM HAZONY

É impossível pensar inteligentemente sobre os princípios do governo


sem primeiro libertar-se da ficção de que os Estados são formados
pelo consentimento dos indivíduos, uma visão que apenas esconde de
nós a maneira com que os Estados nascem, e continua a existir para
confundir nossa compreensão de como eles persistem ao longo do
tempo, do que os mantêm unidos, e do que os destrói.
Como o Estado vem a existir? Com base no que já foi dito, pode­
mos ver que nunca houve um “estado de natureza” da forma como
foi imaginado por Hobbes ou Locke, em que os indivíduos eram leais
apenas a si mesmos. Desde quando vivem nesta terra, os seres humanos
são leais à família mais ampla, ao clã e à tribo que lhes provê defesa,
justiça e rituais de gratidão aos deuses, cada um de acordo com seus
próprios costumes. Essa ordem de tribos e clãs é, de fato, a ordem
política original da humanidade. Como devemos pensar sobre essa
forma de ordem política?
Em primeiro lugar, a ordem das tribos e dos clãs não equivale ao
Estado. É verdade que o clã e a tribo estão preocupados com defesa,
justiça e religião — exatamente as mesmas preocupações de um Estado.
Mas a forma original da ordem política humana distingue-se do Estado
uma vez que ela é, em sentido estrito, anárquica, ou seja, funciona sem
um governo central permanente: nela, não há exército ou força policial
estável, nem burocracia capaz de aumentar os impostos para manter
essas forças e, portanto, ninguém com a capacidade de emitir decretos
que possam ser impostos por meio de coerção. Cada clã ou tribo tem
sua chefia, mas sem um aparato de coerção dedicado a cumprir sua
vontade, tal clã ou chefe tribal raramente possui o poder de coagir seus
companheiros a segui-lo para onde eles não desejam ir. O que move o
clã ou a tribo a atuar como um corpo unificado? Primeiro, a concordân­
cia entre os membros de que seus líderes decidiram uma determinada
questão corretamente. Em segundo lugar, onde não existir tamanha
concordância, a lealdade do clã ou tribo aos seus líderes. E finalmente,
em terceiro lugar, o fato de a pressão daqueles que concordam com a

[Hazony usa a versão traduzida por Harry Zohn, Nova York: Herzl Press, 1970, embora a
mais usada seja a de Jacob De Haas (1904), ambas sob o título The Jeu/ish State. No trecho
citado por Hazony a versão original traz a engenhosa tese de Herzl que aproxima a natureza
jurídica do Estado a uma gestão de negócios (negotiorum gestio). — nt

90
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

decisão, e que a aceitam por lealdade, atrair os demais membros que


se mantiveram em zona de dúvida. Quando esses requisitos forem in­
suficientes, o clã ou tribo não agirá como um corpo único.102
Como é óbvio, as vantagens de uma ordem política anárquica
nascem da mesma fonte de suas desvantagens. É uma ordem que está
pouco preocupada com a tributação ou com o recrutamento de homens
para projetos de construção em grande escala ou para guerra. Isto
significa que cada família ou clã possui uma liberdade que tornou-se
desconhecida após o estabelecimento do Estado, com cada família, clã
e tribo participando de propósitos coletivos em larga escala à medida
que os consideram adequados. Por outro lado, a defesa é baseada em
milícia fragmentada e treinada irregularmente, a justiça só é alcançada
com grande dificuldade e os costumes da religião são mantidos apenas
voluntariamente. Quando as tribos e os clãs se afastam da lealdade
mútua e dos seus costumes comuns, surgem inevitavelmente guerras
entre tribos, injustiças e fracassos diante de estrangeiros, e ninguém
será capaz de consertar as questões desencaminhadas.103
O Estado nasce da relativa fraqueza da velha ordem de tribos e clãs.
É uma revisão permanente da ordem política, que introduz um governo
central permanente sobre as tribos e clãs. Isso inclui o estabelecimento
de um exército profissional que não é desmantelado em tempos de paz;
uma burocracia capaz de aumentar os impostos de modo suficiente
para manter tal exército; e um governante ou governo com autoridade
102 Esta breve discussão da ordem política em tribos e clãs está necessariamente incompleta.
Em particular, não se pode entender tal ordem política sem observar o papel do kavod em
manter estas formas políticas coesas. O termo hebraico kavod (geralmente traduzido como
“ honra” ou “piedade” ) refere-se ao peso e significado que são atribuídos aos membros
mais velhos e mais poderosos de uma coletividade, e aos seus modos de comportamento
e de olhar para o mundo. Não é apenas a lealdade mútua que caracteriza as coletividades
humanas, mas também a hierarquia presente em cada coletividade, estabelecida a partir
do reconhecimento das diferenças de kavod entre seus respectivos membros. No entanto,
terei de deixar um exame mais aprofundado deste assunto para outro momento. Sobre esse
assunto, v. Roger Scruton, The Meaning o f Conservatism, Nova York: Palgrave,2001 (1980),
pp. 23-25. [O que é conservadorismo, São Paulo: É Realizações, 2015, pp. 66-69. — nt]
103 Como fora retratado nos livros bíblicos de Josué, Juizes e Samuel, que traçam o sucesso
inicial das tribos de Israel como uma aliança voluntária, e a decadência de seus esforços
comuns que descambou em guerra civil e em patente fragilidade frente aos estrangeiros.
Quando sua organização militar tribal prova não ser capaz de resistir às investidas de
exércitos permanentes dos Estados vizinhos, há um clamor por um governo nacional — ou,
em outras palavras, por um rei. Nesse sentido, v. Yoram Hazony, The Philosophy ofHebrew
Scripture, Cambridge, uk: Cambridge University Press, 2012, pp. 144-150.

91
YORAM HAZONY

para emitir decretos que são então impostos — quando necessário, por
meio de uma força armada. Esse governo concentra um inédito grau
de poder nas mãos de um pequeno número de indivíduos, poder esse
que pode ser usado para defender as tribos contra inimigos externos,
para julgar e dirimir disputas e para instituir ritos religiosos uniformes
em escala nacional.
Mas como pode tal Estado vir a existir por meio de métodos que
necessariamente privam os clãs e tribos de sua liberdade e impõem
cargas tão pesadas sobre eles? Há duas razões sabidas para isso:
Primeiro, existe a possibilidade de estabelecer um Estado livre, em
que a cooperação dos governados é dada ao governo voluntariamente.
Isso pode acontecer se os chefes de uma coalizão entre tribos, reco­
nhecendo um vínculo comum, bem como uma necessidade comum,
se reúnem para estabelecer um governo permanente. Nesse caso, os
próprios chefes tribais realizam a seleção do governante da nação e
integram uma assembléia quando decisões importantes precisam ser
tomadas. A lealdade do indivíduo é assim emprestada ao Estado por
lealdade a seus pais, à sua tribo e à sua nação, e é por esse motivo
que ele se submeterá ao sofrimento e ao sacrifício se assim o Estado
solicitar. Além disso, o indivíduo pode oferecer sua lealdade ao Estado
mesmo quando as pessoas que ocupam o governo naquele momento,
ou as políticas específicas que desejam implementar, não sejam de seu
agrado. O desejo feroz de manter a integridade da nação e sua lealda­
de para com ela movem o indivíduo a continuar lutando nas guerras
definidas pelo governo nacional, obedecendo às suas leis e pagando
os impostos, ao mesmo tempo em que espera que melhores líderes e
políticas venham mais cedo ou mais tarde.104
Temos visto muitos desses Estados estabelecidos na história. O
caso mais famoso de tal unificação de tribos é o do Israel antigo,
que serviu como modelo de nação-Estado.105 O Estado ateniense,

104 Esta disposição para contribuir com o Estado nacional resulta de uma confiança básica
nos outros, que só é possível quando a comunidade em questão é considerada como sendo
a própria comunidade. V. Sidgwick, The Elements o f Politics, pp. 201-203, 276; Miller,
Nationality, pp. 90-98; Roger Scruton, England and the Need for Nations, Londres: Civitas,
2004, pp. 6-12,24-25.
105 O Estado nacional não governa (rule over) sobre todo o membro da nação que o estabelece,
nem governa apenas os membros desta nação. M as como Yack acertadamente aponta, os

92
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

emboraseja geralmente visto como uma “cidade-Estado” , foi de fato


criado por meio de uma unificação de certo número de clãs exata­
mente dessa mesma forma. Devemos, portanto, reconhecer o Estado
Ateniense como um Estado tribal — o Estado de uma tribo grega
em particular. Isso porque, embora Atenas tenha sido coesa o sufi­
ciente para ser governada por um governo permanente, ela também
manteve sua independência em relação a outras tribos gregas, e isso
apesar da evidente existência de uma nação grega mais ampla que
permaneceu dividida em tribos independentes.106 Ambos os estados,
israelita e ateniense, foram, portanto, capazes de funcionar como
Estados livres e existiram devido à lealdade de seu povo (para com
sua nação e tribo, respectivamente) que contribuiu para a coesão
necessária ao Estado. E o mesmo pode ser dito sobre a fundação do
reino da nação inglesa unificada sob Alfredo, da união das tribos
holandesas como um Estado nacional sob a República Holandesa,
ou do estabelecimento de um Estado unificado pelas colônias inglesas
na América, posteriormente os e u a . Esses, e todos os demais Estados
livres, podem ser tomados como exemplos de Estados nascidos por
meio da unificação de tribos hostis entre si sob um governo nacional
único, de acordo com a decisão dos líderes dessas tribos de formar
um Estado livre.
Segundo, o Estado pode ser estabelecido e mantido como um
Estado despótico. Por “Estado despótico” quero aludir a um Estado
cujos clãs ou tribos não são unidos voluntariamente para manter sua
liberdade, mas, pelo contrário, são subjugadas por um conquistador
contra sua vontade. Neste caso, o governante do Estado não é escolhido
por líderes da tribo ou nação a que o indivíduo está ligado por laços

nacionalistas tendem a estar mais preocupados com que os limites geográficos permitam
liberdade nacional e autodeterminação do que com a perfeita e devida congruência entre
políticas nacionais e suas respectivas fronteiras. Yack, Nationalism and the Moral Psychology
o f Community, pp. 122-123. V. o debate sobre a liberdade nacional no cap. 13.
106 Sobre a conscientização em Atenas e em outras cidades-Estados de uma nação pan-helênica de
língua grega, v. Aviei Roshwald, The Endurance o f Nationalism, Cambridge, u k : Cambridge
University Press, 2006, pp. 26-30; Jonathan Hall, Hellenicity, Chicago: Universidade de
Chicago Press, 2002. Tem sido sugerido que os atenienses eram uma “ nação” , como na obra
de Edward Cohen, The Athenian Nation, Princeton, NJ: Princeton University Press, 2000,
mas é improdutivo falar de Atenas como uma nação quando este termo descreve bem a
nação grega como um todo, cujas cidades-Estado eram sociedades tribais que falharam em
se unir sob um único Estado nacional.

93
YORAM HAZONY

de lealdade mútua. Pelo contrário, são estrangeiros ou usurpadores a


quem a lealdade das tribos não é dirigida de forma alguma. E como a
tribo à qual o indivíduo é leal não lhe dá razão para ser leal para com
o Estado, ele não irá voluntariamente à guerra, não obedecerá às leis
nem pagará impostos para aquele Estado. N a ausência de tal coesão,
o que é necessário é uma força capaz de obrigar o indivíduo a agir
emulando essa lealdade, quando na verdade ele, de leal, nada tem. E
a única forma de governo que pode impor essa aparência de coesão
onde uma coesão genuína não existe é uma tirania — um Estado que
pode suprimir a dissensão generalizada pela força e pelo terror, arre­
gimentar grandes porções da população para o serviço militar ou para
outras obras públicas e extrair impostos que são usados para subornar
a conformidade daqueles que aceitarão a corrupção.
Eu descreví duas maneiras diferentes pelas quais o Estado pode
surgir, uma por meio do livre estabelecimento de um governo por
uma coalizão de clãs ou tribos dentro de uma dada nação e a outra
por meio da conquista. N a prática, o Estado é freqüentemente estabe­
lecido através de uma combinação destas, com algumas tribos e clãs
se unindo voluntariamente, e outras coagidas. Observe, no entanto,
quão distantes essas percepções (separadas ou combinadas), estão
dos relatos de fundação do Estado conforme descrito nas teorias de
Hobbes ou Locke. Tais filósofos afirmam que a ação para estabelecer
o Estado reside no consentimento de cada indivíduo, e que o motivo
para este consentimento é uma previsão de que o estabelecimento do
Estado protegerá melhor sua vida e propriedade. N a realidade, no
entanto, não há tal consentimento nem tal cálculo. No caso de con­
quista, o consentimento do indivíduo comum é totalmente irrelevante.
E mesmo quando um Estado livre é formado através da unificação das
tribos de uma nação, isso acontece porque os laços de lealdade mútua
foram estabelecidos entre os chefes dessas tribos com o objetivo de
estabelecer a paz entre eles e assegurar sua independência e estilo de
vida em conjunto, em face da ameaça estrangeira. O indivíduo comum
não é solicitado a consentir com a unificação e a independência nacio­
nal, que são decididas em conselhos aos quais ele tem pouco acesso, e
como regra, ele adotará uma postura de lealdade ao Estado nacional
por lealdade à sua tribo, mesmo que ele considere questionáveis as

94
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

decisões de seus líderes. São assim os interesses e aspirações da tribo e


da nação, tal qual entendidos pela liderança tribal, que são decisivas
no nascimento de um Estado livre.

11. Negócios e família


A insolúvel fraqueza da filosofia política herdeira de Hobbes e Locke é
tributária de um grande engodo: finge que a vida política é governada
em grande parte ou exclusivamente com base nos cálculos de indivíduos
que consentiram sobre o que pode ampliar sua segurança ou proteger,
ou mesmo aumentar, a sua propriedade. É o mesmo que dizer que a
filosofia liberal ignora a lealdade mútua como motivador, suprimindo
a mais poderosa causa operacional em assuntos políticos.
As conseqüências da adoção desse engodo como fundamento para
a filosofia política podem ser apreciadas comparando duas pequenas
instituições: a empresa e a família.107
Sem dúvida, há instituições que são governadas principalmente com
base nas avaliações individuais sobre o que irá melhorar seu bem-estar
físico e proteger e aumentar sua propriedade, e pelo consentimento
contínuo aos termos de um acordo para a realização conjunta desses
propósitos. Uma empresa é uma instituição desse tipo. Quando uma
fábrica, loja ou uma gestora de investimentos é estabelecida, sua fina­
lidade é prover a vida e a propriedade dos indivíduos que consentem
em participar desses negócios. Para aqueles que estão mais próximos da
pobreza, significa ganhar salários que lhes proporcionarão um mínimo
de comida, abrigo e roupas. Para aqueles que estão financeiramente
melhor, significa acumular propriedade que pode ser usada para ampliar
as empresas, e assim estabelecer novos empreendimentos ou obras de
educação, luxo e trabalhos de caridade.
É verdade, obviamente, que as empresas podem às vezes inspirar
lealdade em seus empregados, e que eles freqüentemente procurarão

107 Minha dissertação se apóia na famosa comparação de Burke entre o contrato estabelecido
“em um acordo de associação (partnership) em um negócio de pimenta e café, chita, ou
tabaco” e a associação prestada à manutenção da sociedade. V. Edmund Burke, Reflections
on tbe Revolution in France, pp. 100-101 [Reflexões sobre a revolução na França, p. 153. —
n t ] . Sobre a “renúncia do cálculo dos benefícios transitórios” em associações (partnerships),

v. Michael Kochin, “The Constitution of the Nations” , The Good Society 14 (2005), pp.
68-76.

95
YORAM HAZONY

os benefícios de tal lealdade, insistindo no caráter familiar do negócio.


Mas isso não altera em nada o caráter fundamental de um negócio
como um pacto consensual cujo objetivo é melhorar o bem-estar e
a propriedade dos participantes desse empreendimento. E em geral,
todos os que participam dele só o fazem contanto que continuem a
considerar o negócio pessoalmente rentável neste sentido. Isso significa
que os laços que ligam os participantes de um negócio entre si são,
por sua natureza, bastante fracos: um empregado, ou mesmo o sócio
de uma sociedade, pode ser considerado por anos um grande ativo
da sociedade, e ainda assim ser removido por uma simples carta de
demissão e agradecimento, quando a administração da companhia em
questão sentir que poderá ter mais sucesso sem ele em seus quadros. Da
mesma forma, tanto sócios quanto empregados irão freqüentemente
abandonar a empresa no momento em que uma oportunidade mais
lucrativa se apresentar.
A fraqueza dos laços em um negócio não somente se manifesta na
facilidade com que seus membros se retiram ou são expulsos. Aqueles
que permanecem são afetados pelo caráter mutável e temporário de
qualquer vínculo humano cuja base está em um consentimento contí­
nuo, e eles limitam o quanto estão dispostos a investir no negócio em
questão. Assim, seria incomum um indivíduo que estivesse disposto a
desistir de sua vida por causa de uma fábrica ou loja, ou de uma gestora
de investimentos que o empregue, e isso é verdade também em relação
aos proprietários da empresa. De fato, alguém teria que se esforçar
muito para encontrar um empresário, e sobretudo um empregado,
disposto a incorrer em perdas financeiras persistentes por causa de
um negócio qualquer mesmo estando ciente da baixa probabilidade
de recuperar-se.
Compare agora isto com a família. Como um negócio, a família é
fundada em um acordo — um acordo matrimonial — para que também
nasça a partir de um ato de consentimento mútuo. E como um negócio,
a família também opera como um empreendimento econômico, buscan­
do prover o bem-estar físico e a propriedade de seus membros. Mas a
família é construída para atingir fins muito diferentes, sendo capaz de
estabelecer laços entre seres humanos de natureza totalmente diferente.

96
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Quais são os propósitos para os quais a família se institui? Pode


ser verdade que indivíduos casados gozem de melhor saúde e maior
prosperidade do que pessoas que se mantêm solteiras. Mas, homens e
mulheres não se casam, ou mantêm o casamento, trazem filhos ao mundo
e persistem por anos sob condições duras e sacrificantes, meramente
em função de uma análise fria de que agindo assim contribuem para a
própria saúde e prosperidade. O objetivo da família é algo totalmente
diferente: o casamento e a família são instituídos para transmitir a outra
geração uma herança que nos foi legada pelos nossos pais e pelos seus
respectivos antepassados. Esta herança inclui a vida em si e talvez alguma
propriedade, mas também inclui uma forma de vida, uma religião e uma
língua, habilidades e hábitos, e certos ideais e formas particulares de
entender o que deve ser valorizado diferentemente de outras famílias.
Um homem e uma mulher se unem para conjugar o que cada um herdou
de seus pais e avós, tecendo juntos uma herança para seus filhos que
combina o melhor do que cada um recebeu — e, portanto, se possível,
aperfeiçoando isto nas gerações subseqüentes. Uma forma de entender
esse esforço é dizer que uma família é estabelecida para pagar aos pais
e antepassados a dívida pela herança que recebemos deles, uma dívida
que só pode ser paga no surgimento de novas gerações que receberão
tal herança, e que, por sua vez, irão aperfeiçoá-la.
Estes não são objetivos que podem ser alcançados em poucos anos,
ou mesmo em décadas. Nós tendemos a nos concentrar na maneira
como os pais influenciam o desenvolvimento de seus filhos em seus
primeiros anos, e por uma boa razão. Pouco se nota que uma parte
significativa do que pais transmitem aos seus filhos não pode sequer
ser compreendida até que tenham 25 ou 35 anos de idade; e que uma
vez que nossos filhos tenham filhos, sua necessidade, e muitas vezes
o seu desejo de obter a herança deixada disponível por seus pais só
cresce. Nem os pais têm responsabilidades apenas pelos seus filhos.
Quando nossos filhos alcançam uma certa idade e se tornam inaptos
ou relutantes em encontrar o que eles precisam nos exemplos e con­
versação com os pais, freqüentemente ocorre vê-los buscar respostas
com os avós. A verdade é que a tarefa de cultivar o jardim (que é a
família) nunca cessará até que a morte ou uma grave enfermidade
chegue a nossos corpos.

97
YORAM HAZONY

Considere agora as implicações desse fato. As responsabilidades as­


sumidas ao se empreender são, como já disse, um mero consentimento
contínuo que pode ser reavaliado periodicamente a fim de determinar
se os benefícios ainda superam os custos. Todo indivíduo participante
do empreendimento pode, a qualquer momento, anunciar sua intenção
de terminar o relacionamento, rapidamente interromper quaisquer
responsabilidades pendentes, e resolver todas as questões. Em contra­
partida, as responsabilidades assumidas ao trazer crianças ao mundo
são permanentes para o resto de nossas vidas independente de nosso
consentimento. Em verdade, marido e mulher geralmente concordam em
trazer uma criança ao mundo. Mas não muito depois deste ato original
de consentimento, as dificuldades envolvidas em criar um filho já têm
pouca semelhança com qualquer coisa que os jovens amantes podem
ter pensado no momento em que consentiam neste ato. E o projeto de
criar filhos só continua a despejar sempre novas surpresas ao longo
das décadas, incluindo dificuldades e dores que mal se imaginavam
quando, pela primeira vez, pensaram no assunto. Ademais esta decisão
original não pode ser revista, dando aos pais uma chance de renovar
seu consentimento com base em uma avaliação atualizada que pese os
benefícios que cada criança traz contra os sofrimentos que cada um
dos pais suportou. É exatamente o oposto: o consentimento ou não
dos pais é irrelevante para suas responsabilidades contínuas, e não é
nenhum consentimento que os motiva para que não desistam em seus
esforços para que os filhos cresçam com saúde e instrução. O que os
motiva é a sua lealdade, o fato de que os pais entendem a criança como
parte de si mesmos — parte deles não só por vinte e poucos anos, como
certos filósofos supunham, mas pelo resto de suas vidas, para sempre.
Algo semelhante pode ser dito da relação entre marido e mulher.
É verdade que eles consentiram em se casar em um determinado
momento. Porém, as coisas que experimentam em sua vida juntos,
incluindo não só prazer e alegria, mas também tristeza e dificuldades
que nunca sonharam, não são as coisas que foram imaginadas quando
se casaram. No entanto, eles permanecem juntos, não por um cálculo
realizado a cada mês ou anualmente em que seu consentimento original
é renovado. Pelo contrário, são sustentados pela lealdade mútua, que
é o reconhecimento mútuo de que o outro é uma parte de si mesmo

98
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

— uma parte de si mesmo não só até que seus filhos atinjam a idade
adulta, o que consiste, afinal, apenas na primeira parte do encargo d e.
um pai, mas pelo resto de suas vidas, para sempre.
Alguns vão dizer que essa distinção entre um negócio e uma famí­
lia é imprecisa. Afinal de contas, existe o divórcio e a possibilidade
de separação dentro da família, assim como existe uma espécie de
lealdade com os parceiros de negócios. Tais ressalvas são certamente
importantes quando não se está falando em teoria, mas considerando
condições particulares em que os seres humanos encontram-se na vida
real. Dito isto, não podemos esperar entender o domínio político se
não conseguirmos ver que a empresa e a família não são apenas insti­
tuições muito diferentes, mas instituições que refletem uma oposição
entre dois tipos idéias de instituição: a empresa opera na esfera da vida
humana em que a liberdade, o cálculo e o consentimento dos indiví­
duos são mais vantajosos; já a família opera naquela esfera em que a
lealdade, a devoção e a restrição trazem mais benefícios. Justamente
porque empresas são aptas para conceder grandes benefícios materiais
para aqueles que dela participarem, assim como mais amplamente na
comunidade, toleramos uma ética empresarial na qual o indivíduo é
encorajado para agir como se fosse livre de todas as obrigações que
não sejam aquelas com as quais consentiu. Mas a licenciosidade e a
promiscuidade que reinam na esfera dos negócios são tão ruins quan­
to inúteis nas relações entre pais e filhos, maridos e esposas, irmãos e
irmãs, avós e netos. Dentro do domínio da família, para ser confiável,
para ser verdadeiro em face da adversidade, para recusar o desejo
de começar tudo de novo, estes laços são indispensáveis e a raiz de
todas as virtudes. Apenas um tolo conduziría uma vida familiar pelos
princípios que beneficiam o seu negócio, sujeitando seus pais, esposa
e filhos a avaliações periódicas, e abandonando-os quando calculasse
que eles deixaram de representar algum lucro em face dos demais. As
mesmas atitudes e comportamentos que trazem a maior prosperidade
nos negócios são aqueles que trazem ruína absoluta para a família.
O que, então, devemos dizer sobre o clã, a tribo e a nação? Essas
coletividades são do mesmo tipo que a família, embora em uma escala
maior — e, de fato, em hebraico, esses coletivos maiores são referidos

99
YORAM HAZONY

como “ as famílias da terra” .108 Como a família, seu propósito é passar


para outra geração uma herança que foi legada pelos pais e pelos an­
tepassados, uma herança que inclui a própria vida e propriedade, mas
também um modo de vida, uma religião e uma língua, habilidades e
hábitos, além de ideais e formas de compreensão que são únicas e que
os outros não possuem. Como a família, eles surgem e são mantidos
devido aos fortes laços de mútua lealdade que foram estabelecidas entre
seus membros. Além disso, quando uma tribo ou nação se constitui
em Estado livre, aproveita da fidelidade do indivíduo que voluntaria­
mente obedece as leis, paga tributos e serve no exército, graças aos
vínculos de lealdade mútua que ligam esse indivíduo à sua família,
tribo e nação. Pois é só de sua família, tribo e nação que ele herdou o
costume de obedecer as leis do Estado, pagar tributos e servir em seu
exército — todas elas seriam estranhas e impensáveis para ele; mas são,
portanto, os fortes laços de lealdade mútua, característicos da família,
que servem como base para um Estado livre, e não os laços fracos de
mero consentimento e adesão essenciais para uma empresa.
Quando um filósofo procura fundar o Estado na liberdade indivi­
dual, em cálculos de benefício pessoal e consentimento, ele nos pede
para ver o Estado como uma grande empresa. Ele adota um tipo ideal
que foi desenvolvido para descrever o comportamento no contexto
do mercado, e transfere-o para a esfera política, supondo que isso nos
permitirá entender o comportamento político da mesma forma que
nos permitiu entender o comportamento econômico. Mas um Estado
livre não é um empreendimento comercial. É constituído, e continua
a existir por muito tempo, não por causa de negócios e cálculos de
benefício pessoal ou consentimento contínuo entre seus membros,
mas apenas devido aos laços de lealdade familiar que persistem entre
eles. É verdade que os assuntos financeiros do Estado são entendidos
por termos extraídos da economia, e que a imigração voluntária e a
emigração refletem escolhas de indivíduos sobre sua participação no
Estado ou não. Mas essas coisas não fazem do Estado livre uma insti­
tuição semelhante a uma empresa. Uma família também tem assuntos
financeiros, e isso deve ser entendido em termos econômicos. Uma

108 Gênesis 12, 3; Amós 3 ,2 . Compare com Gênesis 10,31; 2 2 ,1 8 ; 26, 4.

100
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

família, igualmente, pode adotar novos membros que não nasceram


em seu seio, ou ter membros que se apartaram do convívio familiar
e não mantêm mais relações com aquele núcleo familiar. No entanto,
essas coisas não afetam o caráter básico da família, que é constituída
e continua a existir ao longo do tempo, apenas devido aos laços de
lealdade que persistem entre os seus membros. O Estado livre, que é
igualmente constituído e capaz de sustentar-se graças apenas aos laços
de lealdade entre seus membros, é neste sentido uma coletividade do
mesmo tipo que a família, embora em maior escala.

22. Império e anarquia


Na maioria das épocas e dos lugares, os seres humanos viveram sob
uma ordem política anárquica, isto é, eles viviam em uma frouxa hie­
rarquia entre as famílias, clãs e tribos, sem um governo permanente
ou chefe. Com o aumento da agricultura em larga escala, no entanto,
a grande acumulação de riqueza tornou possível, pela primeira vez,
estabelecer um governo permanente capaz de impor sua vontade por
meio de forças policiais profissionais. Tornou-se possível, em outras
palavras, substituir a ordem de tribos e clãs por um novo tipo de or­
dem política, a do Estado. A transição não foi imediata. Os primeiros
Estados foram as chamadas “cidades-Estado” , nas quais um número de
clãs unidos sob um governo tribal se estabeleciam num centro urbano.
Nestas cidades, a força dos clãs concorrentes ainda era sentida em todas
as coisas. Uma vez, porém, que essas cidades tinham os meios para
apoiar um governante no comando de uma força armada permanen­
te, elas rapidamente começaram a sonhar em se fortalecer anexando
seus vizinhos. Começando com alguns poucos milhares de soldados
profissionais, Sargon, o Grande, foi capaz de logo no século xxiv a.C.
conquistar as cidades-Estados da Suméria e Akkad, uma a uma, até se
tornar o governante de toda a Mesopotâmia, podendo declarar-se o “Rei
do Universo” .109 Nesta aspiração universal foi seguido por incontáveis
outros imperialistas que procuravam trazer paz e prosperidade para
toda a terra, mantendo-a sob sua regra unificada.110

109 Marc van de Mieroop, Cuneiform Texts and the Writing o f the History, Nova York:
Routledge, 1999, p. 70.
110 Do pertinente lema de Manent: “A cidade significava guerra e liberdade. O império significava

101
YORAM HAZONY

Deveria todo Estado, então, aspirar ao governo do universo? Ou


há um limite razoável que pode ser definido para o Estado, diferente
daquele ditado pela derrota no campo de batalha em uma disputa sem
fim entre impérios conflitantes?
Ao responder a esta pergunta, é útil pensar nas possíveis formas de
ordem política tal como aparecem ao longo de um período de tempo
definido pela amplitude da coletividade; uma coletividade à qual,
presume-se, o indivíduo seja leal. Em um extremo, podemos dizer, que
o ideal de império seja um Estado que, em princípio, é completamente
desprovido de fronteiras, de modo que se espera do indivíduo sob
a guarda de tal Estado que seja leal a uma coletividade que poten­
cialmente incluirá, se não hoje, amanhã, qualquer outro ser humano
existente na terra. No outro extremo está a anarquia, em que não há
Estado centralizado e a lealdade do indivíduo é dada a uma pequena
coletividade confinada a fronteiras — uma família ou clã, uma aldeia,
um latifúndio, ou ainda uma gangue —, consistindo de indivíduos que
são familiares a ele sob a perspectiva da experiência pessoal.
Observe que a diferença entre essas formas de ordem não reside
apenas em questões de escala. É também substantiva: ordens imperiais
ou anárquicas são baseadas em uma presunção de lealdade direcionada
para coisas muito diversas. Uma ordem anárquica ou feudal é constru­
ída sob relações de lealdade mútua entre familiares e indivíduos.111 O
chefe do meu clã ou o senhor da casa grande do meu latifúndio não é
uma entidade abstrata, mas uma pessoa real a quem minha lealdade
é dedicada em gratidão por atos pessoais de generosidade ou ajuda.
Estou ciente de suas necessidades, dificuldades e triunfos, e posso de­
sempenhar algum papel real, seja ele pequeno ou grande, em ajudá-lo.
Ele está a par das minhas necessidades e dificuldades, e os momentos

paz [...] e propriedade” . Pierre Manent, A World Beyond Politicsf, Princeton, Nj: Princeton
University Press, 2006, p. 48.
111 As ordens “feudais” da Europa medieval e do Japão eram versões altamente desenvolvidas
da ordem de tribos e clãs. Como Brierly enfatiza, a discussão do “Estado” com referência a
esses e outros vários períodos na história humana é do tipo anacrônica. James Brierly, The
Law ofNations, 2nd ed., Oxford, UK: Oxford University Press, 1936, p. 3. Um argumento
contemporâneo para ordem política anárquica ou feudal é apresentado por Hedley Bull,
The Anarchical Society, 4th ed., Nova York: Columbia University Press, 2012. Na transição
do feudalismo para o Estado nacional, v. Hendrik Spruyt, The Sovereign State and Its
Competitors, Princeton, n j : Princeton University Press, 1994.

102
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

em que ele interfere para me assistir de alguma forma são de profunda


significação para mim. E se chegam dias difíceis quando o chefe de
meu clã ou o senhor da casa grande retira sua lealdade de seu próprio
chefe tribal ou senhor, minha lealdade a esse indivíduo, que fez tanto
por mim e por outros na minha comunidade, permanecerá inabalável.
Sob o império, por outro lado, minha lealdade é, acima de tudo, ao
próprio império e à toda humanidade que supostamente representa.
O império também é governado por um ser humano individual — um
imperado^ rei ou presidente — a quem jurei lealdade. Mas esse gover­
nante não é um indivíduo conhecido, como é no caso da anarquia. O
imperador nada sabe a meu respeito como indivíduo, nem lhe posso me
dar a conhecer, ou ser uma preocupação para ele. Eu não recebo a sua
assistência pessoal, nem o ajudo em seus problemas de uma maneira
que possa ser por ele conhecido. O imperador é tão remoto a ponto
de sei; para mim, nada mais que uma abstração. Assim como sou eu
para ele nada mais que uma abstração, e assim a humanidade, sobre
a qual ele estendeu seu governo, é para mim apenas uma abstração.
Na anarquia, então, minha lealdade é dada a um indivíduo que é
familiar; enquanto no império devo fidelidade a uma grande abstra­
ção.112 É essa distinção que nos permite entender por que, em uma or­
dem imperial, a anarquia é considerada como o maior mal imaginável.
Pois é premissa do Estado imperial afirmar que as grandes massas da
humanidade dependem, para sua paz e prosperidade, da mente uni­
versal de um imperador, que evoca grandes abstrações para suportar o
mundo e fornecer esta mesma paz universal e prosperidade que só ele
é capaz de trazer. Ao colocar a lealdade familiar do indivíduo ao seu
chefe ou senhor acima da lealdade que deveria ser dedicada ao império
como um todo, o indivíduo renunciará à sua obrigação a uma ordem
universal, e a todas as massas de humanidade que não lhe sejam fami­
liares, às quais são tidas por beneficiárias dessa ordem universal. Da
mesma forma, podemos ver por que aqueles que estão comprometidos
com uma ordem anárquica enxergam a invasão de agentes do Estado
imperial com tamanho horror. Ao exigir que a fidelidade ao império

112 Não poucos imperadores se colocaram em grandes encrencas para fazer seus caprichos
conhecidos por seus súditos, para fazê-los sentirem-se leais ao imperador em pessoa. No
entanto, os resultados estão muito longe da lealdade prestada no âmbito familiar.

103
YORAM HAZONY

seja colocada acima da lealdade para com o indivíduo familiar que lhes
proporcionou proteção e cuidado, esses agentes do império deman­
dam nada menos do que a separação e traição dos vínculos pessoais
concretos que serviram de base para a sociedade.
A partir dessas observações, entendemos que o império e a anar­
quia não são apenas métodos concorrentes de ordenação do poder
político: cada um é um princípio normativo de ordenação, delineando
sua legitimidade segundo o modo pelo qual está enraizado na ordem
moral. Isso está de acordo com a nossa experiência, em que os defen­
sores do império e da anarquia apresentam seus pontos de vista não
só em termos das vantagens práticas que cada tipo de ordem deveria
fornecer, mas em termos de legitimidade moral e sanção que deve ser
atribuída a cada um. Nós podemos pensar nesses princípios normativos
de ordenação conforme segue.
Em uma ordem anárquica, a lealdade e a própria vida política estão
enraizadas no princípio moral da gratidão aos indivíduos das famí­
lias que ofereceram assistência. O indivíduo vive sob a proteção da
família ou do clã — proteção que inclui sustento material, recurso em
casos de injustiças, defesa contra estrangeiros, uma educação sobre as
vicissitudes e tradições de seu povo e rituais para atrair os deuses. Por
gratidão e respeito por aqueles que lhe forneceram esses ensinamen­
tos, o indivíduo presta serviços, conforme a solicitação dos chefes da
família ou clã. Desta forma, o indivíduo tem tudo que precisa, e suas
obrigações para aqueles que lhe deram rumo na vida e lhe forneceram
esses ativos são totalmente cumpridas.
Embora a base moral para tal política seja convincente e evidente,
as dificuldades envolvidas na manutenção de uma estrutura anárquica
ou feudal são bem conhecidas. Em primeiro lugar, os clãs e tribos que
vivem em uma sociedade anárquica estão constantemente à beira da
guerra, de modo que a guerra, que nós tendemos a imaginar como algo
periférico na sociedade, é trazida para o centro da vida das pessoas em
todos os lugares. Da mesma forma, enquanto as sociedades anárquicas
podem e desenvolvem elaboradas tradições para resolver as reivindica­
ções concorrentes de indivíduos e coletividades, tal justiça é não raro
difícil de ser aplicada sem recorrência ou ameaça de guerra, de modo

104
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

que a própria justiça é refém das relações de poder entre clãs e tribos.
Além disso, o papel do indivíduo familiar em governar o clã não é pura
e simplesmente um bem: a natureza pessoal da regra local significa
que a qualidade de suas relações pessoais com um chefe ou senhor
afetam cada aspecto da sua vida. Como conseqüência, até mesmo a
mais fatídica das questões pode ser decidida com base no preconceito,
com base em algum insulto antigo ou outro assunto irrelevante, sem a
possibilidade de um recurso. Finalmente, a liberdade oferecida a cada
clã e tribo em uma ordem anárquica significa que a ação defensiva
coordenada é difícil, e não pode ser sustentada por longo tempo frente
a uma ação militar disciplinada de um Estado invasor que possua um
exército profissional sob um comando unificado.
Em uma ordem imperial, por outro lado, toda a vida política
está enraizada no princípio moral da unidade de uma humanidade
não-familiar, um princípio que exige de cada indivíduo obrigações
para com o bem-estar comum da humanidade. A conquista de realezas
anárquicas de clãs e tribos, os quais o Estado imperial sempre se refere
como o domínio da selvageria, um “ reinado de guerra” , cria em seu
lugar um reino de paz e prosperidade. Através da conquista de terras
governadas sob a ordem de clãs e tribos, o Estado imperial afasta a
guerra desses territórios e a exila para uma distante fronteira, estabe­
lecendo em seu lugar uma lei universal e imparcial entre os homens. E
por meio dessa paz e dessa lei universal, o Estado imperial abre uma
vasta esfera para a agricultura, indústria e comércio, trazendo prospe­
ridade econômica para todos. É esta paz e prosperidade que dá sanção
moral às leis e guerras do Estado imperial, que, diz-se, beneficiam a
todos na humanidade.113
Como em uma ordem anárquica, descobrimos que a base moral
para o Estado imperial é, pelo menos inicialmente, convincente. No
entanto, aqui também existem dificuldades. A primeira delas é o
fato de que, onde quer que o princípio da unidade da humanidade
não-familiar tenha penetrado no coração do Estado, necessariamente
temos a conquista, a subjugação de povos distantes e a destruição do

113 Sobre a unidade humana como princípio ordenador dos Estados imperiais, v. Michael Walzer,
“ Nation and Universe” , em Tanner Lectures on Human Values, Salt Lake City: University
of Utah Press, 1990, pp. 11: 538-542.

105
YORAM HAZONY

seu modo de vida para que o “reino da paz” , como o império entende,
possa ser estendido. Isto é verdade mesmo quando o Estado imperial
parece, em um dado momento, ser benevolente em suas relações com
pessoas de fora, porque o princípio da unidade da humanidade não
permite qualquer comprometimento consistente com os forasteiros.
No curso normal dos assuntos políticos, todos os vizinhos, clãs ou
tribos acabam, mais cedo ou mais tarde, entrando em conflito com o
império por algum pedaço de terra, recurso ou política. M as a mente
imperial, que considera todos os recursos como pertencentes a toda
a humanidade, e que vê o Estado imperial como responsável pelo
bem-estar da humanidade, não pode aceitar outro resultado para tais
conflitos senão a “ pacificação” do clã dissidente ou tribo e a anexação
da terra ou recurso contestado. Cada uma dessas conquistas envolve
privar outro clã ou tribo de sua liberdade, que tende a ser concedida
apenas sob um custo terrível em termos de perdas humanas. E como
o império não possui um princípio interno que impeça a reafirmação
desse monstruoso hábito de conquista e devastação, a recorrência deste
padrão é limitada apenas pela medida de força que o Estado imperial
pode sustentar em suas fronteiras.
Não menos preocupantes, além disso, são os tributos do Estado
imperial para a manutenção de seus exércitos e fortificações, seus pa­
lácios, templos e burocracia. A imposição de tributos e recrutamentos,
tanto para obras públicas como para o serviço militar, é uma carga
pesada para o indivíduo, quando não é de fato uma calamidade. Do
ponto de vista de tribos e clãs, acostumados a uma vida de liberdade
e autodeterminação, toda a ordem imperial significa escravização.
Além disso, o regime de paz e prosperidade imposto pelo império tem
uma qualidade muito particular. O império, que afirma dar a lei a toda
a humanidade, necessariamente se preocupa com categorias abstratas
de necessidade e obrigação humana, categorias que são, aos seus olhos,
“ universais” . Mas essas categorias são sempre destacadas das circuns­
tâncias e interesses, tradições e aspirações do clã ou tribo particular a
quem agora serão aplicadas. Isso significa que, do ponto de vista do clã
ou tribo em particular, a lei imperial freqüentemente parecerá ter sido
mal concebida, injusta e perversa. No entanto, a própria premissa do
império, que é sua preocupação com as necessidades da humanidade,

106
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

deixa o clã único ou tribo sem bases para protestar, ao afirmar que seus
próprios interesses e aspirações devem inevitavelmente se chocar com
a ordem imperial, sendo assim uma ordem tacanha e contrária ao bem
evidente da humanidade como um todo. Desta forma o princípio da
unidade da humanidade, tão nobre em teoria, rapidamente divide os
homens em dois campos: aqueles que são considerados favorecedores
do bem da humanidade, na medida em que adotam as categorias do
império para determinar o que é benéfico e certo; e aqueles considerados
como opositores do bem da humanidade, que insistem em pensar pelas
categorias habituais da tribo, que o império invariavelmente condena
como primitivas e bárbaras.
Esse choque entre a lei imperial e as tradições e ideais da tribo chama
a nossa atenção para o que é talvez o dilema central do Estado imperial:
como a aspiração em unificar a humanidade pode ser reconciliada com
a natureza humana empírica? O império, como já foi dito, exige que
o indivíduo estabeleça e expresse lealdade a uma coletividade que, em
princípio, inclui todos os outros seres humanos. Mas por que deve o
indivíduo desenvolver laços de lealdade mútua que se estendem tão
longe? Vimos que a lealdade encontra sua expressão mais característica
no esforço em defender os membros de uma determinada coletividade
contra ameaças externas: os cônjuges brigam até serem confrontados
pela adversidade, mas depois enfrentam o desafio diante deles como
uma unidade. Do mesmo modo, as tribos que compõem uma nação
competem umas com as outras, até o perigo as unir em uma defesa co­
mum.114 O que, então, deveria estabelecer a lealdade do indivíduo com
todos os outros seres humanos? Na ausência de uma ameaça comum
para fornecer uma base genuína para a ação unificada, o chamado
para unir toda a humanidade parece mais do que vazio. Isso equivale
a um convite para ignorar os verdadeiros perigos que uma dada tribo
ou nação pode enfrentar nas mãos de outros em nome de uma causa
comum, que a seus olhos não seria mais do que uma ficção edificante.115

1.4 V. Theodor Herzl, “Judaism”, em Zionist Writings, trad. Harry Zohn, Nova York: Herzl Press,
1973, p. 51. [Na obra original Zionistiscbe Schriften, (Berlim: Jüdischer, 1920), coletânea
que inclui os vários estudos do autor (incluindo o seu clássico Der Judenstaat) o excerto
“Judaism” não consta. Trata-se de um texto publicado meses antes da publicação da obra
Der Judenstaat, segundo informado pelo Herzl Institut, do qual o autor é presidente. — n t ]
1.5 Adam Ferguson, An Essay on the History o f Civil Society, p. 29.

107
YORAM HAZONY

Os seres humanos, é claro, se envolvem em atos de simpatia e bon­


dade para com estranhos, sem referência a nação ou tribo. Mas essas
motivações, por mais que possamos prová-las, tendem a ser efêmeras
e não podem competir com os laços de lealdade mútua que estão na
fundação da ordem política.116 E a realidade é que raramente somos
movidos para ação por um laço de lealdade a todos os outros seres
humanos. No entanto, o Estado imperial precisa ser construído por
algum vínculo de lealdade mútua, ou seus soldados não estarão dis­
postos a lutar e morrer por isso. Nós vimos que nem a perspectiva do
lucro, nem a coação violenta que cada império usa, em algum grau
ou outro, podem ser invocadas para que se mantenha a longo prazo.
Qual, então, é o elo de lealdade que une o império?
A verdade é que, desde o alvorecer da história conhecida, o governo
e as forças armadas do Estado imperial foram construídos sob os laços
de lealdade que unem os membros de uma única nação — a nação
governante em torno da qual o Estado imperial é construído.117 Isto
não foi menos verdade entre os persas, gregos e romanos, do que o
foi para os espanhóis, franceses e ingleses. Cada um deles estabeleceu
um vasto império em que uma determinada nação governou sobre
muitas outras. Em cada caso, a nação dominante forma um núcleo
de indivíduos fortemente conectados que se defenderão a todo custo
contra os povos conquistados, a quem irão considerar uma ameaça
permanente.118 Em torno deste núcleo, o império pode então adicio­
nar outras nacionalidades aliadas — como os persas adicionaram os
medos às suas forças principais, e como o inglês adicionou os escoce­
ses, irlandeses e os galeses, bem como menor número de indivíduos
alistados de muitas outras nacionalidades. Todos estes são valiosos
na expansão do fornecimento de mão de obra confiável, e, ao mesmo
tempo, conferem ao esforço imperial um ar de universalidade que

116 V. Parte ii, nota 94 acima.


117 Azar Gat, Nations, pp. 111-131.
118 Os historiadores freqüentemente atribuem tal ameaça de rebelião de povos subjugados a
ressentimentos oriundos de opressão econômica. A exploração econômica está, sem dúvida,
presente na maioria dos casos de dominação imperial. Mas a ênfase neste fato obscurece
a similaridade fundamental entre os conflitos de nações vizinhas independentes e aquelas
que surgem dentro do Estado imperial, em que uma revolta é quase sempre de uma nação
conquistada contra a nação estrangeira que a subjugou.

108
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

ajuda a reforçar suas reivindicações como representante da unidade


de toda a humanidade.
Ademais, essa expansão muda o fato de que o império é, em última
instância, mantido coeso por lealdades mútuas dos membros de uma
nação governante, sua língua (idioma) e costumes, e sua cosmovisão
particular; às quais outras nações são convidadas, ou coagidas, a juntar-se.
Assim, enquanto os impérios gostam de identificar sua causa com o bem
final de toda a humanidade, esta causa está quase sempre intimamente
associada à dominação de uma nação às custas de todas as outras.119
Anarquia e império baseiam-se em princípios normativos de imensa
plausibilidade e poder: a lealdade aos indivíduos que integram famí­
lias caracteriza a ordem anárquica; e a unidade da humanidade é a
aspiração da ordem imperial. Nós não podemos dizer que qualquer
um desses princípios está errado. Cada um tem um certo lugar em um
sistema moral equilibrado. No entanto, quando um deles excede o seu
lugar adequado e é tomado como o princípio norteador de ordenação
do mundo político, em pouco tempo não mais engendrará a liberdade
dos povos, mas sim sua escravização: assim como o império tende a
escravizar os povos aos costumes e ideais de uma nação dominante,
o mesmo acontece com a anarquia, que tende à escravização por uma
disputa sem fim entre os homens fortes locais.

13. Liberdade nacional como princípio de ordenação


Império e anarquia são as pontas de um iceberg que vem perseguindo
a humanidade passo a passo desde a Antigüidade. As mais remotas
imagens políticas na Bíblia — o relato da torre de Babel,120 por exemplo,
no qual a liderança da cidade quis unir todos os homens sob uma única
língua para perseguir um propósito comum; ou o relato sobre a Arca

119 Como regra geral, os defensores do Estado imperial não se vêem como artificies apenas
da exploração das outras nações do mundo. Há, naturalmente, exceções e Niall Ferguson
descreve a ascensão do Império Britânico exatamente nestes termos. Niall Ferguson, Empire,
Nova York: Basic Books, 2002. Para um tratado mais completo, v. Anthony Pagden, Lords of
All the World, New Haven, c t : Yale University Press, 1995; David Armitage, The Ideological
Origins o f the British Empire, Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2000.
120 Conhecida por muitos como “Torre de Babel” , o autor usa o termo, no original em inglês,
“tower of Babylon” , abrindo mão do termo original hebraico para Babilônia ou BaveU
Babel (do original do Gênesis 11, 1-9, Midgal Bavel - ap) —nt

109
YORAM HAZONY

de Noé, uma pequena comunidade familiar expelida violentamente


de um sistema anárquico e igualmente violento — dão um senso de
quão profundamente esses dois males se imprimiram no pensamento
de nossos antepassados.121 E, de fato, o problema do império e da
anarquia é central para o ensino político das Escrituras Hebraicas. O
que os profetas de Israel propuseram em resposta a esse dilema era
um terceiro tipo de ordem política: a distinta instituição israelita do
Estado nacional, que busca transcender o dilema do império e da anar­
quia, retendo o que é mais vital em cada uma dessas ordens políticas,
enquanto descarta o que as faz perigosas.122
Vamos considerar essa ordem política alternativa. Sob o império
pressupõe-se que a lealdade do indivíduo é direcionada para a humani­
dade como um todo; enquanto em uma ordem anárquica é dedicada à
família ou clã politicamente independente. Aqui, o que é proposto é uma
ordem na qual a lealdade volta-se para uma instituição que fica precisa­
mente no ponto médio conceituai entre esses outros: o Estado nacional.
Por nação, quero dizer um número de tribos com uma herança
compartilhada, geralmente incluindo uma língua comum (idioma) ou
tradições religiosas, e uma história passada de união contra o inimigo
comum — características que permitem que as tribos se unam para se
assumir como uma comunidade distinta de outras comunidades vizi­
nhas.123 Por um Estado nacional, defino aqui o Estado representado
por uma nação cujas tribos distintas se uniram sob um único governo
permanente, independente de todos os demais governos.

121 Gênesis 6,5-8.14 ; 11,1-9.


122 Essa distinção de três vias entre cidades-Estados, Estados nacionais e impérios é tratada por
Grosby, Biblical Ideas o f Nationality, pp. 29-39,121-122; Yoram Hazony, “ Empire and
Anarchy” , Azure 12 (Winter 2002), pp. 27-70; Azar Gat, Nations, pp. 3, 83.
123 Mill considera que a herança compartilhada de uma nação cria uma porção de homens
“ unidos por sim patias comuns, que não existem entre eles e outros indivíduos” .
Essas simpatias comuns são baseadas na “ identidade dos antecedentes políticos; o
compartilhamento de uma história nacional e a consequente bagagem de recordações em
comum; orgulho e humilhação, prazer e pesar coletivos, ligados aos mesmos episódios no
passado” . Mill, Representath/e Government, p. 391. Sobre a religião como principal fator
de definição da nacionalidade, v. Gertrude Himmelfarb, “The Dark and Bloody Crossroads:
Where Nationalism and Religion Meet” , National Interest 32 (Summer 1993), pp. 53-61.
Uma terra ou território delimitado é tipicamente uma parte desse patrimônio nacional. Mas
note que um território com fronteiras recebe sua identidade da nação que vive sobre ele, e
não o inverso, como é freqüentemente proclamado. A esse respeito, v. o ensaio de Steven
Grosby “Territoriality” em Biblical Ideas o f Nationality, pp. 191-212.

110
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Estas definições significam, em primeiro lugar, que uma nação é


uma forma de comunidade, uma coletividade humana reconhecendo-se
como distinta de outras coletividades humanas. Tal comunidade pode
existir independentemente do Estado, e não precisa incluir todos os
indivíduos vivendo dentro do Estado.124 Em segundo lugar, tais defini­
ções significam que a unidade assim criada é sempre uma composição
— porque as tribos unidas nesse sentido continuam a existir mesmo
depois da independência nacional.125
O que significa dizer que o Estado nacional se assenta no ponto
médio conceituai entre o império e a anarquia? Em primeiro lugar, um
Estado nacional governa muitas famílias e clãs, enquanto um império
governa muitas nações. O Estado nacional está a meio caminho entre
a família ou clã e o estado imperial, em termos de escala.
Além disso, o Estado nacional também é qualitativamente diferente
da ordem política anárquica e imperial. A nação distingue-se da família
ou clã na medida em que não é uma comunidade de indivíduos que se
conhecem pessoalmente. Ninguém, não importa o quanto se esforce,
poderá estar pessoalmente familiarizado com os detalhes do que ocorre
até mesmo em uma pequena fração dos indivíduos que compõem uma
nação. A nação, em outras palavras, não é composta pela somatória
dos indivíduos que compõem famílias, mas é uma abstração impessoal,
124 Miller, Nationality, pp. 19-27; Gat, Nations, p. 23. Evitei usar o termo “etnia” (etnicity),
atualmente popular na literatura acadêmica, porque parece apenas contribuir para
uma desnecessária multiplicação de termos, valendo a palavra grega ethnos, que é
tradicionalmente traduzida como “ nação” ou “povo” . [Hazony faz referência ao termo
ÉOvoç, derivada do verbo ÊOmque significa “estabelecer” , normalmente usado no grego antigo
em sentido reflexivo (portanto, “ estabelecer-se” ). É desse mesmo verbo éOco que também
deriva a palavra ética [éOikóç, qual seja, étikhos], O ethnos, no grego antigo, era portanto
algo parecido com o que há de significado dentro da palavra self no inglês. Esse significado
acabou, ao longo do tempo, sendo ampliado para um conjunto de pessoas estabelecidas
em um mesmo lugar e que compartilham um mesmo “self status” . Na própria 1liada de
Homero o termo é usado como sinônimo de “ horda” (coç iôe Xaâív êOvoç èjtiaitófjevov èol
aÚTÕ>) — “ [Eis como Enéias se alegrava] ao ver tão numeroso séquito acorrendo” , segundo
tradução de Haroldo de Campos (Ilíada, vol. H. São Paulo: Arx, 2002, p. 39 — XIII.495).
Sobre o conceito de ÊOvoç vide A. Bailly, Dictionnaire Grec-Français, 26* ed.. Paris: Hachette,
1963, p. 581; Isidro Pereira, Dicionário Grego-Português e Português-Grego, 8* ed. Braga:
Apostolado da Imprensa, 1998, p. 166). — n t ]
125 Assim, um nacionalista é aquele que defende não apenas a independência da nação, mas
também a sua unificação. É nesse sentido que Joseph Ellis escreve que George Washington
era “ o mais nacionalista dos nacionalistas” por causa de seu apoio incondicional à unificação
sob um forte governo central durante e após a Guerra da Independência. Joseph Ellis, The
Quartet, Nova York: Vintage, 2015, p. 109.

111
YORAM HAZONY

no mesmo sentido que a humanidade é igualmente uma abstração. No


entanto, ao mesmo tempo, a nação também se distingue de todos os
integrantes da humanidade, pois possui um caráter bastante distinto,
a partir da sua própria língua, leis e tradições religiosas, incluindo a
sua própria história passada entre fracassos e realizações. Isso signi­
fica que cada nação é diferente de todas as outras, e para o indivíduo
membro de uma determinada nação é conhecida como um ser concre­
to e familiar, muito parecido com a unidade que repousa sobre uma
pessoa, uma família ou um clã. Quando as tribos de uma nação se
unem para estabelecer um Estado nacional, trazem para este Estado
o caráter familiar e distintivo da nação: sua língua, leis e tradições
religiosas, seu passado histórico de angústia e triunfo. E o indivíduo,
que põe nos ombros as cargas impostas pelo Estado nacional, o faz
por lealdade à nação concreta e familiar da qual ele faz parte. Aqui,
o Estado nacional é distinto do Estado imperial, ao qual o indivíduo
geralmente não tem tais laços de lealdade (a menos que, claro, seja ele
um membro da nação dominante, ou aliado da nação dominante, que
vê o império como seu próprio).
Gostaria agora de considerar que tipo de princípio ordenativo
surge uma vez que concebemos um comprometimento político que
paire acima da inserção de um indivíduo numa família dentro de uma
ordem anárquica, mas permanece ainda a meio caminho da amplitude
celestial de uma humanidade desconhecida. Aqui, no ponto de inflexão
entre a anarquia e o império, encontra-se um novo princípio de orde­
nação enraizado na ordem moral: o princípio da liberdade nacional.
Este princípio oferece a uma nação a coesão e força para manter a
independência e o autogoverno, e para suportar o canto da sereia do
império e da anarquia, isto é, significa uma oportunidade de viver de
acordo com seus próprios interesses e aspirações. Mais geralmente, este
princípio apóia o estabelecimento de um mundo em que haja muitos
desses Estados, cada um devotado a seus propósitos particulares e
desenvolvendo sua própria visão da vida humana, cada um “ sob sua
própria videira ou sua própria figueira” .126

126 Miquéias 4 ,4 . Compare com Reis 1.4.25.

112
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

O princípio da liberdade nacional pode assim ser considerado


tomando o que é vital e construtivo em cada um dos dois princípios
com o qual compete: do princípio imperial é necessária a idéia de
uma fidelidade direcionada à abstração do Estado, e não aos homens
inseridos em suas famílias — efeito prático decorrente da criação de
um grande espaço de paz doméstica; e a possibilidade de um sistema
judicial imparcial, que já não é amarrado à política de coletividades
formadas pela união entre famílias. Do princípio da anarquia, advém
o ideal de uma regulação dedicada às necessidades básicas e interesses,
tradições e aspirações de uma determinada comunidade, que é diferente
de todas as outras. Isso encontra ressonância no intuito de um governo
sobre uma nação singular — um intuito que não valoriza conquistas
estrangeiras, e pela primeira vez permite a concepção da liberdade das
nações mais do que o próprio ganho potencial em si mesmo.
É realmente possível falar da liberdade de uma nação? Para deixar
claro, diz-se que Israel regozijou-se em sua fuga da escravidão do Egito
no Mar Vermelho, e é essa liberdade da nação frente a um império que
é comemorada todos os anos nas festas de independência na República
Tcheca, Grécia, índia, Irlanda, Israel, Polônia, Sérvia, Coréia do Sul,
Suíça, Estados Unidos e muitos outros países.127 Hoje, no entanto,
uma vez que quase todo pensamento político se centra na liberdade
do indivíduo, a própria idéia de liberdade nacional parece duvidosa.
Não seria a liberdade algo que pertence apenas ao indivíduo, ao ser
humano que experiencia tanto a escolha quanto a restrição, e que se
regozija quando é “ livre para escolher” ?128
É verdade que a liberdade descreve um aspecto das ações e ex­
periências de um ser humano, assim como interesses e aspirações,
triunfo e tragédia, desejo, medo e dor são características da vida e da
paisagem mental do indivíduo. Mas estes termos semelhantes também
são usados para descrever coletividades humanas. Quando uma mãe
com um número de crianças é ferida em um acidente ou adoece, por
exemplo, dizemos que a família está sofrendo. É possível, se alguém
insiste, imaginar a mãe, seu marido, e cada um de seus filhos como
127 Êxodo 15,20-21.
128 Milton e Rose Friedman, Free to Choose, Nova York: Harcourt Brace, 1979. [Livre para
escolher: um depoimento pessoal, Rio de Janeiro: Record, 2015. — nt ]

113
YORAM HAZONY

indivíduos distintos, cada um experimentando sua própria dor pesso­


al como resultado deste traumático evento. Mas isso não é o que os
membros de uma família experimentam em tais circunstâncias. Eles
estão acostumados a pensar na família como uma coletividade, como
uma unidade, relacionando-se com os seus membros como partes de si
mesmo. Eis então como eles experimentam a dor da família: cada um
sente a dor não apenas da mãe, mas do pai, dos irmãos e das irmãs, e
cada um sabe que os demais também sofrem por ele na mesma medida.
Tudo isso é experimentado como uma única dor, uma única tristeza
em uma única carga emocional. E nós, seus amigos e vizinhos, quando
nós os visitamos, experimentamos o sofrimento de toda a família como
uma única dor, um único pesar e um único fardo. Uma família não é,
em outras palavras, apenas uma coleção de indivíduos. É também uma
entidade dotada de certas propriedades que lhe pertencem como uma
coletividade, como um todo. Uma delas é que uma família, devido ao
fato de cada um de seus membros experimentar o que acontece com os
demais como algo pessoal, pode ser reconhecida por qualquer obser­
vador como um compartilhamento de experiências. É essa experiência
de uma única dor compartilhada que se entende quando dizemos que
a família está com dor, que a família foi convulsionada, que a família
sofreu um golpe terrível e vai precisar de tempo para se recuperar.129
Assim como uma família pode sentir dor; também pode experimen­
tar o triunfo e a tragédia, desejo e medo, interesses e aspirações. Uma
família que ara com bois pode ter um interesse comum em comprar um
trator. Pode compartilhar do triunfo de uma filha considerada estéril,
mas que pôde dar à luz. Pode compartilhar a aspiração de um dia fazer
a viagem para a Terra Santa, e pode compartilhar um reconhecimento
de que chegou a hora de empreender a sua jornada. Nada disso tira
qualquer coisa do indivíduo, que é livre para resistir à inclinação de
sentir junto com sua família em casos particulares. De fato, uma pessoa
pode escolher alhear-se completamente de sua família. Mas em tempos

129 Pode-se dizer que a “ dor” é usada metaforicamente quando se refere à dor de uma família,
porque o que se entende por dor de família não é exatamente o mesmo que a dor sentida
pelo indivíduo. Isso é aceitável contanto que entendamos que a dor de família, embora seja
algo diferente do individual, não será menos concreta. Pensando dessa maneira, torna-se
necessário que usemos o termo “ metáfora” de uma maneira que esteja em desacordo com
o uso aristotélico habitual.

114
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

de grande coação, mesmo essas almas exiladas têm uma maneira de


retornar aos seus irmãos, descobrindo que ainda compartilham senti­
mentos com os semelhantes, junto de um desejo de compartilhar ações.
Todas essas coisas podem ser ditas de uma comunidade mais am­
pla, como um clã, uma tribo ou uma nação. Estamos acostumados,
por exemplo, ao modo como uma nação pode sofrer, pois todos nós
já experimentamos na nossa própria vida. Nós experimentamos isso
quando um presidente ou primeiro-ministro é assassinado, quando os
membros de nossa nação são abatidos em nossas ruas ou ficam reféns
em uma terra estrangeira, ou quando nossos soldados ou policiais são
derrotados em batalha. Um indivíduo que está ligado à sua nação por
laços de lealdade experimenta essas coisas como se estivessem acon­
tecendo consigo mesmo. E, como na família, é pouco relevante dizer
que cada um desses milhões de indivíduos experimenta sua dor pessoal
apenas como indivíduo. Pelo contrário, cada um experimenta a um só
tempo a dor dos outros. Um pesado sentimento de mágoa e humilhação
preenche os espaços públicos e adere a tudo o que acontece naquele
território, de modo que mesmo as crianças muito jovens, ignorantes
dos acontecimentos, sentem também dor e vergonha. É a nação que
foi prejudicada. E a nação que foi envergonhada.130
Se uma nação pode sofrer, também pode viver a experiência da
escravidão. Quando um povo descobre que sua propriedade é con­
fiscada, e seus filhos e filhas são forçados a servir aos outros para
perseguir objetivos que eles não desejam; quando eles são impedidos
de falar sua própria língua, ou de cumprir sua religião e obrigações;
quando seus filhos são tirados deles, ou são forçosamente privados
da instrução tradicional que recebiam; quando eles são assassinados,
presos e torturados por resistir a tais injustiças — quando essas coisas
acontecem, uma nação experimenta a escravização. De fato, mesmo que
haja alguém que seja por algum motivo poupado dos efeitos diretos da

130 V. Lenn Goodman, “The Rights and Wrongs of Nations” , em Judaism, Human Rigbts
and Human Values, Oxford, u k : Oxford University Press, 1998, p. 143. Bolsas de estudos
acadêmicas tendem a ressaltar o impacto dos meios modernos de comunicação sobre tais
experiências coletivas. Mas, como enfatiza Gat, as sociedades não-alfabetizadas têm seus
próprios meios de transmissão cultural em larga escala, incluindo uma rede de centros
religiosos por todo país, reuniões públicas nos dias úteis para ouvir rumores (news) e músicos
itinerantes, poetas, contadores de histórias e leitores. V. Gat, Nations, pp. 12-13.

115
YORAM HAZONY

perseguição, também ele vai compartilhar o sentimento de escravidão,


como se essas coisas lhe sucedessem pessoalmente.
Se uma nação pode experimentar a escravidão, obviamente também
pode experimentar a liberdade. Os membros de uma nação podem
compartilhar a experiência de terem sido libertos da opressão, isto é,
a alegria da libertação. E podem continuar a compartilhar uma expe­
riência de poder, de conduzir e determinar seu curso de acordo com
suas próprias aspirações, sem serem forçados a se curvar a qualquer
outra nação ou império. Lembre-se de que o propósito da política
é produzir circunstâncias em que muitos agem para realizar metas
consideradas necessárias ou desejáveis. Quando o indivíduo sente que
a coletividade é capaz de se mover em direção aos objetivos que lhe
parecem necessários ou desejáveis, ele sente uma grande libertação das
limitações. Ele sente, em outras palavras, a liberdade de uma coletivi­
dade: a liberdade da família, clã, tribo ou nação à qual está vinculado
por laços de lealdade.131
Ao participar da liberdade da coletividade, experimento algo bastante
distinto da liberdade estritamente individual, que me permite dizer o
que me agrada ou ir onde eu quiser. Por isso, é tentador admitir que
a liberdade individual é uma coisa e a liberdade coletiva outra, e que
a liberdade política consiste numa mescla dos dois. Mas a realidade
não é assim simples. Porque o indivíduo está sempre ligado por laços
de lealdade à sua família, tribo ou nação, e é um erro supor que ele
pode ter liberdade política quando a família, tribo ou nação não é livre.
Considere, por exemplo, o problema do escravo liberto. Nós ten­
demos a acreditar que para ter a alegria de libertar-se da escravidão e
entrar em uma vida de autodeterminação, um escravo só precisa comprar
de seu senhor a liberdade ou escapar em segredo. Contudo, isto não
é necessariamente verdade. Se a esposa e os filhos estão escravizados,
então alcançar a liberdade pessoal não traz libertação. Como já foi
dito, o indivíduo busca constantemente a saúde e a prosperidade da
coletividade à qual está vinculado por laços de lealdade. Ligado à sua
família, desta forma, o escravo liberto continuará experimentando,
todos os dias, a angústia dos seus como algo que o atinge pessoalmente.

131 Sobre “ autonomia coletiva” , v. Miller, Nationality, pp. 88-89.

116
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Ele não sente nenhuma alegria na libertação e nem o poder de


determinar seu próprio rumo de acordo com sua vontade. E não é
insultuoso e egoístico dizer a essa pessoa que ela pode agora “ deter­
minar seu próprio rumo” , quando permanece inerme para ajudar sua
esposa e filhos, ainda escravizados? É verdade que ele pode livremente
escolher entre as alternativas que lhe são deixadas. No entanto, ele vai
reconhecer, como também nós devemos reconhecer, que os cursos de
ação que ele realmente deseja não estão disponíveis. Esses cursos de
ação lhe foram roubados por restrições impostas por outros, e ele não
provará o gosto de liberdade até que sua família esteja também livre.
O mesmo é verdade para o indivíduo que foge de seu país, enquanto
a tribo ou nação em que ele foi criado continua a sofrer perseguição
nas mãos de um regime despótico. Tal indivíduo não pode mais “deter­
minar seu próprio curso” , pois é um homem cuja esposa e filhos estão
sendo mantido como reféns. Sabendo que seu povo é atormentado e
está em perigo, vivendo sua vida no exílio, ele é como o escravo liberto,
e todos os cursos de ação que gostaria realmente de adotar lhe foram
roubados. Ele espera provar a liberdade real apenas quando todos os
seus forem libertos e ele puder voltar para casa.
Um exemplo da história recente da minha própria nação pode ser
instrutivo. Durante a Segunda Guerra Mundial, a maioria dos judeus na
Europa foram assassinados pelo governo alemão e seus colaboradores.
Na época, havia milhões de judeus nos e u a e na Grã-Bretanha, bem
como em protetorados britânicos como a Palestina, onde meus avós
moravam. Esses judeus estavam bem conscientes de que seus irmãos
na Europa estavam sendo massacrados, e um grito surgiu entre os que
desejavam resgatá-los. Um deles foi meu avô Meir, que escreveu uma
carta para as autoridades exigindo que fosse provido com armas e
enviado à Europa — e ele não estava só. Sua carta, porém, não rece­
beu resposta. Os americanos e os ingleses estavam preocupados com
seus próprios interesses, os quais não envolviam fornecer ajuda nesses
esforços de resgate. Os ingleses trabalharam diligentemente para evitar
que judeus alcançassem segurança na Palestina, interceptando refugia­
dos e deportando-os para campos de refugiados no exterior. Os e u a
também se recusaram a bombardear as linhas férreas que eram usadas

117
YORAM HAZONY

para mandar judeus para os campos de extermínio. O maquinário do


extermínio assim foi operado durante toda a guerra sem significativa
resistência americana ou britânica. Os milhões de judeus que viviam
dispersos entre essas grandes nações gozavam de generosa liberdade
pessoal, mas, como seus companheiros judeus foram abatidos sem que
houvesse ninguém para salvá-los, eles entenderam, como nós também
devemos entender, que todos os cursos de ação realmente desejáveis
eram, na verdade, cursos de ação indisponíveis para aqueles judeus.
Apesar das liberdades individuais formais que lhes haviam sido conce­
didas, não tinham liberdade nacional, e assim jamais estiveram livres. A
liberdade nacional veio somente com o estabelecimento de um Estado
nacional judeu em Israel, que meu avô viveu para ver.
Neste caso, como em outros, a liberdade do indivíduo é vista como
dependente da liberdade de sua família, clã, tribo ou nação — isto é,
sobre a liberdade e autodeterminação da coletividade à qual ele é leal,
e cuja dor e degradação ele experimenta como se sua fosse. Se a co­
letividade é tão segregada, perseguida, ameaçada e abusada de modo
que não haja esperança de atingir seus objetivos e aspirações, então
essa coletividade não é livre, e o indivíduo também não o é.

14. As virtudes do Estado nacional


O sistema econômico de livre iniciativa é baseado no reconhecimento
de que o indivíduo deseja melhorar sua própria vida e circunstâncias
materiais, e, portanto, é ordenado de forma a dar a mais benéfica e
menos prejudicial expressão a este desejo. Procura, em outras palavras,
ser realista sobre a verdadeira natureza humana e alcançar o melhor
que pode à luz dessas características. Da mesma forma, a ordem
política de Estados nacionais baseia-se no reconhecimento de que o
indivíduo constantemente deseja e busca, de forma ativa, a saúde e a
prosperidade da família, clã, tribo ou nação à qual está vinculado por
laços de lealdade mútua, e é ordenada de forma a dar a mais benéfica
e menos prejudicial expressão a este desejo.
Neste capítulo, descrevo cinco maneiras pelas quais a ordem de Es­
tados nacionais independentes é reconhecida como superior às formas
anárquicas e imperiais de ordem política com as quais compete, uma vez

118
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

que o desejo humano de liberdade coletiva é levado em consideração,


e é levado à sua mais completa e salutar expressão.
1. A violência é relegada para a periferia. Sob uma ordem política
anárquica, o desejo de autodeterminação coletiva é manifestado por
meio da independência de cada clã e tribo em face de todas as demais.
Em tais circunstâncias, a lealdade do indivíduo para com o clã ou tri­
bo exige que ele vá para a guerra por causa dessas coletividades, seja
em busca de seus interesses ou para obter justiça quando a mediação
não-violenta falhou. De fato, nem seus interesses nem a justiça tendem
a ser alcançáveis sem a constante ameaça de violência, e todas as vidas
estão sujeitas a isso.132
Quando a lealdade do indivíduo é revertida para o Estado nacio­
nal, o foco de seu desejo de liberdade coletiva e autodeterminação
se desloca para um nível acima. Isso não significa que ele renuncie à
lealdade para com seu clã ou tribo. M as onde a unificação das tribos
sob um estado nacional for bem-sucedida, o anseio pela liberdade e
autodeterminação do clã ou tribo será contido por um intenso desejo
de alcançar a integridade interna da nação. O desejo pela integridade
interna da nação acaba com a guerra enquanto instrumento para
perseguir os interesses do clã ou tribo, de modo que ela é retirada
desse âmbito e passa a defender exclusivamente a ordem doméstica
e a paz em ampla esfera nacional. Da mesma forma, a administração
da justiça, que era assunto a ser resolvido, quando necessário, pela
violência entre clãs e tribos, é realocada dentro de um sistema de
leis, policiamento e tribunais, que respondem ao governo nacional,
portanto são livres das influências de uma determinada família, clã
ou afiliação tribal.133
Desta forma, o Estado nacional suprime a guerra como meio de
resolver conflitos domésticos, banindo-a para a periferia da experiência
humana. Certamente, os servidores do Estado no governo e soldados
continuam a dedicar-se às lutas entre os Estados nacionais e suas guer­
ras. Mas agora a violência colide com a vida do indivíduo muito mais

132 Sobre a violência na ordem das tribos e clãs, v. Steven Pinker, The Better Angels o f Our
Hature, Nova York: Penguin, 2012, pp. 47-55.
133 Em um regime federal ou similar, haverá tribunais locais e polícia local e até mesmo leis
locais. Mas estes ainda responderão ao governo, que os supervisionará. V. o cap. 15.

119
YORAM HAZONY

raramente, e quase sempre a uma longa distância da sua casa, onde sua
família pode viver tranqüilamente, mesmo quando a guerra ocorre em
outro lugar. A criação dessa esfera de paz, na qual a família e a vida
econômica pode se desenvolver amplamente protegida da violência, é
a primeira inovação do Estado nacional, sobre a qual muitas outras
inovações são construídas.
2. Desprezo pela conquista imperial. Um Estado nacional é uma
instituição em uma escala limitada. Isso significa que os governantes
do Estado nacional herdam uma tradição política que reconhece como
limites naturais as fronteiras da nação e suas necessidades defensivas, e
assim tendem a desprezar a idéia de conquista de nações estrangeiras.
É o oposto do que ocorre no Estado imperial, onde se transmite uma
tradição política que não reconhece tais fronteiras, e seus governan­
tes estão sempre encontrando razões para conquistar outros povos.
Como já foi dito, cada uma dessas visões está enraizada na ordem
moral — os imperialistas insistem que é justo estender o reino da paz
e da prosperidade econômica que seu governo trará à humanidade; e
os nacionalistas enfatizam que a coisa certa é a liberdade das nações
e sua autodeterminação. Cada uma dessas posições tem uma certa
plausibilidade. Mas o desprezo por guerras de expansão indefinida,
que é tanto uma causa quanto uma conseqüência do ideal político do
Estado nacional, é um benefício tão grande que pode, por si só, ser
suficiente para decidir sobre o melhor argumento dentre essas visões.
Embora a aversão à conquista de nações estrangeiras seja em geral
apresentada como uma gentileza para com os outros, é importante
reconhecer que, antes de mais nada, representa de um certo modo os
interesses da própria nação. Por muitas vezes assume-se equivocada­
mente que todas as nações tendem a se considerar, como os romanos
fizeram, mais fortes quando subjugam mais nações ao seu governo,
expandindo o tamanho da economia a partir da qual captam impos­
tos e, portanto, o tamanho dos exércitos que podem levar a campo.
Mas há uma tradição alternativa que descende do antigo Israel, que
considera tais Estados imperiais intrinsecamente fracos, desprezando
suas expansões indefinidas como algo que prejudica a nação, e não a
beneficia. Isso vai bem expresso por Herder, quando ele escreve sobre

120
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

a intrínseca fragilidade dos Estados imperiais, e, por contraste, a lon­


gevidade dos Estados nacionais:

O estado mais natural é, portanto, u m a nação, uma família extensa com


um só caráter nacional. Tal caráter permanece por gerações e se desenvolve
mais naturalmente quando os líderes vêm do povo [...]. Nada, portanto, irá
parecer tão patentemente contrário aos propósitos do governo político do
que a ampliação artificial dos Estados, a mistura selvagem de várias etnias
e nacionalidades sob um único cetro. Um cetro humano é muito fraco e
diminuto para que esses retalhos paradoxais possam ser nele enxertados.
São assim tais Estados agregados a esta engenhoca, uma máquina frágil,
uma espécie de “ máquina estatal” sem vínculos de afetividade ou simpatia
entre essas distintas partes [...] somente a “maldição do destino” conde­
naria à imortalidade essas uniões forçadas, estas monstruosidades sem
vida: a história, porém, mostra, suficientemente, que os instrumentos do
orgulho humano são feitos de barro, e como todo barro se dissolvem ou
se rompem em pedaços.134

134 J. G. Herder, Ideas for a Philosophy o f the History o f Mankind, p. 324 [Idéias para uma
filosofia da história da humanidade, pp. 315-316 do original alemão Ideen zur Philosophie
der Geschichte der Menschheit, vol. ii , Karlsruhe: Christian Gottlieb Schmiedei, 1794. — nt ].
Hume argumenta de modo parecido, apontando para a falta de interesse que muitas nações
têm em lutar muito longe de casa. Como conseqüência, ele escreve sobre os impérios que “ sua
queda [...] nunca está muito distante de sua ascensão” , cf. David Hume, “ Of the Balance
of Power” , Essays, org.: Eugene E Miller, Indianápolis, in : Liberty Fund, 1985 (1753), pp.
340-341. Montesquieu, Burke e Adam Smith também expressaram desaprovação em face
dos impérios. Suas opiniões são discutidas em ensaios por Michael Mosher, Uday Singh
Mehta e Emma Rothschild em Empire and Modem Political Thought, org.: Sankar Muthu,
Cambridge, Reino Unido: Cambridge University Press, 2012.
[Como não há uma tradução para o português da obra de Herder, fizemos uma versão
compatível a partir da tradução direta do alemão, e não por meio da tradução de segunda
mão do inglês. Nossa primeira observação diz respeito ao uso do termo “ partes coladas
umas às outras” : o termo original usado por Herder é zusammengeleimt, que foi traduzido
na versão inglesa para patched up contraption. O termo original zusammengeleimt decorre
do verbo zusammenleimen, que é a junção de zusammen (junto) com leim, que era um tipo
de cola usada na carpintaria para juntar pedaços de madeira para fazer mesas, cadeiras ou
peças afins. É também um tipo de cola que permitia unir peças de naturezas distintas, como
madeira com tecido, ou madeira com papel, ou ainda tecido com papel. N o português popular
do Brasil, o leim alemão é algo como o nosso “ Super Bonder” . O sentido dado por Herder
a essas “ partes coladas umas às outras” por meio de uma cola própria para juntar coisas
que não são feitas para serem coladas umas às outras, no ótimo português, seria o mesmo
que gambiarra. O segundo termo ao qual me coube dar especial destaque foi “ maldição
do destino” , que no original alemão é der Fluch der Schiksals e se tomou, em inglês, the
course offaith. A tradução literal deveria ser “maldição dos Shiksals” , mas esse sentido seria
apreendido por poucas pessoas, uma vez que trata-se de uma referência às shiksa, mulheres
não-judias que tiram o rapaz judeu do seu “caminho” . O termo é sempre usado em tom
agressivo e pejorativo nas comunidades judaicas ortodoxas e o shiksal se presta para designar
aquela criança nascida em uma comunidade judaica mas de mãe não-judia. Quando Herder
diz “ somente a maldição do destino condenaria à imortalidade essas uniões forçadas” (no
original em alemão nur der Fluch der Schiksals sie zur Unsterblichkeit verdammen konnte),

121
YORAM HAZONY

Nesta passagem, Herder descreve o Estado imperial como nada


além de uma “maldição” para todos os envolvidos. De acordo com este
ponto de vista, o governo humano é inerentemente limitado naquilo
que pode obter, e só é forte e eficaz quando os “vínculos de afetividade”
[inneres lebert] que unem uma única nação em um Estado nacional são
conduzidos por líderes saídos do seio povo. A “ ampliação artificial dos
Estados” , que força muitas nações a se unirem sob uma única regra,
não será baseada em tais vínculos de afetividade. Isso só acrescenta
às cargas e dificuldades acumuladas sobre o Estado “ retalhos para­
doxais” [wiedersinnig Theile] que não estão unidos por lealdade, mas
apenas adicionados a ele, até que, finalmente, sobreviva apenas como
uma “ engenhoca” ou “colagem” [zusammenlegen/zusammenlegung]
rangendo sob o peso desses problemas.
Subjacente a essa abordagem está o reconhecimento de que a saúde
de uma nação é medida não apenas em termos de sua força econômica,
mas também ao longo de outras dimensões não menos significativas.
O que Herder descreve como “caráter nacional [que] permanece por
milhares de anos e se desenvolve” [Nationalcharakter Fahrtausende
lang erhãlt sich dieser in ihm ... (und) ausgebildt...], refere-se ao que
chamei de integridade interna e herança cultural da nação. E são essas
coisas que tendem a se perder quando o Estado imperial se expande.
Isso ocorre porque as nações conquistadas trazem suas próprias aspi­
rações, problemas e interesses para dentro do Estado, e essa crescente
diversidade torna o Estado mais difícil de governa^ enfraquecendo
as lealdades mútuas que ali se sustentavam, dissipando sua atenção
e recursos no esforço de suprimir conflitos internos e a violência que
anteriormente era desconhecida, forçando os governantes a adotarem
medidas opressivas e meios de manter a paz. Quando isso acontece, os
governantes são absorvidos em intrigas e negociações entre partidos
rivais em terras distantes. Isso apela para a sua vaidade, à medida que
lhes permite se ver como “ homens do mundo” . Mas, em realidade, a
sua compreensão das nações estrangeiras que procuram pacificar é
quase sempre limitada a aspectos superficiais exteriores, a caricaturas

na realidade está literalmente dizendo “ apenas a maldição de um Shiksal (isto é, a maldição


que paira sobre alguém que é obrigado a viver em uma comunidade judaica não tendo
nascido de mãe judia) condenaria à imortalidade essas uniões f o r ç a d a s — n t ]

122
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

ocas e sem sentido; assim, tendem eles a fazer tanto o mal quanto o
bem, ao aplicar as categorias superficiais e supostamente “universais”
à sua predisposição a circunstâncias que se passam nos confins da
terra.135 Enquanto isso, quando alguém lhes aborda com uma questão
sobre a saúde e a prosperidade das suas próprias nações, concedem
escassa atenção a tais problemas, e secretamente passam a lamentar
a intromissão de “questões domésticas” enquanto urgem os grandes
problemas. Nesse sentido, a mentalidade dos governantes se transforma,
e eles se tornam tão desavisados a respeito das preocupações de seu
próprio povo quanto em relação aos interesses das nações estrangeiras
que buscam governar.
Tudo isso é visto com horror pelos povos com fortes tradições em
torno de um Estado nacional, que tendem a desprezar a idéia de que os
líderes de seus países devem se perder nos esforços para a preservação e
governo de um império de nações estrangeiras, em vez de fortalecer as
tribos de sua própria nação em sua própria terra. Desde tal perspectiva,
os governantes da nação são nomeados entre seus membros por causa
dos laços de lealdade mútua que os ligam ao seu próprio povo, per­
mitindo-lhes experimentar as necessidades da nação como suas. Onde
esta fidelidade é honrada, os olhos dos governantes permanecem fixos
em aumentar a saúde e a prosperidade de sua própria nação, não só
expandindo seu poder econômico e militar; mas também mantendo e
fortalecendo sua integridade interna, e testemunhando assim a conso­
lidação e a transmissão de sua herança cultural. Permanecendo leais ao
seu próprio povo, eles experimentarão tais coisas como se estivessem
constantemente crescendo em força, e tendo medo de dissipá-las na
expansão imperialista. De fato, ao lado da derrota no campo de bata­
lha, esta aversão em desperdiçar a força da nação no governo de terras
estrangeiras é o maior fator que se opõe à inclinação de governantes ao
engrandecimento através de conquistas. São, portanto, nos vínculos de

135 Como Mill diz sobre os ingleses na índia, sua interferência foi “ quase sempre no lugar errado.
As causas reais que determinam a prosperidade ou a miséria, o avanço ou a deterioração
dos indianos escapam totalmente à sua compreensão. Não têm o conhecimento necessário
para sequer suspeitar da existência dessas causas, muito menos para julgar a atuação delas.
Os interesses mais fundamentais do país podem ser bem administrados sem qualquer
aprovação da parte deles ou mal administrados quase ao exagero sem que se apercebam”
Mill, Representative Government, p. 418 [Considerações sobre o governo representativo,
p . 314. — n t |

123
YORAM HAZONY

lealdade mútua, ao lado das tradições de um Estado nacional, que se


enfatiza e reenfatiza a importância dessa aliança de governantes com
o seu próprio povo, que bruscamente limita o horizonte político do
Estado nacional, estabelecendo um Estado que prefere permitir que
outras nações se autogovernem, ao invés de tentar anexá-las todas,
uma após a outra.
Isso não sugere que o Estado nacional tende, pela sua natureza, à
paz. Os perigos que o Estado nacional enfrenta em face de inimigos
estrangeiros podem ser bastante reais, e os governantes do Estado
nacional devem julgar a necessidade do uso da força em resposta a
tais perigos, buscando alterar as condições ao longo de suas fronteiras
ou fora delas, ou tentando alterar esses limites. Vimos muitas guerras
entre nações: aquelas entre ingleses e irlandeses, sérvios e croatas,
índia e Paquistão, Israel e os estados árabes, e assim por diante. Em
tais conflitos, os líderes dos Estados nacionais podem ter suas ações às
vezes justificadas, às vezes mal orientadas. Ninguém pode negar que
um arrogante excesso de confiança e intolerância têm freqüentemente
caracterizado o discurso quando se trata de guerra com os vizinhos, ou
que os líderes nacionais recorrem freqüentemente a guerras desneces­
sárias para ganhar alguma vantagem territorial, política ou econômica.
Mas mesmo se o Estado nacional não tender necessariamente para
a paz, há outra reivindicação a ser feita em seu nome, e não menos
significativa: considerando que o Estado nacional herda uma tradição
política que desdenha de táticas de conquista de nações estrangeiras, as
guerras entre os Estados nacionais tendem a ter um escopo limitado,
tanto em recursos investidos quanto na escala de destruição e miséria
que causam. Isso tem freqüentemente sido enfatizado em relação aos
Estados nacionais da Europa Ocidental após os tratados de Westfália,
que por séculos continuaram a lutar guerras limitadas entre si, visando
vantagem política ou econômica, mas abstendo-se de qualquer engaja­
mento de guerra constante com o objetivo de eliminar outros Estados
nacionais de forma completa ou absoluta.136
136 Esta não é uma conquista insignificante, considerando que no período de 1337 a 1453
cinco reis ingleses gastaram o melhor dos recursos de seu povo em um esforço infrutífero
para conquistar a França. Para um exemplo mais recente de uma política tão extrema de
aniquilação, basta olhar para a partilha da Polônia, que extinguiu sua existência como nação
independente em 1795. Nenhuma das partes da partilha — Áustria, Rússia e Prússia — era

124
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Ao longo dos últimos quatrocentos anos, a Europa certamente co­


nheceu as guerras de devastação potencialmente ilimitada. As guerras
que agora assombram a Europa — e com ela o mundo — não eram, no
entanto, guerras entre os Estados nacionais buscando ganhar vantagem
sobre seus rivais. Pelo contrário, eram guerras ideológicas, travadas
em nome de alguma doutrina universal que deveria trazer salvação
para toda a humanidade. Por causa desta doutrina universal, exércitos
foram enviados para o mundo para engolir uma nação após outra,
com o objetivo de anular a ordem de vida estabelecida em cada nação
conquistada. Este foi o caso da Guerra dos Trinta Anos, que foi travada
para impor um Império católico alemão sobre a Europa. Da mesma
forma, as Guerras Napoleônicas, que procuraram derrubar a velha
ordem política e estabelecer um Império Francês-Liberal por todo o
continente e além dele, foram desse mesmo tipo. E não foi menos ver­
dade o que ocorreu na Segunda Guerra Mundial, na qual um Império
Alemão-Nazista pretendia estabelecer uma nova ordem de acordo com
sua perversa teoria universal a respeito da salvação da humanidade.137
Em contraste com esses levantes ideológicos, a Primeira Guerra
Mundial é freqüentemente invocada como uma guerra paradigmática
entre Estados. Inúmeros volumes foram escritos sobre as causas desta
catástrofe, e é difícil imaginar que uma inequívoca conclusão venha
a ser tirada. Dito isto, penso que as explicações mais comuns para a
guerra, que são ensinadas para todos os alunos do ensino médio em
todo o Ocidente hoje, são inteiramente frágeis. De fato, a colisão entre
o nacionalismo sérvio e o Império Austríaco foi a mais imediata causa
do conflito. Mas o desejo dos sérvios de libertar determinados territórios
controlados pela Áustria-Hungria em nada motivou ou sustentou uma
guerra que veio a mobilizar, por mais de quatro anos, os recursos mais
completos entre todos os impérios mais poderosos da terra, matando
talvez vinte milhões de seres humanos e destruindo fisicamente um
continente. Nem é qualquer desdobramento da discussão — sobre
a rigidez da aliança do sistema europeu, as promessas entrelaçadas
de ajuda mútua em caso de conflito, a rapidez com que os planos de

Estado nacional.
137 Um tratado comparável, porém disposto em outros termos é o de Henry Kissinger, World
Order, Nova York: Penguin, 2014, pp. 37,41-44 [Ordem Mundial, p. 37-41. — n t ]

125
YORAM HAZONY

mobilização tiveram que ser implementados — que torna convincente


uma explicação. No máximo, estas coisas descrevem o modo como
a guerra começou. Elas não chegam nem perto de explicar por que a
guerra se desenvolveu por tantos anos, e a tamanho custo, ao invés de
ser resolvida por um armistício, logo que as fatalidades começaram a
se tornar evidentes.
Para entender o que prolongou a Primeira Guerra Mundial, trans­
formando-a no horror que hoje conhecemos, acredito que não há outra
escolha a não ser olhar para o imperialismo dominante nas políticas
da Grã-Bretanha, França, Rússia e Alemanha. Como foi enfatizado por
muitos observadores na época, não é possível separar os fenômenos
da guerra e da frenética expansão de impérios ultramarinos, que entre
1871 e 1914 levaram à conquista e anexação de aproximadamente
um quarto da superfície terrestre — em grande parte na África, Ásia
e Pacífico, por europeus e japoneses. A expansão surpreendentemente
agressiva dos impérios britânico e francês, em particular, fez com que
muitos — especialmente na Alemanha — concluíssem que a era do
sistema do Estado nacional europeu tinha, com efeito, chegado ao fim.
O que estava emergindo em vez disso era uma luta entre um pequeno
número de “ Estados do mundo” , cada qual um império universal pro­
curando moldar o resto do mundo segundo o seu próprio caráter. Esta
parece ter sido a visão do Kaiser Wilhelm n, pois ele e seus ministros
aparentemente acreditavam que poderiam competir com um Estado bri­
tânico mundial, já avançado em uma surpreendente posição de domínio
global, apenas mediante a retirada da França de sua posição de força
no continente seguida da unificação de boa parte da Europa Central
e Oriental sob a “ liderança” alemã. Foi a necessidade de produzir tal
mudança permanente no caráter da política européia que insuflou a
determinação do Império Alemão de enfrentar uma weltkrieg — isto
é, uma guerra mundial —, assim como a guerra imperialista visando a
anexação de todo o Oriente Médio apareceu com força nas tomadas
de decisão inglesa e francesa.
A Primeira Guerra Mundial foi em grande parte o fruto da pai­
xão dos Estados nacionais europeus pelo imperialismo. Uma vez
que a competição por impérios no exterior permaneceu uma disputa
entre os Estados nacionais tradicionais da Europa Ocidental, como

126
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Grã-Bretanha, França e Holanda, ainda foi possível manter o sistema


dos Estados nacionais dentro da Europa como a marca das relações
entre nações “civilizadas” (enquanto as “não civilizadas” , como os
povos da África e da Ásia, eram vistas como não merecedoras de Es­
tados nacionais próprios). M as o recém-criado Império Alemão não
se comprometeu com o ideal do Estado nacional. Nem seus líderes
poderíam ver muita razão para concentrar recursos em tentativas de
expansão na África, quando um vasto império poderia ser construído
mais facilmente e com maior vantagem sobre o continente europeu
como um todo.138A causa da Primeira Guerra Mundial foi, em outras
palavras, a determinação da Alemanha de reviver o imperialismo no
continente, dando fim à ordem européia de Estados nacionais para
sempre — e a igual determinação da Grã-Bretanha em evitar isso. As
causas da Primeira Guerra Mundial são, neste particular notavelmen­
te semelhante às causas da Segunda Guerra Mundial. Ambas foram
travadas principalmente em torno da possibilidade de unir a Europa
sob a autoridade de um imperador alemão. Ambas foram guerras
imperiais refletindo aspirações universais. E a destruição que elas
causaram com esse objetivo é incomensurável.139
Em geral, as aspirações dos Estados nacionais tendem a produzir

138 Da mesma forma, Hitler declarou que os povos eslavos seriam para Alemanha o que a índia
foi para a Grã-Bretanha. Ferguson, Empire, p. 279.
139 O debate acerca da obra de Fritz Fischer Germany’$ WarAims in the First World War, Nova
York: Norton, 1968, foi em grande parte moldado pela tese que Fischer erigiu sobre o fato
de a Alemanha carregar grande parte da culpa pela Primeira Guerra Mundial. Mas não é
preciso aceitar essa conclusão para reconhecer o poder do argumento de Fischer de que
os alemães foram movidos por uma estratégia imperialista no continente, preparavam-se
para implementar esta estratégia há anos, e aparentemente encontraram na crise da Sérvia
uma oportunidade de finalmente perseguir esse intento. Esses fatos conseguem atribuir a
culpa da guerra à Alemanha apenas se se assumir que os imperialismos britânico e francês
desempenharam pouco ou nenhum papel na provocação da crise e no prolongamento da
guerra, uma vez em curso. Livros como de Christopher Clark, The Sleepuialkers, Nova
York: Harper Collins, 2012, que vê a Primeira Guerra Mundial como iniciada quase
acidentalmente, tendem a ignorar ou subestimar as décadas de competição imperialista que
levaram a Alemanha a enfrentar Grã-Bretanha em resposta ao caráter da ordem mundial
que esta pretendia impor (deixando assim convenientemente os nacionalistas sérvios, cujas
maquinações foram a causa imediata da guerra, como os únicos “vilões” na história). Para
uma visão geral da disputa em relação à tese de Fischer, v. John C. G. Rõhl, “ Good bye to AU
that Again? The Fischer Thesis, the New Revisionism, and the Meaning of the First World
War” , International Affairs 91 (2015). Sobre as aspirações imperiais alemãs, v. também
Gabriel Liulevicius, War Land on the Eastern Front, Cambridge, Reino Unido: Cambridge
University Press, 2005; Pierre Manent, A World Beyond Politicsi, pp. 83-84.

127
YORAM HAZONY

pequenas guerras cuja finalidade é promover ajustes na hierarquia


de poder entre os contendores, ou para alcançar uma alteração nas
fronteiras entre si. As aspirações universais dos Estados imperiais
tendem a produzir vastas guerras ideológicas, que por sua vez procu­
ram estabelecer, de uma vez por todas, um mundo ideal em troca de
devastação numa escala também mundial. Entre os povos com fortes
tradições de Estados nacionais, os laços de lealdade mútua que unem
os membros da nação têm esse efeito: limitam a extensão das guerras
conduzidas pelos Estados nacionais, pois a atenção dos governantes
está constantemente voltada para as dificuldades sofridas pela própria
nação, e ao que pode ser feito para fortalecer a prosperidade material,
a integridade interna e a herança cultural dentro de suas próprias
fronteiras. Isso encoraja, no estadista nacionalista, uma repugnância
salutar pelo uso de forças armadas para suprimir nações estrangeiras,
e para desperdiçar o seu mandato gerindo crises em terras estrangeiras,
causadas ou exacerbadas pela presença dessas forças militares.
Nesse sentido, é instrutivo considerar o destino do imperialismo
americano após o seu primeiro breve entusiasmo, que se deu nos anos
80.140 Sob o Presidente William McKinley, os e u a resolveram tornar-se
um império mundial com a missão de levar sua herança cultural cristã
e capitalista para os incivilizados recantos do globo. Em nome desta
grande visão, os e u a conquistaram as Filipinas, Cuba, Porto Rico, e
outras possessões do Império Espanhol, encontrando apenas uma tenaz
resistência militar. Americanos, que se consideravam libertadores, de
repente se viram submergidos em uma série de guerras de repressão
colonial.141 O poderoso desdém para com impérios estrangeiros que
deu origem aos e u a reafirmou-se, e a liderança americana de Teddy
Roosevelt a Woodrow Wilson rapidamente perdeu interesse na expansão
ao exterior. Às Filipinas e a Cuba foi logo concedida a independência.

140 Não muito antes disso, evitar possessões no exterior era uma política americana consistente.
O Presidente Grover Cleveland, por exemplo, argumentou em 1893 que a anexação do
Havaí era “ uma perversão da missão da nossa nação. A missão da nossa nação é construir
e fazer um grande país, em vez de termos de sair anexando ilhas” . Citado em John Judis,
The Folly ofEmpire, Nova York: Scribner, 2003, p. 26.
141 Stuart Creighton Miller, Benevolent Assimilation, New Haven, c t : Yale University Press,
1984. Para um exemplo pungente das aspirações do imperialismo dessa época, v. Theodore
Roosevelt, “ Expansion and Peace” , The Independent, 21 de dezembro de 1899, em The
Strenuous Life, Mineola, ny: Dover; 2009 (1910), pp. 11-18.

128
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Tendo experimentado a idéia de um grande império mundial ideologi­


camente abastecido, americanos retornaram à sua tradição de Estado
nacional — uma preferência que permaneceu em vigor até depois da
Segunda Guerra Mundial.142
Mas, e os Estados nacionais europeus? Até mesmo Estados nacionais
protestantes, como a Grã-Bretanha e a Holanda, originalmente recua­
ram do imperialismo apenas em termos de suas aspirações na Europa
continental. O poder da Espanha católica foi construído sobre a riqueza
de seu vasto império ultramarino, e estes novos poderes oriundos de
uma tradição protestante, incluindo os franceses, procuraram impé­
rios próprios para competir financeira e militarmente. Esta dualidade
entre as potências européias independentes — nacionalista em casa,
mas imperialista na conquista dos povos da Ásia, América e África —
apresenta uma imagem em muitos aspectos apavorante.143 No final,
a expansão ultramarina britânica, francesa e holandesa serviu como
uma provocação a um modelo de ideologias imperialistas na Alemanha,
Itália e Japão — ideologias que desprezavam todo o sistema europeu
do Estado nacional. Nas duas guerras mundiais que se seguiram e nas
suas respectivas conseqüências, foram principalmente os estadistas
americanos que reconheceram as raízes imperialistas dessa catástrofe,
e, finalmente, obtiveram a aceitação generalizada para o princípio de
uma ordem política nacionalista.144

142 Teddy Roosevelt, originalmente um dos mais sinceros defensores do império americano,
mudou de lado, atacando “ internacionalistas profissionais” e “caprichosos de todos os
tipos que pervertem o nacionalismo sadio” . Citado em Judis, The Folly ofEmpire, p. 113.
De fato, os presidentes americanos foram incapazes de engajar sua nação em guerras no
exterior novamente até que os japoneses atacassem Pearl Harbor em 1941.
143 A perversidade dessa dualidade talvez seja melhor expressa no fato de que a Inglaterra,
cuja tradição de direito consuetudinário (common law) proibia a escravidão em seu próprio
solo, era também uma grande potência comercializadora de escravos, com seus navios
transportando milhões de escravos africanos para as Américas. Eventualmente, no final
do século xvni, o engajamento cristão conseguiu transformar o governo britânico em um
agente ativo nos esforços pela abobção da escravidão em todo o mundo (v. David Brog, In
Defense ofFaith, Nova York: Encounter, 2010, pp. 125-156). Mesmo essa mudança central
não impediu que a Grã-Bretanha perseguisse a expansão de seu império, na crença de que
estava levando o cristianismo e as instituições civilizadas ao alcance da humanidade.
144 Contudo, o apoio americano a uma ordem de Estados nacionais independentes não foi
inequívoco. O entusiasmado apoio de Woodrow Wilson à autodeterminação dos povos não
o impediu de trabalhar para estabelecer a Liga das Nações como uma forma de governo de
cooperação internacional coercitiva. Seu objetivo era estabelecer um tribunal internacional
de leis “como a regra real de conduta entre os governos” — precisamente o oposto da

129
YORAM HAZONY

3. Liberdade coletiva. Os seres humanos constantemente desejam


buscar a saúde e a prosperidade da família, clã, tribo ou nação a que
estão ligados por laços de lealdade mútua. Sob uma ordem de Estados
nacionais independentes, a humanidade atinge o maior grau de liber­
dade para buscar tal saúde coletiva e prosperidade. Vamos entender
por que isso é assim.
A ordem das tribos e clãs é aquela na qual se dá grande relevância à
liberdade e à autodeterminação do coletivo. Aqui, a preocupação com
a prosperidade material coletiva, sua integridade interna e herança cul­
tural é bastante abrangente. No entanto, é impossível dizer se os seres
humanos desfrutam efetivamente do maior grau possível de liberdade
coletiva e autodeterminação sob tal ordem. Esses clãs e tribos, embora
gozando dos benefícios da independência, vivem num clima permanente
de guerra, um estado até certo ponto desconhecido para alguns de nós
que crescemos sob uma ordem estatal. E porque os seus esforços estão
constantemente voltados para a sobrevivência e para a guerra de uns
contra os outros, eles tendem a viver em extrema pobreza, sem os recursos
para o avanço nas artes e na indústria, e os cuidados necessários para
expandir a herança cultural que receberam de seus antepassados. Assim,
ao invés de agirem livremente para fazer o que lhes aprouver, cada clã
ou tribo acha que está de fato escravizado a uma vida inescapável de
guerra e desordem, mesmo que possua o desejo em sentido contrário.
Compare estas circunstâncias com as perspectivas de autodeter­
minação coletiva sob um Estado nacional. Em tal Estado, uma paz
permanente foi concluída entre um número de tribos concorrentes que
compartilham uma língua ou religião e uma história anterior de união
por esforços comuns. Sob a proteção do Estado nacional, cada tribo
renuncia a uma medida de sua própria autodeterminação, e também
à alternativa de respostas violentas às provocações de outras tribos,
expondo-se à interferência do Estado. No entanto, cada tribo também
ganha grandes vantagens em termos de liberdade coletiva. Em parte,

autodeterminação para seus países membros (Pacto da Liga das Nações, Preâmbulo e Artigos
10°-17°). Durante a Segunda Guerra Mundial, Franklin Roosevelt também combinou um
compromisso de autodeterminação dos povos com a crença em um “ sistema permanente
de segurança mundial” (Carta do Atlântico, Artigo 8°). Tais visões eram abertamente anti-
imperialistas, mas também procurou prover-se uma nova ordem mundial que exigisse a
estabelecimento de alguma forma de império.

130
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

essas vantagens derivam do fato de que uma maior prosperidade


material é agora possível com o deslocamento dos conflitos de guerra
para além das fronteiras do Estado. E sob estas novas condições, cada
tribo pode expandir suas próprias habilidades na agricultura, nas artes
e na indústria, bem como na aprendizagem, prática e desenvolvimento
de sua religião, tudo de acordo com a sua própria herança cultural.
No entanto, há também algo muito mais profundo que é trazido
pela paz nacional. O indivíduo sempre foi capaz de vislumbrar a sua
tribo como um membro de uma constelação maior de tribos, a nação
— uma entidade unificada durante períodos em que uma aliança foi
atingida para enfrentar ameaças externas. Nesses momentos, ele sentiu
que o que acontece com a nação é o que acontece com ele mesmo. Com
a criação de um Estado nacional, essa condição se torna permanente
em sua alma. Ele pensa não apenas na melhoria da capacidade de sua
tribo em defender-se contra inimigos externos, mas também na sua
maior liberdade para buscar a prosperidade material e a construção
de sua herança cultural isob a proteção do Estado. Ele pensa também
em termos da nação como um todo, e na incalculável melhoria em sua
integridade interna. E ele pensa na maior capacidade da nação para
buscar a prosperidade material, e na sua capacidade de desenvolver
sua herança cultural — a herança cultural das tribos que foi a base
para estabelecer o Estado nacional em primeiro lugar. Ele passa a ver
coisas que acontecem para a nação como um todo como se fossem
acontecimentos que o afetam pessoalmente, não apenas durante raros
períodos de aliança, mas permanentemente. E enquanto continua preo­
cupado com sua própria tribo, desde que não se torne alvo dos outros,
a vida independente da nação será o que há de mais importante para
seus habitantes. Isso significa que o indivíduo, bem como o resto de
sua tribo, experimentará uma liberdade coletiva muito maior e uma
autodeterminação antes desconhecida.
Os defensores de um Estado imperial ou universal afirmam que
essas vantagens, que os clãs e tribos ganham em termos de sua auto­
determinação coletiva no Estado nacional, podem ser fornecidas, até
mesmo em melhores condições, sob um Estado imperial. É comum
afirmar-se: se as tribos podem se unir em um laço de lealdade mútua

131
YORAM HAZONY

para formar um Estado nacional, por que as nações não deveríam


formar um vínculo de lealdade mútua e fazer de si um império?
Mas a analogia entre a fundação de um Estado imperial e a de um
Estado nacional livre é falsa. A transição de uma ordem de tribos e
clãs para o Estado nacional oferece uma grande melhora nas possibi­
lidades de autodeterminação coletiva das tribos. Isso porque o grande
obstáculo para a autodeterminação de clãs e tribos, quando armados
e politicamente independentes, é o incessante dano que fazem um ao
outro através de sua guerra implacável. O Estado nacional aproveita a
base para uma genuína lealdade mútua que já existe entre essas tribos
guerreiras — uma língua (idioma) ou religião, além de um histórico de
defesa conjunta diante de inimigos comuns — estabelecendo um governo
nacional unificado e aliviando grandemente a constante proximidade
da guerra, enquanto cria uma nova e vasta arena para a expressão de
uma autodeterminação conjunta das tribos.
Nenhuma melhora dramática ocorre na transição do Estado nacio­
nal ao império. O Estado nacional, se for intçrnamente coeso e forte,
já terá afastado a violência da guerra para suas fronteiras. Assim,
enquanto o Estado imperial pode afastar a guerra para ainda mais
longe do território nacional, não é um regime, na prática, experimen­
tado na forma de uma grande melhora nas condições. Pelo contrário,
isso significa que os soldados da nação, ao invés de defenderem suas
próprias fronteiras, encontram-se longe de casa e comprometidos em
defender o território dos estrangeiros. Em troca desse benefício duvi­
doso, a nação deve se unir sob um único governo com outras nações
com as quais não compartilha uma língua ou religião, e não compar­
tilha uma história de aliança em guerras mais amplas, de modo que a
base para uma genuína lealdade mútua é totalmente ausente. Sendo
unidos em conjunto com nações estrangeiras que tenham sua própria
herança cultural e suas próprias necessidades e interesses em aspectos
muito diferentes, a nação só há de experimentar uma grande perda de
autodeterminação coletiva. Certamente ela não mais experimentará a
liberdade que foi sentida em todo o país com a unificação das tribos
sob um Estado nacional independente.
Afirma-se freqüentemente que uma nação não precisa se sentir pos­
ta de lado em um império sob o qual foi submetida juntamente com

132
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

outras inúmeras nações estrangeiras. Por que, pergunta-se, deve uma


nação não ter sentimentos de lealdade para com o Estado imperial que
a ela fornece benefícios materiais e uma oportunidade de juntar-se à
nobre causa da unificação da humanidade? E certamente é verdade que
alguns povos podem se beneficiar muito de favores do Estado imperial,
mesmo quando ele alcança a conquista sobre outras nações. Mas o
mesmo poder imperial arbitrário, que de uma só vez concede favor a
um sujeito, poderá facilmente revogar esse favor. Esta foi, naturalmente,
a experiência histórica das nações, e, novamente, na prática, não faz
sentido esperar que um Estado imperial tenha um interesse permanente
no bem-estar de qualquer nação em particular. O império tem muitas
outras preocupações e muitas outras nações disputando seus favores.
As circunstâncias mudam, e um império outrora governado numa
certa direção passa a ter, sob a influência de outros dirigentes, outras
prioridades e pontos de vista. No final, a roda sempre gira, e uma
nação que já foi favorecida pode acordar escravizada. Claro, sempre
foi escravizada, enquanto sujeita a um Estado imperial. Mas nos bons
tempos uma escravidão é facilmente esquecida.
Nenhum Estado imperial poderá ser um Estado livre. Será sempre
um Estado despótico. Pode ser um despotismo benevolente ou cruel,
dependendo das circunstâncias e do caráter de seus dirigentes num
dado momento; e pode ser benevolente para uma determinada nação
enquanto é cruel para outra, cada uma por sua vez. Mas, em qualquer
caso, o Estado imperial não oferece liberdade à nação. Somente o Estado
nacional, governado por indivíduos escolhidos das tribos da própria
nação, pode ser um Estado livre — porque apenas governantes que
estão ligados a esta nação por laços de lealdade mútua, e experimentam
as coisas que acontecem com a nação como coisas que lhes acontecem
pessoalmente, vão se dedicar à liberdade e autodeterminação desta
nação em uma base permanente.
Segue-se que uma ordem de Estados nacionais será a ordem que
oferece a maior possibilidade de autodeterminação coletiva para as
nações. Esta conclusão pode ser declarada nos termos da conhecida tese
de que a liberdade só existe onde centros múltiplos e independentes de
poder são mantidos. Esta observação é familiar na esfera econômica,
onde um sistema dominado por uma única corporação, ou um cartel,

133
YORAM HAZONY

invariavelmente indica a ausência de liberdade de competição para


outros, independentemente de que direitos formais eles possuam. E é
verdade na política interna da nação, em que as liberdades tribais e
as liberdades individuais são quase impossíveis de serem mantidas se
o poder decisório não for restringido pela presença de outros centros
de poder. Esse mesmo fenômeno é evidente também no nível da ordem
das nações: uma nação pode exercer sua liberdade e autodeterminação
apenas em um sistema que não seja dominado por um único centro de
poder, o Estado imperial, cuja capacidade de ditar a lei será invaria­
velmente levada a curso no devido tempo. Claro, a ordem dos Estados
nacionais, em que múltiplos centros de poder competem, não pode
garantir que um determinado Estado nacional terá os recursos para
resistir a pressões externas que o conduzam a políticas contrárias aos
interesses do seu povo. Mas a tentativa de resistir a tal pressão pode,
em princípio, encontrar apoio de outros centros de poder capazes de
oferecer assistência. Assim, apelando para a Inglaterra e a França, os
holandeses finalmente foram capazes de garantir sua autodeterminação,
apesar da pressão da Espanha. Da mesma forma, os americanos só
conseguiram obter independência da Grã-Bretanha graças à infantaria
e às forças navais da França.
Este ponto é bem resumido por Vattel. Ele observou que a única razão
para o princípio do “equilíbrio de poder” em assuntos internacionais,
que insiste em uma vigilância constante de qualquer nação que ganha
muito poder, é justamente a preservação da possibilidade de liberdade
nacional em todo o sistema dos Estados. Como ele escreve:

É o que deu nascimento a essa famosa idéia da balança política, ou do


equilíbrio de poder. Entende-se com isso uma disposição das coisas, por
meio da qual nenhuma potência se encontra em condições de predominar
absolutamente e de impor lei demais [...]. É mais simples, mais fácil e
mais justo, recorrer aos meios de que falamos, formar confederações para
enfrentar o mais poderoso e impedi-lo de impor a lei. É o que atualmente
fazem os soberanos da Europa.14s145

145 Emer de Vattel, The Law o f Nations, 3.47-48. Tradução minha. [Direito das gentes, p.
435. — nt ], Para uma discussão mais geral da liberdade como exigindo a “ diversificação e
descentralização do poder na sociedade” , v. Robert Nisbet, “The Contexts of Democracy” ,
em The March o f Freedom, org.: E. J. Feulner Jr., Washington, DC: Heritage Foundation,
2003, p. 223; Michael Oakeshott, “The Political Economy of Freedom” , em Rationalism
in Politics and Other Essays, Indianapolis, in : Liberty Fund, 1991 (1962), pp. 388-389.

134
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Observe que Vattel não considera o equilíbrio de poder entre as


nações como algo que deve ser mantido por uma questão de paz ou
estabilidade, como se diz freqüentemente. Pelo contrário, o objetivo
do equilíbrio do poder é garantir que nenhuma nação se torne tão
forte a ponto de estar na posição de “ impor leis” para os outros. Sua
finalidade é, em outras palavras, preservar a liberdade das nações de
fazer leis por si mesmas — ou seja, preservar sua independência e
autodeterminação.
O lado positivo da autodeterminação coletiva, que nossos ante­
passados conheciam sob a ordem de tribos e clãs, assim, encontra
a sua maior expressão possível na instituição do sistema do Estado
nacional. Uma nação que é capaz de estabelecer a paz entre suas di­
versas tribos, e resiste ao desejo de gastar seus recursos em tentativas
de conquistar outras nações e impor sua própria ordem sobre elas, é
aquela que preparou o palco para uma vida de liberdade nacional — a
liberdade que é compartilhada por um povo leal a um outro, e capaz
de direcionar suas energias para construir-se à luz de sua própria
herança única, sem ser forçado a se curvar a qualquer outra nação
ou império. Desta forma, o desejo humano de liberdade coletiva e
autodeterminação é preservado, cultivado e canalizado para que possa
ganhar em força e pelos benefícios que ela proporciona, enquanto
reduz o quanto possível os danos que isto suscita.146
Nem é o caso que apenas aqueles membros nascidos dentro da
nação, originalmente compartilhando sua língua, religião e história,
possam participar da liberdade coletiva tornada possível pelo Estado
nacional. O Estado nacional independente pode e freqüentemente
de fato adota novas tribos e clãs propensos a estabelecer vínculos
de mútua lealdade para com a nação, canalizando suas qualidades
únicas para esses esforços.
Assim os ingleses adotaram os escoceses, galeses e irlandeses do
norte em uma nação britânica. A maioria hindu adotou os sikhsna
na nação indiana, e em Israel a maioria judaica também adotou os
drusos, beduínos e outras comunidades que servem junto às forças

146 Goodman, “ The Rights and Wrongs of Nations” , pp. 154-155.

135
YORAM HAZONY

armadas.147 O mesmo é verdade em todo o mundo, onde clãs e tribos


menores escolhem estabelecer laços de lealdade mútua permanente com
uma nação maior, disposta a honrar suas tradições únicas e fornecer
um local para que cresçam. Desta forma, essas tribos adotadas podem
tomar parte na liberdade da nação, experimentando-a como sua, tanto
quanto os membros das outras tribos da nação.
O cultivo da própria nação é abominável para o imperialista, que
a considera tacanha e provinciana. M as uma devoção à melhoria das
condições para algumas pessoas e a edificação de sua própria herança
é muito superior a uma vida absorvida na supressão de estrangeiros
e rebeliões. As fronteiras auto-impostas do Estado nacional, apa­
rentemente estreitas e provincianas, na verdade, detêm a chave para
a liberdade da nação, libertando-a dos grilhões do império. Assim
liberto, o Estado nacional permite que as energias da liderança na­
cional possam ser direcionadas para a criação de uma coisa que vale
a pena: uma terra única e pessoas com um caráter e uma versão dos
fatos que é só deles.
4. Ordem política competitiva. A marca do imperialismo de Na-
poleão era não aceitar Estados que não fossem modelados à imagem
de seu próprio regime revolucionário, estabelecendo assim um siste­
ma legal para toda a Europa. Mesmo uma antiga instituição como a
cidade-Estado veneziana, cujas tradições constitucionais haviam sobre­
vivido por mais de mil anos, não foi para ele senão uma abominação
que tinha de ser destruída.148Essa mesma convicção, que todos deveríam
aceitar e tomar como verdade política definitiva, caracterizou também
o pensamento de Lênin e o imperialismo soviético durante todo o curso
de seus setenta anos. E aparece novamente em nosso próprio tempo nas
doutrinas da União Européia, que não encontra satisfação no governo
de uma nação, mas procura constantemente impor uma uniformidade
cada vez maior em todas as nações, de acordo com verdades políticas
que seus burocratas consideram universalmente inquestionáveis.
147 Tanto na índia quanto em Israel, muitos muçulmanos também servem nas forças armadas e
ocupam posições de autoridade no governo. Até que ponto essas comunidades muçulmanas
podem ser totalmente integradas, ainda é uma questão em aberto.
148 As opiniões de Napoleão derivam da República Francesa, da qual ele era um agente. A
destruição de Veneza ocorreu antes mesmo de sua ascensão ao governo da França. V. R. R.
Palmer, The Age ofDemocratic Revolution, Princeton, n j : Princeton University Press, 1959.

136
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Todos esses três Estados imperiais europeus se viram aplicando,


cada um à sua maneira, a doutrina da razão universal iluminista, que
dita uma política única e evidente que se torna verdade para toda a
humanidade. O princípio da liberdade nacional se baseia em um modo
totalmente diferente, e de fato oposto, de enxergar a capacidade de
conhecimento da humanidade. Tem como premissa a suposição de
que a verdade política não é imediatamente evidente para todos, seja
através do exercício da razão ou por qualquer outro meio. Como John
Selden enfatizou, a razão humana é capaz de chegar praticamente
qualquer conclusão, e nunca na história foi capaz de chegar a uma
única verdade política com a qual todos possam concordar. Assim,
eis aí a importância da liberdade nacional, que permite a cada nação
desenvolver seus próprios propósitos, tradições e instituições que virão
a ser postos à prova por meio de tentativa e erro longo dos séculos.
Esta concepção que advoga por uma diversidade de nações, cada uma
a perseguir a verdade de acordo com o seu próprio entendimento, não
nega a existência de princípios de governo e de moral superiores. Po­
rém, esta concepção rejeita que esses princípios sejam conhecidos por
qualquer um que queira sabê-lo apenas mediante o exercício da razão.
O grande estadista e filósofo inglês insistiu na legitimidade de diversas
tradições nacionais por causa de seu empirismo: apenas por meio de
muitos experimentos nacionais que nós podemos aprender, ao longo
de um período histórico, o que de fato é melhor.
A escolha entre uma política imperialista e nacionalista corresponde,
assim, a uma escolha entre duas teorias do conhecimento: na história
ocidental, pelo menos, o imperialismo tende a estar associado a uma
teoria racionalista do conhecimento. Ter uma confiança ilimitada na
razão humana gera uma teoria ousada em sua afirmação de que as
grandes verdades universais já estão à mão, e que este conhecimento
precisa apenas ser imposto sobre toda a humanidade. O nacionalismo,
por outro lado, tende a basear-se num ponto de vista empírico, exercendo
um ceticismo moderado em relação aos produtos da razão humana,
consciente das calamidades que os homens trouxeram sobre nós nos
domínios do tempo político e, novamente, por sua confiança excessiva
em sua própria razão; sendo cético, reconhece a sabedoria em permitir
muitas tentativas para alcançar a verdade, umas diferentes das outras.

137
YORAM HAZONY

Desta forma, alguns experimentos serão bem-sucedidos, enquanto ou­


tros falharão. E aqueles que conseguem fazer de maneiras diferentes,
assim o farão para que a experiência única de cada nação venha a nos
ensinar coisas diferentes que não tínhamos entendido antes.149 Pode­
mos dizer, em outras palavras, que uma política nacionalista convida
a um grande debate entre as nações, e um mundo de experimentos e
aprendizagens. Por outro lado, uma política imperialista declara que
este debate é muito perigoso ou problemático, e que chegou a hora de
acabar com isso.150
Um argumento similar entre teorias de conhecimento racionalistas e
empiristas está no campo da economia. O socialista sempre acreditou
que o conhecimento necessário está à mão, então não há necessidade
de concorrência no mercado. A economia precisa apenas ser dirigida
por um planejador racional que vai ditar as transações que devem
prosseguir para o benefício de todos. O capitalista, por outro lado, viu
em tal proposta nada além de um conceito, um produto da arrogância
humana e de sua loucura — porque na realidade não há ser humano
e nenhum grupo de seres humanos que detêm suficientes poderes ra­
cionais e os conhecimentos necessários para corretamente ditar como
uma economia inteira deve prosseguir para o benefício de todos. Em
vez disso, o capitalista argumenta, de um modo cético e do ponto de
vista empírico, que para o desenvolvimento e fornecimento de produtos
144 Moses Hess, Rome and Jerusalem, trad. de MeyerWaxman, Nova York: Bloch, 1918 (1862).
[Trata-se da tradução de Rom und Jerusalem — eme Grundlegung des spãteren Zionismus,
Leipzig: Eduard Mengler, 1862; obra sem tradução para o português. Hess é pai do sionismo
socialista que deu as primeiras bases para a formação do Estado de Israel. — nt ]
150 Uma famosa crítica da especulação racionalista na filosofia política encontra-se em Michael
Oakeshott, “ Rationalism in Politics” , Rationalism in Politics and Other Essays. Sobre
racionalismo e empirismo no pensamento político, v. Thomas Sowell, A Conflict ofVisions,
rev. ed., Nova York: Basic Books, 2007; Gertrude Himmelfarb, The Roads to Modernity,
Nova York: Vintage Books, 2005; Yuval Levin, The Great Debate, Nova York: Basic Books,
2014; João Carlos Espada, The Anglo-American Tradition o f Liberty, Nova York: Routledge,
2016; Haivry e Hazony, “What Is Conservatism? ” , American Affairs (Summer 2017). Sobre
racionalismo e empirismo na ciência, v. Yoram Hazony, “Newtonian Explanatory Reduction
and Hume’s System of the Sciences” , em Newton and Empiricism, eds. Zvi Biener e Eric
Schliesser, Oxford, Reino Unido: Oxford University Press, 2014, pp. 138-170. Como
Quinton enfatiza, a objeção conservadora à teorização “ abstrata” não é uma objeção à
generalização a partir da experiência, sem a qual o raciocínio seria impossível. O empirista
permite princípios “muito gerais” derivados da experiência, mas a derivação é considerada
falível, e os próprios princípios gerais são potencialmente limitados no próprio âmbito de
sua aplicação. Anthony Quinton, The Politics oflmperfection, Londres: Faber e Faber, 1978,
p. 13.

138
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

e serviços devemos permitir a competição livre entre muitos agentes


econômicos. Entende-se assim que cada um destes empreendimentos
concorrentes persegue um conjunto diferente de objetivos e está orga­
nizado de uma maneira diferente dos demais; portanto, alguns terão
sucesso e alguns irão falir. Mas aqueles que tiverem sucesso o farão
de uma maneira que nenhum planejador racional poder ia ter previsto,
e suas descobertas estarão então disponíveis para serem imitadas ou
refinadas por outros. Desta forma, a economia como um todo floresce
a partir desta competição.
A ordem política é, neste aspecto, muito semelhante à ordem econô­
mica. A realidade é que nenhum ser humano e nenhum grupo de seres
humanos possui os poderes necessários da razão e os conhecimentos
suficientes para ditar a constituição política mais apropriada para toda
a humanidade. Qualquer um tendendo ao cetismo e ao ponto de vista
empírico reconhecerá assim as vantagens de uma ordem nacionalista,
o que permite que muitas organizações de Estados nacionais possam
competir livremente. Cada Estado nacional persegue um conjunto
diferente de objetivos, e é organizado de uma maneira diferente dos
demais. E ainda assim, apesar dessa diversidade, os governantes
desses Estados independentes, em constante competição com outros
membros de uma ordem similar de Estados, estão também o tempo
todo olhando lateralmente para os seus competidores a ver o que
lhes traz sucesso, imitando o que eles consideram plausível, útil e
belo em instituições estrangeiras a fim de melhorar a própria. Desta
forma, os governantes, preocupados principalmente com a força e
a consistência de sua própria nação, acabam compartilhando com
toda a humanidade o seu próprio e único arcabouço de experimentos
e experiências.
Esta competição entre Estados independentes explica o porquê de os
períodos da história que achamos mais admiráveis — pois produziram
os indivíduos mais fecundos em termos de obras de ciência, religião e
arte — foram períodos em que a ordem política era a de pequenos Esta­
dos independentes que viviam em competição, sejam Estados nacionais
ou cidades-Estados tribais. Pense-se na Grécia antiga e em Israel, bem
como nos Estados italianos da Renascença ou nos Estados nacionais
após a construção protestante da Europa, especialmente na Holanda,

139
YORAM HAZONY

Inglaterra, França e Alemanha, ou ainda nos Estados da Europa Central.


Isso foi notado por uma longa fila de filósofos empiristas, dentre eles
John Stuart Mill, que atribui o progresso da Europa à “pluralidade de
caminhos” que a sua ordem política permitiu:

O que fez da família das nações européias uma parte da humanidade que se
aprimora, em vez de estacionar? N ão alguma excelência ou superioridade,
as quais, quando existem, existem como efeito, e não como causa; mas sua
notável diversidade de caráter e cultura. Indivíduos, classes e nações têm
sido extremamente dessemelhantes uns dos outros; eles deram início a uma
grande variedade de caminhos, cada um levando a alguma coisa valiosa; e,
embora, em cada época, aqueles que percorriam caminhos diferentes tivessem
sido intolerantes uns com os outros, e cada um achasse que seria excelente
que todos os outros fossem obrigados a percorrer o mesmo caminho que
o seu [...] cada um teve tempo de receber o que outros lhe ofereciam de
bom. A Europa [...] deve totalmente a essa pluralidade de caminhos [seu
desenvolvimento progressista e multilateral].151

Não podemos ignorar o fato de que grande parte da herança da


humanidade tem sido o produto de sistemas de Estados independentes,
enquanto a contribuição dos Estados imperiais tem sido, em compara­
ção, espantosamente escassa. Uma era de competição em uma ordem
de Estados nacionais independentes ou cidades-Estados parece oferecer
as maiores oportunidades para os indivíduos talentosos e capazes de
trazer vantagem ao Estado nacional ou cidade-Estado. O Estado impe­
rial promove, de forma natural, um ambiente completamente diferente,
em última análise oferecendo a um homem hábil apenas uma única
oportunidade: moldar-se aos desejos do grande poder político que é
o império. E esse tipo de oportunidade, parece, serve pouco quando
comparada com o florescimento que se torna possível sob uma ordem
151 Mill, Representative Government, pp. 140-141. [Sobre a liberdade, pp. 163-164. — nt ].
Argumentos semelhantes a favor de sistemas de múltiplos Estados concorrentes aparecem
em David Hume, “The Rise of Arts and Sciences” , em Essays, pp. 118-123. [“ Da origem e
progresso das artes e ciências” , em Ensaios, pp. 297-313. — n t ]; Adam Ferguson, An Essay
on the History o f Civil Society, pp. 59-62; William McDougall, Ethics and Some World
Problems, London: Methuen, 1924, pp. 46-48; Anthony D. Smith, The Ethnic Origins o f
Nations, Cambridge, m a : Blackwell, 1986, p. 218; Pierre Manent, “ Democracy Without
Nations?” , em Modem Liberty and Its Discontents, eds. Daniel Mahoney & Paul Seaton,
Nova York: Rowman e Littlefield, 1998, p. 195. A visão empirista sobre a diversidade das
perspectivas nacionais não deve ser confundida com a do romantismo alemão ou “pós-
modernismo” francês, que nega a possibilidade de alcançar a verdade na política ou na
moral. O ponto de vista empirista diz respeito à diversidade das perspectivas nacionais
como uma vantagem na busca da verdade.

140
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

de independência estatal nacional ou tribal, onde cada Estado se gaba


da própria saúde e prosperidade, força e reputação.152
Este argumento para uma ordem política competitiva deve, como
sugeri, ser atraente para os economistas, que reivindicam, depois de
tudo, terem desenvolvido uma ciência empírica, e deveriam, conse-
qüentemente, saudar o mundo de experimentos que muitas nações
independentes, cada uma com suas próprias políticas, pode oferecer.
E, no entanto, ouvimos constantemente economistas (e muitos que
foram instruídos em economia) falando contra a ordem de Estados
nacionais independentes, na suposição de que a eficiência econômica
seria maior num mercado mundial único onde todas as fronteiras na­
cionais fossem removidas. Como Hayek argumenta, um mundo sem
fronteiras nacionais seria aquele em que todos os conflitos de interesses
estariam entre “grupos de composição variável” , e não entre Estados
nacionais unidos por uma solidariedade interna consistente e, portanto,
fiéis a políticas locais teimosamente invariáveis através do tempo.1S3
Assim, o economista que se orgulha de seu empirismo quando se trata
da estrutura da economia doméstica — onde ele espera concorrência
entre empresas independentes, de modo a permitir progressos através
da inovação livre — de repente se torna um racionalista quando se
trata de pensar sobre a economia mundial. Quando aborda a economia
mundial, sente-se seguro em assumir, como todo racionalista, que as
regras necessárias para o florescimento das economias já estão à mão,
que um órgão central de governo ou os gabinetes podem, portanto,
decidir a política apropriada para toda a humanidade, e que a partir
de tal planejamento centralizado todos prosperarão!
Foram justamente a essas teorias racionalistas que Margaret Thatcher
resistiu na Europa, argumentando que a tentativa de dar a um órgão
econômico central a autoridade legislativa sobre todas as demais nações
seria o mesmo que pôr fim à “diversidade e concorrência entre Estados”,
o que é uma “condição para o sucesso dos negócios” . Assim ela escreveu:

152 Foi essa letargia do império que De Gaulle tinha em mente ao prever que uma Europa
unificada se tornaria “ uma massa materialista, sem alma, sem idealismo” . Citado por
Margaret Thatcher: Statecraft, Nova York: Harper Collins, 2002, p. 365.
153 Friedrich Hayek, “The Economic Conditions of Interstate Federalism” , New Commonwealth
Quarterly 5, (setembro de 1939), pp. 131-149.

141
YORAM HAZONY

O objetivo teria sido o de estabelecer uma “igualdade de condições” . A


frase tem um apelo tranqüilizador, mas ao mesmo tempo engloba um erro
fundamental sobre o comércio. O livre comércio permite que empresas
de diferentes nações possam competir entre si. Porém, uma “ igualdade
de condições” interrompe aquela parte da disputa que vem de diferentes
sistemas reguladores, e na verdade acaba reduzindo os próprios ganhos
advindos do comércio [...]. Se a harmonização for tomada para além dos
padrões técnicos e similares, e também for aplicada às leis trabalhistas, de
previdência social e tributação, torna-se assim profundamente destrutiva
do ponto de vista econômico. Isso ocorre pois a competição entre diferen­
tes países para fornecer as mais propícias condições internacionais para o
comércio é um poderoso motor para o avanço da economia.154

De acordo com a opinião de Thatcher, uma abordagem econômica


genuinamente empirista favorecerá a variação nas economias de dife­
rentes nações. Isso será verdade tanto na economia como em todas as
demais esferas do conhecimento: a competição entre economias na­
cionais independentes irá oferecer maior campo para experimentação,
levando, por meio da tentativa e erro, aos avanços nos processos legais e
regulatórios estruturais, bem como na tributação e nos tipos de acordos
comerciais concluídos entre nações — avanços que não poderíam ser
feitos no contexto de um sistema econômico único imposto a todos. Essa
inovação será feita por Estados nacionais independentes competindo
entre si, e será imitada e espalhada por todo o mundo, demonstrando
inequivocamente ter beneficiado as nações que primeiro as adotaram.
A coordenação voluntária entre as nações sempre foi desejável
onde há evidentes interesses comuns. Thatcher aqui menciona a
cooperação entre países na definição de normas, de modo a permitir
às empresas uma competição além-fronteiras, mas ela poderia facil­
mente ter mencionado a colaboração em assuntos de segurança, meio
ambiente, saúde, assistência a desastres e outras coisas mais. Essa
cooperação pode beneficiar todas as nações, desde que permaneça
estritamente dentro do quadro de acordos entre nações totalmente
independentes, e não as coloque sob a autoridade decisória dos or­
ganismos internacionais.155

154 Thatcher, Statecraft, pp. 374-376, 420. Um argumento semelhante é apresentado com
detalhes por Dani Rodrik, The Globalization Paradox, Nova York: Norton, 2011.
155 No caso da delegação de poderes de decisão da Grã-Bretanha para a União Européia,
Thatcher conclui que os britânicos foram ingênuos. Ela descreve como os órgãos europeus

142
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

5. Liberdades individuais. O Estado nacional independente é a


melhor instituição conhecida pela humanidade por estabelecer a li­
berdade coletiva e a autodeterminação. Mas a liberdade coletiva não
coincide com a liberdade do indivíduo. Americanos expressaram sua
liberdade nacional e autodeterminação, enquanto toleravam a escra­
vidão e as leis odiosas de segregação racial durante grande parte de
sua história. Os franceses têm uma longa história de expressão de sua
liberdade nacional através da proibição de línguas e práticas religio­
sas que considerem ofensivas. E inúmeros outros exemplos podem
ser trazidos à luz, em que a independência nacional não conduziu à
proteção das liberdades individuais.156 Com isto em mente, sugere-se
que os direitos e liberdades individuais podem ser mais facilmente
protegidos em um Estado imperial ou universal, no qual uma multi­
plicidade de nações, línguas e tradições religiosas poderia levar a um
tipo de igualdade impossível de existir em um Estado nacional, onde
a língua (idioma) e as tradições religiosas de uma única nação são
tratadas com primazia.157
Mas há pouca evidência histórica para apoiar a suposição de que o
Estado imperial é mais adequado para proteger a liberdade individual.
Pelo contrário, os Estados imperiais conhecidos por nós foram regimes
autocráticos de algum tipo. Enquanto isso, o desenvolvimento da tra­
dição dos direitos e liberdades individuais surgiu apenas em Estados
nacionais, e alguns teóricos políticos sugeriram que o Estado nacional
é o único ambiente em que instituições livres podem se tornar estáveis.
Mill, escrevendo em Considerações sobre o governo representativo
(1861), fala pela visão predominante do século xix ao argumentar que
é “uma condição necessária para a existência de instituições livres, em
obtiveram poderes de decisão que depois foram, inevitavelmente, expandidos por decisão
de instituições européias em que embora a Grã-Bretanha tivesse voz, não tinha, contudo,
nenhum poder efetivo. Thatcher, Statecraft, p. 368.
156 O princípio da autodeterminação nacional não faz, por si só, nascer uma forma democrática
de governo ou uma tradição de se ocupar com as liberdades individuais. Miller, Nationality,
p. 90; John Plamenatz, On Aliert Rule and Selfgovernment, London: Longmans, 1960.
157 Como Miller enfatiza, a preocupação com a proteção universal de direitos individuais,
se atrelada à exclusão de outras considerações, leva inexoravelmente ao “ imperialismo
benevolente” . Miller; Nationality, p. 77. Esta dinâmica está, por exemplo, por trás do
argumento de Sidgwick sobre a expansão do império liberal (o que ele chama de “ exercício
beneficente de domínio” ) a respeito das nações que são “ marcadamente inferiores na
civilização” . Henry Sidgwick, The Elements ofPolitics, pp. 278-279.

143
YORAM HAZONY

geral, a correspondência, pelo menos aproximada, entre as fronteiras


dos governos e as fronteiras das nacionalidades” .158 Nada do que se
passou no século seguinte deu-nos argumentos para acreditar que sua
afirmação tenha sido equivocada. Por que isso ocorreu?
A tradição dos direitos e liberdades individuais está enraizada na
Constituição de Moisés, e foi desenvolvida de forma bem diligente e
com sucesso nas leis da Inglaterra e dos e u a . Nesses países, os direitos
e liberdades do indivíduo nunca existiram por si mesmos, mas fizeram
parte de uma extensa estrutura do que pode ser chamado de instituições
livres. Elas estabelecem que: (i) as leis da nação precedem à vontade do
rei (ou presidente) e ocorrem independentemente dele; (ii) os poderes
do rei (ou presidente) são limitados pelos representantes do povo, de
quem deve obter conselho e consentimento para tributar a nação,
alterar suas leis ou nomear gestores públicos que irão governar os ci­
dadãos; (iii) os direitos do indivíduo devem ser infringidos pelo Estado
somente por meio do devido processo legal; (iv) as leis são ordenadas
de modo a proteger, entre outras coisas, o direito do indivíduo à vida,
ao casamento e à propriedade, bem como a liberdade de expressão,
locomoção, associação e religião; e (v) eleições públicas são realizadas
para nomear funcionários em alguns ramos do governo.159
Ao examinar essas características das instituições livres, vemos que
as liberdades garantidas na Inglaterra e nos e u a não são algo que o
indivíduo simplesmente tem “por natureza” mas são, pelo contrário,
o resultado de um mecanismo complexo desenvolvido ao longo de
muitos séculos de tentativa e erro. Estes princípios estabelecem amplos
direitos e liberdades para cada indivíduo, equilibrando os poderes do
governante com os das várias tribos ou facções da nação reunidos no
parlamento; e equilibrando os poderes, de ambos, tanto do governante
quanto das tribos ou facções mais fortes, em face do poder dos juizes

1S! Mill, Representative Government, p. 394. [Considerações sobre o governo representativo, p.


283. — nt ]. Mill faz um ajuste peculiar dentro da principal tradição liberal descendente de
teóricos racionalistas como Hobbes e Locke. Em muitas questões, seu empirismo transparece
ser mais próximo ao de outros empiristas, como Hume e Burke. O nacionalismo de Mill
abre-se para essa visão mais ampla.
159 N a Constituição americana original, apenas a Câm ara dos Deputados [House o f
Representatives] era formada por eleição pública direta. Ainda hoje, a Suprema Corte ainda
é um órgão que não conta com eleição direta.

144
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

independentes e júris encarregados de determinar a aplicação das leis


para o indivíduo. O funcionamento de todo esse mecanismo depende,
como é imediatamente óbvio, da disposição do governante, e das tri­
bos mais fortes ou facções da nação, pois precisam permitir que seus
poderes sejam limitados dessa maneira. Ou seja, eles devem concordar
i
em um enfraquecimento de seus próprios poderes e aceitar que tais
resultados sejam indesejáveis, sem buscar a restituição desses poderes
por meio da violência.
Sob que condições o governante, geralmente o líder da mais pode­
rosa tribo ou facção da nação, bem como os chefes de outras tribos ou
facções poderosas, concordam em ser enfraquecidos? Isso só é possível
sob condições que são obtidas em um Estado nacional: condições sob
as quais os chefes das respectivas tribos ou facções estão vinculados
uns aos outros por laços de lealdade mútua; e em que as tribos ou
facções que eles lideram são igualmente leais umas às outras. Onde
esses títulos de lealdade mútua existirem, as liberdades individuais
protegidas por estes rigorosos aparatos de governo, e os conseqüentes
benefícios para a prosperidade material e integridade interna da nação,
serão experimentados como benefícios que foram obtidos por um e
por todos. Onde eles existirem, até mesmo as atividades de uma facção
política que alguém abomina, ou de uma igreja que desaprovam, ou
de um jornal que se dedica a incitamentos irresponsáveis, podem ser
experimentados como parte do avanço da causa da nação, pois são
expressões de instituições livres, que por sua vez são a força e a glória
de sua nação. Vimos como esses laços de lealdade mútua surgidos
no contexto do Estado nacional inglês, holandês ou americano são
poderosos o suficiente para permitir o surgimento de amplos direitos
individuais e liberdades. E temos visto outros Estados nacionais em
todo o mundo imitando estas condições, muitas vezes com um grau
impressionante de sucesso.
Mas, e o Estado imperial? Não podería alcançar semelhante aparato
de governo, de modo que ele, igualmente, conceda amplos direitos
individuais e liberdades por todo o império? Já disse que todo Estado
imperial ou universal é um Estado despótico. Semelhante tese já foi
aventada por Mill, que sabia muito bem como os impérios opera­
vam. Observando a Áustria-Hungria do seu tempo, ele notou que as

145
YORAM HAZONY

respectivas nacionalidades não geravam uma lealdade mútua dentro do


Estado imperial. Sem compartilhar língua ou religião, eles não podem
se reconhecer como uma unidade genuína, mas como concorrentes,
cada um ameaçado pelos outros. Não há um líder político comum,
mas sim líderes próprios em cada nação. Da mesma forma, não há
publicações comuns, e assim nenhuma esfera comum em que um co­
nhecimento compartilhado passa a ser estabelecido; cada nação, porém,
vem a ter suas próprias publicações e seu próprio ponto de vista na
compreensão dos eventos. De fato, tudo o que mantém essas nações
rivais juntas é a força militar austríaca, que é usada para suprimir
as rebeliões de cada nação.160 Para esta análise, eu acrescentaria que
todo império é, em última instância, unido pela coesão de uma nação
real cujos membros realmente estão ligados uns aos outros por laços
de fidelidade. No império austríaco, esta foi a nação alemã, capaz,
com a maior ou menor assistência do povo magiar, de governar pela
força, desde que não concedesse liberdades às outras nações sujeitas
ao seu jugo.
Um Estado imperial como o império austríaco não se mantém
coeso por laços de lealdade mútua entre suas várias nações. Isto
significa que quando o Estado imperial triunfa ou fracassa, os países
que a ele estão integrados não experimentam isso como algo que
lhes aconteceu. Pelo contrário, experimentam como algo que está
acontecendo a outrem: à nação dominante e aos recrutas oriundos
de outras nações anexadas, que são vistos como pessoas que viraram
as costas para seu próprio povo. Sob tais condições, toda concessão
de direitos individuais — de liberdade de expressão, por exemplo —
é uma concessão às várias nações subjugadas, que usam este novo
direito para lutar com cada vez mais força pela dissolução do Esta­

160 O argumento de Mill sobre este ponto é bem conhecido. “As instituições livres são
praticamente impossíveis num país formado por diversas nacionalidades. Num povo
desprovido de sentimento mútuo de identidade, sobretudo se lêem e falam línguas diferentes,
não é possível existir uma opinião pública unificada, necessária para o funcionamento do
governo representativo [...]. Um exército composto por várias nacionalidades tem como
único patriotismo a devoção à bandeira. Tais exércitos foram os algozes da liberdade durante
toda a história moderna” . Mill, Representative Government, pp. 392-394. [Considerações
sobre o governo representativo, pp. 280-281,282. — nt ]. Menos conhecida é a conclusão
de Mill, em que ele argumenta que a Grã-Bretanha nunca saberá o suficiente sobre a Índia
para poder governá-la apropriadamente. V. Parte ii , nota 138, acima.

146
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

do imperial. Este foi o caso do império austríaco quando, em seus


últimos estágios, provou de instituições livres e, ao fazê-lo, apressou
sua própria derrocada. E vimos isso também em Estados modernos
multinacionais como a União Soviética e a Iugoslávia. Esses Estados
foram mantidos juntos por gerações apenas por força da mais seve­
ra opressão, e imediatamente se desintegraram em suas respectivas
nacionalidades às primeiras tentativas de concessão de direitos e
liberdades no final do século passado.
Se estamos interessados, então, no estabelecimento de instituições
livres como aquelas que se desenvolveram dentro da tradição política
americana, nossa primeira preocupação deve ser a coesão da nação.
Essa lealdade mútua, que é derivada a partir de genuínos pontos comuns
de língua ou religião, e de uma história passada de união em tempo de
guerra, é a base firme em que tudo irá se assentar. Onde esta ligação
firme está presente, por muitos anos e por meio de experiências amar­
gas, vamos encontrar indivíduos dispostos a sacrificar suas próprias
vantagens políticas, ou de seu clã ou tribo, para o bem coletivo da
nação. Essa disposição em abandonar momentaneamente a vantagem
pode então abrir o caminho para o desenvolvimento de instituições
nacionais, incluindo tradições de direitos individuais e liberdades,
assim como abre o caminho para o auto-sacrifício na defesa da nação
contra inimigos externos.

15. O mito da solução federalista


Imperialismo e nacionalismo representam irreconciliáveis posições
no pensamento político. Podemos endossar a opinião de que toda a
terra deve ser submetida a um regime único cuja autoridade abrangerá
todas as nações; ou podemos buscar um mundo de Estados nacionais
independentes como a melhor forma de ordem política. Não podemos
aceitar ambas as visões.
Muitos escritores têm lutado para escapar dessa dicotomia, buscan­
do uma posição intermediária ou uma conciliação entre estes pontos
de vista teóricos. Mais comumente, eles propõem que a solução para
o dilema de escolha entre o Estado imperial e uma ordem de Estados
nacionais estaria em um governo federal, ou um regime internacional
que responsabilizasse as nações por seus atos sob uma ordem jurídica

147
YORAM HAZONY

internacional.161 O regime de “ paz perpétua” de Immanuel Kant, por


exemplo, seria atingido através de uma federação mundial deste tipo.162
A “ soberania da humanidade” de Woodrow Wilson é similarmente pro­
posta para conceder independência e autodeterminação às nações, ao
mesmo tempo em que estabelece um regime internacional para decidir
os litígios entre eles e, quando necessário, impor a suas sentenças por
coação.163 Friedrich Hayek, o mais importante teórico do liberalismo no
século passado, também argumentou que a independência das nações
causa guerra, e que a paz e a prosperidade só pode ser alcançada por
meio de um estado federal internacional.164
Tais propostas para uma federação internacional são apresentadas
como se fossem uma melhoria em relação ao Estado imperial, uma vez

161 Raymond Aron, por exemplo, propõe um regime federal internacional como um compromisso
entre um Estado nacional homogêneo e um Estado imperial universal. V. The Dawn of
Universal History, Nova York: Basic Books, 2002 (1996), p. 5.
162 A posição de Kant é declarada inequivocamente em “ Idea for a Universal History with a
Cosmopolitan Purpose”, em Immanuel Kant, Political Writings, ed. Hans Reiss, trad. H.
B. Nisbet, Nova York: Cambridge University Press, 1970 (1784). [Idéia de uma história
universal de um ponto de vista cosmopolita, tradução brasileira de Rodrigo Novaes ÔC
Ricardo Terra, já em sua 4a edição pela WMF Martins Fontes, São Paulo, 2016. — n t ]:
“ numa federação de nações em que todo Estado, mesmo o menor deles, pudesse esperar
sua segurança e direito não da própria força ou do próprio juízo legal, mas somente desta
grande confederação de nações [Foedus Amphictyonum], de um poder unificado e da
decisão segundo leis de uma vontade unificada” (p. 47). Ou, como ele escreve: “ um poder
unificador que dê peso a esta lei, de modo a introduzir um Estado cosmopolita de segurança
pública [entre os Estados]” (p. 49). E: “ um futuro grande corpo político [Staatskòrper]
[...] o propósito supremo, um Estado cosmopolita universal, como seio no qual podem se
desenvolver todas as disposições originais da espécie humana” (p. 51). Uma visão semelhante
é apresentada em ensaio posterior de Kant, “Perpetuai Peace: Philosophical Sketch” , em
Political Writings, pp. 102-105. [A paz perpétua, Porto Alegre, rs : l &pm , 2017, pp. 31-36. —
nt ], em que um “Estado internacional” , aparentemente sem divisões federais, é apresentado
como um ideal a ser buscado, ao passo que uma federação internacional é descrita como
um objetivo intermediário. V. os cap. 21 e 23.
lí3 V. August Heckscher, Woodrow Wilson, Nova York: Scribner, 1993, p. 551. A Liga das Nações
proposta por Wilson obrigou todos os membros ao compromisso de “preservar, contra a
agressão externa, a integridade territorial e a independência política de todos os membros da
Liga” , de acordo com um mecanismo complexo de governança internacional. V. a Carta da
Liga das Nações, Artigos 10 a 17. Isso levou ao famoso apelo do republicano Henry Cabot
Lodge para que o povo americano estivesse “ de agora em diante a favor do americanismo e
do nacionalismo e contra o internacionalismo” . Anais da 17a Convenção Nacional do Partido
Republicano, citado por William Widenor, Henry Cabot Lodge and the Search for an American
Foreign Policy, Berkeley, ca : University of Califórnia Press, 1980, pp. 347-348.
164 Friedrich Hayek, The Economic Conditions o f Interstate Federalism. V. também Sidgwick,
The Elements o f Politics, pp. 268-269; Ludwig von Mises, Liberalism in the Classical
Tradition, trad. Ralph Raico, San Francisco: Cobden Press, 1985 (1927), p. 150. [Liberalismo,
p. 163. — nt ], V. também cap. 5 (Parte i), notas 69-70 acima.

148
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

que o governo federal ficaria restrito à adjudicação de litígios entre


outras entidades independentes e Estados nacionais autodeterminados.
Sob o governo federal universal, cada nação permanecerá indepen­
dente em quase todas as coisas: será livre para determinar sua própria
constituição e leis, seguirá sua própria língua e religião, conduzirá a
sua economia e educará seus filhos de acordo com seu próprio enten­
dimento. Em suma, será livre para seguir seu próprio caminho. Apenas
o recurso à violência através das fronteiras será vedado, e conflitos
serão resolvidos em instituições desse governo federal que terá poder
decisório acima dos Estados.
Este argumento é, no entanto, baseado em um mal-entendido sobre
o tipo de ordem política necessária para estabelecer uma federação de
Estados. Na verdade, o governo federal, governo esse que tantas vezes
tem sido proposto, é indistinguível de um Estado imperial em qualquer
aspecto significativo. A idéia de uma federação internacional é sim­
plesmente a idéia de um império, e deveria ser lamentada ou rejeitada,
juntamente com todos os outros esquemas imperialistas.
Antes de explicar, enfatizo que também há preocupação de minha
parte com a obtenção da paz entre as nações. Os profetas de Israel
plantaram o ideal de paz entre as nações no nascimento de nossa
tradição política, para que possamos sempre reconhecer que se uma
disputa puder ser resolvida pacificamente, o recurso ao derramamento
de sangue deve ser considerado um indescritível mal.165 No entanto, o
mundo descrito pelos profetas é aquele em que as nações trarão suas
disputas a Jerusalém para serem julgadas livremente. Não é um Estado
federal internacional com a capacidade de obrigar a adjudicação e impor
suas decisões à força. Estes são, na verdade, dois objetivos totalmente
diferentes para o futuro da humanidade, refletindo uma aspiração de
alcançar duas formas inteiramente diferentes de ordem política:
A. Adjudicação voluntária. As nações em conflito escolhem se subme­
ter a uma disputa para julgamento, e a escolha de se cumprir a decisão
do juiz em questão permanece nas mãos dessas nações independentes.
B. Adjudicação compulsória. As nações são compelidas a submeter-se
à disputa para adjudicação pelos burocratas do Estado federal inter-16

161 Isaías 2 ,4 ; Miquéias 4, 3 e Salmos 46,9.

149
YORAM HAZONY

nacional, e a conformidade com a decisão é igualmente executada por


agentes desse Estado federal internacional.
As condições descritas nesses dois cenários refletem duas diferentes
formas de ordem política com as quais já nos tornamos familiares: no
cenário A, a adjudicação voluntária de disputas ocorre dentro de uma
ordem de Estados nacionais independentes. Quando nos referimos à
independência desses Estados, queremos dizer precisamente que não
há autoridade internacional que possa obrigá-los a submeter uma
disputa por adjudicação, e ninguém poderá forçá-los a cumprir os
termos da decisão se eles escolherem não fazer isso. Enquanto que, no
cenário B, a adjudicação compulsória ocorre precisamente por causa
da existência de uma autoridade internacional capaz de resolver dis­
putas entre as nações, quer queiram ou não. E exatamente isso é uma
característica definidora de uma ordem política imperial. Embora as
entidades em conflito possam ser chamadas de “ Estados” , não são
entidades independentes e autodeterminadas. Elas não têm escolha se
uma determinada questão será tomada de suas mãos para ser deter­
minada pelo governo federal internacional, que tem o poder de impor
que tal determinação permaneça com esse organismo internacional.
Igualmente, não têm escolha em relação a quem irá decidir a questão
ou mesmo quando, uma vez que essa decisão também é da autorida­
de do governo internacional. Eles também não têm escolha quanto a
cumprir ou não a decisão tomada pelo governo internacional, pois
será imposta a eles por meio de força, se necessário — novamente, de
acordo com uma decisão que está inteiramente nas mãos do governo
federal internacional.
A escolha entre estes dois cenários é, assim, inevitavelmente, uma
escolha entre uma ordem de Estados nacionais independentes e uma
ordem imperial. O fato de que filósofos e estadistas podem preferir,
em nome das aparências, referir-se à alternativa B como “Federação de
nações independentes” , em vez de Estado imperial, não afeta a subs­
tância do que está sendo proposto. As decisões sobre como os países
membros conduzirão seus próprios assuntos devem ser feitas no nível
do Estado imperial.
Como já foi dito, os defensores de uma federação internacional
afirmam que o Estado nacional manterá sua liberdade em tudo, exceto

150
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

nas questões de guerra e paz. Eles dizem que a federação será conduzi­
da de acordo com uma Carta constitucional escrita — um documento
vinculativo que irá enumerar esses assuntos em que a federação inter­
nacional pode intervir, deixando o resto dos poderes de governo nas
mãos dos Estados como uma questão meramente jurídica.
No entanto, a suposição de que um governo federal internacional
pode de alguma forma ser limitado de modo a interferir somente em
certos assuntos é falsa, como podemos perceber ao refletir sobre o prin­
cípio em si, examinando o histórico de prática de instituições federais.
Com relação ao princípio, vamos supor que um Estado mova uma
queixa (ou uma ação judicial) junto ao governo federal internacional
referente às políticas ou práticas de um país vizinho. A queixa pode­
rá se dar em relação ao estabelecimento de bases militares em suas
fronteiras ou a rápida expansão entre as forças armadas dos vizinhos,
ou sua respectiva indústria bélica; ou pode ser sobre a supressão de
certas minorias nacionais pelo Estado vizinho, ou setores religiosos que
peçam repetidamente por auxílio externo; ou o Estado demandante
pode ver-se prejudicado por práticas econômicas de seu vizinho, ou
pelo incentivo de imigração ilegal através da sua fronteira, ou pelo au­
mento dos cartéis de drogas ou organizações terroristas do outro lado
da fronteira; ou ainda pela utilização excessiva ou destruição de um
abastecimento de água comum ou outros recursos compartilhados; ou
por interferência nas suas eleições ou por força de sua política interna;
ou mesmo por espionagem ou assassinatos, ou perturbações públicas
que considera terem sido instigadas pelo seu vizinho; ou pelo que vê
como propaganda hostil na mídia da vizinhança e em escolas. Em
outras palavras, virtualmente qualquer ação ou política adotada por
um Estado pode se tornar um motivo genuíno para ação militar — e se
não for isso, então, pelo menos, um pretexto inventado para essa ação
militar. E agora, depois de meses ou anos de falhas ao tentar resolver
o assunto por meio de acordos, subornos e ameaças, a liderança do
Estado demandante, às vésperas de decidir se resolve a questão pela
força, recorre às instituições da federação internacional com o objetivo
de ter uma solução imposta para que a guerra possa ser evitada.
Quem, então, irá determinar se a queixa (ou ação) é dotada de
legitimidade para ser levada aos funcionários da federação interna­

151
YORAM HAZONY

cional? Quem determinará se a queixa justifica a interferência pela


federação internacional, de acordo com as suas diretivas? E se a fe­
deração for parte na disputa, quem determinará qual lado está certo?
Quem determinará a questão e os remédios necessários para acabar
com a disputa? E se uma ou ambas as partes se recusam a aceitar as
decisões da federação, a quem caberá impor esses remédios por meio
da coerção ou da ação militar?
A resposta óbvia é que todas essas coisas serão decididas pelas au­
toridades federais internacionais. Porque se essas decisões não estão
nas mãos das autoridades federais, então retorna-se ao cenário A:
cada Estado nacional determinará por si mesmo se submete o exame
da matéria à federação; e cada um decidirá, também, se deve cumprir
com as decisões da federação. Neste caso, isso não é uma federação
internacional, mas simplesmente uma associação para a arbitragem
voluntária de disputas entre Estados nacionais independentes. Mas
se os funcionários do governo internacional federal respondem essas
questões para eles mesmos, e se possuem autoridade coercitiva suficiente
para impor uma solução, então estamos observando um processo para
a resolução pacífica de uma disputa dentro de um Estado imperial de
acordo com o cenário B.
Mas agora observe o que isso significa. A suposição de que a federa­
ção internacional irá interferir “ apenas” em questões de guerra e paz já
se mostrou sem sentido. Qualquer intervenção para evitar uma guerra,
ou para terminar uma, exigirá uma resolução de desagravos — e esta,
como vimos, pode incluir qualquer ação ou política, considerada sufi­
cientemente provocativa ou irritante, realizada por um Estado vizinho.
O mandato da federação internacional para interferir em questões de
guerra e paz é, portanto, tão amplo quanto a lista de queixas de cada
Estado, sejam eles reais ou fabricados. A tentativa de resolução dessas
queixas por meio de interferência federal, na medida em que é levada
a sério, inevitavelmente significa a redução da independência da nação
acusada — e talvez também da nação queixosa — em áreas como a militar
e em políticas de segurança; sua economia, imigração e meio ambiente;
suas políticas religiosas e culturais; e, finalmente, sua constituição e leis.
Em todas estas questões, a única barreira contra a usurpação federal dos
direitos dos Estados independentes sob um regime federal internacional

152
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

é a autocontenção dos funcionários da federação internacional. Nada


em nossa experiência de governo humano sugere que os funcionários
desses governos federais serão capazes de tal contenção. Pelo contrário,
uma vez encarregados de uma tarefa tão pesada, como a de “trazer a
paz” para a região em questão, eles vão acreditar que não têm escolha,
e vão interferir vigorosamente na esperança de reformular os países em
guerra até que eles coincidam com as expectativas da federação interna­
cional, isto é, com a maneira que uma nação-membro compatível deve
se comportar no seio da federação.
Esta análise não deve ser interpretada como uma objeção ao fe­
deralismo em si, que pode ser um instrumento útil de governo. Cada
nação tem dentro de si várias tribos, cada uma com seus costumes
únicos, incluindo, possivelmente, a sua própria língua, leis e religião.
Um Estado nacional bem governado permitirá muitas vezes que cada
tribo trace o seu próprio curso com a liberdade necessária para seu
desenvolvimento, devolvendo ou delegando a ela autoridade em várias
áreas, desde que não se considere que a delegação vá constituir uma
ameaça para a integridade interna desse Estado como um todo. Em cir­
cunstâncias favoráveis, tal política permite que as tribos sintam um grau
maior de liberdade coletiva e de autodeterminação, enquanto a nação
como um todo se beneficia das inovações que surgem da diversidade
e da competição entre elas. O federalismo é, em outras palavras, o que
resta da ordem das tribos e clãs, uma vez que deixaram de viver como
entidades independentes com direito de travar guerras entre si. Porque
mantém, de forma enfraquecida, a estrutura original da organização
política humana, o federalismo preserva alguns dos benefícios dessa
estrutura, sendo moderadamente vantajoso para as autoridades do
Estado nacional. Isto não é menos verdadeiro em relação a um Estado
imperial, que também poderá achar vantajoso conceder às suas nações
subjugadas uma certa autoridade em algumas esferas, e para isso ar-
razoam, muitas vezes, no sentido de instituir uma estrutura federal de
um tipo ou outro — como os persas concederam aos judeus autonomia
militar e jurídica em Jerusalém, e como os britânicos brindaram as
colônias americanas com autonomia no âmbito de seu império.
Mas uma delegação de autoridade sob um sistema federal nunca
equivale a uma concessão de independência para as tribos ou nações

153
YORAM HAZONY

governadas sob esse sistema. Não se trata de independência, porque o


governo que fica no topo da estrutura federal permanece responsável
por determinar o grau adequado de autoridade a ser delegada em todos
os momentos. E onde esse governo federal considera que o grau de
autoridade delegado tem sido muito extenso, encontra a justificativa
apropriada para circunscrevê-lo, se não hoje, então amanhã.
Isso foi demonstrado várias vezes nos e u a , talvez o mais célebre
experimento de governo federal. Como é bem sabido, as treze co­
lônias americanas originalmente afirmaram sua independência da
Grã-Bretanha como uma coalizão de Estados independentes. Isto é,
como no antigo Israel ou no sistema das cidades-Estados gregas, a
independência originalmente permaneceu com cada tribo. O mais sá­
bio entre os americanos, vendo que eles compartilhavam uma língua
comum, leis, religião e história, procuraram evitar condições de guerra
constante entre as ex-colônias, unindo-as sob um único Estado nacio­
nal. A Constituição proposta em 1787, que permitia essa unificação
e a criação de um Estado nacional americano, era federal em caráter,
reservando amplos poderes aos treze estados.166 M as uma vez que o
governo nacional foi formado, inevitavelmente considerou-se como
responsável pelo florescimento material, pela integridade interna e a
herança cultural da nação como um todo, como se suas ações fossem
circunscritas na manutenção dessa responsabilidade.
Como presidente, Thomas Jefferson, por exemplo, fez tudo o que
estava ao seu alcance para derrubar a ordem religiosa protestante e
constitucional em Massachusetts e Connecticut, que ele considerou como
uma ameaça à herança cultural de toda a nação.167Abraham Lincoln
foi mais longe, travando guerra contra os estados do sul que buscaram
a secessão e o direito terrível, que eles afirmaram possuir, de escravizar
seres humanos.168 Governos lutaram contra a prática da poligamia
166 V. especialmente as Emendas Nona e Décima à Constituição dos e u a .

167 Philip Hamburger, Separation o f Church and State, Cambridge, m a : Harvard University
Press, 2002, pp. 147-189.
lí8 Apesar da conhecida posição de Lincoln de que ele estava lutando para preservar a União,
em vez de erradicar a escravidão, vejo pouco sentido em separar as duas questões. Foi a
herança cultural escravagista do Sul e sua relutância em separar-se disso que deu causa
à secessão. Além disso, com a guerra já em andamento, o governo federal avançou para
abolir toda a escravidão nos E U A e o fez entre 1863 e 1865, inclusive em estados que não
se separaram. Se a guerra tivesse sido travada somente sobre a questão formal da secessão,

154
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

mórmon em Utah até finalmente destruí-la. Mais tarde, o governo


federal interveio nos assuntos internos dos estados recalcitrantes para
derrubar leis raciais contra os negros e para reforçar a uniformidade
nacional dos padrões morais em relação a questões como a educação
bíblica e a oração em escolas públicas, aborto e uniões homossexuais.
E muitos outros exemplos poderíam ser facilmente citados.
Ao longo da história do federalismo americano, o governo nacional
usou os poderes à sua disposição para forçar os estados a alinharem
seus direitos constitucionais e tradições religiosas a uma gama de
comportamentos que considerou aceitáveis. Desta forma, a promessa
original de uma ampla autodeterminação no nível dos estados foi
gradualmente revogada.169 Não mencionei tais coisas para me opor a
elas — considero a opressão racial dos negros no sul dos e u a como
algo especialmente vergonhoso, e por isso simpatizo com os passos que
foram tomados para aniquilá-la. No entanto, é importante reconhecer o
quanto as progressivas derrogações de direitos e liberdades do governo
nacional americano, concedidas aos estados na Constituição escrita e
na Declaração de Direitos, nos ensinaram sobre a natureza do governo
federal em geral. Não há razão para acreditar que alguma estrutura
federal de governo possa ser mais duradoura ou bem-sucedida que a
americana. Ainda hoje aprendemos com o caso americano que a au­
todeterminação das tribos ou subdivisões federadas (como os estados
congregacionalistas da Nova Inglaterra, os estados escravagistas do
sul ou os Mórmons de Utah) não será concedida pelos funcionários de
um governo nacional após essa autodeterminação ter sido reconhecida
como uma ameaça à prosperidade material, integridade ou herança
isso não teria resultado na imediata e total abolição da escravidão. V. Eric Foner, The Fiery
Trial, Nova York: Norton, 2011.
169 Um evento significativo nesta história foi a ratificação da Décima Quarta Emenda à
Constituição dos e u a . Aprovada em 1868, após a Guerra Civil, esta emenda subordinou
explicitamente as leis dos respectivos estados à supervisão do governo federal em todas
as coisas relativas aos privilégios e imunidades dos cidadãos, afirmando que “ nenhum
estado fará ou aplicará qualquer lei que prive os privilégios ou imunidades aos cidadãos
dos Estados Unidos; nem qualquer estado deve privar qualquer pessoa de vida, liberdade
ou propriedade, sem o devido processo legal; nem negar a qualquer pessoa dentro de sua
jurisdição a igual proteção das leis” . Décima Quarta Emenda à Constituição dos e u a . [A
14a Emenda diz o seguinte: No State shall make or enforce any law ivhich shall abridge
the privileges or immunities ofcitizens ofthe United States; nor shall any State deprive any
person oflife, liberty, or property, without due process oflaw; nor derry to any person within
its jurisdiction the equal protection ofthe laws, 14a Emenda, Seção 1 ,2a parte. — NT

155
YORAM HAZONY

cultural da nação como um todo. Não importa o quão generosa seja a


construção de um sistema federal, e não importa o quão claramente os
documentos constitucionais derrogam certos direitos em nome de suas
tribos federadas; no fim das contas, são os funcionários do governo
nacional que determinam quantos direitos e poderes serão delegados
às tribos federadas ou subdivisões — e estes serão reduzidos e revoga­
dos, por coerção, se necessário, de maneira a manter as opiniões que
permeiam o governo nacional quanto ao bem da nação.
O caso americano foi em muitos aspectos bastante favorável ao man­
ter uma generosa distribuição de poderes sob um governo de estrutura
federal: os estados, unidos sob o federalismo americano, compartilhavam
a herança da língua inglesa e da common law, a religião protestante
e uma história conjunta de luta contra a adversidade e triunfo final,
tornando relativamente fácil para eles considerarem-se uma nação
amarrada por laços de mútua fidelidade. Em comparação, a federação
internacional proposta por filósofos e estadistas é um empreendimento
muito mais difícil. Supõe que um regime federal pode ser estabelecido
para unir nações que não têm língua, leis ou religião compartilhadas,
e nenhuma história genuína de união contra um inimigo comum. As
diferenças entre estas nações federadas, portanto, seriam radicalmente
mais pronunciadas do que aquelas que dividiram os estados americanos.
E quando essas diferenças emergirem inevitavelmente no sentido do
confronto político, o governo desta federação de nações estará diante
de duas alternativas: ou terá os recursos e a determinação necessários
para impor sua vontade às nações recalcitrantes e subservientes, e nesse
caso será um Estado imperial em todos os sentidos; ou verá a falta
desses recursos e a determinação de impor sua vontade, caso em que
se afastará dos demais países constituintes mais uma vez, exatamente
como a federação americana teria desintegrado a sua liderança se não
estivesse disposta a coagir estados recalcitrantes.
Isto é o que vemos acontecer na mais proeminente experiência atual
com a federação internacional, a União Européia. Estabelecida pelo
Tratado de Maastricht de 1992, reúne dezenas de nações anteriormente
independentes sob o princípio da “subsidiariedade” — um termo cató­
lico medieval que atualmente torna-se preferido à palavra americana

156
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

federalismo, com suas fortes conotações bíblicas.170 O tratado explica


as intenções dos seus autores, como se segue:

Em áreas que não são de sua competência exclusiva, a Comunidade adotará


medidas em conformidade com o princípio da subsidiariedade, apenas
se e na medida em que uma das ações propostas não possa ser realizada
satisfatoriamente pelos Estados-Membros e possa, por conseguinte, em
razão de escala ou efeitos da ação proposta, ser melhor alcançada pela
Comunidade.171

Aqui, o Tratado de Maastricht declara explicitamente o que ficou


ambíguo na Constituição americana: o governo europeu tomará decisões
por seus Estados nacionais subsidiários, tanto naquelas áreas que lhe são
reservadas pelo Tratado como, além disso, em outras áreas em que “uma
das ações propostas [...] (possa] ser melhor alcançada pela Comunidade” .
Uma vez que a decisão sobre as ações que podem ser melhor alcançadas
pelo governo federal europeu está nas mãos dos agentes desse próprio
governo, não há barreiras para a redução constante da autoridade dos
Estados nacionais membros que não seja o autocontrole desses mesmos
agentes. Esta restrição não tem sido iminente, no entanto, e a burocracia
da ue , apoiada pelos tribunais federais europeus, tem consistentemente
estendido seus poderes sobre os países membros em áreas como política
econômica, política trabalhista e de emprego, saúde pública, comuni­
cações, educação, transporte, meio ambiente e planejamento urbano.
O princípio europeu da subsidiariedade não é, portanto, nada além de
um eufemismo para o império: as nações subsidiárias da Europa só são
independentes na medida em que o governo europeu determina o quanto
e o como elas serão independentes.172

170 Sobre as origens bíblicas do federalismo, v. Daniel Elazat, Covenant and Polity In Biblical
Israel, New Brunswick, n j : Transaction, 1995.
171 Os signatários do tratado, incluindo Alemanha, França e Grã-Bretanha, resolveram “continuar
o processo de criar uma união cada vez mais próxima entre os povos da Europa, em que as
decisões são tomadas o mais próximo possível do cidadão, em conformidade com o princípio
da subsidiariedade” (Preâmbulo). Sobre a passagem citada, v. Artigos B e G, Seção 5.
172 V. Jeremy Rabkin, Law Without Nations?, Princeton, n j : Princeton University Press, 2005,
p. 43. O direito dos cidadãos europeus de recorrer ao direito da Comunidade Européia
contra as leis de seus próprios governos nacionais foi estabelecido pelo Tribunal Europeu
de Justiça em 1963. Caso 26/62, Van Gend en Loos v. Nederlandse Administratie der
Belastingen (1963), e c r 1; John Fonte, Sovereignty or Submission, Nova York: Encounter,
2011, pp. 132-133.

157
YORAM HAZONY

No entanto, o caráter obviamente imperial do governo federal eu­


ropeu tem sido consistentemente obscurecido, por alegações de que a
União Européia descobriu uma nova forma “transnacional” de ordem
política, à qual as categorias tradicionais descrevem instituições políticas
que não podem mais ser aplicadas. Os partidários da u e negam freqüen-
temente, por exemplo, que a perda de independência política sofrida
pelos países membros da Europa tenha resultado no estabelecimento
de um governo federal, como se poderia supor. Em vez disso, é dito que
a Europa inventou uma nova forma de “ soberania partilhada” , sob
a qual não há governo, apenas uma “ governança” conjunta. E, claro,
se não há governo federal europeu, então é impossível dizer que este
governo federal estabeleça uma ordem política imperial.
Mas tudo isso é um faz-de-conta. A União Européia tem, apesar da
propaganda, um governo central poderoso, cujas diretivas são juridi­
camente vinculativas para as nações européias e para seus membros
individuais. Este governo consiste em uma grande burocracia legisla­
tiva, cujas diretrizes são impostas às nações associadas e subordinadas
(subsidiary nations) da Europa através da aplicação das leis, por meio
de agências e sistemas judiciários que estão sujeitos aos tribunais
federais europeus. Vários órgãos nomeados e eleitos têm o poder de
ratificar essas leis ou de se recusarem a fazê-lo, embora a autoridade
permaneça, na íntegra, com a hierarquia judicial.173 É verdade que nada
disso nos recorda as instituições de um governo livre. Mas é certamente
um tipo de governo: trata-se de uma autocracia burocrática que os
Estados imperiais historicamente têm usado para governar suas nações
subordinadas. Transnacionalismo e soberania compartilhada não são,
em outras palavras, uma brilhante descoberta na teoria política. São
simplesmente um retorno a um passado imperial da Europa.
A União Européia difere, no entanto, dos Estados imperialistas
históricos que são seus predecessores de uma maneira importante:

173 As leis da União Européia têm de ser ratificadas por órgãos nomeados e eleitos, e legislaturas
nacionais também têm poderes limitados para intervir. Mas em todo caso, a autoridade
decisória permanece com as cortes federais européias. Estimativas sugerem que talvez metade
da nova legislação nos Estados europeus é imposta pela burocracia da ue em conformidade
com este procedimento e sustentada pela hierarquia judicial. Para uma visão geral da
restrição imposta às autoridades nacionais dos Estados-membros na União Européia, v.
Fonte, Sovereignty or Submission, pp. 121-158.

158
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

falta-lhe um poder executivo forte — um imperador — capaz de


conduzir relações exteriores e de travar guerras. O fato da u e não ter
tal poder executivo deve-se, em grande parte, ao seu status contínuo
de protetorado dos e u a , que foi responsável pela manutenção da paz
e segurança na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, por meio
da Organização do Tratado do Atlântico Norte ( o t a n ). O presidente
americano é, em outras palavras, o comandante supremo das forças
armadas da Europa — um fato que foi enfatizado mais de uma vez nas
recentes guerras da o t a n contra a Sérvia. Assim, o presidente americano
desempenha, de fato, o papel de imperador da Europa atual. Mais do
que qualquer coisa, esse arranjo é uma conseqüência do fato de que
nem os americanos nem os europeus estão especialmente entusiasma­
dos com a alternativa disponível, a saber, o rearmamento alemão com
um alemão na posição de imperador. As nações européias são, como
todos entendem, dominadas pela Alemanha. A União Européia é um
Estado imperial alemão sob todos os aspectos, exceto na literalidade
do nome. No entanto, enquanto a Alemanha procurar evitar o reforço
de seu rearmamento e assumir a responsabilidade pela segurança do
continente, a U E permanecerá, aparentemente, como um protetorado
americano — um protetorado que é também, por seu próprio direito,
um império. Caso os e u a retirem sua proteção, todo o discurso dos
pioneiros europeus de uma nova forma de ordem política evaporará
rapidamente. Nessa altura, um forte executivo será nomeado pela
Alemanha e terá poderes para manter a segurança do continente.
Então a reconstituição do império alemão medieval na Europa estará
completa e o experimento de inspiração inglesa com uma ordem de
independência dos Estados nacionais europeus terá chegado ao fim.
A verdade, então, é que não há uma “ solução federal” que nos
permita escapar da escolha entre uma ordem imperial e uma ordem
de nações independentes. Um governo federativo internacional não
é senão um governo imperial — e isso é assim para os que preferem
olhar para os precedentes americanos ou europeus. Qualquer federa­
ção internacional será governada por agentes com opiniões próprias
quanto aos limites que devem ser colocados na autodeterminação de
nações sujeitas. Nenhum documento fundador, por bem elaborado que
seja, pode permanecer ao longo do tempo como uma barreira eficaz

159
YORAM HAZONY

contra as opiniões desses agentes. Pois são eles que têm autoridade para
interpretar esses documentos e, assim, determinar o curso de todos os
assuntos. Eles irão interpretar, ignorar ou alterar qualquer documento
à luz de sua própria compreensão do que é necessário para a saúde e
a prosperidade do Estado imperial — que eles inevitavelmente, e de
acordo com a tradição de longa data, identificarão com a saúde e a
prosperidade da humanidade como um todo.

2 6 . 0 mito do Estado neutro


Os membros de cada nação estão dispersos geograficamente e mis­
turados com outras populações nacionais. Além disso, a história e a
topografia colocam restrições sobre quais territórios o Estado nacional
pode abraçar e defender. Essas coisas significam que, na prática, o Es­
tado nacional nunca governa todos os membros de uma nação, mas
sempre governa algumas populações que pertencem a outras nações,
sejam elas maiores ou menores. A integralidade do povo polonês não
vive na Polônia, nem há apenas poloneses vivendo dentro das fronteiras
daquele país, e o mesmo se aplica aos irlandeses na Irlanda, aos hindus
na índia, aos turcos na Turquia.
Dadas estas circunstâncias inevitáveis, tem sido freqüentemente
perguntado por que a ordem dos Estados independentes deve residir
nos Estados nacionais — isto é, naqueles Estados que expressam a
autodeterminação de uma certa nação. Será que a ordem política
não seria mais justa e pacífica se fosse construída em torno do que é
freqüentemente chamado de Estado neutro (ou Estado cívico), que se
dá sem compromissos particulares com qualquer uma das diferentes
nações, línguas ou religiões dentro de suas fronteiras? Tal Estado, diz-se,
se preocuparia apenas com a defesa comum da população, a manu­
tenção da paz e a garantia dos direitos e liberdades do indivíduo. Os
membros individuais das respectivas nações ou tribos ainda poderíam
prosseguir livremente em seus esforços coletivos de autodeterminação,
no fortalecimento de suas próprias línguas e tradições religiosas, na
medida em que assim o desejassem. O aparato do Estado, entretanto,
manteria uma estrita neutralidade em relação a todos esses esforços.
Os proponentes apontam para os e u a , França e Grã-Bretanha como

160
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

exemplos, alegando que esses Estados têm sido bem-sucedidos precisa­


mente porque foram constituídos como Estados neutros nesse sentido.174
Mas a verdade é que o Estado neutro é um mito. É invocado vez e
outra por aqueles que imaginam que o Estado pode existir na ausência
de coesão nacional ou tribal — quando, na realidade, é apenas a coesão
nacional ou tribal que permite a um Estado independente estabelecer-se e
manter-se sem incessante repressão política. A imagem do Estado neutro
é utópica, da mesma forma que as descrições socialistas da economia são
utópicas: o socialista deseja ter a prosperidade quando isso só é possível
em uma economia de mercado, mas deseja-a mesmo sem o lucro que
torna essa prosperidade possível na realidade. Da mesma forma, os de­
fensores do Estado neutro desejam a defesa física vigorosa da população,
a obediência às leis e as garantias das liberdades individuais que só são
possíveis no Estado nacional, ao mesmo tempo em que desejam ter essas
coisas sem qualquer apelo para os laços mútuos de lealdade tribal ou
nacional que as tornam possíveis na realidade. Isto já foi dito muitas
vezes, assim me limitarei a acrescentar apenas algumas observações.175
O ideal do Estado neutro ou cívico envolve uma separação entre
nação e Estado, muito de acordo com as linhas previstas por Jefferson
em seu apelo por uma “separação entre Igreja e Estado” .176O significado

174 Para uma visão geral deste assunto, v. Will Kymlicka, Politics in the Vernacular, Oxford,
UK: Oxford University Press, 2001, pp. 23-24. As vantagens do Estado cívico ou neutro
são enfatizadas, especialmente, por Lord Acton, citado por John Emerich Dalbert-Acton,
“Nationality” , Essays on Freedom and Power, org.: Gertrude Himmelfarb, Boston: Beacon
Press, 1949 (1862), pp. 166-195. Tornou-se um princípio normativo orientador no estudo
acadêmico do nacionalismo com o surgimento de obras como a de Kohn, The Idea o f
Nationalism, e Kedourie, Nationalism.
175 Para críticas ao mito da “ nação cívica” , v. Yack, Nationalism and the Moral Psychology
o f Community, pp. 23-43; Roshwald, The Fndurance o f Nationalism, pp. 253-295; Taras
Kuzio, “The Myth of the Civic Nation: A Criticai Survey of Hans Kohn’s Framework for
Understanding Nationalism” , Ethnic and Racial Studies 25 (janeiro de 2002), pp. 20-39;
Stephen Shulman, “ Challenging the Civic/Ethnic and West/East Dichotomies in the Study
of Nationalism”, Comparative Political Studies 35 (junho de 2002), pp. 554-585; Will
Kymlicka, Politics in the Vernacular, pp. 23-27.
176 Michael Walzer, por exemplo, descreve os Estados Unidos como caracterizados por um
“ acentuado divórcio entre Estado e etnia” , embora admita que “ índios americanos e
negros foram em grande parte excluídos desta unidade” . V. o seu “ Pluralism in Political
Perspective” , em The Politics o f Ethnicity, orgs.: Michael Walzer et al. Cambridge, MA:
Harvard University Press, 1982, pp. 17-18. A conveniência de separar a nacionalidade do
Estado aparece repetidamente no pensamento político judaico-alemão, notadamente nos
escritos de Hermann Cohen, Martin Buber e seus seguidores. V. minha abordagem em Yoram
Eíazony, The Jewish State, Basic Books, 2000, pp. 181-264. Um tratamento contemporâneo

161
YORAM HAZONY

preciso dessa separação proposta é que não se espera que o indivíduo


obedeça às leis do Estado, pague impostos e sirva nas forças armadas
por uma lealdade à sua própria tribo ou nação, que é o que vincula
o indivíduo ao Estado e o leva a fazer todas essas coisas em nome de
um Estado nacional. A questão central para tal ideal é a seguinte: se
não é a lealdade à tribo ou nação que joga nos ombros do indivíduo
tal ônus, qual será a fonte de sua motivação para fazer tais sacrifícios
no Estado neutro? Reconhecendo que alguma motivação é necessária,
os defensores do Estado neutro propõem que os indivíduos devem ser
leais aos documentos constitucionais do Estado e aos vários símbolos
que os agentes do Estado inventaram para representar este constitu-
cionalismo nas mentes da população. Tal “patriotismo constitucional”
é comumente associado ao seu mais conhecido defensor, o filósofo
alemão Jürgen Habermas. Mas semelhantes propostas também são
ouvidas agora nos e u a , onde o amor aos documentos fundadores (ou
o “ credo americano” que eles supostamente contêm) é agora freqüen-
temente invocado como um substituto para um apego à própria nação
americana em si.177
Isso é possível? Pode haver um Estado em que leis sejam obedecidas,
impostos arrecadados e soldados recrutados à guerra em virtude de
uma lealdade generalizada à Constituição escrita do Estado?
Sabemos de casos do que parece ser tal lealdade a um documento
escrito. Ao longo da história, os muçulmanos colocaram-se em risco
para evitar que seu próprio documento fundado^ o Alcorão, sofresse
danos ou depreciações. Os hindus têm uma veneração semelhante aos
Vedas, e os judeus à Torá (Torah), o pergaminho dos livros mosaicos,
que está em vigor como se fosse a sua própria constituição. No mundo

desta tradição está em Yael Tamir, Liberal Nationalism, Princeton, n j : Princeton University
Press, 1993.
177 Sobre a teoria do “ patriotismo constitucional” como uma alternativa ao nacionalismo
numa Alemanha “ pós-nacional” , vide Jürgen Habermas, “The European Nation-state” e
“ Does Europe Need a Constitution?” , The Inclusion ofthe Otber, coords.: Ciaran Cronin
e Pablo De Greiff, Cambridge, Mass: Massachusetts Institute of Technology Press, 1998, pp.
117-120,160-161. Alguns proponentes enfatizam que não são propriamente os documentos
constitucionais, mas sim os princípios que vão neles consagrados, que devem ser objeto de
lealdade. Meu argumento vai na mesmo sentido, contudo, independentemente de se extrair
o problema do documento ou dos princípios descritos no documento que supostamente
deveríam ser o objeto da lealdade.

162
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

histórico cristão muitos foram motivados, também, a fazer sacrifícios


para proteger certos textos sagrados e imagens de danos ou profana­
ções. Estes e outros exemplos similares fortalecem a sensação de que
a reverência motivadora a um documento está dentro do âmbito da
possibilidade. Pela experiência, não parece que se alguém tivesse que
imprimir o respeito público na Constituição, no sentido de um respeito
genuinamente religioso, uma tradição política baseada nesse tipo de
motivação reverenciai nos textos constitucionais do Estado poderia,
desta forma, ser desenvolvida.178
O que é impossível, entretanto, é que a sacralização de documentos
constitucionais do Estado ocorra sem o respaldo das tradições familiares,
tribais e nacionais, nas quais o indivíduo aprende a reverenciar e a ter
como sagradas certas coisas e não outras. Quando criança, eu estava
constantemente exposto à veneração da Torá na sinagoga. Sentia esta
veneração no modo como os adultos se aproximavam para beijar o
pergaminho quando traziam-no para ser lido três vezes por semana, e
na maneira como o pergaminho era erguido sobre as nossas cabeças
para que todos pudessem vislumbrar a escrita copiada à mão no per­
gaminho. Além disso, eu sabia que se a Torá fosse derrubada no chão,
a congregação jejuaria por um mês em penitência, e suspiraria, junto
com o resto da congregação, se eu visse o desenrolar do pergaminho
quando fosse levantado. Desta e de muitas outras formas, eu experi­
mentei a reverência do clã como se fosse minha — pois a congregação
tem sido, há muito tempo, entre judeus e cristãos, o equivalente do
clã. Isso equivale a dizer que a reverência à Torá e a lealdade a ela é
aprendida pelas crianças como um aspecto inseparável de sua lealdade
à sua família e ao seu clã, de modo que, elas próprias demonstram a
sua veneração à Torá como um aspecto inseparável de sua lealdade à
nação judaica. O temor reverenciai que cristãos, muçulmanos e hindus
mantêm em relação a seus textos e objetos sagrados é notavelmente
semelhante ao judaico, sendo cultivado de maneira análoga em cada
nova geração de crianças.

178 Sobre a reverência religiosa à bandeira americana cultivada depois da Guerra Civil nos
Estados Unidos, v. Samuel Huntington, Who Are We?, Nova York: Simon and Schuster,
2004, pp. 127-128.

163
YORAM HAZONY

O sagrado passa a existir apenas nos costumes da família, do clã,


da tribo e da nação. Certamente há indivíduos e famílias que se ligam
a essas coisas sagradas na idade adulta, mas para a maioria dos seres
humanos uma consciência de sacralidade surge junto com os laços
de lealdade mútua que formamos em nossa infância e juventude. Isso
significa que longe de poder substituir a lealdade à tribo e à nação,
os documentos constitucionais do Estado neutro serão reverenciados
e se tornarão objetos de lealdade precisamente na medida em que
a tribo ou nação a qual somos leais transmita a sacralidade desses
documentos a cada nova geração de crianças. Os documentos escritos
seriam, portanto, a herança cultural de certas tribos ou de uma certa
nação e, mais uma vez, a lealdade do indivíduo à sua tribo ou nação
— mais do que uma lealdade distinta e independente aos documentos
em si — seria a fonte de quaisquer ações que ele estaria disposto a
empreender em defesa do Estado neutro. O mesmo se aplica a qual­
quer outro ofício, símbolo ou ritual supostamente neutro do Estado,
que possa ser concebido por seus oficiais. A reverência a todos esses
documentos e símbolos seria um artefato de uma tradição tribal ou
nacional específica e, assim, não seria totalmente neutra. E é deste
modo, precisamente, que eles seriam vistos por aquelas nações e
tribos minoritárias que não estão vinculadas por laços de lealdade
mútua com a maioria nacional do Estado, e que não entendem o que
acontece com a maioria nacional como algo que acontece com elas
mesmas. Esses documentos e símbolos, longe de serem considerados,
com reverência, como símbolos do Estado neutro, seriam vistos pelas
minorias nacionais e tribais alienadas como a quase-religião de uma
nação ou tribo diferente, e como hipocrisia, na medida em a neutra­
lidade é reivindicada por eles.
Não há Estados neutros. O que mantém um Estado livre unido é
a lealdade mútua dos membros da nação ou tribo majoritária, e sua
lealdade ao Estado, somada às alianças, sejam elas alinhamentos estra­
tégicos ad hoc ou de longo prazo, que essa nação ou tribo majoritária
faz com outros, a fim de estabilizar e consolidar o Estado. Todo Estado
livre é, em outras palavras, um Estado nacional ou tribal.179 De modo

179 Eu me referi aqui à maior nação dentro de um Estado nacional livre como nação majoritária.
No entanto, também pode haver um Estado nacional livre em que a maior nação não goza

164
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

semelhante, em regimes despóticos, notamos que quando o governo


é controlado por uma única tribo, clã ou família, ao lado de certos
aliados, acaba mantendo a grande maioria sob controle por meio do
medo e da corrupção.
Como, então, o mito de um Estado neutro, em que o Estado foi se­
parado da nação, pode ser capaz de persistir? Esse mito depende, acima
de tudo, da alegação, acima mencionada, de que Estados ocidentais
bem-sucedidos, como os eua, a Grã-Bretanha ou a França são exemplos
de Estados neutros ou cívicos, e que estes Estados foram separados com
sucesso de qualquer vínculo com as nações ou tribos que os constituem.
Não há, no entanto, qualquer base que suporte tal alegação. Os eua
são unidos pelos laços de lealdade mútua que unem a nação americana,
uma nação de língua inglesa cujos direitos constitucionais e tradições
religiosas foram originalmente enraizadas na Bíblia, no protestantismo,
no republicanismo e no direito comum (common law) da Inglaterra.180
A passagem dos séculos e a incorporação de uma grande comunidade
católica, e outras comunidades menores, significa, com efeito, que
novas tribos foram adotadas nessa mesma nação americana. M as isso
não mudou em nada o fato de que os americanos continuam sendo
uma nação única e altamente distinta.181 Nenhum território ainda foi
admitido à União americana como um estado, sem que uma maioria

de maioria, mas apenas de uma pluralidade, enquanto o resto da população consiste em


número menor de minorias nacionais. Para evitar o uso de jargões desnecessários, continuarei
a tratar como “ nação majoritária” tais casos, termo que inclui nações em uma posição de
pluralidade semelhante. Sem dúvida, existem casos excepcionais nos quais duas nações ou
tribos, cada qual espantosamente dominante dentro de seu próprio território, acabam se
equilibrando dentro de um único Estado federal. Exemplos bem conhecidos são o Canadá,
a Bélgica, e a Tchecoslováquia (dissolvida em 1993).
180 Como John Jay escreveu nos Federalist Papers: “ Providence tem sido brindada em dar a
este único e conectado país um respectivo povo unido — um povo descendente dos mesmos
antepassados, falando a mesma língua, professando a mesma religião, ligada aos mesmos
princípios de governo, muito semelhantes em seus hábitos e costumes, e que, por conselheiros,
braços e esforços unidos, lutaram lado a lado ao longo de uma extensa e sangrenta guerra,
estabelecendo nobremente a liberdade e a independência para todos os demais” . John Jay,
Federalist 2. V. também Gregory Jusdanis, The Necessary Nation, Princeton, n j : Princeton
University Press, 2001, pp. 155-162.
181 O sistema de escolas públicas americanas foi estabelecido na década de 1830 com o objetivo
de manter uma cultura pública baseada no protestantismo e no nacionalismo americano.
Carl Kaestle, Pillars ofthe Republic, Nova York: Hille Wang, 1983, pp. 75-103. Sobre as
políticas educacionais e outras instituições visando “ americanizar” os imigrantes durante
o século xx, v. Huntington, Who Are Wei, pp. 131-136.

165
YORAM HAZONY

clara de colonos de língua inglesa nele estivesse estabelecida. O domínio


dos povos nativos americanos ou de língua hispânica, ou falantes de
línguas polinésias no Havaí, sempre foi evitado.182A presença contínua
dos povos nativos da terra — como uma nação navajo politicamente
autônoma, que soma centenas de milhares e educa suas crianças na
língua e tradições de seu povo até hoje — testemunha o fato de que a
nação americana, apesar de seu domínio esmagador nos e u a , ainda é
uma nação como todas as outras.183 O mesmo se pode dizer da nação
francesa, que ao longo dos séculos manteve a sua coesão por meio de
campanhas agressivas e por vezes horríveis, para desenraizar a língua
occitana e outras línguas que foram percebidas como prejudiciais à
unidade da nacionalidade francesa; e da nação inglesa, que foi forjada
através de séculos de guerras para empurrar de volta os povos celtas
para suas periferias.184
A natureza supostamente neutra ou cívica de Estados como os
e u a , Grã-Bretanha e França é, portanto, ilusória. A força e a estabili­

dade destes Estados livres é inteiramente o resultado da esmagadora


predominância das nações americana, inglesa e francesa sobre todas
e quaisquer nações ou tribos concorrentes dentro de suas fronteiras
— um domínio que foi alcançado em todos os três casos por meio da
destruição de quaisquer concorrentes de peso ao longo dos séculos. E a
coesão interna dessas nações que faz os Estados nacionais em questão,
e a herança cultural dessas nações que estabelece o caráter de cada um
de seus respectivos Estados. Se há algo a se aprender com esses Estados,
é que o domínio esmagador de uma única nacionalidade dentro de um
182 O esforço para preservar a cultura alemã por meio da língua alemã nas escolas em
Wisconsin foi igualmente erradicado pela legislatura de 1889. James Morone, “ The
Struggle for American Cultural” , PS: Political Science and Politics 29, 1996, pp. 424—430.
Novos territórios foram geralmente incorporados ao tradicional arcabouço jurídico anglo-
americano, onde nem mesmo tenha existido uma maioria de língua inglesa. Na Louisiana,
onde um Código Civil modelado na lei civil francesa foi permitido, o governo federal
estipulou que tanto o código como os processos judiciais estivessem em língua inglesa.
Rabkin, Law Without Nattonsí, pp. 109-111, pp. 306-307, cf. n. 19,22.
183 Os índios americanos receberam status de cidadãos americanos em 1924, e muitos direitos
garantidos pela Constituição dos e u a em 1968. Uma discussão relevante sobre a destruição
da nação Crow está em Jonathan Lear, Radical Hope, Cambridge, m a : Harvard University
Press, 2008.
184 Gat, Nations, p p . 260-264; Anthony Marx, Paith In Nation, Oxford, U K : Oxford University
Press, 2003; Eugen Weber, Peasants into Frenchmen, Stanford, c a : Stanford University Press,
1976; Linda Colley, Britons, New Haven, c t : Yale University Press, 1992.

166
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

determinado Estado permite o crescimento de instituições, incluindo


direitos e liberdades individuais, que um Estado dividido internamente
— isto é, um Estado não-nacional — não pode, em geral, desenvolver
ou manter.185
Uma das características mais marcantes da ordem política estabe­
lecida com o recuo dos impérios europeus no último século é a quan­
tidade de novos Estados independentes que foram criados no Oriente
Médio, na África e em outros lugares, e que são Estados não-nacionais
exatamente nesse sentido. Ou seja, os ingleses, franceses e holandeses,
na partilha de muitas terras conquistadas, geralmente não optavam
por seguir o padrão de seu próprio modelo de sucesso, traçando as
fronteiras estatais que refletiam os limites nacionais e tribais. Talvez
porque esses antigos governantes imperiais não desejavam ser inco­
modados com a reformulação arbitrária de fronteiras coloniais, ou
com transferências populacionais em larga escala, para obter um
ajuste razoável entre as fronteiras estatais e as populações nacionais.
Ou talvez porque, ao contrário, eles realmente preferiram estabelecer
Estados com fronteiras arbitrárias em vez de fronteiras nacionais ou
tribais, reconhecendo que isso tornaria esses territórios quase impos­
síveis de governar e, portanto, mais fáceis de manipular e controlar à
distância. Mas quaisquer que sejam as razões, é notável que a maioria
dos novos Estados estabelecidos pelas potências imperiais tenha sido
criada como Estados não-nacionais.
Assim, por exemplo, o Estado do Iraque alcançou sua independência
da Grã-Bretanha imperial em 1932 como conseqüência de fronteiras
traçadas em negociação com a França. Nunca houve na história uma
nação “ iraquiana” antes disso, mas os britânicos, ignorando fronteiras
nacionais e religiosas, no entanto, afirmaram que tal nação poderia
ser criada, forçando a união de tribos curdas, assírias, árabes sunitas e
árabes xiitas, entre outras — povos que não compartilham nem língua
nem religião, nem história anterior de uma ação conjunta. Foram cha­
mados de nação e receberam uma constituição escrita, uma bandeira e
185 Sidgwick refere-se aos Estados nacionais como “ Estados orgânicos” ; enquanto um “ Estado
inorgânico” é “ aquele em que a regra é a de um estrangeiro suportado por um exército
dissociado do sentimento do resto da população. A comunidade assim mantida artificialmente
não tem o tipo de coesão que constitui uma nação” . Henry Sidgwick, The Elements o f
Politics, pp. 236 e 277.

167
YORAM HAZONY

o direito de enviar embaixadores para todo o mundo, bem como vários


outros símbolos de um Estado nacional. Todas essas coisas foram feitas
com o objetivo de estabelecer que este novo Estado do Iraque fosse de
fato um Estado nacional, da mesma forma que a Inglaterra, a França
ou os eua são um Estado nacional. No entanto, não havia qualquer
verdade nisso. N a realidade, árabes sunitas eram o grupo tribal domi­
nante, mantendo a união do Estado através da opressão implacável à
população muito maior de árabes xiitas. A grande população curda
nunca aceitou o domínio árabe. O envenenamento por gás dos curdos,
realizado pelos sunitas em 1988, em Halabja, no Iraque, é apenas o
exemplo mais conhecido da brutalidade indescritível que o regime
árabe sunita necessitava exercer para manter a integridade do Estado.
A tentativa americana de salvar o país, reconstituindo-o à força como
uma democracia ocidental, completada com uma nova Constituição
escrita que garantia as liberdades individuais em 2005, rapidamente
terminou em fracasso e em uma terrível guerra civil.
Um destino semelhante se abateu sobre a Síria, que foi estabelecida
como Estado independente pelos franceses em 1946. Nunca houve
na história uma nação “ síria” antes disso, tendo o próprio nome sido
inventado pelos gregos para descrever esta região geográfica. No en­
tanto, ao contrário dos fatos evidentes, as tribos alawita, drusa, curda,
cristã assíria e árabe sunita, neste território arbitrariamente desenhado,
foram declaradas uma nação. Como resultado, essa massa de grupos
violentamente opostos viveu durante duas décadas a instabilidade
crônica e a opressão estatal até que os alawitas, uma nacionalidade
ou tribo não-muçulmana com uma religião e identidade histórica
próprias, foram finalmente capazes de tomar o poder. Estabelecendo
um alinhamento minoritário juntamente com cristãos e drusos, eles
impuseram um reinado de terror à maioria da população árabe sunita,
incluindo, inclusive, a famosa destruição da cidade sunita de Hama
pelos alawitas. Na década atual, os alawitas continuaram a impedir o
estabelecimento de um regime árabe sunita a um custo de meio milhão
de mortos e o deslocamento de talvez metade da população do país.
Compare esses Estados com seu vizinho próximo, Israel, que foi
fundado quase ao mesmo tempo. Israel foi estabelecido em 1948 como
um Estado nacional para o povo judeu após a retirada dos britânicos do

168
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

país. Sua finalidade, como reflete a sua Declaração de Independência e


numerosas leis do Estado, era permitir a autodeterminação dos judeus
como tuna nação. Como tal, absorveu milhões de judeus destituídos e
refugiados de terras árabes, do Irã, da Europa Central, da União Soviética
e de outros lugares. A esses imigrantes judeus foi oferecida liberdade,
proteção de perseguições, oportunidades econômicas e escolas públicas
onde seus filhos puderam ser introduzidos ao patrimônio do seu povo,
aprendendo hebraico, história judaica e Bíblia. Em outras palavras, Israel
tem-se comportado como Estado nacional de um povo em particular.
Ao mesmo tempo, porém, Israel também desenvolveu instituições livres,
que permitem à sua minoria de grupos nacionais e tribais conduzir^ cada
qual, suas práticas religiosas como bem entender e educar seus filhos na
própria língua e herança cultural. De fato, Israel é hoje o único Estado
no Oriente Médio em que cristãos, drusos e outros podem praticar
abertamente suas religiões sem o medo de colocar suas vidas em risco.
O que dá a Israel a capacidade de florescer como um Estado livre,
mesmo oferecendo amplas proteções a grupos minoritários nacionais
e tribais, enquanto Estados como a Síria e o Iraque nunca atingiram
estabilidade, exceto através do terror estatal mais sanguinário? Existe
um único princípio que distingue esses Estados um do outro: desde o
momento de sua fundação, Israel constituiu-se como um Estado nacional.
Isso significa, em primeiro lugar, que há, tanto dentro quanto fora de suas
fronteiras, uma autêntica nação judaica. As várias tribos judaicas têm
em comum a religião judaica e suas respectivas leis, a língua hebraica
e uma história de unificação diante das adversidades que remontam a
milhares de anos. Adicionalmente, essas tribos se uniram de forma vo­
luntária para estabelecer um Estado nacional judaico cujo propósito era
o desenvolvimento de uma autodeterminação coletiva. Em Israel, essa
nação judaica tem sido a vasta maioria da população desde a fundação
do Estado. Os símbolos e as características do Estado foram derivados
das tradições nacionais e religiosas dos judeus, refletindo a autodeter­
minação coletiva da qual este Estado independente é uma expressão.186
Muito do que foi escrito sobre nacionalismo nas últimas décadas sus­
tenta que um Estado constituído como um Estado nacional será menos

186 Sobre Israel como um Estado nacional judeu, v. Hazony, The Jewish State, pp. 267-275.

169
YORAM HAZONY

coeso e, portanto, menos estável e mais opressivo do que um Estado


neutro ou cívico. De acordo com esse argumento, um Estado nacional
implica privilégios especiais para os membros da nação majoritária no
Estado, incitando assim ressentimento, resistência e violência por parte
das nacionalidades minoritárias. A maioria é então forçada a responder
com opressão para manter seu status especial. Inicia-se, assim, um “ciclo
de violência” que não pode ser quebrado.
A experiência, no entanto, ensina o contrário. O domínio esmagador
de uma nacionalidade única e coesa, unida por laços indissolúveis de
lealdade mútua, é de fato a única base para a paz interna dentro de um
Estado livre. Não quero com isso sugerir que toda a população deva ser
retirada de uma única nacionalidade, pois tal coisa não existe em parte
alguma do mundo. Além disso, não há evidências de que essa completa
homogeneidade seja necessária para a coesão, estabilidade e sucesso
do Estado. Em vez disso, o que é necessário para o estabelecimento
de um Estado estável e livre é uma nação majoritária, cujo domínio
cultural seja claro e inquestionável e contra o qual a resistência pareça
ser fútil. Essa nação majoritária será forte o suficiente para não temer
os desafios das minorias nacionais e, por conseguinte, será capaz de
conceder-lhes direitos e liberdades sem prejudicar a integridade interna
do Estado. Da mesma forma, as minorias nacionais que se opuserem a
essa maioria nacional estarão, em grande medida, relutantes quanto a
se envolver em confrontos que conscientemente não seriam capazes de
vencer. Em sua maior parte, portanto, elas se assimilariam ao sistema
de expectativas estabelecido pela cultura constitucional e religiosa da
nação majoritária, aprendendo sua língua e recorrendo à violência
apenas em raras ocasiões. Este tem sido o caso dos Estados nacionais de
maior sucesso, como a Grã-Bretanha, os e u a , a França e outros países
da Europa, além de Estados nacionais como Austrália, Japão, Coréia,
Tailândia, Turquia, índia e Israel. Em cada caso, o domínio esmagador
de uma única nação majoritária gerou Estados extraordinariamente
mais estáveis, prósperos e tolerantes do que os Estados vizinhos que
não foram constituídos como Estados nacionais.187

187 N a Europa Oriental, na índia e no Oriente Médio, muitos dos mais bem-sucedidos Estados
nacionais foram estabelecidos como resultado de intercâmbios populacionais, frequentemente
acompanhados de violência. Como Roshwald escreve, “Valores pluralistas, ao que parece, são

170
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Quando o Estado não é constituído como Estado nacional, acontece


precisamente o oposto: as várias nações ou tribos que foram fadadas ao
convívio à força, não tendo nenhuma língua ou religião, nem mesmo
histórico de colaboração contra inimigos comuns, não podem formar
laços de lealdade mútua e, portanto, não podem se tornar uma nação.
Elas lutam pelo poder até que um grupo nacional ou tribal finalmente
assuma o controle do governo. Mas, como a população permanece
internamente dividida ao longo de linhas nacionais e tribais, essa to­
mada de poder nada faz para alterar a falta de solidez fundamental do
Estado. O que impede a ruína total são os laços de lealdade mútua que
unem o grupo nacional ou tribal que se apoderou do governo, e a mão
de ferro de sua liderança, que mantém todos os demais sob constante
medo. Desta forma, o Estado não-nacional inevitavelmente inclina-se
para um regime despótico e, finalmente, uma vez que o despotismo
estatal não pode mais ser mantido no lugar, ocorre a dissolução. Não
apenas a Síria e o Iraque, mas Estados como a União Soviética, a Iu­
goslávia, a Tchecoslováquia, o Líbano, o Iêmen, o Sudão, a Nigéria
e o Congo, todos entidades multinacionais que reivindicavam algum
tipo de neutralidade entre as várias nações sob sua égide, explodiram
em guerra civil ou simplesmente entraram em colapso.188

17. Um direito à independência nacional?


Proponho que a melhor ordem política é a de um Estado nacional
independente. A minha visão assemelha-se à de Mill, que viu a inde­
pendência dos Estados nacionais como um bem evidente e defendeu

muito mais fáceis de serem adotados na ausência de diversidade” . Roshwald, The Endurance
o f Nationalism, p. 264. Os locais onde os Estados nacionais, no entanto, confrontam-se
com conflitos internos prolongados, são justamente as regiões em que uma minoria nacional
forma uma maioria local forte: na Cashemira muçulmana na índia, nas províncias curdas do
sudeste da Turquia, em territórios de maioria árabe mantidos por Israel, e assim por diante.
188 Como Margaret Canovan escreve: “ O problema de manter a unidade e estabilidade [...]
tem sido historicamente mais difícil de resolver em termos democráticos do que em termos
não-democráticos [...]. Quanto mais democrático é o Estado, mais necessidade tem o povo
de ter algum vínculo de unidade além daquelas fornecidas pela sujeição comum” . Canovan,
Nationho de teoria política, Northampton, m a : Edward Elgar, 1996, p. 22. Estas conclusões
são apoiadas por Dorina Bekoe, em sua pesquisa de Estados africanos internamente
divididos, “ Democracia e conflitos africanos: incitar, mitigar, reduzindo a violência” , em
Democratization in África, conferência relatório do National Intelligence Council, 2008,
p. 30. V. também Anthony Smith, The Ethnic Origins ofNations, p. 146.

171
YORAM HAZONY

que tais Estados fossem estabelecidos sempre que possível.189 Tal po­
sição não requer, contudo, que demos o passo adicional de endossar
um direito universal à independência nacional e à autodeterminação,
aplicável a todos os povos, como sugerido por Woodrow Wilson.190 E,
de fato, parece que não pode haver tal direito. Explicarei aqui porque
isso é assim, e o que isso significa para a elaboração da política externa
e para o avanço da ordem dos Estados nacionais.191
Grande parte do discurso político atual se preocupa com a afir­
mação de vários direitos naturais e universais que diz pertencerem
a indivíduos e coletividades. Nessas discussões, há muitas vezes uma
transição muito fácil do reconhecimento de que algo é bom, para a
afirmação de que todos os indivíduos ou nações têm um “ direito” a
esse “ algo bom” (good). N a realidade, nem tudo que é bom pode ser
entregue a cada indivíduo ou nação: a disponibilidade de um bem
para um indivíduo impede a possibilidade de alcançar outro; ou então
priva outros indivíduos de vários bens; ou então sua disponibilidade
hoje resulta em uma deterioração muito mais severa das condições de
amanhã; e assim por diante. Isto significa que os bens que podem ser
disponibilizados são uma questão prática que não pode ser determina­
da sem tentativa e erro nas sociedades atuais. Os verdadeiros direitos,

189 V. cap. 14, seção 5.


190 Woodrow Wilson, ao declarar os objetivos de guerra dos Estados Unidos durante a Primeira
Guerra Mundial, afirma que, no acordo do pós-guerra, “ aspirações nacionais devem ser
respeitadas. Os povos podem agora ser dominados e governados apenas sob seu próprio
consentimento. ‘Autodeterminação’ não é uma mera frase. É um princípio imperativo de
ações que os estadistas doravante ignorarão sob risco próprio” , Woodrow Wilson, “Discurso
para uma sessão conjunta do Congresso Americano analisando as declarações de paz alemãs
e austríacas”, em 11 de fevereiro de 1918. A suposição de que tal imperativo universal
poderia ser implementado decorre da crença de Wilson de que ele estava testemunhando
o nascimento de um “novo mundo” em que “ o dia da conquista e do engrandecimento se
foi” — e que “ este fato profícuo [está] claro para a vista de qualquer homem público, cujos
pensamentos ainda não permaneçam em uma era morta e ultrapassada” . No contexto dessa
visão messiânica do mundo político, ele declarou seus Catorze Pontos como sendo “o clímax
moral de [...] uma culminante e derradeira guerra pela liberdade humana” , resultando para
“ todos os povos e nacionalidades” o “ direito de viver em igualdade de condições [...] uns
com os outros” , Woodrow Wilson, “ Discurso à sessão conjunta do Congresso sobre as
condições de paz” , 8 de janeiro de 1918.
191 Himmelfarb sugere que a transição de Mill para Wilson marca uma reviravolta dos modos
de pensar realistas para os utópicos em face da realidade das nações. Himmelfarb, The
Dark e Bloody Crossroads, p. 60. Compare Gellner, Nation and Nationalism, pp. 1-3; Yack,
Nationalism and the Moral Psychology o f Community, pp. 233-252. V. também o estudo
de Tamar Meisels, Territorial Rights, 2a ed. Dordrecht, Holanda: Springer, 2009.

172
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

aqueles que incorrem em obrigações para os outros, são, por isso, in­
calculáveis sem referência às restrições dos contextos do mundo real.
Por exemplo, podemos dizer que um bom regime político será aquele
em que os indivíduos não sofrem de fome e em que estão protegidos
das devastações da guerra. No entanto, reconhecer essas coisas como
aspectos do bem político não equivale a reconhecê-las como um di­
reito. A obrigação de prevenir toda espécie de fome só poderá existir,
potencialmente, em uma sociedade que possua os recursos econômicos
e logísticos para realizar tal missão; assim como o direito de não ser
chamado à guerra só pode existir, potencialmente, em uma sociedade
cujas forças armadas sejam fortes o suficiente, e cujos vizinhos sejam
suficientemente pacíficos para permitir tal garantia. E o mesmo pode
ser dito de muitos outros direitos universais que foram declarados nos
dois últimos séculos sem que se considerasse a existência ou não de
recursos que pudessem disponibilizá-los. É difícil entender como se
pode afirmar que a simples nomeação de um bem, onde não existem os
recursos para a sua entrega, acarreta um direito, que é uma obrigação
que deve ser assumida por outrem.
Este é o caso que diz respeito à proposta universal de um direito
à independência nacional. A melhor ordem política que conhecemos
é uma ordem de Estados nacionais independentes. Isto não significa,
porém, que todas as nações tenham o direito de ser independentes. Ao
sugerir que as aspirações nacionais seriam respeitadas e que nenhum
povo continuaria a ser governado contra a sua vontade, Wilson estava
sugerindo uma certa visão do que é bom ou melhor. Mas ele também
estava afirmando o direito de um povo de não ser governado contra a
sua vontade e, portanto, uma obrigação de ser suportado por outros,
para garantir este resultado. A afirmação de tal direito e tal obrigação
parte do pressuposto de que existe um mundo em que é possível fazer
determinações claras sobre o que constitui uma nação que merece
independência, e na qual há recursos suficientes para a tarefa de as­
segurar um Estado nacional independente, sempre que houver uma
reivindicação plausível. Mas o mundo das nações não é tão nítido.
Nem há recursos remotamente suficientes disponíveis para a concessão
de tal direito universal em todos os casos em que uma reivindicação
assim venha a ser feita.

173
YORAM HAZONY

Consideremos primeiro a questão de determinar o que constitui


uma nação. Existem hoje no mundo milhares de apátridas.192 Só na
índia são faladas 1.700 línguas inteiramente distintas; outras 1.500
são faladas na África, 700 na Indonésia e muitas outras em todo o
mundo. Cada uma dessas línguas é falada por uma nação ou tribo
distinta com uma herança cultural própria que poderia, sob certas
circunstâncias, torná-la candidata à independência. No entanto, mesmo
o vasto número dos povos que é sugerido por um olhar sobre as cartas
lingüísticas não nos dá a imagem completa do problema. O fato é que
não há maneira de colocar um limite inferior naquilo a que se pode
razoavelmente ser chamado de nação. Cada nação pode ser reduzida
às suas tribos, e cada tribo aos seus clãs — cada uma com seu próprio
dialeto, sua própria herança religiosa e cultural e sua própria história.
E cada uma delas também, sob certas circunstâncias, exigirá o seu
próprio direito à independência e autodeterminação. Naturalmente, a
condição em que cada tribo e clã afirma sua independência, insistindo
no direito de governar-se a si mesmo, conduzir sua própria política
externa e travar guerras, é precisamente o que reconhecemos como
uma ordem de tribos e clãs.193
Por definição, uma ordem de Estados nacionais — entendida como
distinta de uma ordem tribal ou feudal — envolve a agregação e a
coesão mútua de muitas dessas tribos e clãs, que renunciaram ao seu
suposto direito de se autogovernar, conduzir a política externa e fazer
guerra, a fim de formar Estados nacionais maiores e independentes, cujas
tribos estão internamente em paz. O princípio da autodeterminação
coletiva, se transformado em um direito universal de independência
192 Muitos são descritos em James Minahan [org.], The Encyclopedia o f Stateless Nations,
Westport, c t : Greenwood Press, 2002.
193 Um deplorável resumo sobre este tema foi feito por Wilson em uma reunião com Edward
Dunne e Frank Walsh na Casa do Presidente em Paris, em 11 de junho de 1919, a que
foram para defender a causa da Irlanda. Descrevendo sua experiência em Versalhes,
seguindo sua opinião de que todos os povos têm o direito à autodeterminação, Wilson
disse a eles: “ Quando dei sentido a essas palavras, eu disse-lhes sem o conhecimento de
que nacionalidades existiam, que nos chegariam dia após dia [...]. Vocês não fazem idéia e
não podem avaliar o grau das apreensões que tenho percebido como resultado de muitos
milhões de pessoas tendo suas esperanças despertadas pelo que disse [...]. Ninguém conhece
os sentimentos que habitam dentro de mim [...]. É uma sensação de angústia” . Reimpressão
a partir das Audiências do comitê de relações exteriores, Senado dos e u a , n°. 106,1919,
pp. 835-838, esp. 838. A literatura derivada contendo a declaração de Wilson como parte
de um discurso no Senado está equivocada.

174
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

para cada tribo ou clã que o adotar, é justamente o oposto de uma


tal ordem de Estados nacionais: isso promete a dissolução de todo
Estado nacional em favor de Estados nacionais, tribais e clãs cada
vez menores, enfraquecendo o princípio da independência nacional
e eventualmente negando-o, por meio de um retorno a uma ordem
anárquica de tribos e clãs. Em outras palavras, ao se tentar conceder
independência nacional a todos, por fim, acaba-se não concedendo
independência nacional a quem quer que seja. Tal como o rei tolo que
descobre que pode pagar suas dívidas cunhando incessantemente mo­
eda, os estadistas do século passado descobriram que podiam colher
simpatias coletivas ao ficar cunhando incessantemente novos Estados
independentes. Mas a independência, assim como a moeda, tem o seu
valor depreciado rapidamente quando circula em grande quantidade
e a curto prazo descobre-se que é inútil.
Além dessa tendência do princípio da autodeterminação coletiva
para pulverizar os Estados existentes, há também o problema dos
recursos limitados. Para manter sua independência, um Estado nacio­
nal deve ter não apenas coesão interna, mas também força militar e
econômica e um território defensável, a fim de que não seja anexado
por forças estrangeiras hostis na primeira oportunidade, ou invadido
por organizações criminosas ou terroristas. Onde estas condições estão
ausentes, não haverá um Estado nacional independente. Uma nação ou
tribo que não tenha essas coisas só pode esperar viver em paz buscando
uma aliança com um vizinho poderoso, ou seja, como um protetorado.
Talvez isso não seja o que todos desejariam. Mas um Estado federado
ou protetorado, com alguma medida de autoridade delegada é, para a
maioria dos povos da terra, o maior grau de autodeterminação coletiva
que pode ser alcançado.
Neste contexto, é útil pensar sobre o direito à autodeterminação
nacional afirmado pelos Estados Confederados (“ o Sul” ) durante a
Guerra Civil Americana. Aqueles que acreditam que os americanos
estavam exercendo um direito universal de todos os povos à indepen­
dência quando se separaram da Grã-Bretanha em 1776 terão dificul­
dade em explicar porque a Confederação não teve o mesmo direito
em 1861. Os estados do Sul são certamente mais facilmente descritos

175
YORAM HAZONY

como tribos de uma nação americana, com sua distinta cultura pú­
blica, mas sem língua ou religião separadas. Mas o mesmo poderia
ter sido dito do inglês-americano que se revoltou contra o domínio
britânico. O que faz com que a independência americana pareça ter
sido um esforço plausível não é tanto as formas relativamente leves
de abuso que americanos sofreram nas mãos do governo britânico,
mas sim o fato topográfico de que um oceano os dividia. Os estados
do Sul não estavam do outro lado de um oceano, e Lincoln entendeu
corretamente que o surgimento de uma nação possuidora de escravos
ao sul teria assegurado aos e u a o sofrimento de séculos de competição
hostil decorrentes daquela secessão. Ele precisava apenas olhar para
o relato bíblico das guerras fratricidas entre os reinos de Israel e Judá,
que no final enfraqueceram a ambos e prepararam o caminho para
sua destruição, para ver o futuro diante dele. E esse futuro, juntamente
com o mal de permitir à escravidão perdurar na América para sempre,
justificou de fato negar autodeterminação à Confederação. As razões
para distinguir o caso da independência americana do da independência
confederada não são, portanto, encontradas na forma como definimos
o que é uma “nação” , ou na forma como formulamos uma proposta de
direito universal à autodeterminação nacional. Os casos distinguem-se
apenas na balança moral e prudencial das considerações para apoiar
ou se opor à independência em um caso particular.
O mesmo se aplica a todos os outros casos. Após a Primeira Guerra
Mundial, a política de Versalhes de desmantelamento da Áustria-Hun-
gria em uma série de Estados nacionais foi, após o colapso da Rússia,
um convite aberto à expansão alemã para o sul e o leste. O próprio
Wilson teve a capacidade de prever que a Alemanha buscaria para
si mesma “ um lugar de domínio” entre os povos do mundo, mas o
acordo do pós-guerra não tinha como objetivo assegurar que isso não
poderia acontecer, mas sim buscar o princípio da autodeterminação
nacional de todos os povos, sejam eles fortes ou fracos. Essa política
fortaleceu drasticamente a Alemanha rumo ao leste, abrindo o cami­
nho para a devastação de Hitler em cada um desses países vinte anos
depois.194 Da mesma forma, Eisenhower apoiou o nacionalismo árabe

194 Woodrow Wilson, “ Discurso à sessão conjunta do congresso sobre as condições de paz” , 8
de janeiro de 1918;Henry Kissinger, Diplomacy, Nova York: Simon and Schuster, 1994, pp.

176
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

e a autodeterminação no Oriente Médio e ajudou a demolir os restos


mortais do Império Britânico, destruindo assim um dos mais fiéis e
confiáveis aliados dos americanos na luta contra o comunismo sovié­
tico. Ao mesmo tempo, esse apoio à autodeterminação nacional árabe
no Egito deu origem à cruel ditadura de Gamai Abdel Nasser — que
retribuiu a gentileza dos e u a ao levar o Egito para a órbita imperial
soviética.195 Esses exemplos não pretendem ser argumentos contra a
independência tcheca ou egípcia. Mas eles lançam luz sobre o modo
como o princípio da independência nacional, se aplicado sem referência
a outros fatores, pode trazer a sua própria negação e a opressão dos
povos tão prontamente quanto pode trazer-lhes a respectiva liberdade.
Dois exemplos adicionais refletem a forma como o princípio da
autodeterminação nacional é equilibrado com considerações de prudên­
cia nos assuntos internacionais. Como bem se sabe, muitos estadistas
britânicos e americanos há muito tempo opuseram-se ao estabeleci­
mento de um Estado judeu no Oriente Médio, argumentando que as
desvantagens de alienar os interesses árabes e muçulmanos superavam
a reivindicação moral dos judeus à autodeterminação nacional. Esse
equilíbrio de considerações mudou, no entanto, aos olhos de muitos,
depois que o Holocausto demonstrou com máxima clareza o para­
digma moral para a autodeterminação nacional judaica; e depois das
vitórias militares dos judeus no campo de batalha, o que sugeriu que
eles poderíam, de fato, ser capazes de estabelecer um Estado viável se
recebessem apoio estrangeiro. Também no caso curdo, a independência
recebe a objeção de alguns que se preocupam em não alienar a Tur­
quia, apesar da longa história de assassinatos e opressão aos curdos
naquele país. Aqui também o êxito dos curdos no campo de batalha,
e sua capacidade demonstrada na contribuição da guerra americana
contra os movimentos islâmicos radicais, reforçaram o argumento para
um Estado curdo, que permanece não convincente para a maioria dos
governos, mesmo que se baseie exclusivamente na defesa moral da
autodeterminação nacional curda.
242-243. [Há uma tradução de Saul Gefter 8c Ann Mary Fighiera Perpétuo pela Saraiva,
São Paulo, 2012, intitulada Diplomacia. O trecho referido por Hazony é parte integrante
do cap. 9, “A nova face da diplomacia — Wilson e o Tratado de Versalhes” , os trechos
em questão sobre o Discurso de 8 de janeiro estão concentrados nas pp. 240-242. — nt ]
1,5 Michael Doran, Ike’s Cambie, Nova York: Free Press, 2016.

177
YORAM HAZONY

É evidente, portanto, que não existe um direito universal à inde­


pendência nacional e à autodeterminação. Se um povo deve ou não ser
apoiado em sua tentativa de independência é uma decisão que deve levar
em consideração uma série de fatores, que incluem: as necessidades do
povo em questão; seu grau de coesão interna; os recursos militares e
econômicos que pode mobilizar; a sua capacidade, se constituído como
um Estado nacional ou tribal independente, para contribuir com os
interesses e o bem-estar de outras nações; e a ameaça que este povo,
uma vez independente, pode representar para os outros. Tal equilí­
brio de considerações sugere uma teoria de relações exteriores muito
diferente do “ idealismo” de Wilson, que considera como principal
preocupação de ordem internacional o estabelecimento e a execução
de um quadro jurídico que oriente os assuntos políticos de acordo com
os direitos universais das nações. Na falta de um Estado imperial capaz
de conceder direitos às nações e empunhar o poder militar necessário
para fazer valer esses direitos, toda essa conversa sobre os direitos
universais das nações é vazia, tendendo a obscurecer o julgamento dos
estadistas quanto ao que pode ser alcançado, e, além disso, quanto ao
que é correto tentar alcançar.
No entanto, a inadequação do raciocínio legalista para a condução
de assuntos estrangeiros não significa que devemos esforçar-nos para
conduzir a política das nações exclusivamente com base em cálculos
de interesse próprio nacional, como às vezes tem sido proposto pela
escola da raison d ’état (ou “realistas” ). Isso ocorre não apenas por­
que consideramos repugnante renunciar totalmente às preocupações
morais, sem as quais todo assassino a caminho do poder mereceria
nosso auxílio em proporção direta ao número de mortos; mas também
porque o princípio do interesse próprio nacional, quando é estabe­
lecido como o único motivo para política externa, não é capaz, em
todos os casos, de fornecer determinações inequívocas sobre a melhor
política do Estado. Há, indubitavelmente, casos em que o curso a ser
seguido torna-se óbvio, pois é ditado pela necessidade da nação em
se aliar às partes mais fortes, capazes de servir de contrapeso aos seus
inimigos. Mas, em muitos casos, o estadista simplesmente não pode
saber qual, entre duas ou mais potenciais políticas, terá esse efeito.
Assim se dá devido a diversas incertezas: sobre qual das partes é a

178
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

mais forte, sobre esta parte mais forte ser ou não digna de confiança
para cumprir seu papel na aliança; ou, ainda, sobre os vários danos
causados pela força adicional de tal nação serem ou não, ao final do
processo, maiores que os benefícios que trará para si mesma e para
outros aliados. Além disso, os estadistas podem fazer investimentos
em partes mais fracas que eles estimam que crescerão mais fortes
com o tempo, ou em partes mais fracas onde a aparência de uma
política justa será benéfica para o público interno ou em alguma
outra arena. Estes e outros fatores similares significam que, na maior
parte do tempo, os cálculos de interesse próprio nacional oferecem
respostas ambíguas a questões de política. Esta ambigüidade inerente
aos assuntos políticos abre um espaço substancial para considerações
morais que desequilibram a tomada de decisões de uma forma ou de
outra, sem, de forma alguma, trair a responsabilidade do estadista
de perseguir os interesses da nação.
Por estas razões, as figuras políticas que entendem a irrelevância
do idealismo wilsoniano para os assuntos mundiais podem, entretan­
to, preocupar-se com a construção da ordem dos Estados nacionais
independentes. O estadista, reconhecendo que esta é a melhor forma
de ordem política, não se propõe então, como alguns Napoleões, a
derrubar tudo o que existe para que ele possa impor este ideal em toda
a terra. Nem considera-se a si mesmo como tendo a capacidade de ditar
a política apropriada em todo e qualquer caso. N o entanto, a ordem
dos Estados nacionais independentes será para ele uma imagem do bem
que é mantido firmemente em vista, entrando em suas deliberações e
decisões de forma equilibrada e moderada, sem jamais atraí-lo para
a loucura dogmática. Isso significa que, quando a independência de
um povo em particular não está dentro do âmbito das possibilidades
da sua geração, ele não irá dedicar recursos à defesa desta causa. E
quando a aplicação do princípio da autodeterminação nacional vier
a prejudicar sua própria nação, causar muitos danos a um aliado
importante, ou estabelecer um regime instável, hostil ou pernicioso,
ele se oporá a este. Ao mesmo tempo, ele continuará a considerar a
liberdade das nações como um bem a ser levado em conta, e em raras
ocasiões também perseguirá vigorosamente o estabelecimento de um
novo Estado nacional, ou a dissolução de um Estado não-nacional

179
YORAM HAZONY

falido. E terá prazer nesta oportunidade de colocar o peso de sua


influência na balança, em favor de uma nação cuja evidente necessi­
dade e capacidade estejam a ponto de encorajar a crença de que sua
independência seja uma bênção para si e para os outros.
A ordem dos Estados nacionais independentes não é um projeto de
novo mundo que pode ser construído sobre as ruínas fumegantes do
velho em uma ou duas gerações de ativismo justo. É um objetivo um
pouco distante, uma estrela guia ou uma bússola que aponta uma dire­
ção, um propósito para a prática de relações exteriores. Cada estadista,
justamente focado nos interesses e aspirações de sua própria nação,
talvez possa contribuir apenas de forma limitada para o lento e grande
movimento desta ordem, uma vez que ela surge ao longo dos séculos.

18. Alguns princípios da ordem dos Estados nacionais


A ordem dos Estados nacionais independentes é mantida através da
adesão a determinados princípios práticos. N o entanto, uma vez que
a ordem dos Estados nacionais é reconhecida como a melhor ordem
política, estes deixam de ser considerados meramente como princípios
práticos e passam a ser vistos como obrigações naturais, ou como
as leis naturais das nações. Na verdade, o que hoje é muitas vezes
chamado de maneira equivocada de “ direito internacional” tem sua
origem exatamente nisso — a prática de regras para manter a ordem
dos Estados nacionais passa a ser vista como uma moralidade natural,
como muitos escritores têm argumentado desde o século xvn.196 Será
útil mencionar alguns desses princípios aqui.
Em primeiro lugar, a ordem dos Estados nacionais é aquela que
concede independência política a nações coesas e fortes o suficiente
para garantir essa independência. Isso significa que se uma nação puder,
ao longo do tempo, reunir força militar e econômica suficiente para
evitar a própria conquista por potências estrangeiras, então outros

19< Como Sidgwick sugere, os princípios freqüentemente descritos como “direito internacional”
são apropriadamente chamados de “moralidade internacional” . Sidgwick, The Elements
o f Politics, p. 256. As “ leis naturais” (ou “ obrigações naturais” ) das nações a que me refiro
aqui são princípios ou obrigações que são conhecidos pela experiência, e por isso estão
abertos à revisão, como nas ciências naturais. Estes devem ser distinguidos das afirmações
racionalistas da lei natural ou direito natural, que são derivados de axiomas supostamente
auto-evidentes.

180
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Estados nacionais irão reconhecê-la como uma nação independente


dentro da ordem dos Estados nacionais. Da mesma forma, quando as
tribos componentes da nação não possuem unidade suficiente para
impedir a desintegração interna e a violência crônica, ou quando elas
não podem reunir força militar e econômica suficiente para se defender
contra potências estrangeiras, também não podem ser consideradas
uma nação independente dentro da ordem dos Estados nacionais.
Costuma-se dizer que, em uma ordem de Estados nacionais, uma
nação coesa e forte o suficiente para assegurar a sua independência
política tem um “direito à soberania” dentro de suas fronteiras. Am­
bos os termos são agora problemáticos devido à sua associação com
teoria política racionalista e absolutista.197 O que se entende por isto
são, de fato, dois princípios diferentes, o segundo e o terceiro prin­
cípios da ordem dos Estados nacionais: o segundo princípio é o da
não-interferência nos assuntos internos de outros Estados nacionais.
E isto que, em um Estado livre, permite à nação perseguir seus inte­
resses e aspirações de acordo com o seu próprio entendimento. Sem
este princípio, nações poderosas assumiriam o controle dos assuntos
das nações menores, e a ordem dos Estados nacionais colapsaria em
uma ordem imperial.
O terceiro princípio é o de um monopólio governamental de or­
ganização da força coercitiva dentro do Estado. De acordo com este
princípio, o governo de cada Estado nacional tem o direito e a obri­
gação de manter e exercer o único poder coercitivo organizado dentro

1,7 Os termos direito [right] e soberania [sovereignty] só podem ser aplicáveis se forem entendidos
em um sentido restrito. O termo “ soberania” é problemático por sua origem em doutrinas
absolutistas, sustentando que a vontade do rei é inviolável dentro do seu reino. De fato, nem
a vontade do rei, nem a do parlamento, nem a do povo (vista como “ soberania popular” )
podem ser consideradas como absolutas. As pessoas não são mais infalíveis do que um rei
ou um parlamento, como confirma a eleição popular dos nazistas em 1933. Em alguns casos
extremos, então, indivíduos, grupos tribais ou nacionais, junto de atores estrangeiros podem
ter motivos para violar as leis ou políticas de um governo nacional em seu solo. A vontade
de nenhum indivíduo ou instituição pode ser devidamente declarada como inviolável. Por
esse motivo, a Soberania pertence apenas a Deus. Sobre “ soberania popular” , v. Edmund
Morgan, Inventing the People, Nova York: Norton, 1988. Da mesma forma, o termo “ right” ,
que hoje é freqüentemente usado para sugerir uma derivação a priori de uma razão universal,
não pode assumir esse mesmo significado aqui. Direitos [rightsl sob uma lei internacional
[intemational lata], como os direitos deduzidos de uma legislação nacional interna, só podem
ser derivados empiricamente, como as normas que foram exemplificadas para sustentar um
dado sistema moral ou legal e para beneficiar aqueles que vivem sob ele.

181
YORAM HAZONY

de seu território. Sem este princípio, as várias tribos e clãs afirmariam


sua própria vontade e lei no lugar da unidade do Estado nacional, e
a ordem dos Estados nacionais colapsaria em uma ordem anárquica.
Estes dois princípios são fundamentais para a ordem dos Estados
nacionais, e não podem existir a menos que sejam amplamente ob­
servados. No entanto, é um erro considerá-los como garantidores de
direitos absolutos que são aplicáveis em todos os casos. O princípio
da não-interferência, por exemplo, é entendido como um princípio
anti-imperialista. No entanto, grande insistência neste princípio pode
facilmente provocar a destruição de Estados nacionais e a ascensão
de uma ordem imperial. Sabemos, por exemplo, que horrores foram
criados por trás das fortificações de certos Estados independentes: o de
Napoleão na França, o de Hitler na Alemanha, o de Stalin na Rússia e
assim por diante. Os crimes que esses homens cometeram contra seus
próprios povos foram apenas um prelúdio da tentativa de destruir
todos os Estados nacionais vizinhos e de anexar suas populações a
um império universal. Diante de atores imperialistas tão agressivos,
os Estados nacionais não têm escolha senão interferir, seja por meios
políticos ou militares, para retardar ou impedir a sua ascensão. O
direito a tal interferência deriva da natureza da própria ordem dos
Estados nacionais independentes, pois sem os esforços vigorosos para
manter esta ordem, esses Estados cairão um a um, e a liberdade das
nações será perdida em tal desenho global.
Uma limitação semelhante surge em relação ao monopólio go­
vernamental da força organizada dentro do Estado. Em virtude da
exclusividade dos poderes reivindicados, o Estado nacional priva as
tribos e clãs, dentro de seus limites, da capacidade de armarem-se e de
travarem guerra, o que significa admitir que limita a sua capacidade para
defender seu povo e buscar sua própria autodeterminação coletiva.198
Ao fazê-lo, o Estado nacional assume também para si a obrigação de
proteger todas as tribos e clãs dentro de suas fronteiras. Esta obrigação
deriva igualmente da natureza da ordem dos Estados nacionais e das
exigências de um governo nacional sob tal ordem.

198 A tradição constitucional anglo-americana também reconhece o direito individual de porte


de armas para autodefesa, ao invés de um absoluto monopólio governamental do uso da
força. Por esse motivo, me referi ao monopólio estatal do uso organizado da força.

182
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Para entender isso, considere o seguinte raciocínio. Sabemos que


uma tribo ou clã que não é protegida pelo Estado se organizará para
proteger seus membros. Um Estado nacional que não protege todas as
tribos e clãs em seu território abre-se, portanto, para receber rapidamente
o restabelecimento de uma ordem anárquica de tribos e clãs dentro de
suas fronteiras. Isto começa nos distritos e cidades onde estas tribos
desprotegidas são mais fortes, e depois se espalha até chegar ao ponto de
ameaçar a existência do próprio Estado. As condições anárquicas também
apresentam um campo atraente para o crime organizado, que oferece
proteção em troca de lucro; e não são menos atraentes para os opositores
imperialistas do Estado nacional, tais como as organizações terroristas
marxistas e islâmicas, que encontram na anarquia um campo ideal para
recrutar militantes para a sua causa. Diante de tais ameaças, tribos e
clãs que ainda não sucumbiram à intimidação criminosa ou terrorista,
muitas vezes procuram proteção de Estados estrangeiros, nacionais ou
imperiais. Nesse caminho, as condições anárquicas dentro de quase todos
os Estados servem para incitar as preocupações e aspirações imperiais
em outros Estados. Portanto, condições anárquicas após a desintegra­
ção da Iugoslávia levaram a uma intervenção americana que, no final,
levou ao bombardeio de cidades sérvias e ao destacamento permanente
de forças estrangeiras na Bósnia e no Kosovo — uma ordem anárquica
que inspirou uma resposta imperialista. Da mesma forma, condições
anárquicas na Síria e no Iraque inflamaram as ambições imperialistas
americanas, russas, turcas, e iranianas.
Sob uma ordem imperial, um único Estado imperial se considera
como justificado para ditar uma lei para todas as nações e impor esta
lei de acordo com seu próprio entendimento. O valor da ordem dos
Estados nacionais deriva do fato de que nenhuma nação, ou coalizão
de nações, é considerada justificada na determinação da lei para todas
as outras. A capacidade da nação de manter e cultivar sua própria
constituição e tradições religiosas únicas é o coração da liberdade na­
cional, e é isso que torna possível a liberdade sob a ordem dos Estados
nacionais. No entanto, esta liberdade das nações, uma vez conquistada,
será muito difícil de manter. A ordem política não é fixa e, portanto,
sua estabilidade só pode ser relativa. As nações surgem e perecem. Suas
populações crescem e diminuem em relação umas às outras, e o mesmo

183
YORAM HAZONY

se aplica em relação ao seu poder militar e econômico e ao grau de seu


poder interno de coesão. Assim, cada Estado nacional está em perigo
perpétuo de perder sua liberdade para outra nação ou combinação de
nações. O perigo se materializa da mesma maneira, invariavelmente:
uma determinada nação, tendo se tornado muito mais forte em relação
a outras, passa a acreditar que esse aumento se deve à superioridade
de sua religião ou Constituição, que em sua visão paira acima de todas
as outras, e assim considera justo impor seu domínio sobre todas as
outras nações. Escusado será dizer que esta nação imperialista não vê
a si própria como um império. Considera também que a sua alegada
superioridade religiosa ou constitucional seria uma razão para que todas
as nações se beneficiassem tão logo fossem conquistadas e tivessem
sua própria lei ditada a elas.
A presença desse perigo constante sugere o quarto princípio, a saber;
o da manutenção de múltiplos centros de poder. Em outras palavras,
trata-se da conhecida doutrina segundo a qual os respectivos Estados
nacionais esforçam-se por manter um “ equilíbrio de poder” entre eles,
agindo para impedir qualquer nação, ou certa combinação de nações,
de tornar-se forte o suficiente para que a sua Constituição ou religião
possa ser ditada e imposta como lei sobre as outras. Diz-se freqüen-
temente que este imperativo de manter múltiplos centros de poder no
sistema dos Estados nacionais é um artifício cuja finalidade seria a
estabilidade ou mesmo a paz. No entanto, esta explicação sempre foi
duvidosa, dado que uma ordem imperial, que suprime toda a dissensão,
pode ser tão boa, ou melhor, em proporcionar estabilidade e paz do
que uma ordem de Estados nacionais independentes. Pelo contrário,
o propósito deste princípio é garantir a liberdade das nações. Pois
nenhuma nação pode por muito tempo manter sua liberdade política
e autodeterminação em uma ordem dominada por um único Estado
imperial, que, em relação à sua própria constituição ou religião vista
como superior, intervém inevitavelmente nos assuntos de outras nações,
a fim de erradicar o que quer que seja inconveniente ou desagradável
para essa ordem imperial. Foi por causa de sua liberdade nacional, então,
que as nações da Europa estabeleceram alianças que podiam conter
as aspirações imperiais, primeiro dos alemães, depois dos franceses e,
finalmente, dos russos sob o comunismo.

184
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Afirmei que as populações nacionais crescem e declinam umas em


relação às outras. Isto é verdade numericamente, em termos da sua força
militar e econômica e em termos do grau de sua coesão interna. Essas
alterações, que eventualmente operam mudanças nas relações entre
cada nação e seus vizinhos, significam que as fronteiras nacionais não
podem ser congeladas perpetuamente.199 Um redesenho de fronteiras
estatais antiquadas para se adequar às fronteiras nacionais ou tribais
reais deve ser um instrumento de diplomacia disponível se os Estados
nacionais quiserem manter sua coesão interna e sua capacidade exter­
na de autodefesa, sendo ambas necessárias para manter o sistema do
Estado nacional como um todo. No caso extremo, o estabelecimento
de novos Estados nacionais e a dissolução de Estados não-nacionais
falidos também deve ser realizado, embora estas etapas devam, em
geral, ser reservadas para casos de extrema necessidade, como a queda
da Síria, Iraque, Bósnia e Congo, onde o desenho de novas fronteiras
nacionais oferece a única perspectiva genuína de se alcançar certo grau
de liberdade e paz nacional.
No entanto, tal estabelecimento de novos Estados nacionais e o
redesenho das fronteiras devem ser orientados pelo quinto princípio
da ordem dos Estados nacionais: a parcimônia no estabelecimento de
Estados independentes. Uma política parcimoniosa deve ser distinta
das progressivas divisões dos Estados existentes em entidades inde­
pendentes cada vez menores, de modo que o número de Estados inde­
pendentes cresce cada vez mais e nunca diminui. Tal política irracional
ficou evidente no estabelecimento do Kosovo como segundo Estado
albanês sob proteção internacional. Uma política parcimoniosa teria
permitido uma resolução que ou anexaria o Kosovo à Albânia ou o
deixaria como parte integrante e histórica da Sérvia. Em tais assuntos,
os olhos do estadista devem estar voltados, pelo menos, tanto para a
anexação de territórios aos Estados nacionais existentes, aumentando
assim a sua viabilidade, como para a decomposição e fragmentação

199 Sobre demografia e declínio nacional, v. David Goldman, How Civilizations Die, Nova York:
Regnery, 2011. Kissinger enfatiza que o objetivo do concerto da Europa não era congelar
fronteiras, mas garantir que as mudanças ocorressem em um “ processo de evolução” .
Kissinger, World Order, p. 66 [Ordem mundial, p. 53. — nt ]. Isso é mais realista do que
tentar manter virtualmente todas as fronteiras fixadas perpetuamente, que é, de fato, a
posição de muitas personagens políticas e intelectuais de nossos dias.

185
YORAM HAZONY

dos Estados nacionais existentes. A este respeito, é importante notar


que a “ reunificação” da Alemanha em 1990 foi, de fato, uma anexa­
ção da Alemanha Oriental à Alemanha Ocidental, um redesenho de
fronteiras para permitir a maior autodeterminação nacional da nação
alemã. O que foi considerado desejável no caso alemão pode e deve
ser considerado como uma opção também em outras regiões.
Este princípio de parcimônia também é relevante quando o esta­
belecimento de um novo Estado ameace a viabilidade de um ou mais
Estados nacionais existentes. Uma vez que o primeiro princípio da
ordem dos Estados nacionais é a viabilidade de nações independentes,
nada se ganha ao colocar um Estado nacional em perigo pelo estabele­
cimento de um novo Estado em suas fronteiras, o que tornaria muito
mais difícil a manutenção de natureza militar ou econômica, ou mesmo
a coesão de uma unidade cultural.200
Em uma ordem de Estados nacionais, o problema da falta de prote­
ção às populações minoritárias é um aspecto do problema da anarquia.
Cada nação ou tribo minoritária tem aspirações e interesses que são,
pelo menos ligeiramente, excluídos dos da maioria dos grupos nacio­
nais ou tribais do Estado, quando não o são totalmente. Mas onde tal
nação ou tribo minoritária não goza da proteção do Estado nacional,
ou onde sofre abusos nas mãos do Estado, torna-se necessariamente
um terreno fértil para a insatisfação e para a atenuação dos laços de
lealdade para com o Estado, e, portanto, para o estabelecimento de
uma esfera de anarquia dentro do Estado em questão. A proteção
de nações e tribos minoritárias pelo governo nacional é, portanto,
um sexto princípio necessário em uma ordem de Estados nacionais.
Embora este princípio tenha força moral também por outros motivos,
preocupo-me aqui em considerá-lo como uma obrigação decorrente
da natureza do próprio sistema de Estado nacional. Trata-se de um
princípio sem o qual a ordem dos Estados nacionais não pode prospe­
rar, pois onde quer que essas condições não sejam atingidas, surgirão
a anarquia e o império. E é o que ocorre, apesar do fato de que este
princípio obviamente limita a autodeterminação coletiva da nação ou
tribo majoritária em todos os Estados.

200 Miller, Nationality, pp. 114-115.

186
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

A proteção e a acomodação de nações e tribos minoritárias não


podem se expressar da mesma maneira em todos os Estados nacionais.
Existem minorias nacionais e tribais cuja insatisfação é, em grande
medida, o resultado de abuso e negligência, caso em que o próprio Es­
tado nacional é culpado de criar uma esfera de anarquia dentro de suas
próprias fronteiras e, conseqüentemente, de minar a ordem dos Estados
nacionais como um todo. Ao mesmo tempo, há minorias nacionais e
tribais cujo descontentamento é cultivado agressivamente por outros
Estados nacionais ou por potências imperiais, que estimulam o medo
e a raiva entre elas por motivações próprias. E, claro, ambos podem
ser verdadeiros. Em alguns casos, o problema da insatisfação deve,
portanto, ser tratado com maior atenção às necessidades do povo em
questão, o que pode envolver uma maior medida de autonomia política
ou religiosa além do que possa ter sido considerada tolerável; enquanto
em outros, não há escolha a não ser a de o Estado nacional aplicar
mais rigorosamente as medidas para boquear os aspectos imperialistas
e anárquicos quando expressam suas aspirações pela força. E pode
ser que ambas as abordagens tenham de ser aplicadas de uma só vez.
Finalmente, acrescento um sétimo princípio, que é o da não-trans-
ferência dos poderes do governo às instituições globais. Esta é uma
questão que se tornou especialmente premente ao longo do último
século, em que os estadistas têm procurado repetidamente o esta­
belecimento de instituições internacionais cujo propósito é aliviar
os Estados nacionais da sua capacidade de julgamento e ação inde­
pendentes em nome da paz e prosperidade universais. Como sugeri,
as instituições internacionais, uma vez que tenham a capacidade de
coagir os seus Estados membros, não são senão as instituições de
uma ordem política imperial. E não se pode transferir autoridade
para estas instituições sem que a ordem de Estados nacionais entre
em colapso, caindo em uma ordem imperial.
Pode-se perguntar se este princípio não contradiz o ideal de indepen­
dência e autodeterminação nacional. Afinal, se uma determinada nação
está tão insatisfeita com a independência política a ponto de desejar
ser governada por um Estado imperial ou universal — o que significa
dizer que preferiría ser governada por outros —, então renunciar à sua

187
YORAM HAZONY

liberdade nacional parece ser o seu direito, seu último grande ato de
autodeterminação nacional.
Vejo esta questão como a mais complicada. Se os holandeses, por
exemplo, quiserem se tornar um estado federado ou protetorado da
Alemanha, considerando essa ação como a melhor alternativa que ve­
nha a seguir, então talvez não tenhamos outra escolha senão aceitá-la,
por muito que lamentemos ver um Estado nacional com uma herança
cultural esplêndida abdicar de seu lugar no mundo. Tal passo pode
ser justificado sob o princípio da parcimônia, e poderia, teoricamente,
ser considerado como um ajustamento das fronteiras de um Estado
nacional alemão.201 Mas é outra coisa inteiramente diferente quando
os poderes de um Estado são transferidos para uma União Européia
dominada pela Alemanha, que é, na verdade, um Estado universal, sem
fronteiras naturais e governando em nome de doutrinas universais, cujo
alcance será limitado apenas pelo poder que este império pode impor
sozinho. Quando um Estado nacional transfere poderes de governo
para um tal Estado imperial, não só renuncia à sua própria liberdade
nacional (como também seria verdade no caso da Holanda se tornar
um estado dentro de uma federação alemã expandida): isso também
colabora diretamente na destruição da ordem dos Estados nacionais
independentes — transferindo o poder para um sistema internacional
ilimitado e para a ordem imperial que a liderança desse Estado procura
estabelecer. Tal ordem imperial não pode e não irá tolerar a existência
de organizações nacionais de Estados independentes. À medida que
se fortalecer, trabalhará para deslegitimar e minar a independência de
todos os demais Estados nacionais, declarando-os como um resquício
(,holdover) de uma era selvagem e primitiva. Na medida em que a ordem
imperial for capaz de reunir os poderes necessários, irá se esforçar por
coagir os Estados restantes e, finalmente, reduzi-los a uma situação de
sujeição, ao mesmo tempo em que declara estar tomando essas medidas
para o bem da paz e da prosperidade para toda a humanidade. Isto é

201 Algumas nações ou tribos preferem até hoje continuar sendo governadas por um Estado
nacional muito mais forte, como um protetorado sob um ou outro tipo de organismo
federativo. O governo dos e u a em Porto Rico, um país de língua espanhola com uma
população de quase quatro milhões, é um exemplo bem conhecido, e u a , Grã-Bretanha,
França e outros países continuam a governar dezenas de protetorados, embora suas
populações sejam geralmente menores.

188
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

verdade não só em relação à União Européia, mas também em todos os


outros esquemas para o estabelecimento de uma ordem internacional
coercitiva — incluindo tentativas de estabelecer que o Conselho de
Segurança das Nações Unidas tenha autoridade para fazer determina­
ções obrigatórias em questões de guerra e paz para todas as nações; ou
que a Organização Mundial do Comércio seja um órgão autoritário
responsável por regular as economias e nações condicionando a par­
ticipação delas no comércio internacional; ou, ainda, que o conselho
de Direitos Humanos da o n u e vários tribunais europeus sejam as
mais altas autoridades morais em assuntos relacionados à dignidade
e bem-estar dos indivíduos em todo o mundo.202
Se prezamos as liberdades que passamos a desfrutar sob os auspícios
de uma ordem de Estados nacionais independentes, não temos outra
escolha senão insistir na completa independência do Estado nacional
em relação às instituições internacionais que buscam exercer autoridade
coercitiva sobre as suas nações-membros. Como é evidente, o Estado
nacional deve preocupar-se com a melhoria das condições em outros
países, tanto por uma questão de interesse próprio quanto por razões
morais. Mas essas preocupações são expressas adequadamente em
negociações bilaterais e multilaterais entre as autoridades dos Estados
nacionais, e não por meio da criação de organismos internacionais co­
ercitivos. Não devemos deixar que uma parte da nossa liberdade seja
entregue a organismos estrangeiros, sob qualquer nome, ou a sistemas
jurídicos estrangeiros de leis que não são determinadas pela nossa
própria nação. O que hoje parece ser apenas uma pequena concessão,
invariavelmente torna-se maior amanhã. E quando uma nação acorda
de seu sono e descobre que foi lenta e inexoravelmente conquistada,
nesse momento não há opção além de aquiescer na escravidão eterna
ou tentar recobrar a liberdade na guerra.
Manter e fortalecer uma ordem viável de Estados nacionais in­
dependentes requer muita arte e dedicação por parte do estadista.
Neste ponto, a instituição do Estado nacional assemelha-se a outras

202 Sobre a Organização Mundial do Comércio (o m c ), v. Rabkin, Law Without Nations?, pp.
193-232. Sobre a “globalização” da política interna sob a rubrica da busca dos direitos
humanos universais, v. Rabkin, Law Without Nations?, pp. 158-192; Fonte, Sovereignty
or Submission, pp. 201-278.

189
YORAM HAZONY

instituições necessárias para um governo livre, como a divisão dos po­


deres do governo e a manutenção de um regime de direitos individuais
de propriedade. Tais instituições não podem ser mantidas a não ser
pela máxima vigilância e uma preocupação constante com sua preser­
vação e melhoria. Evidentemente, quando as razões pelas quais uma
instituição foi originalmente estabelecida deixam de ser familiares, essa
vigilância e preocupação tornam-se cada vez mais difíceis. Em nossa
geração, quando as virtudes da ordem dos Estados nacionais indepen­
dentes não são ensinadas mas apenas vagamente lembradas, então os
apelos para um retorno à simplicidade, grandeza e suposta bondade
moral do império universal surgem mais insistentes e mais urgentes.
No entanto, enquanto a nossa liberdade continuar a ser importante
para nós, não há outra maneira de garantir isso. Devemos nos envolver
no difícil trabalho de manutenção e fortalecimento da independência
dos Estados nacionais que nossos antepassados construíram e legaram
para nós como uma herança preciosa.

190
PARTE III

Antinacionalismo e ódio

19. Seria o ódio um argumento contra o nacionalismof


A acusação mais comum contra o nacionalismo é que ele daria origem
ao ódio. Os nacionalistas tendem a estar mais preocupados com o
bem-estar de sua própria nação, e desejam que seja bem-sucedida em
sua competição com as outras. Diz-se que esta preocupação consigo
mesmo acaba se expressando como ódio e violência contra os outros.
O imperialista, por outro lado, afirma estar preocupado com toda a
humanidade igualmente. Ao cuidar da humanidade como um todo, o
imperialista diz que superou o ódio que caracteriza a personalidade
do nacionalista.
É verdade, é claro, que existem nacionalistas que odeiam seus opo­
nentes e rivais. A competição entre tribos e nações inevitavelmente
leva ao acúmulo de histórias de injustiças passadas, sejam reais ou
imaginárias, que preenchem o presente com narrativas que alimentam
constantemente o ressentimento, o preconceito e a violência.
M as esse ódio por parte de certos nacionalistas, equivalería a um
argumento contra o nacionalismo — isto é, contra uma ordem política
baseada em Estados nacionais independentes? Para o ódio de certos
nacionalistas servir como argumento convincente contra o nacionalismo,

191
YORAM HAZONY

seria necessário demonstrar que a aspiração por estabelecer uma ordem


política universal não incita o ódio da mesma forma. Afinal, se uma
política imperialista estiver tão propensa a incitar o ódio implacável
como uma política nacionalista, então a alegação de que devemos evitar
o nacionalismo para evitar o ódio que produz não é muito mais do
que uma mera propaganda. É uma peça de retórica que pode ser útil
para suscitar o desprezo pelo Estado nacional e por aqueles que lhe
são fiéis. Mas isso não possui a virtude de ser verdadeiro.
Somando-se à confusão em torno desta questão, há ainda a tendência
de muitos liberais contemporâneos a enxergar o ódio e a violência não só
como conseqüência do nacionalismo, mas também como conseqüência
da religião. No entanto, as principais religiões que são mencionadas
quando o ódio religioso é invocado são o cristianismo e o islamismo.
E ambas têm sido, durante grande parte da sua história, movimentos
universalistas que procuram estabelecer o domínio de um único im­
pério no mundo. A este respeito, assemelhavam-se ao comunismo ou
ao nazismo, que visavam também estabelecer o domínio de um único
império na terra. Todos estes movimentos imperialistas foram, sem
dúvida, diligentes no ódio que suscitaram em seus seguidores. Isto
porque os ideais universalistas tendem a dar origem ao ódio assim que
encontram determinada oposição. A oposição determinada é, para eles,
prova indesejada de que o ideal em questão pode não ser tão universal
como se supunha anteriormente.
Podemos, portanto, reconhecer dois tipos diferentes de ódio: há o
tipo de ódio encontrado nos movimentos nacionalistas, que é o ódio
de um clã, tribo ou nação por outro com o qual esteja competindo; e
há o tipo de ódio que se encontra nos movimentos imperialistas, que é
o ódio, decorrente de um ideal universal, a essas nações ou tribos que
se recusam a aceitar sua reivindicação de universalidade. A questão é
se os liberais, que acreditam ter se libertado em grande parte do ódio
encontrado nos movimentos nacionalistas, também estão livres do ódio
duradouro, às vezes genocida, que todas as ideologias universalista an­
teriores demonstraram desde o momento em que tiveram de enfrentar
uma oposição, genuína e profundamente enraizada, às suas doutrinas.
A experiência sugere que o ódio ao nacionalista, ao particularista e
ao dissidente é encontrado entre os imperialistas de todos os niveis. A

192
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

suposição de que os imperialistas têm uma maior capacidade de amor


ou tolerância, é, ao que parece, um mito promovido por esses mesmos
imperialistas. Nesta parte do livro, quero examinar mais de perto o ódio
encontrado entre os defensores liberais de uma nova ordem política
universal. Começarei com a conhecida antipatia para com o Estado
nacional que é a minha casa, o Estado de Israel. Em seguida, ampliarei
o escopo da minha discussão para incluir fenômenos paralelos — in­
cluindo o ódio dirigido contra o nacionalismo britânico e americano, e
contra outros Estados nacionais — que são cada vez mais inseparáveis
do universalismo liberal do nosso tempo.

20. As campanhas difamatórias contra Israel


A cada poucos meses, Israel é denunciado publicamente nos orga­
nismos internacionais, nos meios de comunicação social e nos campi
universitários de todo o mundo por uma suposta violação dos direitos
humanos, seja real ou imaginária. O caso específico que primeiro me
levou a refletir cuidadosamente sobre este fenômeno foi um ataque a
um navio turco que tentava penetrar em um bloqueio naval israelense
em Gaza, que deixou nove mortos depois de o navio ter resistido à
sua apreensão. Mas muitos outros incidentes também resultaram em
tais campanhas, incluindo ações israelenses contra o regime islâmico
radical em Gaza, os protestos israelenses contra o programa nuclear
iraquiano, a visita de uma figura pública israelense ao Monte do Templo,
a compra e ocupação por judeus de um edifício na Jerusalém Oriental,
além de muitos outros.
Mas qualquer que seja o assunto principal e independentemente de os
líderes políticos, soldados e porta-vozes de Israel terem cumprido seus
deveres de maneira apropriada, o resultado será sempre outra campa­
nha de difamação na mídia e nos campi, bem como nos corredores do
poder — uma campanha humilhante do tipo que poucas nações têm
experimentado historicamente com regularidade. Em cada uma dessas
campanhas, nós, israelenses, vemos insistentemente nossa nação sendo
retratada não como uma democracia que cumpre o dever de defender
seu povo e sua liberdade, mas como algum tipo de flagelo. Vemos tudo
o que nos é precioso e tudo o que consideramos justo sendo pisoteado
diante dos nossos olhos. Mais uma vez temos que experimentar antigos

193
YORAM HAZONY

aliados nos virando as costas, e estudantes judeus correndo para dis­


sociar-se de Israel, ou até mesmo do judaísmo, em um esforço vil para
contar com o favor de pares indignados. E novamente voltamos a nos
sentir afogados pela crescente maré anti-semita, que voltou depois de
um hiato após a Segunda Guerra Mundial.
Tudo isso tem acontecido repetidamente, e sabemos que isso vai
acontecer novamente. Na verdade, essas explosões têm se tornado mais
cruéis e eficazes a cada ano que passa, há décadas. E temos todas as
razões para pensar que essa tendência continuará.
Quanto às reações de judeus e outros amigos de Israel a essas
campanhas de humilhação, suas respostas também não mudaram
muito nas décadas recentes: meus amigos liberais sempre parecem
pensar que uma mudança na política israelense poderia impedir essas
campanhas de difamação, ou pelo menos diminuir seu alcance. Meus
amigos conservadores sempre parecem dizer que o que precisamos é
de “ melhores relações públicas” .
Sem dúvida, Israel sempre poderia ter melhores políticas e melhores
relações públicas. Mas minha opinião é que nenhuma destas reações
sensatas pode ajudar a melhorar as coisas, porque nenhuma delas real­
mente chega ao cerne do que está acontecendo à legitimidade de Israel.
As políticas de Israel têm oscilado radicalmente nas últimas décadas,
sendo às vezes melhores, às vezes piores. E a habilidade com que Israel
apresenta seu ponto de vista nos meios de comunicação e através dos
canais diplomáticos também tem sido, por vezes, melhor, por vezes pior.
No entanto, os esforços internacionais para difamar Israel, encurralar
Israel, deslegitimar Israel e expulsá-lo da família das nações, têm avan­
çado e se tornado cada vez mais potentes, apesar das muitas reviravoltas
e desacelerações na política e nas relações públicas israelenses.
Nada poderia tornar isso mais evidente do que a retirada completa
de judeus de Gaza e do subseqüente estabelecimento de uma república
islâmica independente e beligerante a sessenta e quatro quilômetros
do centro de Tel Aviv. Israelenses e aliados de Israel podem razoavel­
mente se dividir sobre a questão de se a retirada de Gaza em 2005, e
a retirada paralela da zona de segurança no sul do Líbano em 2000,
foram realmente do interesse de Israel, e se o Estado judeu está melhor
hoje por causa delas. Mas é difícil sustentar que essas retiradas têm

194
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

contribuído muito para conter a onda de ódio e difamação que está


sendo derramada sobre a cabeça de Israel internacionalmente. Aqueles
que odeiam Israel seguiram em frente apontando para outras políticas
israelitas que igualmente inflamam seu ódio. O que quer que esteja
impulsionando a tendência para a deslegitimação progressiva de Israel,
é algo que opera em grande medida sem referência aos detalhes de '
políticas israelenses específicas em um dado momento.
Em termos ligeiramente diferentes, não é a manutenção de uma zona
de segurança no sul do Líbano, ou o controle israelense da Faixa de
Gaza, ou o ataque a um barco fura-bloqueios turco, o responsável pelo
que está acontecendo à forma como Israel é visto no cenário mundial.
Esses exemplos específicos da política israelita são, para os detratores
de Israel, em grande parte símbolos de algo mais profundo e odioso,
que eles vêem revelado reiteradamente quando olham para o Estado
de Israel e suas ações.
O filósofo Thomas Kuhn sugeriu que somos treinados para ver o
mundo em termos de um determinado quadro de conceitos, que ele
chamou de paradigma. O paradigma determina não apenas a interpre­
tação que um cientista dá aos fatos, mas também quais fatos devem
ser interpretados: os “ fatos” que os cientistas consideram admissíveis
para discussão são aqueles que facilmente se conformam com o para­
digma dominante, ou que podem ser feitos para se conformarem com
ele, ampliando o paradigma ou introduzindo pequenos reparos nele.
Aqueles que não podem se conformar são inteiramente negligenciados
ou rejeitados como sem importância. Mesmo uma montanha de fatos,
sugere Kuhn, não mudará a mente de um cientista que tenha sido
treinado em um determinado paradigma, porque o quadro conceituai
através do qual ele vê o mundo é fundamentalmente incapaz de assi­
milá-los. Como, então, os cientistas acabam mudando de idéia? Kuhn
argumenta que, em muitos casos, eles simplesmente nunca mudam.
Os preconceitos da velha guarda estão entranhados nas veias desses
cientistas, e é necessária uma nova geração de cientistas, cujos com­
promissos não são tão dogmáticos, para poder considerar uma nova
teoria de forma plausível.203
203 Thomas Kuhn, The Structure o f Scientiftc Revolutions, Chicago: University of Chicago
Press, 1996 (1962), esp. 148-151.

195
YORAM HAZONY

As idéias de Kuhn tiveram um impacto imenso na forma como a


atividade científica é entendida. Mas a revolução na forma como os
estudiosos pensam sobre fatos, argumentos e verdade ainda não teve
muito impacto na forma como os debates são conduzidos na arena
pública. Com respeito à maneira como o ódio a Israel é tratado no
discurso público, por exemplo, a maioria dos escritores ainda está
convencida de que se apenas alguns fatos fossem mais conhecidos —
ou melhor apresentados — a posição de Israel aos olhos da opinião
pública, e particularmente entre os liberais, que atuam entre os mais
duros detratores de Israel na Europa e nos e u a , poderia ser melhorada
drasticamente.
Infelizmente, não creio que seja assim. Enquanto as batalhas mi-
diáticas, como a que se ocupou do caso do navio turco fora de Gaza,
forem uma necessidade inevitável, o argumento de Kuhn deixa claro
que os resultados desses ataques não terão qualquer impacto real na
trajetória geral da posição de Israel entre as pessoas instruídas no Oci­
dente. Esta posição tem se deteriorado desde a geração passada, não
por causa deste ou daquele conjunto de fatos, mas porque mudou o
paradigma através do qual os ocidentais mais instruídos estão olhando
para Israel. Assistimos a essa transição de um paradigma para outro
em tudo o que diz respeito à legitimidade de Israel como um Estado
nacional independente.

21. Immanuel Kant e o paradigma antinacionalista


Qual é o velho paradigma? E qual é o novo para o qual a arena inter­
nacional tem mudado?
Começarei com o velho paradigma, que é o que concedeu legitimi­
dade a Israel, em sua origem. O moderno Estado de Israel foi fundado,
tanto constitucionalmente quanto em termos de reconhecimento da
comunidade internacional, como um Estado nacional, o Estado da
nação judaica. Isto quer dizer que é a descendência de uma antiga te­
oria política, tornada assim moderna, que reconheceu a liberdade das
nações para afirmar e defender sua independência contra as predações
dos impérios internacionais.204 Sempre houve Estados nacionais, evi-

204 V. o cap. 3.

196
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

dentemente.205 Mas o ideal moderno do Estado nacional se consolidou


durante a longa luta de nações como Inglaterra, Holanda e França
para se libertarem das pretensões de império universal dos Habsburgos
germânicos e espanhóis (isto é, o “ Sacro Império Romano” ). O que
fez da derrota da Invencível Armada espanhola por Elisabeth i, em
1588, uma virada na história foi precisamente o fato de que, ao repelir
a tentativa de Filipe n de governar a Inglaterra, ela tornou concreta a
liberdade das nações frente à reivindicação austro-espanhola do direito
de governar sobre toda a humanidade.
A derrota do ideal universalista na Guerra dos Trinta Anos, em
1648, levou ao estabelecimento de um novo paradigma para a polí­
tica européia — em que um conceito revitalizado de Estado nacional
oferecia liberdade aos povos em todo o continente. Por volta do sé­
culo xix, esta idéia de liberdade nacional foi estendida ao ponto de
alguns conceberam-na como um princípio ordenador para o mundo
inteiro. A instituição do Estado nacional independente libertaria as
nações, permitindo-lhes determinar o seu próprio curso, cada uma
estabelecendo sua própria forma de governo e leis, bem como religião
e idioma. A Grécia declarou-se Estado nacional independente em 1822.
A Itália foi unificada e conquistou a independência em uma série de
guerras começada em 1848. E dezenas de outros Estados nacionais
se seguiram. A organização sionista de Theodor Herzl, que propunha
um Estado nacional independente para o povo judeu, se encaixa neste
mesmo entendimento político. Em 1947, poucos meses depois que a
índia conquistou sua independência, as Nações Unidas votaram por
maioria de dois terços para o estabelecimento do que os documentos
da ONU chamavam de “ Estado Judaico” na Palestina.
Mas a idéia do Estado nacional não floresceu no período que remonta
ao estabelecimento de Israel. Pelo contrário, em grande parte entrou
em colapso. Com seu impulso para fundar uma União Européia, as
nações da Europa impuseram um novo paradigma no qual o Estado
nacional independente não é mais visto como detentor da chave para
o bem-estar da humanidade. Pelo contrário, o Estado nacional inde­
pendente é agora visto por muitas figuras políticas e intelectuais da

205 V. o cap. 2, nota 29 (Parte i).

197
YORAM HAZONY

Europa como uma fonte de males incalculáveis, enquanto o império


multinacional — que Mill destacou como a derradeira epítome do
despotismo — é mencionado freqüentemente com apreço como se
fosse um modelo para uma humanidade pós-nacional. Além disso, este
novo paradigma está avançando agressivamente no discurso político
dominante (mainstream) de outras nações também, incluindo países
como os e u a e Israel, que desde há muito pareciam imunes a ele.
Como é que tantos europeus estão agora dispostos a lançar mão
disso, desmantelando os Estados em que vivem e trocando-os pelo
domínio de um regime internacional?
Já mencionei que unificar as nações sob a égide de um sacro impe­
rador romano-germânico e de uma igreja universal é um antigo sonho
europeu. A filosofia iluminista, afastando-se do cristianismo, manteve,
no entanto, praticamente o mesmo sonho, que recebeu sua formulação
moderna mais conhecida em um manifesto de 1795 de Immanuel Kant
chamado À Paz perpétua: um esboço filosófico. Nele, Kant lançou
um famoso ataque contra o ideal do Estado nacional, comparando
as autodeterminações à liberdade sem lei dos selvagens, que, ele disse,
é justamente odiada como “ barbárie” e uma “ degradação brutal da
humanidade” . Como ele escreveu:

Vemos com profundo desprezo o apego dos selvagens à sua liberdade sem
lei. Eles preferem se envolver incessantemente em lutas do que submeterem
a uma coerção legal [...]. Nós consideramos isso como bárbaro, grosseiro
e brutal rebaixamento da humanidade. Poderiamos pensar que os povos
civilizados (cada um unido em um Estado nacional) teriam de apressar-se
a abandonar um estado de natureza tão degradante. Em vez disso, porém,
cada Estado coloca antes sua própria majestade [...] precisamente por
não estar submetido a nenhuma coerção legal externa, e o esplendor de
seu governante consiste no seu poder de ordenar que milhares de pessoas
se sacrifiquem.206

De acordo com esta visão, a independência política é uma forma


de vida em que “ os selvagens se apegam à sua liberdade sem lei” . As
pessoas civilizadas, se apenas exercitarem a razão, vão “ apressar-se
a abandoná-la, desprezando assim essa condição degradante o mais
206 Immanuel Kant, “ Perpetuai Peace” , em Political Writings, ed. Hans Reiss, trad. de H. B.
Nisbet, Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1970, pp. 102-103, ênfase removida.
[A paz perpétua, pp. 31-32. — nt ]

198
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

rápido possível” . Isto é verdade para o indivíduo, que se submete à


ordem legítima do Estado. E também é verdade para as nações, que
devem, da mesma forma, renunciar a qualquer direito à independên­
cia, submetendo-se a um “Estado internacional” que estabelecerá “ leis
públicas de coerção” sobre elas, crescendo até que submeta “todos os
povos da terra” :

Há apenas uma maneira, segundo a razão, pela qual os Estados que coexis­
tem com outros Estados podem emergir da condição sem lei da guerra pura
[...]. Eles devem renunciar à sua liberdade selvagem e sem lei, consentir com
as leis públicas de coerção, para assim formarem um Estado internacional,
que continuaria a crescer até comportar, em si, todos os povos da terra.207

Em À Paz perpétua, então, Kant argumenta que o estabelecimento


de um Estado internacional ou imperial é o único meio possível da
razão triunfar. Aqueles que não concordam em subordinar seus inte­
resses nacionais às diretrizes de um Estado imperial são considerados
como opositores da marcha histórica da humanidade em direção ao
reinado da razão. Aqueles que insistem em sua liberdade nacional são
apoiadores de um egoísmo violento em escala nacional, que é tanto
uma abdicação da moral sólida como a insistência no egoísmo violento
que paira sobre nossas vidas pessoais.
Por muitos anos, o paradigma kantiano, que imputava uma imora­
lidade intrínseca à instituição do Estado nacional, encontrou poucos
simpatizantes na Europa, onde a opinião progressista estava firmemente
ao lado do desmantelamento imperial, permitindo que as nações bus­
cassem sua independência. Mas depois da Segunda Guerra Mundial,
quando o nazismo foi adicionado à lista de crimes atribuídos ao Esta­
do nacional, o resultado foi muito diferente. O nazismo foi retratado
como o fruto podre do Estado nacional alemão, e Kant parecia ter tido
sempre a razão. O fato de as nações se armarem e determinarem por si
mesmas quando usar seus exércitos, é visto agora como uma barbárie
e uma degradação brutal da humanidade.

207 Ibid., p. 105. Ênfase no original. Quando Kant usa o termo “ Estado dos povos” aqui, ele
aparentemente se refere a um Estado não-federal com uma jurisdição única (“ uma república
mundial” ). Ele reconhece que tal Estado não é ainda viável e propõe “ federação consistente,
sempre expansiva ” como alternativa prática (105). Uma federação universal ainda é, contudo,
um Estado imperial universal, e não algo a ser desejado. V. minha discussão no cap. 15.

199
YORAM HAZONY

Este tema já foi tratado no Capítulo v, onde enfatizei que a ordem


dos Estados nacionais considera que o mundo é melhor governado
quando as nações são capazes de traçar o seu próprio curso de forma
independente. O ponto de vista nazista era precisamente o oposto
disto: Hitler viu seu Terceiro Reich como uma encarnação melhorada
do que ele chamou de “Primeiro Reich” , que não era outra coisa senão
o Sacro Império Romano-Germânico dos Habsburgos. O sonho de
Hitler era construir seu império sobre as ruínas da ordem dos Estados
nacionais na Europa.
Muitos europeus, no entanto, se recusaram a ver as coisas dessa
maneira, aceitando a visão de que o nazismo era, mais ou menos, o
Estado nacional levado às suas últimas e piores conclusões. A conde­
nação do Estado nacional ocidental pelos marxistas foi acompanhada
por um antinacionalismo liberal, que procurou avidamente pôr um fim
à antiga ordem em nome da marcha de Kant em direção à Iluminação.
Como salientou o filósofo Jürgen Habermas, talvez o principal teórico
de uma Europa pós-nacional, essa transição foi particularmente fácil
para os alemães — considere o papel da Alemanha na Segunda Guerra
Mundial e o fato de que a Alemanha pós-guerra estava sob ocupação e
não era mais um Estado independente.208 Ele poderia ter acrescentado
que, ao contrário dos britânicos, franceses e holandeses, os povos de
língua alemã da Europa Central nunca viveram historicamente sob
um Estado nacional unificado, de modo que a esperança representada
por tal Estado talvez fosse um pouco menos importante para eles em
qualquer circunstância.
Seja como for, esta visão pós-nacional encontrou adeptos em toda a
Europa. Apenas uma geração mais tarde, em 1992, os líderes europeus
assinaram o Tratado de Maastricht, instituindo a União Européia como
um governo internacional e privando os Estados-membros de muitos
dos poderes associados historicamente à independência nacional. É
claro que há europeus que não aceitaram este rumo. Mas o impacto
do novo paradigma, o motor que impulsiona o movimento em direção
à União Européia, tem sido, no entanto, esmagador. Tanto na Europa

208 Jürgen Habermas, “The European Nation-State” , em The Inclttsion o fth e Other, orgs.:
Ciaran Cronin e Pablo De Greiff, Cambridge: Massachusetts Institute of Technology Press,
1998, p. 118.

200
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

quanto nos e u a , estamos assistindo ao crescimento de uma geração de


jovens que, pela primeira vez em quatrocentos anos, não reconhece o
Estado nacional como a base de nossas liberdades. De fato, há um novo
paradigma poderoso no exterior que nos faz imaginarmo-nos sem tais
Estados. E isso desencadeou uma onda gigantesca de conseqüências,
para aqueles que o adotam e para aqueles que não o adotam.

22. Duas lições de Auschwitz


Sempre causou-me incômodo a perspectiva de que uma nação como a
Grã-Bretanha, que tantas vezes foi uma luz para as outras na política, na
filosofia e na ciência, possa um dia descer do palco da história mundial
para sempre. Vejo a Grã-Bretanha, os e u a , a Holanda e outros como
parte de uma família de nações cuja existência independente e contínua
é significativa, para mim, pessoalmente. No entanto, minha primeira
preocupação é com Israel, e gostaria agora de tentar compreender como
o meu país é visto pelos olhos europeus — ou melhor, pelos olhos do
novo paradigma, que fornece uma compreensão de Israel para tantos
na Europa, e agora também para um crescente número de pessoas
instruídas nos e u a e em outros lugares.
Consideremos o campo de concentração de Auschwitz. Para a maioria
dos judeus, Auschwitz tem um significado muito particular. Não foi a
Organização Sionista de Herzl que persuadiu quase todos os judeus
do mundo de que não haveria outra solução senão o estabelecimento
de um Estado judaico independente em nossos dias. Quem conseguiu
isso foi Auschwitz, e a morte de seis milhões de judeus nas mãos dos
alemães. Do horror e da humilhação de Auschwitz, surgiu esta lição
inevitável: que foi a dependência judaica da proteção militar de outros
que levou a isso. Esta mensagem foi articulada com perfeita clareza por
David Ben-Gurion, na Assembléia Nacional dos Judeus da Palestina,
em novembro de 1942:

Nós não sabemos exatamente o que se passa no vale nazista da morte, ou


quantos judeus já foram abatidos por lá [...]. Nós não sabemos se a vitória
da democracia, da liberdade e da justiça não encontrará na Europa um vasto
cemitério judeu onde os ossos do nosso povo estão espalhados [...]. Somos o
único povo do mundo cujo sangue, enquanto nação, pode ser derramado [...].
Somente nossos filhos, nossas mulheres [...] e nossos idosos são separados

201
YORAM HAZONY

para tratamento especial, para serem enterrados vivos em sepulturas cavadas


por eles mesmos, para serem cremados em fomos, para serem estrangulados
e assassinados por metralhadoras [...] por apenas um pecado [...] porque
os judeus não têm posição política, nem exército judeu, nem independência
judaica, nem pátria [...].20? Dêem-nos o direito de lutar e morrer como judeus
[...]. Nós exigimos o direito [...] a uma pátria e à sua independência. O que
nos aconteceu na Polônia — que Deus não o permita — vai acontecer-nos no
futuro, a todas as nossas vítimas inocentes, a todas as dezenas de milhares,
centenas de milhares e talvez milhões [...] são os sacrifícios de um povo sem
pátria [...] exigimos [...] uma pátria e sua independência.209210

Nestas palavras, a ligação entre o Holocausto e o que Ben-Gurion


chama de “pecado” da impotência judaica está poderosamente em
evidência. O significado de Auschwitz é que os judeus falharam em
seus esforços para encontrar uma maneira de defender seus filhos.
Dependiam de outros, homens decentes no poder nos e u a o u na
Grã-Bretanha, que, quando chegou a hora, pouco fizeram para salvar
os judeus europeus. Hoje, a maioria dos judeus continua acreditando
que a única coisa que realmente mudou desde que aqueles milhões de
nosso povo pereceram — a única coisa que permanece como um esteio
contra a repetição deste capítulo na história do mundo — é Israel.
Os judeus, no entanto, não são os únicos para quem Auschwitz
tornou-se um importante símbolo político. Muitos europeus, também,
vêem Auschwitz como o cerne da lição da Segunda Guerra Mundial.
Mas as conclusões a que chegam são precisamente o oposto das dos
judeus. Seguindo Kant, eles vêem Auschwitz como a expressão final
dessa barbárie, desse rebaixamento brutal da humanidade, que seria
o particularismo nacional. Desse ponto de vista, os campos de exter­
mínio constituem a máxima prova do mal de permitir que as nações
decidam por si mesmas como dispor do poder militar que possuem. A
conclusão óbvia é que se errou ao dar à nação alemã esse poder de vida
e de morte. Se tal mal precisa ser impedido de acontecer novamente
múltiplas vezes, a resposta deveria estar, portanto, no desmantelamento
da Alemanha e dos outros Estados nacionais da Europa; que todos os

209 Termo original usado por Davi Ben-Gurion é homeland, muito mais amplo que “terra natal” ,
“ lar” ou “pátria” . Homeland é um conceito abrangente que envolve a idéia de segurança,
por isso foi empregada nesse discurso com tanta ênfase. — n t
210 Discurso de Ben-Gurion perante a Assembléia Nacional em sessão especial, 30 de novembro
de 1942, pasta J/l 366, Central Zionist Archives, Jerusalém.

202
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

países europeus passassem ao jugo de um único governo internacional:


eliminando-se o Estado nacional de uma vez por todas, estaria assim,
também, selando-se a estrada escura para Auschwitz.
Observem que, de acordo com essa visão, não é Israel que é a
resposta a Auschwitz, mas sim a União Européia. Uma Europa unida
tornará impossível que a Alemanha, ou qualquer outra nação europeia,
se levante e persiga os outros mais uma vez. Nesse sentido, é a União
Européia que permanece como garantia da paz futura dos judeus e,
na verdade, de toda a humanidade.
Aqui estão, portanto, dois paradigmas concorrentes sobre o significa­
do de Auschwitz. Cada um está olhando para os mesmos fatos: ambos
os paradigmas assumem que milhões foram assassinados em Auschwitz
pelos alemães e seus colaboradores, que os atos ali praticados foram
totalmente maus e que os judeus e outros que ali morreram foram as
vítimas indefesas desse mal. Mas termina, neste ponto, o consenso.
Indivíduos que olham para os mesmos fatos pelo atalho desses para­
digmas diferentes, vêem diferentes cenários:

Paradigma A: Auschwitz representa o horror indescritível de mulheres


e homens judeus de mãos vazias e nus, vendo seus filhos morrerem por
falta de um rifle que pudesse protegê-los.

Paradigma B: Auschwitz representa o horror indescritível dos soldados


alemães usando a força contra os outros, sustentados apenas pelas
opiniões do seu próprio governo quanto aos seus direitos e interesses
nacionais.

É importante reconhecer que estes dois pontos de vista, que nem


parecem estar falando sobre a mesma coisa, são na verdade descrições
de posições morais que são quase perfeitamente irreconciliáveis. Em
um, é a atuação dos assassinos que é vista como a fonte do mal; no
outro, é a impotência das vítimas — uma diferença de perspectiva
que, aparentemente se abre em um abismo quando voltamos esses
paradigmas concorrentes para outra direção e olhamos para Israel
através de seus olhos.

203
YORAM HAZONY

Aqui estão os mesmos dois paradigmas, agora com sua atenção


voltada para o Estado independente de Israel e o que ele representa:

Paradigma A: Israel representa mulheres e homens judeus com rifles nas


mãos, cuidando de seus próprios filhos e de todas as outras crianças
judias e protegendo-as. Israel é o oposto de Auscbwitz.

Paradigma B : Israel representa o horror indizível dos soldados judeus


usando a força contra os outros, sustentados apenas pelas opiniões do
seu próprio governo quanto aos seus direitos e interesses nacionais.
Israel é Auschivitz.

Em ambos os paradigmas, Israel assume uma extraordinária gama


de significados por causa da identidade dos judeus como as vítimas da
Shoah. Para os fundadores de Israel, o fato de que os sobreviventes dos
campos de extermínio e seus filhos pudessem receber armas e ser auto­
rizados a treinar como soldados sob uma bandeira judaica parecia um
movimento decisivo do mundo em direção ao que era justo e correto.
Não poderia, de forma alguma, compensar o que havia acontecido.
Mas era justo conceder aos sobreviventes precisamente o poder que,
se tivesse vindo alguns anos antes, teria salvado seus entes queridos da
morte ou de coisa pior. Neste sentido, Israel é o oposto de Auscbwitz.
Ao mesmo tempo, Israel assume também um significado extraordinário
no novo paradigma europeu. Pois em Israel, os sobreviventes e seus filhos
pegaram em armas e se puseram a determinar seu próprio destino. Ou
seja, este povo, tão próximo do ideal kantiano de auto-renúncia perfeita
há apenas algumas décadas, em vez disso, escolheu o que agora é visto
como o caminho de Hitler — o caminho da autodeterminação nacional.
É isso que esconde o desgosto quase ilimitado que muitos nutrem em
relação a Israel, e especialmente em relação a qualquer coisa que tenha
a ver com as tentativas de Israel de se defender, independentemente de
essas operações serem bem-sucedidas ou malsucedidas, irrepreensíveis
ou moralmente defeituosas. Ao pegar em armas em nome de seu pró­
prio Estado nacional e de sua própria autodeterminação, os judeus são
agora vistos, por europeus e outros, simplesmente como sinônimo do

20 4
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

mesmo mal que levou a Alemanha a construir os campos de extermínio.


Os detalhes podem ser diferentes, mas o princípio, aos olhos deles, é o
mesmo: Israel é Auschwitz.
Experimentemos ver isso através dos olhos europeus. Imaginemo-nos
hoje como um orgulhoso holandês, cuja nação ergueu a tocha da liber­
dade naquela revolta sem esperança contra a Espanha católica, uma
guerra de independência que durou oitenta anos. “No entanto, estou
disposto a desistir disso”, diz ele para si mesmo, “para sacrificar esta
herança com seus sonhos de glória passada, e dizer adeus ao Estado
fundado por meus antepassados, em nome de algo mais elevado. Farei
este sacrifício doloroso em nome de uma união política internacional
que, no final das contas, abraçará toda a humanidade. Sim, eu farei
isso pela humanidade” . Mas quem é que se opõe a ele? Quem, entre os
povos civilizados, ousaria virar as costas a este esforço, abençoado pela
moral e pela razão, para atingir finalmente a salvação da humanidade?
Imagine o seu choque: “ Os judeus! Esses judeus, que deveriam ter sido
os primeiros a saudar a vinda da nova ordem, os primeiros a acolher a
vinda da salvação da humanidade, em vez disso, estabelecem-se como
seus oponentes, construindo o seu pequeno Estado egoísta, em guerra
com o mundo. Como se atrevem? Não deveriam eles fazer os mesmos
sacrifícios que eu em nome da Iluminação e da razão? Serão eles tão
desqualificados que não conseguem se lembrar de seus próprios pais em
Auschwitz? Não, eles não se lembram — porque eles foram seduzidos
e pervertidos pelo mesmo mal que anteriormente havia tomado os
nossos vizinhos na Alemanha. Eles foram para o lado de Auschwitz” .
Assim, não é apenas por coincidência que ouvimos constantemente
Israel e seus soldados serem comparados aos nazistas. Nós não estamos
falando de uma simples calúnia escolhida arbitrariamente ou apenas
pelo seu valor retórico. Na Europa e em qualquer outro lugar onde o
novo paradigma se espalhou, a comparação com o nazismo, por mais
absurda que seja, é natural e inevitável.
Isso responde à questão de como algo, em algum nível fundamental,
opera como se os fatos não parecessem importar, como pode ser que,
mesmo onde Israel seja facilmente reconhecido como tendo a justiça do
seu lado — onde age em legítima defesa, e com contenção meticulosa —,

205
YORAM HAZONY

o país possa ser ridicularizado em campanhas de difamação que ferem


cada vez mais profundamente e batem cada vez mais violentamente, a
cada ano que passa? Como pode ser que após a destruição da zona de
segurança israelense no sul do Líbano, e depois da retirada israelense
da Faixa de Gaza, o ódio a Israel só aumente?
A resposta é que, embora o ódio por Israel possa, a um dado mo­
mento, estar focado com muita sinceridade em certos fatos sobre a
zona de segurança ou a Faixa de Gaza ou os furadores de bloqueio
turcos, a trajetória de repulsa ou ódio internacional para com Israel
não é impulsionada por esses fatos. É impulsionada pelo rápido avanço
de um novo paradigma que entende Israel, e especialmente o uso inde­
pendente da força de Israel para se defender, como ilegítimo até suas
fundações. Se você acredita que Israel é, em algum sentido importante,
uma variante do nazismo, então você não ficará muito impressionado
com “ melhorias” nas políticas ou relações públicas israelenses. Um
Auschwitz melhorado ainda é Auschwitz.
Pode-se perguntar: se isso está certo, e a comparação entre Israel e
o mais odioso movimento político da história européia está ligada ao
novo paradigma da política internacional que está avançando rapida­
mente sobre nós, então os indivíduos que subscrevem este paradigma
não chegariam à conclusão de que Israel não tem o direito de existir
e deve ser desmantelado?
A resposta para essa pergunta é clara. É claro que esta comparação
leva à conclusão de que Israel não tem o direito de existir e deve ser
desmontado. E por que não? Se a Alemanha e a França não têm o direito
de existir como Estados independentes, por que deveria Israel tê-lo? E
se muitos estão preparados para permanecer firmes no dia em que a
Grã-Bretanha e a Holanda finalmente se forem, por que razão eles se
sentiríam diferentes em relação a Israel? Pelo contrário, enquanto os
judeus e seus aliados continuam a falar com pavor sobre a “destruição
de Israel”, esta frase não é mais temida entre aqueles que abraçaram
o novo paradigma — alguns dos quais já estão se permitindo ter de­
vaneios em público em arranjos políticos que permitirão que o Estado
judeu deixe de existir.211
211 V., por exemplo, Tony Judt, “Israel: The Alternative” , The New York Review o f Books, 23
de outubro de 2003.

206
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

23. Por que ninguém protesta contra as monstruosidades do islã e


do Terceiro Mundo
Sugeri que a principal força que impulsiona o progresso de deslegiti-
mação de Israel em fóruns internacionais, mídia e universidades nos
últimos anos tem sido o avanço de um novo paradigma antinacionalista
nas relações internacionais partindo, em primeiro lugar, da Europa.
N a minha leitura, o impulso para subordinar os Estados nacionais da
Europa a uma organização política internacional, a União Européia,
tem causado sérios danos ao princípio que originalmente reconheceu
a legitimidade de Israel em estabelecer-se como um Estado nacional
independente: o princípio da liberdade e autodeterminação nacional,
que permitiu ao Estado judaico uma ação independente quando fosse
necessária para proteger o seu povo. Muitos na Europa vêem cada vez
mais tal independência nacional e autoproteção como algo ilegítimo, e
isso os leva a uma rejeição sistemática da legitimidade de Israel. Além
disso, esta mesma visão está se espalhando rapidamente nos e u a e
também em outros países.
Isso levanta uma questão importante: se a crescente hostilidade
contra Israel está sendo conduzida, em grande parte, pelo colapso do
apoio à idéia do sistema de Estados nacionais independentes, por que
tantos desses críticos mais severos de Israel apoiam o estabelecimento
de um Estado independente para os árabes palestinos? Por que eles
se abstêm de criticar o uso da força por Estados como Irã, Turquia e
vários outros regimes árabes, e por muitos outros países do Terceiro
Mundo? Muitos desses regimes usam a força de forma muito mais
agressiva do que Israel — em alguns casos cometem atrocidades em
escala inimaginável. Se o paradigma do Estado nacional entrou em
colapso, por que parece haver tolerância, se não apoio total, à ação
independente quando é exercida por tais regimes?
Como antes, o início de uma resposta deve ser encontrado no
antinacionalismo de Kant. Lembre-se que, para Kant, a história da hu­
manidade deve ser vista como um movimento progressivo da barbárie
para o eventual triunfo da moralidade e da razão, que ele iguala com
o estabelecimento de um Estado universal. De acordo com esta visão,
os indivíduos primeiro desistem de sua liberdade egoística e sem lei,

20 7
YORAM HAZONY

unindo-se em Estados nacionais. Então, esses Estados nacionais devem


fazer a mesma coisa, renunciando à sua liberdade egoísta e sem lei,
subordinando-se ao direito público coercitivo de um Estado universal.
Ao contrário de alguns, Kant não tem certeza de que esse movimento
da história seja inevitável. Mas ele o vê como o único desenvolvimento
histórico que pode legitimamente ser considerado moral e de acordo
com a razão. Qualquer outra visão da história “deve levar cada um
naturalmente à [...] inquietação” .212
M as esta interpretação progressista da história não significa que
todas as nações estejam se movendo no caminho da barbárie para
a razão ao mesmo ritmo. Pelo contrário, Kant acredita que existem
diferentes fases de realização ao longo deste caminho, e que dife­
rentes povos as alcançam em diferentes épocas. Como ele explica
em um ensaio chamado Idéia para uma História Universal com um
Propósito Cosmopolita (1784), os povos deixam o estado selvagem
e alcançam o nível de civilização quando eles se formam em Estados
nacionais, cada um governando-se internamente pela matriz do Estado
de Direito. Mas a ordem dos Estados nacionais não é o mesmo que
maturidade moral, que é o terceiro e último estágio — ainda a ser
alcançado — na história da humanidade. Atingir este último estágio
requer que a humanidade “ finalmente [...] dê o passo” que a razão
dita ao demandar que se submeta a um Estado federal universal.
Kant explica que isso seria

[...] uma federação de nações em que cada Estado, mesmo o menor deles,
pudesse esperar sua segurança e direito não da própria força ou do pró­
prio juízo legal, mas somente desta grande confederação de nações, de um
poder unificado e da decisão segundo as leis de uma vontade unificada.213

Aqui, a “ maturidade moral” é igualada à renúncia de alguém ao


próprio julgamento sobre o que é certo, e do próprio poder de agir a
serviço do que é certo. O julgamento do Estado universal determinará
o que é certo; o “poder unificado” e a “vontade unificada” do Estado
universal vão impor o que é certo.

212 Immanuel Kant, “ Idea for a Universal History with a Cosmopolitan Purpose” , em Political
Writings, p. 53.
213 Ibid., p. 47.

208
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Kant não acreditava que no seu próprio tempo qualquer nação ainda
tivesse atingido esse nível de “maturidade moral” . Mas ele acreditava
que a Europa provavelmente o alcançaria eventualmente, tendo sido
obrigada a alcançá-lo pela dor e sofrimento induzidos por tantas guer­
ras.214 O resto do mundo, enquanto isso, permaneceu em condição de
selvageria, e ainda não havia dado o passo inicial de se unir em forma
de Estados nacionais. Isso eles obviamente teriam que fazer primeiro,
antes que pudessem galgar postos mais altos.
Os três estágios do progresso humano de Kant são reproduzidos
mais ou menos exatamente do mesmo modo que os antinacionalistas
europeus falam sobre assuntos internacionais. De acordo com essa
visão, há apenas um lugar no mundo onde se pode encontrar nações
que finalmente alcançaram o estágio de “ maturidade moral” : a União
Européia. Só na Europa ficou perfeitamente claro para muitos mi­
lhões de pessoas que a ordem dos Estados nacionais deve agora ser
transcendida. Só lá o ideal de independência nacional está em vias de
ser descartado. Deste ponto de vista, é evidente supor o que se pensa
a respeito do Irã, Turquia, dos árabes e do Terceiro Mundo, que são
todos considerados como em um estágio muito mais primitivo de sua
história. Diz-se que esses seriam os povos que ainda tentam escapar
da selvageria, ainda tentando consolidar os Estados nacionais regidos
pelo Estado de Direito interno (rule oflaw). Uma vez que eles chegaram
a este ponto, possivelmente daqui a séculos, eles também começarão
gradualmente a reconhecer a racionalidade de superar seus Estados
nacionais e alcançar “maturidade moral” sob um governo internacional.
A prevalência desta visão de três etapas da história explica muito
sobre o entusiasmo de muitos líderes europeus em estabelecer novos
Estados no Oriente Médio e no Terceiro Mundo, bem como seu rela­
tivo desinteresse pela agressão e atrocidades cometidas nessas regiões.
Aos seus olhos, estas guerras e atrocidades são apenas uma etapa pela
qual os povos dos “países em desenvolvimento” têm de passar. Como
crianças, eles supostamente não conhecem outra coisa melhor — e
continuarão a não conhecer nada melhor por algum tempo.215

214 Ibid., pp. 47-49. Além disso, a Europa “que provavelmente um dia dará leis a todas as
outras” [partes do mundo], p .52.
215 Kant compara repetidamente a imaturidade moral da humanidade com a imaturidade das
crianças, como em Idea for a Universal History, p. 42.

209
YORAM HAZONY

Nada disto pode ser dito sobre Israel, é claro. Considerados a partir
da perspectiva do liberalismo europeu, os judeus não são muçulmanos
nem pessoas do Terceiro Mundo. Os judeus devem ser vistos como um
povo europeu, e os padrões aplicados a nós são aqueles que devem ser
aplicados à Europa, que finalmente chegou ao estágio de “maturidade
moral” . Daí o desgosto e a raiva que se abateu sobre israelenses e ju­
deus por insistirem na nossa autodeterminação nacional. Sempre que
agimos unilateralmente em assuntos militares, ou confiamos em nosso
próprio julgamento independente em assuntos jurídicos e constitucio­
nais, somos vistos como ex-europeus que grotescamente viraram as
costas para o caminho da maturidade moral. Nós não somos como
crianças, que não podem ser responsabilizadas por desconhecer o
que deva ser feito. Somos como adultos, que sabem muito bem o que
fazem, mas que ainda assim escolheram conscientemente o caminho
da irracionalidade e da imoralidade.
Isso explica a razão de existir tal desequilíbrio entre a forma com que
muitos na Europa vêem Israel não da mesma forma com que eles vêem o
Irã, a Turquia, os Estados árabes e o Terceiro Mundo. A duplicidade de
padrões decorre diretamente da interpretação kantiana da história. Onde
quer que o novo paradigma se enraize, lá você verá que as exigências
morais feitas a Israel são cada vez mais rigorosas, enquanto as críticas
públicas aos vizinhos muçulmanos de Israel são amenas ou mesmo não
ocorrem. Isto pela simples razão de que os iranianos, turcos e árabes
não são considerados como povos no estágio certo de sua história para
entender a moralidade e a razão. Como diria Kant, com eles “ ao final
mostra-se, no seu conjunto, entretecido de tolice, capricho pueril e fre-
qüentemente também de maldade infantil e vandalismo” .216
É claro que não é nem polido nem político dizer que todas essas
nações não são melhores do que simples e violentas crianças, e que
por essa razão há pouco a se esperar delas. Mas raspe a superfície
educada, e você constatará que esta chocante condescendência, na
fronteira do racismo, está em toda parte. A insistência de que os
israelenses devem ser responsabilizados por um padrão moral mais
elevado do que os árabes ou iranianos, porque somos, acima de tudo,

216 Ibid., p. 42.

210
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

“ europeus” , aparece constantemente em conversações de fundo. No


entanto, a maioria dos que sustentam este ponto de vista é cuidadosa
para não inscrevê-lo nos registros oficiais. N ão é o caso do embai­
xador dinamarquês em Israel, que fez recentemente esta observação
em um discurso público, o que reflete muito bem o que tantos nos
disseram muitas vezes em privado:

Há a alegação de que a Europa está aplicando dois pesos e duas medidas,


discriminando [...]. Eu acho que Israel deveria insistir que nós os discri­
minemos [sic]. Que nós apliquemos dois pesos e duas medidas. Isso ocorre
porque V. Exa. é um de nós [...]. Às vezes, a resposta por parte de alguns
dos interlocutores israelenses é: “Veja o que está acontecendo na Síria. Olha
o que ocorre em outros lugares” . Esses não são os padrões pelos quais
estão sendo julgados. N ão são os padrões pelos quais Israel gostaria de ser
julgado. Por isso, eu acho que tem o direito de insistir que apliquemos dois
pesos e duas medidas, colocando-os nos mesmos padrões em que todos os
outros países europeus encontram-se contextualizados.217

24. A Grã-Bretanha, os Estados Unidos e outras nações deploráveis


As terríveis campanhas de difamação dirigidas contra Israel, então, pa­
recem ter a seguinte causa: os judeus, apesar de serem considerados um
povo “europeu” que deveria conhecer melhor essa sua condição, apesar
de tudo continuam agindo como um Estado nacional independente,
perseguindo seus interesses e aspirações de acordo com seu próprio
entendimento. E eles fazem isso em vez de aceitarem uma concepção
européia do que significa ser uma “nação moralmente madura” . Se isso
está certo, então deveriamos ser capazes de ver casos em que outras
nações são igualmente criticadas pela mesma razão. Existem outros
exemplos de nações que foram submetidas a campanhas comparáveis
de difamação? E essas nações também são exemplos de nações “euro­
péias” que são mantidas em um padrão diferente porque elas deveríam
conhecer melhor essa condição?
A resposta a estas perguntas é certamente sim. Nos anos 1980, o
exemplo notável de uma nação sujeita a tal desgosto e difamação moral
foi, naturalmente, o regime do apartheid na África do Sul. N a década

217 Embaixador Jesper Vahr, discursando na Conferência Diplomática do Jerusalem Post, em


11 de dezembro de 2014.

211
YORAM HAZONY

de 1990, o horror internacional foi dirigido contra a Sérvia. Hoje, com


esses dois países fora da vitrine como alvos de vergonha, a indignação
moral que há tempos se abateu sobre Israel, se voltou contra os e u a ,
contra a Grã-Bretanha após seu voto para deixar a União Européia, e
contra as nações do leste europeu como Hungria, Polônia e República
Tcheca, que resistem aos padrões europeus de comportamento em várias
frentes. Ao apontar para esses exemplos, não pretendo sugerir que essas
nações muito diferentes pertençam à mesma categoria moral. Penso
obviamente que elas não pertencem. No entanto, são todos exemplos
de nações que foram submetidas ao tipo de campanhas de difamação
e humilhação que têm sido mais proeminentemente associadas a Israel
nos últimos anos. Gostaria de entender o que, do ponto de vista do
liberalismo europeu, torna essas nações tão deploráveis, e o que move
a repulsa contra as mesmas.
Começarei pelo caso americano. É difícil não notar o ódio que
se acumulou contra as administrações americanas, pela sua própria
afirmação de uma postura política independente. Isso certamente tem
sido verdade para os temas abertamente nacionalistas do governo
Trump. No entanto, em muitos aspectos, isso não é algo novo. Pelo
menos desde o fim da Guerra Fria, os europeus têm criticado as ad­
ministrações americanas por sua “recusa para se juntar” aos acordos
internacionais que ganharam o favor da “comunidade internacional” ,
desde o Protocolo de Kyoto até o Tribunal Penal Internacional. Eles
deploraram os e u a por sua disposição de resolver sozinhos problemas
urgentes de segurança, como no caso da Segunda Guerra do Golfo,
que foi conduzida sem um mandato das Nações Unidas. De fato, os
europeus acham perturbador que os americanos nem sempre vejam
seus próprios militares como disponíveis para servir “ à comunidade
internacional” , e que os americanos estejam dispostos a rejeitar as
Nações Unidas como a “ autoridade suprema de tomada de decisões”
do mundo. Em outras palavras, além de se sentir incomodada pelo
conteúdo desta ou daquela política americana, a liderança européia
tem consistentemente considerado perturbador que os e u a se vejam
a si mesmos como tendo o direito de agir unilateralmente, de acordo
com seu próprio julgamento, a serviço de seu próprio povo, valores e
interesses. Seu problema é, em outras palavras, que os e u a agem como
uma nação independente.

212
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

A semelhança com o caso de Israel é impressionante. Tal como


acontece com Israel, ondas de repugnância e raiva sempre se fixam
em uma decisão ou política específica dos e u a . Enquanto as questões
particulares vão e vêm, não são elas que impulsionam essa trajetória
de repulsa e raiva cada vez maior. O que está impulsionando isso é
a insistência no direito, sempre que necessário, de uma tomada de
ação unilateral — ou seja, a insistência em viver sob a velha ordem
dos Estados nacionais. E aqui, como no caso de Israel, a consterna­
ção está de acordo com um duplo padrão sistemático: os americanos
são injuriados, e seu comportamento deplorado, por exercerem um
julgamento independente na busca de seus interesses como nação, ao
passo que nenhum escândalo como esse está ligado à China ou ao
Irã exercendo julgamento independente e perseguindo seus próprios
interesses. Mais uma vez, é a independência nacional de um povo
“ europeu” que deveria ter alcançado maturidade moral e deveria
saber que está conduzindo o mundo à raiva e ao ódio.
Esta mesma indignação foi estendida à Grã-Bretanha, na sequência
da sua decisão de retornar a um curso de independência nacional e
autodeterminação, e também a nações como a República Tcheca, a
Hungria e a Polônia, que insistem em manter uma política de imigra­
ção própria que não está em conformidade com as teorias da União
Européia sobre o reassentamento de refugiados. Nestes e outros casos
semelhantes, as objeções substantivas são secundárias à raiva sobre
a própria possibilidade de uma política independente por parte de
uma nação européia.218 E, como no caso de Israel, essas políticas
independentes são comparadas com o nazismo ou o fascismo.219
218 Em um incidente especialmente notável em 2010, o Poder Legislativo do Arizona investiu
autoridades estaduais de poderes para restringir a imigração ilegal. Em resposta, o governo
Obama provocou um embate jurídico contra a ação do estado do Arizona em uma petição
protocolada junto ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Longe de defender
a liberdade dos americanos contra a invasão estrangeira, o governo americano uniu forças
com um organismo internacional em um esforço para atingir o Arizona sob o estigma da
ilegitimidade moral. V. “ Report of the United States of America Submitted to the u . n . High
Commissioner for Human Rights in Conjunction with the Universal Periodic Review” ,
disponível em www.state.gov/documents/organization/146379.pdf; “ State Departement
Stands by Decision to Include Arizona in u . n . Human Rights Report.” Fox News, 30 de
agosto de 2010; “ Reporting Arizona Law to u . n . Was Correct” , Chandra S. Bhatnagar e
Alessandra Soler Meetze, c n n , 4 de setembro de 2010.
219 Justin Welby, Arcebispo de Canterbury, por exemplo, considera o voto para a independência
britânica como sendo decorrente “ de uma tradição política nacionalista, populista ou até
mesmo fascista” , The Guardian, 13 de fevereiro de 2017.

213
YORAM HAZONY

Nem mesmo a censura está limitada a meras palavras. Há pelo


menos dois casos em que tal condenação moral foi seguida por ação
coercitiva: as campanhas de deslegitimação conduzidas contra a África
do Sul e a Sérvia, que resultaram finalmente na destruição do regime do
apartheid na África do Sul, e a expulsão forçada da Sérvia do Kosovo.
Não duvido de que o regime sul-africano fosse moralmente repugnante,
ou que as forças sérvias fossem responsáveis por ultrajes após o colapso
da Iugoslávia. Mas o que interessa para meus propósitos aqui não são
as falhas morais objetivas dessas nações — uma questão em relação à
qual não pode haver grande discordância. Pelo contrário, quero saber
por que razão estas duas nações foram escolhidas para difamação,
quando tantas outras nações rivalizaram no derramamento de san­
gue, na opressão e na tortura, mas foram em grande parte ignorados.
Minha proposta é que o ódio dirigido contra essas nações não pode
ser explicado simplesmente referindo-se aos erros que elas cometeram.
Pois quem pode seriamente dizer que os sérvios tinham um histórico
de direitos humanos pior do que a Coréia do Norte, o Irã, a Turquia,
a Síria, o Sudão ou o Congo? Ou que a opressão dos negros na África
do Sul, embora certamente tenha sido terrível, fosse mais repreensível
que a opressão às mulheres na Arábia Saudita hoje?
A razão pela qual esses povos foram escolhidos para especial ódio
e aversão, e para punição especial, qual seja, é porque os sul-africanos
e sérvios brancos são vistos como europeus, e são mantidos em um
padrão moral que não tem qualquer relação com o que se espera dos
seus vizinhos africanos ou muçulmanos. Afinal, porque dois milhões
de albaneses no Kosovo deveríam ser reconhecidos como um segun­
do Estado albanês independente, enquanto trinta milhões de curdos
continuam a sofrer terror e perseguição, ano após ano, nas mãos dos
turcos, árabes e iranianos por falta de uma pátria independente? A
diferença decisiva entre os dois casos é que os sérvios, que conside­
ram o Kosovo como seu próprio povo, são percebidos como um povo
europeu que deveria saber melhor das coisas; enquanto os turcos,
iranianos e árabes que continuam oprimindo e assassinando os curdos
são vistos (a partir da perspectiva do paradigma dos liberais europeus)
como selvagens infantis dos quais ninguém pode esperar, moralmente,
praticamente nada.

214
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

O ponto é inicialmente contra-intuitivo, mas objetivo, uma vez que


você leve isso em consideração: se uma nação é européia ou descendente
da colonização européia, então o que se espera dela está de acordo
com os padrões europeus — o que significa cada vez mais a renúncia
kantiana de um direito nacional a um julgamento e ação independentes,
especialmente no que diz respeito ao uso da força. Em contrapartida,
o Irã, a Turquia, os árabes e o Terceiro Mundo são, nesta perspectiva,
considerados povos primitivos que ainda não chegaram à fase do Es­
tado nacional consolidado sob o Estado de Direito (rule oflaw ). Na
prática, isso significa que, na maior parte do tempo, não se considera
que lhes apliquem quaisquer padrões morais.

25. Por que os imperialistas têm ódio


O “internacionalismo liberal” não é apenas uma agenda positiva para o
apagamento das fronteiras nacionais e o desmantelamento dos Estados
nacionais na Europa e em outros lugares. É uma ideologia imperialista
que investe contra o nacionalismo e os nacionalistas, buscando a sua
deslegitimação onde quer que apareçam na Europa, ou entre nações
como os eua e Israel, que são consideradas como emergentes da civi­
lização européia.
Por que o ódio que emana dos círculos liberais tem sido tão pouco
discutido? Parece que isso ocorre porque a existência de tal ódio não
se encaixa no paradigma kantiano, segundo o qual a razão deveria
estar movendo a humanidade para o abandono do Estado nacional
independente, juntamente com o ódio e a violência que caracterizaram
a era das nações independentes. De acordo com esta visão, a vinda do
próximo Estado internacional trará junto a si razão e paz. Mas se o
apoio ao programa imperialista liberal não produz razão e paz, mas
ódio e violência, a reivindicação de que o império liberal seja a única
alternativa viável para pessoas razoáveis seria seriamente prejudicada.
Há, em outras palavras, um ponto cego no discurso liberal con­
temporâneo. Devido ao seu compromisso com uma ordem política
universal, os imperialistas liberais tendem a atribuir o ódio ao particu-
larismo nacional e tribal (ou então à religião), enquanto negligenciam

215
YORAM HAZONY

ou minimizam o ódio que é uma conseqüência direta do avanço da sua


própria aspiração em alcançar a ordem política universal.
Nada disso deveria ser surpreendente. Historicamente, toda teoria
imperial com a qual estamos familiarizados — seja egípcia ou assíria,
grega ou romana, cristã ou muçulmana, liberal ou marxista — tem
oferecido uma ideologia de salvação e paz universal.220 E cada uma
dessas ideologias imperialistas, logo que colide com uma determinada
rejeição da salvação que oferece, responde a esta rejeição com um ódio
intenso e permanente. O universalismo, ao que parece, só é capaz de
amar todos os homens e todas as nações apenas enquanto estes estiverem
dispostos a deixar que seus pensamentos e ações sejam determinados
por este mesmo universalismo. No momento em que nações particulares
e homens de carne e osso insistem na autodeterminação, tudo muda.
Descobrimos então que o universalismo odeia o particular, está chocado
e revoltado com ele. E esse ódio e essa repugnância só se tornam mais
inflamados à medida que a resistência do homem particular prova-se
resiliente e duradoura.
Esta é a história do ódio da cristandade para com os judeus, que
rejeitaram a mensagem de salvação e paz do Evangelho. E é a história
do ódio da Europa para com o Israel moderno, que rejeitou a men­
sagem de salvação e paz da União Européia. A proposta de Kant de
desmantelar os Estados nacionais da Europa e trazê-los sob o domínio
de uma federação internacional é, em outras palavras, uma recapitula­
ção iluminista de uma antiga temática cristã. A raiva que os defensores
do império liberal sentem ao confrontar a recusa de Israel em aceitar
o seu programa de paz perpétua é muito semelhante ao que alguns de
seus antepassados devem ter sentido ao confrontar a recusa dos judeus
ao Evangelho.221 E os judeus, também, quando encontram esse ódio
220 Até mesmo o imperialismo nazista era um credo salvacionista espalhando promessas de paz
mundial. Como Hitler escreve no Mein Kampf, o triunfo da raça alemã pode alcançar “ o que
tantos pacifistas esperam obter hoje” , ainda que de forma errada: “uma paz, apoiada não por
[...] um lacrimoso, pacifista e efeminado lamento, mas baseado na espada vitoriosa de um
povo supremo”, Adolf Hitler, Mein Kampf, tradução para o inglês de Ralph Manheim, Nova
York: Houghton Mifflin, 1971 (1925), p. 396. Compare com Anthony Smith, que enfatiza
que o nazismo é um credo salvacionista, travando “ uma guerra de ‘salvação mundial’ ”
para “ aniquilar raças inferiores compostas de escravos poluidores” . V. Nationalism in the
Tweentieth Century, Oxford, u k : Martin Robertson, 1979, p. 80.
221 V. Matti Friedman, “An Insider’s Cuide to the Most Important Story on Earth” , Tablet, 26
de agosto de 2014.

216
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

mais uma vez, experimentam sentimentos semelhantes aos que seus


antepassados devem ter sentido.
Uma vez que isto é dito, devemos considerar novamente o ódio
de Hitler aos judeus, que é tão freqüentemente identificado como um
caso típico de um ódio nacional ou tribal, o ódio de uma nação contra
outra. Os alemães, no entanto, nunca cultivaram uma concepção de
si próprios com base no Antigo Testamento para assentarem-se como
Estado nacional independente, como os ingleses, os holandeses e os
americanos fizeram. O sonho católico-alemão de Austrice est imperare
orbi universo, o sonho nazista dos alemães de se tornarem “ senhores
do mundo” , e o sonho do iluminismo alemão de “ um Estado interna­
cional, que necessariamente continuaria a crescer até abraçar todos os
povos da terra” , são transformações de um único ideal e paixão, o dos
imperadores e imperialistas, que sonham com a extinção de todas as
nações que são autodeterminadas e livres sobre esta terra, sufocando-as
com o desejo universalista de uma salvação única e global para todos.
Este é um ideal e uma paixão que tornou os judeus, com sua preocupa­
ção irredutível em torno de sua causa e aliança únicas, um impedimento
insuportável.222 Por esse motivo, o ódio alemão aos judeus tornou-se de
fato uma palavra de ordem e um arquétipo. Mas não é um arquétipo do
ódio de uma nação por outra com o qual ela compete. É um arquétipo
do ódio dos imperadores e imperialistas, cuja vontade universal não
pode suportar até mesmo um único povo obstinadamente dissidente,
não importa quão pequeno seja. É preciso de tempo para amadurecer
isso intelectualmente, até que seja completamente compreendido: para
aqueles que estão nas garras dos delírios universais, não há verdade a
menos que seja uma verdade pura e absoluta, sem exceções. E assim a
salvação que eles oferecem não pode ser verdadeira, a menos que seja
pura, sem exceções — o que significa que ela deve ser válida para todas
as nações, para toda mulher e todo homem, em todos os tempos. Permitir
esta pequena divergência, tolerar esta pequena dissensão, significaria
admitir que a salvação universal que foi oferecida à humanidade é falsa.
E ainda assim os judeus insistem em manter-se na dissidência.

222 V. a discussão de Michael Mack sobre a filosofia anti-semita de Kant em Germatt Idealism
and tbe Jetv, Chicago: University of Chicago Press, 2003, pp. 1—41.

21 7
YORAM HAZONY

Este horror para com o aspecto nacional e o particular diminuiu


um pouco entre os cristãos. Onde a Escritura hebraica é firmemente
abraçada, agora encontramos muitos cristãos que são capazes de amar
a particularidade de um único propósito e de uma perspectiva nacio­
nal. É por isso que tantos cristãos devotos, tanto protestantes como
católicos, continuam a ser nacionalistas nos eua e na Grã-Bretanha,
mesmo quando o compromisso com a independência nacional caiu em
profundo descrédito. Eles se identificam pessoalmente com o antigo
Israel, e é essa afinidade que os ensina a amar a particularidade de um
propósito nacional único. É também por isso que tantos nestes países
amam Israel, um amor que não tem nenhuma fonte, exceto em sua
identificação pessoal com a antiga nação israelita no Antigo Testamento.
Mas o horror para com o aspecto nacional e o particular, o ódio
de imperadores e imperialistas, arde hoje em dia no peito dos “ in-
ternacionalistas liberais” . Eles assumiram o anseio por esse império
universal, acreditando nele como os cristãos acreditavam, e como os
marxistas acreditavam. Os judeus permanecerão um objeto de in­
dignação especial para os defensores do império liberal, assim como
foram aos seus antecessores. O coração dos imperialistas liberais é, no
entanto, espaçoso. E seu ódio pelo particular que não se submeterá,
que às vezes tem sido dirigido quase que exclusivamente contra Israel,
tem nos últimos anos descoberto que há muitos outros que desejam
obstinadamente defender sua própria causa e perspectiva únicas. Estas
aderências contra o liberalismo universal podem ser encontradas hoje
nos e u a e na Grã-Bretanha; na França, na Holanda e na Dinamarca;
na República Tcheca, na Polônia, na Hungria e na Grécia; na índia e
no Japão; e em muitos outros países também. E eles serão, todos eles,
por sua vez, odiados como os judeus foram odiados, por quererem
traçar um rumo independente, que é o seu próprio rumo.
Ironicamente, aos olhos dos imperialistas liberais, todos os dissidentes
e todas a dissidências parecem iguais.223 Mas esses movimentos e nações
dissidentes não possuem e nunca possuirão uma única visão de mundo
que eles procuram implementar. Não partilham nenhuma doutrina
universal que ofereça salvação para toda a humanidade. Em alguns

223 V. Yoram Hazony, “There’s No Such Thing as an ‘IlliberaP” , Wall Street Journal, 4 de agosto
de 2017.

218
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

países, a oposição ao império liberal está enraizada em aspirações que


não posso deixar de considerar atraentes e admiráveis, enquanto em
outras são em nome de coisas que considero desagradáveis ou piores.
O que esses povos e movimentos muito diferentes têm em comum é
apenas um desejo de ver sua nação definir seu próprio rumo, para o
bem ou para o mal. Não posso defender todos os movimentos particu-
laristas que surgirem desse desejo de liberdade nacional, nem alguém
deveria ser solicitado a fazê-lo. As nações livres nem sempre fazem as
escolhas certas. Elas avançam por tentativa e erro, perseguindo o que
percebem ser seus próprios interesses, de acordo com suas próprias
tradições nacionais e com seu próprio ponto de vista único. O inte­
resse da humanidade não está em suprimir esses pontos de vista em
nome de alguma doutrina fixa que entronizará ainda outro império
mundial. Nosso interesse é, antes, permitir que as nações, na medida
em que isso é possível, busquem aspirações que sejam originais para
elas. Não estaremos encantados com o que cada nação pode fazer com
essa liberdade. Mas ao tolerar os caminhos de outras nações, seremos
libertados do velho ódio imperialista pelo diferente e diversificado. E
é até possível que cheguemos a ver que um mundo de experimentos e
inovações trará, para as famílias da terra, uma benção maior do que
qualquer desenho universal que pudéssemos escolher.

219
CONCLUSÃO

A virtude do nacionalismo

E
notável que Moisés, que fala com o Senhor do céu e da ter­
ra, no entanto, não inicia nenhuma conquista universal, e se
apresenta como legislador apenas para Israel. Os profetas de
Israel certamente entenderam que a Torá tinha sido dada para o bem
de toda a humanidade. E ainda as Escrituras hebraicas mantêm uma
distinção permanente entre o Estado nacional sancionada por Moisés
no Deuteronômio, que deve governar dentro de fronteiras prescritas;
e a aspiração de ensinar a palavra de Deus às nações do mundo, que
ocorre quando as nações vêm a Jerusalém para aprender os caminhos
de Israel, estando associadas sem a necessidade de uma conquista.
Quão diferente é essa sensibilidade bíblica do que encontramos entre
os impérios da Antigüidade, que sempre têm seus olhos na conquista,
e procuram impor sua visão de paz e prosperidade às nações a qual­
quer custo!
Neste livro, procurei entender o que está por trás da preferência
bíblica por uma ordem política baseada no Estado nacional, uma
preferência que nos tempos modernos se tornou pilar da construção
protestante da civilização ocidental. A instituição do Estado nacional,
como sugeri, oferece uma série de vantagens sobre as formas alterna­
tivas de ordem política que nos são conhecidas: o Estado nacional,

221
YORAM HAZONY

como o império, leva a guerra às fronteiras de uma grande região


politicamente ordenada, estabelecendo um espaço protegido no qual
a paz e prosperidade podem se instalar. Mas ao contrário do império,
o Estado nacional independente inculca uma aversão às aventuras
de conquista em terras distantes. Além disso, uma ordem de Estados
nacionais oferece a maior possibilidade de autodeterminação coleti­
va. Ela estabelece uma vida de competição produtiva entre as nações,
cada uma lutando para alcançar o desenvolvimento máximo de suas
habilidades e as de seus membros individuais. E fornece ao Estado a
única base conhecida para o desenvolvimento de instituições livres e
liberdades individuais. Estas são vantagens consideráveis e, à luz delas,
concluo que a melhor ordem política conhecida para humanidade é,
de fato, uma ordem de Estados nacionais independentes.
Isso sugere que devemos ser nacionalistas. Ou seja, não significa
apenas que se deve ser um patriota, fiel à sua própria nação e preo­
cupado em promover seus interesses. Pelo contrário, o que proponho
é uma visão mais ampla, que reconheça o interesse maior que toda a
humanidade compartilha em um mundo de nações independentes e
autodeterminadas, cada uma perseguindo interesses e aspirações que
são exclusivamente seus. Tal visão está longe de defender um direito
universal utópico em detrimento da independência nacional. Mas ela
fornece um objetivo ou fim muito necessário para a política entre as
nações, apontando para além do mero acúmulo de poder em prol da
vida e do bem. Essa visão pode ser benéfica nas relações exteriores,
em que um nacionalista estará a postos contra projetos imperialistas,
instituições internacionais coercitivas e teorias de direitos universais
autoexeqüíveis — todos os quais transformam as mentes dos estadis­
tas das necessidades e aspirações do povo real que governam, rumo a
intrigas em terras estrangeiras que eles invariavelmente compreendem
muito menos do que acreditam. E isso pode ser benéfico em assuntos
internos, onde um nacionalista terá seus olhos constantemente voltados
para o que deve ser feito para manter e construir o bem-estar mate­
rial de sua própria nação, sua coesão interna, e sua herança cultural
única — tudo isso deve ser diligentemente tratado para que a nação
se fortaleça, tornando-se uma bênção para si mesma e um modelo e
inspiração para as outras.

22 2
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

Em nenhum lugar procurei negar ou justificar as muitas injustiças que


foram feitas por nacionalistas de vários países. Também não acredito
que uma ordem de Estados nacionais fará de nós anjos no futuro. Mas
eu acredito que ser dedicado à causa do império, e ao ideal de trazer o
mundo para o jugo de uma autoridade única e de uma doutrina única,
é defender algo muito pior. Apontei mais de uma vez que foi precisa­
mente esse imperialismo que produziu os maiores destruidores que o
mundo já conheceu, Napoleão, Hitler e Stalin entre eles. Naturalmente,
os meus amigos liberais podem explicar detalhadamente como o seu
próprio imperialismo será diferente de todos os outros que vieram antes,
como desenvolverão novas ferramentas conceituais e novos métodos
de governança, e como isso finalmente nos trará paz e prosperidade.
A experiência pretérita, no entanto, exorta contra a confiança nessas
teorias, mesmo que apreciemos aqueles que os promovem como obra
de pessoas bem-intencionadas. A verdade é que eles são quase todos
utópicos, explodindo de amor por teorias abstratas que vêem diante de
seus olhos. Ao fim, eles serão consumidos pelo ódio do universalismo
ao particular que não se submeterá, como o foram seus antecessores.
No final, eles concluirão que não há alternativa, a não ser coagir os
dissidentes — indivíduos e nações — fazendo-os conformar-se à teoria
universal pela força, para seu próprio bem.
Isso significa que a questão de saber se o nacionalismo é desejável
faz a sua presença ser sentida em dois níveis muito diferentes. Em pri­
meiro lugar, há a grande questão teórica sobre qual é a melhor ordem
política. Eu disse que uma ordem de Estados nacionais é a melhor
forma de ordem política. Mas também enfatizei que tal ordem não
deve ser considerada como uma utopia, um projeto para estabelecer
um mundo político perfeito, já que não pode ser aperfeiçoada no
mundo, e o mundo não pode ser aperfeiçoada por ela. Em vez disso,
o nacionalismo deve ser considerado como uma virtude na ordem
política — o que significa que as condições sob as quais a humanidade
vive são melhoradas à medida que avançamos em direção a um mundo
de Estados nacionais independentes.
Em segundo lugar, há a questão mais pessoal de se o nacionalismo
é uma virtude ou um vício no indivíduo. Durante toda a minha vida,
ouvi dizer que o nacionalismo corrompe a personalidade humana e a

223
YORAM HAZONY

torna viciosa. Esta é uma opinião que eu ouvi de cristãos e muçulmanos,


liberais e marxistas, todos os quais acharam adequado cultivar visões
de mundo em torno de uma unidade política, governada pela única
perspectiva política que é a sua própria. Para todos eles, o nacionalismo
é um vício porque acreditam, como foi dito a Herzl quando ele propôs
um Estado nacional judaico na década de 1890, “ [que] não devemos
criar novas distinções entre as pessoas, nem levantar novas barreiras,
mas sim fazer as antigas desaparecerem” .224 É claro, cada um deles
significa que, uma vez que as barreiras tenham sido derrubadas, será o
seu próprio ponto de vista que prevalecerá nesta nova terra sem fron­
teiras e não o de outra pessoa — dificilmente uma oferta generosa ou
graciosa, quando você pensa sobre isso. E, no entanto, é o nacionalista
que prefere deixar as barreiras no lugar, e é quem acredita que boas
cercas fazem bons vizinhos, isto é, aos seus olhos, viciados.
Minha própria compreensão é diferente. Sempre pensei que ser
nacionalista é uma virtude. Isto não só porque a ordem dos Estados
nacionais é a melhor ordem política, mas é algo admirável a se devotar
para ir adiante nesta velha terra rumo a tal ordem política. Além dis­
so, acredito que orientando-se para uma ordem de Estados nacionais
independentes abriremos o caminho para certos traços positivos de
caráter que são mais difíceis, se não impossíveis, de alcançar, quando
surge o compromisso com o sonho do império. Direi mais algumas
palavras sobre isso.
Como sugeri, o desejo de conquista imperial tem uma longa história
de ser alimentado por teorias universais da salvação da humanidade.
O cristianismo, o islamismo, o liberalismo, o marxismo e o nazismo
serviram, no passado recente, como motores para a construção de um
império. E o que todos eles têm em comum é a afirmação de que as
verdades que trarão libertação às famílias da terra foram finalmente
encontradas, e que o que é necessário agora é que todos abracem a
única doutrina que pode anunciar a tão ansiada redenção.
Os seres humanos são intolerantes por natureza, e seria tolice
atribuir essa intolerância inteiramente a um ou outro ponto de vista

224 Theodore Herzl, The Jewish State, trad. de Harry Zohn, Nova York: Herzl Press, 1970, p.
107.

224
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

político ou religioso. No entanto, se alguém quiser inflamar esta into­


lerância inata, tornando-a dura e venenosa ao máximo grau possível,
dificilmente se poderia fazer melhor do que disseminando uma visão
de mundo segundo a qual há apenas uma doutrina verdadeira, e a
salvação da humanidade depende da submissão do mundo inteiro a
ela. Tais crenças são o combustível do império por causa do tipo de
homens e mulheres que criam: imperialistas que são ao mesmo tempo
revolucionários. Considerando o ideal universal diante de seus olhos
como verdadeiro para todos, estes são indivíduos que não hesitarão
em derrubar quaisquer tradições tribais ou nacionais particularistas
que estiverem no caminho da libertação que eles vêem à mão. Não se
pode ter melhor destruidor do que um indivíduo tomado pelas chamas
do amor de uma verdade universal. E aqui está algo de intelectual­
mente destruidor, se ainda não o for fisicamente, em todos aqueles
que abraçam as doutrinas da salvação universal e os impérios que elas
chamam à existência.
A ordem das tribos e clãs também cultiva um certo tipo de caráter, a
saber, a do lealista a um clã ou tribo em particular. Os membros de uma
tribo ou clã independente tendem a estar profundamente conscientes de
como a viabilidade da comunidade política assenta quase inteiramente
em laços de lealdade mútua. Por esta razão, membros dos clãs e tribos
cultivam um amor por grandes feitos e pelo auto sacrifício realizado
em nome de tal lealdade, e uma compreensão de honra que preza a
lealdade acima de tudo o mais. Mas eles também estão preocupados
com a autoridade e a honra de suas tradições tribais herdadas, que
defendem ferozmente e até mesmo com violência física, ainda com
pouca preocupação de saber se essas tradições, de fato, os direcionam
para o que é verdadeiro ou certo. Tais homens e mulheres são capazes
de enfrentar a ruína de um clã ou tribo vizinho, se sentirem que isso
é necessário para a sua própria sobrevivência e para a preservação de
suas crenças costumeiras. No entanto, como eles não têm nenhuma
aspiração universal, os males que fazem são locais e não de âmbito
geral, podendo levá-los a fazer a paz se estiverem convencidos de que
seu clã ou tribo não está ameaçado.
No ponto médio entre esses dois tipos de caráter — o revolucionário
universalista e o lealista tribal — encontra-se o tipo que é mais compatível

225
YORAM HAZONY

com o nacionalismo. O nacionalista é um particularista, como o homem


da tribo, e sua lealdade ao Estado nacional nos lembra as lealdades da
ordem das tribos e clãs. No entanto, o nacionalista também nos lembra
o imperialista em seu compromisso com um ideal que é maior do que
o bem-estar de seu próprio clã ou tribo, que é a ordem de Estados na­
cionais independentes. Ele participa assim de um esforço político que é
bastante diferente tanto da expansão indefinida do império quanto da
pequena guerra anárquica. E este esforço encoraja nele uma mentalidade
diferente em dois aspectos: primeiro, a ordem dos Estados nacionais
é um ideal que se baseia em uma medida de humildade em relação à
sabedoria e às realizações das nações. O nacionalista, podemos dizer,
conhece duas coisas muito grandes, e mantém ambas em sua alma ao
mesmo tempo: ele sabe que há grande verdade e beleza em suas próprias
tradições nacionais e em sua própria lealdade a elas; e também sabe que
elas não são a soma do conhecimento humano, pois também há verda­
de e beleza a serem encontradas em outras partes do mundo, que sua
própria nação não possui. Esse balanço de fatores permite um ceticismo
moderador em relação à própria herança nacional, que é reconhecida
como o produto de uma história e circunstâncias particulares. E isso
dá origem a uma vontade de considerar, empiricamente, as vantagens
das instituições e costumes de outras nações. Como encontramos, por
exemplo, nos escritos de Selden ou Burke, esse ceticismo moderado não
exclui uma intensa lealdade às próprias tradições nacionais, mas encoraja
o desejo de repará-las e melhorá-las quando necessário. Nem tal visão se
transforma em uma falta de vontade relativista em generalizar a partir
da experiência, como é freqüentemente dito. Ao contrário, cultiva uma
cautela de estender tais generalizações em excesso, que podem deixar de
ser boas quando aplicadas a uma determinada nação em um determinado
momento, por motivos que talvez ainda não sejam visíveis para nós.
Em segundo lugar, o Estado nacional livre, como sabemos, passa
a ser mantido por meio da aliança de diversas tribos e clãs, cada um
dos quais existe graças à lealdade do seu povo à sua própria lide­
rança tribal e tradições. O nacionalista, embora permanecendo fiel
aos interesses e perspectivas de sua própria tribo e clã, no entanto,
reconhece o imenso valor que se encontra na unidade dessas diversas
tribos e na paz que existe entre eles. Este ponto de vista muda seu

226
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

caráter, tornando-o algo bastante diferente daquele das tribos ou


clãs independentes de tempos remotos. Pois enquanto o nacionalis­
ta, por vezes, toma partido nas disputas entre as tribos que ainda
constituem a nação, tende a ver suas reivindicações com uma medida
de desprendimento que nasce de sua preocupação para com a nação
como um todo. Desta forma, o nacionalista aprende um ceticismo
moderado em relação ao ponto de vista de sua própria tribo, e é
mais capaz de ver o mérito dos pontos de vista avançados por outras
tribos. Assim, ele se torna mais atento às vantagens de uma política
empírica e pragmática que leva em conta os respectivos pontos de
vista das diferentes tribos — uma abordagem que leva, em muitos
casos, a uma melhor compreensão do bem da nação do que aquilo
que a perspectiva de qualquer tribo pudesse permitir.
N a alma do nacionalista, então, muitas vezes encontra-se uma
gratificante tensão entre sua intensa lealdade às tradições herdadas de
sua própria nação e tribo e o ceticismo e empirismo que resultam de
sua consciência da diversidade de tradições, tanto dentro das tribos de
sua própria nação como entre nações estrangeiras. Eu digo que esta
tensão é uma grande virtude em qualquer indivíduo, e que os frutos que
dela nascem, em termos de compreensão política e moral, não devem
ser excedidos por aqueles que surgem de qualquer outra disposição.
Não quero dizei; naturalmente, que todos os nacionalistas conseguem
vencer um estreito apego à sua própria tribo. Certamente, muitos não
o fazem. Muito menos suponho que indivíduos céticos e tolerantes não
possam existir entre os imperialistas. Tive o prazer de conhecer mais
do que alguns desses homens e mulheres, que conseguiram escapar da
rigidez racionalista de seus colegas. Pelo contrário, meu ponto é que
teorias da salvação universal — dentre as quais a busca de um império
universal liberal é hoje a mais influente — trabalham incansavelmente
para estabelecer a conformidade e decompor os efeitos das conside­
rações compensatórias, não apenas entre as nações que estão sujeitas
a elas, mas também na alma do indivíduo. É o nacionalismo, isolado
entre as disposições políticas que nos são conhecidas, que oferece um
contrapeso consistente a esse fanatismo do universalismo, estabele­
cendo a diversidade de nações independentes como uma virtude da

22 7
YORAM HAZONY

ordem política e a tolerância e valorização de tal diversidade como


uma virtude no indivíduo.
á*È>

Diz-se que quando Deus chama Abraão, Ele lhe diz “ farei de ti uma
grande nação [...] e em ti serão abençoadas todas as famílias da ter­
ra” .225 Contudo, em nenhum lugar os patriarcas ofereceram um império
sobre a terra, apenas um reino sobre a terra de Israel. As outras nações
que um dia encontrarão seu caminho para Deus e seus ensinamentos o
farão em seu próprio tempo e de acordo com seu próprio entendimento.
Cada nação julga de acordo com uma perspectiva que é a sua. Não há
qualquer ser humano, e não há qualquer nação que possa reivindicar
ter apanhado toda a verdade para todos os outros.
Esta visão mosaica é diametralmente oposta àquela oferecida pelo
imperialismo supostamente esclarecido de Kant, que afirma que a ma­
turidade moral chega com a renúncia da independência nacional e com
a incorporação a um único império universal. Mas não há maturidade
moral no anseio por um império benevolente que governe a terra e cuide
de nós, julgando por nós e impondo seus julgamentos sobre nós. Na
verdade, não é nada além de um apelo para voltar à dependência da
infância, quando nossos pais cuidavam de nós e nos julgavam em todos
os assuntos importantes. A verdadeira maturidade moral só é alcançada
quando nos mantemos sobre nossos próprios pés, aprendendo a nos
governar e a nos defender sem prejudicar desnecessariamente os que nos
cercam e, sempre que possível, prestando também assistência a vizinhos
e amigos. E o mesmo vale para as nações, que atingem uma genuína
maturidade moral quando podem viver em liberdade e determinar seu
próprio curso, beneficiando outros onde isso é viável, mas sem aspirações
de impor seu governo e suas leis às outras nações por meio da força.
Desejando alcançar a maturidade, devemos arcar com os encargos
da liberdade e da independência nacional que recebemos como herança
de nossos antepassados. Façamos tudo o que estiver ao nosso alcance
para garantir que este precioso dom ainda esteja intacto quando chegar
a hora de transmitir essa liberdade nacional aos nossos filhos.

22S Gênesis 12,2-3.


Agradecimentos

E
ste livro foi escrito por sugestão de Steven Grosby, cujo próprio
trabalho sobre o nacionalismo e sua relação com a Bíblia judaica
tem sido uma inspiração para mim. Steven tem me guiado neste
e em muitos outros assuntos já por muitos anos. Tenho o prazer de
ter a oportunidade de expressar minha gratidão por sua orientação,
colaboração e amizade.
O núcleo do livro é uma teoria do Estado nacional que desenvolví
em conversa com Ofir Haivry durante a primeira década de nossa
parceria no Centro Shalem nos idos de 1994. Passamos por muitas
coisas juntos desde então. Eu não podería ter escrito tal livro sem
suas muitas contribuições ao meu pensamento, que estão expressas
ao longo destas páginas.
Meu tratamento de Locke e sua relação com a Bíblia foi alimentado
pelas dicas de Jonathan Silver sobre o assunto. Minha visão da vida
política como fundada nas relações de lealdade mútua também chegou
à maturidade à luz das discussões com minha filha Avital Hazony Levi.
Minha exposição deve muito a ambos.
Eu gostaria de agradecer aos estudiosos que dedicaram tempo
precioso para comentar partes do manuscrito, incluindo Randy Barnett,
Rafael Ben-Levi, Peter Berkowitz, R. Rafi Eis, Steven Grosby, Ofir
Haivry, Yael Hazony, Michael Kochin, Neal Kozodoy, Julius Kerin,

229
YORAM HAZONY

Walter Russell Mead, Joshua Mitchell, Glenn Moots, Paul Rahe, R.


R. Reno, R. Mitch Rocklin, Eric Schliesser, Jerry Unterman, Joshua
Weinstein e Jonathan Yudelman.
Os últimos anos têm sido desafiadores para mim e para a minha
família. Fui abençoado com amigos que estenderam toda forma de
apoio e assistência, o que me tornou possível chegar a este objetivo de
forma plena e com bom ânimo. Gostaria de agradecer especialmente a
Barry e Lainie Klein, Seth e Nealy Fischer, Roger e Susan Hertog, David
e Hila Brog, R. Arnold Scheinberg, Michael Murray, John Churchill
e Alex Arnold, da John Templeton Foundation, R. Jay Marcus, R.
Menachem Zupnik, Bart Baum, Jack Berger, Stephanie Dishal, Ron
Hersh, Fern Baker e Meirav Jones.
Tenho a sorte de ter encontrado inspiração e habilidade em Andrew
Stuart, meu consultor. Lara Heimert, editora da BasicBooks, deu-me
conselhos sábios e apoio entusiasmado em todos os estágios da obra.
Dan Gerstle, da Basic, investiu sua grande sensibilidade e inteligência
na melhoria do livro em todos os sentidos. Keith Urbahn, Jonathan
Bronitsky e Frank Schembari do Javelin e Betsy Dejesu e Carrie Majer,
da Basic, projetaram uma campanha de marketing excepcional, e
Melissa Veronesi habilmente lidou com a produção. Sou grato por
seus esforços, que fizeram deste projeto algo mais significativo do que
eu acreditava que seria em seu lançamento.
Dediquei o livro aos membros da minha tribo, às crianças que minha
esposa, Yael, e eu trouxemos ao mundo e criamos juntos. Ao procurar
ensiná-las, aprendi muito. Daqui tenho colhido parte do que aprendi.

23 0
índice remissivo

A ateísm o 67
Auschwitz 8 ,2 0 1 ,2 0 2 ,2 0 3 ,2 0 4 ,
Adenauer, K onrad 56 , 57 , 58 2 0 5 ,2 0 6
Á frica 4 2 , 54 , 5 5 ,1 2 6 ,1 2 7 ,1 2 9 , A ustrália 170
1 6 7 ,1 7 4 ,2 1 1 ,2 1 4 Á ustria-H ungria 1 2 5 ,1 4 5 ,1 7 6
alaw itas 168 A utodeterm inação 172
A lcorão 162 autodeterm inação coletiva 2 2 ,2 3 ,
Alem anha 37, 54 , 5 5 ,5 6 , 57 , 58, 1 1 9 ,1 3 0 ,1 3 1 ,1 3 2 ,1 3 3 ,
1 2 6 ,1 2 7 ,1 2 9 ,1 4 0 ,1 5 7 , 1 3 5 ,1 6 9 ,1 7 4 ,1 7 5 ,1 8 2 ,
1 5 9 ,1 6 2 ,1 7 6 ,1 8 2 ,1 8 6 , 222
1 8 8 ,2 0 0 ,2 0 2 ,2 0 3 ,2 0 5 , autoritarism o 68
206
Alem anha nazista 55 B
Amenemhet i 28 Babilônia 2 8 , 3 1 ,5 9 ,1 1 0
Am on 31 Ben-Gurion, D avid 1 4 ,2 0 1 ,2 0 2
an arquia 109 Bíblia 1 0 ,2 0 ,2 8 ,2 9 , 30, 31, 32,
À p a z p e r p é t u a (Kant) 11, 4 8 ,1 4 8 , 35, 36, 4 3 ,4 4 , 50, 64, 68,
1 9 8 ,1 9 9 69, 7 3 ,8 0 ,1 0 9 ,1 6 5 ,1 6 9 ,
arbitragem 152 233
Arm ênia 33 Bósnia 1 8 3 ,1 8 5
A ssíria 28, 31 Burke, Edm und 9, 11, 4 7 , 4 8 , 68,

231
YORAM HAZONY

89, 9 5 ,1 2 1 ,1 4 4 , 226 D
Bush, George H. W. 53, 59 D avi (Rei israelense) 33, 35
deslegitim ação 6 4 ,1 9 5 , 2 07, 214,
c 215
D inam arca 3 7 ,2 1 8
Calvino, Jo ã o 35, 38
caráter nacional 1 2 1 ,1 2 2 direito internacional 51, 52, 67,
C arta do Atlântico 1 3 ,4 2 ,1 3 0 180
casam ento 67, 9 7 ,1 4 4 direitos hum anos e liberdades 67
catolicism o 35 diversidade 62, 63, 65, 8 7 ,1 2 2 ,
China 3 5 ,2 1 3 1 3 7 ,1 3 9 ,1 4 0 ,1 4 1 ,1 5 3 ,
Churchill, W inston 1 3 ,4 2 ,4 3 , 234 171, 2 2 7 , 228
cidade-Estado 9 3 ,1 3 6 ,1 4 0
clãs 3 0 ,4 6 , 72, 73, 74, 79, 80, 81, E
82, 83, 8 4 ,9 0 ,9 1 ,9 2 ,9 3 , Edom 30, 33
9 4 ,1 0 1 ,1 0 2 ,1 0 4 ,1 0 5 , 106, Egito 28, 29, 31, 32, 3 3 ,1 1 3 ,1 7 7
1 1 1 ,1 1 9 ,1 3 0 ,1 3 1 ,1 3 2 , Eisenhower, Dwight 1 4 ,1 7 6
1 3 5 ,1 3 6 , 1 5 3 ,1 7 4 ,1 7 5 , Elisabeth i 3 6 ,1 9 7
1 8 2 ,1 8 3 , 2 2 5 ,2 2 6 ,2 2 7 em pirism o 61, 6 8 ,1 3 7 ,1 3 8 , 141,
coesão 22 , 40, 48 , 50, 72, 73, 78, 1 4 4 ,2 2 7
80, 9 3 ,9 4 , 112, 1 4 6 ,1 4 7 , eqüidade 25, 44
1 6 1 ,1 6 6 , 1 6 7 ,1 7 0 ,1 7 4 , Escócia 50
1 7 5 ,1 7 8 ,1 8 4 ,1 8 5 ,2 2 2 , escravidão 2 9 ,1 1 3 ,1 1 5 ,1 1 6 ,1 2 9 ,
230 1 3 3 ,1 4 3 ,1 5 4 , 1 5 5 ,1 7 6 ,
c o m m o n latv 6 9 ,1 2 9 ,1 5 6 ,1 6 5 189
com unidade internacional 17, 65, Espanha 3 7 ,4 7 ,1 2 9 , 134, 205
1 9 6 ,2 1 2 Estado 7 ,1 4 ,1 9 , 2 0 ,2 1 , 23, 25,
com unidades 4 7 , 63 , 7 2 ,1 1 0 ,1 2 2 , 2 8 ,2 9 ,3 0 ,3 1 ,3 3 , 3 6 ,3 9 ,
1 3 6 ,1 6 5 , 230 42, 44, 4 6 ,4 7 , 49, 5 0 ,5 1 ,
co m u n ism o , M a r x ism o 1 5 , 1 7 7 , 52, 54, 55, 56, 57, 58, 59,
1 8 4 ,1 9 2 6 3 ,6 7 ,6 8 ,6 9 ,7 1 ,7 2 , 73,
C on go 171, 1 8 5 ,2 1 4 74, 83, 84, 88, 89, 90, 91,
consentim ento 21 , 25 , 44, 45 , 46, 92, 93, 94, 9 5 ,1 0 0 ,1 0 1 ,
52, 90, 94 , 95, 96, 98 , 99, 1 0 2 ,1 0 3 ,1 0 5 ,1 0 6 ,1 0 7 ,
1 0 0 ,1 4 4 ,1 7 2 1 0 8 ,1 0 9 ,1 1 0 ,1 1 1 ,1 1 2 ,
conservadorism o 68, 91 1 1 3 ,1 1 8 ,1 1 9 ,1 2 0 ,1 2 2 ,
C o n s id e r a ç õ e s s o b r e o g o v e r n o 1 2 3 ,1 2 4 ,1 2 6 ,1 2 7 ,1 2 9 ,
(Mill) 11, 15,
r e p re s e n ta tiv o 1 3 0 ,1 3 1 ,1 3 2 ,1 3 3 ,1 3 4 ,
80, 9 0 ,1 2 3 , 1 4 4 ,1 4 6 1 3 5 ,1 3 6 ,1 3 8 ,1 3 9 ,1 4 0 ,
C onstituição dos e u a 1 5 4 ,1 5 5 , 141, 1 4 3 ,1 4 4 ,1 4 5 ,1 4 6 ,
166 1 4 7 ,1 4 8 ,1 4 9 ,1 5 0 ,1 5 1 ,
Coréia 2 7 ,1 1 3 ,1 7 0 ,2 1 4 1 5 2 ,1 5 3 ,1 5 4 ,1 5 5 , 156,
C uba 128 1 5 9 ,1 6 0 ,1 6 1 ,1 6 2 ,1 6 3 ,
1 6 4 ,1 6 5 ,1 6 6 ,1 6 7 ,1 6 8 ,
1 6 9 ,1 7 0 ,1 7 1 , 1 7 3 ,1 7 5 ,

232
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

1 7 7 .1 7 8 , 1 7 9 ,1 8 1 ,1 8 2 , 4 3 ,4 7 , 5 0 ,5 1 ,5 3 , 54, 55,
1 8 3 ,1 8 4 ,1 8 5 ,1 8 6 ,1 8 7 , 5 6 ,5 7 , 62, 6 7 ,6 8 ,7 4 ,1 1 0 ,
1 8 8 ,1 8 9 ,1 9 2 ,1 9 3 ,1 9 5 , 1 1 8 ,1 1 9 ,1 2 1 ,1 2 4 ,1 2 5 ,
1 9 6 ,1 9 7 ,1 9 8 ,1 9 9 , 200, 1 2 6 .1 2 7 .1 2 8 .1 2 9 .1 3 0 ,
2 0 1 .2 0 3 , 2 0 4 ,2 0 5 ,2 0 7 , 1 3 3 ,1 3 4 ,1 3 9 ,1 4 0 ,1 4 1 ,
2 0 8 ,2 0 9 ,2 1 1 ,2 1 4 ,2 1 5 , 1 4 3 ,1 4 5 ,1 4 7 ,1 4 8 ,1 5 0 ,
2 1 7 ,2 2 1 , 2 2 2 , 2 2 4 , 226, 1 5 2 ,1 5 7 ,1 5 9 ,1 6 0 ,1 6 6 ,
2 2 9 ,2 3 0 ,2 3 3 1 6 7 ,1 7 0 ,1 7 1 ,1 7 2 ,1 7 3 ,
Estado despótico 93 1 7 4 ,1 7 5 ,1 7 6 ,1 7 9 ,1 8 0 ,
E stado im perial 19, 5 5 ,1 0 3 ,1 0 5 , 1 8 1 ,1 8 2 ,1 8 3 ,1 8 4 ,1 8 5 ,
1 0 6 ,1 0 7 ,1 0 8 ,1 0 9 ,1 1 2 , 1 8 6 ,1 8 7 ,1 8 8 ,1 8 9 ,1 9 0 ,
1 2 0 .1 2 2 .1 3 1 .1 3 2 .1 3 3 , 1 9 1 ,1 9 3 ,1 9 6 ,1 9 7 ,2 0 0 ,
1 3 4 ,1 4 0 ,1 4 3 ,1 4 5 ,1 4 6 , 2 0 2 , 2 0 7 ,2 0 8 , 2 0 9 ,2 1 3 ,
1 4 7 .1 4 8 .1 4 9 .1 5 0 .1 5 2 , 2 1 5 ,2 1 6 ,2 2 2 ,2 2 3 ,2 2 4 ,
1 5 3 .1 5 6 .1 5 9 .1 6 0 .1 7 8 , 2 2 6 ,2 3 0
1 8 3 ,1 8 7 ,1 8 8 ,1 9 9 E stados U nidos ( e u a ) 8 ,4 2 , 82,
E stado livre 92, 93, 94 , 9 5 ,1 0 0 , 1 1 3 ,1 5 5 ,1 6 1 ,1 6 3 ,1 7 2 ,
1 0 1 .1 3 3 .1 6 4 .1 6 9 .1 7 0 , 211
181 E stado tribal 93
Estado nacional 7 ,1 9 , 2 0 , 2 1 , 2 3 ,
28 , 30, 33, 36, 47 , 5 0 , 52,
F
54 , 55 , 56 , 57 , 58, 69 , 71,
Faixa de G aza; G aza 1 9 5 ,2 0 6
83, 84, 92, 93, 9 4 ,1 0 2 ,1 1 0 ,
fam ília 7 ,1 4 ,2 2 , 43, 46, 47, 52,
1 1 1 ,1 1 2 ,1 1 8 ,1 1 9 ,1 2 0 ,
67, 74, 77, 78, 79, 80, 82,
1 2 2 ,1 2 3 ,1 2 4 ,1 2 6 ,1 2 7 ,
83, 84, 85, 86, 87, 88, 90,
1 2 9 .1 3 0 .1 3 1 .1 3 2 .1 3 3 ,
9 1 ,9 5 , 96, 97, 9 9 ,1 0 0 ,1 0 1 ,
1 3 4 ,1 3 5 ,1 3 6 ,1 3 9 ,1 4 0 ,
1 0 2 ,1 0 4 ,1 1 0 ,1 1 1 ,1 1 2 ,
1 4 3 .1 4 5 .1 4 8 .1 5 0 .1 5 2 ,
1 1 3 ,1 1 4 ,1 1 5 ,1 1 6 ,1 1 7 ,
1 5 3 ,1 5 4 ,1 6 0 ,1 6 1 ,1 6 2 ,
1 1 8 .1 1 9 .1 2 0 .1 2 1 .1 3 0 ,
1 6 4 .1 6 8 .1 6 9 .1 7 0 .1 7 1 ,
1 4 0 ,1 6 3 ,1 6 4 ,1 6 5 ,1 9 4 ,
1 7 3 ,1 7 5 ,1 7 8 ,1 7 9 ,1 8 1 ,
2 0 1 ,2 3 0 ,2 3 4
1 8 2 ,1 8 3 ,1 8 4 ,1 8 5 ,1 8 6 ,
Federação internacional 1 4 8 ,1 4 9 ,
1 8 7 ,1 8 8 ,1 8 9 ,1 9 2 ,1 9 3 ,
1 5 1 ,1 5 2 ,1 5 3 ,1 5 6 ,1 5 9 ,
1 9 6 ,1 9 7 , 1 9 8 ,1 9 9 ,2 0 0 ,
2 16
2 0 1 .2 0 3 , 2 0 4 ,2 0 7 ,2 1 1 ,
federalism o 1 5 3 ,1 5 5 ,1 5 6 ,1 5 7
2 1 5 ,2 1 7 ,2 2 1 ,2 2 2 ,2 2 4 ,
Ferguson 1 8 ,5 5 , 80, 8 9 ,1 0 7 ,1 0 9 ,
2 2 6 ,2 2 9 , 233
1 2 7 ,1 4 0
autodeterminação coletiva no, 131
Fiilipe li 33
autodeterminação sob, 130
Filipinas 128
Estado não-nacional 1 6 7 ,1 7 9
Filosofia da ordem política 72
Estado neutro 7 ,1 6 0 ,1 6 1 ,1 6 2 ,
força coercitiva 181
1 6 4 ,1 6 5 ,1 7 0
Fortescue, John 3 9 ,4 0 ,4 7 ,4 9 ,6 8
Estados árabes 2 10
França 1 1 ,1 5 , 20, 35, 37, 50, 57,
Estados nacionais 7 ,1 8 , 20 , 21 , 23,
58, 67, 89, 9 5 ,1 2 4 ,1 2 6 ,
3 3 ,3 5 ,3 6 ,3 7 ,3 8 ,4 1 ,4 2 ,

233
YORAM HAZONY

1 2 7 ,1 3 4 ,1 3 6 ,1 4 0 ,1 5 7 , Guerra Civil Am ericana 175


1 6 0 ,1 6 5 ,1 6 6 ,1 6 7 ,1 6 8 , Guerra do G olfo 2 1 2
1 7 0 ,1 8 2 ,1 8 8 ,1 9 7 ,2 0 6 , G uerra dos Trinta A nos 36, 37, 38,
218 1 2 5 ,1 9 7
Friedm an, T hom as 65, 6 6 ,1 1 3 , G uerras N apoleôn icas 125
216
fronteiras 15, 29 , 30, 3 2 ,4 7 , 48,
H
4 9 ,5 0 ,5 1 ,5 8 ,5 9 ,8 1 ,9 3 ,
H aberm as, Jürgen 6 0 ,1 6 2 , 200
1 0 2 ,1 0 6 ,1 1 0 ,1 2 0 ,1 2 4 ,
H absbu rgos 1 9 7 ,2 0 0
1 2 8 ,1 3 1 ,1 3 2 ,1 3 6 ,1 4 1 ,
H am urabi 29
1 4 2 ,1 4 4 ,1 4 9 ,1 5 1 ,1 6 0 ,
Fíayek, Friedrich 50, 5 1 ,1 4 1 ,1 4 8
1 6 6 ,1 6 7 ,1 6 9 ,1 8 1 ,1 8 2 ,
Henrique v iu 3 6 ,4 0 , 50
1 8 3 ,1 8 5 ,1 8 6 ,1 8 7 ,1 8 8 ,
2 1 5 ,2 2 1 ,2 2 2 ,2 2 4 herança cultural 22, 85, 86, 87,
Fukuyam a 10, 65, 66 1 2 2 ,1 2 3 ,1 2 8 , 1 3 0 ,1 3 1 ,
1 3 2 ,1 5 4 ,1 5 6 ,1 6 4 ,1 6 6 ,
1 6 9 ,1 7 4 ,1 8 8 ,2 2 2 ,2 3 0
G Herder, J. G. 9 , 1 0 ,1 1 ,1 2 , 8 0 ,1 2 0 ,
Gandhi, M ah atm a 1 4 ,1 9 121,122
globalism o 19 Herzl, Theodor 9, 14, 9 0 ,1 0 7 ,1 9 7 ,
governança global 65 2 0 1 ,2 2 4
governo, p a s s im 1 1 ,1 5 ,1 7 , 20 , 30, Hitler, A dolf 20, 54, 5 5 ,1 2 7 ,1 7 6 ,
3 8 ,3 9 ,4 0 ,4 1 ,4 2 ,4 3 ,4 4 ,
182, 20 0 , 2 0 4 ,2 1 6 ,2 1 7 ,
4 5 ,4 6 , 4 9 , 57, 60, 61, 66,
223
68, 71, 72, 73, 80, 88, 89,
H obbes, T hom as 9 ,1 1 , 4 8 ,4 9 , 88,
9 0 ,9 1 ,9 2 ,9 3 ,9 4 ,1 0 1 ,1 0 2 ,
9 0 ,9 4 ,9 5 ,1 4 4 ,2 2 9
103, 1 0 8 ,1 1 0 ,1 1 1 ,1 1 2 ,
H olan da 2 0 , 37, 40, 50, 57, 58,
1 1 3 ,1 1 7 ,1 1 9 ,1 2 0 ,1 2 1 ,
1 2 7 ,1 2 9 ,1 3 9 ,1 7 2 ,1 8 8 ,
1 2 2 ,1 2 3 ,1 2 9 ,1 3 2 ,1 3 6 ,
1 9 7 .2 0 1 .2 0 6 .2 1 8
1 3 7 ,1 4 1 ,1 4 3 ,1 4 4 ,1 4 5 ,
H olocau sto 20, 5 8 ,1 7 7 , 202
1 4 6 ,1 4 8 ,1 4 9 ,1 5 0 ,1 5 1 ,
H onório de A ugsburgo 39
1 5 2 ,1 5 3 ,1 5 4 ,1 5 5 ,1 5 6 ,
H um e, D avid 77, 8 9 ,1 2 1 ,1 4 0 ,
1 5 7 ,1 5 8 , 1 5 9 ,1 6 5 , 166,
144
1 7 1 ,1 7 6 ,1 8 1 ,1 8 2 ,1 8 6 ,
H ungria 35, 5 0 ,1 2 5 ,1 4 5 ,1 7 6 ,
1 8 7 ,1 8 8 ,1 9 0 ,1 9 7 , 200,
2 1 2 .2 1 3 .2 1 8
2 0 3 ,2 0 4 , 2 0 9 ,2 1 2 ,2 1 3 ,
228
Grã-Bretanha 8 , 1 3 , 1 5 , 1 8 , 20 , 24, I
2 7 , 55 , 57, 61 , 64 , 65 , 68, idealism o 4 1 ,1 4 1 ,1 7 8 ,1 7 9
69, 8 2 ,1 1 7 ,1 2 6 ,1 2 7 ,1 2 9 , Iêmen 171
1 3 4 ,1 4 2 , 1 4 3 ,1 4 6 ,1 5 4 , Uuminismo 57
1 5 7 ,1 6 0 ,1 6 5 ,1 6 6 ,1 6 7 , im igração 52, 62, 6 7 ,1 0 0 ,1 5 1 ,
170, 1 7 5 ,1 8 8 ,2 0 1 ,2 0 2 , 1 5 2 ,2 1 3
2 0 6 ,2 1 1 ,2 1 2 ,2 1 3 ,2 1 8 im perialism o 7 ,1 5 ,1 6 ,1 8 ,1 9 , 21,
Grécia 33 , 5 0 ,5 3 ,1 1 3 ,1 3 9 ,1 9 7 , 2 4 ,4 3 ,5 5 ,5 7 ,5 9 , 6 0 ,6 1 ,
218 68, 6 9 ,1 2 6 ,1 2 7 ,1 2 8 ,1 2 9 ,

234
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

1 3 6 ,1 3 7 ,1 4 3 ,2 1 6 ,2 2 3 , 2 1 6 , 2 1 7 ,2 2 8 ,2 2 9
228 K osov o 1 8 3 ,1 8 5 ,2 1 4
Império 7 , 1 6 , 1 7 , 2 0 , 2 1 , 33, 34, Krautham mer, Charles 16
36 , 3 7 ,4 1 , 54 , 57, 5 8 ,1 0 1 , Kuhn, T hom as 1 9 5 ,1 9 6
1 0 9 ,1 2 5 ,1 2 6 ,1 2 7 ,1 2 8 ,
1 4 3 ,1 7 7 ,1 9 7 ,2 0 0
L
Austríaco 125
lealdade 8 1 ,9 4 ,1 1 9 ,1 6 4 ,2 2 6
Austro-Húngaro 16
lei universal 105
Romano 16,20,34,37,54,57,197,
Líbano 1 7 1 ,1 9 4 ,1 9 5 , 206
200
L i b e r a l i s m o (von M ises) 7 ,1 1 ,5 1 ,
Inglaterra 1 5 ,2 0 , 35 , 36 , 37, 39,
5 9 ,1 4 8
4 0 ,4 7 ,4 9 ,5 0 ,1 2 9 ,1 3 4 ,
liberdade 7 ,1 1 ,1 4 , 1 9 , 2 0 , 2 2 , 2 5 ,
1 4 0 .1 4 4 .1 5 5 .1 6 5 .1 6 8 ,
2 7 ,3 1 ,3 5 , 3 6 ,3 9 ,4 0 ,4 2 ,
197
4 3 .4 4 .4 9 , 50, 53, 5 6 ,6 2 ,
I n P r a is e o f t h e L a w s o f E n g l a n d
6 5 ,6 9 ,7 3 , 84, 8 8 ,9 1 ,9 2 ,
(Fortescue) 39
9 3 ,9 9 ,1 0 0 ,1 0 1 ,1 0 5 ,1 0 6 ,
instituições livres 1 5 ,2 3 ,1 4 3 ,1 4 4 ,
1 0 9 ,1 1 2 ,1 1 3 ,1 1 6 ,1 1 7 ,
1 4 5 ,1 4 6 ,1 4 7 ,1 6 9 ,2 2 2
1 1 8 ,1 1 9 ,1 2 0 ,1 3 0 ,1 3 1 ,
integridade interna 85, 86, 8 7 ,1 1 9 ,
1 3 2 ,1 3 3 ,1 3 4 ,1 3 5 ,1 3 6 ,
1 2 2 ,1 2 3 ,1 2 8 ,1 3 0 ,1 3 1 ,
1 3 7 .1 4 0 .1 4 3 .1 4 4 .1 4 6 ,
1 4 5 ,1 5 3 ,1 5 4 ,1 7 0
1 5 0 ,1 5 3 ,1 5 5 ,1 6 5 ,1 6 9 ,
Irã 169, 2 0 7 , 2 0 9 ,2 1 0 ,2 1 3 , 2 1 4 ,
1 7 2 ,1 7 7 ,1 7 9 ,1 8 2 ,1 8 3 ,
215
1 8 4 ,1 8 5 ,1 8 8 ,1 8 9 , 190,
Iraque 64 , 6 6 ,1 6 7 ,1 6 8 ,1 6 9 ,1 7 1 ,
1 9 3 ,1 9 6 ,1 9 7 ,1 9 8 ,1 9 9 ,
1 8 3 ,1 8 5
2 0 1 ,2 0 5 ,2 0 7 ,2 0 8 ,2 1 3 ,
Irlanda 5 0 ,1 1 3 ,1 6 0 ,1 7 4
21 9 , 2 2 8 ,2 3 1
Islã 34, 35, 87
liberdade nacional e autodeterm i­
Israel 8 ,1 4 , 2 7 , 2 8 , 2 9 , 30, 31 , 32,
n ação 9 3 ,1 4 3
33, 34, 36, 3 9 ,4 2 , 50, 53,
liberdades individuais 23, 6 8 ,1 1 8 ,
64 , 8 0 ,9 1 ,9 2 ,1 1 0 ,1 1 3 ,
1 3 4 .1 4 3 .1 4 4 .1 4 5 .1 4 6 ,
1 1 8 ,1 2 0 ,1 2 4 ,1 3 5 ,1 3 8 ,
1 6 1 ,1 6 7 ,1 6 8 ,2 2 2
1 3 9 .1 4 9 .1 5 4 .1 5 7 .1 6 8 ,
Lincoln 1 5 4 ,1 7 6
1 6 9 ,1 7 0 ,1 7 1 ,1 7 6 ,1 9 3 ,
língua 30, 32, 47, 55, 68, 82, 87,
1 9 4 ,1 9 5 ,1 9 6 ,1 9 7 ,1 9 8 ,
8 8 ,9 3 ,9 7 ,1 0 0 ,1 0 9 ,1 1 0 ,
2 0 1 ,2 0 2 ,2 0 3 , 2 0 4 ,2 0 5 ,
1 1 2 ,1 1 5 ,1 3 0 ,1 3 2 ,1 3 5 ,
2 0 6 ,2 0 7 ,2 1 0 ,2 1 1 ,2 1 2 ,
1 4 3 ,1 4 6 ,1 4 7 ,1 4 9 ,1 5 3 ,
2 1 3 ,2 1 5 ,2 1 6 ,2 1 8 ,2 2 1 ,
1 5 4 ,1 5 6 ,1 6 5 ,1 6 6 ,1 6 7 ,
228
1 6 9 ,1 7 0 ,1 7 1 ,1 7 6 ,1 8 8 ,
Itália 50, 5 3 ,1 2 9 ,1 9 7
200
livre com ércio 142
K Locke, John 7, 9 ,1 1 ,4 2 ,4 4 , 45,
K ant, Immanuel 8, 9 ,1 1 ,4 1 , 48, 4 6 .4 7 .4 8 .4 9 , 5 0 ,5 1 ,8 8 ,
5 7 ,1 4 8 ,1 9 6 ,1 9 8 ,1 9 9 , 200, 90, 94, 9 5 ,1 4 4 , 22 9 , 233
2 0 2 ,2 0 7 ,2 0 8 ,2 0 9 ,2 1 0 , Lutero, M artinho 38

235
YORAM HAZONY

M 2 2 6 ,2 2 7 , 2 2 9 ,2 3 3
M azzini, Giuseppe 9 , 1 0 , 1 2 , 1 5 , N ações U nidas ( n u ) 52, 60, 67,
19, 50 1 8 9 ,1 9 7 ,2 1 2 ,2 1 3
McKinley, W illiam 128 não-interferência 1 8 1 ,1 8 2
m étodo cartesiano 41 N aom i (figura bíblica) 33
M ill, John Stuart 9, 11, 15, 80, 90, N asser, G am ai Abdel 177
110, 123, 140, 144, 146, 171 ,1 7 2 , natureza hum ana 5 3 ,1 0 7 ,1 1 8
1 9 8 ,2 2 9 negociações bilaterais 189
M u n d o in d iv is ív e l c o m lib e r d a d e e negócios em presariais 52
(Adenauer) 56
ju s tiç a p a ra t o d o s neonacionalism o 68
M uro de Berlim 15 N igéria 171
N oruega 2 7
N ov a ordem m undial 1 7 ,4 3 , 59,
N
6 6 ,1 3 0
N aç ão 1 5 ,1 7 ,1 9 , 22, 25 , 28 , 29,
30, 31, 32, 33, 34, 35, 36,
3 8 ,3 9 , 4 0 ,4 1 , 4 2 , 4 6 , 4 7 , O
49 , 50, 58, 64, 66 , 67 , 68, O fim d a h is t ó r ia e o ú l t i m o h o ­
69, 74, 75, 80, 81, 82, 83, m em (Fukuyam a) 65, 66
84, 85, 86, 87, 88, 92, 93, O L e x u s e a O liv e ir a (Friedman)
94, 95, 9 9 ,1 0 0 ,1 0 7 ,1 0 8 , 65, 66
1 0 9 ,1 1 0 ,1 1 1 ,1 1 2 ,1 1 3 , O n N a t u r a l L a w a n d N a t io n a l
1 1 5 ,1 1 6 ,1 1 7 ,1 1 8 ,1 1 9 , L a w (Selden) 40
1 2 0 ,1 2 1 ,1 2 2 ,1 2 3 ,1 2 5 , O rganização do T ratado do A tlân­
1 2 8 ,1 2 9 ,1 3 0 ,1 3 1 ,1 3 2 , tico N orte ( o t a n ) 159
1 3 3 ,1 3 4 ,1 3 5 ,1 3 6 ,1 3 7 ,
1 3 8 ,1 3 9 ,1 4 3 ,1 4 4 ,1 4 5 ,
P
1 4 6 ,1 4 7 ,1 4 9 ,1 5 2 ,1 5 3 ,
Paquistão 124
1 5 4 .1 5 6 .1 6 0 .1 6 1 .1 6 2 ,
patriotism o 19, 5 5 ,1 4 6
1 6 3 ,1 6 4 ,1 6 5 ,1 6 6 ,1 6 7 ,
patriotism o constitucional 162
1 6 8 ,1 6 9 ,1 7 0 ,1 7 1 ,1 7 2 ,
paz e prosperidade 19, 28, 34, 59,
1 7 3 ,1 7 4 ,1 7 5 ,1 7 6 ,1 7 8 ,
6 6 ,1 0 1 ,1 0 3 ,1 0 5 ,1 0 6 ,1 8 7 ,
1 7 9 ,1 8 0 ,1 8 1 ,1 8 3 ,1 8 4 ,
2 2 1 ,2 2 2 ,2 2 3
1 8 5 ,1 8 6 ,1 8 7 ,1 8 9 ,1 9 1 ,
Peres, Shimon 65, 66
1 9 2 ,1 9 3 ,1 9 6 ,2 0 1 ,2 0 2 ,
Políbio (historiador grego) 33
2 0 3 , 2 0 5 ,2 0 9 ,2 1 1 ,2 1 3 ,
Polônia 35, 37, 50, 53, 5 5 ,1 1 3 ,
2 1 5 ,2 1 7 ,2 1 8 ,2 1 9 ,2 2 2 ,
1 2 5 ,1 6 0 , 2 0 2 ,2 1 2 ,2 1 3 ,
2 2 6 , 2 2 7 ,2 2 8 , 2 3 0 ,2 3 1
218
nacionalism o 1, 3, 4, 7, 8, 1 3 ,1 4 ,
populações m inoritárias 186
1 5 ,1 8 ,1 9 , 2 0 ,2 1 ,2 4 , 27,
Primeira G uerra M undial 53, 54,
36, 50, 54 , 55, 57 , 62, 63,
66, 67, 6 9 ,1 2 5 ,1 2 9 ,1 3 7 , 1 2 5 ,1 2 6 , 1 2 7 ,1 7 2 ,1 7 6
Protestantism o 3 5 ,1 6 5
1 4 4 .1 4 7 .1 4 8 .1 6 1 .1 6 2 ,
1 6 5 ,1 7 0 , 1 7 7 ,1 9 1 ,1 9 2 ,
1 9 3 ,2 1 5 , 2 2 1 ,2 2 3 ,2 2 4 , R

236
A VIRTUDE DO NACIONALISMO

raça 25, 3 2 ,2 1 6 subsidiariedade 1 7 ,1 5 6 ,1 5 7


r a is o n d ’état 178 Sudão 171, 214
R and, Ayn 1 0 ,4 8 Suécia 37
R aw ls, Jo h n 4 8 , 51 Suíça 2 7 , 3 7 ,1 1 3
R eagan, R onald 14
religião 20 , 30, 32, 3 4 ,4 9 , 62, 67,
T
68, 82, 87, 90, 91, 9 7 ,1 0 0 ,
Terceiro M undo 8 ,2 0 7 , 2 09, 210,
1 1 0 ,1 1 5 ,1 3 0 ,1 3 1 ,1 3 2 ,
215
1 3 5 ,1 3 9 ,1 4 4 ,1 4 6 ,1 4 7 ,
Terceiro Reich 54, 200
1 4 9 ,1 5 3 ,1 5 4 ,1 5 6 ,1 6 4 ,
Thatcher, M argaret 1 4 ,1 7 , 4 0 , 56,
1 6 5 ,1 6 7 ,1 6 8 ,1 6 9 ,1 7 1 ,
6 5 ,1 4 1 ,1 4 2 ,1 4 3
1 7 6 ,1 8 4 ,1 9 2 ,1 9 7 ,2 1 5
T he N e w M id d le E a st 66
R epública H olandesa 93
República Tcheca 1 1 3 ,2 1 2 ,2 1 3 ,
tolerância 23, 25, 62, 6 3 ,1 9 3 , 20 7 ,
218
228
R evolução Francesa 61
Torá (t o r a h ) 1 6 2 ,1 6 3 , 221
R oosevelt, Franklin 1 3 ,4 2 ,4 3 ,1 3 0
transnacionalism o 17, 60
R oosevelt, T heodor 8 9 ,1 0 7 ,1 9 7
T ratado de M aastricht 2 7 ,2 8 ,1 5 6 ,
R ousseau, Jean-Jacques 4 8 , 88
157, 200
R ússia 35, 55 , 5 8 ,1 2 5 ,1 2 6 ,1 7 6 ,
tribos e clãs 30, 74, 83, 90, 91, 94,
182
1 0 1 ,1 0 2 ,1 0 6 ,1 1 9 ,1 3 0 ,
Rute (figura bíblica) 33
1 3 2 ,1 3 5 ,1 5 3 ,1 7 4 ,1 7 5 ,
1 8 2 ,1 8 3 ,2 2 5 ,2 2 6
s Tribunal Penal Internacional 64,
Sacro Im pério Rom ano-G erm ânico 212
34 , 54, 5 7 ,2 0 0 tributação 9 1 ,1 4 2
Sargon (Rei da A cádia) 101 Turquia 1 6 0 ,1 7 0 ,1 7 1 ,1 7 7 ,2 0 7 ,
Segunda G uerra M undial 2 0 ,2 8 , 2 0 9 ,2 1 0 ,2 1 4 ,2 1 5
3 2 ,4 2 , 53 , 5 4 ,1 1 7 ,1 2 5 ,
1 2 7 ,1 2 9 ,1 3 0 ,1 5 9 ,1 9 4 ,
1 9 9 ,2 0 0 ,2 0 2
u
U nião Européia 1 3 ,1 6 ,1 7 ,2 3 ,2 7 ,
Selden, Jo h n 3 6 ,3 8 , 4 0 , 4 7 , 4 9 , 68,
2 8 ,5 6 , 58, 60, 6 3 ,6 5 , 67,
69 , 8 9 ,1 3 7 ,2 2 6
1 3 6 ,1 4 2 ,1 5 6 ,1 5 8 ,1 5 9 ,
separação entre n ação e Estado
1 8 8 ,1 8 9 ,1 9 7 ,2 0 0 ,2 0 3 ,
161
2 0 7 ,2 0 9 ,2 1 2 ,2 1 3 ,2 1 6
Sérvia 6 6 ,1 1 3 ,1 2 7 ,1 5 9 ,1 8 5 ,2 1 2 ,
U nião Soviética ( u r s s ) 2 8 ,1 4 7 ,
214
1 6 9 ,1 7 1
Síria 1 6 8 ,1 6 9 ,1 7 1 ,1 8 3 ,1 8 5 ,2 1 1 ,
utopia 223
214
Smith, A dam 30 , 35 , 36 , 55, 81,
8 9 ,1 2 1 ,1 4 0 ,1 7 1 ,2 1 6 V
soberania 1 6 ,1 7 , 34 , 3 8 ,4 2 ,1 4 8 , Vattel, Em er de 9 , 1 0 ,1 1 ,1 2 , 37,
1 5 8 ,1 8 1 1 3 4 ,1 3 5
Stalin, Josep h 1 8 2 ,2 2 3 Vedas 162

23 7
YORAM HAZONY

Versalhes 1 7 4 ,1 7 6 ,1 7 7
vínculos de afetividade 8 0 ,1 2 1 ,
122
von M ises, Ludw ig 9, 11, 51, 60,
6 1 ,1 4 8

w
W estfália 37
Wilhelm ii (Kaiser Alem ão) 54,
126
W ilson 1 3 ,1 8 ,2 3 ,4 3 ,1 2 8 ,1 2 9 ,
1 4 8 ,1 7 2 ,1 7 3 ,1 7 4 ,1 7 6 ,
1 7 7 ,1 7 8

X
X iitas 1 6 7 ,1 6 8

Z
Zw inglio, Ulrich 35

238

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