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Daniel Kosinski*
RESUMO
Este artigo objetiva analisar as motivações de ordem geopolítica e monetária que
fundamentaram a decisão do governo George W. Bush em engendrar guerra contra
o Iraque de Saddam Hussein em 2003. Em rigor, as raízes desta iniciativa dizem
respeito à decisão tomada por Saddam em meados do ano 2000 de substituir o
dólar pelo euro como moeda padrão ou de referência no comércio internacional
do petróleo iraquiano. Com isso, ele abriu precedente que, caso fosse seguido
pelos governos de outros grandes países exportadores de petróleo, ameaçaria a
preponderância do dólar como moeda central da ordem monetária internacional
e, consequentemente, todas as importantes e exclusivas vantagens que este fato
confere à autoridade soberana que a controla, o governo dos Estados Unidos.
Não obstante, sendo esta posição privilegiada do dólar um dos pilares centrais do
poder e da hegemonia global americana, e tendo sido os principais estrategistas
e colaboradores do presidente os proponentes de estratégias governamentais de
perpetuação inconteste daquela hegemonia no século XXI, a invasão do Iraque
e a deposição de Saddam Hussein foram definidos como objetivos geopolíticos
essenciais daquele governo. Assim, os ataques terroristas do 11 de Setembro de 2001
e a subsequente “Guerra ao Terror” proclamada pelo presidente Bush forneceram
o pretexto para a guerra, legitimando politicamente a execução de iniciativas que
já haviam sido decididas anteriormente. Neste sentido, a Guerra do Iraque possuiu
um objetivo geopolítico fundamental, embora raramente reconhecido, de ter sido
uma guerra monetária dos Estados Unidos contra o euro.
Palavras-chave: Guerra do Iraque. Governo George W. Bush. Dólar. Euro.
ABSTRACT
This paper aims to analyze the monetary and geopolitical reasons behind the decision
of George W. Bush´s administration to wage war against Saddam Hussein´s Iraq, in
2003. The origins of this initiative refer to a decision taken by Saddam in mid-2000 to
____________________
* Bacharel em Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), Mestre em Ciência Política (PPGCP/UFF), especialista
lato sensu em Políticas Públicas (PPED/UFRJ), doutorando em Economia Política Internacional
(PEPI/UFRJ). Autor do livro O Governo JK e as raízes getulistas da orientação do capitalismo no
Brasil (Ed. Prismas, 2015). Contato: <danskos@gmail.com>.
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replace the dollar by the euro as the standard currency or reference in international
commerce of Iraqi oil. By doing so, he opened up a practicethat, if followed by the
governments of other major oil-exporting countries, would threaten the prevalence
of the dollar as the fundamental currency of the international monetary order and,
consequently, all the important and unique advantages that this very fact grants to
the sovereign authority which controls it, the US government. Nevertheless, being
the dollar´s privileged position one of the main pillars of U.S. power and global
hegemony, and being the main president Bush´s strategists and contributors the
proponents of the governmental strategies aiming at the incontestable perpetuation
of its hegemony through the 21th century, invade Iraq and remove Saddam Hussein
were defined as major geopolitical objectives of that administration. Thus, the
terrorist attacks of the 9/11 and the subsequent “War on Terrorism” proclaimed by
president Bush provided the perfect pretext for the war, granting political legitimacy
for the enforcement of initiatives, which were previously decided. So, the Iraq War
held an essential geopolitical objective, although seldom recognized, of being a U.S.
monetary war against the euro.
Keywords: Iraq War. George W. Bush administration. Dollar. Euro.
RESUMEN
Este estudio tiene como objetivo analizar las motivaciones geopolíticas y monetarias
que fundamentaron la decisión del presidente George W. Bush para engendrar
la guerra contra el Irak de Saddam Hussein en 2003. Estrictamente hablando, las
raíces de esta iniciativa se refieren a la decisión tomada por Saddam a mediados de
2000 para reemplazar al dólar con el euro como moneda estándar o de referencia
en el comercio internacional de petróleo iraquí. Con eso, se abrió precedente que,
si seguidos por los gobiernos de otros principales países exportadores de petróleo,
amenazaría al dominio del dólar como moneda central del orden monetario
internacional y consecuentemente, todas las ventajas importantes y únicas que
esto confiere a la autoridad soberana que la controla, el gobierno de los Estados
Unidos. No obstante, una vez que esta posición privilegiada del dólar constituye
uno de los pilares centrales del poder e de la hegemonía estadunidense, y siendo
los principales estrategas e contribuyentes del presidente Bush los proponentes de
estrategias gubernamentales de perpetuación incontestada de esa hegemonía en
el siglo XXI, la invasión del Irak y la deposición de Saddam Hussein fueron definidos
como objetivos geopolíticos esenciales de eso gobierno. Así, los ataques terroristas
del 11 de setiembre de 2001 y la consecuente “Guerra al Terror” proclamada por el
presidente Bush proporcionaron el pretexto para la guerra, legitimando políticamente
la ejecución de iniciativas que ya habían sido decididas anteriormente. Siendo así, la
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1 INTRODUÇÃO
1 Neste caso, também foi fator extremamente relevante para o ataque o desejo de Saddam
Hussein de impedir a “exportação” da Revolução Islâmica iraniana no Iraque, cuja população é
majoritariamente xiita, tal qual a do Irã.
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2 Isso faz das reservas estimadas do Iraque o quinto maior estoque de petróleo do mundo.
3 “Isso se compara com aproximadamente 12% para Europa a antiga União Soviética, 10% para a
África, 9% para as Américas Central e do Sul, 5% para América do Norte e 3% para Ásia oriental e
do sudeste, motivo suficiente para explicar a permanente significância geopolítica do Golfo”.
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da Arábia Saudita, fundado pelo Rei Abd al-Aziz ibn Saud no ano anterior. Então, a
Grã-Bretanha era a potência dominante no Oriente Médio e detinha controle direto
ou indireto sobre todos os reinos da área exceto o saudita, onde se acreditava não
haver petróleo algum.
Todavia, a atenção do governo americano pelo Golfo foi despertada quando,
durante a Segunda Guerra Mundial, o presidente Franklin Roosevelt percebeu que
a auto-suficiência americana em petróleo estava com os dias contados e que, no
futuro, o país dependeria de abastecimento estrangeiro. Então, declarando que
“a defesa da Arábia Saudita é vital para a defesa dos Estados Unidos”[Informação
verbal], ele objetivou fortalecer a posição política americana sobre ela, visando
assegurar para os americanos o monopólio sobre as suas reservas energéticas. Para
isso, após tentar sem sucesso nacionalizar a concessão da companhia californiana,
ele adotou a solução de uma “parceria público-privada” na qual a diplomacia
americana abriria as portas para investimentos privados das empresas do país no
Golfo Pérsico enquanto, às empresas, caberia produzir e transportar o petróleo.
Para o êxito dessa estratégia, era essencial conseguir a aprovação do monarca
saudita. Então, os dois se encontraram num navio da Marinha americana em fevereiro
de 1945, após a reunião de Roosevelt com os demais aliados na Conferência de
Yalta, na Criméia soviética. Deste encontro, saiu um “acordo tácito” – pois não foi
firmado nenhum documento ou registro formal dele – pelo qual os Estados Unidos
proveriam segurança militar para a Arábia Saudita e a própria família real – contra
inimigos externos e internos – em troca do acesso permanente e privilegiado das
empresas americanas ao petróleo saudita.
Como consequência, os Estados Unidos instalaram a sua primeira base aérea
na Arábia Saudita em 1946 e, desde então, os sauditas têm sido um dos maiores
compradores de armas e equipamentos militares e aliados fundamentais dos
Estados Unidos (KLARE, 2008, p. 183-184)4. E na medida em que foram descobertos
os maiores poços de petróleo naquele país, também os maiores do mundo5, outras
empresas americanas se juntaram à SOCAL para constituir a ARAMCO, Arabian-
American Oil Company, que, em breve, se tornaria a maior empresa produtora de
petróleo do mundo, posição que, renomeada Saudi Aramco e 100% nacionalizada
pelo governo, ainda ocupa em nossos dias lugar de destaque.
Não obstante, desde aquele momento, seguidos governos dos Estados
Unidos trabalharam incessantemente para aprofundar a sua presença militar e
controle sobre o Golfo Pérsico. Em 1953, por exemplo, seus órgãos de inteligência
cooperaram com os britânicos na organização da deposição do governo do
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presença militar americana no Golfo que ele já foi descrito como um “lago
americano” (KLARE, 2008, p. 177-187).
A importância imediata do petróleo do Golfo Pérsico para o consumo
dos próprios Estados Unidos, embora significativa, não chega a ser decisiva.
Na época da Guerra do Iraque, ele correspondia a aproximadamente 24%
do total importado pelo país. Em rigor, como parte da própria estratégia de
segurança americana de assegurar que suas fontes primárias de abastecimento
de energia sejam diversificadas e se situem nas redondezas mais imediatas do
seu território, isto é, principalmente no entorno do Oceano Atlântico, a maioria
das suas importações vem de países como Canadá, México, Venezuela, Angola
e Nigéria.
Todavia, para os Estados Unidos, controlar o fluxo do petróleo do Golfo Pérsico
significa deter o poder de arbitrar sobre o abastecimento energético de diversos
países industrializados ou aspirantes a sê-lo. Nações asiáticas como a China, a Índia,
o Japão e a Coréia do Sul que, não sendo autossuficientes em petróleo, precisam
importá-lo em grandes quantidades, têm nos países daquela região os fornecedores
de bem mais que a metade das suas necessidades6. Outros, como França, Egito e
África do Sul, têm como principal fonte de abastecimento energético algum dos
países do Golfo Pérsico. Portanto, para os americanos, controlá-lo militarmente
e aos seus arredores representa posição única e privilegiada de, eventualmente,
projetar poder e exercer pressão sobre rivais em potencial. Por isso, perpetuar
este controle representa condição fundamental para a manutenção da hegemonia
americana sobre o mundo.
6 Em 2014, os países do Golfo Pérsico forneceram à China mais da metade do petróleo importado
pelo país; à Índia, mais de 60%; e ao Japão e à Coréia do Sul, mais de 80%.
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Porém, em 1977, enquanto a inflação nos Estados Unidos crescia a cada ano
durante o governo Jimmy Carter, os países árabes novamente voltaram a cogitar a
substituição do dólar por outras moedas no comércio do petróleo do Golfo Pérsico. Foi
então que o Tesouro americano voltou à ofensiva política por acordo com os sauditas
que garantisse que a OPEP continuaria a precificar seu petróleo apenas em dólares.
Em troca, os americanos se comprometeram a adotar políticas de fortalecimento
do valor do dólar, preservando assim o seu poder de comando e restabelecendo
o seu prestígio como moeda de referência internacional. Isso foi feito a partir de
1979, quando o então presidente do Federal Reserve, Paul Volcker, promoveu radical
elevação na taxa de juros americana, iniciando processo de valorização da moeda
(EICHENGREEN, 2011, p. 62-65). Em rigor, isso confirmou o acordo e resultou em que
“[...] 70% dos ativos sauditas nos Estados Unidos se encontrassem numa conta do
Federal Reserve de Nova York.” (CLARK, 2005, p. 20-21).
Com efeito, do ponto de vista da ordem monetária internacional, o resultado
deste arranjo foi que, para garantir o seu abastecimento de petróleo, os países
importadores em todo o mundo se viram obrigados a obter dólares fazendo saldos
positivos nas suas balanças comerciais, recebendo investimentos estrangeiros
diretos ou contratando de empréstimos no exterior – especialmente num momento
em que os preços internacionais do petróleo haviam se multiplicado. Por outro
lado, em grande medida, esses dólares eram supridos aos países importadores
pelos próprios sistemas bancários e financeiros anglo-americanos, capitalizados
pela “reciclagem de petrodólares”, isto é, pelos excedentes monetários dos países
da OPEP.
Isso quer dizer que, para os americanos, justamente no momento em que
o dólar enfraquecia e passava por uma grave crise no seu prestígio internacional,
os acordos dos anos 1970 com os sauditas se mostraram fundamentais para a
manutenção da posição hegemônica do dólar como a moeda central do sistema
financeiro internacional, através da sua manutenção como a moeda de denominação
ou padrão de referência do comércio internacional do petróleo. Assim, garantida
esta condição, cada elevação nos preços internacionais do petróleo tinha como
consequência a elevação proporcional na demanda mundial por dólares para pagar
pelo seu abastecimento (CLARK, 2005, p. 29-30)8. Além disso, eles conseguiram
“[...] orquestrar um arranjo financeiro com a autoridade monetária saudita que
criativamente transformou os elevados preços do petróleo de 1973-74 para o
direto benefício dos bancos da Reserva Federal americana e do Bank of England
8 Segundo o xeque Ahmed Yaki Yamani, ministro saudita do petróleo entre 1962 e 1986, os americanos
não só não se opuseram como orquestraram a multiplicação dos preços do petróleo por 400%
ocorrida na crise de 1973-74: “O Rei Faisal me enviou ao xá do Irã, que disse: Porque você está contra
a elevação dos preços do petróleo? […] Pergunte ao Henry Kissinger, ele é um dos que quer um preço
mais alto”. Com efeito, os preços internacionais do petróleo subiram de 3 dólares por barril no início
de 1973 para quase 12 dólares em janeiro de 1974.
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Então, uma “[...] mudança crucial para uma moeda lastreada em petróleo
teve lugar no início dos anos 1970 [...]”(CLARK, 2005, p. 22), logo depois da
ruptura do lastro no ouro. O resultado disso foi que, se por um lado o governo
americano livrou-se das restrições de política monetária que lhes eram impostas
pela conversibilidade ao ouro, por outro lado, se o petróleo só podia ser adquirido
por dólares, e se ele representa matéria-prima essencial e insubstituível cujo
abastecimento é indispensável, a demanda por dólares pelos demais países e a
grande liquidez dos ativos denominados em dólares estava assegurada.
Em suma, tratou-se de estratégia buscada pelos governos e elites financeiras
americanas, secundadas pelas britânicas e em associação com a monarquia saudita,
que
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9 Os EUA consomem, em média 6% do total da produção mundial a mais do que eles próprios
produzem.
10 Atualmente, a dívida pública americana se aproxima dos 20 trilhões de dólares, equivalente a quase
1/3 do total mundial.
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país que pode consumir mais do que produz indefinidamente sem tornar o seu
endividamento insustentável nem precisar oferecer bens e serviços em troca na
mesma escala em que os consome. Não há “restrição externa” possível para o país
que comanda a moeda de uso e aceitação internacional. Além disso, através do
acesso ao seu sistema financeiro, o país fornece os dólares que os demais países
necessitam para se abastecer no comércio internacional e oferece as oportunidades
mais diversificadas e seguras de investimento estrangeiro. Assim, dólares, isto é,
meios de comando do governo americano, representam o principal “produto”
americano de exportação.
Com tudo isso,
Sem essa prerrogativa, não seria possível aos Estados Unidos manter centenas
de milhares de soldados e um enorme aparato bélico espalhados em centenas de
bases militares em todo o mundo, tampouco aspirar ao controle militar do Golfo
Pérsico.
Logo, é muito arriscado o comando militar sobre o resto do mundo sem que
esteja acompanhado de comando monetário. Um não pode prescindir do outro e
ambos se reforçam. Preservar esta prerrogativa é condição quintessencial para a
perpetuação do poder americano.
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11 Destaque-se os bombardeios promovidos pelo governo Clinton – com apoio britânico - contra
o Iraque em 1998, assim como a aprovação do Iraq Liberation Act pelo Congresso americano no
mesmo ano, com o declarado objetivo de que “deveria ser a política dos Estados Unidos apoiar
esforços para remover o regime liderado por Saddam Hussein do poder no Iraque”, visando uma
“transição democrática” no país.
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três mil mortos em seu solo. Destaque-se, porém, que já havia sido elaborada e
tornada pública a estratégia com relação ao domínio americano sobre o Golfo
Pérsico e a presença do regime de Saddam Hussein como possível justificativa para
ações militares do país na região. Neste sentido, é interessante notar como aqueles
ataques vieram a calhar para a execução dessa estratégia, convenientemente
justificando a execução de planos unilaterais já previamente definidos.
Não obstante, o último documento divulgado pelo governo de George W.
Bush com relação à estratégia americana foi o The National Security Strategy of
the United States of America, revelado em 2002 e já tendo os ataques terroristas
e a consequente “Guerra ao Terror” como pano de fundo. Declarando de saída
que “aquilo que é bom para a América é bom para o mundo” e, também, que “os
valores americanos são corretos e verdadeiros para qualquer pessoa em qualquer
sociedade”, ele contém elementos dos projetos anteriores e delineia os pressupostos
daquela que ficou chamada como a “Doutrina Bush”:
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12 Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França, Grã-Bretanha, Grécia, Holanda, Irlanda, Itália,
Luxemburgo e Portugal.
13 Não por acaso, Napoleão e Hitler tiveram planos de reordenação monetária da Europa tendo em seu
centro moedas criadas e garantidas por seus países, impostas aos demais.
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industrial e comercial da Europa capaz de, em último caso, competir com o dólar
pela hegemonia na ordem monetária internacional.
Com efeito, até o surgimento do euro, nenhum país da OPEP ou qualquer
outro exportador de petróleo havia desafiado a supremacia do dólar desde os
acordos dos anos 1970 entre americanos e sauditas. Porém, seu advento e sucesso
inicial abriram novas oportunidades e, no dia 24 de setembro de 2000, Saddam
Hussein declarou que o Iraque brevemente faria a transição das exportações de
petróleo para utilização do euro em detrimento do dólar, nas suas palavras, a
moeda do “Estado inimigo”. Em seguida, o governo iraquiano abriu uma conta-
corrente denominada em euros no maior banco privado da França, o BNP Paribas
– indicando o quanto Saddam agia com consciência na escolha dos seus aliados -,
na qual os fundos iraquianos passaram a ser depositados sob o programa “Oil for
Food”, supervisionado pela ONU (CLARK, 2005, p. 28-31).
Com efeito, pelo menos nos meios financeiros londrinos, essa movimentação
foi percebida como uma “declaração de guerra contra o dólar”. Então, como o
euro se valorizou substancialmente em relação ao dólar entre setembro de 2000
(quando um euro valia 87 centavos de dólar) e os anos seguintes (em março de
2003, valia 1,10 dólar), a operação se mostrou extremamente lucrativa para o
governo iraquiano, cujo valor em dólares das suas reservas cambiais aumentou
significativamente.
Com isso, o euro e ativos denominados em euros ganhavam prestígio em
relação ao dólar como meios de comando nas relações internacionais e, da
perspectiva americana, a persistência da valorização do euro em relação ao dólar14
poderia estimular um movimento sistêmico de troca de dólares por euros pelos
bancos centrais de países produtores de petróleo, encerrando grande potencial de
desvalorização cambial de consequências devastadoras para a posição dominante
do dólar na ordem monetária internacional. De fato, nos meses imediatamente
anteriores à Guerra do Iraque, indicações nesse sentido foram dadas pelos governos
de países como Rússia, Irã, Indonésia e Venezuela, quase todos, em maior ou menor
grau, antagônicos aos Estados Unidos. Saddam Hussein havia aberto um perigoso
precedente.
Ademais, enquanto o Iraque se encontrava sob embargo das Nações Unidas,
as empresas americanas eram proibidas de operar no país. Porém, a partir de 1997,
o governo iraquiano havia negociado contratos de concessão com empresas de
quase 30 países, entre eles – mais uma vez – a França (TotalELF) e a Rússia (Lukoil),
sob a expectativa de que em algum momento o embargo fosse levantado. Outro
desses contratos envolvia o governo iraquiano e um consórcio entre as estatais
chinesas China National Petroleum Corporation (CNPC) e a Norinco, do setor de
14 O euro alcançaria a cotação de 1,35 dólar em dezembro de 2004 e 1,60 em julho de 2008, quando
começou a cair até os nossos dias.
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15 As informações verbais algumas citações indiretas, que não devem ocorrer, nas considerações finais
e/ou na conclusão, aparecem neste artigo como testemunhas capazes de conceder credibilidade ao
artigo.
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16 Aproximadamente 250 mil americanos, quase 50 mil britânicos e contingentes de poucos milhares ou
apenas centenas de soldados de países aliados, como Austrália e Polônia. Além disso, houve, ainda,
o estímulo americano à insurgência curda no norte do país – preparada por agentes de inteligência
e forças especiais americanas ainda no ano anterior à invasão – que contribuiu com outros 70 mil
combatentes.
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REFERÊNCIAS
AGLIETTA, M. Zona do euro: qual o futuro? Tradução: Cristian Perret Gentil. São
Paulo: Ideias e Letras, 2013.
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