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A Geopolítica Monetária da Guerra do Iraque de George W.

Bush: O Resgate dos Petrodólares

A GEOPOLÍTICA MONETÁRIA DA GUERRA DO IRAQUE DE GEORGE W. BUSH: O


RESGATE DOS PETRODÓLARES

Daniel Kosinski*

RESUMO
Este artigo objetiva analisar as motivações de ordem geopolítica e monetária que
fundamentaram a decisão do governo George W. Bush em engendrar guerra contra
o Iraque de Saddam Hussein em 2003. Em rigor, as raízes desta iniciativa dizem
respeito à decisão tomada por Saddam em meados do ano 2000 de substituir o
dólar pelo euro como moeda padrão ou de referência no comércio internacional
do petróleo iraquiano. Com isso, ele abriu precedente que, caso fosse seguido
pelos governos de outros grandes países exportadores de petróleo, ameaçaria a
preponderância do dólar como moeda central da ordem monetária internacional
e, consequentemente, todas as importantes e exclusivas vantagens que este fato
confere à autoridade soberana que a controla, o governo dos Estados Unidos.
Não obstante, sendo esta posição privilegiada do dólar um dos pilares centrais do
poder e da hegemonia global americana, e tendo sido os principais estrategistas
e colaboradores do presidente os proponentes de estratégias governamentais de
perpetuação inconteste daquela hegemonia no século XXI, a invasão do Iraque
e a deposição de Saddam Hussein foram definidos como objetivos geopolíticos
essenciais daquele governo. Assim, os ataques terroristas do 11 de Setembro de 2001
e a subsequente “Guerra ao Terror” proclamada pelo presidente Bush forneceram
o pretexto para a guerra, legitimando politicamente a execução de iniciativas que
já haviam sido decididas anteriormente. Neste sentido, a Guerra do Iraque possuiu
um objetivo geopolítico fundamental, embora raramente reconhecido, de ter sido
uma guerra monetária dos Estados Unidos contra o euro.
Palavras-chave: Guerra do Iraque. Governo George W. Bush. Dólar. Euro.

THE MONETARY GEOPOLITICS OF GEORGE W. BUSH´S IRAQ WAR: THE RESCUE OF


THE PETRODOLLARS

ABSTRACT
This paper aims to analyze the monetary and geopolitical reasons behind the decision
of George W. Bush´s administration to wage war against Saddam Hussein´s Iraq, in
2003. The origins of this initiative refer to a decision taken by Saddam in mid-2000 to
____________________
* Bacharel em Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), Mestre em Ciência Política (PPGCP/UFF), especialista
lato sensu em Políticas Públicas (PPED/UFRJ), doutorando em Economia Política Internacional
(PEPI/UFRJ). Autor do livro O Governo JK e as raízes getulistas da orientação do capitalismo no
Brasil (Ed. Prismas, 2015). Contato: <danskos@gmail.com>.

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replace the dollar by the euro as the standard currency or reference in international
commerce of Iraqi oil. By doing so, he opened up a practicethat, if followed by the
governments of other major oil-exporting countries, would threaten the prevalence
of the dollar as the fundamental currency of the international monetary order and,
consequently, all the important and unique advantages that this very fact grants to
the sovereign authority which controls it, the US government. Nevertheless, being
the dollar´s privileged position one of the main pillars of U.S. power and global
hegemony, and being the main president Bush´s strategists and contributors the
proponents of the governmental strategies aiming at the incontestable perpetuation
of its hegemony through the 21th century, invade Iraq and remove Saddam Hussein
were defined as major geopolitical objectives of that administration. Thus, the
terrorist attacks of the 9/11 and the subsequent “War on Terrorism” proclaimed by
president Bush provided the perfect pretext for the war, granting political legitimacy
for the enforcement of initiatives, which were previously decided. So, the Iraq War
held an essential geopolitical objective, although seldom recognized, of being a U.S.
monetary war against the euro.
Keywords: Iraq War. George W. Bush administration. Dollar. Euro.

LA GEOPOLÍTICA MONETARIA DE LA GUERRA DE IRAK DE GEORGE W. BUSH: EL


RESCATE DE LOS PETRODÓLARES

RESUMEN
Este estudio tiene como objetivo analizar las motivaciones geopolíticas y monetarias
que fundamentaron la decisión del presidente George W. Bush para engendrar
la guerra contra el Irak de Saddam Hussein en 2003. Estrictamente hablando, las
raíces de esta iniciativa se refieren a la decisión tomada por Saddam a mediados de
2000 para reemplazar al dólar con el euro como moneda estándar o de referencia
en el comercio internacional de petróleo iraquí. Con eso, se abrió precedente que,
si seguidos por los gobiernos de otros principales países exportadores de petróleo,
amenazaría al dominio del dólar como moneda central del orden monetario
internacional y consecuentemente, todas las ventajas importantes y únicas que
esto confiere a la autoridad soberana que la controla, el gobierno de los Estados
Unidos. No obstante, una vez que esta posición privilegiada del dólar constituye
uno de los pilares centrales del poder e de la hegemonía estadunidense, y siendo
los principales estrategas e contribuyentes del presidente Bush los proponentes de
estrategias gubernamentales de perpetuación incontestada de esa hegemonía en
el siglo XXI, la invasión del Irak y la deposición de Saddam Hussein fueron definidos
como objetivos geopolíticos esenciales de eso gobierno. Así, los ataques terroristas
del 11 de setiembre de 2001 y la consecuente “Guerra al Terror” proclamada por el
presidente Bush proporcionaron el pretexto para la guerra, legitimando políticamente
la ejecución de iniciativas que ya habían sido decididas anteriormente. Siendo así, la

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Guerra de Irak ha tenido uno objetivo geopolítico fundamental, aunque raramente


reconocido, de haber sido una guerra monetaria de los Estados Unidos contra el
euro.
Palabras clave: Guerra do Irak. Gobierno George W. Bush. Dólar. Euro.

1 INTRODUÇÃO

Quando se trata de guerras em países que são grandes detentores, produtores


e exportadores de petróleo, é comum concebermos a imagem de “potências
imperialistas” intervindo em países menos poderosos com o objetivo de se apoderar
dos seus recursos energéticos. A princípio, esta razão poderia parecer suficiente
para explicar as motivações que levaram o governo de George W. Bush a tomar a
iniciativa da invasão do Iraque em março de 2003, na chamada Guerra do Iraque.
Afinal, em grande medida, o controle sobre o petróleo havia sido um dos
propósitos por trás das ações do próprio líder iraquiano Saddam Hussein para
invadir o Irã, em 1980 (EHTESHAMI, 1995, p. 131-137)1 – iniciando uma longa guerra
de oito anos que se mostraria inconclusiva e catastrófica para ambos os lados – e,
também e principalmente, o Kuwait em 1990, fato este que motivou a primeira
invasão do Iraque pelos americanos e uma vasta coalizão de dezenas de países
aliados no ano seguinte, na Guerra do Golfo (KLARE, 2008, p. 180-181).
Com efeito, o petróleo não é mera mercadoria, mas a mais estratégica das
matérias-primas. Sem ele, não há como desenvolver e sustentar infraestruturas
manufatureiras e de transportes modernas, nem tampouco assegurar o
abastecimento energético necessário para a industrialização e urbanização, das
quais o petróleo fornece aproximadamente 40% das necessidades (CLARK, 2005, p.
30). Ademais, o petróleo é também a fonte primordial e indispensável de carburantes
para a movimentação de exércitos, marinhas e aeronáuticas modernas, movidos
por motores de combustão interna. Muitos conflitos, como a Segunda Guerra
Mundial, certamente não foram iniciados pela posse do petróleo, mas acabaram
se transformando em corridas desesperadas pelo seu controle, sendo a escassez ou
abundância no seu abastecimento fator determinante para a definição do sucesso
ou fracasso de forças armadas e, com elas, de países inteiros. Por essas razões,
“[...] por todo o século XX, e agora no século XXI, o petróleo significou hegemonia.”
(YERGIN, 2010, Parte III – Guerra e Estratégia, capítulos XVI-XIX p. 34).
Em rigor, essas seriam boas razões para que os Estados Unidos desejassem
remover Saddam Hussein do poder no Iraque e estabelecer seu controle sobre o
petróleo do país, cujas enormes reservas são estimadas as terceiras maiores do

1 Neste caso, também foi fator extremamente relevante para o ataque o desejo de Saddam
Hussein de impedir a “exportação” da Revolução Islâmica iraniana no Iraque, cuja população é
majoritariamente xiita, tal qual a do Irã.

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Golfo Pérsico, inferiores apenas às sauditas e iranianas e equivalentes a 10 a 12%


do total mundial (KLARE, 2008, p. 179)2.
Todavia, em grande medida a iniciativa do governo de George W. Bush
em empreender a guerra contra Saddam Hussein se relacionou com outro fator
essencial para a sua estratégia geopolítica, embora raramente reconhecido.
Tratou-se de tomada de decisão estratégica que dizia respeito aos experimentos
monetários realizados pelo líder iraquiano na administração das rendas obtidas com
a exploração e venda do petróleo do seu país, nos quais ele promoveu a substituição
do dólar americano como moeda de denominação e padrão de referência em favor
do euro, a moeda comum européia lançada em 1999.
Em rigor, foi uma surpreendente iniciativa do iraquiano que se mostrou
extremamente lucrativa e que, uma vez precedente aberto e seguido por outros
grandes países exportadores de petróleo, poderia demolir um dos pilares essenciais
– ou talvez, o mais essencial – da hegemonia americana sobre o mundo: a posição
única e central do dólar na ordem monetária internacional e nas relações comerciais
Fonternacionais. Portanto, os anseios de controlar e de dispor do petróleo iraquiano
mostram claro propósito: confrontar o desafio apresentado por Saddam Hussein
à hegemonia monetária americana sobre o mundo, o que foi interpretado pelo
presidente George W. Bush e seu círculo mais próximo de colaboradores como uma
contestação intolerável ao poder global dos Estados Unidos. Propomos, portanto,
investigar suas origens e significado.

2 A DURADOURA IMPORTÂNCIA DO GOLFO PÉRSICO PARA A ESTRATÉGIA


AMERICANA

No entorno do Golfo Pérsico estão localizadas aproximadamente 60% das


reservas mundiais de petróleo (KLARE, 2008, p. 178)3. Sem dúvidas, é a região mais
importante do planeta no que diz respeito a este ativo absolutamente estratégico e
essencial para a vida contemporânea. Não há país industrializado ou que aspire sê-
lo que possa ignorar este fato, principalmente aqueles que, não possuindo petróleo
em seus próprios territórios em quantidades adequadas, precisam garantir o seu
abastecimento em fontes no exterior.
Com efeito, há muito os Estados Unidos se colocaram na posição de “exercer
o controle último sobre esta vital região”. As primeiras ligações americanas com
a área datam de 1933, quando a Standard Oil Company of California (SOCAL)
adquiriu concessões para prospecção e eventual exploração de petróleo no reino

2 Isso faz das reservas estimadas do Iraque o quinto maior estoque de petróleo do mundo.
3 “Isso se compara com aproximadamente 12% para Europa a antiga União Soviética, 10% para a
África, 9% para as Américas Central e do Sul, 5% para América do Norte e 3% para Ásia oriental e
do sudeste, motivo suficiente para explicar a permanente significância geopolítica do Golfo”.

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da Arábia Saudita, fundado pelo Rei Abd al-Aziz ibn Saud no ano anterior. Então, a
Grã-Bretanha era a potência dominante no Oriente Médio e detinha controle direto
ou indireto sobre todos os reinos da área exceto o saudita, onde se acreditava não
haver petróleo algum.
Todavia, a atenção do governo americano pelo Golfo foi despertada quando,
durante a Segunda Guerra Mundial, o presidente Franklin Roosevelt percebeu que
a auto-suficiência americana em petróleo estava com os dias contados e que, no
futuro, o país dependeria de abastecimento estrangeiro. Então, declarando que
“a defesa da Arábia Saudita é vital para a defesa dos Estados Unidos”[Informação
verbal], ele objetivou fortalecer a posição política americana sobre ela, visando
assegurar para os americanos o monopólio sobre as suas reservas energéticas. Para
isso, após tentar sem sucesso nacionalizar a concessão da companhia californiana,
ele adotou a solução de uma “parceria público-privada” na qual a diplomacia
americana abriria as portas para investimentos privados das empresas do país no
Golfo Pérsico enquanto, às empresas, caberia produzir e transportar o petróleo.
Para o êxito dessa estratégia, era essencial conseguir a aprovação do monarca
saudita. Então, os dois se encontraram num navio da Marinha americana em fevereiro
de 1945, após a reunião de Roosevelt com os demais aliados na Conferência de
Yalta, na Criméia soviética. Deste encontro, saiu um “acordo tácito” – pois não foi
firmado nenhum documento ou registro formal dele – pelo qual os Estados Unidos
proveriam segurança militar para a Arábia Saudita e a própria família real – contra
inimigos externos e internos – em troca do acesso permanente e privilegiado das
empresas americanas ao petróleo saudita.
Como consequência, os Estados Unidos instalaram a sua primeira base aérea
na Arábia Saudita em 1946 e, desde então, os sauditas têm sido um dos maiores
compradores de armas e equipamentos militares e aliados fundamentais dos
Estados Unidos (KLARE, 2008, p. 183-184)4. E na medida em que foram descobertos
os maiores poços de petróleo naquele país, também os maiores do mundo5, outras
empresas americanas se juntaram à SOCAL para constituir a ARAMCO, Arabian-
American Oil Company, que, em breve, se tornaria a maior empresa produtora de
petróleo do mundo, posição que, renomeada Saudi Aramco e 100% nacionalizada
pelo governo, ainda ocupa em nossos dias lugar de destaque.
Não obstante, desde aquele momento, seguidos governos dos Estados
Unidos trabalharam incessantemente para aprofundar a sua presença militar e
controle sobre o Golfo Pérsico. Em 1953, por exemplo, seus órgãos de inteligência
cooperaram com os britânicos na organização da deposição do governo do

4 As compras de equipamento militar americano feitas pela monarquia saudita corresponderam a


25% do total exportado pelos Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial.
5 Os sauditas possuem os maiores poços de petróleo em terra e no mar, respectivamente: Ghawar,
descoberto em 1948, e Safanyia, descoberto em 1951.

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primeiro-ministro iraniano Mohammad Mosadeqq, quando este nacionalizou as


companhias estrangeiras de petróleo que operavam no seu país. Este golpe de
estado reinstalou no poder o regime “brutal e impopular” do Xá Reza Pahlavi, que
retomou as políticas favoráveis às empresas estrangeiras e, armado e apoiado
pelos americanos, operava como “guardião do Golfo” em nome de Washington
(KLARE, 2008, p. 189).
Este quadro mudou quando, em 1979, a chamada Revolução Islâmica, liderada
pelo aiatolá Ruhollah Khomeini, instalou no país um regime profundamente religioso,
nacionalista e contrário à presença e aos interesses ocidentais na região. No mesmo
ano, a invasão do Afeganistão pela União Soviética também foi percebida pelos
americanos como ameaça ao seu predomínio no Golfo. Então, a posição americana
a respeito já era clara, pois em 1975, o secretário de Estado Henry Kissinger havia
declarado que os Estados Unidos “[...] estavam prontos para engendrar guerras por
petróleo [...]” (CLARK, 2005, p. 45).
Por isso, em reação a estes acontecimentos, o então presidente Jimmy Carter
decidiu alterar a estratégia dos Estados Unidos no sentido de assumirem para si
próprios toda a responsabilidade pela defesa e controle do Golfo Pérsico. Assim,
no seu discurso do State of the Union de 1980, ele anunciou a doutrina segundo
a qual os Estados Unidos utilizariam qualquer força necessária, inclusive o poder
militar, para “repelir influências estrangeiras” sobre o suprimento de petróleo do
Golfo Pérsico, para o que foi criado aquilo que se transformaria no U.S. Central
Command, ao qual foi atribuída a responsabilidade formal de proteger o fluxo de
petróleo do Golfo (KLARE, 2008, p. 186).
Desde então, a estratégia americana tem sido a de aproveitar todas as
oportunidades para aumentar a presença direta dos seus militares nos países
situados no Golfo Pérsico ou seus acessos, como o Estreito de Hormuz, disputado
com o Irã e por onde navegam, diariamente, aproximadamente 17 milhões de barris
de petróleo, praticamente o volume diário consumido pelos Estados Unidos. Assim,
a invasão do Kuwait por Saddam Hussein em 1990 veio a calhar para os interesses
americanos de longo prazo na área, pois motivou o ataque dos Estados Unidos e
uma vasta coalizão de seus aliados ao Iraque no ano seguinte na chamada Guerra
do Golfo (KLARE, 2008, p. 180-181).
Com efeito, após este conflito, os Estados Unidos foram “convidados”
pelo governo saudita para manter forças militares americanas em seu território.
Acordos também foram fechados com os governos do Kuwait e do Qatar para a
estocagem de grandes quantidades de munição e materiais militares americanos
nestes países, tendo em vista “[...] facilitar futuras operações de combate [...]”
(KLARE, 2008, p. 182), em curto espaço de tempo. Assim, atualmente os Estados
Unidos possuem, entre bases aéreas, navais, terrestres e centros de comando e
inteligência, presença estabelecida no Bahrein, Qatar, Iraque, Kuwait, Emirados
Árabes, Omã e Turquia, além, é claro, da Arábia Saudita. Tão extensa é a atual

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presença militar americana no Golfo que ele já foi descrito como um “lago
americano” (KLARE, 2008, p. 177-187).
A importância imediata do petróleo do Golfo Pérsico para o consumo
dos próprios Estados Unidos, embora significativa, não chega a ser decisiva.
Na época da Guerra do Iraque, ele correspondia a aproximadamente 24%
do total importado pelo país. Em rigor, como parte da própria estratégia de
segurança americana de assegurar que suas fontes primárias de abastecimento
de energia sejam diversificadas e se situem nas redondezas mais imediatas do
seu território, isto é, principalmente no entorno do Oceano Atlântico, a maioria
das suas importações vem de países como Canadá, México, Venezuela, Angola
e Nigéria.
Todavia, para os Estados Unidos, controlar o fluxo do petróleo do Golfo Pérsico
significa deter o poder de arbitrar sobre o abastecimento energético de diversos
países industrializados ou aspirantes a sê-lo. Nações asiáticas como a China, a Índia,
o Japão e a Coréia do Sul que, não sendo autossuficientes em petróleo, precisam
importá-lo em grandes quantidades, têm nos países daquela região os fornecedores
de bem mais que a metade das suas necessidades6. Outros, como França, Egito e
África do Sul, têm como principal fonte de abastecimento energético algum dos
países do Golfo Pérsico. Portanto, para os americanos, controlá-lo militarmente
e aos seus arredores representa posição única e privilegiada de, eventualmente,
projetar poder e exercer pressão sobre rivais em potencial. Por isso, perpetuar
este controle representa condição fundamental para a manutenção da hegemonia
americana sobre o mundo.

3 O ELO MONETÁRIO DO CONTROLE SOBRE O PETRÓLEO E O “PRIVILÉGIO


EXORBITANTE” DOS ESTADOS UNIDOS

Em agosto de 1971, diante da iminência do esgotamento das reservas


metálicas do Tesouro dos Estados Unidos e objetivando “libertar a política externa
americana das restrições financeiras” decorrentes da conversibilidade do dólar em
ouro, o então presidente Richard Nixon anunciou a sua suspensão, para todos os fins
práticos, pondo fim à ordem monetária internacional que havia sido construída nos
acordos de Bretton Woods. Em 1973, sem lastro metálico e tendo seu valor relativo
às outras moedas, submetido à manipulação sem limites ou constrangimentos por
iniciativas privadas nas praças de câmbio, o dólar sofreu seguidas desvalorizações
cambiais e intenso e prolongado processo inflacionário, a ponto de em 1973 ter sido
considerado “[...] em todo o mundo como uma moeda doente.” (EICHENGREEN,
2011, p. 59-60).

6 Em 2014, os países do Golfo Pérsico forneceram à China mais da metade do petróleo importado
pelo país; à Índia, mais de 60%; e ao Japão e à Coréia do Sul, mais de 80%.

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Como reação à perda global do poder de comando do dólar (FERREIRA


FILHO, 2015, p. 376-377)7, cujo prestígio como moeda de referência diminuía,
naquela ocasião, os países integrantes da Organização dos Países Exportadores
de Petróleo (OPEP) indicaram o interesse em estabelecer o comércio do petróleo
em outras moedas. Então, se pensava na possibilidade de utilização de uma
“cesta” integrada pelas moedas mais sólidas de países integrantes do Bank of
International Settlements (BIS), isto é, moedas como o marco alemão, o franco,
o franco suíço, a libra esterlina, o iene e o dólar canadense, entre outras. O dólar
americano, é claro, também faria parte dela, mas neste caso não desfrutaria mais
de posição exclusiva como padrão de referência do comércio internacional do
petróleo (CLARK, 2005, p. 20).
Diante desta iniciativa, objetivando impedir a transição monetária para
a “cesta” em detrimento do dólar, o governo Nixon decidiu abrir negociações
entre o Tesouro americano e o governo da Arábia Saudita tendo em vista “[...]
unilateralmente precificar as vendas de petróleo apenas em dólares [...]” (CLARK,
2005, p. 28). Como os maiores exportadores mundiais de petróleo e detentores
das maiores reservas globais, os sauditas eram a escolha óbvia para a estratégia,
pois tinham a maior preponderância e influência dentro da OPEP e, além disso, já
possuíam estreita aliança política e militar com os Estados Unidos.
Assim, em 1974, um acordo foi fechado pelas autoridades monetárias
americanas com bancos em Nova York e Londres com vistas a oferecer condições
favoráveis para investimentos oriundos dos países exportadores de petróleo que,
em função da grande elevação dos preços ocorrida no chamado “choque do
petróleo” do ano anterior – quando eles se multiplicaram por 4 –, acumulavam
enormes excedentes monetários que não encontravam oportunidades lucrativas de
emprego nos seus próprios países. Na esfera diplomática, em junho do mesmo ano, o
secretário de Estado americano Henry Kissinger formalizou este “arranjo monetário
único” com as autoridades sauditas, estabelecendo a US-Saudi Joint Comission
on Economic Cooperation. Então, o governo saudita comprou dois bilhões e meio
de dólares em títulos do Tesouro americano. Era o início do chamado petrodollar
recycling, conforme chamado pelo próprio Kissinger.

7 Consideramos que, primordialmente, moedas são instrumentos, direitos-meios de comando das


autoridades soberanas que as emitem, e não, conforme se costuma afirmar, meios de troca dotados
de poder de compra: “[...] propomos para reflexão a hipótese de que a realidade capitalista da
produção ao consumo e reprodução, considerando-se a necessária produção de meios de subsistência
individual e de meios de reprodução das condições produtivas, seja um sistema de circulação de
direitos-meios de comando – dinheiro e títulos – relativos às representações sociais de força de
trabalho e aos objetos que dependem do emprego institucional da força para garanti-los nas formas
em que esses objetos são socialmente representados, no qual o que seria chamado de ‘crises
econômicas’ seriam colapsos parciais, em maior ou menor extensão, de circulação desses direitos-
meios de comando.”.

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Porém, em 1977, enquanto a inflação nos Estados Unidos crescia a cada ano
durante o governo Jimmy Carter, os países árabes novamente voltaram a cogitar a
substituição do dólar por outras moedas no comércio do petróleo do Golfo Pérsico. Foi
então que o Tesouro americano voltou à ofensiva política por acordo com os sauditas
que garantisse que a OPEP continuaria a precificar seu petróleo apenas em dólares.
Em troca, os americanos se comprometeram a adotar políticas de fortalecimento
do valor do dólar, preservando assim o seu poder de comando e restabelecendo
o seu prestígio como moeda de referência internacional. Isso foi feito a partir de
1979, quando o então presidente do Federal Reserve, Paul Volcker, promoveu radical
elevação na taxa de juros americana, iniciando processo de valorização da moeda
(EICHENGREEN, 2011, p. 62-65). Em rigor, isso confirmou o acordo e resultou em que
“[...] 70% dos ativos sauditas nos Estados Unidos se encontrassem numa conta do
Federal Reserve de Nova York.” (CLARK, 2005, p. 20-21).
Com efeito, do ponto de vista da ordem monetária internacional, o resultado
deste arranjo foi que, para garantir o seu abastecimento de petróleo, os países
importadores em todo o mundo se viram obrigados a obter dólares fazendo saldos
positivos nas suas balanças comerciais, recebendo investimentos estrangeiros
diretos ou contratando de empréstimos no exterior – especialmente num momento
em que os preços internacionais do petróleo haviam se multiplicado. Por outro
lado, em grande medida, esses dólares eram supridos aos países importadores
pelos próprios sistemas bancários e financeiros anglo-americanos, capitalizados
pela “reciclagem de petrodólares”, isto é, pelos excedentes monetários dos países
da OPEP.
Isso quer dizer que, para os americanos, justamente no momento em que
o dólar enfraquecia e passava por uma grave crise no seu prestígio internacional,
os acordos dos anos 1970 com os sauditas se mostraram fundamentais para a
manutenção da posição hegemônica do dólar como a moeda central do sistema
financeiro internacional, através da sua manutenção como a moeda de denominação
ou padrão de referência do comércio internacional do petróleo. Assim, garantida
esta condição, cada elevação nos preços internacionais do petróleo tinha como
consequência a elevação proporcional na demanda mundial por dólares para pagar
pelo seu abastecimento (CLARK, 2005, p. 29-30)8. Além disso, eles conseguiram
“[...] orquestrar um arranjo financeiro com a autoridade monetária saudita que
criativamente transformou os elevados preços do petróleo de 1973-74 para o
direto benefício dos bancos da Reserva Federal americana e do Bank of England

8 Segundo o xeque Ahmed Yaki Yamani, ministro saudita do petróleo entre 1962 e 1986, os americanos
não só não se opuseram como orquestraram a multiplicação dos preços do petróleo por 400%
ocorrida na crise de 1973-74: “O Rei Faisal me enviou ao xá do Irã, que disse: Porque você está contra
a elevação dos preços do petróleo? […] Pergunte ao Henry Kissinger, ele é um dos que quer um preço
mais alto”. Com efeito, os preços internacionais do petróleo subiram de 3 dólares por barril no início
de 1973 para quase 12 dólares em janeiro de 1974.

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[...]”, reciclando centenas de bilhões de dólares entre a OPEP e as praças financeiras


de Nova York e Londres (CLARK, 2005, p. 21-22). Portanto, a elevação dos preços
do petróleo também gerava excedentes monetários que acabavam alavancando
a capacidade operacional dos bancos e instituições financeiras anglo-americanas,
conferindo grandes vantagens competitivas frente a sistemas monetários e
financeiros rivais, como os europeus e japoneses.
Por essas razões,

[...] em seguida ao colapso [...] de Bretton Woods, uma mudança


maciça de ativos de reserva do ouro para o dólar rapidamente
teve lugar. Em 1971, o ouro representava aproximadamente
50% dos ativos de reserva internacional, mas depois de 1971 o
ouro foi rapidamente substituído por moedas estrangeiras, que
agora representam aproximadamente 95% dos ativos de reserva
dos bancos centrais. Dólares se transformaram na maior moeda
de reserva para a maioria das nações. Desde então, os efeitos
da reciclagem de petrodólares proveram o Federal Reserve de
habilidade sem paralelo para criar crédito e expandir a oferta
monetária de tal maneira que era impossível sob [...] Bretton
Woods. (CLARK, 2005, p. 22).

Então, uma “[...] mudança crucial para uma moeda lastreada em petróleo
teve lugar no início dos anos 1970 [...]”(CLARK, 2005, p. 22), logo depois da
ruptura do lastro no ouro. O resultado disso foi que, se por um lado o governo
americano livrou-se das restrições de política monetária que lhes eram impostas
pela conversibilidade ao ouro, por outro lado, se o petróleo só podia ser adquirido
por dólares, e se ele representa matéria-prima essencial e insubstituível cujo
abastecimento é indispensável, a demanda por dólares pelos demais países e a
grande liquidez dos ativos denominados em dólares estava assegurada.
Em suma, tratou-se de estratégia buscada pelos governos e elites financeiras
americanas, secundadas pelas britânicas e em associação com a monarquia saudita,
que

[…] explorou o papel único do petróleo num esforço para manter


a hegemonia do dólar. Um dos componentes era a exigência de
que a OPEP concordasse em precificar e conduzir todas as suas
operações de petróleo apenas em dólares, e o segundo era usar
esses petrodólares excedentes como instrumento para reverter
dramaticamente a queda do valor internacional do dólar através
dos elevados preços do petróleo. O resultado líquido solidificou
as nações industrializadas e em desenvolvimento sob a esfera
do dólar. Não mais lastreado no ouro, o dólar se tornou lastrado
no “ouro negro”. (CLARK, 2005, p. 30).

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Assim, a centralidade do dólar na ordem monetária internacional foi


preservada e, com ela, os Estados Unidos garantiram para si a manutenção do
desfrute exclusivo do “privilégio exorbitante” de controlar e emitir a moeda de
denominação, padrão de referência e uso em contratos, investimentos, no comércio
e nas finanças internacionais.
Com efeito, são diversas e muito significativas essas vantagens. Primeiramente,
as autoridades dos Estados Unidos só precisam imprimir dólares para realizar
seus pagamentos ao exterior, enquanto todos os demais países precisam obtê-los
vendendo bens e serviços, recebendo investimentos estrangeiros ou contraindo
empréstimos, isto é, se endividando em moeda estrangeira. De fato, isso permite
aos americanos consumir bens – inclusive, petróleo – e serviços em escala muito
superior ao que podem fazer os demais povos, pois não têm custos materiais
(EICHENGREEN, 2011, p. 5)9. Ou seja, deter a moeda de uso internacional lhes
permite comandar e dispor de parcela relativa muito maior do produto da divisão
internacional do trabalho do que aquela que produzem. Desta forma, as demais
sociedades precisam fazer “sacrifícios” em termos de contenção do seu padrão de
prosperidade material que são dispensáveis aos americanos. A ordem internacional
é assimétrica e sustenta o padrão de consumo americano, subsidiado pelo resto do
planeta.
Uma vez que dólares são exigidos para garantir o abastecimento de matérias-
primas, bens e serviços adquiridos pelos demais países no comércio internacional,
autoridades monetárias, empresas e iniciativas privadas em todo o mundo
demandam dólares continuamente e acumulam gigantescos montantes em ativos
denominados nesta moeda, atualmente calculados em mais de cinco trilhões de
dólares apenas no que diz respeito às reservas cambiais de bancos centrais. Assim,
se endividando em sua própria moeda e sempre encontrando para ela inúmeros
compradores, o governo dos Estados Unidos paga baixíssimas taxas de juros pelo seu
endividamento, anualmente sustentando grandes déficits e podendo se endividar
em escala muito superior a todos os demais países10.
Além disso, como nas crises financeiras internacionais os detentores privados
de excedentes monetários se inclinam a buscar aplicações consideradas mais
“seguras”, os custos do endividamento americano caem ainda mais, ao contrário
do que se passa com a maioria dos demais países, endividados em moedas
estrangeiras.
Em resumo, enquanto o dólar permanecer na condição de moeda central
de referência da ordem monetária internacional, os Estados Unidos serão o único

9 Os EUA consomem, em média 6% do total da produção mundial a mais do que eles próprios
produzem.
10 Atualmente, a dívida pública americana se aproxima dos 20 trilhões de dólares, equivalente a quase
1/3 do total mundial.

Revista da Escola Superior de Guerra, v. 31, n. 63, p. 169-191, jul./dez. 2016 179
Daniel Kosinski

país que pode consumir mais do que produz indefinidamente sem tornar o seu
endividamento insustentável nem precisar oferecer bens e serviços em troca na
mesma escala em que os consome. Não há “restrição externa” possível para o país
que comanda a moeda de uso e aceitação internacional. Além disso, através do
acesso ao seu sistema financeiro, o país fornece os dólares que os demais países
necessitam para se abastecer no comércio internacional e oferece as oportunidades
mais diversificadas e seguras de investimento estrangeiro. Assim, dólares, isto é,
meios de comando do governo americano, representam o principal “produto”
americano de exportação.
Com tudo isso,

[...] o amplo uso internacional de uma moeda confere ao


emitente alavancagem geopolítica e estratégica. Como a posição
financeira do país é mais forte, sua política externa também é
mais poderosa. Por pagar menos por suas dívidas, dispõe de
melhores condições para financiar suas operações externas
e para exercer influência estratégica. [Além disso], contrai
empréstimos concedidos por outros países, que dependem da
sua moeda. (EICHENGREEN, 2011, p. 8).

Sem essa prerrogativa, não seria possível aos Estados Unidos manter centenas
de milhares de soldados e um enorme aparato bélico espalhados em centenas de
bases militares em todo o mundo, tampouco aspirar ao controle militar do Golfo
Pérsico.

A hegemonia do dólar é em muitos sentidos mais importante


do que a superioridade militar americana. De fato, remover o
pilar do dólar naturalmente resultará na diminuição do pilar
militar. [...] O papel único do dólar como petrodólar tem sido o
fundamento da sua supremacia desde meados dos anos 1970.
O processo de reciclagem de petrodólares sustenta o domínio
[monetário] americano que financia a sua supremacia militar. A
supremacia do dólar/petrodólar permite aos Estados Unidos a
habilidade única de sustentar déficits anuais na sua balança de
pagamentos, aprovar grandes cortes de impostos, construir um
enorme império mundial de bases militares e ainda ter outros
países que aceitam a sua moeda como meio de troca para os
seus produtos e serviços importados. (CLARK, 2005, p. 28).

Logo, é muito arriscado o comando militar sobre o resto do mundo sem que
esteja acompanhado de comando monetário. Um não pode prescindir do outro e
ambos se reforçam. Preservar esta prerrogativa é condição quintessencial para a
perpetuação do poder americano.

180 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 31, n. 63, p. 169-191, jul./dez. 2016
A Geopolítica Monetária da Guerra do Iraque de George W. Bush: O Resgate dos Petrodólares

4 ESTRATÉGIAS GOVERNAMENTAIS PARA A MANUTENÇÃO DA SUPREMACIA


AMERICANA NO MUNDO PÓS-GUERRA FRIA

O colapso da União Soviética, em 1991, significou o desaparecimento do


principal rival dos Estados Unidos na disputa pela hegemonia mundial, pondo fim à
Guerra Fria. Então, os Estados Unidos, com a sua ampla superioridade tecnológica
e militar, além do domínio monetário e da imensa influência política e cultural,
sobraram como a única superpotência capaz de agir com autonomia e eficácia em
quase todas as partes do planeta.
Desta forma, com esta radical mudança da conjuntura, já em 1992 uma
nova estratégia geopolítica americana, chamada Defense Planing Guide, foi
elaborada por funcionários do Departamento de Defesa ligados ao Partido
Republicano e ao governo do então presidente George Bush. Em rigor, ela deixava
inequívocos os objetivos que comandariam as políticas externa e de defesa
americanas daí em diante: “Nosso primeiro objetivo é prevenir a re-emergência
de um novo rival, seja no território da antiga União Soviética ou qualquer outro
lugar, que represente uma ameaça à ordem como a representada pela União
Soviética.”, pois “nossa missão número um no mundo, agora que nós somos a
única superpotência, é assegurar que nós permaneceremos assim”. Para isso,
propunha-se manter uma liderança americana “dissuasória” com relação a outras
nações ou blocos potencialmente aspirantes à ampliação da sua influência na
ordem internacional, entre os quais se citava a Europa, o Japão, a China e a
Índia. O objetivo desta política seria o de manter a dominância militar capaz
de “deter potenciais competidores de até mesmo aspirar a um papel regional
ou global maior”, embora, para isso, também declarasse ser necessário “[...]
estabelecer e proteger uma nova ordem mundial que contemple suficientemente
os interesses das nações industriais avançadas para desencorajá-las de desafiar
a nossa liderança.” (CLARK, 2005, p. 53).
Com efeito, entre outras disposições, a estratégia também declarava a
necessidade de reafirmar e assegurar o controle americano sobre as “matérias-
primas vitais”, principalmente o petróleo do Golfo Pérsico, como objetivo primordial
das políticas externa e de defesa americanas, contemplando para isso a possibilidade
de ações militares “preventivas, se necessário”.
Em suma, o Defense Planing Guide representava o esboço duma doutrina
de dominância global americana que, nas suas próprias palavras, deveria ser
perseguida “[...] tão adiante no futuro quanto for possível [...]”. Todavia, a derrota
de George Bush para Bill Clinton nas eleições presidenciais de novembro daquele
ano alijou das posições de comando no Estado os autores desta estratégia,
embora existam significativos indícios de que seus elementos básicos tenham

Revista da Escola Superior de Guerra, v. 31, n. 63, p. 169-191, jul./dez. 2016 181
Daniel Kosinski

sido incorporados pelas políticas do governo do democrata, pelo menos no que


diz respeito ao Iraque11.
Assim, foi apenas em setembro de 2000, durante a campanha presidencial
que então opunha o republicano George W. Bush, filho do ex-presidente Bush,
ao candidato democrata Al Gore, que foi lançado pelo instituto Project for a New
American Century, fundado em 1997 e integrado por diversas figuras de expressão
no Partido Republicano, o documento Rebuilding America´s Defenses: Strategies,
Forces and Resources for a New Century.
Em rigor, trata-se de documento de 90 páginas que reafirmava e atualizava as
disposições e a estratégia postulada pelo Defense Planing Guide, correspondendo
a um “[...] manifesto [que] gira em torno da geoestratégia do domínio dos Estados
Unidos, declarando que a nenhum outro país será permitido ‘desafiar’ a hegemonia
americana.” (CLARK, 2005, p. 42).
Especificamente no que diz respeito ao Golfo Pérsico e ao Iraque, era mais
uma vez declarado em termos inequívocos o objetivo de garantir, em quaisquer
circunstâncias, o controle sobre a região:

De uma perspectiva americana, o valor destas bases no Iraque


transcenderia até mesmo a saída de Saddam Hussein de cena. No
longo prazo, o Irã bem pode se revelar uma ameaça tão grande
aos interesses americanos no Golfo quanto o fez o Iraque. E
mesmo que as relações irano-americanas melhorassem, manter
forças avançadas na região ainda seria um elemento essencial na
estratégia de segurança dos Estados Unidos, dados os interesses
americanos de longa data na região. (CLARK, 2005, p. 43).

Para isso, a presença no Iraque do regime de Saddam Hussein era interpretada


como excelente oportunidade para a execução desses planos:

Os Estados Unidos procuraram por décadas desempenhar


um papel mais permanente na segurança regional do Golfo.
Enquanto que o conflito não resolvido com o Iraque fornece a
justificativa imediata, a necessidade de presença substancial de
força americana no Golfo transcende a questão do regime de
Saddam Hussein. (CLARK, 2005, p. 25).

Finalmente, destaque-se o planejamento e patrocínio do projeto de

11 Destaque-se os bombardeios promovidos pelo governo Clinton – com apoio britânico - contra
o Iraque em 1998, assim como a aprovação do Iraq Liberation Act pelo Congresso americano no
mesmo ano, com o declarado objetivo de que “deveria ser a política dos Estados Unidos apoiar
esforços para remover o regime liderado por Saddam Hussein do poder no Iraque”, visando uma
“transição democrática” no país.

182 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 31, n. 63, p. 169-191, jul./dez. 2016
A Geopolítica Monetária da Guerra do Iraque de George W. Bush: O Resgate dos Petrodólares

“regional regime change”, destinado a garantir a manutenção ou instalação de


governos favoráveis aos interesses americanos nos países do Golfo Pérsico (CLARK,
2005, p. 47).
Com efeito, após a vitória de George W. Bush nas eleições, esse documento
foi tomado como base para a política externa do seu governo. Não obstante as
razões acima, são conhecidos os vínculos de longa data do próprio presidente e
de alguns dos principais integrantes do seu governo com a indústria do petróleo.
Nas décadas de 1970-80, ele fundou no Texas pequenas empresas de exploração.
Ainda mais significativamente, este era o caso do vice-presidente Dick Cheney,
principal executivo de uma das maiores empresas mundiais prestadoras de
serviços relacionados com a exploração de petróleo, a Halliburton, entre 1995 e
2000. Ademais, Cheney também havia sido secretário de Defesa do governo de
George Bush, o pai, exatamente quando fora elaborado o Defense Planing Guide,
em 1992.
Por isso, apenas nove dias após assumir a Presidência, em janeiro de 2001,
George W. Bush anunciou a criação de um grupo chamado National Energy Policy
Development Group, a ser dirigido pelo vice-presidente Dick Cheney e, por isso,
apelidado de “Cheney´s Energy Task Force”. Já em maio, essa força-tarefa tornou
público o seu primeiro relatório, chamado National Energy Policy.
Então, o documento declarava que o Oriente Médio possuía 65% das reservas
globais comprovadas de petróleo e que o Iraque, sozinho, detinha 11% do total
mundial. Por outro lado, em duas décadas, os Estados Unidos veriam crescer em
muito as suas necessidades de importação de petróleo, que chegariam a dois em
cada três barris consumidos. Para atender a esta demanda, os americanos teriam
que recorrer cada vez mais às importações de países como a Rússia e aqueles
localizados na África Ocidental e no entorno do Mar Cáspio, cujos governos nem
sempre são favoráveis aos seus interesses (CLARK, 2005, p. 50-51).
Assim, destacava,

Os Estados Unidos não podem confiar apenas em “forças de


mercado” [isto é, iniciativas privadas] para ganhar acesso a
esses recursos, mas também requererá um esforço significativo
por parte de oficiais do governo para superar a resistência
estrangeira ao alcance das companhias de energia americanas.
(CLARK, 2005, p. 51)

Portanto, ficava subentendida a ideia de que o papel principal dos militares


e da diplomacia americana nas primeiras décadas do século XXI seria assegurar o
controle das maiores reservas mundiais de hidrocarbonos.
Não obstante, pouco tempo depois, no dia 11 de setembro de 2001, os Estados
Unidos foram alvo dos maiores ataques terroristas da história, que deixaram quase

Revista da Escola Superior de Guerra, v. 31, n. 63, p. 169-191, jul./dez. 2016 183
Daniel Kosinski

três mil mortos em seu solo. Destaque-se, porém, que já havia sido elaborada e
tornada pública a estratégia com relação ao domínio americano sobre o Golfo
Pérsico e a presença do regime de Saddam Hussein como possível justificativa para
ações militares do país na região. Neste sentido, é interessante notar como aqueles
ataques vieram a calhar para a execução dessa estratégia, convenientemente
justificando a execução de planos unilaterais já previamente definidos.
Não obstante, o último documento divulgado pelo governo de George W.
Bush com relação à estratégia americana foi o The National Security Strategy of
the United States of America, revelado em 2002 e já tendo os ataques terroristas
e a consequente “Guerra ao Terror” como pano de fundo. Declarando de saída
que “aquilo que é bom para a América é bom para o mundo” e, também, que “os
valores americanos são corretos e verdadeiros para qualquer pessoa em qualquer
sociedade”, ele contém elementos dos projetos anteriores e delineia os pressupostos
daquela que ficou chamada como a “Doutrina Bush”:

[...] declara como a política orientadora dos Estados Unidos o


direito de usar a força militar em qualquer lugar do mundo, a
qualquer momento que ele escolha, contra qualquer país que
ele acredita ser, ou que ele acredita possa se tornar em algum
momento uma ameaça aos interesses americanos. [...] adiante,
ele declara que ‘a estratégia de segurança nacional dos Estados
Unidos será baseada num internacionalismo distintamente
americano que reflete a união dos nossos valores e dos nossos
interesses nacionais’. (CLARK, 2005, p. 57).

Em rigor, se tratava da formalização do conceito da “guerra preventiva”,


segundo a qual o governo de George W. Bush se atribuía o direito de agir unilateral
e preventivamente contra qualquer país, ou grupo de países, por ele mesmo
arbitrariamente definido(s), sem ser obrigado a oferecer evidências cabais das
ameaças alegadas. Desta feita, o presidente George W. Bush começou a se referir
a certo “Eixo do Mal”, integrado por três países que, segundo ele, patrocinavam
atividades terroristas: Irã, Iraque e Coréia do Norte, os dois primeiros, não por
acaso, localizados no Golfo Pérsico e donos da segunda e terceira maiores reservas
mundiais comprovadas de petróleo.
Com efeito, este conjunto de doutrinas estabelecia os princípios gerais e
regia a política externa americana durante o governo de George W. Bush, então
frequentemente chamada “neoconservadora”, visando à consolidação e perpetuação
da sua condição de superpotência hegemônica mundial. Essa hegemonia, conforme
a caracterizamos, possui duas condições essenciais e indispensáveis: o controle
militar americano sobre o abastecimento mundial de energia e a imposição do dólar,
e apenas do dólar, se considerado necessário por meios militares, como padrão

184 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 31, n. 63, p. 169-191, jul./dez. 2016
A Geopolítica Monetária da Guerra do Iraque de George W. Bush: O Resgate dos Petrodólares

monetário de referência internacional para as transações de petróleo (CLARK, 2005,


p. 26-27).
Para garantir essas condições, contemplava-se a possibilidade de execução
unilateral e arbitrária de “guerras preventivas” contra países considerados inimigos
ou contrários aos interesses americanos. Este poderia ser o caso de uma “guerra
dos petrodólares”, consistindo na “[...] aplicação de violência pelas agências de
inteligência ou militares dos Estados Unidos num esforço de impor o padrão do
dólar como a moeda monopolista nas transações internacionais de petróleo.”
(CLARK, 2005, p. 29).
Portanto, qualquer país exportador de petróleo que pretendesse distanciar-se
do dólar nas suas transações internacionais se transformaria num alvo em potencial
do antagonismo americano.

5 O “ERRO FATAL” DE SADDAM HUSSEIN E A “NECESSIDADE DA SUA DEPOSIÇÃO”

O euro foi estabelecido pelas provisões do Tratado de Maastricht, assinado


em 1992 pelos doze países então integrantes da Comunidade Européia12. Elas
determinavam a entrada da moeda comum em vigor no dia 1° de janeiro de 1999,
ainda que coexistindo por um período de três anos com as moedas nacionais dos
países que o tinham adotado. O euro era o produto de séculos de aspirações, ensaios,
tentativas e erros que visavam conferir à Europa uma moeda única tendo em vista
promover a sua integração política, às vezes, sob a hegemonia ou aberto domínio
imperial de alguma potência (MARSH, 2009, p. 14; AGLIETTA, 2013, p. 29-31)13.
Em rigor, foram os franceses, nos anos 1980, os principais responsáveis pelas
iniciativas que resultaram na criação da moeda comum e pela formulação dos seus
planos iniciais, muito embora o seu resultado institucional tenha se revelado bem
mais de acordo com as preferências dos alemães. De fato, foram muitas as motivações
e interesses que convergiram para dar origem ao euro, e não teríamos espaço para
discuti-los aqui. Não obstante, para os fins do presente artigo, basta considerarmos
que, antes e depois do seu advento, em diversas ocasiões governantes franceses
como Charles de Gaulle, Valéry Giscard D’Estaing, François Miterrand e Jacques
Chirac deixaram clara uma das razões cruciais por trás da iniciativa francesa na
sua formação: o interesse em reduzir a influência do dólar e do poderio político e
monetário dos Estados Unidos sobre a Europa (EICHENGREEN, 2011, p. 69-70).
Assim, do ponto de vista da geopolítica monetária, o euro foi pensado para ser
uma moeda sólida e estável, instrumento de projeção externa do poder financeiro,

12 Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França, Grã-Bretanha, Grécia, Holanda, Irlanda, Itália,
Luxemburgo e Portugal.
13 Não por acaso, Napoleão e Hitler tiveram planos de reordenação monetária da Europa tendo em seu
centro moedas criadas e garantidas por seus países, impostas aos demais.

Revista da Escola Superior de Guerra, v. 31, n. 63, p. 169-191, jul./dez. 2016 185
Daniel Kosinski

industrial e comercial da Europa capaz de, em último caso, competir com o dólar
pela hegemonia na ordem monetária internacional.
Com efeito, até o surgimento do euro, nenhum país da OPEP ou qualquer
outro exportador de petróleo havia desafiado a supremacia do dólar desde os
acordos dos anos 1970 entre americanos e sauditas. Porém, seu advento e sucesso
inicial abriram novas oportunidades e, no dia 24 de setembro de 2000, Saddam
Hussein declarou que o Iraque brevemente faria a transição das exportações de
petróleo para utilização do euro em detrimento do dólar, nas suas palavras, a
moeda do “Estado inimigo”. Em seguida, o governo iraquiano abriu uma conta-
corrente denominada em euros no maior banco privado da França, o BNP Paribas
– indicando o quanto Saddam agia com consciência na escolha dos seus aliados -,
na qual os fundos iraquianos passaram a ser depositados sob o programa “Oil for
Food”, supervisionado pela ONU (CLARK, 2005, p. 28-31).
Com efeito, pelo menos nos meios financeiros londrinos, essa movimentação
foi percebida como uma “declaração de guerra contra o dólar”. Então, como o
euro se valorizou substancialmente em relação ao dólar entre setembro de 2000
(quando um euro valia 87 centavos de dólar) e os anos seguintes (em março de
2003, valia 1,10 dólar), a operação se mostrou extremamente lucrativa para o
governo iraquiano, cujo valor em dólares das suas reservas cambiais aumentou
significativamente.
Com isso, o euro e ativos denominados em euros ganhavam prestígio em
relação ao dólar como meios de comando nas relações internacionais e, da
perspectiva americana, a persistência da valorização do euro em relação ao dólar14
poderia estimular um movimento sistêmico de troca de dólares por euros pelos
bancos centrais de países produtores de petróleo, encerrando grande potencial de
desvalorização cambial de consequências devastadoras para a posição dominante
do dólar na ordem monetária internacional. De fato, nos meses imediatamente
anteriores à Guerra do Iraque, indicações nesse sentido foram dadas pelos governos
de países como Rússia, Irã, Indonésia e Venezuela, quase todos, em maior ou menor
grau, antagônicos aos Estados Unidos. Saddam Hussein havia aberto um perigoso
precedente.
Ademais, enquanto o Iraque se encontrava sob embargo das Nações Unidas,
as empresas americanas eram proibidas de operar no país. Porém, a partir de 1997,
o governo iraquiano havia negociado contratos de concessão com empresas de
quase 30 países, entre eles – mais uma vez – a França (TotalELF) e a Rússia (Lukoil),
sob a expectativa de que em algum momento o embargo fosse levantado. Outro
desses contratos envolvia o governo iraquiano e um consórcio entre as estatais
chinesas China National Petroleum Corporation (CNPC) e a Norinco, do setor de

14 O euro alcançaria a cotação de 1,35 dólar em dezembro de 2004 e 1,60 em julho de 2008, quando
começou a cair até os nossos dias.

186 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 31, n. 63, p. 169-191, jul./dez. 2016
A Geopolítica Monetária da Guerra do Iraque de George W. Bush: O Resgate dos Petrodólares

defesa, que desenvolveriam um importante campo de petróleo iraquiano e também


forneceriam armas ao país. No total, a soma de todos esses contratos ultrapassava
um trilhão de dólares, mas empresas americanas e britânicas estavam excluídas
deles (CLARK, 2005, p. 83).
Em suma, isso significava que Saddam Hussein havia encontrado parceiros
entre grandes potências rivais dos Estados Unidos para a sua política de escapar
do isolamento diplomático, comercial e financeiro imposto pela aliança anglo-
americana. Os americanos estavam perdendo influência e controle sobre os destinos
e o petróleo do país.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS: REALIDADE E REPRESENTAÇÃO NA GUERRA DO


IRAQUE

Então, os ataques terroristas do 11 de Setembro de 2001 forneceram ao


governo de George W. Bush a aguardada oportunidade de atribuir a Saddam Hussein
alguma participação ou responsabilidade pelo ocorrido, com isso justificando,
no contexto da “Guerra ao Terror”, uma invasão já há muito premeditada pelos
integrantes do seu governo. Assim, se em fevereiro de 2001 o secretário de Estado
americano Colin Powell [informação verbal]15 afirmava, talvez por ingenuidade ou
imprudência, que “[...] as sanções da ONU […] têm funcionado. [Saddam Hussein]
não desenvolveu nenhuma capacidade significativa no que diz respeito às armas
de destruição em massa. Ele está incapaz de projetar força convencional sobre os
seus vizinhos [...]”, depois dos atentados tornaram-se frequentes as afirmações dos
principais personagens do governo americano em sentido contrário.
Desta forma, em agosto de 2002, Dick Cheney [informação verbal] afirmava
que não há dúvidas de que Saddam Hussein agora tem armas de destruição em
massa. Em setembro, segundo o secretário de Defesa Donald Rumsfeld [informação
verbal] asseverava que não existe Estado terrorista detentor de uma ameaça maior
ou mais imediata à segurança do nosso povo e à estabilidade mundial do que o
regime de Saddam Hussein no Iraque. Em fevereiro do ano seguinte, o próprio Colin
Powell “estimava” entre 100 e 500 toneladas o estoque iraquiano de armas químicas.
Em março, o presidente George W. Bush [informação verbal] declarava que não há
equívocos de que o Iraque mantém a possuir e esconder armas letais [...]”; e no dia
seguinte, o primeiro-ministro britânico Tony Blair unia a sua voz ao afinado coro dos
americanos, afirmando: “Somos solicitados […] a aceitar […] que Saddam Hussein
unilateralmente decidiu destruir essas armas […] eu afirmo que essa reivindicação
é manifestamente absurda.” (CLARK, 2005, p. 95-96, 98). conclusão

15 As informações verbais algumas citações indiretas, que não devem ocorrer, nas considerações finais
e/ou na conclusão, aparecem neste artigo como testemunhas capazes de conceder credibilidade ao
artigo.

Revista da Escola Superior de Guerra, v. 31, n. 63, p. 169-191, jul./dez. 2016 187
Daniel Kosinski

Então, apesar de “[...] nenhuma atividade proscrita, ou o resultado de tais


atividades [...]” terem sido encontrados nas mais de 400 inspeções realizadas por
funcionários das Nações Unidas no Iraque de Saddam Hussein entre 1998 e 2002; e
das garantias do então diretor da Agência Internacional de Energia Atômica, o egípcio
Mohammed El Baradei, de que “depois de três meses de inspeções intrusivas, nós
não encontramos até o momento nenhuma evidência ou indicação plausível do
renascimento de um programa de armas nucleares no Iraque”, intensa campanha
de formação da opinião pública a favor do ataque foi iniciada pelos maiores e mais
influentes meios americanos de comunicação de massa.
Porém, fora dos Estados Unidos, não houve convencimento a respeito da
legitimidade da guerra. Nem mesmo na Grã-Bretanha, cujo governo de Tony Blair
a apoiou desde os seus preparativos e dela participaria ativamente, mesmo contra
a opinião da esmagadora maioria da população e a despeito de diversos grandes
protestos nas principais cidades. Tampouco as Nações Unidas a endossaram, pois
franceses e russos – os principais beneficiários dos contratos negociados com o
regime de Saddam Hussein –, entre outros, ameaçaram vetar no Conselho de
Segurança a resolução que a autorizaria, que assim não foi apresentada (CLARK,
2005, p. 40).
Finalmente, afirmando que “a diplomacia havia falhado”, no dia 20 de março
de 2003 o governo de George W. Bush iniciou a Guerra do Iraque – cujo codinome
para os americanos era Operação Liberdade Iraquiana – com pesados bombardeios
aéreos, logo seguidos de invasão por terra por mais de 300 mil soldados16. A enorme
superioridade das forças sob liderança americana garantiu uma vitória rápida e
esmagadora sobre o governo iraquiano, que caiu em poucas semanas. Saddam
Hussein, capturado em dezembro, foi julgado por um “Tribunal Especial Iraquiano”
e executado três anos depois, sob a alegação de ter cometido crimes de guerra no
assassinato de centenas de iraquianos xiitas, em 1982.
Após a sua deposição, um regime federal parlamentarista foi instalado no
Iraque sob ocupação, significando o êxito da política de “regional regime change”
proposta desde o Rebuilding America´s Defenses: Strategies, Forces and Resources
for a New Century, de 2000. Este novo governo iraquiano se mostrou muito mais
“favorável” aos interesses americanos do que o regime anterior. Assim, os contratos
assinados por Saddam com empresas estrangeiras foram anulados e em seu lugar,
empresas americanas, britânicas e australianas foram as principais contempladas
com grandes contratos de exploração das reservas iraquianas e de reconstrução da
infraestrutura petrolífera do país (CLARK, 2005, p. 35, 62).

16 Aproximadamente 250 mil americanos, quase 50 mil britânicos e contingentes de poucos milhares ou
apenas centenas de soldados de países aliados, como Austrália e Polônia. Além disso, houve, ainda,
o estímulo americano à insurgência curda no norte do país – preparada por agentes de inteligência
e forças especiais americanas ainda no ano anterior à invasão – que contribuiu com outros 70 mil
combatentes.

188 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 31, n. 63, p. 169-191, jul./dez. 2016
A Geopolítica Monetária da Guerra do Iraque de George W. Bush: O Resgate dos Petrodólares

Não obstante, a retomada do controle político sobre o Iraque e a administração


do seu petróleo permitiram ao governo americano reverter aquela que havia sido a
“decisão crítica” de Saddam Hussein: a mudança do padrão monetário de referência
do petróleo iraquiano para o euro. Assim, a produção e as exportações iraquianas
de petróleo voltaram a ser executadas principalmente por empresas americanas e,
essencialmente, tendo o dólar como moeda padrão ou de referência para contratos
e transações.
Com efeito, por ocasião da Guerra do Iraque, embora o comércio exterior
dos Estados Unidos correspondesse a apenas aproximadamente 13% do comércio
internacional, o dólar permanecia sendo a moeda de denominação de 75% dele.
No que diz respeito à composição das reservas monetárias internacionais, a
preponderância do dólar atingia 60% do total mundial. Mais da metade dos títulos
da dívida pública americana emitidos estão em posse de governos e iniciativas
privadas não americanas, e o dólar ainda era usado em 85% das operações cambiais
realizadas em todo o mundo. A OPEP, apesar da iniciativa de Saddam, continuava a
precificar e comercializar seu petróleo em dólares (EICHENGREEN, 2011, p. 121).
Todavia, o advento do euro em 1999 e o seu fortalecimento em relação ao
dólar nos anos seguintes havia criado alternativa muito atraente para investimentos
de fundos privados e a formação de grandes estoques de reservas cambiais e de
ativos de reserva de valor por bancos centrais. Essa oportunidade logo foi percebida
por Saddam Hussein que, sob rígido embargo e isolamento internacional imposto
pelos Estados Unidos e seus aliados na ONU, buscava se livrar destas restrições
à soberania iraquiana. Para isso, ele executou ousada manobra geopolítica que
objetivava livrar-se do cerco monetário que sofria ao adotar, nas suas relações
exteriores, a moeda recém-criada pelos europeus e que então despontava como
rival em potencial do dólar, projeto para o qual não teve dificuldades em encontrar
sócios importantes entre os próprios países europeus, como a França, e em outros
como a China e a Rússia, desejosos por aumentar sua influência nas relações
internacionais e contrapor o poderio americano.
Desta forma, da perspectiva geoestratégica do governo George W. Bush, a
experiência inovadora de Saddam Hussein precisava ser interrompida para que
a posição central do dólar na ordem monetária internacional fosse preservada,
independentemente dos meios necessários para isso.
Portanto, subjacente à Guerra do Iraque estava uma ofensiva do governo de
George W. Bush contra o euro e a possibilidade da sua ascensão a ponto de se
tornar um rival efetivo para a posição hegemônica do dólar. Logo, havia motivações
geoestratégicas mais profundas e menos visíveis para aquela iniciativa, e elas diziam
respeito a uma guerra incruenta, monetária, contra a União Européia. Assim, não
havia “diplomacia” que fosse capaz de aplacar ou dissuadir os seus intentos.
Tudo isso explica porque não foi mera obra do acaso que os governos de
Alemanha e França – os dois países cuja aliança forma o pilar essencial do euro – se

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Daniel Kosinski

opuseram veementemente à Guerra do Iraque, ao passo que o governo de Tony Blair


na Grã-Bretanha a apoiou sem restrições e participou ativamente dela, colaborando
com os americanos desde a ofensiva junto à opinião pública mundial para justificá-
la assim como enviando grande número de tropas na invasão e ocupação daquele
país. Com efeito, sendo a Grã-Bretanha intensamente ligada aos Estados Unidos
por profundas relações históricas, culturais, financeiras, políticas e militares, e
desfrutando da condição de sócio privilegiado na ordem internacional americana,
Blair optou por juntar-se aos americanos em vez de tomar parte na oposição franco-
alemã à guerra, posição que também tem relações com a rejeição britânica ao euro
e, mais recentemente, à decisão de se retirar da União Européia.
Por sua vez, franceses e alemães possuíam razões substanciais para se opor à
guerra, uma vez que a iniciativa de Saddam Hussein colaborava para o fortalecimento
do euro como moeda de transações e reserva internacional, cumprindo exatamente
um dos objetivos estratégicos por trás da sua criação, que era o de contrapor a
influência e o domínio monetário do dólar sobre a Europa, além de projetar os
interesses e o poder da União Européia sobre o mundo (CLARK, 2005, p. 40).
Com tudo isso, podemos dizer que a Guerra do Iraque se tratou do primeiro
episódio visível de rivalidade aberta entre duas moedas concorrentes, o dólar e
o euro, e seus respectivos sistemas monetários e financeiros, uma disputa entre
as autoridades emissoras dessas duas moedas pelo controle sobre ou pelo poder
de comandar e dispor de recursos naturais escassos, porém essenciais, localizados
fora das suas fronteiras. Porém, neste embate, os Estados Unidos preservam uma
prerrogativa essencial e decisiva que falta aos europeus: a superioridade bélica
incontestável, o que em última instância lhe permite usar, em qualquer lugar do
mundo, a violência para decidir a seu favor.
Em resumo, e a guisa de conclusão, a Guerra do Iraque foi travada (e vencida)
por uma espécie de “condomínio anglo-americano” que visava: (1) a princípio,
retomar o controle político que então lhe escapava sobre parcela razoavelmente
expressiva dos recursos energéticos mundiais, num momento em que cresce e se
acirra a disputa entre as principais potências pela apropriação desses recursos
e a garantia futura do seu próprio abastecimento energético; e (2), em nada
menos importante, embora não tão visível, preservar a primazia do dólar como
a moeda dominante e de referência na ordem monetária internacional, com
isso assegurando as muitas e substanciais vantagens daí decorrentes, através
da reafirmação da sua condição de moeda padrão ou de referência no comércio
mundial do petróleo.

REFERÊNCIAS

AGLIETTA, M. Zona do euro: qual o futuro? Tradução: Cristian Perret Gentil. São
Paulo: Ideias e Letras, 2013.

190 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 31, n. 63, p. 169-191, jul./dez. 2016
A Geopolítica Monetária da Guerra do Iraque de George W. Bush: O Resgate dos Petrodólares

CLARK, W. R. Petrodollar warfare: oil, Iraq and the future of the dollar. Gabriola
Island, CAN: New Society Publishers, 2005.

EICHENGREEN, B. Privilégio exorbitante: a ascensão e queda do dólar. Tradução:


Afonso Celso Cunha Serra. Rio de Janeiro: Campus; Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.

EHTESHAMI, A. After Khomeini: The Iranian Second Republic. London: Routledge,


1995.

FERREIRA FILHO, V. D. Economia: obstáculo epistemológico: estudo das raízes


políticas e religiosas do imaginário liberal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2015.

KLARE, M.T. Rising powers, shrinking planet: the new geopolitics of energy. New
York: Metropolitan Books, 2008.

MARSH, D. The euro: the politics of the new global currency. New Haven, USA: Yale
University, 2009.

YERGIN, D. O petróleo: uma história mundial de conquistas, poder e dinheiro.


Tradução: Leila Marina U. Di Natale, Maria Cristina Guimarães, Maria Christina L.
de Góes. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

Recebido em: 06 out. 2016.


Aceito em: 29 dez. 2016.

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