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Correta ou não, esta visão prevalece na política externa dos EUA há décadas.
E também na de seu aliado preferencial na região, Israel, que prefere vizinhos imersos
em guerras civis do que Estados árabes fortes e aliados contra si. Além deles, hoje há
mais atores interessados em mudar o mapa geopolítico do Oriente Médio. A produção
do caos terrorista islâmico onde antes havia regimes estáveis, seculares e fora da
órbita de controle ocidental (Iraque, Líbia e Síria) atualmente também encaixa bem nas
visões estratégicas do governo da Turquia sob o AKP8, que vê na destruição do
arranjo geopolítico anterior um possível risco mas também uma grande oportunidade
para afirmar-se como potência regional e consolidar seu objetivo supremo, que é
impedir a formação de um Estado nacional curdo (ou Curdistão), levando o país –
único membro islâmico da OTAN – a adotar uma política pendular no que tange ao
conflito na Síria. Por fim, completando o realinhamento de forças imperialistas e
subimperialistas na região, temos as monarquias do golfo pérsico (Catar, Bahrein,
Omã, Kuwait) que, lideradas pelo regime saudita, exportam armas, guerrilheiros e
capital, além de uma ideologia militante, o salafismo/wahabismo, para os grupos
terroristas islâmicos que promovem a desestabilização contínua do Iraque e Síria, com
destaque para o Exército Islâmico (Daesh/ISIS) e para a Jabhat Al-Nursa, ex-afiliada
da Al-Qaida e atualmente rebatizada como Jabhat Fatah Al-Sham9.
Do outro lado, em oposição a este realinhamento das forças imperialistas e
seus clientes regionais, estatais e não-estatais, formou-se outra coalização, que
também reúne atores políticos e militares de diferentes naturezas. Trata-se do eixo
formado pelos governos estatais da Síria, Irã e Rússia, somados ao “Partido de Deus”
libanês Hezbollah, que possui forte braço armado. Eventualmente, recebem o apoio de
setores iraquianos xiitas ligados ao atual governo do primeiro-ministro Heider al-Abadi,
também empenhado em conter o extremismo islâmico sunita em seu próprio país.
Completando o quadro, existe a atuação não-unificada das forças curdas na Síria e no
Iraque que ora recebem apoio norte-americano, ora são fustigadas pela força aérea
turca (da OTAN, portanto), ora estabelecem táticas conjuntas porém temporárias com
a oposição síria, Damasco ou Bagdá a fim de combater o terrorismo islâmico. Com
efeito, durante meia década de conflito em solo sírio, as Unidades Populares de
Proteção (YPG) curdas, com seu exército de mulheres (YPJ) à frente, foram as únicas
que pareceram ser capazes de deter o avanço do Estado Islâmico em vários
momentos críticos. O mapa abaixo mostra essa configuração de forças, traduzido pelo
diagrama que o segue10:
Esta configuração de alianças é instável, por certo, mas segue enquadrando
conflitos políticos em outros teatros de operação da região, como no Iêmen, onde o
governante, sunita e não-eleito, preferido pelos sauditas foi expulso do país por um
levante armado dos ‘rebeldes’ Houthis, xiitas, apoiados pelo Irã. A retaliação saudita,
com armamento britânico e norte-americano, tem sido genocida. Assim como na Síria,
a guerra no Iêmen – que mata uma criança a cada 10 minutos, segundo a UNICEF 11 -
também trata-se de uma proxy war (“Guerra por Procuração”) entre potências
regionais com projetos hegemônicos em choque e apoiados por aliados longínquos,
mas poderosos.
Ela ajuda a entender porque não falta espaço na grande mídia norte-americana
e publicações de think-tanks de Washington alertando contra a expansão de um
“Império Iraniano”12 no Oriente Médio ou transmitindo uma imagem macabra do
“regime dos aiatolás” em Teerã, ou de Bashar al Assad e outros governantes “não-
cooperativos” do 3º Mundo. No entanto, é bem raro encontrar narrativas com igual
olhar crítico sobre o regime saudita e as demais monarquias do golfo, todos aliadas
dos EUA e brutalmente violadores dos direitos humanos de seus cidadãos, em
especial das mulheres. Jamais ouviu-se um chamado sobre a “responsabilidade de
proteger” inocentes oprimidas em Cizre, Sanaa, Riad ou no Bahrein13.
Deste modo, acreditar como valor de face na versão dominante de que há uma
guerra civil na Síria iniciada exclusivamente pela brutalidade de um ditador que tenta
conter violentamente uma versão local da “Primavera Árabe” é simplesmente
inaceitável. Se no começo houve uma breve aparição de forças populares e de
esquerda questionando o regime de Assad, rapidamente elas foram suplantadas pela
enchente de jihadistas advindos de todas as partes do mundo árabe, com a
conivência, financiamento e o armamento das potências regionais envolvidas na
coalizão (sub)imperialista que tenta derrubar o governo em Damasco e por fim ao
estado nacional sírio como um todo. Por isso, não se trata de uma guerra civil, mas de
uma invasão terrorista transnacional sustentada por regimes hostis (Turquia e Arábia
Saudita à frente), que inunda permanentemente o território sírio (e iraquiano) de
combatentes mercenários e fanáticos religiosos nada “moderados”, advindos de toda
parte do mundo árabe – que exporta assim parte de seu descontentamento social
doméstico para a Síria – e também de países asiáticos e até mesmo europeus:
Fonte: http://www.dianaswednesday.com/2015/12/syria-2015/
Caso caísse, Assad seria substituído por um “regime” muito mais violador dos
direitos humanos que o seu, especialmente o das mulheres: a Lei da Sharia islâmica,
conforme entendida e praticada pelo wahabismo. Basta ver o que acontece nos
territórios dominados pelo Estado Islâmico: decapitações, mercados de mulheres,
escravas sexuais, extermínio dos cristãos, crianças-soldado 15... Aleppo foi invadida por
essa barbárie e por isso agora está sendo liberada pelas tropas de Damasco, com
apoio russo. Devemos comemorar este fato: foi o começo do fim da dor de seus
residentes. Ninguém nesta cidade, ou em Palmira, sentirá saudades dos jihadistas.
Quase todos dos que sobraram hoje apegam-se ao “regime de Assad” mais
fortemente do que antes deste lamentável conflito imperialista se iniciar. O governo
desfruta de maior legitimidade interna a cada vez que o projeto imperial de destruir e
repartir em pedaços a Síria fica mais nítido. Ao reconhecer isto pode-se acessar a
verdadeira natureza da guerra na Síria: trata-se, na realidade, de uma guerra contra a
Síria16.
Não será possível entender o que está em jogo na atual guerra contra a Síria
sem destacar o papel jogado pelo capitalismo anglo-americano na região 19. A Guerra
contra a Síria não acontece num vácuo histórico e contextual. Sem a Guerra contra o
Iraque, iniciada em 2003, a atual não aconteceria. De certa forma, é uma continuação
daquele conflito, uma vez que o discurso imperial é o mesmo e seu principal ator, o
Estado Islâmico, surgiu dos escombros produzidos pela aventura de Bush e Blair
contra um “ditador” perigoso em Bagdá. Crer que o sofrimento humano em Aleppo é
causado por mais um “eixo do mal” nomeado pelos poderes imperialistas é capitular
frente às representações dominantes sobre o “Oriente”. Elas estão vivas, lembra-nos
Gayatri Spivak (1988). E, por isso, o Orientalismo segue como a chave-de-leitura
dominante no “ocidente” sobre o que pode ser sabido e o que é proibido poder/saber
sobre a guerra atual. O palestino Edward Said (2003) já descrevia as engrenagens
deste tipo de poder que hoje está por trás dos eventos na Síria:
Orientalism can be discussed and analyzed as the corporate institution for dealing with
the Orient – dealing with it by making statements about it, authorizing views of it,
describing it, by teaching it, settling it, ruling over it: in short, Orientalism as a Western
style for dominating, restructuring, and having authority over the Orient (SAID, 2003, p.
4).
***
Referências:
Amin, S. (org.) A crise do imperialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1977.
___________ . The implosion of contemporary capitalism. New York: Monthly Review Press, 2013.
___________ . The Reawakening of the Arab World: Challenge and Change in the Aftermath of the Arab
Spring. New York: Monthly Review Press, 2016.
ASSMAN, H (org). Trilateral: a nova fase do capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1979.
BRICMONT, J. Humanitarian Imperialism: Using Human Rights to Sell War. New York: Monthly Review
Press, 2006.
CHOMSKY, N. Humanitarian imperialism: The New Doctrine of Imperial Right. Monthly Review, v. 60, n. 4,
2008.
ESCOBAR, A. La invención del Tercer Mundo: Construcción y deconstrución del desarrollo. Caracas:
Editorial Perro y la rana, 2007.
HARMAN, C. The Prophet and the proletariat. International Socialism Journal, nº 2, vol. 64,1994.
HINKELAMMERT, F. “O credo econômico da Comissão Trilateral”. In: ASSMAN, H (org). Trilateral: a nova
fase do capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1979.
POWER, S. Bystandards to genocide: why the United States let the Rwandan tragedy happen. The
Atlantic Monthly, Sept. 2001.
________ .“A problem from hell”: America and the age of genocide. New York: Basic Books, 2002.
SPIVAK, G. “Can the subaltern speak?”. In: CARY, N. (Ed.). Marxism and the interpretation of culture.
Basingtoke: Macmillian Education, 1988.
Notas:
1
Sobre as estratégias norte-americanas para o 3º Mundo a partir dos anos 1970, ver Assman (1978, pp.7-15).
2
Para a versão oficial da doutrina de “Responsabilidade de Proteger”, ver:
http://www.un.org/en/preventgenocide/adviser/responsibility.shtml
3
A “renúncia” e “abandono de seu país” por de Jean-Bertrand Aristide (sequestrado e extraditado em um avião militar norte-
americano) em Fevereiro de 2004 foi assim descrita pelo então presidente dos EUA George W. Bush, ao anunciar para a
imprensa o envio imediato de marines para “ajudar a trazer ordem e estabilidade para o Haiti”, que estaria começando “um
novo capítulo de sua história” (…) “quebrando com seu passado”, podem (merecem) ser vistos em:
https://www.youtube.com/watch?v=QMqvXVossB8
4
Para se ter uma sensação do clima eufórico em que tal construção discursiva midiático-governamental foi transmitida, ver
o “discurso da vitória” (imperialista) de David Cameron e Nicolas Sarkozy, em plena Benghazi, no dia 15 de Setembro de
2011. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=wkaqzTfR-BU
5
A frase Assad must go (“Assad tem que sair”, em tradução livre) passou a ser repetida pelas lideranças políticas nos EUA
a partir de 2012. Ver o clipping de declarações em: https://www.youtube.com/watch?v=SSBRk10E5R8
6
Para a percepção dos obstáculos e das ameaças terceiro-mundistas sob a ótica do imperialismo norte-americano, há uma
série de estudos de qualidade na literatura críticas, em diferentes versões, que não necessariamente convergem em suas
percepções táticas, mas que oferecem todas entradas seguras na discussão de modo a evitar cair nas armadilhas
ideológico-midiáticas dominantes. Ver: Amin (1977; 2013); Assman (1979); Escobar (2007) e Harman (1994).
7
No sentido conferido ao termo “realismo” pela teoria de Relações Internacionais.
8
O Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP, em turco) chegou ao poder no início dos anos 2000, logo após ser fundado. É
um partido conservador e religioso (muçulmano), adepto do livre-mercado e outras políticas de corte neoliberal, que
conseguiu desbancar a hegemonia de décadas do kemalismo na política nacional do país. O perfil autoritário tem
prevalecido na condução do Estado turco, que atualmente fecha jornais críticos do governo, persegue jornalistas, processa
parlamentares da oposição e reprime movimentos populares, além de promover uma ofensiva militar devastadora
(genocida) sobre regiões de população curda, dentro e fora da Turquia, sob pretexto de luta contra o que denomina
“terrorismo” do Partido dos Trabalhadores Curdos (PKK). Vale lembrar que ao alimentar grupos armados na Síria e estar no
controle da principal fronteira de fuga do país, o presidente Erdogan exerce poder tanto sobre a produção quanto sobre a
vazão do fluxo de refugiados sobre a Europa, o que lhe confere imenso poder de barganha e certa carta branca para violar
os direitos humanos (curdos, em especial) de forma brutal em seu país e também nos vizinhos Iraque e Síria.
9
Ver, a respeito: https://www.theguardian.com/world/2016/jul/28/al-qaida-syria-nusra-split-terror-network
10
O diagrama não está correto em caracterizar Israel ao centro, uma vez que a política pró-desestabilização da Síria já foi
adotada sem vacilações em Tel Aviv, mesmo que os israelenses evitem tomar parte direta nos conflitos que estimulam.
11
Conferir: http://www.aljazeera.com/news/2016/12/unicef-child-dies-10-minutes-yemen-161212192354606.html
12
Ver um exemplo recente desta narrativa sobre o ‘perigo iraniano’ em:
http://www.thetower.org/article/the-iranian-empire-is-almost-complete-hezbollah-syria-lebanon-iraq/
13
Sobre a situação dos direitos das mulheres na Arábia Saudita, e sobre o respeito aos direitos humanos em geral, veja-se
as impressionantes denúncias feitas por uma das 33 mulheres do rei Abdullah, a princesa Alanoud Al Fayez, que conseguiu
fugir para o exílio em Londres. Se isto é o que se passa na própria família real, imagine-se no resto do reino:
https://www.channel4.com/news/saudi-arabia-king-abdullah-alanoud-al-fayez-daughters-jeddah
14
Ver: http://news.bbc.co.uk/2/hi/1971852.stm
15
Ver, por exemplo: http://www.nydailynews.com/news/world/roughly-3-000-women-girls-sold-isis-sex-slave-market-article-
1.2700156
16
Sobre o projeto imperial de destruição das nações árabes, ver a entrevista do intelectual egípcio Samir Amin, em:
https://normanpilon.com/2016/09/04/samir-amin-the-us-imperial-project-is-to-destroy-the-arab-nations/
Vale lembrar também que durante os primeiros anos de guerra, os EUA e Grã Bretanha não fustigavam de verdade as
forças do Daesh/ISIS na Síria, limitando-se a destruir com ataques aéreos as refinarias de petróleo que o grupo terrorista
ocupava, isto é, refinarias do estado Sírio, que uma vez destruídas não poderiam mais ser reutilizadas pelo governo de
Damasco após uma futura expulsão dos terroristas. O mesmo vale para pontes, estradas, reservatórios, hospitais, escolas e
outros aparelhos de infraestrutura destruídos pela intervenção estrangeira. Ver:
http://www.globalresearch.ca/us-destroying-syrias-oil-infrastructure-under-guise-of-fighting-the-islamic-state-isis/5411310
Por fim, vale lembrar do ataque direto (“acidental”) dos caças norte-americanos à um comboio do exército árabe da Síria
durante as primeiras horas de um cessar-fogo acordado com intermediação russa, matando 62 soldados em 17 de setembro
de 2016, que gerou reação imediata de Damasco e Moscou, além de um bate-boca nada diplomático no Conselho de
Segurança da ONU. Ver:
https://www.rt.com/news/360248-assad-ap-intentional-us-airstrikes/
17
Ver, a respeito:
http://www.businessinsider.com/these-are-the-main-global-threats-for-2016-2016-2.
Para o relatório completo, acesse:
http://www.intelligence.senate.gov/sites/default/files/wwt2016.pdf
18
Conferir a pesquisa em:
http://www.gallup.com/poll/189503/four-nations-top-greatest-enemy-list.aspx
19
Para quem duvida da influência norte-americana nos eventos mais drásticos do mundo árabe, vale lembrar do vazamento
da entrevista da então secretária de Estado Hillary Clinton, que achava estar com as câmeras desligadas, quando
aproveitou para responder (macabra e) ironicamente à acusação de que os EUA tiveram pouco protagonismo na queda e
morte de Kadafi: “We came, we saw, he died”. Veja o vídeo em: https://www.youtube.com/watch?v=Fgcd1ghag5Y
20
Ver o engenhoso argumento de Pepe Escobar (2012) acerca do “Pipelineistan” em:
http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2012/08/201285133440424621.html
21
“Even with all its terrible failings and its appalling dictator (who was partly created by US policy two decades ago), were
Iraq to have been the world's largest exporter of bananas or oranges, surely there would have been no war, no hysteria over
mysteriously vanished weapons of mass destruction, no transporting of an enormous army, navy and air force 7000 miles
away to destroy a countryscarcely known even to the educated American, all in the name of "freedom." Without a well-
organized sense that these people over there were not like "us" and didn't appreciate "our" values the very core of traditional
Orientalist dogma as I describe its creation and circulation in this book there would have been no war” (SAID, 2003, p. xvi).